Cadernos Nietzsche

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Cadernos Nietzsche
cadernos
Nietzsche
São Paulo – 2010
No 27
ISSN 1413-7755
Os artigos publicados nos
cadernos
Nietzsche
são indexados por
The Philosopher’s Index,
Clase e Geodados
cadernos
Nietzsche
no 27 – São Paulo – 2010
issn 1413-7755
Editor / Publisher
GEN – Grupo de Estudos Nietzsche
Editor Responsável / Editor-in-Chief
Ivo da Silva Júnior
Editora Adjunta / Associated Editor
Scarlett Marton
Conselho Editorial / Editorial Advisors
Ernildo Stein, Germán Meléndez, José Jara, Luis Enrique de Santiago Guervós, Mónica B. Cragnolini,
Paulo Eduardo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho
Comissão Editorial / Associate Editors
André Luís Mota Itaparica, André Favero, Clademir Luís Araldi,Eduardo Nasser, João Evangelista Tude
de Mero, Luis Eduardo Xavier Rubira, Márcia Rezende de Oliveira, Márcio José Silveira Lima, Vânia
Dutra de Azeredo, Wilson Antônio Frezzatti Júnior
Endereço para correspondência / Editorial Offices
cadernos Nietzsche
[email protected]
www.cadernosnietzsche.com.br
cadernos Nietzsche é uma publicação do
cadernos Nietzsche is a publication of the
Composição de miolo e capa / Graphic design & production: Et Cetera Editora
Foto da capa / Front Cover: C. D. Friedrich: C. D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818
1.000 exemplares / 1.000 copies
Fundados em 1996 por Scarlett Marton, os Cadernos Nietzsche
são lançados desde então regularmente nos meses de maio e setembro. E a partir da edição de 2010, a revista passou a receber também
versão eletrônica (www.cadernosnietzsche.com.br).
Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, os Cadernos
Nietzsche contam difundir trabalhos de especialistas estrangeiros e
brasileiros, dos mais experientes a doutorandos ou mestrandos.
Espaço aberto para o confronto de interpretações, os Cadernos
Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as
idéias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos
que se consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de
sua obra, estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns
temas com os de outros autores, textos que se detêm na análise de
problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos
que se empenham em avaliar enquanto um todo a atualidade do
pensamento nietzschiano.
Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os
Cadernos Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.
Founded in 1996 by Scarlett Marton, Cadernos Nietzsche
(www.cadernosnietzsche.com.br) is published twice yearly – every
May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a professional Brazilian context for contemporary readings
of Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to
publishing translations of contemporary European and American
scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’s philosophy.
Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche/Study Group
Nietzsche, Cadernos Nietzsche aims at the highest analytical level
of interpretation. It has a current circulation of about 1.000 copies
and is actively engaged in expanding its base, especially to university libraries. And it has been sent free of charge to the Brasilian
departments of philosophy, foreigner libraries and research instituts,
in order to promote the discussion on philosophical subjects and
particularly on Nietzsche’s thought.
Sumário
Editorial 9
Três leituras italianas de Nietzsche
Um sentido e incontáveis hieróglifos.
Alguns motivos da polêmica de Nietzsche
com Schopenhauer nos tempos de Leipzig
e de Basileia 13
Sandro Barbera
“Os gregos aprenderam aos poucos
a organizar o caos”. Os conceitos de estilo
e de cultura na Segunda consideração
extemporânea de F. Nietzsche 51
Carlo Gentile
“Was Alles Liebe genannt wird”: FW/GC 14,
KSA 3.356 como exemplo de exercício
pré-genealógico 73
Chiara Piazzesi
Nietzsche, pensador da modernidade 117
Vincenzo Di Matteo
Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
extemporâneas 143
Vânia Dutra de Azeredo
A crítica de Nietzsche à moral kantiana:
por uma moral mínima 169
Érico Andrade M. de Oliveira
Cultura, civilização e barbárie do ponto de
vista da crítica de Nietzsche aos alemães 191
Caio Moura
Nietzsche e as perspectivas
do perspectivismo 213
Thiago Mota
Relativismo e circularidade: A vontade
de potência como interpretação 239
André Luís Mota Itaparica
Contents
Editorial 9
Italian readings
A sense and countless hieroglyphs. Some
reasons for the controversy of Nietzsche
with Schopenhauer in times of Leipzig
and Basel 13
Sandro Barbera
“The Greeks learned gradually to organize
the chaos”. The concepts of style and culture
in Nietzsche’s II Untimely Meditation 51
Carlo Gentile
“Was Alles Liebe genannt wird”: FW/GC 14,
KSA 3.356 as an example of pre-genealogical
exercise 73
Chiara Piazzesi
Nietzsche, thinker of modernity 117
Vincenzo Di Matteo
Nietzsche and modernity: turning point 143
Vânia Dutra de Azeredo
Nietzsche’s critique of Kantian morality:
for a minimal moral 169
Érico Andrade M. de Oliveira
Culture, civilization and barbarism
from the standpoint of Nietzsche’s critique
of the Germans 191
Caio Moura
Nietzsche and the “perspectives”
of perspectivism 213
Thiago Mota
Relativism and circularity:
The will to power as interpretation 239
André Luís Mota Itaparica
Editorial
Cadernos Nietzsche 27 homenageiam o importante comentador italiano de Nietzsche, Sandro Barbera, que, infelizmente, não está mais
entre nós.
Nesta nova edição, os Cadernos Nietzsche dedicam-se a apresentar
três gerações de estudiosos italianos da filosofia do pensador de Sils. E
se assim faz, é com o intuito de continuar não apenas trazendo outras
possibilidades interpretativas, mas de ressaltar as diferentes maneiras de
trabalhar temporal e espacialmente o pensamento nietzschiano. Noutras
palavras, estes artigos colocam-se não apenas como referencial de rigor
teórico e conceitual, mas também, como fica evidente com suas leituras,
atentam para a historicidade do trabalho em história da filosofia. Algo que
vai ao encontro do trabalho inédito que Scarlett Marton tem feito no Brasil
no que tange à recepção da filosofia nietzschiana.
Este novo número da revista conta, assim, propiciar ao público
brasileiro entrar em contato com três autores que até agora não foram
publicados no país, além de trazer trabalhos de diversos estudiosos da
academia brasileira.
*
Agradeço ao professor Nuno Nabais, da Universidade de Lisboa, por
ter possibilitado a publicação do artigo de Sandro Barbera. E a todos aqueles integrantes do GEN – Grupo de Estudos Nietzsche que colaboraram
na produção deste número.
I vo
da
S ilva J únior
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9
Três leituras
italianas de Nietzsche
Um sentido e incontáveis
hieróglifos. Alguns motivos
da polêmica de Nietzsche
com Schopenhauer nos tempos
de Leipzig e de Basileia*
Sandro Barbera**
Resumo: Tomando como ponto de partida a análise dos primeiros textos
de Nietzsche, o artigo conta discutir o impacto do pensamento de Schopenhauer na filosofia nietzschiana.
Palavras-chave: Schopenhauer – vontade – metafísica – espírito livre.
1. A investigação acentuou para sempre a complexidade da leitura de Schopenhauer feita pelo jovem Nietzshe, as suas múltiplas
graduações e a necessidade de a colocar num contexto alargado.
Apesar das significativas contribuições de que dispomos sobre
esse tema, pode-se ainda afirmar que continua aberta toda uma
série de problemas.
Assim, coloca-se a pergunta, já uma vez tratada por Wilhelm
Metterhausen, sobre se Nietzsche não teria, nos tempos de Bona, e
por intermédio das preleções de Karl Scharschmidt, tido contado
*
**
Tradução de Nuno Nabais.
Professor da Universidade de Pisa.
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13
Barbera, S.
com as teorias de Schopenhauer;1 em seguida, é o problema de saber
até que ponto, através das polêmicas com Eduard von Hartmann e
Eugen Dühring (que trazem consigo uma renovada leitura de Schopenhauer), se modificou, no próprio Nietzsche, a imagem da filosofia
de Schopenhauer; depois, é a questão de saber até onde a imagem
de Schopenhauer foi condicionada, explicita ou implicitamente, pela
interpretação wagneriana. Por fim, mantém-se aberta a questão sobre
se, no interior do processo de formação de Nietzsche, é possível ver
simplesmente a experiência de Wagner enquanto continuação da
experiência de Schopenhauer.
De modo nenhum tais experiências formam uma síntese não
problemática ou uma “admirável unidade” (“wundersame Einheit”),
como escreve Nietzsche, sendo antes um campo de relações cheio
de conflitos. Isto é o que mostram especialmente alguns fragmentos
póstumos do período compreendido entre O nascimento da tragédia
e a terceira Consideração extemporânea, Schopenhauer como educador, um dos mais enigmáticos escritos de Nietzsche.
Não é portanto nenhum acaso se no fragmento póstumo (KSA
8.492, Nachlass/FP 27[30]), do princípio do verão de 1878 e onde
Nietzsche ajuíza retrospectivamente o significado de Schopenhauer
como educador para o seu próprio percurso, parece acentuar-se o
fracasso da tentativa de pensar em conexão a experiência de Schopenhauer e de a de Wagner.
1
Vide METTERHAUSEN, W. Friedrich Nietzsches Bonner Studentenzeit 1864/65.
Murhard’sche Bibliothek der Stadt Kassel (prova tipográfica não publicada, 1942 ),
p. 94 e segs.
Vide também: FIGL, J. Dialektik der Gewalt. Nietzsches hermeneutische Religionsphilosophie. Düsseldorf: 1984, p.114 e segs. Do mesmo autor: Nietzsches Begegnung
mit Schopenhauers Hauptwerk. Unter Heranziehung eines frühen unveröffentlichten
Exzerptes. In: Schopenhauer-Studien, n.4 – Schopenhauer, Nietzsche und die Kunst,
1993 (editado por Wolfgang Schirmacher), p. 89 e segs.
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
O fragmento observa precisamente a figura do homem schopenhaueriano, tal como a terceira Extemporânea a apresenta, como
meio para se libertar de Wagner e de um Schopenhauer lido à maneira de Wagner e também como um “atalho” (“Umweg”) que conduz
à forma do espírito livre: “O homem schopenaueriano levou-me à
dúvida contra o honrado, elevado e, até agora, defendido gênio santificado (também contra gregos, Schopenhauer, Wagner). Pessimismo
do conhecimento. Por este atalho cheguei ao cume (Höhe), com os
mais frescos ventos”2.
Nos anos que vão de 1872 a 1874 acentua Nietzsche, todavia,
a “admirável unidade” de Wagner e Schopenhauer no seio de uma
cultura que se vai fundando sob a égide do gênio e aspira a formulála de novo. A ambos devolve epítetos que lembram o principal carácter da cultura grega qual seja o de despedaçar os instintos para
os fazer atuar uns contra os outros e para os reagrupar numa nova
unidade. A um “Contra-Alexandre” (“Gegen-Alexander”)3, a um
Wagner equipado de uma “natureza legisladora” (“gesetzgeberischen
2
3
KSA 8.500, Nachlass/FP 27 [80].
Vide WB/Co. Ext. IV 4, KSA 1.447: “Não para resolver o nó górdio da cultura grega,
como o faz Alexandre, de tal modo que os seus limites esvoaçavam em todas as
direcções do mundo, mas para atá-lo, depois de ter sido disperso. Esta é a tarefa do
momento. Em Wagner reconheço um tal Contra-Alexandre: ele desterra e encadeia
o que estava isolado, fraco, descuidado; tem, se é permitida aqui uma expressão
da medicina, uma força adstringente. Nisso ele faz parte das grandes e maiores
violências culturais. Reina sobre as artes, as religiões as diferentes histórias dos
povos e é todavia o oposto de um polihistórico, de um espírito ordenador e unificador: é então um formador de uniões, um animador dos contatos, um simplificador
(Vereinfacher) do mundo”.
Vide também os fragmentos KSA 8.208, Nachlass/FP 11[22] e KSA 8.250, Nachlass/
FP 12 [14].
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Barbera, S.
Natur”)4, corresponde, como polo oposto, um Schopenhauer que
opõe à perigosa dispersão das ciências uma “imagem de conjunto”
(“Gesamtbild”) e que refreia o seu próprio “impulso de conhecimento” (“Erkenntnistrieb”) ao protegê-lo de consequências niilistas.
De um lado está o “simplificador” (“Vereinfacher”) (WB/Co. Ext.
IV 4 e 5, KSA 1. 448 e 454), sim, o “tirano” (“Tyrann”) Wagner, tal
como aparece em Richard Wagner in Bayreuth e nos fragmentos em
preparação5 e nos quais é já claramente expressa a crise de equilíbrio, confirmada pela luta entre variedade e unidade no seio da
cultura6 trágica. A ele corresponde o “simplificar” (“Simplificieren”)
ou a “simplicidade” (“Simplicität”)7 enquanto destacado atributo da
filosofia de Schopenhauer que por si mesma se liberta de qualquer
tecnicismo e da escolástica. Nietzsche acentua, por um lado, em
incontáveis variantes, a relação interior, cada vez mais cheia de
tensão, entre o filósofo, o instinto de conhecimento, o sentido da
“veracidade” (“Wahrhaftigkeit”) e, por outro lado, o impulso para
arranjar fantasmas e que em Richard Wagner in Bayreuth é louvado
como a principal marca do gênio artistico.
4
5
6
7
Veja-se, por exemplo, o fragmento 32 [10] da primavera do ano de 1874; KSA 7.756,
Nachlass/FP 32 [10]. “Wagner é uma natureza legisladora: vê muito as relações com
abrangência e não se atrapalha com as pequenas coisas. Ordena tudo na maior grandeza
e tende a ajuizar sobre a parte isolada.- Música, Drama, Poesia, Estado, Arte etc.”
Veja-se sobretudo o fragmento KSA 7.764, Nachlass/FP 32 [32]: “A ‘falsa omnipotência’ desenvolve algo de ‘tirânico’ em Wagner. O sentimento de não ter herdeiros.
Por isso ele procura, dar a maior abrangência à sua ideia de reforma e, ao mesmo
tempo, por adoção, continuar a plantar. Luta pela legitimidade. O tirano não deixa
valer nenhuma outra individualidade a não ser a sua e a dos da sua confiança. O
perigo para Wagner é grande, se não deixa que Bramms e outros tenham valor, ou
os judeus”.
Vide “A justa de Homero”, onde é explicitamente excluída a existência de um único
gênio (KSA 1.789).
Vide, por exemplo, o fragmento KSA 7.540, Nachlass/FP 23[7]); nos Fragmentos KSA
7.517, Nachlass/FP 19[321] e [322] Schopenhauer é “simplificador”.
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
Em Schopenhauer como educador o “sentido heróico da veracidade” é ainda, com o lema de Goethe “a causa finalis da querela
do mundo e do homem é a arte poética dramática” (SE/Co. Ext. III
5, KSA 1.382), subordinado à solução estética. A síntese da cultura trágica quebra-se todavia e precisamente sob o peso de uma
crescentemente diferenciada imagem dos modernos que Nietzsche
em breve não mais parece abarcar através de modelos exclusivos,
como o modelo helênico, enaltecido precisamente devido ao seu
caráter de mobilidade. Nietzsche inclina-se agora para procurar
personalidades conciliadoras, como os “filólogos-poetas” Goethe
e Leopardi, e para fundar de novo uma síntese que não mais pode
garantir a subordinação ao gênio artístico.
As exposições que se seguem não têm a pretensão de dar um
panorama sobre o valor que a filosofia de Schopenhauer ocupava no
pensamento de Nietzsche nos seus tempos de Basileia. Pretendem
antes assinalar alguns pontos a que chega a crise da combinação
entre as experiências de Wagner e de Schopenhauer no decurso das
quais ameaça ruir a metafísica de artista, ao perder-se a sua interconexão. Só após um período de rodeios conseguiu Nietzsche em
Humano, demasiado humano ultrapassar essa crise. Nesse período,
parece ter recebido novo alimento a crítica, à qual ele, em 1868,
tinha submetido a filosofia de Schopenhauer e que provavelmente
foi influenciada pelo estudo de Rudolph Haym acerca dos filósofos
de Danzig (1864).
A influência da avaliação feita por Haym da primeira fase do
pensamento de Schopenhauer é ainda visível numa série de fragmentos póstumos e em Schopenhauer como educador. Sobretudo
quando da apresentação do “homem schopenhaueriano” na terceira
Extemporânea, ocupa-se Nietzsche com aqueles escritos de Schopenhauer que precedem a elaboração da teoria da vontade e que lhe
foram acessíveis com a publicação do espólio feita por Frauenstädt.
Essa ocupação ganha agora um significado polêmico, não apenas
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Barbera, S.
quanto à leitura que Wagner faz de Schopenhauer, mas com respeito
ao conjunto da metafísica de artista. Tem de ser, todavia, lida como
o ponto culminante da crítica de Nietzsche à metafísica da vontade
e que caracteriza, de formas específicas, os escritos deste período.
No aforismo 99 de A gaia ciência Nietzsche faz a diferença entre,
por um lado, um Schopenhauer seduzido por tendências místicas
e “pelo puro impulso para ser o decifrador do mundo” e, por outro
lado, um outro Schopenhauer, o pensador factual, que, a partir da
natureza instrumental do entendimento e do carácter intelectual da
intuição, enriqueceu a ciência com “imortais teorias”, como seja a
teoria da vontade não livre. O aforismo parece prima facie incidir
num passo da História crítica da filosofia, de Eugen Dühring, no
qual é traçada uma linha de demarcação precisa entre o aspecto
“místico” e o aspecto “positivo” e racional da filosofia de Schopenhauer. Mas, de fato, Nietzsche segue aqui um modelo totalmente
diferente. Isso mostra-o a forma e o modo como ele vê a teoria da
visão (“Anschaung”) intelectual, que tanto pode ser tomada como
a matriz da intuição (“Intuition”) estética do gênio e de um conhecimento não discursivo, quanto como princípio de desconstrução
da experiência. Segundo esse princípio, a representação aparece
como resultado de um processo condicionado pelo entendimento,
correspondendo à crítica de Schopenhauer à ilegítima igualdade
kantiana entre sensação e percepção.
Nietzsche não aponta para uma divisão no seio do sistema de
Schopenhauer, mas para a existência de contraditórias possibilidades de desdobramento de todas as suas teorias fundamentais. Nesse
sentido, também a leitura que Wagner fez de Schopenhauer mantém
a sua justificação: como o aforismo 370 de A gaia ciência confirma,
de modo nenhum ela significa uma falsificação desse pensamento.
Ostenta muito mais os seus começos românticos.
Numa carta a Heinrich Köselitz de 20 de Agosto de 1882, avalia
Nietzsche essas considerações como um adeus definitivo a Scho-
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
penhauer e a Wagner e, ao mesmo tempo, como uma retrospectiva
analisadora do seu próprio percurso intelectual. Estes passos de A
gaia ciência tentam de fato seguir o rastro das frequentemente silenciadas ou esquecidas tensões que atravessam a concordância, de
vários anos, entre as duas leituras de Schopenhauer: a de Nietzsche
e a de Wagner.
Como é sabido, sentem-se, na metafísica de artista, reminiscências da wagneriana leitura de Schopenhauer. É o que se passa com
o conceito de sublimidade musical, na combinação da música com
as artes plásticas no drama, através da analogia do sonho, e onde é
usada a assumida relação de Schopenhauer entre o sonho “verdadeiro” e o sonho “matinal” e que constitui também uma importante
metáfora no Beethoven de Wagner. É também o caso na mistura do
gênio artístico com o “gênio da espécie” (“Genius der Gattung”) que
engana os indivíduos com falsas representações, para os submeter
a um elevado fim que lhes é estranho etc.
Também aquilo que Nietzsche, posteriormente, assinala como
o “indecente e hegeliano” (“anstössig Hegelisch(en)”) cheiro de O
nascimento da tragédia8, nada mais é do que o resultado da concordância de Nietzsche com essa estranha mistura de motivos de
Feuerbach, do jovem Hegel e de Schopenhauer e dos quais está
impregnada a ideologia de Wagner.
Acerca da interdependência entre a experiência de Wagner e a
de Schopenhauer que, em toda a fase de O nascimento da tragédia,
se articula numa extremamente densa combinação de correspondências e incompatibilidades, será aqui o caso de citar apenas um
exemplo: Num passo de Richard Wagner em Bayreuth (WB/Co. Ext.
IV 9, KSA 1.494) Nietzsche aplica a Wagner a definição de música
de Schopenhauer como “retracto do mundo” (“Abbild der Welt”) e
8
EH/EH, O nascimento da tragédia 1, KSA 6.310.
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Barbera, S.
“rerum discordia discors” (discórdia dissonante das coisas), isto é,
como a capacidade para dissolver, no campo da execução musical,
da harmonia e da representação, o caráter interiormente discordante
e dissonante da vontade. Retoma aqui a comparação, já expressa
em O nascimento da tragédia entre o adolescente de Heráclito e o
motivo schopenhaueriano da agradável sensação de dissonância na
música, enquanto símbolo da “execução `musical`” (“Spieles”) da
vontade consigo mesma, e compara toda a obra de Wagner com o
cosmos de Heráclito, enquanto harmonia e unidade resultantes da
justiça e da luta. A passagem alude à notória predileção de Wagner,
quer pela teoria de Schopenhauer da autocisão da vontade, quer
pela estrutura das manifestações dessa vontade, dirigidas a um
objectivo interior.
Como se lê no segundo livro de O mundo como vontade e representação, o conflito principal que atravessa todos os fenômenos está
ordenado segundo uma progressão pela qual a forma mais elevada
se impõe ao incorporar a mais inferior. Nietzsche menciona também
nos fragmentos póstumos (dos finais do ano 1870 a Abril de 1871)
o mote de Schopenhauer “serpens, nisi serpentem comederit, non
fit draco”9 (serpente que não tenha devorado serpente não se transforma em dragão).
Essa progressão por meio do conflito é interpretada por Wagner
como a preparação para a manifestação do gênio. Ela é, simultaneamente, resultado, subida e redenção do conflito: redenção na
medida em que o gênio, enquanto “gênio da espécie”, engana a
comunidade dos que o suportam por meio de credíveis ilusões10. Não
9
10
KSA 7.167, Nachlass/FP 7 [119] e KSA 7.201, Nachlass/FP 7[160].
Estes dois interdependentes motivos, por um lado, a síntese do conceito de gênio com
o de gênio da espécie e, por outro lado, o gênio enquanto forma elevada da vontade,
são sobretudo expostos na carta ao rei da Baviera do ano de 1864. A carta foi publi-
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
é assim de admirar que, sob os inúmeros elementos de familiaridade
que Nietzsche identifica na obra A filosofia na idade trágica dos
gregos entre Schopenhauer e Heráclito, também se encontre uma
semelhança do pólemos de Heráclito com a autocisão da vontade
de Schopenhauer:
essa luta que é própria de todo o devir, essa eterna alteração do
vencedor, é repetidamente descrita por Schopenhauer (O mundo
como vontade e representação I, p.175) “(...) Este conflito é sequencial em toda a natureza, porque também ela só existe mediante este
conflito”. As páginas que se seguem descrevem as mais notáveis das
ilustrações acerca deste conflito, só que o tom fundamental dessa
descrição já não é o de Heráclito, na medida em que, para Schopenhauer, a luta é uma prova da autocisão da vontade de viver, de
um consumir-se a si mesmo deste instinto obscuro e sombrio, que,
enquanto fenômeno sempre horrível, de nenhum modo é felicitável
(PHG 5, KSA 1.826).
cada no ano 1873 com o título Über Staat und Religion (Volume VIII de Gesammelten
Schriften und Dichtungen, Leipzig 1887, Reimpressão: Darmstadt 1976). O aspecto
central da dissertação de Wagner é a relação entre a forma do gênio e as “estúpidas
representações” políticas, religiosas e artísticas. A sua função redentora consiste em
criar ilusões que transpõem a “seriedade”(“Ernst”) do mundo de Schopenhauer para
uma “execução” (“Spiel”) de imagens consoladoras e úteis para a vida.
Nietzsche atribui um grande significado a esse estudo, que leu em 1869 na sua forma
manuscrita. Por ocasião da sua publicação, escreve ele, em 2 de Março de 1873, a Carl
von Gersdorff: “ele é uma das mais profundas de todas as suas produções literárias e
está ‘edificado’ (“erbaulich”) no mais nobre sentido”. Acerca dos diferentes motivos
da leitura que Wagner faz de Schopenhauer e nos quais se entra de seguida, veja-se,
ao lado dos clássicos estudos de H. Dinger (Richard Wagners geistige Entwicklung.
Leipzig, 1892) e de H. Lichtenberg (Richard Wagner poète et penseur. Paris: 1898)
e acima de tudo a detalhada análise de Eduard Sans: Richard Wagner et la pensée
schopenauerienne. Paris, 1964.
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Barbera, S.
Nesse texto e nas preleções “Os filósofos pré-platônicos”, elogiou Nietzsche, além disso, a conexão entre pólemos e díke como “o
primeiro pensamento especificamente helênico da filosofia”:
Esta é uma das mais extraordinárias representações: o conflito como
produção contínua de uma díke una, legal e racional, uma representação que é criada a partir do mais profundo fundamento da essência
grega. É a boa Éris de Hesíodo tornada princípio do mundo. A luta
competitiva é o que diferencia os gregos, mas acima de tudo, todavia,
a imanente legalidade da decisão acerca dessa luta competitiva (“Os
filósofos pré-platônicos” 10, GA 19.178).
Já em A filosofia na idade trágica dos gregos a “immanente
Dike” de Heráclito recebe a inalterável designação de “eterna
Justiça” (PHG/FT 5, KSA 1.825). No parágrafo 63 de O mundo
como vontade e representação, a “eterna justiça” revela que todos
os fenômenos, em todas as contrariedades que possam aparecer,
encontram na vontade a sua “unidade” e a sua “identidade”. Esta
vontade, todavia, mostra-se como uma estrutura marcada pela
oposição.
O mundo do que aparece (Erscheinungswelt), mundo desequilibrado em todos os seus pontos pelo conflito universal, nada mais
revela finalmente, na visível variedade das diferenças, do que a
necessária estrutura de alicerce dessa vontade que se dilacera a
si mesma. Esse pensamento desempenha um papel essencial na
interpretação de Nietzsche que com Heráclito concorda no modo
de observar o mundo, à maneira de um “jogo” (“Spieles”) estético
e amoral. De fato, a eterna justiça de Schopenhauer deixa transparecer o reconhecimento de uma necessidade por via da qual se
prova, como aparência, não apenas a diferença entre merecimento
e culpa, prêmio e castigo, mas também a supérflua diferença moral
entre bem e mal.
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
2. Também ao tempo de O nascimento da tragédia, a oposição
de Nietzsche para com Schopenhauer se mantém decididamente
marcada pela crítica que ele tinha apresentado, na primavera do ano
1868 em Leipzig, contra um conceito de vontade, fundamento das
manifestações fenoménicas (Erscheinungen) e totalmente diferente
das representações11.
No centro dos apontamentos de Leipzig está o problema da dizibilidade do indizível, da possibilidade de denominar com a palavra
“vontade” a coisa em si. Uma possibilidade que, como é sabido, já
no texto de Schopenhauer, é acompanhada por uma série de observações críticas. A oposição de Nietzsche a Schopenhauer está decididamente marcada pela crítica que faz ao conceito de vontade como
coisa em si. A persistência nessa antiga crítica é confirmada várias
vezes pelo espólio do período de O nascimento da tragédia. A tentativa de elaborar uma imagem de conjunto, metafísica e coerente,
que Nietzsche empreende no grupo de fragmentos 7 (finais de 1870 a
Abril de 1871), parte do conceito de “unidade original” (“Ureinen”)
que ele toma como o fundamento que afecta o ser e que “aparece”
(“eine Erscheinung hat”12) na vontade. A vontade13 pertencente “ao
aparecer” (“zum Schein”) é compreendida como “a forma mais uni-
11
12
13
Vide Zu Schopenhauer. In: Beck’s Edition of Works (BAW), v.3, p. 352-370 (A partir
de 1930, Hans Joachim Mette começa a levar a bom termo uma edição histórica
e crítica das obras de Nietzsche. Com cinco volumes publicados, BAW contém
textos redigidos pelo jovem Nietzsche no período de 1854 a 1869. Doravante,
mantemos a sigla utilizada pelo autor para se referir a essa edição – Nota da
Comissão Editorial).
KSA 7.207, Nachlass/FP 7 [174].
KSA 7.203, Nachlass/FP 7 [167]. No fragmento KSA 7.207, Nachlass/FP 7 [174), é
possível, por isso, a autosupressão da vontade por meio do gênio. “porque a vontade
não é mais do que parecer e a unidade original só através dela aparece”. O tema é já
tratado, pormenorizadamente, nos fragmentos póstumos (KSA 7.112, Nachlass/FP 5
[80] . Vide KSA 7.112 e segs.).
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23
Barbera, S.
versal da aparição” (“allgemeinste Erscheinungsform”14) ou também
“a forma mais original da aparição” (“ursprünglichste Erscheinungsform”), como uma polaridade impregnada de representações dos
sentimentos de prazer e dor.
Encontra-se de novo essa definição da vontade no importante
fragmento póstumo 12[1] da primavera de 1871: uma minuciosa
discussão acerca das expressões linguísticas e simbólicas que
Nietzsche desenvolve, manifestamente, com as especulações wagnerianas acerca da linguagem original do homem recuperada pelo
drama musical. Partindo da tese de que o “núcleo” do mundo só
nos será acessível como representação “na sua expressão imagética” (“in seinen bildlichen Äußerung”), Nietzsche assinala a vontade
como uma das duas “principais espécies” de fenômenos. A vontade
é constituída por sensações de prazer e dor que por seu lado estão
intima e indivisivelmente fundidas com as representações e apresenta o “baixo contínuo” (Grundbaß) de todas as representações,
que se expressa simbolicamente “no tom do orador” (“im Tone des
Sprechende”), enquanto as restantes representações se exteriorizam
“pela simbólica metonímia do orador” (“durch die Gebärdenssymbolik des Sprechende”).
Deste modo tenta Nietzsche, através da combinação entre a
linguagem sonora e a linguagem gestual, isto é, entre as formas de
expressão musical e as formas de expressão figurada, formular de
novo, no campo da estética, a conexão da metafísica da vontade
com o mundo fenomenal (“Erscheinungswelt”). A impossibilidade,
todavia, de equiparar a vontade à coisa em si, a uma esfera subtraída à definição do ato de representar, é considerada por ele como o
desafio mais geral da sua investigação:
14
KSA 7.202, 7 [163].
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
Também o conjunto da vida instintiva, o jogo dos sentimentos,
sensações, afetações do acto da vontade, é para nós, como tenho de
o admitir aqui contra Schopenhauer, conhecido apenas como representação e não segundo a sua essência, mas pela prova que cada um
tem por si. E podemos muito bem dizer que a própria “vontade” de
Schopenhauer nada mais é do que a forma mais geral de algo que
para nós é, de resto, totalmente indecifrável (KSA 7.360, Nachlass/
FP 12 [1]).
Nietzsche registra nos seus apontamentos do tempo de Leipzig
uma conexão entre a pretensão de Schopenhauer de reconhecer e
nomear a coisa em si, e a função da vontade como fundamento de
uma sistemática observação do mundo. Posteriormente, a construção
do sistema torna-se para Nietzsche dependente da supremacia da
capacidade da imaginação e da atitude poética de Schopenhauer.
Num dado sentido, para Nietzsche, o problema da filosofia de
Schopenhauer, enquanto sistema e enquanto definitiva decifração
do enigma do mundo, não é diferente do problema da filosofia de
Demócrito, na compreensão do qual Nietzsche, que sobre o assunto
escreve na mesma altura, destaca o concurso de um impulso para
um sistema e de uma atitude poética.15
O tema da filosofia de Schopenhauer como sistema, mostrase também na atenção que Nietzsche dá à metáfora da “chave”
(“Schlüssel”) para a decifração dos hieróglifos do mundo.16 Com
essa metáfora fez Schopenhauer da vontade o principal conceito de
uma “metafísica imanente” (“immanente Metaphysik”). A vontade
não é de modo algum uma substância que transcende as aparências,
mas o codex universalmente válido que possibilita a decifração das
15
16
Acerca da “extraordinária poesia do atomismo”, vide BAW, v.3, p. 332, 336, 346, 349.
BAW, v.3, p. 355.
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25
Barbera, S.
relações entre os domínios específicos dessas aparências. Schopenhauer usa frequentemente as metáforas da chave e do texto hieróglifico e sobretudo no capítulo 17 dos Complementos a O mundo como
vontade e representação onde a metafísica imanente é identificada
com a coerência sistemática dos fenômenos e “aí onde ela acerca
da coisa em si nunca fala de outro modo, a não ser de uma relação
com a aparência” (“da sie vom Dinge an sich nie anders als in einer
Beziehung zur Erscheinung redet”):
Se se encontra um texto cujo alfabeto é desconhecido procura-se
então a interpretação, até que se chegue à aceitação do significado
das letras sob o qual são construídas palavras compreensíveis e
combinados os períodos. Não resta então qualquer dúvida acerca da
correta decifração [...]. De modo semelhante, a decifração do mundo
tem que ser totalmente confirmada por si mesma. Ela tem de espelhar
uma mesma luz para todas as aparências do mundo e trazer também as
maiores heterogeneidades de concordância, para que o aspecto mais
contraditório da discordância seja resolvido17.
17
O texto das notas de Leipzig não permite decidir com segurança se e em que medida
Nietzsche já conhecia o material do espólio publicado por Frauenstädt. Contudo
Frauenstädt tinha publicado a carta que Schopenhauer lhe tinha escrito em 21 de
Agosto de 1852, com vista a aclarar este aspecto controverso do seu pensamento:
“ A minha filosofia não trata de uma construção nas nuvens mas deste mundo, isto
é, ela é imanente, não é transcendente. Lê o mundo à nossa frente como um quadro
de hieróglifos (cuja chave eu encontrei na vontade) e mostra constantemente a sua
conexão. Ensina o que será a manifestação e a coisa em si. Esta, contudo, é coisa em
si, puramente relativa, isto é, na sua relação com a manifestação. E esta é manifestação apenas na sua relação com a coisa em si. Fora disso é um fenómeno do cérebro.
Aquilo contudo que a coisa em si possa ser fora dessa relação, isso nunca o disse,
porque não o sei. Igualmente contudo é vontade de viver. (SCHOPENHAUER, A.
Von ihm. Ueber ihn. Ein Wort der Vertheidigung von Ernst Otto Lindner, Briefe und
Nachlassstücke von Julius Frauenstädt. Berlin, 1863, p.555).
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
Posteriormente cita Nietzsche, nos apontamentos de Leipzig, a
passagem de O mundo como vontade e representação na qual a coisa
em si é apresentada como um castelo, inacessível do exterior pelos
meios que, com o intelecto, temos à nossa disposição.18 Na principal
obra de Schopenhauer, uma tal imagem introduz a teoria do “reconhecimento” (“doppelten Erkenntnis”) do corpo que percepciona
através de dois atos de conhecimento simultâneos e sem ligação
causal, um “interior” (“inneren”) e um “exterior” (“äußeren”); uma
teoria que Schopenhauer assinala como o “marco” (“Markstein”)
da sua filosofia e que permite precisamente essa entrada no castelo
da coisa em si.
Poderá estranhar-se que Nietzsche, nem nos apontamentos de
Leipzig, nem nos seus posteriores escritos, dedique atenção ao complexo mecanismo do conhecimento teorético que para Schopenhauer
forma o instrumento que permite ultrapassar os limites do intelecto. Mais tarde e principalmente em Humano, demasiado humano,
parece Nietzsche voltar a trazer a pretensão de Schopenhauer, de
ter descoberto o acesso à coisa em si, para a diferença entre um
conhecimento discursivo e um conhecimento genial, de um modo
tal que este segundo conhecimento é identificado como um “olhar
directo para a essência do mundo, através de um buraco no vestido
da aparência” (“unmittelbaren Blick in das Wesen der Welt, gleichsam
durch ein Loch im Mantel der Erscheinung”19
Mas a teoria de Schopenhauer do “conhecimento duplo” de
modo nenhum depende da condição de um conhecer imediato, no
sentido de uma elevada intuição de cunho romântico. Depende
muito mais das formas da sensibilidade (espaço, tempo e causalidade) para produzir uma estrutura da simultaneidade de ambas as
18
19
BAW, v.2, p. 358.
MAI/HHI 164, KSA 2.154.
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27
Barbera, S.
ações do conhecimento e de um modo tal que a “espontaneidade”
(“Unmittelbarkeit”) do conhecimento interior meramente aponta
para um conhecimento que se baseia no sentido interior, na forma
do tempo e não do espaço.
Aqui parece Nietzsche aderir à crítica de Rudolf Haym, segundo
a qual Schopenhauer tinha, com a sua teoria, feito recuar o conhecimento da vontade para ir de encontro a uma intuição directa, ultrapassando as formas da sensibilidade e do intelecto. Não é portanto
mero acaso se ele (e aqui está a segunda dificuldade das suas notas)
postula a questão da “origem do intelecto” (“Ursprung des Intelekts”)
e a da individuação como a principal contradição da filosofia de Schopenhauer.20 Os apontamentos de Leipzig mencionam a dupla concepção do intelecto: por um lado, como sujeito transcendental, que
provoca as representações e com isso o mundo enquanto aparência e,
por outro lado, como cérebro, como aparelho fisiológico. Como tal, o
intelecto nasce dos avanços da história da vontade21 que condicionam
a individuação produzida pelas formas do conhecimento.
Nessa “antinomia da nossa capacidade de conhecer”, como
Schopenhauer lhe chamou no capítulo 20 dos Complementos a O
mundo como vontade e representação, manifesta-se de novo o duplo
olhar sobre o mundo definido pela simultaneidade e que já tinha
sido descoberto pela característica estrutura do “reconhecimento”
(“doppelten Erkenntnis”) . E aqui tinha Schopenhauer falado da
necessidade de complementar a concepção transcendental com
uma concepção ideológica (no sentido dos ideólogos, sobretudo de
20
21
BAW, v.3, p. 358 e segs.
BAW, v.3, p. 359: “Schopenhauer pensa pois uma série de degraus das manifestações
da vontade com contínuas necessidades de existência, aumentando por si mesmas.
Para satisfazer estas, serve-se a natureza de uma série graduada de meios auxiliares,
entre eles , desde sentimentos meramente nubelosos até à sua mais aberta claridade,
também o intelecto tem o seu lugar”.
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
Cabanis) e tinha censurado Kant por ter visto o intelecto como algo
de imediato em vez de o ter submetido a uma análise genealógica,
no sentido da psicologia. Esse aspecto da filosofia de Schopenhauer
é conhecido na literatura secundária, desde Eduard Zeller a Ernest
Cassirer, como o seu circulus vitiosus. No ano de 1903, Kuno Fischer
resumiu assim a antinomia: “Intelecto e cérebro são idênticos em
Schopenhauer: relacionam-se como função e órgão. Tempo e espaço
estão apenas no cérebro. E este mesmo cérebro? Ele está, com todos
os seus acessórios e todas as condições e pré-condições, no tempo
e no espaço! Aqui anda a teoria de Schopenhauer num palpável
circulus vitiosus [...]”22
Antes de Zeller23 e Fischer, contudo, já Rudolf Seydel tinha
levantado o problema, num artigo do ano de 1857, que Nietzsche
muito provavelmente não conhecia. Seydel viu nesta “grande contradição” da teoria de Schopenhauer o malogro da tentativa de conciliar o idealismo de Fichte com a filosofia natural de Schelling.24
Na linha de uma certa continuidade às observações de Seydel, que
despertaram a irritação de Schopenhauer25, está o importante artigo
22
23
24
25
Vide Materialien zu Schopenhauers. “Die Welt als Wille und Vorstellung”, ditado por
Volker Spierling, Frankfurt/M., 1984, p. 189.
Ibidem, p. 184. A crítica foi formulada na obra de Zeller, Geschichte der deutschen
Philosophie seit Leibniz, München, 1873.
SEYDEL, R. Schopenhauers philosophisches System., Leipzig, 1857, p. 48.
Schopenhauer menciona várias vezes o “artigo incrivelmente estúpido” de Rudolph
Seydel, nas cartas a Carl Bähr, Johan August Becker, David Asher e outros, dos anos
1857 e 1858 (a esse tempo, apenas eram conhecidas as cartas a Asher que tinham
sido publicadas em 1865 na revista “Deutsches Museum”). Aponta esse artigo como
uma “pobre obra” (“elendes Machwerk”), pois: “Procurar contradições é o exercício
mais banal que todos os patetas fazem quando querem criticar um livro e um sistema:
folheiam simplesmente para a frente e para trás até que encontram frases que se
despegam do contexto, que não rimam umas com as outras”. (Carta a David Asher
de 15 de Julho de 1857. In: SCHOPENHAUER, A. Gesammelte Briefe. Editadas por
A. Hübscher. Bonn: 1978, p. 417).
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29
Barbera, S.
de Rudolf Haym acerca de Schopenhauer, publicado26 em 1864 nos
“anais prussianos”, como edição especial, e que Nietzsche conhecia
bem, como testemunham algumas cartas dos anos 1866-68.27 Haym
tinha explicado a teoria do “reconhecimento” como uma forma da
intuição romântica, como um salto mortal para além das formas da
sensibilidade e das categorias do intelecto. Viu mais tarde, na concepção do intelecto como cérebro e como instrumento da vontade,
a evidente confirmação do “pouco genuíno idealismo naturalista”28
de Schopenhauer. A pretensão de comparar a filosofia de Kant com
a fisiologia de Cabanis termina num labirinto de contradições e é
mesmo na indicação destas contradições que se torna clara a proximidade entre Nietzsche e Haym.
Nietzsche fala de uma concepção na qual “um mundo de aparência ‘é’ colocado em frente do mundo da aparência [..] e, também, já
26
27
28
As citações e os números de página referem-se aqui a Rudolf Haym, Arthur Schopenhauer. In: Gesammelte Aufsätze. Berlin, 1903, p. 239-355. “Fui incentivado pelo meu
amigo Dilthey a ocupar-me pormenorizadamente com Schopenhauer” conta Haym
nas suas memórias (Aus meinem Leben, Berlin 1902, P. 281). A decisão de se ocupar
com um filósofo que, “com a sua fantástica metafísica”, se desviou do seu caminho, é
explicada por Haym pela necessidade de se opor às consequências políticas e morais
do crescente sucesso desse pensamento: “De tudo se seguia que eu tinha de me opor
a ele de modo totalmente diferente do que a Hegel, que eu tinha de o combater como o
inimigo mortal do desenvolvimento saudável do nosso espírito nacional. Para encobrir
o seu núcleo perigoso em geral, antihistórico e antinacional, valeu também esclarecer
esse sistema do ponto de vista histórico e psicológico, valeu do mesmo modo esconder
as suas inúmeras contradições internas e assim para destruir por duas vias o Nimbus
que espalhava acerca a enérgica genialidade, o artístico olhar penetrante e um extraordinário talento da representação acerca da teoria” (Ibidem , p. 284-85) Acerca da
influência que o artigo de Haym exerceu na recepção seguinte de Schopenhauer, vide
KAMARA, Y. Der junge Schopenhauer. Freiburg/München, 1988, p.107 e segs.
Relacionando-se com estas passagens, já Mazzino Montinari reconheceu o artigo de
Haym como uma significativa fonte da crítica de Nietzsche a Schopenhauer. Vide
MONTINARI, M. Nietzsche. Roma, 1975, p. 50.
HAYM, R. Op. cit., p. 282.
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
em frente da aparição do intelecto, vemos o princípio da individuação,
o princípio da causalidade em toda a sua eficácia”29. Haym, por seu
lado, tinha falado, senão de um circulus vitiosus, pelo menos de um
“círculo” (“Cirkel”): a vontade só pode obter as representações através
da individuação da qual depende a própria necessidade de conhecimento e é esta necessidade que justifica o aprontar do intelecto.
O conhecimento deve portanto tornar-se necessário por meio da
individuação. Mas, por sua vez, a individuação torna-se primeiramente
possível através do espaço e do tempo, portanto através das formas
do conhecimento! Fomos lançados num círculo [...] Não é portanto a
vontade, mas exatamente o intelecto que produz, segundo essa interpretação, o próprio intelecto30.
O círculo é de fato, para Haym, a mais clara mostra da impossibilidade lógica em que tropeça Schopenhauer quando ergue a
pretensão de distinguir a vontade de um conhecimento definido e a
consciência. O carácter fundamental da filosofia de Schopenhauer
consiste, de resto, para Haym, numa “diferenciação” (“Unterschiedenheit”) de princípio entre a imanência e a transcendência da vontade
face ao que aparece (“Erscheinung”).31
29
30
31
BAW, v.3, p. 359. Vide também p. 360: “É de notar com que cuidado Schopenhauer
se afasta da pergunta sobre a origem do intelecto. Logo que chegamos à região desta
pergunta e em silêncio esperamos, agora é que vai acontecer! Esconde-se então, de
novo, atrás das nuvens, e apesar de ser bem visível que o intelecto, no sentido de
Schopenhauer, já pressupõe um mundo constrangido no pr<incipio> in<dividationis>
e nas leis da causalidade.”
HAYM, R. Op. cit, p. 281-82.
Ibidem, p. 265-66: “Essa diferenciação constantemente repetida entre a imanente e
a transcendente relação da aparência e da coisa em si dá ao sistema o seu brilhante
aspecto próprio”. Esta observação crítica é também de grande peso na concepção de
Nietzsche e está estreitamente ligada com o anteriormente mencionado tema do sistema
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31
Barbera, S.
As contradições que têm origem nessa indecisão só podem ser
ultrapassadas por um uso ilegítimo da linguagem que se manifesta,
preponderantemente, na variedade de significações, usadas sem
critério, do conceito de “vontade”: uma palavra que especificamente assinala um psicológico estado de coisas é num dado momento
usada para substituir o conceito “força” (“Kraft”) no domínio dos
fenômenos da natureza, depois novamente para assinalar o em si de
todos os fenômeno, a coisa em si.
Desse modo interpreta Haym o conjunto de toda a filosofia
de Schopenhauer, do ponto de vista de uma crítica da linguagem,
segundo uma tendência que, na literatura secundária, encontrará
a sua expressão plena no artigo “Schopenhauer (Wille)” do Philosophischen Wörterbuch de Fritz Mauthner. 32 Uma crítica que
deixa também sinais na observação de Nietzsche segundo a qual
Schopenhauer, com a palavra “vontade”, introduziu “uma palavra
muito delimitadora e de cunho difícil” (“ein schwergemünztes, viel
umschließendes Wort”)33
Uma outra observação dos apontamentos de Leipzig, nomeadamente a de que o conceito de vontade só pode ser produzido “com a
32
33
como decifração do caminho: “Todavia, a partir de todo o sistema de Schopenhauer
e especialmente a partir da primeira apresentação em I B. de O mundo como vontade e representação, convencemo-nos de que ele, sempre que de algum modo se lhe
adequa, é que se permite o uso humano e não transcendente da unidade na vontade.
No fundo, só então recorre a essa transcendência, onde as falhas do sistema se lhe
aí <apresentam> de modo muito abrangente” (BAW III, P. 357).
A tentativa de Mauthner de ver O mundo como vontade e representação “do ponto de
vista de uma História da Crítica da Linguagem” desagua numa crítica ao carácter
“substantivado” ou “mitológico” da linguagem de Schopenhauer, quando usa a palavra “vontade”. Schopenhauer, aqui, transmuta a sua filosofia numa “habilidade de
prestididigitador” e transforma-se “num supersticioso criado da linguagem”. Vide
MAUTNER, F. Philosophisches Wörterbuch. Zürich, 1980 (Reimpressão da edição
1910/1911) sub voce “Schopenhauer (Wille)”.
BAW, v.3, p. 353.
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
ajuda de uma intuição poética”34, concorda com a interpretação de
Haym, nomeadamente com a passagem na qual este vê, no uso da
palavra “vontade”, “a realização de uma simples metáfora”.35 Essa
34
35
BAW, v.3, p. 354.
HAYM, R. Op. cit, p.260. Haym usa aqui a “convergente expressão” (“treffenden
Ausdrück”) de Adolf Trendelenburg. Este último, no décimo capítulo da sua obra
Logischen Untersuchungen (2. ed. Leipzig, 1862, v. 2, p. 101 e segs.), remeteu para
um exagerado uso da analogia quer da identificação schopenhaueriana da vontade
com a força actuante no domínio da natureza, quer da identificação da vontade
psicológica com uma vontade mais geral (“allgemeineren Wille”), analogia essa que
ultrapassa as fronteiras legítimas do uso da linguagem. “O princípio de Schopenhauer
da vontade de viver é uma metáfora” (Ibidem, p.113) e do mesmo modo é “metáfora”
o conceito da “objetividade” da vontade. A mesma visão crítica se sente nas páginas
dedicadas a Schopenhauer de Grundrisses der Geschichte der Philosophie der Neuzeit
(Berlim,1866, p. 242 e segs.) de Friedrich Ueberweg, por exemplo, segundo a qual,
nele, decorrem juntos “o sentido figurado e o sentido próprio da palavra vontade”.
Aí confirma, de resto, o recurso a uma crítica do uso da linguagem, um tema central
da reflexão filosófica de Haym.
Desde o ano de 1847 que Haym vê na linguagem, que assinala como “força”(“Kraft”),
“energia”(“Energie”) e “modelo”(“Vorbild”) da relação dialética entre natureza e espírito, a forma germinante e oculta de um pensamento filosófico de modo que: “mais
ou menos [...] toda a filosofia é a expressão ou a exposição dessa dialética imanente
da linguagem”. (Feuerbach und die Philosophie. Ein Beitrag zur Kritik beider. Halle,
1847, p.36). Haym pode, por isso, censurar em Feurbach o fato de ter descurado do
caráter de realidade da alienação religiosa como expressão de processos que vivem
no seio da linguagem, pois, “hipostasiar os pensamentos aos seres reais é algo que
está profundamente enraizado na carácter da língua” (Ibidem, p. 15).
Haym apontou, posteriormente, no volume publicado em 1856 acerca de Wilhelm
Humboldt, o lugar central que as reflexões filosófico-linguísticas desempenham no
desenvolvimento do seu pensamento. As teorias de Humboldt são aqui tomadas como
o coroar, mas acima de tudo como o único resultado frutificante e científico da filosofia
pós-kantiana: “O sistema de identidade junto com o sistema do idealismo absoluto
caiu como outros sistemas. A filosofia da linguagem de Humboldt é, como a estética
de Schiller, um patrimônio para sempre, um progresso aumentando os recursos da
razão cognoscível e que não mais recua [...]” (Wilhelm von Humboldt. Lebensbild und
Charakteristik. Osnabruck, 1965. Reimpressão da edição de 1856, p. 457-58) .
Acerca do aparecimento e do significado desses aspectos no pensamento de Haym
vide HARICH, W. Rudolf Haym und sein Herderbuch. Berlim, 1955, p. 74 e segs.
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33
Barbera, S.
observação não tem para Haym nenhum ou quase nenhum valor.
Pelo uso indevido do processo da analogia e mesmo da metáfora,
prefere Schopenhauer os elementos imaginativos e poéticos da linguagem, à custa da poderosa forma da apresentação lógica: só desse
modo pode deixar transparecer os seus pensamentos como parte
integrante de um sistema coerente, livre de contradições e até mesmo orgânico e pode, por fim, construir o seu “romance filosófico”36.
Esse mau uso da linguagem torna-se evidente, na opinião de Haym,
quando Schopenhauer transporta o conceito de “vontade” para o
domínio dos fenômenos da natureza, a fim de substituir aí o conceito de “força”. Por essa via, todo o sistema recebe uma lufada de
antropomorfismo.
A troca do conceito geral de força e do conceito especial de vontade,
esse jogo enigmático com a palavra vontade, em ligação com o enigmático conceito da coisa em si, isto, só por si, torna-lhe possível, por um
lado, naturalizar a vontade humana e com ela toda a ética e, por outro
lado, antropomorfizar de modo fantástico e poético a natureza37.
O carácter de antropomorfismo da metafísica de Schopenhauer,
sobretudo no que se refere à clarificação dos fenômenos naturais e
que Nietzsche já assinala no ano de 1870/7138, é por ele, de novo,
fortemente acentuado nos fragmentos póstumos do tempo de Humano, demasiado humano e interpretado como uma tendência poética
criadora de mitos:
38
36
37
HAYM, R. Op. cit., p.265.
Ibidem, p.260.
Vide o fragmento póstumo KSA 7.115, Nachlass/FP 5 [83]: “Vontade, se é para ter
que estar ligada uma representação, então também não é isso qualquer expressão
para o cerne da natureza”.
34 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Um sentido e incontáveis hieróglifos
Schopenhauer concebe o mundo como se fosse um homem incrível,
cuja ação vemos e cujo carácter é totalmente inalterável: [...] e este é
o valor de tais metafísicos como Schopenhauer: procuram um quadro
do mundo; só é pena que o mundo se transforme num homem; poderia
dizer-se que o mundo é Schopenhauer em estatura. Isto não é, justamente, verdade (KSA 8.413, Nachlass/FP 23 [27]).
Ao ler o artigo de Haym, em conjunto com os apontamentos de
Nietzsche do tempo de Leipzig, tem-se a impressão de que Nietzsche
nada tem a opor à critica de “natureza maligna” de Haym (como o
assinala numa carta a Mushacke de 27 de abril de 1866) (KSAB
2.128): nada contra o ataque à metafísica da vontade, nada contra a
equiparação da filosofia de Schopenhauer à expressão de uma arte
poética marcada de romantismo. Graças contudo à mediação de
Friedrich Albert Lange, está Nietzsche disposto a atribuir às ideias
fundamentais de tal crítica um valor positivo e concordante, em vez
de um valor negativo e polêmico. Na célebre carta a Gersdorff, dos
finais de Agosto de 1866, Nietzsche menciona que a longa duração
do desconhecimento da coisa em si permite ao filósofo uma liberdade que é semelhante à liberdade do artista: por isso, “A arte [...]
livre, também no domínio dos conceitos. [...] Tu vês, mesmo nestes
pontos de vista fortemente críticos fica-nos o nosso Schopenhauer,
sim, e será ainda mais. Se a filosofia é arte, então também Haym há
de querer esconder-se de Schopenhauer”(KSAB 2.160).
O artigo de Haym pôde, provavelmente, despertar também a
atenção de Nietzsche, em relação a outros aspectos. Pense-se apenas nas passagens acerca da teologia, oculta na “necessidade cega”
da vontade, mas sobretudo na repetida tentativa de Haym em ver,
na sua “psicológica e histórica” análise desse sistema filosófico,
enquanto fiel expressão da personalidade de Schopenhauer, da
sua tendência melancólica e da sua radical recusa da “prosa do
mundo”. Também para Nietzsche, como confirmam uma passagem
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
35
Barbera, S.
das notas39 e uma carta a Deussen de Outubro de 1868, a visão do
mundo (Weltanschauung) é a expressão direta de uma personalidade
e é, como tal, incontestável, apesar das contradições e das falhas:
“(...) ou se compreende ou não se compreende, um terceiro ponto
de vista é para mim indefensável” (KSAB 2.328)40.
3. O artigo de Haym apresenta para Nietzsche uma fonte especialmente rica que conserva a sua influência também quanto à leitura de
Schopenhauer ao tempo de Basileia, chegando ao Schopenhauer como
educador e até posteriormente. Isso permite-nos estabelecer uma
ponte entre os apontamentos de Leipzig e a posterior leitura de Schopenhauer e apreciar os elementos de continuidade e de ruptura.
O tema da natureza artística da filosofia de Schopenhauer
emerge de novo no grupo de fragmentos 19, entre o verão de 1872
e a primavera de 1873, onde Nietzsche vê na realização poética a
principal característica do pensamento de Heráclito e de Schopenhauer e onde, na perspectiva da descrição da natureza feita pelo
filósofo, registra a equivalência entre “poetizar” e “reconhecer”.
39
40
Vide BAW, v.3, p.353-354: “Se, portanto, nos ocupamos dessa frase há pouco
apresentada, com o fim de decompor, testando, o conceito central do sistema de
Schopenhauer, nenhum propósito nos é mais distante do que o de, com tal crítica,
afligir o próprio Schopenhauer, para triunfalmente lhe pôr à frente as partes soltas
da sua argumentação e de, por fim, de sobrancelhas bem levantadas, lhe colocarmos
a pergunta sobre como terá chegado a tais pretensões, no mundo inteiro, um homem
com um sistema tão esfarrapado”.
Nesta passagem opõe-se Nietzsche às tentativas de “certo temerário Haym, caminheiro de veredas, e não familiarizado com a filosofia” de reconduzir a crítica da
filosofia de Schopenhauer ao “destaque de qualquer uma das passagens defeituosas,
das fracassadas tentativas de prova, de táticas desajeitadas”. Desse modo a carta a
Deussen confirma a atitude dupla de Nietzsche face à filosofia de Schopenhauer: por
um lado ele submete-a a uma crítica deselegante mas, por outro, valoriza-a quanto
ao seu aspecto artístico, educativo e de visão do mundo.
36 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Um sentido e incontáveis hieróglifos
Aqui empreende Nietzsche a ousada tentativa de submeter o instinto de conhecimento à criação artística. A crítica à divisão entre
representação e vontade que ele tinha ensaiado nas notas sobre
Schopenhauer da primavera de 1868, é aqui abertamente reanimada
e posta a serviço de uma teoria que de novo realça a primazia da
arte. Na base do processo de conhecimento, está uma fisiologia da
visão, isto é, a construção de figuras e formas que são semelhantes
às ilusões que o gênio artístico oferece a partir de sentimentos partilhados com a comunidade.
O resultado da memória e a associação de sensações ficam
dependentes de uma estrutura analógico-metafórica. Graças à natureza deste “pensamento original” (“Urdenkens”), que é análogo à
secreta capacidade de pensar com imagens41, pode Nietzsche eliminar radicalmente a possibilidade de o instinto de conhecimento
se poder virar contra a solução estética. De modo nenhum esquece
Nietzsche a primazia dos olhos e da vista e que Schopenhauer considera como o fundamento da visão intelectual e da teoria das ideias.
Espaço, tempo e causalidade são, no entanto, para ele, nada mais
do que metáforas que se consolidaram na percepção e na linguagem como imagens e figuras retóricas. Não se deve todavia deixar
de dar atenção ao fato de Nietzsche, ao reconduzir o conhecimento
para as metáforas, pretendendo com isso defender uma metafísica
de artista, ameaçar destruí-la como modelo. Essa recondução não
pode ser subtraída ao horizonte estratégico da metafísica de artista
como é, por exemplo, o caso na aguda e fascinante interpretação de
41
Essa capacidade é, em Richard Wagner em Bayreuth, qualificada como o segredo da
natureza de Wagner, propensa à criação de mitos: “O poético, em Wagner, está em
que ele, em situações de visibilidade e de sentimentos, não pensa com conceitos, isto
é, pensa mitologicamente, como sempre o povo pensou (...) O Anel dos Nibelungos
é um extraordinário sistema de pensamento sem que este tenha a forma conceptual”
(WB/Co Ext. IV 9; KSA 1. 485).
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37
Barbera, S.
Paul de Man42 que tenta generalizar como resultado definitivo do
pensamento filosófico de Nietzsche o significado filosófico de Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral.
O fragmento 19 [45] começa com a pergunta “Como se relaciona
o gênio com a arte?”. Na resposta acentua Nietzsche a capacidade
da filosofia para domar o alexandrinismo das ciências e para reconduzir estas à unidade. O mesmo se passa com a arte. Ao niilismo
do impulso de conhecimento opõem-se a arte e a filosofia, enquanto
afirmação da vontade de viver que produz, por meio do gênio, uma
forma mais elevada da existência:
Temos de perguntar: o que é, na sua filosofia, a arte? A obra de
arte? O que é que fica se o seu sistema, enquanto ciência, é reduzido
a nada? O que fica tem que ser, precisamente, o que doma o impulso
de saber, portanto o que aí há de artístico. Porque é preciso uma tal
domesticação? Assim, vistas as coisas com os olhos da ciência, é
uma ilusão, uma não verdade que engana o impulso de conhecer e só
precariamente o satisfaz. O valor da filosofia nessa domesticação não
está na esfera do conhecimento, mas na esfera da vida: a vontade de
ser (Dasein) usa a filosofia com o propósito de uma mais elevada forma
de ser (Daseinsform) (KSA 7.433, Nachlass/FP 19 [45]).
Nesta interdependência vê Nietzsche o “artístico” (“Künstlerische”), tanto em Heráclito como em Schopenhauer. No que diz
respeito à descrição da natureza, estipula a equivalência entre
“poetizar” (“dichten”) e “conhecer” (“erkennen”): “ Ele [isto é o
filósofo] conhece na medida em que poetiza e poetiza na medida em
que conhece” (KSA 7.439, Nachlass/FP 19 [62]).
42
MAN, P. de. Rhetorik der Tropen und Rhetorik der Persuasion. In: HAMACHER,
W., KRUMME, P. (org.). Allegorien des Lesens. Frankfurt a. M., 1988, p.146-148.
38 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Um sentido e incontáveis hieróglifos
Já Rudolf Haym, na parte do seu artigo que trata de Schopenhauer e no qual se debruça sobre o espólio publicado por
Frauenstädt e Gwinner, tinha falado da formação do sistema de
Schopenhauer enquanto resultado de um instinto artístico. Haym
apresentou esse sistema como o resultado de um “poder da força de
imaginação” (“Gewalt der Einbildungskraft”) que foi por fim reconduzido a essa “confusão romântica” (romantische Mißverständniß)
que vê a filosofia como uma obra artística. “A todos esses pontos de
vista subjectivos e a todos esses significativos motivos românticos
vem corresponder, nos manuscritos em discussão, uma filosofia que
é inteiramente abordada como arte. O filósofo está ao lado do artista
e do poeta”43.
Haym vê um predomínio da fantasia poética tanto na principal
obra de Schopenhauer e restantes obras da maturidade, como nas
teorias da “melhor consciência” da fase da juventude, onde arte e
virtude, artista e santo permitem sempre a “libertação de todas as
definições da consciência empírica”44, ao contrário da ciência que
permanece sempre prisioneira de um princípio fundamental.
A filosofia da maturidade reflete a temporalidade e a evolução.
Graças a essa continuidade em relação aos primeiros escritos é a
filosofia de Schopenhauer, no seu conjunto, interpretada como a
manifestação de uma primazia do impulso poético, portanto, como
a expressão da sua tendência para trabalhar com os instrumentos
43
44
HAYM, R. Op.cit, p.316. Julius Frauenstädt oferece uma extensa selecção dos escritos
de juventude dedicados a este tema: Vide Arthur Schopenhauer. Vom ihm. Ueber ihm,
op. cit., p. 718, 724, 726.
Observa a propósito: “Schopenhauer não tem criatividade, nos seus primeiros manuscritos, quando assinala a diferença da sua filosofia como arte e da sua anterior
filosofia como ciência. Ficamos, nessas passagens, com a escala na mão com a qual
e só com ela a filosofia de Schopenhauer pode ser avaliada” (ibidem, P. 247)
HAYM, R. Op.cit, p.305.
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39
Barbera, S.
da analogia e da metáfora. Nos apontamentos Zu Schopenhauer escreve Nietzsche que o conceito da vontade “só com a ajuda de uma
intuição poética” se torna produtivo (BAW 3, p.354) e Haym tinha
já observado que nós temos de ver, na tentativa de Schopenhauer em
fazer da natureza e da vontade “conceitos sinônimos”, a “realização
de uma pura metáfora”.
Com o tema da recondução da filosofia à arte ocupam-se também
alguns fragmentos póstumos que estão em estreita relação com as
apresentações da Terceira consideração extemporânea acerca do
segundo perigo a que Schopenhauer foi parar (SE/Co. Ext. III 3,
KSA 1.355.). Este perigo consiste numa “dúvida da verdade”, tal
como foi vivida por Heinrich von Kleist, e provocada pelo potencial
niilista da filosofia de Kant. O risco de uma dúvida radical e o vácuo
metafísico daí resultante é sobreadmirado por Schopenhauer que
aparece como “o dirigente” que, da caverna da indisposição cética
ou da resignação à crítica, empreende a passagem à caverna da
observação trágica” (SE/Co. Ext. III 3, KSA 1.356).
Nas obras publicadas pelo próprio Schopenhauer, fala-se dessa
função cética e destrutiva, sobretudo no anexo a O mundo como
vontade e representação, “Crítica da filosofia kantiana”, onde é
mencionada, quer a designação “triturador de tudo” (“Alleszermalmer”), que Moses Mendelssohn usara para caracterizar Kant,45
quer a palavra “desespero” (“Verzweiflung”) da filosofia crítica.46 No
fragmento póstumo 19[35] aparece esse empreendimento niilista sob
uma nova luz. Enquanto o “filósofo do conhecimento desesperado”
(“Philosoph der desperaten Erkenntniß”) se consome na ciência
45
46
SCHOPENHAUER, A. Werke. Zürich, 1977, v. 2, p. 516; Vide também Parerga und
Paralipomena I, Fragmenta zur Geschichte der Philosophie, § 4 (v.7, p. 55) e Parerga
und Paralipomena II, Über die Universitäts-Philosophie (ibidem, p. 190).
Ibidem, v.2, p. 526.
40 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Um sentido e incontáveis hieróglifos
despida de objetivo, no saber a qualquer preço, ultrapassa o filósofo
trágico a dúvida, pois “o impulso de conhecimento, chegado aos seus
limites, vira-se contra si próprio, para caminhar agora para a crítica
do saber. O conhecimento ao serviço da melhor vida” (KSA 7.428,
Nachlass/FP 19 [35]).
O conceito de um saber que se vira para si próprio a fim de
defender uma mais elevada forma de vida (aquela que é dominada
pela ilusão artística, tal como a combinação deixa reconhecer) é
exemplificado no fragmento KSA 7.427, Nachlass/FP 19 [34] através de uma passagem do prefácio à segunda edição da Crítica da
razão pura. A dissolução da metafísica por meio do criticismo é a
condição prévia para poder defender a especificidade moral contra
o ceticismo.
Os fragmentos excluem toda e qualquer metafísica da vontade
(Nietzsche fala de um “vácuo metafísico”), mas pretendem explorar
os efeitos niilistas do saber, para salvar uma área a que, no fragmento 19[35] chama “a melhor vida” ou “as raízes de tudo o que
há de mais elevado e profundo”, do mesmo modo que no fragmento
19[34]: “as raízes do que há de mais elevado e profundo, a arte e a
ética-Schopenhauer” (KSA 7.427, Nachlass/FP 19 [34]).
De fato, foi nas sua notas de juventude que Schopenhauer nomeou, com precisão, esta função do criticismo de Kant: ele é o caminho de acesso a uma melhor consciência, na medida em que liberta
o sujeito da prisão da “conceptualidade” (“Begreiflichkeit”). Assim
falou Schopenhauer dessa “importantíssima passagem esclarecedora
da essência de toda a crítica”47, “da dialéctica transcendental”, na
qual a crítica é compreendida não como uma recusa do inteligível,
mais muito mais como condição prévia de um acesso a ele. Essa pas-
47
SCHOPENHAUER, A. Der handschriftliche Nachlaß. Editado por A. Hübscher,
München, v.2, p. 279.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
41
Barbera, S.
sagem de Schopenhauer não estava acessível a Nietzsche, mas ele
pôde, com a seleção feita por Frauenstädt dos cadernos de estudo de
Schopenhauer acerca de Kant, Fichte, Schelling e Fries, obter uma
clara representação do conceito de “verdadeiro criticismo”, isto é,
da função que Schopenhauer atribui a Kant, de “triturador de tudo”,
como preparador de uma forma incondicional do conhecimento. Assim, por exemplo, numa longa observação aos Prolegomena acerca
do “fim da nossa disposição para a metafísica”, onde Schopenhauer
assinala o uso das categorias para além da experiência como uma
“ilusão útil” (“dienliche Täuschung”), para suavizar a contradição
entre intelecto e melhor consciência. Pelo contrário, é aí assinalado
o “verdadeiro criticismo” (“wahre[n] Kritizismus”) como o “caminho
livre de ilusão” (“täuschungsfreie[n] Weg”) que nos ensina “que o
entendimento é a forma condicionada do conhecimento, de modo
nenhum absoluta, sendo, todavia, a melhor consciência” (“daß der
Verstand die bedingte, das bessere Bewußtsein aber (und nicht jener) die absolute Erkenntnißweise ist”).48 A impressão de que estes
fragmentos póstumos de Nietzsche se relacionam com os escritos
de Schopenhauer que antecipam o intenso trabalho da metafísica
da vontade, essa impressão é corroborada pelo uso da expressão “a
melhor vida” (“das beste Leben”).49 A “melhor vida” está em Nietzsche estreitamente unida com “cultura” (“Kultur”) e a “transfigurada
natureza” (“verklärter Physis”): assim também a clara expressão
análoga “a melhor” (“Besseres”) em Schopenhauer como educador
48
49
De Arthur Schopenhauer handschriftlichem Nachlaß. Abhandlungen, Anmerkungen,
Aphorismen und Fragmenta. Editado por J. Frauenstädt, Leipzig, 1864, p. 101.
KSA 7.428, Nachlass/FP 19 [35] vide acima. Quanto sabemos, usa Nietzsche o temos
“melhor consciência” (“besseres Bewußtsein” uma única vez e na verdade na parte
dedicada a Eurípedes das prelecções Geschichte der griechischen Literatur (GA 18,
p.49) e para assinalar o autêntico espírito da tragédia em oposição à “sofística da
afectação” (“Sophistik der Leidenschaft”).
42 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Um sentido e incontáveis hieróglifos
(SE/Co. Ext. III 4; KSA 1. 374). Isto significa uma mudança decisiva
face à proposta de Schopenhauer, pois para Schopenhauer o acesso
à mais elevada forma de vida é um empreendimento individual do
gênio, não generalizável, o que, por seu lado, apresenta uma perfeita
antítese ao filisteu e à mediocridade da vida racional.
Os escritos e fragmentos de Nietzsche dos primeiros tempos de
Basileia testemunham oscilações e contradições que só são levantadas em Humano, demasiado humano com a crítica do gênio como
fundamento, quer do posicionamento metafísico de Schopenhauer,
quer também da ligação metafísica-arte.
Mas, acima de tudo, manifesta-se nos textos desse período,
uma contradição essencial. Por um lado, continua a atuar a, já em
1868, formulada crítica a Schopenhauer segundo a qual a vontade
é um fundamento do mundo totalmente diferente das representações. Essa crítica deixa os seus sinais na compreensão da “eterna
justiça” e da filosofia como decifradora dos sinais hieroglíficos. De
assinalar é também, nessa conexão, que Nietzsche se relaciona
com textos de Schopenhauer que precedem o intenso trabalho da
teoria da vontade. Por outro lado, o vazio metafísico tem de ser
preenchido com uma ideologia do gênio. Inspirada em Wagner, a
metafísica do artista apoia-se na mistura de gênio e de gênio da
espécie. Estamos muito distantes de Schopenhauer que define o
gênio como distanciamento e como melancólico estranhamento
de uma “afectabilidade do querer” (“Leidenschaftlichkeit des Wollens”), como perfeita iconização dos afectos.50 Graças à ligação do
50
Vide O mundo como vontade e representação I, §6 e II, cap. 31. Acerca do paradigma da melancolia como núcleo da capacidade genial de libertar a intuição das
formas da sensibilidade e para assim desalojar os motivos da vontade residentes no
interior das representações. Vide S. Barbera: Anmerkungen zu Schopenhauer und
Goethe. Vom Augenblick zum Urphänomen. In: Philosophischer Taschenkalender,
v. 2 (1992/93), p.58.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
43
Barbera, S.
gênio ao gênio da espécie executa a metafísica do artista uma radical romantização de Schopenhauer. Contudo, o empreendimento
do gênio nada mais é do que a repetição do “processo original”
(“Urprozesses”)51 com o qual a “unidade original” (“Ureine”) produz
as imagens salvadoras, em analogia com a objectivação das ideias,
por parte da vontade.
Só o radical desprendimento em Humano, demasiado humano
permite a Nietzsche ultrapassar as contradições dessa relação “prática” com a vontade. O espírito livre está apenas “levemente unido”
à vida ativa, para que não venha a ser escravo da sua ação (KSA
8.294, Nachlass/FP 16[47],) e foi projetado, precisamente, como o
polo oposto de um homem ativo. O seu caráter antitético frente ao
elemento “tirânico” em Wagner é explicitamente mencionado no
fragmento KSA 8.305, Nachlass, FP 17[47]. A oposição ao elemento
tirânico, a libertação do viver (não como suicídio, mas como tornar-se
livre das imagens enganadoras e dos motivos da vontade), a libertação, por último, das poderosas e exageradas emoções da vontade,
opõem o espírito livre, precisamente, a esse excesso da vontade,
que Wagner, através de uma incrível transformação dos textos de
Schopenhauer, escreve numa só palavra: o gênio.
4. A Terceira consideração extemporânea é marcada por um
equilíbrio precário entre específicos enredos argumentativos. Só
uma análise exata poderia trazer luz acerca do funcionamento conexo das diferentes tendências. Está todavia fora de dúvida que,
em Schopenhauer como educador, é questionado o “supersticioso
do gênio” (que Nietzsche, no verão de 1878, atribui a uma parte
passageira do trabalho de Schopenhauer (KSA 8.524, Nachlass/FP
51
Vide por exemplo 7 [167]: “Das Projicieren des Scheins ist der künstlerische Urprozess”,
etc. (KSA 7. 203, Nachlass/FP 7 [167]).)
44 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Um sentido e incontáveis hieróglifos
30[9]; e com ele é questionada também a ligação do gênio à fundação
da cultura e isto apesar dos testemunhos que parecem confirmar
a metafísica do artista e a preponderância da solução estética. Os
diferentes “tipos” da existência genial (as personagens do filósofo,
do artista e do santo) são agora separadas umas das outras e a sua
unidade tem então de ser procurada numa especial constelação.
A original mistura do gênio com a comunidade através das santas
ilusões torna-se uma relação complexa e problemática e isso se nós
observarmos a relação entre a capacidade educativa do filósofo e
a tarefa de “descobrir um novo circulo de deveres” como sendo o
ponto central dessa Extemporânea. Trata-se aqui da pergunta sobre
“se é possível alguém ligar-se aos grandes ideais do homem schopenaueriano através de uma regular actividade própria” (SE/Co.
Ext. III 5, KSA 1.381).
O caráter “heróico” do homem de Schopenhauer não se funda,
como retrospectivamente acentuam os fragmentos introdutórios citados, numa redenção estética do devir, mas na sua ultrapassagem:
Todo o ser (Dasein) que pode ser negado merece também vir a ser
negado. Ser verdadeiro quer dizer acreditar num ser (Dasein) que
acima de tudo não poderia ser negado e que é ele mesmo verdadeiro
e marca de mentira. Por isso, o ser verdadeiro sente o sentido da
sua atividade como uma vida metafísica mais elevada esclarecível
a partir das leis de um outro e concordante no mais profundo do
entendimento: tanto como tudo aquilo que ele faz aparece como
uma destruição e um quebrar das leis dessa vida (SE/Co. Ext. III 4,
KSA 1.372).
Um antagonismo tão agudo como esse que Schopenhauer como
educador nos apresenta entre um ser (Dasein) constrangido dentro
da temporalidade e do devir e uma forma de vida do santo assinalada pelo silêncio do “ser” (“seins”) e, sim , pela idendidade sujeito
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
45
Barbera, S.
objeto é o que caracteriza, exatamente, nos escritos de juventude
de Schopenhauer, a autolibertação da melhor consciência da consciência empírica. Segundo uma passagem da terceira Extemporânea,
o sistema filosófico de Schopenhauer consiste para Nietzsche em
“hieróglifos” que reproduzem meramente uma intuição juvenil,
isto é, a experiência da personagem do artista e do santo, enquanto
por essas duas formas se apresenta originalmente a genialidade da
melhor consciência:
É de todo impossível definir quão cedo Schopenhauer deve ter visto
essa imagem da vida, tal como tenta copiá-la mais tarde para todos
os seus escritos. Pode provar-se que o jovem, e, quereria acreditar, a
criança já tinha visto essa extraordinária visão. Aquilo de que mais
tarde, a partir da vida e dos livros e de todos os domínios da ciência,
se apropriou era para ele quase só cor e meio de expressão. A própria
filosofia de Kant foi forçada a ser acima de tudo um extraordinário
instrumento retórico com o qual ele acreditava pronunciar-se mais
significativamente acerca dessa imagem. Para o mesmo propósito e
ocasionalmente, lhe servia do mesmo modo a mitologia budista e cristã.
Para ele havia apenas uma tarefa e cem mil modos de a resolver: um
sentido e incontáveis hieróglifos para o exprimir (SE/Co Ext. III 7,
KSA 1. 410).
Essa citação recorda a passagem na qual Haym, sobre os materiais apresentados por Frauenstädt, observou que, em Schopenhauer,
de 1814 até à apresentação do “sistema filosófico” na obra principal,
nada há a encontrar senão “uma quantidade de destemidas combinações”, nada senão um específico desenvolvimento e também nenhum
aperfeiçoamento original face à “primeira concepção”.
Nada de si mesmo, para dizer numa palavra, mas, do armazém de
outras filosofias, tirou ele os outros aparelhos, os conteúdos adstritos
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Um sentido e incontáveis hieróglifos
ao pensamento, os vínculos abstratos de uma percepção (aperçu) seleccionada, brotando do próprio espírito. Assim se tinha já provido,
para a primeira parte da sua filosofia, com a crítica kantiana da razão
e, logo a seguir, são os ingleses que têm de fornecer para isso o restante material. [...] As plagiadas representações são profundas, mas,
em si mesmas, não ostentando nenhuma abstracção, não tornam úteis
as intuições de fundo52.
Na nova constelação formada pelo filósofo, o santo e o artista,
que em Schopenhauer culmina na ultrapassagem do devir como
palco da vontade de viver, é visível a contradição da concordância
com o gênio afirmador de Wagner. É igualmente, em Schopenhauer
como educador, confirmada, a propósito dos “gregos”, a declaração
retrospectiva do anteriormente citado fragmento 27[80] de 1878,
acerca do homem schopenhaueriano. As observações acerca da
atitude metafísica como autolibertação do que é humano daquilo
que é animal, e que, evidentemente, também remetem para o quarto
livro de O mundo como vontade e representação, parecem provar o
modelo grego. No parágrafo 62 de O mundo, a Éris era a imagem
perfeita da autocisão da vontade que tem lugar de forma cruel na
luta entre os animais. Vê agora Nietzsche, em Justa de Homero, na
Éris a indispensável condição prévia da cultura grega (KSA 7.427,
Nachlass/FP 27 [80]) e assim, em Schopenhauer como educador não
fala mais de uma possível transfiguração da “má” na “boa” Éris.
Também o princípio imanente da eterna justiça, enquanto justificação interior da mudança, é relativisado na terceira Extemporânea e
as imagens do jogo e da criança que brinca não são a metáfora da
libertação estética; tornaram-se simples formas da temporalidade
que tem de subjugar o “heroísmo da veracidade”, para fundar a
52
HAYM, R. Op. cit., p.318.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
47
Barbera, S.
cultura.53 A última imagem de Schopenhauer que encontramos
numa obra publicada por Nietzsche, antes da mudança de Humano, demasiado humano, testemunha, por um lado, um agudo
desentendimento com Wagner e, por outro, é ainda uma referência
aos escritos de juventude de Schopenhauer um desvio metafísico,
para dissolver essa interdependência entre a ilusão e a afirmação
da vontade da qual se libertará a forma do espírito livre.
Abstract: Taking as point of departure the analysis of the texts of the young
Nietzsche, this paper aims at discussing the impact of Schopenhauer’s
thought in Nietzschean philosophy.
Keywords: Schopenhauer – will – metaphysics – free spirit
referências bibliográficas
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Leipzig, 1892.
2. FIGL, J. Dialektik der Gewalt. Nietzsches hermeneutische
Religionsphilosophie. Düsseldorf: 1984.
53
Vide SE/Co. Ext. III 4, KSA 1.374: “Esta mudança eterna é um enganador jogo de
bonecas, por sobre o qual o homem se esquece a si mesmo, (...)o infindável jogo infantil que a grande criança que é o tempo joga perante nós e conosco. Esse heroísmo
da veracidade forma-se quando um dia deixa de ser o seu próprio brinquedo. Na
mudança tudo é vazio, enganador, raso e digno do nosso desdém.” .
48 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Um sentido e incontáveis hieróglifos
3.
. Nietzsches Begegnung mit Schopenhauers
Hauptwerk. Unter Heranziehung eines frühen unveröffentlichten Exzerptes. In: Schopenhauer-Studien,
n.4 – Schopenhauer, Nietzsche und die Kunst, 1993
(editado por Wolfgang Schirmacher).
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1980.
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Kassel (prova tipográfica não publicada, 1942).
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Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 19671978. 15 v.
12.
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(KSAB). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1986. 8v.
13.
. Beck’s Edition of Works (BAW). Organizada por
Hans Joachim Mette, 5v.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
49
Barbera, S.
14. SCHOPENHAUER, A. Werke. Zürich, 1977, 10v.
15.
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Bonn: 1978.
16. SEYDEL, R. Schopenhauers philosophisches System.,
Leipzig, 1857.
17. ZELLER. Geschichte der deutschen Philosophie seit
Leibniz, München, 1873.
50 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Os gregos aprenderam aos
poucos a organizar o caos”.
Os conceitos de estilo e
de cultura na Segunda
consideração extemporânea
de F. Nietzsche*
Carlo Gentile**
Resumo: Na Primeira e na Segunda consideração extemporânea, Nietzsche define os conceitos de Kultur, Bildung e Stil, que aparecem estar
intimamente ligados. Essa ligação deve ocorrer tanto no homem individual quanto no povo. Nietzsche elaborou a idéia de um povo como uma
individualidade a partir do neo-humanismo alemão – em especial, W.
von Humboldt. Essa influência, contudo, não foi direta, mas mediada por
Jacob Burckhardt e sua Cultura no Renascimento na Itália, que Nietzsche menciona explicitamente na Segunda extemporânea. Ao aplicar esse
referencial teórico para a cultura grega, Nietzsche destrói o mito de seu
caráter autóctone. Assim, propõe aos seus contemporâneos alemães o
modelo de uma cultura nacional que se volta para a Grécia, mas de uma
forma totalmente nova.
Palavras-chave: cultura – estilo – história – caos.
*
**
Tradução de Vilmar Debona. As passagens e citações em alemão foram traduzidas
por Clademir Luís Araldi.
Professor da Alma Mater Studiorum Università di Bologna.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
51
Gentile, C.
Que a Segunda consideração extemporânea represente um paradoxo na história da recepção do pensamento de Nietzsche é algo
notório. O paradoxo consiste no fato de que o texto foi subtraído à
sobrevalorização a que Nietzsche mesmo lhe havia atribuído. Seus
intérpretes entenderam-no no sentido positivo, como revolta contra
o historicismo e não diretamente contra a história (Historie), postura
polêmica que, ao contrário – ao menos de acordo com a posterior
concepção de Nietzsche – é, sim, endereçada contra a história. Nas
raras ocasiões em que, após a publicação, o filósofo retorna ao escrito, suas palavras assumem o tom de uma retratação: no prefácio
escrito em 1886 para o segundo volume de Humano, demasiado humano, que compreende os dois “apêndices” Miscelânea de opiniões e
sentenças e O andarilho e sua sombra, Nietzsche afirma que quando
considerou a “doença histórica” a havia tomado “como alguém que
de modo lento e laborioso aprendeu a curar-se dela, e doravante não
se dispunha a renunciar absolutamente à ‘História’, porque havia
dela padecido” (MA II/HH II, Prólogo, § 1). Tal concepção encontra
uma confirmação, alguns anos depois, em Ecce homo, no qual Nietzsche dedica à Segunda extemporânea – diferentemente do caso das
outras três – um tratamento específico e, num único e fugaz aceno,
indica o objetivo do escrito ao trazer à luz “o que há de corrosivo e
envenenador da vida em nossa maneira de fazer ciência”, do qual
“o ‘sentido histórico’” seria um caso particular (EH/EH, Humano,
demasiado humano, 3, KSA 6.314). Por outro lado, retornando ao
tratamento do “homem schopenhaueriano” (argumento da Terceira
extemporânea) num fragmento da primavera-verão de 1878 – e, portanto, como escreveu Jörg Salaquarda, “da perspectiva do ‘espírito
livre’”1 -, Nietzsche indica como “segunda fase” (referência evidente
1
SALAQUARDA, J. “Studien zur Zweiten Unzeitgemässen Betrachtung”. In:
Nietzsche-Studien, Berlim: Walter de Gruyter, n. 13, 1984, p.2.
52 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
à Segunda extemporânea) do caminho rumo àquele objetivo que
ora recai sobre sua crítica à “Tentativa de fechar os olhos diante do
conhecimento da História” (KSA 8.493, Nachlass/FP 27[34]). Ao
mesmo tempo, no Aforismo 17 da Miscelânea de opiniões e sentenças,
justamente intitulado Felicidade do historiador, ele opõe contra a
“sutileza” dos metafísicos (“die Hinterweltler”) a simplicidade e
a concretude dos “pobres de espírito”, ou seja, algo próprio dos
historiadores; aquele que pronuncia esta invocação é, em verdade,
“alguém em que não só o espírito se transformou na História, mas
também o coração, em oposição aos metafísicos, está feliz em não
abrigar em si ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais” (VM/
OS 17, KSA 2.386).
Portanto, não nos restam dúvidas: Nietzsche mesmo considera
que o sentido maior da Segunda consideração extemporânea concentra-se inteiramente no seu posicionamento sobre os confrontos da
história e, quando não partilha mais desta posição, simplesmente a
ignora. Os intérpretes utilizaram-se de boas estratégias para demonstrar como a intenção de Nietzsche seria, em verdade, avessa não à
história, mas ao historicismo (Historicismus) e, portanto, identificaram esta razão para a valorização deste escrito, hoje considerado da
mesma forma e com a mesma dignidade que suas obras maiores.
Se foi o próprio Nietzsche que reduziu os conteúdos do escrito
aos posicionamentos da história, não se pode negar que, neste ínterim, ao menos outros dois temas de extraordinária importância
sejam ignorados: a própria definição de extemporâneo, que se lê
no prólogo da Extemporânea, e as noções de civilização, cultura e
estilo, às quais Nietzsche se refere várias vezes durante o escrito,
mas que convergem, sobretudo, no último capítulo.
Que o pensador, nas suas sucessivas recapitulações, não recorde
desses argumentos como pertencentes à Segunda consideração extemporânea deve-se provavelmente ao fato de que não os reconhece
como caracterizadores. Isso soa, indubitavelmente, no mínimo como
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Gentile, C.
um contrassenso para a definição de extemporâneo. Não podemos
aqui reduzirmo-nos a este paradoxo; limitamo-nos, todavia, a recordarmos como o conceito de extemporâneo continua a estar presente
na produção nietzschiana muito além do período das quatro Extemporâneas efetivamente publicadas. Ainda para a data do fim de
agosto de 1885, encontramos, nos fragmentos póstumos, o esboço de
um escrito que ele intitula Nova consideração extemporânea (KSA
11.669 e segs., Nachlass/FP 41[2] e segs.); enquanto Incursões de
um extemporâneo é o título do antepenúltimo capítulo de Crepúsculo
dos ídolos. É importante lembrar ainda, para finalizarmos com este
argumento, como a definição de extemporâneo se relaciona desde
o início com aquela de póstumo, presente nas últimas reflexões. As
palavras de Ecce homo – “Ainda não chegou o meu tempo, alguns
nascem póstumos” (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, 1, KSA
6.298) – são quase as mesmas que Nietzsche havia usado, a propósito de Schopenhauer, mas com uma referência implícita a si mesmo,
em uma carta a Paul Deussen, de fevereiro de 1870: um gênio, “que
teve o mesmo destino terrível e sublime, de vir um século antes de
poder ser compreendido” (KSB 3.97).
Quanto aos conceitos de civilização, cultura e estilo, Nietzsche
não os reconhece como característicos da Segunda consideração extemporânea porque, na estreita conexão que os mesmos formam entre
si, já foram tratados na Primeira extemporânea, a saber, na posição
de Nietzsche contra David F. Strauss. Quanto a isso, temos uma prova textual. Para além da ocasional, violenta e injustificada inventiva
contra o agora ancião teólogo, o verdadeiro argumento da Primeira
extemporânea é a resposta para a indagação se existe uma cultura
alemã. Pergunta desencadeada, como se percebe, pela interpretação
fornecida pela publicidade jornalística – mas também, ao menos no
dizer de Nietzsche, pela vitória prussiana contra a França na guerra
de 1870; vitória que teria sido devida, segundo essa interpretação,
à superioridade da cultura alemã sobre a francesa. Como réplica,
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“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
Nietzsche rebate “que na Alemanha se perdeu o puro conceito de
cultura” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.159); a dominante é, agora, “tudo
o que diz respeito à opinião pública”, aquela “espécie de homens”
que ele deseja “chamar pelo nome – trata-se dos filisteus da cultura” (idem). Algumas páginas à frente, o tratamento dessa cultura da
felicidade do filisteu, dos acomodados, vem descrito com os traços
inconfundíveis do calmo burguês (Biedermeier): o “dedo apontado”
do filisteu da cultura indica
sem pudores inúteis a todos os recantos escondidos e secretos de sua
vida, para as muitas alegrias comoventes e ingênuas que cresceram
como flores modestas na profundeza mais miserável de uma existência
não cultivada, como que no terreno pantanoso da existência filistéia.
Encontraram-se entre eles alguns talentos representativos especiais, que, com fino pincel, copiaram a felicidade, a intimidade, a
vida cotidiana, a saúde campestre e toda satisfação que se propaga
sobre os aposentos das crianças, eruditos e camponeses (DS/Co. Ext.
I, 2, KSA 1.164).
Essa cultura de segundo plano, composta e heterogênea, é
a “confusão caótica” na qual vive “o alemão de hoje”. Deve-se
notar, contudo, que Nietzsche não visa, com isso, simplesmente
denunciar o retrocesso da cultura alemã; o que o filósofo enfatiza
é, ao contrário, justamente a atualidade. Essa cultura é, de fato, “o
‘moderno em si’”, nada mais que uma “feira moderna de cores” na
qual também a “profusão do saber e da aprendizagem” não são nem
um meio, nem uma marca da cultura, mas exatamente o contrário:
a ‘barbárie’. Barbárie não é, portanto, simplesmente a essência
da cultura, mas uma cultura privada do elemento que lhe confere
unidade, homogeneidade e direção. A cultura da modernidade é
justamente a “inquietude” e a “caótica confusão de todos os estilos”.
Anteriormente a essas afirmações, Nietzsche fornece sua concisa e
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Gentile, C.
lapidar definição de cultura: “Cultura é sobretudo unidade de estilo
artístico em todas as manifestações da vida de um povo ” (DS/Co.
Ext. I, 1, KSA 1.159). Cultura, estilo, arte e povo recebem nessa
definição uma determinação recíproca : nenhum desses elementos
podem estar sem os outros.
Aparece, a esta altura, a prova textual à qual nos referimos
anteriormente. Na Segunda consideração extemporânea Nietzsche
refaz, com um intencional detalhamento, a definição fornecida na
Primeira: “A cultura de um povo, em oposição a toda barbárie, como
penso, pôde ser designada com alguma razão como unidade de estilo
artístico em todas as manifestações da vida de um povo” (HL/Co.
Ext. II, 3, KSA 1.265).
Não se trata simplesmente, segundo Nietzsche, de contrapor o
“ belo estilo ” à barbárie (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.258): o que está
em pauta é o fato de que, para atribuir a um povo uma cultura, esse
povo deve manifestar nas suas expressões uma unidade de estilo.
Tal povo “deve ser somente algo único, vivo em toda efetividade,
e não tão miserável interna e externamente, cindidos em conteúdo
e forma” (idem, 4). Nessa “unidade superior” consiste a autêntica
cultura (Bildung), à qual se contrapõe a “erudição moderna” (HL/
Co. Ext. II, 2, KSA 1.258).
Portanto, para Nietzsche, cultura é um organismo sem cisões;
não se trata de uma identidade de conteúdos, mas de uma multiplicidade na qual o estilo constitui o vetor direcional que produz a
correspondência entre interno e externo, conteúdo e forma. Cultura e
povo são, aqui, algo único. Todavia, um povo não possui sua cultura
por destinação inata e independentemente do próprio construir-se:
cairia, neste caso, todo o sentido do discurso de Nietzsche que censura, sim, os alemães por não possuírem tal cultura, mas lhes exorta,
por enquanto, a porem-se no caminho que conduz a tal cultura.
Que, no percurso desse caminho, o exemplo a ser seguido é
aquele dos gregos, trata-se de algo óbvio. Já na Primeira extempo-
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“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
rânea Nietzsche havia exposto a contraposição entre franceses e
alemães sob o modelo da contraposição entre gregos e macedônios.
A “disciplina severa” e de “obediência calma”, ou seja, as reconhecidas qualidades dos exercícios prussianos, já haviam delimitado
a diferença entre os exercícios macedônicos e aqueles gregos, que
também eram muito “mais cultos”; porém, aquelas virtudes militares não tinham nada a ver com a cultura (DS/Co. Ext. I, 1, KSA
1.159).
No entanto, a referência ao modelo grego recai num sentido
mais preciso e de uma forma diversa, tal como se poderia esperar.
Nietzsche, em verdade, repudia o mito do milagre grego, ou seja,
da aparição da civilização grega como um fenômeno inaugural e
radicalmente novo na história do Ocidente. Este mito, que Winckelmann já havia estabelecido na cultura alemã, deu origem a uma
“teoria do clima” que explicava a excepcionalidade da civilização
grega mediante uma relação direta com a natureza. “A influência
dos astros – escrevera Winckelmann – tem de germinar as sementes,
a partir das quais a arte deve ser exercida [...] A natureza, após ter
gradualmente procedido através do frio e do calor, pôs-se em seu
centro na Grécia, onde o tempo oscila entre inverno e verão”2.
Contra essa concepção, Nietzsche coloca em jogo as razões
da Bildung, vendo no processo formativo da civilização grega até
mesmo uma afinidade com a situação da modernidade. “Houve
séculos – escreve -, em que os gregos se encontravam nesse perigo,
que é também o nosso, a saber, de sucumbirem pela inundação do
estrangeiro e do passado, pela ‘história’”; a cultura dos gregos não
foi por muito tempo mais que “um caos de formas e conceitos estrangeiros, semíticos, babilônicos, lídios, egípcios, e sua religião era
2
WINCKELMANN, J.J. “Geschichte der Kunst des Altertums”. In: Ausgewählte Schriften und Briefe. Wiesbaden: Dieterich’sche Verlagsbuchhandlung, 1948, p.106-7.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
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Gentile, C.
uma verdadeira luta entre deuses de todo o Oriente”; hoje a “cultura
alemã” é um caos em guerra contra as influências estrangeiras e
do passado. Aquilo que, então, salvou os gregos foi o mote do deus
délfico: “conhece-te a ti mesmo”. Foi graças ao mote de Apolo que a
aquela cultura não se reduziu a um mero “agregado”, e os elementos
mencionados não reduziram-se apenas “a heranças e epígonos acumulados de todo o Oriente” (HL/Co. Ext. II, 10, KSA 1.324).
É significativo que Nietzsche remeta o gnothi seauton (a escrita esculpida sob a fronte do templo de Apolo de Delfos) a seu
originário significado religioso, ignorando a interpretação filosófica
fornecida por Sócrates. Apolo, dessa forma, significa ainda – alinhado às páginas de O nascimento da tragédia – vontade de forma.
Segundo Walter Kaufmann, o percurso do caos à cultura acompanha exatamente a relação entre Dioniso e Apolo. “Pode muito bem
ser verdade – escreve – que a cultura grega consistiu, em grande
medida, no refinamento gradual da religião dionisíaca, por meio
do orfismo e pitagorismo, até o platonismo: em outras palavras, no
aproveitamento de Apolo para Dionísio”. Ainda segundo Kaufmann,
esse ideal de cultura derivaria, em Nietzsche, de Goethe, “de quem
é obviamente inspirado”, e marcaria um decisivo distanciamento
do filósofo em relação ao primeiro Romantismo3. Caso esta interpretação seja substancialmente aceita, a referência a Goethe, assim
como a distância em relação aos outros românticos, resultaria numa
referência bastante genérica e correríamos o risco de restituirmos
um Nietzsche explicitamente “apolíneo” (ou então “goethiano”). A
vontade de forma deve estar contra aquilo que deve ser formado:
Apolo teria mais necessidades que Dioniso, assim como a cultura
pode originar-se somente da presença vivificante do caos. Retorne-
3
KAUFMANN, W. Nietzsche. Philosopher, Psychologist, Antichrist. Princeton: Princeton
University Press, 1974, p. 154.
58 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
mos, pois, às palavras de Nietzsche: podemos compreender o que ele
precisamente toma por caos ao analisarmos atentamente o modo pelo
qual o pensador afirma ser produzida a cultura (Bildung) grega: “Os
gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos, de modo que eles
remontassem a si mesmos, segundo a doutrina délfica, ou seja, a suas
autênticas necessidades, e deixassem extinguir-se as necessidades
aparentes” (HL/Co. Ext. II,10, KSA 1.324).
O processo que divide as necessidades autênticas das necessidades aparentes é o processo de formação da cultura; o apelo ao mote
délfico demonstra que esse processo somente pode ser acionado a
partir da vida. Em algumas páginas anteriores, Nietzsche escreve:
“Dai-me primeiramente vida, então dela criar-vos-ei uma cultura!”
(HL/Co. Ext. II, 10, KSA 1.324). Mas o mote délfico – “conhece-te
a ti mesmo” – contém também uma evidente referência à vida individual: aquilo que cria a Bildung de um povo deve, ainda antes,
criar a Bildung de qualquer indivíduo. Nietzsche torna explícita
essa conclusão nas últimas palavras da Extemporânea: “Esse é um
modelo para cada um de nós: ele tem de organizar o caos em si, de
modo que reflita sobre suas autênticas necessidades” (idem). Desprovida dessa precisão, a referência à Bildung grega perderia sua
condição de modelo para a situação atual: em toda a Extemporânea
perceberíamos a falta de sentido do estímulo nos confrontos dos
alemães. O apelo aos gregos torna-se apelo aos alemães a fim de que
se crie uma nova cultura enquanto “physis […] nova e melhorada,
sem interior e exterior”, uma cultura que porte “unanimidade entre
o viver, pensar, aparecer e querer” (idem). Numa palavra, Nietzsche
alerta os alemães e os modernos para o autêntico sentido da história.
Já a constatação de que os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos contém uma implícita referência à história: eles agiram
historicamente, e historicamente devem agir os modernos.
Aquilo que Nietzsche nos apresenta aqui não é uma pura e
simples polêmica anti-moderna; bem ao contrário, ele sugere uma
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
59
Gentile, C.
forma de superar, em nome de uma autêntica historicidade, a pobreza criativa da modernidade. Uma contradição, portanto, em relação
à intenção anti-historicista da Segunda consideração extemporânea? Já havíamos visto que o anti-historicismo não apresenta por
si mesmo uma posição contrária à história. Para cada uma das três
concepções de história (Historie) que Nietzsche distingue no texto –
monumental, de antiquária, crítica – encontramos uma justificativa.
No entanto, somente na medida em que respondem aos desejos reais
da vida, segundo o célebre objetivo declarado programaticamente
no prólogo: “queremos servir à história somente enquanto ela serve
à vida” (HL/Co. Ext. II, Prólogo, KSA 1.245). Aqui está o divisor de
águas que separa história de historicismo, a saber, a história como
vida da história como ciência: a questão é que, conforme Nietzsche
precisa ao final do capítulo I, a Historie não poderá mais se tornar
“ciência pura”, como a matemática, porque, enquanto está “a serviço da vida”, está “a serviço de uma potência a-histórica” (HL/Co.
Ext. II, 2, KSA 1.258). Vale dizer, a história pressupõe o caos que
deve ser organizado. Não nos aventuramos a propor uma imediata
identificação entre caos, vida e princípio dionisíaco, mas não nos
restam dúvidas de que a potência a-histórica (unhistorische Macht)
corresponde a um princípio criativo, provavelmente artístico.
Tratemos, então, de compreender qual é a porção dessa concepção de cultura e de Historie que distanciam Nietzsche, devido
à originalidade de sua reelaboração, em relação a outros autores.
Certamente a polêmica contra a fragmentariedade do moderno havia
inspirado tanto as Cartas sobre a educação estética do homem de
Schiller quanto o Discurso sobre a mitologia de Friedrich Schlegel,
autores e mentalidades que Nietzsche conhecia com profundidade.
Além disso, a ideia de que a civilização grega é um produto de influências e empréstimos das culturas de povos antigos pode ser admitida
a partir do Simbolismo e mitologia dos povos antigos, especialmente
dos gregos de Georg Friedrich Creuzer, cuja implantação coloca a
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“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
religião grega no contexto das religiões médio-orientais e egípcias
e representa o primeiro e decisivo ataque ao mito da autoctonia dos
gregos. No registro da biblioteca universitária de Basiléia consta
que já em 1871 – isto é, na época da elaboração de O nascimento da
tragédia – Nietzsche havia utilizado o livro acima mencionado4.
Na Segunda consideração extemporânea essas referências estão
indubitavelmente presentes. No entanto, nesse escrito se apresenta
uma variedade de questões. Há, antes de tudo, a ideia de que essa
multiplicidade de elementos deve ser difusa a fim de que constitua
uma cultura cuja unidade assuma a forma de uma individualidade
em relação tanto à existência individual quanto à vida de um povo.
Nietzsche teria podido colher essa concepção do programa neoumanístico de Wilhelm von Humboldt, orientado pelo ideal grego
dedicado à “tarefa de apresentar enquanto nação a vida suprema”.
Essa “vida suprema” é, para Humboldt, a “existência humana”;5 a
nação grega nada mais seria que o desenvolvimento coerente das
promessas já presentes no indivíduo: nada se encontra neste que já
não esteja presente naquela. E mesmo essa unidade de estilo e de
caráter é aquilo que, para Humboldt, perdeu-se na modernidade:
a “cisão” que caracteriza nossa condição não se resume somente
naquilo que há entre diversas nações e indivíduos, mas se manifesta
mesmo “no próprio peito, no intuir, sentir e produzir” 6.
Nietzsche, todavia, nunca demonstra considerar Humboldt de
forma significativa. Seu nome aparece pela primeira vez somente
4
5
6
A data é precisamente a de 18/06/1871. Cf. CRESCENZI, L. “Verzeichnis der von
Nietzsche aus der Universitätsbibliothek in Basel entliehnen Bücher (1869-1879)”.
In: Nietzsche-Studien, Berlim, Walter de Gruyter, n. 23, 1994, p. 407.
HUMBOLDT, W. Über den Charakter der Griechen, die idealistische und historische
Ansicht desselben (1807) apud C. Menze. Bildung und Sprache: Paderborn, Schöningh, 1979, p. 67-68.
Ibidem, p. 70.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
61
Gentile, C.
num fragmento de julho de 1879, associado a um parecer decisivamente negativo: o filósofo denuncia “o ideal” em Schiller e em
Humboldt como “uma falsa antiguidade como a de Canova, algo
demasiado envernizada, branda, não ousando encarar a verdade
dura e feia” (KSA 8.593, Nachlass/FP 41[67]). Este parecer permanecerá inalterado, aliás, se intensificará, visto que, num fragmento
da primavera-verão de 1888, Nietzsche define Humboldt como “o
nobre néscio” (KSA 13.506, Nachlass/FP 16[61]).
A proveniência da ideia de individualidade cultural pode ser
buscada em outro lugar e certamente muito antes de Nietzsche.
Em verdade, ela se deve a Jacob Burckhardt. Para nos guiar nesta
análise, existem dois conceitos que se convergem, todavia, num só:
a definição da erudição moderna e a insistente referência ao fato de
que, como vimos, a autêntica cultura deve sanar a cisão entre interno
e externo, conteúdo e forma.
No capítulo 2 da Segunda consideração extemporânea, ao escrever sobre a “consideração monumental do passado”, Nietzsche
questiona em que medida tal consideração pode contribuir com o
homem atual, e responde que a contribuição consiste na convicção
de que “a grandeza de outrora foi em todo caso possível uma vez e,
por isso mesmo, será mais uma vez possível”. Bastam “não mais
que cem” homens, animados por esta convicção, para colapsar a
“erudição que agora se tornou moda na Alemanha”. E certamente
aquilo que esta convicção possui reforçará a constatação de “que a
cultura do Renascimento ergueu-se sobre os ombros desse grupo de
cem homens” (HL/Co. Ext. II, 2, KSA 1.258). A referência à cultura
(Cultur) do Renascimento não leva a um conceito genérico, mas sim
ao livro de Burckhardt, Die Kultur der Renaissance in Italien (A
cultura do Renascimento na Itália). Nietzsche cita explicitamente
este texto poucas páginas depois (cf. HL/Co. Ext. II, 3, KSA 1.265),
e Burckhardt o agradecerá pela citação numa carta de 25 de fevereiro de 1874.
62 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
Contudo, esta citação explícita não é tão significativa quanto a
velada referência que a precede, poucas páginas antes. Vejamos os
motivos. Conforme vimos, Nietzsche define a erudição como a cisão
do interno e do externo, conteúdo e forma; sobre isso se pauta a inventiva contra os alemães, que refutam “a forma” a favor do “conteúdo”:
esse é o “o célebre povo da interioridade” (HL/Co. Ext. II, 4, KSA
1.271). Aqui, por isso, o filósofo abordará a unidade dos alemães
e deverá compreender, antes ainda do significado político desta
expressão, “a unidade do espírito e vida alemães após a destruição
da oposição entre forma e conteúdo, entre interioridade e convenção”
(HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.271). Ora, neste momento Nietzsche não
faz mais que exortar os alemães a conformarem-se àquele ideal de
homem universal do Renascimento que Burckhardt havia forjado.
Burckhardt justamente desenvolve este conceito a partir da ideia de
individualidade. No italiano do Renascimento, ele afirma, “ergueu-se
o Subjetivo com pleno poder; o homem torna-se indivíduo espiritual
e reconhece-se enquanto tal7. In-dividuum significa precisamente
“não-dividido”, “não-cindido”. É difícil afirmar, prossegue Burckhardt mais à frente, se estas individualidades “tiveram diante de si o
ajuste harmônico de sua existência espiritual e exterior como meta
consciente e manifesta”, mas é verdade que “o ‘homem universal’,
l’uomo universale8“ “pertence exclusivamente à Itália”9. O modelo
deste homem universal é a figura do humanista, ao qual o “saber filológico deve servir, não apenas como hoje, ao conhecimento objetivo
da época clássica, mas a uma aplicação diária à vida real ”10. Que
7
10
8
9
BURCKHARDT, J. Die Kultur der Renaissance in Italien. Ein Versuch. In : Gesammelte
Werke. Basel : Schwabe,1955, v. III, p. 89.
Em italiano, no texto de Burckhardt.
Idem, ibidem, p. 93.
Idem, ibidem, p. 94.
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Gentile, C.
Nietzsche tome daqui o seu ideal de uma Historie que deve ‘servir à
vida’ é tanto provável quanto verossímil.
Em sua monografia sobre Nietzsche, Günter Figal observou
como a ideia nietzschiana de uma “força plástica de um homem,
de um povo, de uma civilização”, ou seja, a força “de transformar e
incorporar o passado e estranho” (HL/Co. Ext. II, 1), foi inteiramente
retomada pela Kultur der Renaissance, de Burckhardt11. Contudo, a
influência que essas noções exerceram sobre Nietzsche certamente
não se apresenta apenas no texto mencionado. Em geral, podemos
afirmar que o posicionamento de Burckhardt sobre o desenvolvimento do pensamento nietzschiano ainda não foi adequadamente
explorado, não obstante os freqüentes acenos à relação e ao legado
de amizade entre os dois. Andréa Bollinger e Franziska Trenkle
sublinharam recentemente como “o Burckhardt sóbrio e sereno,
muito mais voltado ao classicismo de Weimar que ao entusiasmo
(Stürmerei) romântico-tardio” representou para Nietzsche, “muito
além da época da Basiléia, a figura do ‘grande mestre’”12. Por outro
lado, Charles Andler, em seu tempo, pontuou a atenção sobre a proveniência burckhardtiana da ideia de Nietzsche acerca da origem
religiosa da poesia, especificando inclusive nisso uma das razões
que o fariam distanciar-se de Wagner. Andler sublinha o papel que
nisso teriam as lições (de) Burckhardt sobre história da cultura
grega e cujos testes, em duas diferentes versões, foram doadas a
Nietzsche – que sobre isso noticia Franz Overbeck numa carta de
30 de maio de 1875 – pelo aluno de Burckhardt Adolf Baumgartner
e pelo jovem aluno do próprio Nietzsche Louis Kelterborn13. Em
11
12
13
Cf. FIGAL, G. Nietzsche. Eine philosophische Einführung. Stuttgart: Reclam, 1999,
p.52-53.
BOLLINGER-F, A. Nietzsche in Basel. Basel: Schwabe, 2000, p.25.
ANDLER, C. Nietzsche. Sa vie et sa pensée. Paris : Gallimard, 1958, v. I, p.529 e segs.
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“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
todo caso, é possível reconstruir a influência das lições anteriores
a essa data. Sabemos, com certeza, que Nietzsche havia assistido
pessoalmente ao curso universitário Sobre o estudo histórico, que
Burckhardt oferece a partir do semestre de inverno de 1868-69 e
repetiu nos semestres sucessivos. Na introdução anônima (apesar
de ser atribuída provavelmente a Giorgio Colli) a uma das muitas
edições italianas desse texto, admite-se que “muitos pensamentos
essenciais de Nietzsche” já se encontram, ao menos em sua crua
idealização, no Burckhardt desse período, e, sobretudo, nas lições
Sobre o estudo histórico. Dentre esses pensamentos essenciais, o
autor enumera “o conceito de cultura, a importância do grande
indivíduo, a global interpretação da Grécia, e mesmo a ideia de
potência” 14 A respeito dos dois primeiros conceitos, é possível observar que – no capítulo intitulado Acerca da consideração histórica
da poesia, escrito por ocasião da última rodada do ciclo de lições e
que teve lugar no semestre de inverno de 1872-7315 – Burckhardt
relaciona estritamente os conceitos de cultura e de individualidade
com o conceito de estilo, definido como fusão de forma e conteúdo.
Ele parte da habitual consideração da crise da poesia moderna, que
nada pode ser senão “imitação, reminiscência”, enquanto na poesia
dos tempos remotos “o conteúdo e a forma necessária, rigorosa estão
intimamente ligados”. Por essa razão, “a poesia inteira constitui somente uma revelação nacional-religiosa; o espírito dos povos parece
falar-nos direta e objetivamente”. Essa objetividade, que assume a
forma da individualidade, corresponde, para Burckhardt, ao estilo:
“o estilo parece como algo dado, inseparavelmente misturado de
BURCKHARDT, J. “Introduzione a J. Burckhardt”. In: Sullo studio della
storia. Trad. M. Montinari. Torino: Boringhieri, 1958, p. 8.
Cf. GANZ, P. “Einleitung zu J. Burckhardt”. In : GANZ, P. (org.). Über das Studium
der Geschichte. München : Beck, 1982, p.48-49.
14
15
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Gentile, C.
conteúdo e forma”. E por isso, enfim, o desenvolvimento da poesia
procede “do âmbito universal do povo ao individual16.
Nesse ínterim, somente podemos apontar o fato de que Nietzsche
estava ocupado com a relação entre poesia popular e poesia individual
já na preleção da Basiléia de 28 de maio de 1869, intitulada ‘Homero
e a filologia clássica’ e, sucessivamente, no próprio Nascimento da
tragédia, e que exatamente essa relação foi um dos argumentos mais
duramente criticados por Wilamowitz na stroncatura da Filologia do
futuro! Além disso, é significativo que Burckhardt, naquele mesmo
último período de lições sobre a história, quis dedicar ao “amigo”
Nietzsche um reconhecimento que, na polêmica em questão, assume
o sentido de um ressarcimento. Ao tratar da origem do drama ático,
ele acena, de fato, para a “procedência misteriosa da tragédia ‘do
espírito da música’”. O uso das aspas não deixa dúvidas sobre sua intenção de citar expressamente o subtítulo da obra nietzschiana. Mas a
citação não termina assim. Logo depois, Burckhardt escreve: “O protagonista fica como um eco de Dioniso e todo o conteúdo permanece
somente mito”17: uma afirmação que revela um passo significativo,
também este duramente criticado por Wilamowitz, do Nascimento da
tragédia, no qual Nietzsche se baseava, ainda que tacitamente, na
História da literatura grega de Karl Otfried Müller18.
O estado das relações entre Burckhardt e Nietzsche é fundamentalmente aquele de fazer-nos supor que não só o primeiro influenciou
o segundo, mas talvez também o inverso. Ademais, para usar mais
uma vez as palavras atribuídas a Colli, “não é possível – nem nobre –
16
17
18
GANZ, P. “Einleitung zu J. Burckhardt”. In : GANZ, P. (org.). Über das Studium der
Geschichte. München : Beck, 1982, p. 287.
Idem, ibidem, p. 289.
Cf. GT/NT 10, KSA 1.71; K.O. Müller, Geschichte der griechischen Litteratur
bis auf die Zeitalter Alexanders, ampliado com observações e comentários de
E. Heitz, Stuttgart, Heitz, 18824, vol. I, p. 485.
66 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
determinar a intensidade da influência de um sobre o outro”19. O
que é certeza é que a frase de Nietzsche – “Os gregos aprenderam
aos poucos a organizar o caos” — assume, caso seja relida à luz das
considerações de Burckhardt, o seu sentido mais pleno. Organizando
o caos, os gregos tornaram-se um povo e uma cultura (Kultur) ; e
isso enquanto foram uma individualidade como nação (Nation) : vale
dizer, na medida em que conquistaram o seu estilo.
O lugar que, nessa definição de estilo, é ocupado pela noção de
caos, torna-se compreensível se o pensarmos, assim como Nietzsche
o pensa, no sentido anti-teleológico. Em 1873 – ano que precede
a Segunda consideração extemporânea – ele havia interrompido o
escrito A filosofia na época trágica dos gregos, que é concluída com
Anaxágoras e mesmo com palavras que remontam à noção de caos.
Segundo Nietzsche, Anaxágoras havia pensado que “de um caos
sempre mais misturado” se geraria, mediante “um movimento”, “a
ordem visível”. Anaxágoras, porém, nem atribuiu a esse movimento
um fim racional, nem o concebeu como um escopo racional. Desse
modo, tal movimento deverá ser pensado como uma “vontade absolutamente livre”, “sem finalidade”, “semelhante a um jogo de crianças
ou a um lúdico impulso artístico” (PHG/FT, 19).
Essas afirmações, juntamente com aquelas já vistas na relação
entre caos e cultura da Primeira extemporânea, convergem num
dos grandes conceitos da filosofia de Nietzsche: o grande estilo, que
tem mesmo nas observações sobre a unidade de estilo contidas na
Primeira extemporânea as próprias raízes. E nisso Burckhardt teria
ainda um lugar importante. Num fragmento da primavera de 1888
Nietzsche define o grande estilo nestes termos: “Assenhorear-se
do caos que se é, forçar seu caos a tomar forma”. Pouco depois,
19
BURCKHARDT, J. “Introduzione a J. Burckhardt”. In: Sullo studio della storia. Trad.
M. Montinari. Torino: Boringhieri, 1958, loc. cit.
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67
Gentile, C.
chama os homens capazes de grande estilo “homens violentos”
(Gewaltmenschen), e sucessivamente, maravilhando-se de que,
entre as artes, somente a música permanece livre do grande estilo,
indaga: “Jamais um músico construiu como aquele arquiteto que
criou o Palazzo Pitti?” (KSA, XIII, 14[61]). Como demonstram
dois fragmentos precedentes, tanto o termo Gewaltmensch quanto
a referência a Palazzo Pitti reconduzem a Burckhardt. No primeiro,
datado de Sils-Maria, 26 de agosto de 1881, Nietzsche cita diretamente o Cicerone de Burckhardt: “’afastar-se de tudo o que é belo e
agradável, como um homem violento, desprezador do mundo’ afirma
J. Burckhardt no Palazzo Pitti” (KSA IX, 11[197])20. No segundo,
da primavera de 1884, ele alude à ideia burckehardtana de subjetivo transfigurado em objetividade: “considerou-se ‘impessoal’,
o que era expressão das pessoas mais poderosas (J. Burckhardt
com instinto certeiro diante do Palazzo Pitti): ‘homem violento’
(Gewaltmensch)” (KSA X, 25[117]). Esse Gewaltmensch, que é,
concomitantemente, o homem de grande estilo e de vontade de
potência, tem os traços inconfundíveis do tirano renascentista – o
dominador violento (Gewaltherrscher) — abordado por Burckhardt
na primeira parte da Cultura do Renascimento, intitulada O Estado
como obra de arte, no qual o agir subjetivo e arbitrário do senhor
torna-se forma objetiva no Estado: “A ilegitimidade, envolta em
perigos duradouros, isola o dominador; a liga mais digna de respeito, que ele pode firmar com alguém, é com o talento espiritual
superior, sem consideração à origem”21.
Cf. BURCKHARDT, J. Der Cicerone. Eine Einleitung zum Genuss der Kunstwerke Italiens. In : Gesammelte Werke, Bd. IX, Basel, Schwabe, 1958, v. I., p. 149: «Perguntase, quem seria pois o homem violento desprezador do mundo, que, munido
desses meios, afastar-se-ia de tudo o que é meramente belo e agradável?”
BURCKHARDT, J. Die Kultur der Renaissance in Italien. Ein Versuch. In : Gesammelte
Werke. Basel : Schwabe,1955, v. III, p. 5.
20
21
68 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
Analisada dessa perspectiva, a Segunda consideração extemporânea, na qual Nietzsche e Burckhardt se encontram, confirma-se
como centro de irradiação das subsequentes temáticas nietzschianas nas quais a reflexão sobre a cultura, a moral, a arte e a
potência pode também ser analisada pelo fio condutor da presença
de Burckhardt.
Abstract: In the I and II Untimely Meditation Nietzsche defines the
concepts of Kultur, Bildung and Stil, that appear to be closely connected.
This connection must take place both in the single man and in a people.
Nietzsche has drawn the idea of a people as an individuality from the German neohumanism – in particular from W. von Humboldt. This influence,
nevertheless, was not direct, but mediated by Jacob Burckhardt and his
Kultur der Renaissance in Italien, that Nietzsche mentions explicitly in his
II Untimely Meditation. By applying this theoretical framework to Greek
culture, Nietzsche destroys the myth of its autochthonous character. Thus
proposing to his German contemporaries the model of a National culture
that continues to go back to Greece, but in a totally new manner.
Keywords: culture – style – history – chaos
referências bibliográficas
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2. BOLLINGER-F, A. Nietzsche in Basel. Basel: Schwabe,
2000.
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3. BURCKHARDT, J. Der Cicerone. Eine Einleitung zum
Genuss der Kunstwerke Italiens. In : Gesammelte Werke,
Bd. IX, Basel, Schwabe, 1958, v. I.
4.
. Die Kultur der Renaissance in Italien. Ein Versuch. In : Gesammelte Werke. Basel : Schwabe,1955,
v. III.
5. CRESCENZI, L. “Verzeichnis der von Nietzsche aus der
Universitätsbibliothek in Basel entliehnen Bücher
(1869-1879)”. In: Nietzsche-Studien, Berlim, Walter
de Gruyter, n. 23, 1994.
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Stuttgart: Reclam, 1999.
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(org.). Über das Studium der Geschichte. München :
Beck, 1982.
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die idealistische und historische Ansicht desselben
(1807) apud C. Menze. Bildung und Sprache: Paderborn, Schöningh, 1979
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Antichrist. Princeton: Princeton University Press,
1974.
10. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 19671978. 15 v.
11.
. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe
(KSAB). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1986.
8v.
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“Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”
12. SALAQUARDA, J. Studien zur Zweiten Unzeitgemässen
Betrachtung. In: Nietzsche-Studien, Berlim: Walter de
Gruyter, n. 13, 1984.
13. WINCKELMANN, J.J. “Geschichte der Kunst des
Altertums”. In: Ausgewählte Schriften und Briefe.
Wiesbaden: Dieterich’sche Verlagsbuchhandlung,
1948.
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71
“Was Alles Liebe genannt
wird” (“Tudo o que é chamado
de amor”): FW/GC 14, KSA
3.356 como exemplo de
exercício pré-genealógico*
Chiara Piazzesi**
Resumo: Tomando como ponto de partida a análise do aforismo 14 da Gaia
ciência, este artigo visa a indicar a maneira pela qual Nietzsche constitui
o procedimento genealógico.
Palavras-chave: amor – cobiça – moral – instinto – pré-genealogia.
O que nós amamos é nosso: porém, através do ansiar, privamonos a nós mesmos daquilo que amamos. (KSA 9.670, Nachlass/
FP 17[36])
Nesta contribuição proponho uma análise do geralmente pouco
comentado aforismo 14 da Gaia ciência1 que ponha em relevo as
características de “exercício pré-genealógico” de maneira coerente
*
**
1
Tradução de Carlos Augusto Sartori. Os fragmentos póstumos de Nietzsche foram
traduzidos por Eduardo Nasser.
Professora do Instituto de Filosofia da Universidade de Ernst-Moritz-Arndt, de
Greifswald.
De um reconhecimento do registro dos Nietzsche-Studien emerge, de maneira exemplar,
que o aforismo, em geral pouco citado, normalmente é lembrado sobretudo pela sua
conclusão sobre a amizade e não pelo seu exame do fenômeno amoroso.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
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Piazzesi, C.
com aquela tarefa de investigação filosófica que Nietzsche apresenta
e estabelece na abertura de sua obra, no parágrafo FW/GC 7:
Todas as espécies de paixões têm de ser examinadas individualmente, perseguidas através de tempos, povos, grandes e pequenos
indivíduos; toda a sua razão, todas as suas valorações e clarificações
das coisas devem ser trazidas à luz! Até o momento, nada daquilo que
deu colorido à existência teve história: se não, onde está uma história
do amor, da cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade? (FW/GC 7, KSA 3.378)2.
Recorro à expressão ‘exercício pré-genealógico’ porque, conforme o título “Tudo que é chamado de amor” (FW/GC 14, KSA 3.356),
ela opera a dissolução de uma unidade linguística aparentemente
não problemática (amor), revelando como o uso lingüístico não está
para a denotação da essência das coisas, mas responde na realidade
a necessidades e a estratégias que a transcendem. Colocar em relevo
essas estratégias de poder/potência que estão sob a superfície da
linguagem não dissolve apenas a solidez da linguagem, mas também
aquela da experiência que ela circunscreve e denota: é a própria
psicologia, e o sujeito que é portador dela, que deve ser posta em
discussão no momento no momento em que se submete um horizonte
de compreensão de si (Selbstverständnis) à crítica e relativização.
É Nietzsche mesmo, no prefácio de Genealogia da moral, que
legitima uma ampliação na sua intenção genealógica das suas
obras precedentes a partir de Humano, demasiado humano (MA I/
HH I), embora com uma relativa imaturidade na determinação do
2
São utilizadas as traduções de Rubens Rodrigues Torres Filho e de Paulo César
Souza para as traduções de passagens das obras de Nietzsche (Nota da Comissão
Editorial).
74 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
objetivo e da metodologia3. As questões-guia permanecem, porém,
fundamentalmente as mesmas: a constatação da nossa estranheza
em relação a nós mesmos justamente naqueles juízos e naquelas
categorias que nos são mais familiares, a análise das condições nas
quais se desenvolveram os valores que estruturam a nossa percepção
(moral) do mundo, a pergunta sobre seu próprio valor – o valor dos
valores –, sobre o seu efeito na própria vida e sobre a sua natureza
dos signos ou sintomas de certa forma de vida, etc. (GM/GM, Prefácio, 1-3, KSA 5.247).
Como referência geral, pode-se então assumir aqui a definição
dada por M. Saar da genealogia como “o projeto de uma relativização
tanto analítica quanto historicizante da potência e uma crítica da
autocompreensão e autorrelação contemporâneas”4 , que, segundo
o autor, ultrapassa nesse sentido também o contexto específico de A
gaia ciência e pode se referir a uma intenção mais geral do proceder
crítico nietzschiano.
Para conseguir trazer à luz esses intentos gerais graças ao exemplo de FW/GC 14, KSA 3.356, realizaremos, então, nesta contribuição: 1) uma análise do texto do aforismo e das suas características;
2) uma análise das intenções de ordem genealógico-crítica que o
atravessam e, sobretudo, que ele atua performativamente (servirnos-emos também de algumas referências à pesquisa sociológica
atual para contextualizar melhor a empresa nietzschiana); 3) um
reconhecimento dos resultados desta ação crítica e dos novos horizontes de experiência que ela abre.
3
4
“Foi então que, como disse, pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre origens
a que são dedicadas estas dissertações, de maneira canhestra, como seria o último
a negar, ainda sem liberdade, sem linguagem própria para essas coisas próprias, e
com recaídas e hesitações diversas” (GM/GM, Prefácio 4, KSA 5.251).
SAAR, M. Genealogie als Kritik. Frankfurt a.M.: Campus, 2007, p. 293.
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Piazzesi, C.
1. FW/GC 14, KSA 3.356: análise e interpretação do texto
Perigo da linguagem para a liberdade espiritual- Cada palavra
é um preconceito (WS/AS 55, KSA 2.403)
Analisemos as principais passagens do texto de FW/GC 14,
KSA 3.356.
O título introduz a tarefa da pesquisa5: Amor não é assumido
como denotação de qualquer coisa da qual dispomos de uma definição unívoca, mas como continente lingüístico (“genannt wird” no
qual se encontram muitas coisas, presumivelmente heterogêneas
(“was Alles”) Nietzsche especifica imediatamente a questão:
Cobiça e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas palavras em nós! – e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe
dois nomes; uma vez difamando do ponto de vista dos que já possuem,
nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua “posse”;
a outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso
glorificando como “bom”. (FW/GC 14, KSA 3.386).
Não apenas isso que em virtude da linguagem consideramos
unitário (amor) poderia ser, na realidade, uma multiplicidade de
coisas, mas também aquilo que, ainda em virtude da linguagem, consideramos diferente/dúplice (cobiça “contra” amor) poderia denotar,
na realidade, a mesma coisa, mais precisamente o mesmo impulso,
5
Numa anotação de 1880, Nietzsche estabelece precisamente: “Mostrar no amor
como um impulso é sentido, conforme se o louva e o censura, como bom ou mau (nos
gregos, nos ascetas cristãos, no casamento cristão etc.). Com isso toda idealização de
um impulso começa com o fato que ele é incluído entre as coisas louváveis” (KSA
9.332, Nachlass/FP 7[75]).
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“Was Alles Liebe genannt wird”
chamado por nomes diferentes e, assim, dado como coisas diferentes.
Primeiro ponto, então: uma dupla desmistificação linguística que
traz à tona o caráter performativo da linguagem.
O fenômeno tem também outra característica: a nomeação é determinada pela diferença de pontos de vista a partir dos quais se nomeia a coisa, o sentimento, a ação em questão. Daí, o segundo ponto:
a nomeação depende de uma intencionalidade, mais precisamente
de uma estratégia6 daquele que nomeia. Em outras palavras: a partir
de diferentes pressões estratégicas, em tempos diferentes, a relação
entre palavra e objeto denotado pode se modificar. Mas há também
outro ponto a salientar: Nietzsche escreve que “nos sentimos” de
maneira diferente nos confrontos das palavras. Terceiro ponto então:
de um lado, na aparente neutralidade da linguagem se escondem
valorações (morais), atribuições de valor, que podem variar no
tempo, nas épocas, nos lugares, nas relações entre pessoas e entre
grupos7; mas essas valorações se reinserem, por outro lado, na nossa
experiência psico-lingüística, o que significa que elas estruturam
não somente a linguagem, mas a nossa psicologia e portanto a nossa
6
7
O termo ‘estratégia’ não indica aqui exclusivamente cálculo racional e reflexivo, mas
mais amplamente uma “intencionalidade” característica, por assim dizer, das relações
de poder/potência. Segundo Foucault, uma “stratégie de pouvoir” é “l’ensemble des
moyens mis en œuvre pour faire fonctionner ou pour maintenir un dispositif de pouvoir”. Além disso, as relações de poder são sempre estratégicas enquanto “constituent
des modes d’action sur l’action possible, éventuelle, supposée des autres”. Enfim, se
é verdade que não há relação de poder sem “résistance”, “toute relation de pouvoir
implique donc, du moins de façon virtuelle, une stratégie de lutte” (FOUCAULT, M. “Le
sujet et le pouvoir”. In: Dits et écrits IV: 1980-1988. Paris: Gallimard, 1994, p.241).
“As palavras morais são as mesmas nas épocas mais diferentes de um povo: oposto
é o sentimento que, sempre em mudança, as acompanha quando são pronunciadas.
Cada época colore as mesmas velhas palavras de maneira nova: cada época coloca
em primeiro plano algumas dessas palavras” (KSA 9.680, Nachlass/FP 20[3]).
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77
Piazzesi, C.
experiência8 – e tudo isso se concentra nas diferentes maneiras de
“compreender” (verstehen, como por exemplo em FW 88 a respeito
da “verdade”). Este último ponto me parece central: sobre ele se
baseia a intenção terapêutica, característica do procedimento genealógico, que o aforismo me parece querer realizar. De maneira mais
geral, parece que foram assim explicitados os pressupostos teóricos
do discurso nietzschiano em FW/GC 14, KSA 3.356, a partir dos
quais de pode justificar uma caracterização do aforismo como um
exercício pré-genealógico [voltaremos adiante (§ 2)].
Sucessivamente, Nietzsche propõe interrogativamente ler os
mais diferentes tipos de amor como articulação da “cobiça” ou da
“ânsia de propriedade?:
8
É fundamental a referência ao “sentimento” com respeito à experiência conexa às
palavra alle parole e às relativas valorações que as palavras implicam. Na nossa reação a uma palavra ou a uma expressão, não se trata de uma operação imediatamente
conceitual, mas uma que se desenvolve antes de tudo no plano afetivo, da sensação
e da impressão. Para dizer melhor: os conceitos escondem valorações, imagens do
mundo e de si que os seres humanos cristalizam na linguagem, não são signos “arbitrários”, mas o fruto e o re-produzir-se contínuo de uma atividade, e portanto uma
maneira humana de ser. A alternativa entre conceito como puro arbítrio assumido
conforme convenção e conceito como tendo uma relação interna ontologicamente
necessária com a coisa denotada é desviante: entre essas duas concepções está uma
idéia do conceitual como precipitado de juízos, práticas, atividades (em suma, de
um wittgensteiniano “uso”), que são reativados no emprego do conceito e por isso
suscitam impressões, sentimentos, sensações, esperiências afetivas e imaginativas
de várias ordens em quem tem o que fazer com as ocorrências específicas desse emprego. Por outro lado, é, segundo Nietzsche, já apartir de uma atividade creativa de
ordem afetiva que as concreções lingüísticas nascem e recebem o seu colorido, que
depois funciona como orientação no uso do conceito. Tome-se a descrição da obra
“lingüístico-fundadora” – num sentido bem diferente daquele puramente conceitual:
trata-se de uma “poesia” – levada adiante pelos “pensantes-que-sentem” do (KSA
3.539, FW/GC 301).
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“Was Alles Liebe genannt wird”
Nosso amor ao próximo – não é ele uma ânsia por nova propriedade? E igualmente nosso amor ao saber, à verdade, e toda ânsia por
novidades?9 (FW/GC 14-17, KSA 3.386).
E digo que ele o propõe efetivamente, porque a essa formulação
interrogativa segue uma explicação que a transforma indiretamente
numa afirmação.
Esse monte faz encantadora e significativa a paisagem que domina: após haver dito isso muitas vezes para nós mesmos, somos de tal
forma insensatos e agradecidos para com ele, que acreditamos que,
proporcionando esse encanto, ele deve ser a coisa mais encantadora
da paisagem – e assim o escalamos e nos decepcionamos (FW/GC
15, KSA 3.386).
Todas as citadas formas de amor são então reconduzidas a um
desejo de posse, inexaurível porque é coincidente com a tensão em
direção a um prazer reflexivo (Lust an uns selber), que não parece
ser satisfeito definitivamente e, portanto, supera continuamente a
satisfação presente pela posse adquirida. O desejo da nova posse
de alguma coisa (ou da posse de alguma coisa de novo) é o desejo
de mudança, de modificação e de superação de si, e assim de uma
nova forma de prazer que se tira de si mesmo. Para esclarecer
aquilo a que Nietzsche se refere, vamos tentar sair do texto do
FW/GC 14, KSA 3.356 e procurar em outro lugar a chave dessa
fenomenologia da “cobiça”.
9
Em Ecce homo (Por que sou um destino 7), Nietzsche afirma diretamente a equivalência: “amor ao próximo é igual a vício pelo próximo” (EH/EH, Por que sou um destino
7, KSA 6.372).
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Piazzesi, C.
A palavra “cobiça” aparece pela primeira vez nas obras editadas
justamente no FW/GM 7, no qual Nietzsche deseja que seja escrita
a história de “was dem Dasein Farbe gegeben hat” – junto com a
“cobiça”, portanto, “amor”, “inveja”, “consciência” (Gewissen),
“piedade”, “crueldade”. A segunda vez em FW/GC 14, KSA 3.356
esclarece com um exemplo como essa história deve ser compreendida: não tanto como a busca das valorações morais “originárias”, por
assim dizer, que fixaram a definição (a essência) deste ou daquele
sentimento, mas mais, me parece, como a história das articulações
de subseqüentes sistemas de valoração moral, e com eles da experiência subjetiva que nos seus quadros pode de vez em quando ter
lugar. A questão não é tanto a definição de “cobiça” ou “amor”,
mas um quadro das reciprocidades, das legitimidades e dos espaços de significado, que, nas diferentes épocas (“através de tempos,
povos, grandes e pequenos indivíduos) (FW/GC 7, KSA 3.378), a
linguagem moral assinalou a um certo sentimento ou disposição em
relação polar – em “tensão” – com todos os outros, que ela especifica
contemporaneamente no quadro moral de referência (por exemplo:
“cobiça” contra “amor”).
Nos textos póstumos de 1881, Nietzsche liberta a “cobiça” da
sua qualificação moral negativa e a caracteriza como impulso natural por excelência, tendência à auto-afirmação, impulso propulsor
da vida humana10: reconhecendo o caráter fisiológico fundamental
10
Cf. a crítica ao darwinismo moral de Spencer, que deixa “das Böse” fora das
condições favoráveis à evolução humana: “mas o que seria do homem sem temor,
inveja, ganância! Ele não existiria mais: e quando se pensa no homem mais rico,
mais nobre, mais fecundo, sem maldade – pensa-se uma contradição” (KSA 9.457,
Nachlass/FP 11[43]). No fundo, está de fato que também as disposições que se dizem
altruístas são somente hierárquicas de impulsos, e portanto não “desinteressadas”
(KSA 9.461, Nachlass/FP 11[56]). Nessa concepção da luta entre impulsos, também
tem um papel nesse período a influência da leitura de W. Roux (cf. o comentário aos
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“Was Alles Liebe genannt wird”
desse impulso que tem o próprio “fim” em si mesma, no acréscimo
de si mesma, Nietzsche contesta a possibilidade mesma de impulsos
originariamente morais no homem. O aparecimento de disposições
propriamente morais é fruto de uma educação que estabelece as
prioridades na satisfação desse impulso elementar, e desse modo
imprime nela uma articulação11. Um discurso a parte, então, merecem a moral do sacrifício de si e a ilusão do altruísmo, que têm por
sua vez suas raízes no impulso de auto-afirmação, sobre as quais
voltaremos a seguir.
Também em JGB/BM 23 Nietzsche falará (em forma hipotética)
de uma “teoria do condicionamento mútuo dos impulsos ‘bons’ e
‘maus’”, que considera “os afetos de ódio, inveja, cupidez, ânsia de
domínio, como afetos que condicionam a vida , como algo que tem
de estar presente, por princípio e de modo essencial, na economia
global da vida, e em conseqüência deve ser realçado, se a vida é
para ser realçada” (JGB/BM 23, KSA 5.38). (i) “Cobiça”, assim
como “crueldade”, está então também na base da experiência que
percebemos e qualificamos como impessoais, destacadas, distantes
da passionalidade e da pessoalidade do desejo: no quadro da dissolução dessas ilusões moralistas se insere a qualificação nietzschiana
do conhecimento como paixão e a conseqüente relação direta entre
“cobiça” e “conhecimento”12. Também em FW/GC 14, KSA 3.356
a desmistificação lingüística da moralização da linguagem (e, portanto, do pensamento, dos afetos, da experiência) é operada através
11
12
fragmentos correspontentes em KSA 14.645; MÜLLER-LAUTER, W. “Der Organismus als innerer Kampf. Der Einfluß von Wilhelm Roux auf Friedrich Nietzsche”.
In: Nietzsche-Studien, n.7, 1978, p.189-223).
Veja-se, por exemplo, a metáfora do homem que na moral se trata como dividuum,
sacrificando um impulso por outro (KSA 2.76, MAI/HHI 57).
Cf. por exemplo FW/GC 242 e 249, KSA 3.514 e KSA 3.515 (com a relativa Vorstufe
KSA 9.619, Nachlass/FP 13[7]).
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
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Piazzesi, C.
de uma mudança para o plano dos impulsos, que justamente pela
articulação lingüística é por sua vez plasmada.
(ii) A “cobiça” age, relativamente à atividade teorética e afetiva
humana, também como força criativa de imaginação e de idealização. Numa anotação de 1881, Nietzsche formula a hipótese de que
todos os sentimentos morais podem ser reconduzidos à “querer-ter”
e “querer-manter” e dá uma chave para imaginar tanto a moralização do desejo de posse quanto a idealização que ele gera. Quanto
ao primeiro aspecto, a dificuldade real da posse total desejada de
alguma coisa ou de alguém força a rarefação do desejo, em direção
a uma contemplação distanciada e em direção de um deslocamento
da posse para uma posse imaginária: nesse sentido, o conhecimento
mesmo pode passar por desejo e representar “o último estágio da
moralidade”. Quanto ao segundo aspecto, essa tendência desenvolve um efeito de idealização do objeto desejado que é enriquecido
de modo que a representação da sua posse apareça ainda mais
atraente13 (“nós buscamos a filosofia que se adeque à nossa posse,
13
Nesta convergência de distanciamento e idealização se poderia procurar a chave
para ler a inscrição da forma do amour-passion por um lado – como forma de sujeição voluntária de si disposição à elevação de si e à potencialização de si através do
vínculo com a liberdade, que incrementa o estímulo em direção ao objeto desejado
e joga constantemente à superação de si – na moral aristocratica (KSA 5.208, JGB/
BM 260); por outro lado, porém, na moral cristã (KSA 5.110, JGB/BM 189), como
sublimação e rarefação do impulso sexual, que vêm, assim, junto, em parte desativado
na sua violência, em parte, porém, simplesmente reorientado em direção a um outro
investimento de impulsos que é, dizendo brevemente, aquele da continência moral
e da autodisciplina. Em ambos os casos o mecanismo e os efeitos são os mesmos – a
força do próprio impulso, desviada, torna-se força de autolimitação dos impulsos –,
diferente é o sistema moral de valoração no qual o procedimento se insere. Sobre o
procedimento basilar de autoplasmação como atividade fundamental do ponto de vista
antropológico, que Nietzsche analisa não apenas nesse contexto, cf. as interessantes
análises de P. Sloterdijk (Du mußt dein Leben ändern. Frankfurt a.M.: Suhrkamp,
2009, em particular p. 52 segs. e 521 segs.).
82 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
isto é, que a doure” (KSA 9.449, Nachlass/FP 11[19]). Para aquém
de qualquer valoração moral, amor e “benevolência” estão numa
relação de continuidade com “cobiça” e querer-possuir: o amor como
“estima e superestima de algo cuja posse é ambicionada”: “estima
de algo que se possui e que se quer conservar” (KSA 9.478, Nachlass/FP11[105]).
Nietzsche afirma, por um lado, que os sentimentos morais (e
as correspondentes ações) qualificados como altruístas não se diferenciam qualitativamente quanto a sua raiz nos impulsos daqueles
sentimentos (e correspondentes ações) que no sistema de referência
das valorações morais são opostos aos primeiros, qualificados como
egoístas, desencorajados e imorais14. Por outro lado, interroga-se
sobre a origem da idealização15 e da transfiguração que está na
base da oposição de valor em questão, que distingue e contrapõe
impulsos e sentimentos fundamentalmente aparentados: como se dá,
pergunta-se justamente em FW/GC 14, KSA 3.356, que a impulsos
e sentimentos fortemente auto-afirmativos seja negado o seu caráter fundamental e que eles sejam qualificados como não egoístas/
altruístas? (iii) Correspondentemente, em FW/GC 14, KSA 3.356
ocorre de fato que:
(i) O benfeitor e compassivo (Wohltätige und Mitleidige) é
desmascarado enquanto “interessado”, isto é, movido por impulsos
absolutamente não “morais”16 (= não altruístas):
14
15
16
Nietzsche cita na anotação 11[56] de 1881 (KSA 9.461 s.) “A cobiça do sentido
sexual, crueldade, sede de conquista etc.” e se refere ao “encanto” que lhe diz
respeito.
Ibid., Nietzsche emprega precisamente o verbo “idealizar”.
Como evidencia J. Salaquarda, que vê essa forma crítica como característica da Gaia
Ciência e cita explicitamente o exemplo do FW/GC 14, KSA 3.356, Nietzsche inicia em
substância já com MA I 1 a submeter sistematicamente as virtudes a este procedimento
analítico: “ao fazer da moral tradicional, com seus valores e virtudes fundamentais
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
83
Piazzesi, C.
Quando vemos alguém sofrer, aproveitamos com gosto a oportunidade que nos é oferecida para tomar posse desse alguém; é o que faz
o homem benfazejo e compassivo, que também chama de “amor” ao
desejo de uma nova posse que nele é avivado, e que nela tem prazer
semelhante ao de uma nova conquista iminente (FW/GC 14, KSA
3.386).
Como veremos, em FW 13 já tinha sido esclarecido como a “caridade”, ou exatamente como o machucar, não é outra coisa senão
exercício de potência (Macht) sobre o outro.
(ii) Como havia sido indicado também em Aurora (M/A 145)17, é
oferecida uma fenomenologia do amor entre os sexos como sede de
posse, violência e “egoísmo”, em contraste com a sua caracterização
moral positiva (FW/GC 32-387, 15, KSA 3.386);
(iii) Então, coloca-se a questão central, que revela o interesse
genealógico em jogo, transferindo o discurso ao horizonte dos “homens trabalhadores” de FW/GC 7 (“todas as espécies de paixões têm
de ser examinadas individualmente, perseguidas através de tempos,
povos, grandes e pequenos indivíduos; toda a sua razão, todas as
suas valorações e clarificações das coisas devem ser trazidas à luz!”)
(FW/GC 7, KSA 3.378):
17
o objeto central de sua análise, ele se esforçou por revelar os impulsos que neles se
expressavam. Virtudes (...) não são nada de originário e muito menos unitário. Elas
têm uma base nos impulsos que é variada e também, por vezes, díspare” (“Fröhliche
Wissenschaft zwischen Freigeisterei und neue ‚Lehre’”. In: Nietzsche-Studien, n. 26,
1997, p.175).
“Não-egoísta!” – Aquele está oco e quer ficar cheio, esse está repleto e quer esvaziarse – cada qual é impelido a buscar um indivíduo que sirva a seu propósito. E este
processo, entendido em sua mais alta acepção, é designado com uma só palavra nos
dois casos: amor – como? O amor deveria ser algo não-egoísta?” (M/A 145, KSA
3.137).
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“Was Alles Liebe genannt wird”
Então nos admiremos de que esta selvagem cobiça e injustiça do
amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas
as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como o oposto
do egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo (FW/
GC 14, KSA 3.387).
O exemplo do amor, justamente em virtude do amplo espectro
de ações morais que com o seu nome são denotadas (Was Alles Liebe
genannt wird), é provavelmente o melhor para indagar o alcance
desses fenômenos de idealização e moralização. É importante ter
presente que eles não estão entre si em relação hierárquica ou causal, no sentido em que um possa ser reconduzido ao outro, mas são
dois aspectos do processo de articulação discursiva do desejo que
na nossa civilização parece não ter tido lugar, até hoje, a não ser em
relação a distinções morais18.
O processo de idealização é inerente, como já foi apontado, à
estrutura intencional (e auto-referencial) do desejo mesmo enquanto
sede de posse e de conquista para acrescer o prazer consigo mesmo.
Por meio do enriquecimento e do embelezamento da imagem do
objeto desejado, o desejo incrementa a si mesmo, é estimulante de si
18
Como Sloterdijk (op. cit., p.194 e p.520) sugere, Nietzsche verossimilmente tem em
mente justamente a separação do potencial ascético autoafirmativo do homem (portanto, também dos processos de idealização) dos valores morais do qual ele extraiu
até hoje o seu próprio valor, quando afirma querer tornar a ascese novamente natural
para colocá-la a serviço de um incremento de força e de potência (cf. Nachlass
1887, 9[93], KSA 12.387). Veja-se sobre isso ABEL, G. Nietzsche: die Dynamik der
Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr. Berlin-N.Y.: Walter de Gruyter, 1984,
p.70. Permito-me remeter também a PIAZZESI, C. “Pour une nouvelle conception
du rapport entre théorie et pratique: la philologie comme éthique et méthodologie” .
In: Actes du Colloque International «L’art de bien lire». Nietzsche et la philologie.
Reims-Paris, 19-21 octobre 2006. Paris: Vrin, no prelo.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
85
Piazzesi, C.
mesmo através do efeito imediato da própria potencialidade criativa,
seja porque a posse ainda não foi concretizada19, seja porque ela já o
tenha sido. Quanto a esse segundo caso, Nietzsche vê na dificuldade
de possuir completamente outro indivíduo a possibilidade da duração do amor20: a perspectiva de novas descobertas serve de estímulo
para o desejo, sendo exatamente a isso que ele aspira – em FW/
GC 14, KSA 3.356: o desejo de novas transformações de si mesmo
através da posse, ou talvez ainda simplesmente a idéia do novo. Na
ordem da idealização como acréscimo do prazer de desejar e reiteração da satisfação do desejo, entra também o exceder-se do desejante
pelo bem do desejado. Em FW 13, onde se esboça uma fenomenologia
do sentimento de potência como prazer do controle e da posse que se
realiza na possibilidade de fazer o bem e o mal àquele sobre o qual
se exercita potência (bem-fazer, machucar), Nietzsche escreve:
Ao fazer bem e fazer mal a outros, exercitamos neles o nosso poder
(...). Fazemos bem e queremos bem àqueles que já dependem de nós
de alguma maneira (isto é, estão habituados a pensar em nós como
suas causas); queremos aumentar seu poder, pois assim aumentamos o
nosso, ou queremos mostrar-lhes a vantagem de estar em nosso poder
(FW/GC 13, KSA 3.384).
19
20
“Nós pensamos nas coisas que podemos alcançar de modo que sua posse nos aparece como altamente valiosa. Nós temos em primeiro lugar um cálculo aproximado
daquilo que podemos capturar- e assim a nossa fantasia se torna ativa, a fantasia de
tornar para nós extremamente valiosas essas futuras possessões (inclusive cargos
oficiais, honrarias, relações)” (KSA 9.449, Nachlass/FP 11[19]). Nietzsche fecha a
anotação citada com uma referência à reflexividade do desejo de posse na forma de
“dominação de si”.
Cf. KSA 9.609, Nachlass/FP 12[194]: “sempre se abrem novos fundos e áreas ocultas
da alma ainda não descobertos e também depois destes se estendem a infinita cobiça
do amor”
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“Was Alles Liebe genannt wird”
A idealização não diz mais respeito somente ao objeto que fica
cada vez mais, num certo sentido, no obscuro, mas à relação mesma
de dependência e de pertencimento recíproca, que, todavia, ainda
mira o acréscimo do desejo de posse e de prazer que dele deriva21.
Nesse ponto, parece-me, idealização e moralização se confundem,
e os possíveis mecanismos do processo de moralização vêm à tona
mais claramente. Pode-se falar, pelo bem-fazer, de idealização, porque ele não implica somente vantagem para aquele que dele recebe
os benefícios, mas também uma negação fundamental, uma ocultação dos movimentos efetivos do esforço que o desejante ou o amante
realiza para fazer bem ao amado. Essa negação estratégica exerce
uma importante função de mediação, de articulação da violência e
da cegueira do desejo, que eleva significativamente, para dizer como
Luhmann22, a possibilidade que a comunicação (amorosa) seja aceita
pelo outro. Ela é acompanhada, pode-se imaginar, também por uma
negação subjetiva: pela ilusão de estar fazendo efetivamente o bem
do outro por amor a ele – pelo amor do objeto de desejo, enriquecido
e ornamentado pelo desejo mesmo de todas as perfeições possíveis23
(que ele esquece de ter-lhe atribuído anteriormente)24.
21
22
23
24
Em FW/GC 118 se distingue até entre “impulso de apropriação” e “impulso de
sujeição” na relação do bem-querer, “conforme o mais forte ou o mais fraco sente o
bem-querer”, e FW/GC 119, KSA 3.476 esclarece como esse desejo de assimilar a
si o outro como função ou tornar-se função de um outro não tem fundamentalmente
nada a ver com o altruísmo.
Cf. em particular LUHMANN, N. Liebe als Passion. Frankfurt a.M.: Suhrkamp,
1982.
Talvez seja por isso que “o amor perdoa ao ser amado até o desejo” (FW/GC 62, KSA
3.425).
Um esquecimento similar poderia ser também a causa das desilusões que as mulheres
recebem do amor, estando porém elas mesmas na origem da idealização secular da
qual o amor tinha sido objeto: “A idrolatria que as mulheres têm pelo amor é, no
fundo e originalmente, uma invenção da inteligência, na medida em que, através das
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87
Piazzesi, C.
É extremamente provável que a referência fundamental da
concepção nietzschiana da idealização amorosa seja a stendhaliana cristallisation: em particular nos capítulos XI e XII de De
l’Amour (1822), Stendhal sublinhava como as perfeições imaginadas do objeto amado já constituem uma forma de satisfação do
desejo, que assume, na cristallisation, um andamento em parte
auto-referencial25.
O fenômeno de cristallisation se apresenta como uma atividade
do “espírito”, que podemos definir como idealização, e que reorganiza, na exaltação passional amorosa, toda a percepção e a visão do
mundo do enamorado. Todo detalhe que ele experiencia é reconduzido, graças à energia criativa, ao ativismo do impulso amoroso, ao
objeto amado, com uma operação (tal como a define Stendhal) que
transforma poeticamente, por assim dizer, tudo o que é vivido pelo
amante, e desse modo incrementa também o próprio desejo: nessa
circularidade, o desejo alimenta-se de si mesmo. Também, segundo
Stendhal, esse processo vai reconduzir-se, de fato, à estrutura mesma
do impulso, ao metabolismo do desejo: o fenômeno da cristallisation
“vient de la nature qui nous commande d’avoir du plaisir et qui nous
envoie le sang au cerveau, du sentiment que les plaisirs augmentent
25
idealizações do amor, elas aumentam seu poder e se apresentam mais desejáveis aos
olhos dos homens. Mas, tendo se habituado a essa superstimação do amor durante
séculos, aconteceu que elas caíram na própria rede e esqueceram tal origem. Hoje elas
são mais iludidas que os homens, e por isso sofrem mais com a desilusão que quase
invevitavelmente ocorre na vida de toda mulher – desde que ela tenha imaginação e
intelecto bastantes para ser iludida e desiludida” (MAI/HHI 415, KSA 2.274).
De l’amour é citado por Nietzsche em FW 84 e inequivocadamente tambem em FW
123. Para uma valoração do alcance criativo da cristallisation stendhaliana, em relação
à questão filosófica da relação entre amor e conhecimento, permito-me remeter a
PIAZZESI, C. Macht Liebe sehend? Versuch einer Umdeutung der angeblichen ‚Blindheiten’ der Liebe. Preisschriften des Forschungsinstituts für Philosophie Hannover
(no prelo).
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“Was Alles Liebe genannt wird”
avec les perfections de l’objet aimé, et de l’idée: elle est à moi”26.
Não somente a função da posse imaginada é de capital importância
para alimentar o desejo, mas ela faz parte, justamente, da dinâmica
interna do desejo, da sua fisiologia e não lhe é acrescido como acessório heterogêneo: o processo “espiritual” é parte da fisiologia do
amor-paixão. Ambos os aspectos são, como vimos, cruciais também
na análise de Nietzsche.
Stendhal sublinha, além disso, como desse complexo fenômeno de idealização é possível somente certo grau de civilização:
como uma descrição que lembra a análise de Norbert Elias sobre
a civilização como desenvolvimento da capacidade individual de
gestar mais (e mais longas) cadeias de ações e de representações
de uma só vez, ou seja, da capacidade de concentração de uma
atenção continuativa, Stendhal afirma que o “primitif” não tem
condições de ir além do primeiro grau, isto é, daquele de um prazer
por assim dizer instantâneo, que não se articula em nenhuma ressonância do espírito e da imaginação. Nesse nível, o que dá prazer
é a satisfação material do próprio prazer, e não a idéia que está
conectada a ela, com as conseqüentes dilações espaço-temporais,
os jogos de distância e enriquecimento ideal da satisfação geral
prometida. A possibilidade de incremento do desejo graças à projeção imaginativa, à antecipação e à dilação da satisfação, por sua
vez intensificadas pelo acúmulo das “perfections”, é a criatividade
específica do fenômeno amoroso-passional. É talvez nessa chave
que se pode ler a definição stendhaliana da beleza como “promesse
de bonheur”27.
26
27
STENDHAL. De l’amour. Paris: Garnier-Flammarion, 1965, cap. II, p.36. Para a
definição da cristallisation, cf. p. 35: “c’est l’opération de l’esprit, qui tire de tout ce
qui se présente la découverte que l’objet aimé a des nouvelles perfections”.
Cf. por exemplo De l’amour, op. cit., cap. XVII; ver também cap. XI, XVIII.
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89
Piazzesi, C.
Enfim, como Nietzsche, Stendhal sublinha como a alma tende a
cansar-se logo “de ce qui est uniforme” e até “du bonhuer parfait”,
e como, então, ela precisa de um contínuo acréscimo de estímulos
para a tensão, a fim de que ela permaneça concentrada no objeto
amado e a fim de que o desejo não diminua. Segundo Stendhal,
são “la crainte” e “le doute”, com o conseqüente oscilar do desejo
entre a satisfação imaginária e a imaginária frustração, que podem
exercitar essa força de motivação e intensificação. Assim se tem
uma segunda cristallisation que extrai intensidade justamente desse
jogo da imaginação com os dois êxitos opostos do desejo.28 Note-se
que, nessa intensa mobilidade do humor e consequentemente da
imagem de si, trata-se de qualquer modo de uma cadeia de representações, na qual os eventos concretos têm um papel relativamente
marginal.
Sem dúvida o contexto nietzschiano é mais articulado, por um
lado, porque adentra mais profundamente na análise do impulso
da “cobiça”, e, por outro, porque traz à luz a conexão entre os processos de idealização e os da moralização do aparato humano de
impulsos. Todavia, seja no caso de Nietzsche, seja no de Stendhal,
é claro o intento de examinar a articulação do “mundo interior”
humano a partir dos impulsos elementares e das dinâmicas da sua
satisfação.
Voltemos, agora, depois dessa digressão, às características da
idealização objetiva do fenômeno amoroso. Uma das fontes da mistificação altruísta do amor e do Wohltun bem-fazer de FW 13 poderia,
então, ser buscada numa falsa inferência causal a partir dos efeitos
que eles provocam: da efetividade da vantagem que o objeto amado
28
Ibidem, p.35. Sobre a relação entre plaisir e crainte cf. cap. LIX, p. 242; cap. XXXIII,
p.118; cap. XXXVI, p.127.
90 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
obtém desse usar-se do amante ou desejante pressupõe-se uma
intenção coerente com os seus efeitos. Assim, Nietzsche formula a
hipótese no caso do desinteresse que é atribuído ao heroísmo (“o
amor pela pátria, a fidelidade à ‘verdade’, a pesquisa etc.” venerado
como algo superior e mal-entendido na sua natureza passional29,
na realidade perigosa para os outros. Pode-se pressupor um processo análogo também no caso da “cobiça”, articulado e denotado
em sentido moral nas formas, citadas em FW/GC 14, KSA 3.356,
de “amor ao próximo”, “amor ao saber, à verdade” (viu-se como
Nietzsche sublinha na realidade o caráter passional do desejo de
conhecimento), “amor sexual” – mas se poderia estender também
ao amor paterno/materno, por exemplo30.
É preciso pensar, porém, para além desse plano mais superficial
e, por assim dizer, fenomênico, que essa interpretação do desejo e
do amor em chave altruísta encontra sustentação num sistema mais
amplo de valores ou de valorações, no interior do qual se insere
funcionalmente. Além disso, esse sistema de valorações e atribuições, por si arbitrário como qualquer atribuição, encontra a sua
legitimação numa configuração de poder e de reciprocidade – em
outras palavras, numa formação social. A rarefação e a idealização
subjetivas e objetivas do desejo, em outros termos, movem-se numa
direção conforme a articulação das paixões e dos impulsos no sentido
da mediação e da discursivização, que se torna necessária numa
comunidade que deve preservar a sua ordem interna: na direção
da regularização – através da incorporação da moral – dos comportamentos de cada um dos membros da comunidade, da criação e
da manutenção de um sistema de reciprocidade (deveres/direitos,
29
30
Cf. KSA 9.461, Nachlass/FP 11[56].
Nietzsche refere isso em MAI/HHI 57, em KSA 9.449, Nachlass/FP 11[19].
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91
Piazzesi, C.
legitimidade, etc.). A comunidade incentiva, junto a cada um dos
próprios membros, o controle de si, dos impulsos e do desejo, a fim
de mitigar o perigo que os impulsos de cada um representam para
os outros31.
A moralização dos impulsos é, então, muito mais do que a simples
mistificação moral delas: como indicado acima, é a energia dos impulsos de cada um dos indivíduos que vai ser aproveitada pela educação
e pela socialização para reorientar o investimento dos impulsos na forma de motivação a comportamentos conformes às normas que regulam
a interação na comunidade e a função do indivíduo no seu interior.
Nesse sentido, falei de articulação discursiva dos impulsos:
Portanto, é a natureza de instrumento que é louvada nas virtudes,
quando se faz o elogio delas, e também o impulso cego dominante
em cada virtude, que não é mantido nos limites pelo interesse geral
do indivíduo; em suma: a desrazão da virtude, mediante a qual o
indivíduo se deixa transformar numa função do todo (FW/GC 21,
KSA 3.392).
Através da motivação do reconhecimento social (“durch eine
Reihe von Reizen und Vortheilen”), pelo qual o sacrifício de si e
31
Esse fenômeno de diferenciação interna através da moralização das relações interpessoais – a moral da Nächstenliebe é a concretização mais explícita disso – sobrevém,
segundo Nietzsche, uma vez que a comunidade tenha se estabilizado em relação a
ameaças externas (JGB/BM 201, KSA 5.121). Pode-se ler nesse sentido a moral da
Nächstenliebe como uma evolução das lutas para a “imunização” [Immunsystemkämpfe], cuja história representa, segundo Sloterdijk, a totalidade da história humana
(SLOTERDIJK, P. Du mußt dein Leben ändern, op. cit., p.712). Análogo valor têm
nesse âmbito as religiões: a entidade e a qualidade diferente das ameaças, cujas
práticas de imunização de quando em quando devem responder, diferencia também
a orientação e o alcance das próprias práticas.
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“Was Alles Liebe genannt wird”
o altruísmo são louvados e recompensados, cada um é induzido a
investir numa elaboração da sua bagagem de impulsos no sentido
da mediação, da dilação da satisfação, da mitigação do desejo, etc.:
desse modo, ele incorpora uma “maneira de pensar e agir” que se
torna, por sua vez, “hábito, impulso e paixão”, e que o conduz a
descuidar da própria vantagem e a se tornar, por força de um processo de contínua auto-motivação sobre base de impulsos, “ingênua”
“função de conjunto”32. O que significa, todavia, que “o louvor do
desinteressado, abnegado, virtuoso (...) não nasceu do espírito do
desinteresse!”33 (Ibid.).
Que esse processo, nas suas várias estações e formas específicas, esteja na base de uma transformação efetiva da bagagem de
impulsos, e, portanto, da experiência de si e do mundo, resulta claramente de, por exemplo, FW/GC 47, KSA 3.412, no qual Nietzsche
escreve que o esforço por um refreamento da expressão comunicativa
das paixões acaba por modificar também as paixões mesmas, para
debilitando-as e transformando-as34. Nesse sentido – este é um
ponto importante também para a segunda parte da nossa análise
– a discursivização social do desejo se diferencia de um puro jogo
32
33
34
“Tendo êxito a educação, cada virtude do indivíduo torna-se uma utilidade pública
e uma desvantagem particular, conforme o supremo objetivo particular” (FW/GC 21,
KSA 3.393).
Seja em MAI/HHI 133, KSA 2.126 ou, de maneira mais rápida, em FW/GC 147,
KSA 3.98, Nietzsche reduz ao absurdo tanto a idéia de uma disposição universal ao
altruísmo quanto aquela de sua auspiciosidade: o louvor da selbstlose Liebe ou da
Menschenliebe, este é o ponto, é muito mais do que desinteressada.
“Se uma pessoa continuadamente proíbe a si mesma a expressão das paixões, como
sendo algo para naturezas ‘vulgares’, mais toscas, burguesas, camponesas – isto é,
não deseja reprimir as paixões mesmas, mas apenas sua linguagem e seus gestos -,
atinge, apesar de tudo, exatamente o que não deseja: a repressão das paixões mesma,
ou ao menos sua debilitação e transformação” (FW/GC 47, KSA 3.412).
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Piazzesi, C.
de atribuições lingüísticas porque comporta uma transformação da
psicologia e das categorias da experiência35.
De um lado, então, o estupor de Nietzsche para a idealização à
qual a “cobiça” do amor entre os sexos foi submetido é, por assim
dizer, estritamente retórico: ele tem a intenção de acentuar o caráter
surpreendente do óbvio, uma vez que ele é observado de uma ótica
crítica de ordem genealógica. A inversão das valorações dos impulsos e dos desejos, por exemplo, a interpretação da “cobiça” como
alguma coisa de anti-egoística, justamente o amor, se concretiza na
estruturação de uma experiência que, no esquecimento da própria
origem, é incapaz de perceber-se como relativa e como diminuída
(voltarei mais adiante).
Por outro lado, vê-se melhor o que está em jogo na questão do
“uso linguístico” que deixei até agora intencionalmente à parte.
Estes são os pontos do texto:
e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes;
uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele
alcançou alguma calma e que temem por sua “posse”; a outra vez do
ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como
“bom” (FW/GC 14, KSA 3.356).
Nisso, evidentemente, o uso linguístico foi determinado pelos que
não possuíam e desejavam – os quais sempre foram em maior número,
provavelmente (ibid.).
35
Em termos wittgensteinianos, o jogo linguístico repercute sobre a forma de vida de
onde surgiu e à qual imprime uma forma. Sobre o caráter ao mesmo tempo fundante
e dinâmico da relação entre forma de vida e signos comunicativos, veja-se também
ABEL, G. Zeichen der Wirklichkeit. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2004, particularmente
capítulo 4.
94 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
Os dois planos de nomeação não são homogêneos: um, o daqueles que determinaram o uso lingüístico (Sprachgebrauch), contém
uma mistificação (o egoísmo da sede da posse idealizado como
amor); o outro, reflete um estado de coisas (chama, por assim dizer,
as coisas pelo “nome”). Essa diferença pode ser reconduzida aos
aspectos recém expostos da idealização: junto aos já detentores, a
violência do impulso é momentaneamente sedada e aparecem as
condições para uma distância que favorece a reflexividade e até a
desvalorização do impulso.
O Sprachgebrauch estabelecido e remontado não tem em si
nada de surpreendente. A surpresa que Nietzsche, como se viu,
exprime heuristicamente, pode ser suscitada pelo olhar portador da
intenção genealógica que se pergunta como as coisas se tornaram
aquilo que não são/aparecem, historicizando e, assim, dissolvendo
a “naturalidade” delas. O tratamento histórico-lingüístico ao qual
serão submetidos, em A gaia ciência, bem, mal, castigo, consciência, etc., ainda falta em FW/GC 14, KSA 3.356, mas os pressuposto
teóricos e a moldura são, parece-me, claramente reconhecíveis,
também em FW/GC 7: confronte-se, nesse sentido, a declaração
das intenções de FW/GC 7 e o seu exemplar desenvolvimento em
FW/GC 14, KSA 3.356 com a nota no final da primeira dissertação
da Genealogia da moral.
Antes de retomar esse ponto no próximo parágrafo, uma palavra
sobre o fechamento do aforismo. Nietzsche desloca-se do amor, revelado como encontro e improvável como diálogo estruturado entre
impulsos e desejos cegos, para a amizade vista como “continuação”
do amor – e, por sua vez, como forma de amor – mas ao mesmo tempo
como deslocamento do fogo da paixão amorosa: cada um dos companheiros concentra agora a própria “cobiça” e o próprio “desejo”
não diretamente sobre o outro, mas sobre um ideal comum, que se
torna aspiração de ambos, a ambos superordenado, segundo a tradicional, aristotélica concepção da philia. Essa oposição, que indica
uma estrada alternativa à moralização do desejo para mitigar-lhe a
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Piazzesi, C.
violência, a sede de posse e curar-lhe a cegueira auto e heterolesiva,
aparece regularmente nos textos nietzschianos36.
2. A intenção genealógica de FW/GC 14, KSA 3.356.
Une sorte de pólemos concerne déjà l’appropriation de la langue. (J. Derrida, Force de loi)
Gostaria agora de tentar pôr em evidência as intenções analíticocríticas – quase sempre implícitas – e os pressupostos de FW/GC
14, KSA 3.356 que permitem olhar o aforismo como um exercício
preparatório para uma prestação genealógica.
a. a desmistificação lingüística / dissolução da unidade lingüística. O “uso lingüístico” é revelado, por meio de um ataque
estritamente lingüístico à aparência (tudo que é chamado de amor)
na sua não neutralidade a respeito daquilo que ele nomeia: a.1) a
linguagem é performativa, isto é, tem uma influência sobre aquilo que exprime e denota e sobre quem por seu meio exprime e
denota (dizer “amor” ou dizer “cobiça” orienta a experiência do
36
Quanto à contraposição entre amor dos sexos e amizade, cf. M/A 503, KSA 3.295, mas
também FW/GA 60, KSA 3.366 traz o mesmo tema da periculosidade da excessiva
vizinhança feminina, como também FW/GC 363, KSA 3.610 . Poder-se-ia ver na
amizade precisamente um passo ulterior da idealização e, portanto, da rarefação do
amor, no sentido da autocrítica da disposição amorosa que se reconhece na própria
cegueira e tenta fazer-se óbvia. Agradeço Silvio Pfeuffer por ter chamado a minha
atenção para este ponto. Como sugeriu Olivier Ponton, além disso, poder-se-ia ler a
“Sternen-Freundschaft” de FW/GC 279, KSA 3.523, por sua vez, como a superação
da circunstância concreta da separação por meio de um ideal ulterior.
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“Was Alles Liebe genannt wird”
sentimento); por um lado, a.2) o uso lingüístico – e, portanto, a sua
performatividade – depende de intenções estratégicas subjacentes
às determinações lingüísticas, isto é, não é neutro a respeito de
dinâmicas de poder (as intenções determinam o “uso lingüístico”);
por outro lado, a.3) na aparente neutralidade do uso lingüístico se
escondem valorações morais, ligadas a essas dinâmicas de poder,
que, em virtude de a.1, influenciam moralisticamente a experiência
subjetiva conexa ao uso lingüístico em questão (que, por exemplo,
se considere o amor um sentimento altruísta).
b. A dissolução ou desmistificação lingüística implica também
b.1) uma dissolução da experiência subjetiva e da relativa psicologia
(em virtude de a.1 e a.2), bem como b.2) uma crítica dos seus pressupostos moralísticos (em virtude de a.3). Poder-se-ia definir este
ponto como intenção terapêutica do proceder crítico-genealógico
(voltarei a isso também nas conclusões, § 3).
c. Um esboço de diagnóstico da alma “moderna”: são trazidas à
luz, se não propriamente as contradições psicológicas e fisiológicas
geradas pelo uso lingüístico e pelas valorações conexas, pelo menos
algumas das causas do seu aparecimento. A experiência do amor é
ligada a uma dessas contradições fundamentais: nela convive, em
diversos níveis, uma multiplicidade de impulsos e uma multiplicidade de valorações opostas às mesmas, etc.
Esses três aspectos estão evidentemente conectados de modo
íntimo e são eficazes de maneira simultânea.
Quanto a a.1 e a.2, a discussão da não neutralidade do “uso
linguístico” em relação à experiência e às concorrências de poder
que definem as relações sociais não se inicia em FW/GC 14, KSA
3.356. O andarilho e sua sombra, em que a problemática lingüística
tem um peso notável, discute no aforismo 5 a ligação entre imposições de um “uso linguístico”e determinações de experiências e
valorações correspondentes, e também contradições da experiência
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Piazzesi, C.
subjetiva causadas por ele (voltarei a esse ponto em c). Coerentemente, FW/GC 58 afirma:
Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforço: compreender que importa muito mais como as coisas se chamam
do que aquilo que são. A reputação, o nome e a aparência, o peso e
a medida habituais de uma coisa, o modo como é vista quase sempre
uma arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre as coisa
como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza e mesmo à sua
pele -, mediante a crença que as pessoas neles tiveram, incrementada
de geração em geração, gradualmente se enraizaram e encravaram na
coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo: a aparência
inicail termina quase sempre por tornar-se essência e atua como essência! (FW/GC 58, KSA 3.422).
Mais especificamente, em M/A 38 Nietzsche mostrava como a
matéria de impulsos, por si só inarticulada e inerte a respeito das
diferenças de valor, obtém a sua forma antes de tudo através de um
juízo de valor que lhe interessa: um impulso (Trieb) recebe uma
valoração moral em uma determinada configuração social (por meio
do elogio e da culpa), isto é, recebe um caráter e um nome, que,
veiculando um juízo de valor, não são neutros. Essa valoração social
é incorporada singularmente e se articula como experiência subjetiva da boa ou má consciência (gutes/böses Gewissen) a respeito do
impulso mesmo: a “sensação concomitante de prazer ou desprazer”,
que por si só não pertence ao instinto, é o correspondente subjetivo
da sanção social – uma autossansão (é esta a função da Gewissen).
O valor de uma pulsão, nesse sentido, não é determinado absolutamente, mas no âmbito de um sistema de valorações morais: assim ela
se desenvolve num sentimento e, portanto, numa palavra de quando
em quando diferente (Feigheit/Demuth) conforme o sistema de valores históricos no qual a sua valoração se insere ou do valor social
98 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
que recebem aqueles que são portadores dele37. As atribuições, que
criam as polaridades morais não somente entre conceitos, mas entre
os indivíduos e suas ações, estão conectadas com posições sociais
e estratégias de poder.
A atribuição de um nome transforma o impulso, enquanto já
contém um juízo moral (M/A 38, KSA 3.45) e transforma então a
experiência de si que se associa ao manifestar-se do próprio impulso.
. O uso lingüístico, em outros termos, faz aquilo que diz: portador de
uma distinção de valor, ele é uma performance social e psicológica,
isto é, uma tomada de posição num contexto de valor, e não somente
a neutralidade nua ou o arbítrio ingênuo da convenção lingüística. O
arbítrio do signo, assim como o discurso, não é em si nem ingênuo,
nem inocente.
Como sublinha Foucault, então, por um lado, a idéia de uma
continuidade absoluta, de uma coerência própria do discurso é, em
si, parte da mistificação a dissolver: “o” discurso é na realidade
uma série de “eventos discursivos”, correspondente aos atos de
apropriação estratégica que o colonizam com valorizações e com
intenções de legitimação de determinadas posições. Por outro lado,
justamente nesse sentido, as determinações lingüísticas traçam
espaços de legitimidade e ilegitimidade, de inclusão e exclusão.
Nem tudo pode ser dito, nem todos os “eventos discursivos” são
igualmente prováveis ou possíveis38. No caso da oposição de que
se fala em FW/GC 14, KSA 3.356, é, por exemplo, dificilmente
pensável que a experiência e a expressão de “cobiça” e “amor”,
37
38
“Em si, como todo instinto, ele não possui isto nem um caráter e denominação moral,
nem mesmo uma determinada sensação concomitante de prazer e desprazer: adquire
tudo isso, como sua segunda natureza, apenas quando entra em relação com instintos
já batizados de bons e maus, ou é notado como atributo de seres que já foram moralmente avalidados e estabelecidos pelo povo” (M/A 38, KSA 3.45).
FOUCAULT, M. L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971, p.53.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
99
Piazzesi, C.
embora articulações da própria matéria de impulsos, tenham a
mesma legitimidade e sejam submetidos às mesmas condições de
possibilidade: sobre uma pende uma ordenação moral, a outra é
encorajada socialmente e é reconhecida como sentimento moral –
e isto em virtude dos diferentes nomes que são atribuídos a elas.
A batalha pela determinação do “uso lingüístico” é a batalha pelo
reconhecimento e pela afirmação de uma interpretação das coisas
favoráveis a certa forma de vida: assim, a definição de heresia –
que Nietzsche vê como um sinal de Aufklärung – enquanto heresia
por parte dos religiosos não é convenção lingüística neutra, mas
veicula um enegrecimento, uma desvalorização (FW/GC 23, KSA
3.357) e, portanto, define um espaço de exclusão, de ilegitimidade
de discurso. O esquecimento das motivações originárias que confere
um fundamento místico de memória montaignana e pascaliana aos
valores morais (WS/AS 40, KSA 2.398) mistifica também o discurso
correspondente como absoluto, isto é, não dependente de condições
específicas de possibilidade. A dissolução dessa continuidade não
almeja restituir às coisas o seu valor originário, “mistificado” por
apropriações indébitas, mas almeja mostrar que esse contínuo
trabalho de interpretação e valoração é aquilo que unicamente nos
permite um acesso às coisas39 (por exemplo, aos nossos impulsos).
Chegamos com isso também ao ponto a.3 e consequentemente
a b. Segundo Nietzsche, a eticidade “embrutece” (algo como o pascaliano abêtir), isto é, ela impede o surgir de “melhores costumes”
(M/A 19, KSA 3.32).
39
Ibidem, p. 55: “Ne pas s’imaginer que le monde tourne vers nous un visage lisible que
nous n’aurions plus qu’à déchiffrer; il n’est pas complice de notre connaissance; il n’y
a pas de providence prédiscursive qui le dispose en notre paveur. Il faut concevoir le
discours come une violence que nous faisons aux choses, en tout cas comme pratique
que nous leur imposons”.
100 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
As valorações morais – expressas na linguagem – não se colocam
mais no plano de hipotéticas valorações de vantagem e utilidade,
que presumivelmente guiaram a experiência humana inicial das
coisas. Os juízos de valor se interpõem entre nós e as coisas de tal
modo a nos tornar cegos a respeito de suas genealogias: eles são a
articulação mesma da experiência que das coisas nos é consentida.
Novos costumes não podem surgir porque aqueles que temos não
têm o caráter de escolhas funcionais, de clara derivação estratégica
e passíveis de melhores alternativas, quanto de valores absolutos
auto-referenciais. Como os óculos wittgensteinianos do ideal40, os
óculos das nossas categorias de experiência nos são totalmente
naturais, e não há nenhuma razão pela qual possa surgir a idéia de
tirá-los: não podemos nos dar conta de que as coisas poderiam ser
de outra maneira, porque toda a nossa experiência de nós mesmos
e da nossa compreensão de nós mesmos repousa sobre essas categorias incorporadas. É essa auto-refencialidade imperturbada do
esquecimento que o trabalho do tipo genealógico, como é o caso do
exercício de FW/GC 14, se empenha a romper41. Por isso a crítica
40
41
WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen. Kritisch-genetische Edition.
Organizado por Joachim Schulte e Zusammenarbeit mit Heikki Nyman, Eike von
Savigny und George Henrik von Wright. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 2001, § 103.
Como sublinha também N. Elias, não há possibilidade de um acesso mnemônico aos
estados precedentes daquilo que ele define como a “Wendeltreppe des Bewusstsein”
(ELIAS, N. “Die Gesellschaft der Individuen”. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt
a.M.: Suhrkamp, 2001, v.10, p. 144): somente passando pela reconstrução histórica
(e histórico-crítica) pode pôr o sujeito diante do seu caráter, problematizando aquilo
que é óbvio. Cf. também SAAR, M. Genealogie als Kritik, op. cit., cap. 3 e 7 em
particular. Sobre a ligação das formas de escritura filosófica nietzschianas e essa
operação de derrapagem da percepção ordinária, radicada na linguagem ordinária,
cf. WOTLING, P. ‘“Comment pourrais-je écrire pour des lecteurs?’ La spécificité de
l’écriture philosophique chez Nietzsche”. In: DENAT, C. (org.). Au-delà des textes.
La question de l’écriture philosophique. Reims: Presses de l’Université de Reims,
2007, p.151-166.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
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Piazzesi, C.
do “uso lingüístico” implica a crítica a uma forma de subjetividade,
que se realiza como procedimento terapêutico.
A experiência subjetiva “ingênua”, que autor e leitor – enquanto pertencentes a uma mesma comunidade moral, por assim
dizer – compartilham, é rompida pela sua relativização e pela
desmistificação da sua inocência: o olhar crítico-genealógico traz
à luz a aliança entre uso lingüístico, experiência que ele estrutura,
esquecimento da sua historicidade e arbitrariedade, mistificação
da função estratégica que ele desenvolve na dinâmica de poder.
Seguindo a experiência de desmistificação operada em FW/GC 14,
KSA 3.356 não é mais possível uma experiência ingênua do amor: a
argumentação nietzschiana inicia uma desconfiança, antes de tudo
em relação às palavras, depois em relação às nossa Empfindungen
nos confrontos das palavras, consequentemente em relação ao nosso
horizonte de experiência daquilo que elas denotam – o que significa, de fato, uma desconfiança em relação a nós mesmos, do sujeito
nos confrontos daquilo que acontece sobre seu terreno. Através da
passagem da dissolução do óbvio por meio da sua relativização, de
fato, a crítica nietzschiana fornece ao sujeito um ponto de vista de
auto-estranhamento e, nesse sentido, necessariamente auto-crítico,
porque toma como objeto próprio aquelas categorias ou aqueles
valores sobre os quais se funda a possibilidade subjetiva de autorepresentação e compreensão42. Se o exercício crítico não tivesse
esse alcance, se não pusesse em discussão alguma coisa de crucial,
não se desencadeariam nos seus confrontos aquelas resistências
psicológico-afetivas das quais Nietzsche fala seja em JGB/BM 23,
KSA 5.38, a propósito da já citada “Lehre von der Ableitbarkeit aller
42
Cf. SAAR, M. Genealogie als Kritik, op. cit., p.106.
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“Was Alles Liebe genannt wird”
guten Triebe aus den schlimmen”43, seja já muito antes em MAI/
HHI 107, KSA 2.103 a propósito da «Lehre von der völligen Unverantwortlichkeit des Menschen»44: abandonar um ponto de vista,
nesse âmbito crítico, significa rediscutir isso que aparecia mais que
indiscutível, isto é, tornar conscientes as condições de possibilidade
da própria imagem e experiência de si mesmos.
Essa é a dupla valência analítica e terapêutica da intervenção
genealógica que se desenvolve na consciência do fato que o esquecimento, ao qual é sujeito o caráter adquirido de interpretação de cada
interpretação, é complementar à própria violência que na interpretação não apenas se afirma, mas se institui. No fazer-se ordem das
coisas, e correpondentemente das percepções subjetivas das coisas,
no legitimar-se enquanto ordem do discurso, cada interpretação
exerce a violência que é intrínseca à sua própria raiz de vontade ou
de desejo de potência, posse, apropriação. A violência fundadora,
que se instituiu, não se reitera abertamente como evento em cada
ocorrência destruidora, mas enquanto “invisível” violência que conserva, já que se replica na forma, na ordem das coisas: a linguagem
e a subjetividade correspondentes espelham e reiteram essa ordem
“naturalizada”, cuja arbitrariedade violenta e cujo caráter adquirido são enfim dispersos no esquecimento. A eficácia da genealogia,
43
44
“Uma autêntica fisio-psicologia tem de lutar com resistências inconscientes no coração
do investigador, tem ‘o coração’ contra si: já um a teoria do condicionamento mútuo
dos impulsos ‘bons’ e ‘mau’ desperta,c omo uma mais sutil imoralidade, aversão e
desgosto numa consciênia ainda forte e animada – e mais ainda uma teoria na qual
os impulsos bons derivem dos maus” (JGB/BM 23, KSA 5.38).
“A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga
que o homem do conhecimento tem de engolir, se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade. Todas as suas avaliações,
distinções, aversões, são assim desvalorizadas e se tornam falsas: seu sentimento mais
profundo, que ele dispensava ao sofredor, ao herói, baseava-se num erro” (MAI/HHI
107, KSA 2.103).
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103
Piazzesi, C.
assim como a da desconstrução45, depende da consciência desse
processo necessário, consciência que, se honestamente conduzida,
implica também a crítica genealógica ou a desconstrução no mesmo
destino dos seus objetos de análise. Voltarei no final sobre isso.
O auto-estranhamento consiste, sobretudo, e com isso introduzo
o último ponto (c), em mostrar quantos e quais valorações, juízos,
etc., herdados e adquiridos se escondem sob a superfície da nossa
representação das nossas experiências e sob as categorias da nossa
psicologia46 (um exemplo disso também é FW/GC 335, KSA 3.560).
E como algumas dessas valorações incorporadas coexistentes estão
em contradição entre si. Em O caso Wagner e depois em O crepúsculo
dos ídolos, Nietzsche define a modernidade como autocontradição
fisiológica47:
Mas todos nós carregamos, sem o saber e contra nossa vontade,
valores, palavras, fórmulas, morais de procedências contrárias – somos
falsos, psicologicamente considerados... Um diagnóstico da alma moderna – por onde começaria ele? Por uma resoluta incisão nesta contradição instintiva, pelo desvendamento de seus valores opostos, pela
vivissecção do caso mais instrutivo (WA/CW Epílogo, KSA 6.53).
45
46
47
Cf. em particular DERRIDA, J. Force de loi. Paris: Galilée, 1994, p.32: “l’opération
qui revient à fonder, à inaugurer, à justifier le droit, à faire la loi, consisterait en un
coup de force, en une violence performative et donc interprétative qui en elle-même
n’est ni juste ni injuste et qu’aucune justice, aucun droit préalable et antérieurement
fondateur, aucune fondation préexistante, par définition, ne pourrait ni garantir ni
contredir ou invalider”. Veja também § 3.
Sobre essa temática, veja WOTLING, P. La pensée du sous-sol. Paris: Allia, 1999.
“Os instintos contradizem-se, irritam-se, dizimam-se entre si; já defini o moderno
como a autocontradição fisiológica” (GD/CI, Inscursões de um extemporâneo, 41,
KSA 6.143).
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“Was Alles Liebe genannt wird”
Parece que o tratamento de FW/GC 14, KSA 3.356 se insere em
uma ótica análoga, ainda que com as devidas diferenças de contexto
e de elaboração. Nietzsche empreende uma forma de “diagnóstico”
da subjetividade: começando pelos dados fenomênicos (as nossas
Empfindungen com respeito a essa ou àquela palavra, isto é, as
nossas reações espontâneas em contexto de discurso), ele mostra
como eles são sintomas da convivência e da interação em nós mesmos de valores, juízos incorporados e correspondentes palavras,
que têm origens, histórias, intenções diferentes, que correspondem
a diversos estados de sedimentação da subjetividade ocidental.
As observações de Nietzsche, direcionadas a trazer clareza ao
“uso lingüístico”, a oferecer a esse uso uma maior clareza (como
“amor” indica uma série de experiências heterogêneas; como “cobiça” e “amor” são arbitrariamente contrapostos, etc.), pretendem
mais profundamente mostrar as articulações da nossa psicologia e
fisiologia que são invisíveis ao olhar “natural”, imediato da introspecção ou da reflexividade subjetiva – justamente porque ele não
tem à disposição outras categorias a não ser aquelas sobre as quais
deveria voltar o olhar.48 A incoerência, a complexidade, o caráter
48
E nesse sentido perpetua, junto com aquelas categorias que não pode deixar de
empregar, também as relações de domínio às quais elas são funcionai. Como revela
Bourdieu, essa autoreferencialidade das categorias e dos juízos à disposição, no
contexto de uma relação de domínio ou de poder, é o vínculo cognitivo e afetivo
que torna extremamente improvável, se não impossível, uma rediscussão da própria
relação: “la violence symbolique s’institue par l’intermédiaire de l’adhésion que le
dominé ne peut pas ne pas accorder au dominant (donc à la domination) lorsqu’il ne
dispose, pour le penser et pour se penser ou, mieux, pour penser sa relation avec lui,
que d’instruments de connaissance qu’il a en commun avec lui et qui, n’étant que la
forme incorporée de la relation de domination, font apparaître cette relation comme
naturelle; ou, en d’autres termes, lorsque les schèmes qu’il met en œuvre pour se
percevoir et s’apprécier, ou pour s’apercevoir et apprécier les dominants […] sont le
produit de l’incorporation des classements, ainsi naturalisés, dont son être social est
le produit” (BOURDIEU, P. La domination masculine. Paris: Seuil 1998, p.41).
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 105
Piazzesi, C.
adquirido e sobretudo não neutro a respeito das valorações morais,
que Nietzsche esclarece em relação aos usos lingüísticos, inserem
em primeira instância na subjetividade e na psicologia do leitor ao
qual a descrição é voltada.
O procedimento, através do qual Nietzsche diagnostica as contradições e as incoerências da experiência do amor na sociedade
ocidental, implica, então, uma tomada de consciência das próprias
resistências à tomada de consciência, a interrupção da relação
“natural” com a própria experiência, uma distância autocrítica, um
exercício de suspeita – Misstrauen.
Exemplos de contradições similares, em particular no que diz
respeito à experiência amorosa, são notados também pela literatura
sociológica recente sobre o assunto. A análise das interações e das
relações amorosas mostra freqüentemente a emergência nos sujeitos, nas práticas comunicativas e relacionais, de representações
divergentes e opostas ligadas a palavras, situações, experiências,
compreensão de si e do outro. A definição consciente e reflexiva que
estamos em posição de dar a uma situação entra muitas vezes em
conflito com os juízos e as valorações incorporadas do qual somos
portadores inconscientes, e que emergem em contato com situações
que ali aparecem novamente. Assim J.-C. Kaufmann, numa pesquisa
sobre dinâmicas e a construção da identidade de casal no contexto
doméstico (divisão e desenvolvimento dos trabalhos de casa, em
particular a lavanderia), mostra como as posições abertamente negociadas de simetria e não discriminação convivem na maior parte
dos casos com uma bagagem de valores, juízos, modelos e esquemas
de comportamento incorporados, que nelas interferem e tornam a
comunicação contraditória, a interação afetiva problemática.49
49
Cf. KAUFMANN, J.-C. La trame conjugale. Analyse du couple par son linge. Paris:
Nathan, 1992, por exemplo p.53: “Comme si nous portions en nous-mêmes un capital
106 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
A análogas considerações chega E. Illoux, numa pesquisa sobre a função do consumo de bens e de contextos “românticos” na
construção e na articulação das relações íntimas: à frente de uma
difusão e de uma comercialização nas sociedades ocidentais do
ideal do amor romântico, ao qual fazem referência comportamentos
sociais e escolhas de consumo dos agentes sociais, os mesmos exprimem, todavia, interrogados sobre o valor daquele ideal mesmo,
uma diferença crescente ou um destaque irônico nos seus confrontos. Confrontados com diversas narrativas de uma história de amor,
os sujeitos entrevistados com um capital cultural maior tendem a
tomar distância da narrativa mais impregnada de ideal romântico,
considerando-o uma base incerta e não confiável para a construção
de uma relação (um ideal concorrente é aquele do amor como trabalho para a relação); por outro lado, porém, da auto-narração que os
mesmos sujeitos fornecem resulta que o ideal romântico permanece
um ponto de referência da interação e da imaginação amorosa.50.
Essas instâncias contraditórias, porque frutos de diferentes
contextos de socialização e aprendizagem, ainda que permaneçam
na maior parte invisíveis ou não problemáticas para a consciência
reflexiva, repercutem todavia sobre a experiência concreta de relações, interações, sentimentos, etc.
50
dormant, constitué de schémas de manières susceptibles à tout instant d’être réactivées
(ou de servir de référence en vue d’’inventer’ de nouvelles pratiques adaptées à une
situation donnée). Cet héritage passif, secrètement sédimenté hors de la mémoire
consciente, hors des interactions sociales et hors des habitudes constituées, peut ne
jamais se révéler ou au contraire apparaître au grand jour, parfois brusquement, à la
faveur des circonstances propices”.
Cf. ILLOUZ, E. Der Konsum der Romantik. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2007, p.199:
“das heißt, dass das am weitesten verbreitete und am vollständigsten kodifizierte Liebesmodell nicht dasjenige ist, von dem man auch glaubt, es sei am erfolgreichsten”.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 107
Piazzesi, C.
3. Resultados: novos horizontes de nomeação criativa
Em que você acredita?- Nisto: que o peso de todas as coisas
deve ser determinado de uma nova maneira. (FW/GC 269, KSA
3.519)
Contra uma pesquisa da essência e da definição universal,
o procedimento nietzschiano quer acrescentar a quantidade das
perspectivas em jogo e das suas conexões: FW/GC 14, KSA 3.356
não chega a um acordo clarificador sobre aquilo que o amor é, mas
dissolve a superfície da unidade lingüística e as mistificações conexas (por exemplo, a contraposição “cobiça-amor”), deixando ao fim
o leitor com um punhado de desconstruções críticas, de possibilidades, privado dos instrumentos costumeiros de classificação dos
fenômenos e de valoração da experiência.
Justamente em virtude da já citada “cansativa” descoberta e
consciência, segundo a qual os nomes das coisas – e as genealogias
desses nomes – determinam para nós a essência delas, Nietzsche
afirma que seria uma loucura crer que se pode aniquilar essa
aparência (“die als wesenhaft geltende Welt”) remete à hipotética
origem (Ursprung), ao ponto no qual a “verdadeira” essência das
coisas foi mascarada com o arbítrio da nomeação. A única destruição possível da ilusão da linguagem é uma dissolução criativa:
“Nur als Schaffende können wir vernichten!” – isto é, a destruição
por meio da linguagem. A posição construtiva nietzschiana, pela
qual “basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para a
longo prazo, criar novas “coisas” (FW/GC 58, KSA 3.422), é fruto
da assimilação da consciência crítica do fato de que a estratificação
de interpretações e nomeações são a única realidade à disposição,
que elas constituem o mundo e a relativa subjetividade. É o fruto,
em suma, da interiorização não somente do perspectivismo, mas
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“Was Alles Liebe genannt wird”
da certeza da sua cardinalidade epistemológica e existencial, por
assim dizer.
A dissolução da mitologia da linguagem e das valorações morais
a que ela remonta abre, então, ao sujeito um horizonte criativo de
outro modo insuspeito: oferece-lhe a tomada de consciência, absolutamente desestabilizante, de que é sem dúvida possível e legítimo
imaginar o mundo de outra maneira, “criá-lo” diferentemente. Uma
vez posta à luz a arbitrariedade e a historicidade dos juízos morais
e das palavras que os veiculam, mostra-se que eles toleram alternativas, e que o modo correto de liberar-se da prisão da sua mitologia
é superá-los por meio de uma nova interpretação, impor a eles uma
nova aparência. Essa posição se insere no contexto da progressiva
estetização do conhecimento e, assim, da vida mesma, que, como
mostra Marco Brusotti, caracteriza a reflexão nietzschiana a partir
da FW/GM51.
O conhecimento, e com ele a investigação de ordem genealógica,
que revela como as coisas foram sempre novamente “tingidas” e
receberam assim um rosto diferente (FW/GC 152, KSA 3.495), não
assume o objetivo da descoberta ou da redescoberta de uma verdade
positiva, originária, universal, mas oferece a consciência – que é
antes de tudo uma questão ética do conhecimento – de que a idéia
mesma de tal verdade é funcional a determinadas estratégias e a
determinados processos de formação social. Os “investigadores da
verdade”, que representam justamente em virtude do poder crítico
deles, um perigo para a “lei da concordância” (FW/GC 76, KSA
3.431) que os homens lenta e cansativamente estabeleceram para
dar ordem à vida social e à comunicação, ameaçam assim a ordem
mesma das relações e das legitimidades.Modificar, como o homem
51
BRUSOTTI, M. Die Leidenschaft der Erkenntnis. Berlin: Walter de Gruyter, 1997,
p.454.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 109
Piazzesi, C.
do conhecimento faz, a imagem das coisas, conferir-lhes novas cores
e um novo rosto, significa antes de tudo transgredir um interdito
relativo ao discurso: pôr em discussão os confins da legitimidade,
as fronteiras de exclusão e de inclusão do discurso autorizado (por
exemplo, sobre o amor como disposição moral), deslocar a atenção
sobre as suas condições de possibilidade e portanto revogar-lhes a
sua absoluta autoridade moral, social e política.
Se a genealogia traz à luz os processos e o advir histórico e desenvolve, nesse sentido, uma função crítica por assim dizer geral, Nietzsche parece, todavia, ter clara noção, como FW/GC 14 a meu ver mostra
perfeitamente, de que a ação crítica deve desenvolver-se também e,
sobretudo, sobre outro plano, isto é, aquele do início da discussão
singular, junto ao sujeito destinatário da comunicação filosófica, com
a qual o sujeito mesmo deve, em certa medida, colaborar.
Esse respectivo “terapêutico” da história dos juízos e das valorações morais me parece vir claramente à luz em FW/GC 335, KSA
3.560, no qual Nietzsche convida a empregá-la como instrumento da
consciência intelectual contra a autorreferencialidade e a segurança
da consciência moral. O fim desse movimento auto-crítico (“die Reinigung unserer Meinungen und Werthschätzungen”) é também, nesse
contexto, a aquisição da capacidade de criar (“die Schöpfung neuer
eigener Gütertafeln”), no caso específico de formar a si mesmo:
Portanto, limitemo-nos a depurar nossas opiniões e valorações e a criar
novas tábuas de valores (...). Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que
somos – os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que
riam a si mesmos! E para isso temos de nos tornar os melhores aprendizes
e descobridores de tudo o que é normativo e necessário no mundo: temos
de ser físicos, para podermos ser criadores neste sentido – enquanto até
agora todos os ideais e valorações foram construídos com base na ignorância da física ou em contradição a ela (FW/GC 335, KSA 3.563).
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“Was Alles Liebe genannt wird”
A lição que se retira de FW/GC 14, KSA 3.356 é que cada
definição de um fenômeno espelha certa constelação moral, social,
cultural, histórica, e o êxito da concorrência entre diversas pressões
para impor-lhe uma interpretação. Que o conhecimento, conduzido
com método genealógico, oferece, com essa consciência, a possibilidade de um empreendimento auto-crítico do sujeito que recebe
a comunicação. Que essa transformação da experiência deve ter a
forma de uma assunção de responsabilidade, por assim dizer, isto é
de uma autoformação e de uma complementar superação de si. Esse
é o efeito terapêutico que, além de seu efeito diagnóstico em virtude dele, o conhecimento e a crítica genealógica podem exercitar,
enquanto espaços de autorreflexão não de um indivíduo somente,
mas da inteira civilização que se encontra sedimentada em cada
um dos leitores.
Parece-me haver nesse sentido uma ligação com a belíssima
descrição, traçada por Derrida, da crítica desconstrutiva como assunção de responsabilidade nos confrontos da memória da história52
vista como seqüências de interpretações, valores, normas que permanecem pela crítica legíveis. A responsabilidade e, no sentido de
Derrida, a justiça da crítica genealógica consiste no saber ler bem os
rastros que essas interpretações deixam; mas também, acrescentaria
apoiando-me em parte no próprio Derrida, no seu inserir-se conscientemente a cada ocorrência como uma delas, na sua seqüência
e sedimentação: o justo proceder genealógico é aquele capaz de
desconstrução, de crítica, de genealogia e, portanto, de autodes-
52
DERRIDA, J. op. cit., p.44: a déconstruction mostra“le sens de responsabilité sans
limite, et donc nécessairement excessive, incalculable, devant la mémoire; et donc
la tâche de rappeler l’histoire, l’origine et le sens, donc les limites des concepts de
justice, de loi et de droit, des valeurs, normes, prescriptions qui s’y sont imposées et
sédimentées, restant dès lors plus ou moins lisibles ou présupposées”.
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111
Piazzesi, C.
construção, de autocrítica, de autogenealogia. E essa capacidade
já é contemplada, como mostra, por exemplo, JGB/BM 22, na idéia
nietzschiana de perspectivismo, na filosofia trágica dionisíaca, na
própria hipótese de vontade de potência. Esse retorno reflexivo da
subjetividade crítica, que põe em questão as próprias condições de
possibilidade, é uma tomada de posição de profunda eticidade: por
isso falei de uma assunção de responsabilidade do leitor no quadro
da genealogia nietzschiana, que não se dá como um saber universal
e transmissível, mas como o método da consciência intelectual, isto
é, como posição essencialmente autocrítica. Sem esse horizonte de
autotransformação, a genealogia trairia em certa medida os pressupostos da sua ação53.
Abstract: Taking as point of departure the analysis of aphorism 14 of
Gay Science, this paper aims at discussing how Nietzsche establishes the
genealogy.
Keywords: love – lust – moral – instinct – pre-genealogy.
53
J. BUTLER chamou justamente atenção ao caráter constitutivo da capacidade do sujeito
de incorporar a violência– como interdito, lei, ordem, etc. – e de reiterá-la autonomamente nos confrontos de si mesmo. A subjetivação é, nesse sentido, como Foucault
já havia esclarecido, um assujeitamento produtivo, em certa medida criativo. Assim,
segundo Butler, é essa mesma conivência ativa do sujeito com a ordem das coisas e da
linguagem, com os esquemas de assujeitamento e, portanto, com as circunstâncias da
própria submissão, que representam as condições de possibilidade de toda autocrítica e
de todo empenho de liberação. Fora dessa participação ativa, não se daria subjetividade
e, portanto, nem crítica. Talvez seja em virtude dessa consciência que Nietzsche vê a
possibilidade de um novo início, por sua vez, como operação disciplinar (ascética, de
elevação, etc.) e, sobretudo, como tendo lugar em certa medida graças aos próprios
instrumentos críticos que se põem em discussão (a moral que se autocritica pela moralidade) (cf. The Psychic Life of Power. Theories in Subjection. Stanford: Stanford U.P.,
1997, em particular a Introdução e os capítulos 2 e 3).
112 | cadernos Nietzsche 27, 2010
“Was Alles Liebe genannt wird”
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“Was Alles Liebe genannt wird”
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La question de l’écriture philosophique. Reims: Presses
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115
Nietzsche, pensador
da modernidade
Vincenzo Di Matteo*
Resumo: O texto visa a identificar e compreender algumas perspectivas
nietzschianas sobre a modernidade ocidental. O título “pensador” da
modernidade quer destacar o fato de que suas análises não se limitam
a uma crítica meramente destrutiva dos valores predominante da e na
modernidade, mas apontam para uma proposta terapêutica das patologias culturais diagnosticadas. Para análise e compreensão das idéias de
Nietzsche, será privilegiado o livro Genealogia da moral. No final, uma
avaliação pessoal da validade e dos limites do pensamento nietzschiano
sobre a modernidade.
Palavras-chave: Nietzsche – modernidade – niilismo – cultura
Introdução
Se há um tema, em Nietzsche, que interessa a todos nós, que nos
denominamos pós-modernos, é sem duvida sua visão de modernidade. Não é sem fundamento que Habermas o considera a “plataforma
giratória” na entrada da pós-modernidade.1 Servindo-nos de outra
metáfora, podemos comparar Nietzsche à figura romana de Jano bifronte, a divindade dos limites. Em nosso caso, um pensador que demarca os confins da modernidade e de nossa contemporaneidade.
*
1
Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
HABERMAS, J. “Entrada na pós-modernidade: Nietzsche como plataforma giratória”.
In: O discurso filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
117
Di Matteo, V.
É discutível se a modernidade esgotou o seu ciclo ou se estamos
ainda dentro de seus parâmetros. Parece pacífico, porém, que não
estamos mais vivendo do otimismo da Ilustração, graças também às
inquietantes análises daquele que se autodefiniu um “derrubador
de ídolos”. (EH/EH, Prólogo §2, KSA 6.258).
Como, porém, interpretá-lo se, ao mesmo tempo em que nos diz:
“Ouçam-me! [...] Sobretudo não me confundam” (EH/EH, Prólogo 1,
KSA 6.258),2 nos convida a nos afastarmos dele porque “Retribui-se
mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno”? (EH/EH,
Prólogo 4, KSA 6.260).
O primeiro problema que se coloca para nós, portanto, é como
ouvi-lo, não confundi-lo e ao mesmo tempo deixar de ser aluno.
Como entender, por exemplo, um pensamento desconcertante na
medida em que Nietzsche, ao derrubar os “ídolos”, os “ideais” da
modernidade, parece colocar-se na contramão de muitos valores
que consideramos conquistas do Ocidente, mesmo que ainda
parciais, tais como democracia, igualitarismo, solidariedade,
compaixão, emancipação da mulher, direitos humanos, dos povos,
das minorias. Como, de fato, entender certas posições nietzschianas relativas ao que hoje chamamos de excluídos e que em sua
linguagem são nomeados de “malogrados, atrofiados, amargurados, envenenados, doentios, exaustos, consumidos”? (GM/GM, I,
11, KSA 5.277). Como preferir o advento de tribunais de guerra
àqueles de paz? (Cf. GM/GM, III, 25, KSA 5.403). Poderíamos
justificar uma “hermenêutica da inocência”, isso é uma leitura
apolítica de Nietzsche, que teria prevalecido entre seus estudiosos
ligados à filosofia ou deveríamos denunciá-la em nome de uma
2
Todas as palavras destacadas em itálico no decorrer das citações e no corpo do texto
são de responsabilidade de Nietzsche, razão pela qual nos dispensamos de assinalar
o fato toda vez que isso ocorrer.
118 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche, pensador da modernidade
contextualização histórica?3. Seria Nietzsche o teórico ou ideólogo
do radicalismo aristocrático em detrimento dos milhões de pessoas
desafortunadas ou decadentes, um pensador mais radical e político
do que o próprio Marx e que deveria ser considerado antes de tudo
como totus politicus, o maior pensador entre os reacionários e o
maior reacionário entre os pensadores?4. Ou essa interpretação
estaria equivocada porque a crítica nietzschiana se alimentaria
da mesma raiz da Ilustração, isso é, da “idéia essencialmente
emancipatória de retirar o homem dos grilhões da superstição e da
ignorância, sobretudo em relação a sua própria natureza”?5.
Se nenhuma interpretação é inocente, não significa necessariamente que todas sejam culpadas. Penso que, fundamentalmente,
todas elas, mais do que inocentar ou culpabilizar Nietzsche, visam
a compreender alguns paradoxos que perpassam um pensamento
polêmico e complexo, inclusive pela estratégia retórica de sua filosofia, onde “[...] as máscaras, a pele, a superfície desempenham um
papel fundamental”6.
Nossa interpretação parte de duas opções, que espero que não
sejam arbitrárias. Primeiro: pensar as críticas nietzschianas da
modernidade a partir da Genealogia da moral por tratar-se de uma
obra na qual deságuam temas e problemas de importantes obras
3
4
5
6
LOSURDO, D. Nietzsche: o rebelde aristocrata: biografia intelectual e balanço crítico.
Trad. Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Revan, 2009, p.1019-20. A primeira edição
italiana é de 2002 (Nietzsche il ribelle aristocratico. Biografia intellettuale e bilancio
critico. Torino: Bollati Boringhieri, 2002).
Id., ibid., p.837.
GIACOIA Jr., O. Esclarecimento (per)verso: Nietzsche à sombra da ilustração. Aurora,
Curitiba, v.20, n.27, jul./dez. 2008, p. 245.
Id. A genealogia dos preconceitos. Caderno Mais! Folha de São Paulo, 6.8.2000.
p.3-5. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0608200004.htm.
Acesso em: 13.12.2008.
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119
Di Matteo, V.
anteriores: Humano, demasiado humano, Aurora e Para além do
bem e mal, mas também onde se anunciam os temas da decadência
e do niilismo de imensa importância para as obras seguintes: O
crepúsculo dos ídolos, O anticristo e Ecce homo.
Segundo: das três chaves de leitura para interpretar a Genealogia – a genealógica, a filológica e a psicológica, que engloba
necessariamente aquela fisiológica e médica, – vou privilegiar esta
última por várias razões, seja para levar a sério o próprio Nietzsche
que resume as três dissertações de que se compõe o livro a uma psicologia do cristianismo, da consciência e do sacerdote (Cf. EH/EH,
Genealogia da moral, KSA 6.353), seja por julgá-la imprescindível
quando se trata de pensar o “valor” e determinar a “hierarquia dos
valores” (Cf. GM/GM, I, 17, KSA 5.289), seja porque, no texto em
exame, se encontram inúmeros significantes de natureza «bio-psicoédicas» que legitimam a própria auto-compreensão nietzschiana de
“psicólogo” e “médico da cultura”.
Por essas razões, penso que não seja improcedente se utilizar
dessa chave psicológica e clínica para articular as críticas dirigidas à modernidade com o diagnóstico e prognóstico das patologias
próprias do homem moderno. Evidentemente, ouvir o mestre e não
procurar confundi-lo é difícil porque a Genealogia é um livro “polêmico” como o subtítulo evidencia, “um aforismo que pede milhares
de linhas de interpretação”7, mais arriscado ainda é deixar de ser
aluno e pensar com ele, mas também contra ele e se possível além
dele. No entanto, é o que tentaremos realizar cientes da precariedade
desta primeira “ruminação” de um livro que certamente não pode
ser lido com a pressa do homem moderno (Cf. GM/GM, Prólogo 8,
KSA 5.256).
7
SOUZA, P. C. Posfácio. In: NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 172.
120 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche, pensador da modernidade
1. Pensando com Nietzsche
O que me proponho, inicialmente, é “pensar a modernidade
com Nietzsche”. Pode-se objetar que, na Genealogia da Moral, o
termo “modernidade” não aparece nenhuma vez. No entanto, está
presente em várias passagens em sua forma adjetivada, moderno(s)
ou moderna(s), em termos espaciais como Europa e suas formas de
adjetivação, na enumeração de eventos que claramente marcaram
a modernidade européia ou germânica, nos numerosos pensadores
modernos com os quais Nietzsche dialoga ou polemiza, sem contar
com inúmeros significantes marcadamente temporais (hoje, ainda
hoje, também hoje, hoje em dia, em época mais recente...), que mostram como o discurso nietzschiano sobre a genealogia da moral diz
respeito não apenas tangencialmente, mas tematicamente também
ao que geralmente é considerada a modernidade tardia. Mais do que
um período histórico bem recortado no tempo e abordado segundo
os critérios da ciência histórica, trata-se da modernidade cultural, a
qual, a despeito da interpretação orgulhosa dos homens modernos,
que a consideraram uma ruptura com o mundo dos antigos, é vista
por Nietzsche mais como continuação de uma história que perdura
e até declina.
O genealogista, filólogo e psicólogo procede a uma espécie de
anamnese desse homem moderno ao situar sua crítica à cultura
numa história de longa duração, colocando sob julgamento mais de
dois mil anos. Uma crítica que parte da escola socrático-platônica,
passa pelos judeus, por Jesus Cristo, Lutero, a Reforma, a Revolução Francesa para chegar à democracia e às primeiras tentativas
modernas de implantar o socialismo. Em linhas gerais, é percebida
como uma historia de um niilismo que se radicaliza ao nos descrever
o processo evolutivo pelo qual o animal humano se torna gradativamente um animal que pode fazer promessas, um ser de consciência
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
121
Di Matteo, V.
moral, um animal doente pelo surgimento da consciência de culpa,
um animal culpado e ressentido por um ideal ascético culpabilizador
e negador da vida.
Dentro dessa perspectiva, “os modernos” não representam para
Nietzsche uma descontinuidade positiva em relação aos “antigos”
e, sim, uma decadência e um agravamento de suas patologias, cujos
sintomas detecta e descreve.
1.1 Os sintomas culturais e seu diagnóstico
O termo sintoma não possui na Genealogia um significado
necessariamente pejorativo. A moral, por exemplo, é um sintoma
que pode ser tanto veneno como remédio. (Cf. GM/GM, Prólogo
6, KSA 5.253). Habitualmente, porém, é entendido como algo
que “deixa entrever, o que se esconde nele, sob ele, por trás dele,
aquilo de que é a expressão provisória, indistinta, carregada de
interrogações e mal-entendidos” (GM/GM, III, 23, KSA 5.395).
No caso do sintoma do ideal ascético, o que interessa a Nietzsche
não é tanto mostrar o que ele realizou, mas o que ele significou
e, nesse sentido, não poupou seus leitores de dar “uma olhada na
imensidão de seus efeitos, também de seus efeitos funestos” (GM/
GM, III, 23, KSA 5.395).
Entre esses efeitos funestos presentes na modernidade se destacam alguns que passamos a enumerar, iniciando dos mais gerais aos
particulares e singulares, daqueles que se abatem sobre a terra toda,
passando por aqueles que atingem a cultura em geral (a decadência),
a moral (a dor da ‘alma’) até chegarmos aos fisiológicos (os corporais)
igualmente valorizados por Nietzsche, mesmo continuando a se
considerar “o mais rigoroso adversário do materialismo” (Cf. GM/
GM, III, 16, KSA 5.377).
122 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche, pensador da modernidade
1.1.1 A “estrela ascética” e os sintomas culturais da modernidade
Quanto ao sintoma mais genérico, Nietzsche nos oferece uma
imagem plasticamente bonita, mas curiosa. Vista do alto, a terra
pareceria uma estrela ascética repleta de “criaturas descontentes,
arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um profundo
desgosto de si, da terra, de toda vida e que a si mesmas infligem o
máximo de dor possível, por prazer de infligir dor – provavelmente
seu único prazer” (GM/GM, III, 11, KSA 5.362).
Essa metáfora é emblemática. A Terra, um planeta sem luz
própria, é promovido a ‘estrela’, um astro luminoso, mas doente.
Uma pandemia se alastrou gradativamente sobre ela, recobrindo-a
do Oriente ao Ocidente. O mal geral tem vários nomes, como ‘ideal
ascético’, ‘niilismo’, mas o que o caracteriza, seja qual for o nome
que lhe dermos, é o menosprezo deste mundo e desta da vida em
troca de uma supervalorização do culto ao nada e de um céu metafísico vazio. Nietzsche vê no alastramento progressivo da moral da
compaixão, inclusive entre os filósofos na figura de Schopenhauer,
um novo tipo de budismo, um budismo europeu, “o mais inquietante
sintoma dessa nossa inquietante cultura européia [...]” (GM/GM,
“Prólogo”, 5, KSA 5.252).
Os vários outros sintomas presentes na cultura moderna em
geral, Nietzsche os identifica a partir do que poderíamos chamar de
uma tríplice hermenêutica de que se utiliza em suas análises: a da
arrogância, da inocência e da suspeita.
1.1.2 A hermenêutica da arrogância: a hýbris do homem moderno
De que se orgulha, afinal, “todo nosso ser moderno”? (GM/
GM, III, 9, KSA 5.357). Nietzsche sabe que o homem moderno
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123
Di Matteo, V.
tem consciência de seu poder, mas não hesita em aproximá-lo da
hýbris grega.
Hýbris é hoje nossa atitude para com a natureza com a ajuda das
máquinas e da tão irrefletida inventividade dos engenheiros e técnicos; hýbris é nossa atitude para com Deus, quero dizer para com uma
presumível aranha de propósito e moralidade por trás da grande tela e
teia da causalidade [...]; hýbris é nossa atitude para com nós mesmos,
pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer
com nenhum animal [...] (GM/GM, III, 9, KSA 5.357).
Esse poder e orgulho do homem moderno são situados em três
registros: o técnico-científico, o religioso-moral, o psicológico-fisiológico. No primeiro, é possível identificar os avanços científicos
tecnológicos que permitiram a primeira revolução industrial. No
segundo, o trabalho da razão esclarecida que, progressivamente,
foi desmistificando o Deus da revelação e da filosofia, minando
a hipótese de uma teia de “aranha universal” que dava unidade
causal e uma ordem moral ao universo. No terceiro, a violência
de experimentações ousadas contra nós mesmos a ponto de ser
doente ou tornar-se doente é mais interessante do que estar são e
curar alguém.
1.1.3. A hermenêutica da inocência: o placebo do homem moderno
Com esta expressão, pretendo caracterizar a crítica que
Nietzsche dirige à modernidade e aos sintomas defensivos que
nela dominam para combater o sofrimento e o desprazer. Alguns são apelidados de inocentes quando “medidos pelo metro
moderno” (GM/GM, III, 19, KSA 5.384), um metro certamente
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Nietzsche, pensador da modernidade
um pouco ingênuo a julgar pelo contexto e que hoje poderíamos
chamar de sintomas de drogadição psíquica: recorrer a “um hipnótico amortecimento geral da sensibilidade, da capacidade de
dor” (GM/GM, III, 18, KSA 5.382), incentivado pelo estoicismo
intelectual, hinduísmo, budismo (GM/GM, III, 17, KSA 5.378);
apelar à supervalorização do trabalho, “a atividade maquinal
(a chamada de modo algo desonesto, de “bênção do trabalho”
(GM/GM, III, 18, KSA 5.382); prescrever uma pequena alegria,
como “a alegria de causar alegria” (GM/GM, III, 18, KSA 5.382)
e, especialmente, buscar a organização gregária, a formação de
rebanho com a conseqüente aceitação do desgosto do indivíduo
consigo mesmo em troca do despertar do sentimento de poder da
comunidade (GM/GM, III, 18, KSA 5.382). O que pode ser estendido das comunidades religiosas (igrejas) às novas formas de
formação de rebanho: estado moderno, democracia, socialismo,
organizações trabalhistas.
Parecem mecanismos positivos e culturalmente valorizados,
mas para Nietzsche não passam de algum excesso de sentimento para
anestesiar alguma outra dor. Ele não quer “acarinhar os ouvidos mimados de nossos modernos fracotes” (GM/GM, III, 19, KSA 5. 385).
A seus olhos o que caracterizaria as almas modernas, os livros modernos não é propriamente a mentira, mas uma “arraigada inocência
de sua mendacidade moralista”. (GM/GM, III, 19, KSA 5.385). Se
os livros modernos durarem e se vier a existir uma posteridade com
gosto mais severo, causariam vômito por sua ela falsidade moral. Os
chamados “homens bons estão todos moralizados até a medula, e
quanto à honestidade arruinados e estragados por toda a eternidade
[...] (GM/GM, III, 19, KSA 5.386).
Em suma, há uma moralização generalizada e equivocada da
qual até os “nós psicólogos” deveriam desconfiar e se questionar se
esse “moralizado gosto atual” não os tenha infectado também.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
125
Di Matteo, V.
1.1.4. A hermenêutica da suspeita: a decadência
Para Nietzsche, a explicação desse mal-estar cultural reside
no advento da supremacia da revolta escrava e no apagamento
progressivo da “magnífica besta loura” – representado pelos celtas
conquistadores, os arianos, os homens louros. A raça submetida de
pele escura e cabelos negros, não apenas na Alemanha, mas para
toda a Europa “terminou por reaver a preponderância” a ponto de
se perguntar retoricamente:
[...] quem nos garante que a moderna democracia, o ainda mais moderno anarquismo, e, sobretudo essa inclinação pela ‘commune’ pela
mais primitiva forma social que é hoje comum a todos os socialistas
da Europa, não signifique principalmente um gigantesco atavismo – e
que a raça dos conquistadores e senhores, a dos arianos, não esteja
sucumbindo também fisiologicamente?... (GM/GM, I, 5, KSA 5.264).
Em outras palavras, todas essas pretensas conquistas culturais –
democracia, anarquismo, socialismo, as revoltas operárias que se
espalharam pela Europa são fruto de instintos de reação e de ressentimento, “instintos depressores e sedentos de desforra” dos descendentes dos antigos vencidos, “descendentes de toda escravatura européia
e não européia, de toda população pré-ariana especialmente”. (GM/
GM, I, 11, KSA 5.276). Seus portadores podem até representar eles
mesmos a cultura. Foram e continuam instrumentos da cultura, mas
representam um ‘bom’, um ‘avanço’, um ‘progresso que devem ser
vistos como sintomas regressivos, um retrocesso, sinais de uma vida
que declina. (Cf. GM/GM, I, 11, KSA 5.276).
Nesse sentido, lamenta que não haja mais, na Europa, uma raça
nobre a quem temer e a impossibilidade de se “livrar da visão asquerosa dos malogrados, atrofiados, amargurados, envenenados [...],
do sem número de doentios, exaustos, consumidos, de que hoje a
126 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche, pensador da modernidade
Europa começa a feder [...]” (GM/GM, I, 11, KSA 5.277). A Europa
de hoje – afirma Nietzsche – está mergulhada numa “imensa falsificação de ideais”, “aguardente do espírito”. Daí o ar repugnante e
malcheiroso (Cf. GM/GM, III, 26, KSA 5.408).
Critica os ingênuos genealogistas da moral e do direito, os utilitaristas, os contratualistas, os evolucionistas a partir da análise da
origem e da finalidade do castigo, o qual não pode ser compreendido
apenas a partir de sua utilidade, nem de uma análise histórica progressiva e linear. Um autêntico método histórico percebe o progresso
como conflitivo, um jogo de perdas e ganhos, de rearranjos de força,
a ponto de o verdadeiro progresso aparecer na forma de maior poder
sobre inúmeros poderes menores e deveria se medir “pela massa
daquilo que teve de lhe ser sacrificado; a humanidade enquanto
sacrificada ao florescimento de uma mais forte espécie de homem –
isto seria um avanço...” (GM/GM, II, 12, KSA 5. 315).
Para Nietzsche é a “idiossincracia democrática”, o “moderno
misarquismo”, sua aversão a tudo o que domina e quer dominar que
acaba de penetrar até nas mais rigorosas e aparentemente ciências
objetivas, como por exemplo, a fisiologia e a teoria da vida, as quais
ignoram que a essência da vida é atividade, vontade de poder e privilegiam sua função de “adaptação”, uma atividade apenas reativa
(Cf. GM/GM, II, 12, KSA 5.316)
Lamenta o “apequenamento e nivelamento do homem europeu”
o “destino fatal da Europa” rumo ao niilismo. “A visão do homem
agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem...” (GM/GM, I, 12, KSA 5.278).
Resumindo, toda a cultura européia está infectada: religião, arte,
direito, ciência, filosofia, política, mundo do trabalho, literatura. Há
um mal generalizado que se manifesta especialmente em tempos modernos nos sintomas mais abrangentes de depressões prolongadas,
neurose religiosa, intoxicamento alcoólico e, nos últimos tempos,
sífilis (Cf. GM/GM, III, 21, KSA 5.392).
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
127
Di Matteo, V.
Desse período da modernidade e da pré-modernidade, o que
Nietzsche salva é o da Renascença quando houve um esplêndido e
inquietante redespertar do ideal clássico, mas logo triunfou de novo
a Judéia contra Roma e Platão contra Homero, graças àquele movimento de ressentimento radicalmente plebeu (alemão ou inglês) a
que chama de Reforma e, especialmente, com a Revolução francesa,
quando “a última nobreza política que havia na Europa, a da França
dos séculos XVII e XVIII, pereceu sob os instintos populares do
ressentimento” (GM/GM, I, 16, KSA 5.287).
Dos homens modernos, o que salva mesmo é o surgimento em
carne e osso do antigo ideal na figura de Napoleão. Ao privilégio
da maioria sucedeu a contra-senha do privilégio dos raros. Outro
caminho se abriu com “o mais único e tardio dos homens e com ele
o problema encarnado do ideal nobre enquanto tal [...]” (GM/GM,
I, 16, KSA 5.288). É com essa visão que Nietzsche sonha, “de algo
perfeito, inteiramente logrado, feliz, potente, triunfante, no qual ainda haja o que temer! De um homem que justifique o homem, de um
acaso feliz do homem, complementar e redentor, em virtude do qual
podemos manter a fé no homem” (GM/GM, I, 12, KSA 5.278).
Identificado o diagnóstico das patologias culturais, focalizemos,
agora, os que revelam as dores da ‘alma’ do homem moderno, certamente menos visíveis, mas não menos devastadoras.
1.2. Os sintomas psicológicos – morais e os remédios culpados
Esses sintomas podem ser identificados com relativa facilidade,
analisando os mecanismos de defesa criados pelo sacerdote ascético contra a falta de sentido do próprio sofrimento e a busca de um
responsável para culpabilizar e punir.
O “grande estratagema” foi a utilização do sentimento de culpa
(Cf. GM/GM, III, 20, KSA 5.389). Pelo “metro moderno”, pode ser
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Nietzsche, pensador da modernidade
julgado ‘culpado’, porque esse remédio não cura, torna o homem
ainda mais doente, mesmo que vise a combater a depressão e diminuir o desprazer. O sacerdote ascético, porém o aplicou com boa
consciência e conseguiu transformar a “má – consciência animal”,
o sentimento de culpa em seu estado bruto (da crueldade voltada
para trás), na interpretação sacerdotal de ‘pecado’ e ’punição’. “Foi
– escreve Nietzsche – até agora o maior acontecimento na história
da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa” (GM/GM, III, 20, KSA 5.389). “O doente foi
transformado em pecador” (GM/GM, III, 20, KSA 5.389).
Se o ideal ascético se perpetuou e dominou na civilização, é
porque até agora foi a forma que a condição doentia do homem,
domesticado pela civilização, encontrou em sua “luta fisiológica”
contra o desgosto da vida, o desejo do fim, da morte. De modo que o
sacerdote ascético, “este aparente inimigo da vida, este negador” é
um instrumento a serviço “das potências conservadoras e afirmadoras da vida. O desejo de outra vida, na realidade, acaba prendendo-o
a esta vida, a serviço da vida de todo “rebanho, dos malogrados,
desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie
[...]” (GM/GM, III, 13, KSA 5.366).
É verdade que houve um ‘benefício’. Esse tratamento melhorou
o homem, mas para Nietzsche “’melhorado’ significa – o mesmo que
‘domesticado’, ‘enfraquecido’, ‘desencorajado’, ‘refinado’, ‘embrandecido’, ‘emasculado (ou seja, quase o mesmo que lesado...)” (GM/
GM, III, 21, KSA 5.391).
Os efeitos deletérios desse diagnóstico e medicalização religiosa
equivocada atacaram também o sistema nervoso dos indivíduos e das
massas e comprometeram fatalmente a saúde física e psíquica do
homem moderno. É assim que se expressa Nietzsche ao identificar
a “neurose religiosa” como aquela que tão destrutivamente agiu
“sobre a saúde e o vigor de raça dos europeus. Podemos denominá-lo,
sem qualquer exagero, segundo Nietzsche, a autêntica fatalidade
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129
Di Matteo, V.
na história da alma do homem europeu” (GM/GM, III, 21, KSA
5.392) e, como vimos, além ou por ter corrompido a saúde da alma,
corrompeu também o gosto nas artes e na literatura (Cf. GM/GM,
III, 22, KSA 5.393).
Enfim, não porque menos importantes, mas ao contrário pela
sua importância, há sintomas que evidenciam como determinadas
manifestações, consideradas aparentemente psicológicas e decorrentes de um ascetismo torturador e martirizante, podem não passar
de um comprometimento sério do próprio organismo.
1.3. Os sintomas fisiológicos
É supérfluo relembrar a importância da fisiologia e da medicina
no pensamento de Nietzsche. Podemos até suspeitar que haja certo
reducionismo explicativo de fenômenos culturais e psicológicos a
uma última e mais fundamental explicação que é a fisiológica. Em
A Genealogia da Moral, é explicitamente afirmado ao escrever que
“[...] toda tábua de valor, todo “tu deves” conhecido na história
ou na pesquisa etnológica, necessita primeiro uma clarificação e
interpretação fisiológica, ainda mais que psicológica; e cada uma
delas aguarda uma crítica por parte da ciência médica” (GM/GM,
I, 17, KSA 5.289). Em outras passagens, mostra que a verdadeira
“causa do mal-estar” individual pode se encontrar no mau funcionamento de um algum órgão corporal, mas desconhecendo a causa
fisiológica, os sujeitos revolvem as vísceras de seu passado em
busca de um culpado a ponto de transformarem “em malfeitores
o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhe for próximo” (GM/GM,
III, 15, KSA 5.375).
O que se dá no registro individual pode ocorrer naquele da história quando, em determinados lugares da terra, “um sentimento de
obstrução fisiológica”, decorrente, por exemplo, de rápida “mistura
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Nietzsche, pensador da modernidade
de classes”, “emigrações equivocadas”, “velhice e cansaço da raça”,
“dieta errada”, ‘malária’, ‘sífilis’ etc., se apossa das massas e desconhecendo essa verdadeira causa busca a explicação e o remédio
“tão somente no domínio psicológico-moral (- e esta é minha fórmula
mais geral para o que comumente é chamado de ‘religião’” (GM/GM,
III, 17, KSA 5.378).
Quando ocorre que um mal-estar de natureza fisiológica não é
percebido, a luta contra o sentimento de desprazer assume formas
variadas. No nível psicológico-moral pela, “renúncia de si”, “santificação” (GM/GM, III, 17, KSA 5.379) e no nível fisiológico por uma
espécie de hipnotização ao render pela fome o corpo e o desejo. Nesse caso, a vida não morre totalmente, mas permanece em níveis tão
baixos que não chegam até a consciência, fenômeno parecido com o
da hibernação em algumas espécies de animais e a da estivação em
muitas plantas de clima quente, mas pode também abrir caminho
para toda sorte de perturbações espirituais, ‘alucinações’ de som e
de forma, “voluptuosos transbordamentos e êxtases da sensualidade”
(Cf. GM/GM, III, 17, KSA 5.379) e até “perturbações mentais” (Cf.
GM/GM, III, 20, KSA 5.388).
Identificados os sintomas e as causas da doença do homem europeu nos três níveis, cultural, moral-psicológico e fisiológico, criticada a terapêutica de atacar os sintomas e não a causa, resta explicitar
o prognóstico dado por Nietzsche e a terapêutica sugerida.
1.4. Prognóstico e Terapêutica
Se o diagnóstico é sombrio, o prognóstico nietzschiano está aberto para expectativas historicamente viáveis mesmo que não em curto
prazo. Se a vida luta contra si mesma, mas para se salvar, abre-se,
assim, a brecha para uma vitória dela sobre suas atuais doenças.
Qual a estratégia proposta por Nietzsche?
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Di Matteo, V.
1.4.1. Para os acasos felizes numa Europa doente
Se a condição doentia do homem é a normalidade dentro da história é preciso que os acasos felizes, os “sãos”, os “mais fortes”, os
“bem logrados”, os “vitoriosos”, os “felizes”, os “poderosos de corpo
e alma”, se protejam dos doentes. O grande perigo para eles não são
os maus, os “animais de rapina” e, sim, os doentios, os “mais fracos”.
Para não se contaminarem com eles é sugerida a estratégia de uma
separação total, o “afastamento de todos os hospícios e hospitais
da cultura!”. (GM/GM, III, 14, KSA 5.368-371). Nem deveriam ser
olhados pelos doentes, mas manter o pathos da distância, uma espécie
de apartheid social, pois não cabe aos sãos tratar dos doentes, serem
seus médicos, enfermeiros, consoladores, salvadores. Essa é tarefa
dos que são eles mesmos doentes. (Cf. GM/GM, III, 15, KSA 5.372).
Há esperança de um dia essa realidade ser transformada? Uma
mudança é possível, mas para outra espécie de espíritos, num tempo mais forte do que esse presente murcho, quando virá o homem
redentor, que nos redimirá desse ideal vigente, da transcendência,
do niilismo, de vontade do nada e nos devolverá a grande saúde no
“toque de sino do meio dia e da grande decisão, que torna novamente
livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e sua esperança,
esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada [...]
(GM/GM, II, 24, KSA 5.336), personificado no Zaratustra ateu, alternativa aberta ao único e nocivo ideal humano que dominou o homem
até agora: o ideal ascético. Mas, enquanto isso não ocorrer, há algum
remédio para esse ideal ascético que continua a assolar a Europa?
1.4.2 O phármakon para os doentes do ideal ascético
O remédio que parece mais adequado à primeira vista seria
uma ‘abstinência’ desse ideal, numa linguagem popular: o ateísmo.
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Nietzsche, pensador da modernidade
(GM/GM, II, 20, KSA 5.330). O problema é que mesmo “o ateísmo incondicional e reto” ainda está às voltas com sua vontade de
verdade e não se opõe ao ideal ascético. (Cf. GM/GM, III, 27, KSA
5.409). O verdadeiro phármakon que nos pode curar dessa doença
se encontra na sua própria causa, isso é na moral cristã, veneno
e medicamento ao mesmo tempo. (Cf. GM/GM, Prólogo 6, KSA
5.253). Devemos a ela, de fato, com sua exigência de veracidade,
sua bimilenar “educação para a verdade”, sua necessidade de “asseio intelectual” e progressiva consciência científica na análise das
coisas, se hoje nos proibimos “a mentira de crer em Deus”. (GM/
GM, III, 27, KSA 5.409)
Foi esse rigor intelectual que produziu “os bons europeus e herdeiros da mais longa e corajosa auto-superação da Europa” (GM/
GM, III, 27, KSA 5.410). De modo que mais do que um assassinato
de Deus estaríamos diante do suicídio do Deus cristão na medida
em que a própria moral cristã é obrigada a matar seu próprio dogma
em nome de uma exigência moral, a da veracidade.
Perecerá o cristianismo também como moral? Segundo Nietzsche, estamos no limiar desse acontecimento quando a verdade
cristã terá que tirar sua “mais forte conclusão, aquela contra si
mesma” (GM/GM, III, 27, KSA 5.410), colocar-se o problema enquanto problema do significado de toda vontade de verdade. Esse
espetáculo, em cem atos, – escreve Nietzsche quase no final da
terceira dissertação, será encenado nos próximos dois séculos da
Europa [XX e XXI] e promete ser “o mais terrível, mais discutível
e talvez mais auspicioso entre todos os espetáculos” (GM/GM, III,
27, KSA 5.410-411). Não traça, porém, um roteiro, nem ao menos
um esboço previsível do primeiro ato. Suas idéias, porém, estão
presentes, para o bem e para o mal, no texto ambíguo escrito pela
“civilizada” Europa do século XX, perpassado por mudanças geopolíticas, ideológicas, econômicas e culturais rápidas, profundas
e, às vezes, traumáticas.
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Di Matteo, V.
Delineadas as grandes linhas arquitetônicas do texto nietzschiano, vamos retomar a problemática inicial do conflito das interpretações e analisar pelo menos dois pontos ou problemas que merecem,
se não nossa crítica, pelo menos uma problematização.
2. Pensando contra Nietzsche (os limites)
2.1 O sentido do “contra”
Pode parecer até desonesto afirmar que agora vou tentar pensar “contra” Nietzsche, sabendo que na Genealogia da Moral só
se encontra uma “tese”, que podemos assumir na esportiva: “Um
filósofo casado é coisa de comédia (GM/GM, III, 7, KSA 5.350-351).
No restante, só encontramos termos como “hipóteses”, “suposição”
(GM/GM, II, §6, KSA 5. 301), pôr experimentalmente em questão
(GM/GM, III, 24, KSA 5.401). Como, então, pensar contra alguém
que teve a hombridade intelectual de apresentar suas idéias não
como refutações das idéias alheias, “mas sim, como convém num
espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável,
e ocasionalmente um erro por outro”? (Cf. GM/GM, Prólogo, 4,
KSA 5.251).
Evidentemente o “contra” só pode e deve ser entendido nesse espírito de outras suposições, outras hipóteses, outro pensar
perspectivo-experimental e, mais provavelmente, de outros erros. É, portanto, mais como homenagem a Nietzsche e ao muito
que aprendemos com ele que passo a problematizar a concepção
nietzschiana de cultura e de vida, ciente do risco simplificador de
minhas análises.
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Nietzsche, pensador da modernidade
2.2. O privilégio dos raros
A concepção nietzschiana de cultura a serviço do privilégio
dos raros e não do privilégio da maioria é algo que podemos até
compreender, mas dificilmente assumir sem “mas” e “porém”.
Numa primeira leitura, é impossível não ficar chocado com afirmações que nos parecem incompatíveis com um grande pensador
crítico como foi Nietzsche, tanto mais que parece defender uma
posição teórica que estava deixando de ser hegemônica já no final
do século dele. Havia, de fato, uma vontade política por parte das
nações européias, já a partir da revolução americana de 1776 e
da revolução francesa de 1789, de erradicar a escravidão em seus
países, especialmente a partir da segunda metade do século XIX.
É verdade que, contraditoriamente e ao mesmo tempo, as nações
européias racionalizavam e legitimavam a colonização da África e
de países orientais em nome da indignação de sua pretensa civilização superior. Afinal, Nietzsche tem toda razão quando, em Para
além do Bem e Mal, escreve: “E ninguém mente tanto quanto o
indignado” (JGB/BM 26, KSA 5.45).
Apesar dessa real contradição política das grandes potências
européias e que beira a hipocrisia, como entender a posição de um
pensador tão radical por vários aspectos e tão reacionário por outros?
Uma explicação pode ser levantada se consideramos o fato de que
não é o único pensador de seu tempo nem anterior a ele a pensar
dessa maneira. Há toda uma tradição liberal8, que compatibiliza
sem maiores problemas uma comunidade restrita na qual reina a
liberdade e a tolerância com outra na qual é justificável a escravidão
8
Cf. LOSURDO, D. ibid, p.394-395.
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Di Matteo, V.
e até mesmo o extermínio de raças decadentes, como por exemplo,
pele-vermelhas americanos. Até em Locke, o chamado “pai do liberalismo moderno”, “teórico da liberdade”, se encontram páginas
onde a escravidão nas colônias é considerada legítima, como o poder
absoluto dos patrões brancos sobre os negros9. O que não nos impede
de valorizar o esforço intelectual desprendido por ele em delimitar
o poder do soberano.
Isso pode se aplicar tanto mais a Nietzsche e continuarmos a
considerá-lo um grande filósofo a despeito de seu projeto ter reduzido
drasticamente a comunidade dos senhores e dos raros e tornar ainda
mais intransponível a barreira colocada entre os sãos e os doentes,
os poucos acasos felizes e a imensa maioria dos deserdados.
Para entender essa opção nietzschiana, avanço mais uma hipótese que me parece coerente com sua compreensão da moral
cristã. Tanto os movimentos abolicionistas, quanto a democracia e
o socialismo – comunismo, por exemplo, deviam ser situados num
longo ciclo de tentativas revolucionárias que vão de seu século (XIX)
para o anterior da Revolução Francesa que renegou a autoridade
do rei no plano político. Vários autores, por sua vez, interpretam
a Revolução de 1789 como consequência daquela de Lutero que
abalou a autoridade religiosa, até remontar à pregação evangélica
da igualdade de todos os homens. Ora, igualdade e universalidade
são, para Nietzsche, tentativas de anular diferenças e lançar na vala
comum as singularidades heróicas, os acasos felizes que a história
produz de vez em quando.
Tudo indica que não conseguiu ver na moral cristã do amor
fraterno, da solidariedade, da igualdade fundamental dos homens
espaço suficiente para manter a tensão singularidade – universalidade, semelhanças – diferenças. Seria, então, Nietzsche apenas o
9
Cf. Id., ibid, p.999.
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Nietzsche, pensador da modernidade
momento culminante, a expressão consciente de toda uma tradição
ocidental que valorizava a liberdade e a emancipação de uns poucos
ou de uma comunidade limitada, mesmo abandonando a maioria e
de modo particular raças decadentes a sua própria sorte?
2.3. O significante “vida”
Uma das razões das dificuldades de entender Nietzsche é sua
utilização de noções centrais extremamente abertas a uma polissemia
e interpretações. A que remetem termos como dor, doença, saúde,
decadência, vontade, verdade e, especialmente o significante vida, a
palavra pivô, o pressupostos dos pressupostos nietzschianos para julgar a valorização das tábuas de valores de uma determinada moral?
Ao nos falar da oposição, do ‘abismo’ que foi se formando entre
os doentes – culpados organizados em igreja de um lado e os “sadiamente constituídos”, “os mais plenamente forjados”, os sãos, do
outro, Nietzsche nos diz que parte do pressuposto que não tem que
justificar primeiro que a “natureza pecaminosa” do homem não é
um fato, mas apenas a interpretação de um fato [...]” (GM/GM, III,
16, KSA 5.376). Poderíamos inferir que também a vida não é um
fato e sim uma interpretação? Além daquela que Nietzsche nos
oferece, há outras complementares que podem ser percebidas de
outras perspectivas? Seria possível pensar outra dialética entre estas
forças poderosas de criação e destruição, vida e morte que não seja
sempre e necessariamente intransponível?
A famosa parábola hegeliana do Senhor e do Escravo10, por
exemplo, se encerra com uma dialética positiva. O implícito que
10
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 7. ed. Petrópolis/
Bragança Paulista:USF, 2002. p.142-151.
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137
Di Matteo, V.
a perpassa é a possibilidade de se pensar uma história humana,
em particular a do Ocidente, não a partir da dominação, mas de
indivíduos que aceitam existir na forma da consciência universal,
ou da existência regida pela Razão.11. A dialética da dominação, o
reconhecimento unilateral, passando pela dialética da consciência servil, se abre para um reconhecimento construído quando a
igualdade teórica, o reconhecimento recíproco e perfeito entre duas
consciências, finalmente pode se tornar efetivo dentro da história.
Se foi evocada essa parábola, por sinal nem citada por Nietzsche
na Genealogia, não foi por considerá-la melhor ou mais verdadeira
daquela nietzschiana dos Raros e da Maioria. A dialética hegeliana
já não mais nos seduz com sua marcha teleológica que a inspira.
Permite-nos, porém, acreditar na possibilidade de criar outras perspectivas para a compreensão da vida e da cultura além ou ao lado
daquela nietzschiana.
3. Considerações finais
É possível ir além de Nietzsche? Como continuar a pensar com
ele, contra ele e depois dele? Onde nos poderia levar essa crítica
radical à vontade de ascese e vontade de verdade? Quem nos dará
uma crítica da vontade de potência? É possível uma terceira dialética
entre aquela de tipo hegeliana e outra heraclitiana – nietzschiana?
Talvez, por falta de um nome filosófico mais apropriado, possamos chamá-la, provisoriamente, de “dialética da aposta”. Uma
dialética que nos permitiria nos libertar da compulsão à repetição
de uma história que se repete e se reedita incessantemente em sua
11
VAZ, L.H.C. “Senhor e escravo: uma parábola da filosofia ocidental”. Síntese, n.21,
1981, p. 19-20.
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Nietzsche, pensador da modernidade
violência aberta ou disfarçada, quase sempre gratuita, mas sempre
dolorida e, ao mesmo tempo, nos despertaria do sonho paranóico de
poder conciliar, sem tensão dentro da história humana, liberdade e
igualdade, singularidade e universalidade.
Essa dialética da aposta nos possibilitaria recusar com Camus
uma criação na qual “os seres vivos se devoram em festa”, incluindo
os homens naturalmente, sem precisar acreditar que, por uma teleologia imanente ou por um voluntarismo intervencionista, possamos
alterar substancialmente e definitivamente essa realidade. Poderíamos, igualmente, nos sensibilizar com a compaixão do angelus
novus, o anjo da história de Walter Benjamim (1940)12 e não aceitar
fatalmente sua impotência, preferindo nos engajar nessa dialética
mesmo na ambigüidade de um processo de mudanças e transformações onde as determinações objetivas parecem nos intimidar e
empurrar para uma definitiva destituição subjetiva.
Dessa maneira, nos restaria aberta a possibilidade de arriscar
outros caminhos como por ensaio e erro, criar outros arranjos de
engenharia social, experimentar outras formas, franqueadas para
quem quiser, de se tornar um raro ou acaso feliz sem que isso seja
pago com o sofrimento alheio não consentido.
A civilizada e (des)cristianizada Europa, especialmente na
primeira metade do século passado, ao se guiar pelo famigerado
secreto da Ordem dos Assassinos: nada é proibido, tudo é permitido
(GM/GM, III, 24, KSA 5. 399), não se saiu melhor daquela cristã.
Mesmo que Deus não exista e a verdade não passe de um sinônimo
de Deus que morreu, nem tudo nos é permitido. Acredito, mas aqui
estou me colocando no registro da crença humana, que não exclui
necessariamente o pensamento lógico-analítico, que tanto o ‘gosto’
nietzschiano, que interpreto como a sabedoria e a intuição da vida,
12
Cf. a IX tese sobre o conceito de história.
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Di Matteo, V.
quanto a ‘razoabilidade’ humana, que considero o gosto e a intuição
de uma racionalidade mitigada em seus excessos, possam interagir
de uma forma mais cooperativa, menos conflitiva e, conseqüentemente mais sadia. Mais do que chorar a morte de certas morais,
devemos nos alegrar com o nascimento de novas e mais amplas
perspectivas éticas surgidas e que vão surgindo ao longo de nossa
história ocidental: do ideal grego de uma vida boa e com outros
poucos (os amigos) àquele estóico e cristão que o estende a todos
os outros, à modernidade que sentiu a necessidade de proclamá-lo
como direito de todos e tentar encarná-lo em instituições justas, até
nossa contemporaneidade que estendeu esse direito-responsabilidade para com os outros humanos ao mundo da vida, o qual deve
ser ecologicamente respeitado e compartilhado com nossa geração
e com as gerações futuras.
Sabemos que a invenção e construção histórica de novas moradas, que sejam, paradoxalmente, cada vez mais abertas e seguras,
é infindável e não se dará sem conflitos e riscos. Não será fruto de
uma razão solitária, mesmo que privilegiada, nem dos que se consideram os ‘sãos’, os ‘raros’ ‘acasos felizes’. Será necessariamente
o esforço de uma ‘racionalidade comunicativa’, ad intra com o
nosso mundo vital e ad extra com os outros e seus pluralismos
culturais. Construir um mundo pessoal e comunitário, que seja
simultaneamente mesmo e outro, singular e universal, menos sofrido se não puder ser feliz, será um esforço nosso, humano e até
sobre-humano ou simplesmente “pós-humano”. Não é animado
por uma esperança de natureza religiosa, nem por uma certeza
teleológica de caráter filosófico para nos defender do horror vacui.
Trata-se de uma aposta, nem religiosa nem metafísica, no ‘gosto’
e na razoabilidade humana, sem garantias de final feliz, nem para
os indivíduos, nem para a espécie.
Mera ilusão, filha do desejo? É provável, mas há pontos de vista
que não sejam do interesse do desejo e, no fundo, da vida?
140 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche, pensador da modernidade
Abstract: The text aims at identifying and understanding some of
Nietzsche’s perspectives about the western modernity. The title of
“thinker” of modernity wants to highlight the fact that Nietzsche’s analysis
are not limited to a merely destructive critique of the prevailing values
into modernity, but point out to a therapeutic proposal of the diagnosed
cultural pathologies. For the analysis and comprehension of Nietzsche’s
ideas, will be privileged the book “On the Genealogy of Morality”. At the
end, a personal evaluation of the validity and limits of Nietzsche’s thought
about Modernity.
Keywords: Nietzsche – modernity – nihilism – culture
referências bibliográficas
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1940. Disponível em: http://www.docstoc.com/
docs/21530250/Walter-Benjamin-Teses-sobre-oconceito-da-hist%C3%B3ria-1940 . Acesso em:
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cadernos Nietzsche 27, 2010 |
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Di Matteo, V.
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. Nietzsche il ribelle aristocratico. Biografia intellettuale e bilancio critico. Torino: Bollati Boringhieri,
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Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras,
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142 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e a modernidade:
ponto de virada
Vânia Dutra de Azeredo*
Resumo: Este artigo procura mostrar que Nietzsche ultrapassa os pressupostos filosóficos da modernidade a partir, notadamente, da noção de
vontade de potência como interpretação, do conferir a toda afirmação o
estatuto de interpretação e da busca de uma nova linguagem para expressar
seu pensamento. Recusamos, por isso, a afirmação de Habermas, em seu
Discurso filosófico da modernidade, de que a Filosofia de Nietzsche estaria
circunscrito à modernidade ao permanecer subsidiada por uma consciência temporal e pelo apelo à racionalidade. Em nossa avaliação, Nietzsche,
efetivamente, não recorre aos pressupostos modernos.
Palavras-chave: filosofia – modernidade – interpretação – linguagem.
Neste artigo tencionamos mostrar que Nietzsche ultrapassa os
pressupostos da modernidade e inaugura uma nova dimensão da
filosofia ao considerar toda produção humana como interpretação e
ao remeter ao corpo o primado da significação. Parte-se da análise
de Habermas, conforme exposição no Discurso filosófico da modernidade, buscando apresentar elementos que possibilitam refutar sua
posição frente ao pensamento de Nietzsche. Segundo Habermas, a
própria elaboração da filosofia de Nietzsche apresenta problemas
em termos de coerência interna que poderiam inviabilizar a posição
do filósofo frente à modernidade. Apesar de seu empenho de pôr
*
Professora do Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da PUC-Campinas
([email protected]).
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
143
Azeredo, V. D.
termo ao processo de exame do conceito de razão, substituindo-o
pela introdução de uma crítica total dessa faculdade, seu empreendimento teria resultado em um irracionalismo, uma vez que
inviabiliza toda e qualquer pretensão de objetividade nos domínios
epistemológicos. Além disso, Habermas considera que a vontade de
potência aparece como um pressuposto positivo, servindo de base
para a remessa das pretensões tanto do conhecimento, quanto da
moral. Considera que isso não poderia acontecer sem a objetividade da ciência que se assenta na razão. Na sua visão, o projeto
filosófico nietzschiano estaria circunscrito à modernidade, pois permaneceria subsidiado por uma consciência temporal e pelo apelo
à racionalidade. Assim, ao negar a modernidade, seja através de
sua consideração artística do mundo, ou de uma filosofia que pode
criticar a metafísica em seu conjunto, Nietzsche não conseguiria
desprender-se do objeto de sua negação, recorrendo, ainda que de
modo implícito, aos pressupostos modernos1.
Ora, a investigação dessa crítica faz-se, mister, uma vez que está
sendo posto em questão o estatuto do discurso nietzschiano em seus
diversos âmbitos; no limite, está a pergunta pela possibilidade de
um tal discurso filosófico em nossos dias enquanto ponto efetivo de
ruptura com a tradição. Isso requer que se apresentem as teses nietzschianas que permitem reivindicar esse ultrapassamento mostrando
as principais proposições do filósofo que permitem evidenciar uma
ruptura. Procuraremos mostrar, mediante a equiparação prévia de
impulsos, forças e vontade de potência, que Nietzsche compreende
a vontade de potência, ao mesmo tempo, como verbo, ela é o interpretar, como sujeito, ela é o intérprete, e como significação, enquanto
expressão do significante e do significado, que se faz como exercer-
1
Cf. HABERMAS, J. Discurso filosófico da modernidade. Tradução Luiz Sérgio Repa
e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 45-102.
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
se. Que no domínio do texto, enquanto imposição de perspectivas,
não há leitura correta, mas imposição de uma interpretação. E, por
fim, que o autor de Assim falava Zaratustra busca construir uma
nova linguagem para expressar a singularidade doadora de sentidos
que caracteriza sua exposição. Essas três dimensões que concernem,
respectivamente, aos existentes enquanto exercer-se interpretativo,
ao texto como abertura irredutível e a uma nova dimensão da linguagem permitem, a nosso ver, reivindicar para Nietzsche um ponto de
virada com relação ao discurso filosófico da modernidade.
Comecemos pelas teses de Nietzsche que, em nossa avaliação
possibilitam situar sua filosofia para além da tradição. Nosso ponto
de partida é a compreensão inicial da vontade de potência, enquanto
interpretação que se apresenta como âmbito de sentidos no pensamento do filósofo. É a vontade, entendida como multiplicidade de
impulsos em luta permanente, que introduz interpretações, mas,
por sua vez, a própria introdução da vontade de potência é uma
interpretação possível dos existentes, que se coaduna e abrange as
demais interpretações que lhes foram conferidas ao entender que
não há outro âmbito que o da interpretação.
Desse modo, consoante a Nietzsche, existem tão-somente interpretações às quais se confere uma factualidade que já seria resultante de uma interpretação. Em um Fragmento Póstumo ele afirma:
“Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’,
diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações.” (KSA
9. 329, Nachlass/FP 7 [60]). Na base dessa afirmação, identificamos
a rejeição peremptória da existência de um significado objetivamente dado, já que a sua caracterização passa pela maleabilidade
constitutiva do ato acrescente ou fundador do próprio significado.
A afirmação de que não há um significado objetivamente dado não
quer pôr em questão a existência ou não de objetos externos, mas
assinalar que o ato de colocar um objeto em correspondência com
um signo, seja através da extensão de seu conceito ou da desigcadernos Nietzsche 27, 2010 |
145
Azeredo, V. D.
nação dos diversos seres que ele pode abarcar, já é resultado de
uma interpretação. O modo como o objeto é designado e o modo
como nos é dado esse objeto é sempre resultante. A questão não se
coloca em termos de conotação ou denotação, mas do instituir da
interpretação, ou seja, do processo anterior que institui e relaciona o
signo, o significante e o significado. É isso, a nosso ver, que permite,
a partir de Nietzsche, situar a relação intérprete/interpretação em
uma dimensão originária no sentido instituinte, já que os termos
envolvidos são sempre produtos, não havendo, por conseguinte,
previsão de início ou término2.
A perspectiva nietzschiana confere à interpretação um inacabamento e uma infinitude que transformam a própria filosofia, ao tentar
desvendar o processo que introduz a significação. Dizemos processo,
porque é o termo que melhor se aplica ao dinamismo presente nas
configurações expressivas que historicamente se objetivaram em
sistemas semânticos. Ainda assim, esses sistemas não refletem fatos,
ou pelo menos, não necessariamente. É esse justamente o ponto da
contenda em Nietzsche, já que, para ele, por trás desses sistemas
se encontram avaliações.
Mas, em que consiste e como se efetiva a interpretação em
Nietzsche, uma vez que para o filósofo “o mundo (...) é diversamente
interpretável, não tem nenhum sentido por trás de si, mas inumeráveis sentidos”? (KSA 9.329, Nachlass/FP 7 [60]). Ora, na ótica
do filósofo, não podemos subir ou descer a outra instância que não
seja a de nossos impulsos, já que todas as manifestações em termos
do querer, sentir e pensar são expressões das relações dos impulsos
entre si. “São nossas necessidades que interpretam o mundo: nossos
2
O tema da interpretação em Nietzsche foi abordado por nós anteriormente no primeiro
capítulo do livro, de nossa autoria, Nietzsche e a aurora de uma nova ética. São Paulo:
Discurso/ Fapesp/ Unijuí, 2008.
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
impulsos e seus prós e contras. Cada impulso é apresentado como
uma espécie de despotismo, cada um tem sua perspectiva que ele
desejaria impor como norma a todos os demais impulsos” (KSA
9.329, Nachlass/FP 7 [60]). Dessa forma, são os nossos impulsos
que em luta permanente configuram interpretações. Aqui temos
um dos pontos centrais que nos permitem atribuir a Nietzsche o
rompimento com a tradição. Afinal, trata-se de considerar as determinações profundas não conscientes como prioritárias na base do
interpretar. E de remeter todo o âmbito valorativo, o extenso mundo
da produção cultural, a construções explicativas e imposições de
uma dada interpretação que supõem como base impulsos, forças e
vontades de potência enquanto interpretação.
Buscar em Nietzsche a solução para o questionamento acerca da
interpretação requer que se adentre no âmbito da fisiologia, já que
o filósofo compreende o processo significativo a partir da dimensão
orgânica, isto é, a partir do feixe de impulsos em luta nos existentes3:
3
A noção de luta (Kampf) tem uma posição privilegiada na filosofia de Nietzsche desde
A disputa de Homero e O nascimento da tragédia até Assim falava Zaratustra e as
demais obras do terceiro período. Presente em todos os momentos do discurso de
Nietzsche, a luta expressa sempre o movimento, embora com acréscimos e contornos
diferenciados ao longo da elaboração da obra do filósofo. Em A disputa de Homero, a
luta aparece como disputa (Wettkampf), resgatando o sentido do agón grego que aparece
na Ilíada quando do combate entre os heróis helenos. Trata-se da disputa que, vista
como qualidade, atua estimulando os homens à ação. Em “A dialética pacificadora”,
Gérard Lebrun aponta para a retomada, no conceito de vontade de potência, do agón
presente já em A disputa de Homero, em que a disputa e não o aniquilamento do
adversário é valorizado: “Esse texto deixa transparecer um traço característico da
‘vontade de potência’ mais próximo de um jogo que da guerra total, a luta é sempre
pela dominação, nunca pelo aniquilamento do adversário”. (LEBRUN, G. “A dialética pacificadora”. In: Almanaque, São Paulo, Brasiliense, n. 3, 1977, p. 33). Em O
nascimento da tragédia, a luta aparece desde a ação de dois impulsos antagônicos,
o apolíneo e o dionisíaco, respectivamente, que se manifestam no desenvolvimento
da arte. A luta aparece, por conseguinte, conduzindo à produção de algo, à criação
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Azeredo, V. D.
“Quem interpreta? – nossos impulsos?” (KSA 12.161, Nachlass/
FP 2 [190]). Cada existente se compõe de uma multiplicidade de
impulsos que se digladiam permanentemente, pois cada organismo,
cada órgão mesmo, tem sua efetividade a partir da alternância entre dominação e subjugação que propriamente o mantém. Daí ele
se referir, em Para além de bem e mal, “a uma estrutura social de
muitas almas”, disposta a partir de relações de mando (JGB/BM 19,
KSA 5.321). Estende-se à totalidade dos organismos o fluxo entre o
vir-a-ser e o perecer expresso no jogo de alternância de dominação e
subjugação que, de fato, o constitui. O impulso deve ser compreendido como um despotismo que a partir de sua perspectiva, introduz
uma interpretação que expressa ascensão ou decréscimo. “Infinita
interpretabilidade do mundo: toda interpretação um sintoma de
crescimento ou de declínio” (KSA 12.120, Nachlass/FP 2 [117]).
A interpretação é sempre a imposição de uma perspectiva, cuja
base é dada pelas configurações de domínio manifestas por nossos
impulsos que em perpétua mutação constituem aquilo que chamamos homem. Os impulsos manifestam-se em nossas estimativas de
valor. Assim, se a vida ascende as valorações promovem a vida e se
a vida descende as valorações a obstruem. É isso que Nietzsche quer
ressaltar ao afirmar que: “Nas escalas de valor são expressas condições de conservação e de crescimento” (KSA 12.352, Nachlass/FP
9[38]). Em seus textos, encontramos a exposição de tais condições
propriamente artística. (Cf. Nietzsche, O nascimento da tragédia, (GT/NT 1, KSA
1.11). Quando da elaboração de Humano, demasiado humano, a luta retorna mas,
nesse momento, relaciona-se com a vida enquanto prazer, estando vinculada à busca
de prazer (cf. MAI/HHI 104, KSA 2.421). No terceiro período, a luta passa a ter um
caráter mais abrangente enquanto entendida como traço da vida. Todo o existente é
visto como um campo de batalha, definido, assim, desde a luta: “Tudo o que ocorre,
todo movimento, todo vir-a-ser enquanto determinações de relações de graus e forças,
enquanto luta...” (KSA. 12.383, Nachlass/FP 9 [91]).
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
quando ele apresenta as mudanças de designação e, por decorrência,
de significação dos juízos de valor. As análises dos pares de valores
bom/mau e bom/ruim, assim como da palavra Schuld constituem
exemplos interessantes de ascensão ou de declínio ilustrados pelas
alterações desses juízos4.
A manifestação de um sintoma deve ser compreendida como
um sinal, um indício, de acréscimo ou de decréscimo em termos
instintuais. Esse é o sentido de um sintoma na filosofia de Nietzsche:
expressão de sucessos ou fracassos fisiológicos enquanto resultantes
das lutas que interagindo ao mesmo tempo compõem o organismo e
impõem sua interpretação, sua perspectiva. Um signo não difere muito
de um sintoma e pode ser visto a partir de uma relação sinônima com
o mesmo, pois se apresenta igualmente como um sinal, um indício
de plenitude ou não dos impulsos. Em vista disso é que sua filosofia
pode ser entendida como uma sintomatologia, pois em cada caso são
sintomas e signos que expressam os sucessos ou fracassos fisiológicos.
Sendo, portanto, formas de manifestação de nossos impulsos.
Outro elemento importante a considerar é que o intérprete não se
opõe nem difere da interpretação, pois na rede instintual que compõem os existentes, agir é interpretar e o resultado da ação é sempre
interpretação, daí a necessária convergência expressa na noção de
4
Em Para a genealogia da moral, Nietzsche verifica na etimologia das palavras a
significação atribuída e, com isso, a remessa da designação à postulação de um
sentido expresso em um dado momento histórico, assim como de suas alterações
de significação que expressam reorganizações nas relações entre os impulsos. Na
primeira dissertação, o filósofo se detém a analisar a dupla proveniência dos juízos
de valor bom e mau (gut/böse), bom/ruim (gut/schlecht) para explicitar a duplicidade
de avaliações vinculando-as a dois tipos distintos de homem – senhor e escravo. Na
segunda dissertação, tomando a dupla significação da palavra Shuld que designa, ao
mesmo tempo culpa e dívida, ele mostra que, em um primeiro momento, a responsabilidade está ligada à dívida, o homem é responsável por uma dívida, e não à culpa,
o homem é responsável por uma falta.
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Azeredo, V. D.
processo interpretativo que propomos. De um lado, os signos antes
mesmo de poderem ser oferecidos como elementos para uma interpretação são eles mesmos já interpretação. De outro, os intérpretes
não podem estabelecer vínculos ou associações que não sejam previamente resultantes. Há, em vista disso, um inacabamento constitutivo da interpretação que se assenta no dado de que não há algo
a ser interpretado, pois que tudo é sempre interpretação5. Por isso,
não há um estado terminal a ser atingido. Destituem-se, assim, os
lugares fixos do intérprete e do interpretado e do signo, do significado
e do significante que passam a ser intercambiáveis. É possível, por
conseguinte, conceber, de um lado, a imposição de uma perspectiva
e, de outro, excluir em definitivo a figura do intérprete, pois não há
perspectiva antropocêntrica, subjetivista ou mesmo cognitiva.
5
O filósofo francês Michel Foucault reconheceu nos textos de Nietzsche a dimensão
primordialmente instituinte da interpretação, considerando que Nietzsche, juntamente
com Freud e Marx, introduz uma nova hermenêutica mediante um redimensionamento da interpretação. Na perspectiva de Foucault, esses autores distanciam-se da
tradição interpretativa, pois “não multiplicaram de modo algum os signos do mundo
ocidental. Eles não deram um sentido novo às coisas que não tinham um sentido. Eles
na realidade transformaram a natureza do signo e modificaram a feição com a qual o
signo poderia ser interpretado” Com relação aos estabelecimentos, por parte desses
pensadores, dos postulados de uma hermenêutica moderna acrescenta ainda, “se a
interpretação não pode jamais acabar, isso se dá simplesmente porque não há nada
a interpretar, porque no fundo tudo é sempre interpretação, cada signo é ele mesmo
não a coisa que sofre a interpretação, mas interpretação de outros signos” (Cahiers
de Royaumont. Paris: Minuit, 1967, p. 183-192) Não podemos nos furtar a admitir a
influência de Foucault sobre a perspectiva de “abertura irredutível” da interpretação
em Nietzsche. Efetivamente, a proposição de inacabamento da interpretação tem, nesse
pensador, suas diretrizes. Contudo, em nossa abordagem, partimos da compreensão
de uma dimensão especial conferida por Nietzsche à fisiologia, entendendo que
“quem” interpreta são impulsos, forças, vontades que, visando a ser mais, impõem
sua perspectiva. Nesse caso, o aparato conceptual nietzschiano não é utilizado como
um operador, mas enquanto rede de conceitos que interligados compõem uma filosofia,
ainda que situando o filosofar em uma nova dimensão.
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
À genealogia cumpre justamente perscrutar os sucessos ou fracassos fisiológicos que se expressam nos valores. Por isso, detém-se
no conhecimento da criação e das condições de criação dos valores
perguntando pelo próprio valor deles. O valor, para a genealogia,
apresenta dois aspectos: por um lado, é o ponto de partida para a
avaliação, por outro, é estabelecido a partir de uma dada avaliação.
A questão da avaliação é o ponto principal para o estabelecimento
do valor de um valor em sua referência à promoção ou obstrução da
vida. Para Nietzsche, toda e qualquer atividade humana se apresenta
como avaliação, mas essa avaliação é desde sempre o introduzir de
uma interpretação. Quem interpreta não é um existente movido pela
cognição, mas as lutas entre os diversos impulsos. Há uma correspondência entre nossos impulsos e nossas avaliações, uma vez que estas
últimas decorrem de um crescer ou de um declinar que se expressa
em estimativas de valor. Eis o porquê do estabelecimento de uma
tipologia, já que o caráter agonístico presente no instituir do valor
remete a perspectivas divergentes que em termos de suas manifestações no homem remontam a tipos disjuntivos denominadas pelo
filósofo senhor/nobre e escravo/vil. Remetem a constituições díspares
que, no limite, expressam a condição de uma vida, os seus sucessos
ou fracassos fisiológicos. Compreende-se, a partir disso, a conhecida
estratificação nietzschiana que, tendo por pano de fundo a questão
fisiológica aplicada ao organismo, estabelece a disjunção forte/fraco.
Assim, à genealogia cumpre papel decisivo, pois, ao identificar o
duplo aspecto existente no valor, refere-o ao tipo que o institui, ao
determinar o tipo remete-o à sua condição de vida e ao conferir à vida
seu caráter agonístico a compreende enquanto jogo permanente de
nossos impulsos, cujo resultado obtido em termos de fracasso ou êxito
na obtenção de mais potência constitui a própria interpretação.
Queremos mostrar que há, a partir de Nietzsche, uma reviravolta
em termos de compreensão, enunciada pela recusa em conceder ao
estado consciente o primado da significação. A consciência não decadernos Nietzsche 27, 2010 |
151
Azeredo, V. D.
sempenha a função mais nobre no organismo, ao contrário, na visão
do filósofo, desenvolveu-se devido à necessidade de comunicação,
devendo ser vista como um órgão condutor de algo sem, todavia,
responsabilizar-se pela condução dos processos no organismo6.
Em vista disso ele enuncia que “tudo o que se torna consciente foi
previamente preparado, simplificado, esquematizado, interpretado”
(KSA 13.52, Nachlass/FP 11[113]). O filósofo não acredita na supremacia desses órgãos que teriam, em si, a competência e a função
de atingir as coisas mesmas ou condicionantes referentes à verdade
dessas coisas. Entende o seu desenvolvimento na perspectiva da
utilidade. Com relação aos órgãos do conhecimento diz: “Todos os
órgão do conhecimento e dos sentidos são unicamente desenvolvidos
quanto às condições de conservação e de crescimento”, em vista
disso, simplificam e esquematizam. Em termos da crença na razão
declara: “A confiança na razão e em suas categorias, (...), na escala
de valores da lógica, demonstra somente a utilidade desta para a
vida, utilidade já demonstrada pela experiência e não sua ‘verdade’”
(KSA 12.352, Nachlass/FP 9 [38]).
6
Em Para a genealogia da moral, ao realizar uma genealogia da própria espiritualidade mediante uma hipótese histórico-interpretativa da inscrição do social no
homem, afirmará que, outrora, o homem desenvolvia plenamente os seus instintos e,
inclusive, tinha neles o guia certeiro de sua ação A partir da sua inserção na sociedade, entretanto, eles perderam o valor, foram colocados em suspenso, já que não
serviam de guia diante de novas condições de existência. Desde então os homens
foram obrigados a desenvolver as habilidades do espírito, “eles foram reduzidos, esse
infelizes, a pensar, a concluir, a calcular, a combinar causas e efeitos; eles foram
reduzidos a sua consciência (Bewusstsein a seu órgão mais miserável e falível” Para
ele, “a consciência (Bewusstsein) é a última e mais tardia evolução da vida orgânica
e, conseqüentemente,, aquilo que há de menos acabado e de mais frágil nela” Daí
a sua consideração acerca da infelicidade humana, uma vez que é reduzida a um
sistema cuja fraqueza interna demanda dificuldades em sua determinação como guia
da ação. Contudo, a sua inserção na sociedade requer a comunicação e, portanto, a
consciência: “vivendo isolado, como um animal feroz, o homem poderia muito bem
viver sem ela” (GM/GM, II, 16, KSA 5. 321).
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
A consciência, na sua visão, “não é mais do que um ‘instrumento’, nada mais, – no mesmo sentido em que o estômago é um instrumento” (KSA 11.576, Nachlass/FP 37 [4]), e subordina-se ao corpo
enquanto organização assim como os demais seres que o compõem.
É a multiplicidade hierarquizada em um corpo que se manifesta
quando das produções desse corpo, pois, para ele, “[o] ‘aparelho
neuro-cerebral’ não foi construído com esta ‘divina’ sutileza com a
única intenção de produzir o pensamento, a sensação, a vontade’”
(KSA 11.576, Nachlass/FP 37[4]). Na sua visão, processa-se o contrário: “para produzir o pensar, o sentir e o querer, não há necessidade de um ‘aparelho’, mas que esses fenômenos, e somente eles,
são ‘a coisa ela-mesma’” (KSA 11.576, Nachlass/FP 37 [4]). Ora,
nem o termo ‘aparelho’ nem ‘a coisa ela mesma’ têm realidade nessa
exposição: são utilizados apenas para conferir ao pensar, ao querer
e ao sentir o caráter efetivo presentes no efetivar-se de cada força e
vontade de potência em relação. Cada ser quer, pensa, sente e, ao
fazê-lo, impõe sua perspectiva provisória, perpetuando a mudança
e expressando uma determinada hierarquia resultante da luta entre
as diversas forças.
É o fio condutor do corpo que Nietzsche propõe, em termos de
interpretação, como medida das produções humanas. Efetivamente,
ele entende a esfera de um sujeito somente como deslocamento, quer
dizer, como crescendo ou diminuindo enquanto se esforça para ser
mais. A sua introdução se deve a razões práticas, utilitárias, que
visam à compreensão do vir-a-ser a partir de sua fixação7. Não há
7
Nietzsche endereça sua crítica, especialmente, ao sujeito cartesiano, à unidade do
“eu penso” enquanto certeza indubitável. O problema de Nietzsche com relação a
Descartes é a adoção do pensamento como medida do efetivo. Ao fundar na subjetividade todo e qualquer conhecimento, Descartes a põe como realidade primeira e
propriamente fundante, o “eu penso” é ponto de partida de toda a filosofia cartesiana:
“E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que
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153
Azeredo, V. D.
sujeito, mas sujeitos, quer dizer, o homem como multiplicidade de
vontades de potência: “A hipótese de um sujeito unitário talvez não
seja necessária”, escreve Nietzsche, e, na seqüência, introduz no
lugar da unidade a hipótese de uma multiplicidade, que passa a
nortear a sua investigação acerca do homem: “talvez seja igualmente
permitido admitir uma multiplicidade de sujeitos, cuja interação e
todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar,
julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que
procurava” (DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Abril cultural, 1983,
(Col. “Os Pensadores”), p. 46). Partindo da unidade do pensamento, Descartes deduz
a multiplicidade desse primeiro simples, o que, na leitura de Nietzsche, caracteriza
o procedimento metafísico do qual busca se distanciar. Na sua visão, “[o] pensar não
é para nós um meio para ‘conhecer’, porém para designar o acontecer, para ordená-lo
e torná-lo manipulável para nosso uso” (KSA 11.637, Nachlass/FP 40 [20]). De outra
parte, é a fragilidade da substancialização do cogito cartesiano que Nietzsche procura
mostrar, ao enfatizar que o sujeito não pode se demonstrar a si mesmo, salvo se tivesse
um outro ponto de apoio fora dele que o pudesse sustentar, o que, na avaliação do
filósofo alemão, justamente, falta. Ora, é a resposta metafísica de Descartes de que
existem os pensamentos, mas como eles são o ‘eu’ pensando, conclui que o eu é
uma coisa que pensa, estabelecendo a sua existência substancial tanto no Discurso
do método: “para pensar, é preciso existir” (op. cit.,. p.47) quanto, especialmente,
nas Meditações: “Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente;
mas que coisa? Uma coisa que pensa” (DESCARTES, R. Meditações, op. cit. p.
94). O eu, em Nietzsche, é uma construção, tão-somente uma ficção reguladora que
viabiliza introduzir no vir-a-ser a permanência. O seu ponto de partida é, por isso,
outro, qual seja, a interpretação do corpo e da fisiologia, porque, ao invés de partir
de uma unidade subjetiva, toma a multiplicidade que compõe um organismo como
medida de sua apreciação e entendimento: “O fenômeno do corpo é o fenômeno mais
rico, mais claro é mais cognoscível, a ser colocado metodicamente antes...” (KSA
12.205, Nachlass/FP 5 [56]). Tomando o corpo como guia, é a diversidade que se
revela. Convém mencionar que Nietzsche não estabelece a unidade do corpo como
parâmetro e tampouco tenciona investigar seu significado último, mas introduz uma
interpretação acerca do pensar, do querer e do sentir perpassando a multiplicidade
que o homem é. Trata-se de admitir uma multiplicidade de sujeitos em luta entre
si. Eis a hipótese de Nietzsche: “O sujeito como multiplicidade” (KSA 12.205,
Nachlass/FP 40 [9]).
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
luta entre si estejam na base do nosso pensamento e, em geral, da
nossa consciência” (KSA 11.632, Nachlass/FP 40 [9]).
Compreender o corpo como responsável pela imposição de todo
e qualquer sentido e valor, já que pensa, sente e quer, traz conseqüências importantes referentes à construção do domínio significativo.
Nietzsche inaugura outra forma de interpretação para as produções
humanas, pois confere à rede instintual, às diversas vontades, a primazia na composição da exterioridade. A exterioridade, nesse caso,
quer designar os domínios concernentes ao conhecimento, à moral,
à política, enfim, às relações de dominação da e na natureza e do e
no homem enquanto organizados socialmente, envolvendo, por isso,
a dimensão semântica. No limite, os corpos propõem e impõem interpretações que formam ao mesmo tempo em que se formam. Essas
organizações plurais e efêmeras – com suas interpretações também
plurais e efêmeras – retiram do espírito a competência legisladora,
dissolvem o conceito de razão à medida que o tornam pequeno, ineficiente, um mero “instrumento” corpo. Assim Nietzsche o apresenta
em Assim falava Zaratustra: “Instrumento de teu corpo é, também,
a tua pequena razão, meu irmão, à qual chama ‘espírito’, pequeno
instrumento e brinquedo da tua grande razão” (Za/ZA, I, Dos desprezadores do corpo, KSA 4.39). Dessa forma, qualquer dimensão que
se queira conferir ao sujeito, em Nietzsche, não se pode endereçar
à unidade do espírito, mas à multiplicidade do corpo. Registros
teóricos e práticos, ultrapassando a pequena razão, estão unidos nas
diversas manifestações da grande razão, que o homem é.
Ora, se a consciência não tem um papel fundamental e os órgãos
do conhecimento obedecem a condicionantes de ascensão e de declínio, é o que basta para pôr em xeque a onipotência do intelecto
tanto em termos de competência quanto em termos de produção,
conferindo o primado da significação às necessidades orgânicas,
às condições de uma ascender ou de um declinar manifestas nos
organismos e expressas em suas estimativas de valor. No limite, são
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155
Azeredo, V. D.
resultantes de uma interpretação, constituem a imposição de uma
perspectiva, pois não há outro modo de estar no mundo salvo o interpretante, sem, todavia, a inserção do intérprete. Convém considerar
de modo radical a elevação de toda produção humana ao estatuto da
interpretação. Nesse sentido, a própria exposição nietzschiana não
se furta a essa classificação, já que se apresenta igualmente como
uma interpretação. A avaliação de seu valor dependerá sempre da
promoção ou obstrução da vida, do ascender e do declinar que governam a luta constante a partir da qual se desenvolvem os organismos
enquanto impulsos que se digladiam permanentemente.
Não requeremos para Nietzsche uma positividade conceitual
no sentido de ele ter uma posição privilegiada que permitiria descrever a realidade. Mas, ao contrário, o que propomos como eixo
central de sua filosofia é, por um lado, a rejeição de uma posição
de neutralidade que captaria o mundo como um dado prévio e,
por outro, a afirmação de uma relação impositiva do homem com
o mundo. Esse é o sentido de o valor do mundo estar em nossa
interpretação, de as interpretações humanas serem avaliações
perspectivas por meio das quais manifestamos um crescimento de
potência. Se o filósofo recusa a noção de verdade como predicado
das concepções de mundo é porque o entende enquanto produto da
imposição perspectiva. Isso faz do mundo um fluxo, uma falsidade
em constante deslocamento. Dizer algo acerca do mundo e dos existentes é propor uma falsidade que pode se mover, se alterar. Daí a
própria filosofia de Nietzsche, à medida que propõe uma leitura do
mundo, não poder se furtar a essa classificação sem comprometer
o conjunto da sua exposição.
Em Para além de bem e mal, o filósofo se dispõe “a pôr o dedo
sobre artes-de-interpretações ruins” (JGB/BM 22, KSA 5.37), indicando, com esse procedimento, que as demais explanações são
interpretações, diferindo, assim, em função da qualidade daquilo
que professam, mas não de sua verdade, diz: “Mas como se comenta,
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
isso é interpretação, não texto”. Em termos da existência de ângulos, visões e perspectivas díspares afirma, “poderia vir alguém
que, com a intenção e a arte de interpretações opostas, soubesse,
na mesma natureza e tendo visto os mesmos fenômenos, decifrar
precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável
de reivindicação de potência”, acrescenta ainda “um intérprete”,
nesse caso como ele, “que vos colocasse diante dos olhos a falta
de exceção e a incondicionalidade que há em toda ‘vontade e de
potência’ (...) e que, contudo, terminasse por afirmar desse mundo
o mesmo que vós afirmais, ou seja, que tem um decurso ‘necessário’
e ‘calculável’, mas não porque nele reinam leis, mas porque absolutamente faltam as leis, e cada potência, a cada instante tira sua
última conseqüência”. Com relação à sua própria filosofia, portanto,
deixa claro que se configura também como uma interpretação ao
admitir que lhe seja feita a seguinte objeção, “posto que também
isto seja somente interpretação – e sereis bastante zelosos para
fazer essa objeção? – ora, tanto melhor!”. O dizer o mundo, em
seus diversos âmbitos, é o propor e o impor de uma interpretação,
cujo texto remete sempre ao olhar perspectivo de seu autor e, posteriormente, do leitor.
Reconhecemos outra especificidade na filosofia de Nietzsche
com referência ao tipo de texto que, a nosso ver, se apresenta igualmente como elemento que o distancia da tradição e que se vincula
diretamente com a exposição acerca do interpretar. A obra do filósofo
permite uma diversidade de possibilidades em termos de interpretação, pois não formula proposições inequívocas, cujo corolário seria
evidente, mas se apresenta como algo a ser decifrado. Mesmo o
decifrar não implica, no caso, o estabelecimento de elementos precisos, mas da construção de elementos possíveis que incessantemente
podem vir-a-ser no domínio do texto, fazendo com que percebamos o
decifrar como um exercício de experimentação em que cada elemento encontrado abre novas possibilidades de combinação, no sentido
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Azeredo, V. D.
do interpretar e, portanto, da experimentação que se realiza com o
próprio pensar. Esse modo de escrever reconhecemos como parte
integrante do projeto filosófico de Nietzsche que, ao não separar
pensamento e vida, forma e conteúdo, e ao entender toda produção
humana como interpretação, busca uma escrita que veicule essa
indissociabilidade como parte integrante de sua filosofia, suscitando
no seu leitor a multiplicidade de perspectivas.
Considere-se que Nietzsche requer como condição de interpretação de um texto o deter-se demoradamente sobre ele enquanto
condicionante de possibilidades de compreensão. Mas, gostaríamos
de acrescentar que se trata de uma condição necessária, mas não suficiente, pois não há medida precisa para a interpretação. O decifrar
poderia passar tanto pela cumplicidade, quanto pela imparcialidade.
Ora, se, de um lado, a cumplicidade requer o abandono da imparcialidade, de outro, a própria imparcialidade já se apresenta como
elemento a ser interpretado. Nesse sentido, o texto nietzschiano, em
nossa ótica, remete todo o afirmar, o produzir, ao interpretar. Com
isso, lê-lo já é, também, interpretá-lo, mas a compreensão, quando
não são fornecidos parâmetros de deduções aceitos como evidentes
na academia, requer, então, uma cumplicidade, que entendemos
como aceitação de um exercício do próprio pensar, que, ao invés de
fornecer uma conclusão definitiva, fornece uma diversidade de possibilidades ainda não realizadas de interpretações, de pensamentos
que afloram a partir da própria diversidade de perspectivas que uma
idéia pode suscitar.
Ora, consoante Nietzsche, as possibilidades de experimentação
com o pensamento não fornecem respostas definitivas, o que, de
um lado, justifica a diversidade de compreensões de um mesmo
texto e, de outro, fornece elementos precisos para elevarmos toda
afirmação ao estatuto de interpretação. No limite, está a recusa
peremptória de objetividade e correção. Daí Nietzsche afirmar que
“Um mesmo texto permite inumeráveis interpretações: não há inter-
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
pretação ‘certa’ (richtige)” (KSA 2.39, Nachlass/FP 1[120]).8 Se o
predicado ‘certa’ implode a própria circularidade da interpretação,
remetendo-a a algo fixo e determinado à sua ausência, devido à
ausência de medida, conduz a um estado de imprecisão que beira o
relativismo das posições possíveis acerca da interpretação. Ainda
assim, reconhecemos que o texto aparece como o limite possível para
o sentido, mesmo que aponte para a sua inevitável diversidade. A
exclusão das possibilidades de interpretação torna-se, a nosso ver,
um dos horizontes de uma possível justiça, enquanto correção no
que se refere à interpretação da interpretação de Nietzsche; pois, se
não há interpretação certa, é porque só existem interpretações. Eis a
medida que consideramos ser, ao mesmo tempo, flexível e redutora
das possibilidades interpretativas. Enfim, ao afirmar a inexistência
de correção, certeza, justiça no que concerne à interpretação, Nietzsche quer resgatar a presença de um círculo interpretativo para além
do qual não há domínio fundacionista. Entendemos, assim, que o
próprio fundamento carece de correção por expressar uma interpre-
8
Os textos de Nietzsche receberam interpretações diversas que, em alguns casos, se
excluem mutuamente. Não se trata, como no caso de um autor da tradição, entendida
como de Platão a Hegel, de encontrar uma nova possibilidade, um elemento não
tematizado, uma relação ainda não estabelecida, mas de cada texto ser mesmo essa
concentração de possibilidades. Isso parece explicar a diversidade de interpretações
que fazem de Nietzsche o último metafísico, como afirma Heidegger, ou aquele que
inaugura uma nova hermenêutica, como assevera Foucault, ou ainda como a aurora
de uma contracultura, caso se siga uma das leituras de Deleuze. Em se tomando essa
diversidade de possíveis como realizáveis em cada exposição, vemos que o texto
nietzschiano comporta igualmente uma diversidade de possibilidades. Müller-Lauter
aponta como motivo dessa diversidade a característica da sua obra: “Nietzsche não
nos oferece uma obra fechada em si, unívoca em suas idéias, mas diversos textos
curtos, cuja conexão, se não é contestada, é discutida de maneira controversa pelos
intérpretes” (MÜLLER-LAUTER, W. “O desafio Nietzsche”. Trad. da Comissão
Editorial. In: Discurso, n.21, São Paulo, Departamento de Filosofia da Universidade
de São Paulo, 1993, p. 7- 29).
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
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Azeredo, V. D.
tação. É a circularidade da interpretação introduzida por Nietzsche
que, permitindo a sua leitura desde esse prisma, possibilita situá-lo
na tradição ou não da metafísica no Ocidente. No limite, afirmar que
não há interpretação correta exige a eliminação do fundamento.
Identificamos o surgimento de duas questões referentes à interpretação que se faz de Nietzsche e à leitura que ele faz da interpretação, quais sejam, a correção da interpretação dos textos de Nietzsche
e o sentido da interpretação no seu pensamento. Enfim, se não há
interpretação certa, a questão alusiva à correção da interpretação de
textos torna-se sem sentido, salvo se o sentido da interpretação no
pensamento de Nietzsche fornece uma medida que se coadune, ao
mesmo tempo, com a possibilidade de sua ausência. Reconhecemos
que, se só existem interpretações, tanto a interpretação do texto de
Nietzsche quanto a interpretação introduzida por Nietzsche remetem
a uma perspectiva irredutível à unidade. Trata-se, em nossa ótica, da
imposição de uma perspectiva tanto acerca do texto quanto acerca
do mundo. Em ambos os casos, a exclusão do fundamento através
da diversidade de perspectivas torna-se a medida da compreensão.
Nesse horizonte, não vemos como seja possível partir quer da dedução da multiplicidade de uma unidade quer da introdução de um
fundamento último.
Por essa razão, recusamos a afirmação de Habermas de que
Nietzsche esteja preso aos pressupostos modernos e rejeitamos a
possibilidade de uma interpretação que promova essa inserção,
pois ainda que não haja interpretações corretas, há de se reconhecer que Nietzsche subverte a ordem vigente ao não separar ação e
representação, pensamento e vida e isso se explicita em seus textos
inclusive como recusa do sujeito fundante do ser, do conhecer e do
agir e por aqui, justamente, passaria o rigor de um não fornecimento
de referenciais representativos. Observe-se a intensidade veiculada pelo texto nietzschiano manifesta na singularidade daquilo que
descreve e que, por isso, se faz mediante outra linguagem. O texto
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
veicula relações de forças porque fala de forças em relação. Esse
propósito contido no texto nós apontamos como desprendimento de
uma interioridade da consciência ou do conceito, uma vez que essas
noções são dirimidas em uma vivência que exclua um dado domínio
de códigos instituidores. Daí não haver significados prévios e tão
somente postulações.
Por outro lado, há de se considerar que o que caracteriza a
palavra, em Nietzsche, é a vulgaridade enquanto iguala o desigual
e transforma o próprio em algo comum, levando-o a busca de um
discurso que contemple e expresse a singularidade. Em sua definição, “Palavras são sinais sonoros para conceitos, mas conceitos
são sinais-imagens mais ou menos determinados para sensações
recorrentes e associadas...”. Porque as palavras são sinais sonoros
para conceitos e os conceitos são sinais-imagens para sensações
associadas, Nietzsche considera que mesmo utilizando as mesmas
palavras, não há garantia de compreensão: “é preciso utilizar as
mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é
preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro” (JGB/BM
268, KSA 5.221). É condição do comunicar o compartilhamento
de perspectivas que se assentam nas mesmas experiências. Ainda
assim, o entendimento processa-se no âmbito do comum porque a
própria linguagem falada e escrita carrega um grão de desprezo.
Vamos reencontrar, invariavelmente, no signo a conversão da
pluralidade em unidade, e na palavra, o tornar comum, vulgar
mediano mediante a igualação do desigual. Em ambos os casos, a
perspectiva do rebanho. Nesse ponto, convém mostrar que, há uma
distinção, cara a Nietzsche, entre profundidade e superfície que
permite compreender a remessa da palavra ao comum. Com relação à
superfície, trata-se, para o filósofo, de tornar comum, através da fala,
os estados vivenciados. Por profundidade, ele entende os processos
indeterminados, desconhecidos, inapreensíveis, que se passam na
luta entre aquilo que ele denomina de impulso, força ou vontade de
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Azeredo, V. D.
potência. Instância detentora de qualquer expressar, não se deixa
vulgarizar a ponto de ser traduzida em uma linguagem passível de
compartilha, mas, ao contrário, é vedado o acesso a esse domínio
via consciência. Nada há de pessoal na consciência, na visão do
filósofo, já que a mesma se desenvolveu devido à necessidade de
comunicação, estando, por isso, vinculada à rede do comunicar e do
utilizar. Tem-se aqui uma especificidade da compreensão nietzschiana acerca do pensar e do estar consciente desse pensar: “o homem
como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso;
o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele,
e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior...” (FW/GC 354,
KSA 3.590). A distinção existente entre o pensar, que não se separa
do querer e do sentir, e do estar consciente desse pensar separa
diametralmente a profundidade e a superfície. No primeiro caso, a
inexistência de comunicação; no segundo, a vulgarização que permite o tornar comum. Disso decorre a impossibilidade de apreensão
e compartilha dos processos que se passam aquém da comunicação,
isto é, de tudo aquilo que se passa em profundidade.
Convém retomar a questão da consciência agora em sua relação
com a linguagem. Nietzsche condiciona o desenvolvimento da consciência, enquanto esse tomar consciência de si, ao da linguagem, pois
entende que a necessidade, oriunda da fragilidade humana, determinou a precisão de um tornar comum alguns estados. É enquanto
ser social que o homem compartilha sua superfície com os demais,
visando à utilização dessa comunhão para o desenvolvimento do rebanho. Entretanto, o tomar consciência de si implica o não conhecer
a si, já que trazer algo não consciente à consciência requer o abandono de tudo que for pessoal e individual. Por isso Nietzsche, afirma,
acerca da consciência, “que não faz parte propriamente da existência
individual do homem, mas antes daquilo que nele é da natureza da
comunidade e do rebanho” e, acrescenta, com relação à possibilidade do tomar consciência de si, que “cada um de nós, com a melhor
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Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
vontade de entender a si mesmo tão individualmente quanto possível,
de ‘conhecer a si mesmo’, sempre trará a consciência, precisamente,
apenas o não-individual em si...” (FW/GC 354, KSA 3.590).
De outra parte, o filósofo afirma resolutamente a pessoalidade,
a singularidade, a impossibilidade de compartilhar nossas ações,
situando-as em uma dimensão de profundidade que não pode ser
atingida sem ser, ao mesmo tempo, abandonada. É isso que ele
denomina de corte transversal, quer dizer, querer adentrar na profundidade e trazê-la à superfície implica ficar na superfície, pois
a fala, na sua ótica, tem sua invenção relacionada ao mediano, ao
superficial, ao corte transversal. Em Crepúsculo dos ídolos, ele afirma, primeiramente, com relação à impossibilidade de comunicação
de nossas vivências, que “[n]ão nos estimamos mais o bastante,
quando nos comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são
nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se se quisessem. É que
lhes falta a palavra”. Posteriormente, ele responde que o problema
da inaptidão para o comunicar de nossas vivências se deve à característica da fala: “Quando temos palavras para algo, também já
o ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao
que parece, só foi inventada para o corte transversal, o mediano,
o comunicativo” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo 26, KSA
6.128). Nesse sentido, Nietzsche identifica como sendo dramático,
na condição humana, por ser uma espécie de condenação, o fato de,
em querendo conhecer-se, simultaneamente, desconhecer-se. Em
querendo comunicar-se, simultaneamente, perder-se. Eis a questão
central que motiva a busca de uma forma diversa de comunicação e
expressão. No limite, é preciso construir uma linguagem que veicule
o singular, a multiplicidade sob a face mediana e unívoca.
Se Nietzsche reconhece, por um lado, que não basta utilizar as
mesmas palavras para que se consiga o entendimento, remetendo
tal possibilidade ao compartilhamento de vivências, por outro, tem
consciência de que mesmo as vivências similares, enquanto condicadernos Nietzsche 27, 2010 |
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Azeredo, V. D.
ção de entendimento da palavra, não impedem o mediano, o comum,
o vulgar. Essa problemática, que se manifesta com maior clareza a
partir de Assim falava Zaratustra, conduz Nietzsche à construção
de um discurso diferente, em nossa avaliação, ao mesmo tempo filosófico e literário, um discurso que veicule a profusão infindável de
perspectivas, as vivências singulares. Enfim, na sua compreensão:
“De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve
com seu próprio sangue” (Za/ZA, I, Do ler e do escrever, KSA 4.48).
Mas como seria possível escrever com sangue se o veículo para fazêlo é mediano? Como conciliar o próprio com o comum se, em ambos
os casos, utiliza-se a palavra, introduzem-se conceitos? Seguindo
a exposição de Nietzsche, o melhor seria calar, não parece haver
alternativa exceto o silêncio, pois o comunicar já contém um grão
de desprezo ao converter o próprio em comum. Logo, todo discurso
está condenado à perspectiva do rebanho.
A resposta a essas questões que nos colocam no limite tênue
entre o silêncio e a palavra encontra-se em Nietzsche na própria arte
do estilo: “Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos, por
meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo
estilo”. É através da multiplicidade de estilos que Nietzsche consegue
comunicar um estado interior, veicular vivências singulares, ultrapassar o mediano e o comum enquanto arte de comunicar por meio de
palavras. É nele que se veicula e se vincula o sangue ao signo. Por
isso, afirma Nietzsche: “Bom é todo estilo que realmente comunica um
estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos”
(EH/EH, Por que escrevo tão bons, 4, KSA 6.304).
Ao romper com o modo convencional de expor conceitos recorrendo a metáforas, hipérboles, aforismos, poemas, ditirambos e,
também, a ensaios e textos autobiográficos, Nietzsche quis comunicar
um estado interior. Através da diversidade, o autor de Assim falava
Zaratustra tencionou deixar falar o tempo dos signos entendendo as
leis do período como arte dos gestos. Efetivamente, Nietzsche não
164 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
consegue subverter a gramática, mesmo afirmando que “não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...”
(GD/CI, A razão na filosofia, 5, KSA 6.77) permanece, ao modo de
Descartes, no domínio do sujeito, predicado e objeto. Entretanto,
Nietzsche sabe que “A ‘razão’ na linguagem é uma enganadora
personagem feminina” e, se não pode romper com as suas regras,
pode mudar a forma de seu acesso a ela penetrando, como sugere
Drummond, “surdamente no reino das palavras”9. Por isso diz Zaratustra reiteradas vezes aos seus interlocutores: “Será preciso primeiro
partir-lhes as orelhas para que aprendam a ouvir com os olhos” e
reconhece, constantemente, que: “o sentido do que ele fala não diz
nada aos seus sentidos (Za/ZA, Prólogo, 7, KSA. 4.22)”, apontando
para outro domínio em termos do compreender e expressar.
Experiência similar, nós encontramos no filósofo Nietzsche que
procura se comunicar sem, contudo, carregar em seu discurso um
grão de desprezo. Que precisa da gramática sem, todavia, como
critica em Descartes, vê-la como verdade eterna que termina por
estabelecer “o sujeito ‘eu’ como condição de ‘penso’” (KSA 11.637,
Nachlass/FP 40 [20]). Trata-se de encontrar um modo de driblar a
reconhecida armadilha das palavras. Eis o sentido da multiplicidade de estilos em Nietzsche. É através deles que ele contempla nas
palavras “as mil faces secretas sob a face neutra”. É no horizonte
de uma aproximação entre os discursos filosófico e literário que
Nietzsche entende remeter a linguagem à natureza da imagem.
Através de seu uso nada parcimonioso de metáforas, hipérboles,
aforismos, poemas, ditirambos, ensaios e textos autobiográficos
Nietzsche tenciona introduzir na palavra o próprio e o singular,
o movimento e a multiplicidade. Enfim, trata-se de deixar falar o
pathos afirmativo por excelência através do introduzir de interpre
9
DRUMMOND, C. Obras completas. 2 ed. Rio de Janeiro: 1967, p. 138.
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165
Azeredo, V. D.
tações. Em sua diversidade estilística, é a transposição do dionisíaco
em pathos filosófico que suporta a construção de uma rede que ate
de modo indissolúvel pensamento e vida, forma e conteúdo, escrita
e sangue: “De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém
escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás
que o sangue é o espírito” (Za/ZA, I, Do ler e do escrever, KSA 4.48).
Em vista disso, em nossa avaliação, no pensamento de Nietzsche,
estabelece-se de direito um pensamento, uma visão e um vir-a-ser
primordialmente e infinitamente instituinte, já que os impulsos aparecem como verbo, eles são o interpretar, como sujeito, eles são o
intérprete, e como significação, eles são o significante e o significado
que se faz, não, todavia, enquanto ser, mas enquanto exercer-se.
Tal posição teórica, conforme o conjunto de nossa exposição,
permite reivindicar para o filósofo o ultrapassamento da tradição e
a aurora de uma nova filosofia mediante a recusa do aparato conceptual da modernidade e da tradição como um todo, seja do conceito
de razão seja da concepção de subjetividade enquanto seus eixos
articuladores. Dessa forma, inserir Nietzsche na tradição como pensador da interioridade, seja da essência, seja da consciência, seria
um contra-senso que conflitaria com a própria noção de vontade de
potência que está para além de qualquer compreensão de um sujeito
nos moldes cartesianos, kantianos e outros. Seria um contra-senso
ainda não considerar as possibilidades de experimentação com o
pensamento que seu texto propõe. Seria desconsiderar seu empenho
em conferir a toda afirmação o estatuto de interpretação e a busca de
outra forma de linguagem para expressar seu pensamento. Assim,
recusamos a afirmação habermasiana, em seu Discurso filosófico da
modernidade, de que a filosofia de Nietzsche estaria circunscrita
à modernidade ao permanecer subsidiada por uma consciência
temporal e pelo apelo à racionalidade. Em nossa avaliação, Nietzsche, efetivamente, não recorre aos pressupostos modernos, mas os
abandona e ultrapassa.
166 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e a modernidade: ponto de virada
Abstract: This paper tries to show that Nietzsche overcomes the philosophical pressupositions of modernity through the notion of will to power
as interpretation, giving to all affirmation the status of interpretation and
searching a new kind of language to express his thought. This way, we
refuse to accept Habermas’ affirmation, in his Philosophical Discourse of
Modernity, that the Philosophy of Nietzsche is circumscribed to modernity since it is dependent on a temporal consciousness and since it appeals
to rationality. According to our point of view, Nietzsche does not make use
of modern pressupositions at all.
Keywords: philosophy – modernity – language – interpretation
referências bibliográficas
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Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
167
Azeredo, V. D.
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Departamento de Filosofia da Universidade de São
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Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Col.
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. Ecce homo. Trad. Paulo César Souza, São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
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São Paulo: Brasiliense, 1987.
14.
. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
15.
. A gaia ciência. Trad. Paulo César Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
16.
. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
168 | cadernos Nietzsche 27, 2010
A crítica de Nietzsche
à moral kantiana: por
uma moral mínima
Érico Andrade M. de Oliveira*
Resumo: O presente artigo retoma a crítica de Nietzsche à moral kantiana por um duplo motivo. Primeiro, para mostrar a impossibilidade de se
pensar uma moral como um dado, cuja fundamentação caberia à filosofia
tecer. Segundo, tentamos estabelecer os primeiros passos para o projeto
de uma moral mínima que, sem recorrer à metafísica, preserva o caráter
relacional da noção de perspectiva em Nietzsche e a diversidade de predicações de moralidade às nossas ações. Concluiremos que uma moral
mínima se institui por um viés negativo, descrito pela seguinte regra: age
de tal modo que tua ação nunca se torne um valor absoluto. Essa regra se
constitui, por seu turno, como o único imperativo moral legítimo porque
passível de universalização.
Palavras-chave: moral – imperativo – condições mínimas.
Introdução
Kant tinha consciência de que nossas ações são, na maioria
das vezes, senão sempre, interessadas porque conforme nossas
inclinações1. Resta, contudo, saber se isso poderia invalidar um
critério semântico, por meio do qual Kant estabelecera as condições
que regulam a moralidade de nossas ações. Essa questão parece
*
1
Professor da Universidade Federal Pernambuco (UFPE).
Cf. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. P. Quintela. Lisboa:
Edições 70, 2000, Seção I.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 169
Oliveira, E. A. M.
ganhar um contorno decisivo na obra de Nietzsche que prescreve que
qualquer valoração de um ato moral requer uma pré-compreensão
do que é moral. Esta última não seria um capítulo da razão humana, mas o ponto para o qual converge toda predicação da natureza
do homem e de suas ações. Avaliar a moralidade das ações é já ter
disponível uma compreensão do valor. Com Nietzsche, o projeto de
traçar as condições epistêmicas que determinam a moralidade das
ações parece perder o sentido por incorrer, por assim dizer, num
erro lógico ou na contradição de se tentar fundamentar o que já é o
fundamento para qualquer forma de conhecimento: a moral.
A crítica de Nietzsche à moral kantiana mais que transcrever
uma dissonância de perspectivas diferentes sobre a ação moral,
suficientemente explorada pelos intérpretes desses filósofos, parece
apontar para uma impossibilidade de prover a moral de subsídios
suficientemente racionais que lhe assegurem a validade absolutamente objetiva de suas normas. Será que com Nietzsche chegamos,
nas palavras de Habermas, a um esgotamento irrevisável da razão
como norte determinante de nossas ações2?
Nessa perspectiva, o presente artigo tenta compreender se a
crítica de Nietzsche à filosofia moral kantiana inviabiliza qualquer
forma de fundamentação semântica da moral. Nossa tese é de que a
abertura ao perspectivismo, proposto por Nietzsche, por exemplo, e o
advento de outras possíveis compreensões da moral só são possíveis,
se aceitarmos, como pretendera Kant, condições mínimas para a
regulamentação das ações humanas. Ou seja, para que seja possível
rediscutir os valores e as ações humanas há de se admitir condições
mínimas que preservem a integridade e diversidade de opiniões. Sem
essa garantia mínima, o caráter relacional da noção de perspectiva
2
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Trad. R. Nascimento e L. Repa.
São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 125.
170 | cadernos Nietzsche 27, 2010
A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
em Nietzsche corre o risco de perder o sentido Essa garantia mínima
seria possível não propriamente por um desinteresse (ou interesse
puro) de nossas ações, conforme prescrevera Kant3. O caráter indeterminável do interesse na filosofia de Kant força-nos a nos afastar
dela e a tecer sua revisão por meio da postulação de um imperativo
que coadunaria moral e direito: “age de tal modo que tua ação nunca
se torne um valor absoluto”. Esse imperativo é de inspiração kantiana por representar, em certa medida, uma síntese dos imperativos
da moral e do direito, sem apelar, contudo, para a metafísica. Isso
seria possível por meio da definição do interesse como um elemento
necessário que institui as condições mínimas para a moralidade das
ações. Ou seja, o único interesse possível – porque passível de uma
avaliação – é o que se refere à manutenção das condições mínimas
para discussão sobre a validade moral das ações.
Desse modo, ao invés de propormos como condição para a ação
moral o desinteresse (ou interesse puro), tencionamos mostrar que
a noção nietzschiana de perspectivismo moral só pode ser levada
a cabo caso se considere um interesse comum, descrito na forma
de um imperativo, em manter em aberto as possibilidades de se
predicar valor a uma ação moral. Assim, para que seja mantido o
caráter relacional da noção nietzschiana de perspectiva, é necessário
estabelecermos como critério que nenhum interesse particular ou
de um grupo possa destituir a diversidade de perspectiva sobre a
predicação de moralidade às ações.
Para empreendermos essa tese, faremos algumas breves incursões nos pensamentos de Nietzsche, no intuito de recuperar
as suas críticas à moral kantiana, sobretudo, no que diz respeito à
impossibilidade de se postular uma moral que não esteja já imersa
3
KANT, I. loc.cit., Seção III, p.112; ver também: Idem, Crítica da razão prática. Trad.
V. Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002, Parte II, p. 241.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
171
Oliveira, E. A. M.
num contexto moral. Assim, defenderemos que o epicentro da crítica de Nietzsche à moral kantiana reside na falta de discussão, por
parte daquela moral, de um critério por meio do qual a produção e
a legitimação de valores são realizadas. Em um segundo momento,
propomos uma redefinição do imperativo moral com o propósito
de acentuar a necessidade de condições mínimas que permitam a
diversidade de compreensões sobre a moral ou, para usarmos as
palavras de Nietzsche, que permitam compreender e valorar nossas
ações em consonância com as diversas perspectivas do que seria o
humano. Concluiremos que o projeto kantiano apresenta problemas
conjunturais e estruturais, apontados por Nietzsche, mas só por meio
de uma revisão desse projeto é que podemos pensar as condições
mínimas para as eventuais divergências e concordâncias quanto
à moralidade. Uma primeira busca por essas condições mínimas
caracteriza o presente artigo.
Nietzsche: ensaios sobre uma metamoral
O diagnóstico que a filosofia de Nietzsche faz da moral não é
o de um médico que, descrente quanto à cura, passa a prover seu
paciente de um elixir milagroso capaz apenas de prorrogar sua vida
por um brevíssimo tempo. Sua filosofia não é uma revisão da moral.
Ela pretende mostrar que qualquer discurso sobre a moral emerge
de uma moral e a pressupõe. Com Nietzsche, a filosofia não se torna amoral, como alguns intérpretes erroneamente acreditam. Ela
passa a ser o local da denúncia que proclama que não existe moral
que não esteja enraizada numa compreensão metafísica do homem.
Para depurar e apresentar as raízes dessa concepção metafísica: a
genealogia da moral que, por um lado, guarda a incumbência de
denunciar a moral, por assim dizer, de rebanho, de cunho cristão;
por outro, apresenta as raízes históricas, psicológicas e sociais de
172 | cadernos Nietzsche 27, 2010
A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
todo o discurso sobre a moral. Da crítica à moral como rebanho à
genealogia da moral, veremos como a filosofia de Nietzsche se configura como uma crítica à moral kantiana, destacando que o ponto
neurálgico dessa crítica repousa na apresentação da contradição da
tentativa kantiana de pensar uma moral desinteressada4.
A tese que anima essa busca pela origem da moral encerra a
ideia fundamental de que todo discurso sobre a moral pauta-se na
moral de uma época ou cultura. A moral reflete estruturas sociais,
psicológicas e históricas do homem. Elevar uma moral, geralmente
associada a um grupo, ao patamar de universal é uma maneira de
impor um valor. É a vitória da maioria sobre o indivíduo. É a força
do rebanho que arrasta a diferença para inscrevê-la no seio da igualdade banal e impessoal. O rebanho é que dá à época seus contornos,
sua feição (JGB/BM 242, KSA 5.182-183).
A moral termina por aprisionar os homens num tempo que não
existe e lhes exige uma abnegação compatível apenas com a de anjos, cuja assepsia é capaz de desdenhar das nossas paixões mais vis.
É o caso da moral kantiana. As exigências feitas por Kant para que
uma moral fosse inscrita num patamar de universalidade, e portanto
fosse legítima, coincidem, para Nietzsche, com os preceitos de uma
religião que guarda uma prévia compreensão da natureza do homem
e tenta, com um controle total das paixões, homogeneizar os homens.
A individualidade é diluída no meio do rebanho:
Os homens mais semelhantes, mais costumeiros, estiveram e
sempre estarão em vantagem; os mais seletos, mais sutis, mais raros,
mais difíceis de compreender, esses ficam facilmente sós, em seu
4
Marton esclarece no detalhe pontos da crítica de Nietzsche à moral kantiana que não
correspondem, de forma, precisa, aos argumentos e teses de Kant. Nesse sentido,
para um estudo mais detalhado desse problema (MARTON, S. Nietzsche: das forças
cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.106 e 123).
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isolamento sucumbem aos reveses, e dificilmente se propagam. É
preciso invocar prodigiosas forças contrárias, para fazer frente a esse
natural, muitíssimo natural progressus in símile, à evolução do homem
rumo ao semelhante, costumeiro, mediano, gregário – rumo ao vulgar!
(JGB/BM 268, KSA 5.222)5.
A sociedade de rebanho é o sintoma de um problema ainda mais
fundamental: o instinto de conservação. Aqui as linhas descritas por
Nietzsche encontram em Kant um inimigo perfeito. Trata-se da moral
ascética e altruísta que, sob a máscara da igualdade e justiça, exige
dos homens atitudes irretocáveis e inexequíveis com o propósito de
assegurar – numa espécie de contrato social – a vida em comum. O
medo, que poderia corroer a vida social, precisa ser vencido; para
tanto, requer-se uma moral capaz de castrar e, portanto, de civilizar
a besta humana (GM/GM I, 11, KSA 5.274-277). O medo é aqui,
diz Nietzsche, o pai da moral (JGB/BM 201, KSA 5.122). Nietzsche
parece estar de acordo com Hobbes no que concerne à compreensão
da sociedade como um pacto regido pelo medo, menos por considerar
a sociedade fruto de um cálculo racional (cuja equação indica um
apaziguamento dos conflitos por meio da vida social) do que por
creditar a ela uma reunião de pessoas fracas e interessadas apenas
em suas respectivas sobrevivências.
A moral de rebanho esconde a perversão humana, a natureza
individual e egoísta do homem. Ela funciona como espécie de entorpecente que tranquiliza os instintos para que todos possam viver
harmonicamente, ainda que haja sempre um grupo que invariavelmente domine outro (JGB/BM 257, KSA 5.205-206). Por isso, a
religião é uma base ideológica que embriaga os homens e os condena
a viverem sempre sob a tutela de alguém ou de alguns. A abnegação
5
Ver também JGB/BM 202, KSA 5.124-126.
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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
religiosa é hipócrita porque aqueles que o fazem alimentam-se de
seus próprios interesses. O homem religioso pensa apenas em si,
sentencia Nietzsche (AC/AC, 61, KSA 6.251).
Nessa perspectiva, a exigência kantiana para atribuir o predicado de moral a uma ação configura-se como um pacto tácito com
a tradição cristã que eleva o instinto de sobrevivência ao patamar
moral. Escreve Nietzsche: “[...] é tempo, finalmente, de substituir a
pergunta kantiana, ‘como são possíveis os juízos sintéticos a priori?’
com esta outra: “por que é necessária a crença em tais juízos?” e de
compreender que semelhantes juízos devem ser tidos por verdadeiros
para a conservação dos seres de nossa espécie; mas isso não impede
que “eles também poderiam falsos!” (JGB/BM 11, KSA 5.25). As
condições semânticas do imperativo categórico confundem-se com
as exigências do cristianismo sob as quais o povo já se encontra. A
moral cristã é dada na sociedade e convém fundamentá-la, ainda
que por meio da eliminação de alguns de seus aspectos. Esse, aliás, foi o artifício que Kant empreendera em sua obra. Ele escrevia,
segundo Nietzsche, contra os sábios, em favor de um preconceito
popular [...] (FW/GC 193, KSA 3.504) na intenção de promover o
discurso popular ao patamar de fundamento metafísico. A promoção do discurso cristão e da sociedade de forma geral ao patamar
de moral universal é a marca da moral kantiana que se esquiva de
discutir os valores sociais, e os toma dogmaticamente como certos.
Por isso, Nietzsche pergunta se é necessário acreditar no imperativo
categórico. Qual é o valor desse imperativo?
Não pretendemos aqui insistir na filiação de Kant ao cristianismo, mas tencionamos mostrar como a crítica de Nietzsche
envereda-se por uma rejeição à ideia de que a principal questão
da moral seria dotá-la de um sistema de consistência metafísica
irrepreensível, como o imperativo categórico proposto por Kant.
Assim, a primeira crítica a Kant é à sua sujeição à moral cristã, que
no sistema kantiano se transforma numa forma de massificação do
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homem que se vê obrigado a agir de modo uniforme, como rebanho.
Em consonância com essas observações, Nietzsche apresenta uma
crítica que parece ser ainda mais radical porque põe em questão
a instituição de qualquer moral: o pressuposto para a predicação
do termo moral a uma ação já é moral. Nas palavras de Nietzsche:
“não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral
dos fenômenos” (JGB/BM 108, KSA 5.92).
Para preservar a indelével dimensão hermenêutica da moral,
Nietzsche tece uma crítica a Kant apontando que a moral, ciosa de
uma verdade eterna – um critério claro e absoluto de definir uma
ação enquanto ação moral –, esquece-se do terreno do qual ela surge.
Nesses casos, toma-se a moral como um dado e tenta-se fundamentála numa indumentária metafísica: “Os filósofos todos exigiram de
si, com seriedade tesa, de fazer rir, algo muito mais elevado, mais
pretensioso, mais solene: eles desejaram a fundamentação da moral – e cada filósofo acreditou até agora ter fundamentado a moral;
a moral mesma, porém, era tida como ‘dada’” (JGB/BM 186, KSA
5.105-106). Nietzsche parece defender – o que no âmbito epistemológico corresponderá, segundo Sellars, ao mito do dado – que as
definições de moral, em sua maioria, tomam os valores vigentes como
dados, que portam neles mesmos a legitimação da teoria. A moral
isenta-se de compreender os valores constituídos historicamente e
reclama para eles, quando são postos sob a túnica do rigor metafísico, um caráter universal. Nessa perspectiva, o discurso sobre a
verdade investe-se da pretensão de verdade no intuito de oferecer
à certa moral, contingente e histórica, um caráter racional capaz de
instituí-la como avalista de nossas ações.
A moral kantiana incorre na contradição presente em todos os
sistemas morais: a falta de discussão sobre o valor dos valores morais
(JGB/BM 6, KSA 5.19-20). Tecer um discurso que predique as qualidades de bem ou mal às nossas ações é já estar de posse do que designam essas qualidades. Assim, mesmo que concedêssemos a Kant
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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
a possibilidade de eventualmente agirmos de forma desinteressada,
isso não significa que essa ação, por si mesma, tenha um caráter
moral. Para tanto, é necessário tomar, previamente, o desinteresse
como um dos critérios para definir a moralidade de uma ação.
Ainda que Kant com sua moral, diríamos, desinteressada,
pudesse reclamar que o desinteresse não expressa nenhum valor
moral preexistente, por não se comprometer com nenhum valor
moral específico nem com o cristianismo cujas ações estão subordinadas aos mandamentos cristãos (heterenomia), isso não o isenta
da postura dogmática de tomar o desinteresse como um dado moral.
Por que agir de forma desinteressada significaria agir moralmente?
Aqui Kant seria obrigado, segundo Nietzsche, a revelar sua matriz
metafísica, em certa medida próxima ao cristianismo, por meio da
qual ele dispõe de sua concepção de homem e, por conseguinte,
porque ele atribui à ação desinteressada o caráter de moral. Mas,
perguntaria Nietzsche, que homem poderia ser o fiador para garantir
a identificação de uma ação desinteressada? Kant concordaria com
Nietzsche: nenhum homem. Por isso, a necessidade da razão de
postular a existência de Deus6.
O desinteresse, apregoado pela moral kantiana, termina por
levar Kant a abdicar da terra, da cultura, dos homens, para procurar
uma justificação para a ação moral no solo abstrato da metafísica.
O preço de tomar o desinteresse como critério para a ação moral
foi reavivar a metafísica, foi remeter a ação moral para o âmbito
do transcendente, salvaguardando-a da contingência histórica e
psicológica por meio de um apelo à metafísica. O minimalismo moral de Kant, que evita os interesses presentes em todas as morais
heterônomas, para proclamar a autonomia como base da moral é
demasiado metafísico para os seres humanos. O sucesso de Kant
6
KANT, I. Crítica da razão prática, op. cit., Livro II, Partes II e V-VII.
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é, para Nietzsche, um sucesso de teólogo (AC/AC 10, KSA 6.172);
pois Kant estaria mais preocupado em conservar-se por meio da implementação do sentimento de culpa entre os fracos – imobilizados
por seu sentimento de impotência por não ter tal virtude metafísica
e, por conseguinte, inofensivos – que propriamente por prover a
moral de uma compreensão mais aguda de sua origem. Em Kant, a
moral reforça seu caráter dogmático porque renuncia à procura por
suas origens para confinar-se nos valores dados, assumindo-os como
válidos por uma espécie de decreto, por assim dizer, divino.
As críticas de Nietzsche à moral são contundentes, menos por
seu forte caráter iconoclasta que pela denúncia que ela tece às
contradições sobre as quais estão todas as tentativas de se elevar a
moral, tomada como um dado, ao patamar de verdade intangível e,
portanto, metafísica. Nada escapa à crítica de Nietzsche, visto que
qualquer discurso moral é situado num contexto cuja contingência
lhe é aderente e indissociável. Só resta à moral assumir a existência
e garimpar no terreno aplainado da civilização outro modelo de se
atribuir valor a nossas ações. É necessário, dirá Nietzsche, transvalorar os valores, ou seja, deve-se retirar da moral a pretensão de
se estabelecer como um discurso unívoco e irrevisável por meio da
recusa do modelo metafísico – platônico e cristão (GM/GM III, 27,
KSA 5.408-409). A única forma de se pensar a moral é considerando
que todas as interpretações sobre a moral são apenas perspectivas
possíveis. Contrariamente à moral como um fato, Nietzsche apresenta-a como uma interpretação valorativa cujo crivo de atribuição de
valor repousa, ele mesmo, num valor, instituído socialmente.
Kant: entre moral e direito
A crítica de Nietzsche à moral kantiana atinge o âmago da pretensão de Kant de dotar a moral de um patamar metafísico que lhe
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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
concedesse o privilégio de não se submeter a nenhuma avaliação humana, contingente e transitória. A moral estaria salvaguardada das
culturas, da história, mesmo da estrutura sensível dos homens, por
reclamar para seu cumprimento um ato estritamente racional, imune
às intempéries dos sentidos. Ou seja, por não estar subordinada a
nenhum sentimento humano e, por conseguinte, a nenhum interesse
humano, a moral encerra a ideia de que podemos nos desvencilhar
de nossas condições históricas para realizar o que Kant chama de
reino dos fins7. E ainda que esse reino não corresponda a um mundo
suprassensível, ele incorpora-se à história na forma de uma teleologia
e, por conseguinte, a uma metafísica, dessa feita, fincada na ideia
da necessidade do desenvolvimento da razão.
O critério da racionalidade, aventado por Kant, recorre, sem
dúvida, à metafísica. Se ele não apela, por um lado, para uma
compreensão ontológica do homem enquanto um ser estritamente
racional, quando este último realiza o reino dos fins, por outro,
imortaliza o homem na história cujo transcorrer é determinado pelo
futuro. O futuro é imutável porque está inscrito na espécie humana
como marca de sua essência racional. A crítica de Nietzsche aponta
que o recurso à metafísica e ao desinteresse das ações empreendidos
pela moral kantiana não a isenta de pensar certos valores que estariam semanticamente de acordo com as exigências do imperativo
categórico. Assim, nem mesmo uma moral desinteressada não pode
escapar àquilo que na moral seria, segundo denuncia Nietzsche, o
mito do dado8. Ou seja, nenhum valor moral pode ser tomado por si
7
8
Idem, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, op. cit., p. 75 e 116; ou reino
moral, Idem, Crítica da razão prática, op. cit, p.132-135.
Essa expressão é usada por Sellars para designar o erro comum na filosofia e na
ciência de tomar a natureza como um dado que se oferece de forma bruta à percepção
do sujeito (SELLARS, W. Empirismo e Filosofia da Mente. Trad. S. Stein. Petrópolis:
Vozes, 2008).
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mesmo como valor moral. A partir da filosofia de Nietzsche pode-se
perguntar se seria possível pensar uma moral mínima?
Para fornecer uma resposta de inspiração kantiana, será necessário, defenderemos, atenuar a distância entre a moral e o direito
em Kant no intuito de apresentar as condições mínimas para a instituição de qualquer perspectiva sobre a moral. Isso seguramente se
afastará um pouco das pretensões estritamente kantianas. Primeiro,
apresentaremos algumas considerações sobre o projeto kantiano.
O comprometimento ontológico da moral kantiana exigiu uma
distinção, em certa medida, radical, entre direito (heteronomia)
e moral (autonomia), conforme a motivação pela qual o sujeito se
posiciona face à instituição de uma lei. Nas palavras de Kant, essa
divisão se realiza da seguinte forma:
Assim, uma legislação pode diferir de outra por seus motivos [...].
A legislação que de uma ação faz um dever e que ao mesmo tempo dá
tal dever por motivo, é a legislação moral. No entanto, aquela que não
faz entrar o motivo na lei, que conseqüentemente, permite outro motivo
à ideia própria de dever, é a legislação jurídica. Considerando esta
última legislação observa-se facilmente que seus motivos, diferentes
da ideia do dever, devem ser buscados entre motivos interessados do
arbítrio, isto é, entre as inclinações e aversões, porém especialmente
entre as aversões, porque uma legislação deve ser coativa e não como
um engodo que atraia9.
Menos no conteúdo da lei do que propriamente na causa da ação
é que se distingue o direito da moral em Kant, isto é, o imperativo
categórico e o imperativo jurídico podem, como defende, entre
outros, Guido de Almeida, comportar uma relação de conjunto;
9
KANT, I. Doutrina do Direito. Trad. E. Bini. São Paulo: 1993, III.
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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
sendo o segundo uma subclasse do primeiro10. Ou seja, o direito
não deixa de guardar uma relação com a moral por assentar-se, de
algum modo, na autonomia conforme a qual os homens determinam
sua vontade pela liberdade. Contudo, essa determinação, na esfera
jurídica, possui uma motivação externa não reduzida ao dever e
inscrita na ideia de coação. A norma jurídica exige, no âmbito do
Estado, portanto, civil, o cumprimento da moral, própria à esfera
do indivíduo. Nessa perspectiva, o direito não regra a ação dos
indivíduos no que tange às suas respectivas motivações, julgando
se elas agiram ou não de forma incondicional. Ele é um imperativo,
por assim dizer, civil, que preserva a espécie em detrimento das
variáveis e, na maior parte das vezes, contingentes atitudes dos
homens. O imperativo jurídico garante institucionalmente, pelo
seu poder coercitivo, a coexistência harmônica das liberdades. O
direito guarda uma diferença ainda mais essencial face à moral:
ele se põe do ponto de vista da espécie, ao passo que a moral, do
ponto de vista do indivíduo.
Essa última caracterização do imperativo jurídico, ainda que
seja uma nota característica desse conceito, parece-nos indicar uma
perspectiva moral implícita à noção de direito e, talvez, permitanos pensar em Kant uma síntese entre o direito a moral. Para tanto,
destacaremos inicialmente uma das formulações do imperativo categórico, a fornecida pela Crítica da razão prática, em consonância
com o imperativo jurídico, fornecido na Metafísica dos Costumes no
Princípio universal do direito “C”: “Age de tal modo que a máxima
de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio
de uma legislação universal. // Age externamente de tal maneira
que o uso do livre arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos,
10
ALMEIDA, G. “Sobre o princípio da lei universal do direito em Kant”. In: Kriterion,
Belo Horizonte, n. 114, 2006.
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segundo uma lei universal”11. As diferenças entre essas duas formulações do imperativo passam, dentre outras coisas, pela distinção
kantiana entre liberdade interna e liberdade externa. A motivação
interna não pode ser julgada pelos homens e requer um forte comprometimento ontológico com a compreensão metafísica do homem,
ao passo que a liberdade externa, embora pressuponha em parte um
comprometimento com a liberdade interna, pode ter como avalista
os próprios homens ou mais precisamente a lei. Não tencionamos
retraçar o caminho kantiano que permite ligar essas duas acepções
diferentes da liberdade nem como Kant pensa uma possível síntese
entre os dois imperativos. Acreditamos, inspirados em Kant, que
se deve procurar uma síntese entre moralidade e direito para poder
constituir uma moral mínima. O ponto para o qual converge nossa
análise é o caráter universal presente nas duas formulações mencionadas acima. Ambas se alimentam de certa universalidade e só
ganham legitimidade por meio desse caráter universal.
É precisamente contra a universalização de qualquer valor que
a crítica de Nietzsche foi tecida, como vimos anteriormente, de
modo que essas duas formulações kantianas, ainda que se refiram a
aspectos diferentes da liberdade, comprometer-se-iam com todo um
sistema, aos olhos de Nietzsche, contaminado por uma metafísica.
Para evitarmos a metafísica intrínseca ao sistema kantiano, somos
obrigados a nos afastar do pensamento de Kant, ainda que guardemos preocupações em comum com ele. Talvez seja possível, com a
nossa proposta, dirimir as divergências entre as filosofias de Kant e
Nietzsche e tenhamos uma inusitada complementaridade entre elas,
ainda que dessa feita inscrita na forma de uma terceira compreensão
da moral, a saber: a moral mínima cujos primeiros passos tentaremos
esboçar no presente artigo.
11
KANT, I. Crítica da razão prática, loc. cit., parágrafo 7; Idem, Fundamentação da
metafísica dos costumes, loc. cit., p. 44.
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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
A moral sem metafísica: interesse e moralidade mínima
A noção de perspectiva em Nietzsche institui-se em contrapartida
a qualquer postura dogmática. Contudo, como garantir diferentes
perspectivas e seu caráter relacional sem um patamar mínimo que
assegure que elas não serão dissolvidas pela instalação de um valor
universal e imutável? Como defender que não existe fato moral, mas
sim interpretações sobre a moral, sem garantir a diversidade dessas
interpretações? A noção de perspectiva aventada por Nietzsche, por
meio de um raciocínio negativo, uma vez que ele interditou qualquer
caminho em direção a uma fundamentação absoluta da moral, não
precisa de garantias mínimas que evitem quaisquer derrocadas em
direção ao fundamentalismo ou fanatismo moral?
O esforço de Kant para desvincular da moral o interesse reflete
sua preocupação metafísica de não fundar a moral em fatores contingentes e transitórios. Com efeito, ao realizar uma metafísica dos
costumes, Kant tenta recuperar em certos valores das ações humanas – não agir por interesse, por exemplo – um viés pelo qual se
pode pensar as condições que tornariam uma ação em ação moral.
A estrutura metodológica desse texto visa analisar nossas ações
e recuperar o que poderia haver de moral nelas, ou as condições
pelas quais elas poderiam ser consideradas morais. Ainda que na
Crítica da razão prática Kant proceda metodologicamente por um
caminho diferente (método sintético) do traçado pela Fundamentação da metafísica dos costumes, trata-se de fundamentar – dar uma
realidade objetiva – o imperativo categórico por meio do recurso a
uma compreensão metafísica do homem. Se é verdade que Kant não
consegue se livrar das aporias de uma metafísica da razão prática
que termina, como alerta Nietzsche, tomando como um dado valores
que são contingentes porque culturais, Nietzsche, por sua vez, não
pode se livrar da possibilidade de se dissolver a noção de perspectiva pela promoção de certa moral, ou mais precisamente, de certa
interpretação da moral ao patamar de valor absoluto.
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Kant teve consciência de que é preciso estabelecer condições
mínimas para a ação moral, contudo, ele sujeitou essas condições
mínimas a uma compreensão metafísica e dogmática do homem.
Acreditamos que a solução desse impasse talvez passe pela desontologização da moral kantiana e pela recuperação do projeto de
instanciar condições mínimas para que a ação possa ser resguardada
de um critério absoluto que lhe predique qualquer valor intrínseco.
Nesse sentido, podemos nos inspirar em Kant para recuperar nas
condições semânticas descritas pela forma do imperativo uma espécie de garantia que afiance que nenhuma interpretação da moral
seja tomada como única possível e confunda-se com um dado que
descreveria a essência do bem.
Acreditamos que a imposição de Kant da neutralidade dos interesses revela uma forma de valorar as ações que se afasta da formulação de um critério que estabeleça condições mínimas da moralidade.
Talvez, a melhor estratégia seja dirigir os interesses, aparentemente
indissociáveis à vida humana, para um ponto em comum que possa
servir de garantia para que as diferenças, atomizadas nas expectativas e apetites de cada indivíduo, possam ser preservadas. Ou seja, o
caminho kantiano pode ser revisto, pelas dificuldades apresentadas
pela noção de interesse puro ou ação desinteressada, sem que seja
necessário abandonar a pretensão de instituir uma moral mínima que
nunca tome como dado uma interpretação moral ou uma atribuição
de valor moral a uma ação.
Uma das formas possíveis de realizar tal empresa é exigindo
uma convergência de interesse que salvaguarde a diferença entre os
interesses e os modos de predicação da moralidade das ações. Para
que se mantenha a perspectiva de interpretação de cada indivíduo
(ou de certas culturas) e para que os diferentes interesses sejam
preservados, é necessário que todos se comprometam em não tomar
como um dado as ações morais. Esse comprometimento se inscreve
na forma de um imperativo que, por não estar em consonância estrita
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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
com a filosofia de Kant, se livra da necessidade de avaliar a pureza
dos interesses ou da vontade. Se a avaliação de uma ação, segundo
as premissas da filosofia kantiana, demanda necessariamente a
postulação de um critério metafísico para que seja legítima e, portanto, moral, a proposta aventada aqui por nós tenciona esquivar-se
da metafísica sem deixar de pensar as condições mínimas para que
se possa predicar a moralidade das ações sem afirmar, contudo, um
valor absoluto.
O descomprometimento com a natureza metafísica do homem,
pensado por nós, pode abrir margem para uma síntese de interesse
individual, inscrito na ideia de que eu pretendo preservar meus interesses, com o imperativo de que todos os interesses coexistam. A
síntese entre direito e moralidade, proposta aqui, ainda que não seja
literalmente kantiana, inspira-se em Kant no intuito de promover uma
harmonia entre os diferentes interesses privados por meio de uma
garantia, por assim dizer, institucional, conforme a qual se prescreve
a liberdade ou livre-arbítrio de predicar a moralidade das ações de diferentes modos. Não estamos falando de um contrato que preserva uma
compreensão metafísica do homem como em Hobbes (homo hominis
lupus), mas de uma convergência de ações que visa manter a possibilidade do homem atribuir indefinidas predicações ao ato moral.
Essa convergência só pode ser realizada por meio do comprometimento interessado do homem em fundamentar qualquer norma
contratual sob a disposição à abertura de perspectivas diferentes da
moralidade das ações. Não se trata, por conseguinte, de dotar a norma contratual de um valor moral intrínseco a certa compreensão do
homem, mas de livrá-lo de valores quaisquer, por meio da promoção
das condições mínimas que permitam diferentes perspectivas dos
modos de compreender a moralidade das ações. Só uma constituição
que não determina como certo os valores morais vigentes numa época pode realizar os interesses de todos os indivíduos de não serem
subordinados a um conceito metafísico de bem. O único interesse
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passível de universalização, no que concerne à ação humana, é o
de que o interesse que motiva a minha ação não seja suprimido por
um valor absoluto. Ou seja, a harmonia dos interesses não é, por um
lado, a supressão deles por meio de um interesse puro ou da realização de uma ação desinteressada nem, por outro lado, uma harmonia
regida por um cálculo racional que priva a liberdade individual
para harmonizar os indivíduos sob a tutela do Estado. Harmonizar
interesses significa aqui garantir que permaneçam na esfera de um
interesse possível e, por conseguinte, suscetível de não ser único.
Nessa perspectiva, a vontade de manter seu interesse e sua
forma de predicar a moralidade das ações impelem os homens a
assumirem, na forma de um imperativo moral e jurídico, condições
mínimas que não designam diretamente a conservação de suas
vidas, mas que permitem dar o caráter de lei à possibilidade de
sempre, para usarmos as palavras de Nietzsche, transvalorarmos os
valores. Assim, o interesse, transitório, efêmero, fugaz e histórico dos
indivíduos, só pode manter esse caráter não metafísico, isto é não
cristalizar valores morais na forma de dados, mediante a afirmação
de um imperativo moral mínimo: age de tal modo que teu interesse
(motivo de tua ação) possa ser preservado.
Esse imperativo moral, por seu turno, ganha contornos jurídicos
que são requeridos para que ele tenha uma validade, por assim dizer,
objetiva, sem apelar para critérios que julguem a priori a moralidade
das ações. Isso ocorre quando as normas contratuais não se encerram sob um único valor moral, mas quando garantem que podemos
repensar nossos valores. graças ao fato de que temos condições
semânticas mínimas que asseguram, por um lado, a possibilidade
de diferentes predicações da moralidade das nossas ações e, por
outro, que nenhum valor moral possa se impor ao outro. Assim, do
imperativo de preservação dos interesses aventado acima, segue-se
o seguinte imperativo jurídico: age de tal modo que tua ação nunca
se torne um valor absoluto. Só por meio desse imperativo é que se
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A crítica de Nietzsche à moral kantiana: por um moral mínima
podem salvaguardar as condições mínimas conforme as quais se
garanta que a moral não é um dado, mas uma forma de interpretar os
valores constituídos socialmente. A não universalização de nenhum
interesse particular é a prerrogativa moral e jurídica mais fundamental e que garante, paradoxalmente, a existência dos interesses
particulares. O único interesse universalizável é a preservação dos
interesses individuais.
Conclusão
O presente artigo tentou retraçar a crítica de Nietzsche à moral kantiana menos para fazer uma exegese sobre as filosofias de
Nietzsche e Kant do que para apontar o mito do dado moral. Assim,
mostramos que a partir da filosofia de Nietzsche não é mais possível pensar a moral desvinculada do contexto social, psicológico e
histórico que concorrem para a constituição das interpretações da
moralidade das ações. Essa constatação nos serviu de guia para repensarmos as condições de uma moralidade mínima, sem apelarmos,
contudo, para uma metafísica ou para a absolutização de um valor
moral específico.
Nesse sentido, esboçamos uma primeira tentativa de dotar a moral de condições mínimas que salvaguardem o caráter relacional da
noção de perspectiva em Nietzsche e preserve o âmbito hermenêutico da ação moral. Assim, defendemos que a validade do contrato
social deve estar subordinada, por um lado, ao não comprometimento
com valores morais, tomados como dados, porque irrevisáveis, e, por
outro, ele deve se coadunar com a moral mínima que prescreve que
nenhum interesse individual pode ser absolutizado. A única forma
de preservar os interesses individuais, comuns a todos os indivíduos,
é não os tornando universais. É na forma da lei jurídica que se assegura a condição mínima e objetiva para a moralidade das ações,
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e não pelo recurso a postulados metafísicos.
Abstract: On s’est proposé un double objectif : 1 Nous essayerons d’abord
de déceler la critique de Nietzsche à la moral kantiènne, surtout, en ce
qui concerne le mise en doute du fait moral ou donné moral (given) 2
Nous présenterons ensuite comment peut-on établir une moral minime
qui ne fait pas appéle à la méthaphysique, tout en préservant la notion de
Nietzsche de perspective, aussi bien que la diversité de possibilités des
interprétations de la morale. Nous conclurons que la morale dite minime
doit envisager la règle suivante: «Agis de façon telle que ton action ne
soit jamais un valeur absolut». Cet impératif est l’unique que peut être
pris en tant qu’universel
Key-words: imperative – moral – conditions.
referências bibliográficas
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direito em Kant”. In: Kriterion, Belo Horizonte, n.
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Stein. Petrópolis: Vozes, 2008.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 189
Cultura, civilização e barbárie
do ponto de vista da crítica
de Nietzsche aos alemães
Caio Moura*
Resumo: O presente artigo analisa a crítica realizada por Nietzsche
aos alemães a partir, sobretudo, das obras imediatamente posteriores ao
Nascimento da tragédia. A importância de tais escritos pode ser atestada
não apenas pelo modo como o problema da cultura é posto em questão,
mas também pela maneira como o fenômeno de subjetivização, cada vez
mais presente entre os alemães, é articulado com o advento de uma nova
forma de barbárie.
Palavras-chave: Nietzsche – alemães – cultura – civilização – barbárie.
Ao longo de sua juventude Nietzsche parece abraçar os ideais que
embalam muitos de seus contemporâneos: cultiva os heróis nacionais,
alimenta o sonho de uma Alemanha unificada e acredita, como muitos
alemães, que a cultura germânica vive uma nova atmosfera que será
capaz de alçá-la a um patamar jamais visto. Sua crescente simpatia
pela causa alemã faz aumentar mais ainda seu entusiasmo pela Realpolitik de Bismarck, entusiasmo que se faz notar por uma série de
atitudes tomadas ao longo desse período: primeiro, o apoio à guerra
contra a Áustria, em 1866, e o engajamento nas eleições locais para
o parlamento no mesmo ano; depois, o alistamento voluntário como
enfermeiro na guerra franco-prussiana, em 1870, até seu licenciamento dois meses mais tarde por motivos de saúde.
*
Pesquisador-colaborador do IFCH-UNICAMP.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
191
Moura, C.
Após o conflito com a França, em que a Alemanha sai amplamente vitoriosa, sua adesão a Bismarck e à causa alemã arrefecem
e a identificação entre cultura e Estado parece não lhe fazer mais
nenhum sentido. Mesmo assim, em O Nascimento da tragédia,
Nietzsche continuará a acreditar em um reflorescimento da cultura
germânica, enxergando na música de Wagner um acontecimento à
altura dessa tarefa. “Que ninguém tente enfraquecer a nossa fé em
um iminente renascimento da Antiguidade grega”, escreve Nietzsche em O Nascimento da tragédia, “pois só nela encontramos nossa
esperança de uma renovação e purificação do espírito alemão através
do fogo mágico da música.” (GT/NT 20, KSA 1.131). Uma tendência
rousseauniana1 ainda ronda nesse momento o jovem Nietzsche: o ser
alemão foi corrompido por algo que não é de sua ordem, mas, em
si mesmo, ele ainda conserva a pureza de seu fulgor primitivo que
aguarda uma reconciliação consigo mesmo.
Temos em tão grande conta o núcleo puro e vigoroso do ser alemão, que nos atrevemos a esperar precisamente dele essa expulsão
de elementos estranhos implantados à força e consideramos possível
que o espírito alemão retorne a si mesmo reconscientizado (GT/NT
23, KSA 1.149).
Será breve o momento de esperanças no renascimento da Alemanha. Se até então assistíamos ao predomínio de um otimismo
moderado no que diz respeito ao futuro dos alemães – ainda que isso
pudesse conduzir a uma crítica de sua própria cultura –, o mesmo
1
Essa influência indireta de Rousseau, se é que realmente ocorreu, seria em todo caso
breve. As oposições entre Nietzsche e Rousseau são bastante conhecidas e encontramse claramente expostas em Nietzsche contra Rousseau, de Ansell-Pearson (Cambridge
University Press, 1991).
192 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
não poderá ser dito a partir do período que sucede a publicação de
O nascimento da tragédia. Em um texto marcante2, onde Nietzsche
faz um balanço crítico do modelo de ensino de sua época, a crença
em uma revitalização da cultura da Alemanha parece ser completamente deixada de lado. No lugar de um lento emergir do “ser
alemão”, assiste-se à cultura atuar como serva de formas baixas de
vida, deixando-se dominar por forças que a rebaixam aos interesses
do dinheiro e do Estado. Os estabelecimentos de ensino refletem
de modo singular esse estado geral de coisas ao condensar duas
tendências aparentemente opostas que atravessam a cultura alemã:
de um lado, promovem o fortalecimento e a ampliação da cultura,
ao estendê-la a segmentos sociais cada vez mais amplos; de outro,
contribuem para o seu enfraquecimento, ao privilegiar um modelo
pedagógico massificador e voltado para fins pragmáticos. Essas
duas correntes vitoriosas – “realmente alemãs” (BA/EE, Prefácio,
KSA 1.647) – impõem-se progressivamente sobre a cultura e não
deixam mais dúvidas sobre o destino da Alemanha, a partir de
agora. Nietzsche tem plena consciência da irreversibilidade dessa
tendência – “ela vencerá, tenho plena confiança nisso” (BA/EE,
Prefácio, KSA 1.647) – e, apesar de sua ligação com Wagner, não
parece alimentar mais quaisquer ilusões a respeito do renascimento
de uma nova Alemanha.
É por volta dessa época que se pode assistir em sua obra às primeiras críticas aos alemães. Tais críticas não se deixam, entretanto,
conduzir pelas noções de povo ou nacionalidade3. Trata-se, antes, de
chamar a atenção para algo que se passa em sua época: identificar
2
3
Trata-se de Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, um conjunto de cinco
conferências proferidas entre janeiro e março de 1872 na Universidade da Basileia.
Um fragmento redigido entre 1872 e 1873 deixa claro isso: “Acidentes da cultura
alemã em gestação: Hegel; Heine; a febre política que acentuou o fator nacional;
glória militar” (KSA 7.504, Nachlass/FP 19, [272]).
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
193
Moura, C.
os sintomas de uma crise que não apenas coloca em perigo a ideia
de “cultura”, mas que assinala uma reviravolta sem precedentes das
forças que nela atuam, eis o que pretende Nietzsche.
O triunfo germânico na guerra franco-prussiana propiciou o
momento adequado para que Nietzsche se detivesse, na primeira de
suas Considerações extemporâneas, em torno do significado da crise
da cultura. Bem mais do que unificar politicamente a Alemanha em
torno de um único Estado, esse acontecimento desempenhou um papel psicológico da maior importância sobre os alemães: ele removeu
aquilo que parecia ser o último obstáculo rumo a um sentimento de
confiança e autonomia que lhes parecia escapar, emancipando forças
que apenas dependiam de um evento decisivo para que pudessem
se exteriorizar em uma forma plena e acabada. A associação estabelecida pelos alemães entre cultura e progresso militar constitui um
dos primeiros sinais dessa mudança e não passou despercebida por
Nietzsche: “é em razão de uma confusão”, escreve, “que se fala da
vitória da formação e da cultura alemã, uma confusão que se explica
pelo fato de que na Alemanha a pura ideia de cultura se perdeu”
(DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.162).
Tal confusão estava longe de representar um simples equívoco
acerca do conceito de cultura; ela constituía o sintoma de uma
mudança qualitativa que há muito tempo estava em curso entre os
alemães e que agora atingia sua consolidação definitiva ao alçar o
conhecimento e a ciência a uma dimensão jamais vista – e do qual
nem a arte militar escapa4. Um fragmento redigido no mesmo ano da
4
A partir dos conhecimentos mais vastos, na melhor instrução das tropas, na concepção
mais científica de estratégia, que todos os julgamentos imparciais, até mesmo dos
franceses, reconheceram a vantagem decisiva dos alemães. Mas, se não se distingue
cultura de instrução, em que sentido a cultura alemã poderia pretender ter vencido?
(DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.162).
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Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
primeira de suas Considerações extemporâneas nos chama a atenção
para esse fenômeno que toma conta dos alemães:
O instinto de conhecimento imoderado e não seletivo, sob o fundo da
história, é um signo de que a vida se tornou envelhecida (...). Através
das ciências, o alemão transfigurou todas as suas limitações deslocando-as para um outro registro: fidelidade, modéstia, autodisciplina,
aplicação, propriedade, amor pela ordem, são virtudes familiares; mas
também a ausência de forma, a vida exangue, a mesquinharia – seu
instinto de conhecimento ilimitado é a conseqüência de uma vida
indigente (KSA 7.422, Nachlass/FP 1872-1873, 19 [21]).
A vitória sobre a França não pode portanto representar apenas
uma vitória no campo militar, mas um triunfo no campo da própria
cultura, assegurado pelo grau superior de progresso técnico-científico que supostamente elevou a nação alemã acima de seus rivais.
Nesse momento, Nietzsche já pressente que o grau de progresso
científico e material não pode ter qualquer relação com a ideia
de cultura (Kultur), sendo antes um elemento que lhe é estranho:
“Nossa cultura não contribuiu para a vitória das armas”, escreve
Nietzsche. “Foram a estrita disciplina militar, a valentia e o endurecimento naturais, a superioridade dos chefes, a unidade e a obediência das tropas, em resumo, elementos totalmente independentes
da cultura (grifo nosso)que nos permitiram levar vantagem sobre
nossos adversários” (DE/Co. Ext. I, 1, KSA 1.162).
A prevenção mais eloqüente acerca dessa confusão conceitual
provém, contudo, de um fragmento de 1873 onde Nietzsche demarca, pela primeira vez, a diferença entre cultura e civilização: “não
temos cultura (Kultur), mas somente uma civilização (Civilization)
com algumas modas culturais; estamos, ainda mais, mergulhados
na barbárie” (Nachlass/FP 27 [66], KSA 7.606). Qual o significado
desse fenômeno de barbárie no qual os alemães encontram-se mais
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
195
Moura, C.
do que nunca mergulhados? Sua resposta deve ser buscada em um
processo mais amplo que não se resuma unicamente ao problema
da ciência, mas numa inversão geral de perspectivas que passou a
se alastrar em todos os níveis da cultura e da qual o instinto de
conhecimento não é senão um de seus diversos aspectos. Será por
meio de uma metáfora militar que Nietzsche procurará exprimir
essa reviravolta que toma conta dos alemães: “jamais faltaram aos
alemães chefes e capitães perspicazes e audazes – são somente
os alemães que faltaram aos seus chefes” (DS/Co. Ext. I, 1, KSA
1.161). Anos mais tarde, uma passagem de Gaia Ciência ainda se
valerá de um exemplo militar, ao indiretamente se inspirar em uma
observação de Frederico da Prússia sobre o idioma alemão – língua
destinada a ordenar as tropas, segundo o Príncipe5 –, para falar
dessa inversão de avaliações. Através de um jogo sarcástico, tanto
quanto bem humorado, com as alusões de Frederico, Nietzsche nos
mostra como as recentes transformações da língua alemã simbolizam
uma mudança de perspectiva própria de uma nova era que colocou
todas as suas hierarquias ao avesso; a língua alemã – outrora meio
rudimentar para impor ordem e disciplina às tropas – de agora por
diante é apropriada e modelada por aquele que antes obedecia aos
seus sons: o oficial militar.
Acredito que o som da língua alemã na Idade Média, e sobretudo após a Idade Média, era profundamente rústico e vulgar; nos
últimos séculos ela se enobreceu um tanto, principalmente porque
veio a necessidade de imitar sons franceses, italianos e espanhóis, e
isso por parte da aristocracia alemã (e austríaca), que não podia se
5
Trata-se de uma das inúmeras cartas dirigidas a Voltaire, onde o Príncipe da Prússia
escreve: “Não se aprende essa língua senão para fazer guerra” (Frederic II, 1805,
XVI, 17 de dezembro de 1777).
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Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
contentar com a língua materna. Mas, apesar desse uso, para Montaigne ou mesmo Racine o alemão deve ter soado intoleravelmente
vulgar; e ainda agora, na boca dos viajantes, em meio ao populacho
italiano, continua soando muito cru, silvestre, rouco, como se viesse
de ambientes esfumaçados e regiões impolidas. – Ora, eu observo
que agora novamente cresce, entre os velhos admiradores das chancelarias, semelhante tendência à elegância do tom, e que os alemães
começam a ceder a uma bem peculiar “magia do tom”, que a longo
prazo poderia tornar-se um verdadeiro perigo para a língua alemã –
pois em vão se buscará, na Europa, sons mais abomináveis. Algo de
sardônico, de frio, indiferente, negligente: eis agora o que agora soa
“elegante” para os alemães – e eu escuto a boa disposição para a
elegância das vozes de jovens funcionários, professores, mulheres,
comerciantes; até mesmo garotas pequenas já imitam esse alemão de
oficiais. Pois o oficial, o oficial prussiano, é o inventor destes sons; o
mesmo oficial, que como militar e profissional, tem o admirável tato
da modéstia, com o qual todos os alemães teriam o que aprender
(incluindo os catedráticos e musicistas!). Quando ele abre a boca e
se move, no entanto, é a figura mais imodesta e de mau gosto dessa
velha Europa – sem consciência de si, não há dúvida! E também sem
consciência dos caros alemães, que o apreciam como exemplo da
mais alta elegância e de bom grado o deixam “dar o tom”. É exatamente o que ele faz! – e primeiro são os sargentos e oficiais inferiores
que imitam grosseiramente o seu tom. Atente-se para os gritos de
comando que literalmente rodeiam as cidades alemãs, agora que se
fazem exercícios às portas de cada uma delas: que arrogância, que
furioso sentimento de autoridade, que sardônica frieza não ressoa em
tal gritaria! Seriam os alemães realmente um povo musical? – É certo
que eles agora militarizam o som da língua; é provável que, treinados
em falar militarmente, também acabem por escrever militarmente
(FW/GC, 104, KSA 3.461-462).
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197
Moura, C.
A passagem da Gaia ciência torna claro por que o germanismo
de Nietzsche, que em O Nascimento da tragédia enaltecia o “ser
alemão”, para ver o seu ressurgimento na obra de Wagner, não pode
mais atuar como um elemento crítico de reflexão sobre a cultura.
Entre sua primeira obra e o período que se segue, algo de significativo ocorre. Suas críticas já não se revestem do tom idealista inicial,
pois não se trata mais de apontar o que de acidental se produziu
na cultura alemã, mas no que de essencialmente doentio ela se
transformou. Não há reconciliação possível com um ser adormecido,
tampouco com a força que nele subjaz e que é capaz de devolver-lhe
o esplendor de suas realizações. O dualismo idealista estabelecido
em O Nascimento da tragédia, entre a noção abstrata de povo e as
suas realizações concretas – Kultur –, não tem razão de persistir em
meio a um quadro de pensamento onde a própria ideia de cultura
se transformou. Essa mudança, todavia, não é fortuita; ela só se
encontra em condições de ser levada adiante quando o germanismo –
ainda que moderado – que persistia até O Nascimento da tragédia
é definitivamente abandonado.
Com a publicação de Considerações extemporâneas, assiste-se
à concretização dessa transformação: a cultura é “unidade de estilo
artístico através de todas as manifestações da vida de um povo”; a
barbárie, “ausência ou a mistura caótica de todos os estilos” (DS/Co.
Ext. I, 1, KSA 1. 163) . Um fragmento redigido por volta da mesma
época, aparentemente seguindo as determinações do pensamento
da Bildung, insiste na ideia de unidade como atributo fundamental
da cultura ou da formação de um indivíduo: “chamamos ‘cultivado’
alguém que se tornou um conjunto coeso, que recebeu uma forma:
o contrário da forma é o não-formado, o informe, aquilo que é sem
unidade” (KSA 7.513, Nachlass/FP 19 [307],). Por isso, a antítese
entre cultura e barbárie, como nos adverte Nietzsche, “não deve
ser por isso mal compreendida, como se tratasse da oposição entre
barbárie e estilo belo”, e prossegue:
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Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
Quem aspira e quer promover a cultura (Kultur) de um povo deve
aspirar a promover esta unidade suprema e trabalhar conjuntamente na
aniquilação deste modelo moderno de formação, atrevendo-se a refletir
sobre o modo como a saúde de um povo, perturbada pela história, pode
ser restabelecida, como ele poderia reencontrar seus instintos, e com
isso, sua honestidade (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.275).
O emprego da palavra “honestidade” (Ehrlichkeit), citada ao fim
da frase, é significativo – não será ao acaso que alguns anos mais
tarde Nietzsche insistirá na ideia de confiabilidade como um atributo
do homem nobre6. Honestidade significa integridade, probidade,
firmeza; a unidade de estilo alcançada por uma cultura deve ser o
resultado de uma determinação firme que impede que as suas forças
se dissolvam em um caos de estilos, quando entregues unicamente
a si mesmas:
O problema de uma cultura raramente é bem apreendido. Seu
objetivo não é a maior felicidade possível de um povo, nem o livre
6
Ver a esse respeito o parágrafo 5 da primeira dissertação da Genealogia da
moral, onde Nietzsche afirma ser atributo do tipo nobre a veracidade, como
aquilo que o distingue do homem comum mentiroso: “Eles se denominam,
por exemplo, ‘os verazes’: primeiramente a nobreza grega, cujo porta-voz é
o poeta Téognis de Megara. A palavra cunhada para este fim é estlos (bom,
nobre), que significa, segundo sua raiz, alguém que é, que tem realidade,
que é real, verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva, significa verdadeiro
enquanto veraz: nesta fase de transformação conceitual ela se torna lema
e distintivo da nobreza e assume inteiramente o sentido de ‘nobre’ para
diferenciação perante o homem comum mentiroso, tal como Téognis o vê
e descreve” (GM/GM, I, 5, KSA 5.263). Essa ideia é retomada na segunda
dissertação para sofrer desdobramentos significativos: o nobre, enquanto
veraz, é o homem confiável, isto é, o homem dotado da firmeza e do poder
necessários ao cumprimento de uma promessa: “os fortes, os confiáveis (os
que podem prometer)” (GM/GM, II, 2, KSA 5.294).
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 199
Moura, C.
desenvolvimento de seus dons; em vez disso, a cultura se mostra na
justa proporção observada no desenvolvimento de seus talentos. (...)
Em todos os instintos gregos se manifesta uma unidade disciplinadora:
chamamo-la de vontade helênica. Cada um de seus instintos tende a
existir sozinho e se desenvolver até o infinito. A partir deles os antigos
filósofos tentam construir o mundo.
A cultura de um povo se manifesta na disciplina homogênea imposta
a seus instintos: a filosofia domina o instinto de conhecimento, a arte
domina o instinto das formas e o êxtase, o agape domina o eros. (KSA
7.432, Nachlass/FP 19 [41]).
Compreende-se por que a noção de “estilo” não possui quaisquer relações com a liberdade desenfreada para agir, e muito menos com uma maneira de se apoderar das coisas de acordo com as
inclinações de uma vontade particular. Pois “unidade de estilo” é
menos uma inclinação puramente estética do que o resultado de
uma de uma exigência presente em uma cultura. Essa “exigência”
não pode aparecer senão como uma determinação superior que dá
forma e direção definidas às suas manifestações. É precisamente
essa determinação que foi posta de lado pelos alemães, conforme
atesta um fragmento de 1873: “O filisteu da cultura”, escreve
Nietzsche referindo-se ao alemão que se crê cultivado, “não sabe o
que a cultura é – unidade de estilo (...). Ele não conhece a cultura
como exigência permanente” (KSA 7.606, Nachlass/FP 27 [65]). O
resultado desse desconhecimento – ou esquecimento – não poderá
ser outro que uma assimilação confusa de todos os estilos:
Ora, é justamente nessa mistura caótica de todos os estilos que vive
o alemão de nossos dias, e aí permanece um grave problema que é o
de saber como ele pode, apesar de toda sua instrução, não se aperceber dela e de se alegrar de coração de sua “formação” atual. Tudo
deveria portanto esclarecê-lo, ao menor olhar lançado sobre as roupas,
200| cadernos Nietzsche 27, 2010
Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
seu quarto, sua casa, a menor caminhada nas ruas de suas cidades, a
menor visita às lojas da moda. Ele deveria ter consciência, do ponto de
vista social, da origem das suas maneiras e dos seus gestos [grifo nosso];
apreciando as alegrias do concerto, do teatro e do museu, entre os
estabelecimentos consagrados à arte, ele deveria ter consciência desta
justaposição e desta acumulação grosseira de todos os estilos possíveis.
O alemão amontoa em torno de si as formas, as cores, os produtos e
as curiosidades de todos os tempos e de todos as regiões, e cria assim
este multicolorido carnavalesco que seus intelectuais são em seguida
encarregados de estudar e de definir como a “essência do moderno”,
enquanto que ele próprio permanece serenamente colocado no meio
desse tumulto de todos os estilos (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.163).
Caos, multicolorido carnavalesco, justaposição tumultuosa e
grotesca de estilos: as imagens empregadas por Nietzsche não se
cansam de lembrar que é a Poética de Horácio7 – outrora tão combatida pelos alemães8 – a fonte de referência para se pensar a barbárie
alemã como confusão de estilos: “Confrontado com o grego, o mundo
moderno cria apenas aberrações e centauros. Do mesmo modo que a
7
8
“Suponhamos que um pintor pretendesse ligar a uma cabeça um pescoço de cavalo,
ajuntar membros de toda a procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte
que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse em um hediondo peixe preto;
entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões,
nem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem
consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não combinassem num ser uno” Aristóteles, Horácio, Longino. S/data. Poética Clássica. São
Paulo: Editora Cultrix, p. 55).
Trata-se mais precisamente da oposição dos alemães às regras literárias do Classicismo, baseadas em larga medida na influência de Horácio sobre a Arte Poética
de Nicolas Boileau, espécie de poema-diretriz dos preceitos clássicos da poesia. É
importante notar que a expressão “unidade de estilo”, assim como a ideia de barbárie
como caos de estilos, parece ser simultaneamente extraída dessas duas obras.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 201
Moura, C.
criatura fabulosa na entrada da Poética de Horácio, o homem isolado
é formado de pedaços multicoloridos” (CV/CP, O Estado Grego, KSA
1.765). O caráter extemporâneo de Nietzsche se faz sentir aqui em
toda sua força; suas formulações sobre a cultura parecem estar mais
próximas de uma poética, tributária da noção de mímesis – imitação – do que propriamente das teorias estéticas de forte conotação
subjetiva, tão típicas do seu tempo. “O imitar (Nachahmen) é o meio
de toda cultura” (KSA 7.489, Nachlass/FP 19 [226]). A confusão de
estilos que, portanto, reina entre os alemães deriva diretamente do
modo bárbaro de assimilação daquilo que por eles é imitado. O que
não é a barbárie para Nietzsche senão um modo de apropriação de
coisas, fenômenos, comportamentos, que os destitui de sua grandeza
originária para rebaixá-los à sua mais débil condição? O que não é
de certa forma a barbárie senão uma “má imitação”?
Portanto, ao perder a consciência da origem de seu modo de ser,
o alemão não apenas impõe uma nova conformação a antigos hábitos
dos quais se apropria, como promove uma inversão de sentido que
viola, de modo profundo, o seu impulso originário. Mas a maneira
como Nietzsche invoca o conceito de origem, no trecho há pouco
citado – ele se refere aos hábitos franceses oriundos do mundo formal da etiqueta ou da convenção –, não deve ser entendida como a
crença num modelo como destinação metafísica. “Origem”, nesse
caso específico, significa a orientação primordial que confere aos
hábitos um sentido superior consoante às exigências de uma forma
elevada de vida ou existência.
Com isso, todo sentimento de unidade e autenticidade de uma
cultura que teria chegado a si mesma, através de uma suposta
emancipação frente à tradição francesa, é posto abaixo: o alemão
acreditou ter criado um estilo próprio para si, mas o que julga ser
o traço original de sua cultura não é senão uma imitação burlesca
dos hábitos franceses com os quais acreditava ter rompido: “fugindo da escola da convenção”, diz Nietzsche sobre o formalismo da
202 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
etiqueta francesa, “ele se deixou vagar por onde bem lhe conviesse
por imitar em semi-esquecimento o que imitara anteriormente de
maneira escrupulosa e frequentemente com sucesso” (HL/Co. Ext.
II, 4, KSA 1.275). Portanto, constata Nietzsche, a dívida com os
franceses ainda é grande: “a cultura francesa continua a existir
como ontem e como ontem continuamos a ser tributários dela” (DS/
CO. Ext. I, 1, KSA 1.160). E prossegue: “Tomemos consciência de
que dependemos ainda e sempre de Paris por tudo que toca a forma,
pois não existe, até o presente, cultura alemã original” (DS/CO. Ext.
I, 1, KSA 1.164). “O que são portanto os costumes alemães? Mais
frequentemente, más imitações (grifo nosso) que se arraigaram e
das quais se esqueceu que são imitações” (KSA 7.593, Nachlass/
FP 27 [24]).
Os alemães copiaram as convenções dos franceses, mas perderam de vista o que nelas havia de essencial a ser apreendido:
procurou-se apurar a língua, mas ignoraram-se o ritmo e a cadência
inerentes à elegância dos sons; copiaram-se os gestos, as vestes, os
hábitos, mas aboliu-se o que neles havia de excessivo, abundante,
dispendioso, ao submetê-los ao pragmatismo e à pressa universal.
Esqueceu-se, enfim, o impulso original que outrora elevou os hábitos
imitados a um estatuto singular, ao submetê-los a uma forma de vida
orientada pela utilidade e pelo senso de economia que aniquilou
inteiramente o seu sentido ou direção inicial. Mergulhado em sua
própria interioridade e consequentemente deixando-se dirigir pelas
determinações inerentes ao seu próprio ser, o alemão ignorou a existência de uma exigência superior a ser seguida, também chamada
por Nietzsche de vontade forte e profunda:
Gostaria de falar que nós, alemães de hoje, que sofremos mais do
que os outros povos dessa fraqueza de personalidade e dessa contradição entre conteúdo e forma. Esta última nos aparece geralmente como
uma convenção, um disfarce e uma máscara, e é por esta razão que
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 203
Moura, C.
ela é, se não detestada, pouco amada entre nós; seria mais exato dizer
que temos um medo terrível da palavra “convenção” e sem dúvida
também da coisa como tal. É este medo que impeliu o alemão a abandonar a escola dos franceses: pois ele queria se tornar mais natural,
e portanto mais alemão. Mas ele parece estar enganado quanto a este
“portanto”: fugindo da escola da convenção, ele se deixou vagar por
onde bem lhe conviesse [grifo nosso] por imitar em semi-esquecimento
o que imitara anteriormente de maneira escrupulosa e frequentemente
com sucesso. Em comparação às épocas passadas, também somos
hoje ainda prisioneiros de uma convenção francesa que imitamos de
maneira incorreta e atrapalhada: uma prova disso é a nossa maneira
de andar, de parar, de conversar, de se vestir, de morar. Acreditando
que nos refugiávamos no natural, não escolhemos senão o deixar-se ir,
a comodidade e o menor esforço sobre nós mesmos. Andemos por uma
cidade alemã: em comparação com a originalidade das cidades estrangeiras possuímos uma convenção negativa, tudo é pálido, gasto, mal
copiado, negligente, cada um age como bem quer, não em conformidade
com uma vontade forte e profunda, mas segundo as leis que prescrevem
primeiro a pressa universal e depois a comodidade [grifo nosso]. Uma
peça de roupa cuja invenção não demanda um grande esforço cerebral,
que não demanda tempo algum para ser vestida, ou seja, uma peça de
roupa tomada de empréstimo do estrangeiro e copiada da maneira mais
descuidada possível, vale para os alemães como uma contribuição à
arte do vestuário nacional. Eles repudiam ironicamente o sentido da
forma: não temos nós o sentido do conteúdo? Não somos nós o célebre
povo da profundidade interior? (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.275).
A oposição entre cultura e barbárie, que implicitamente comanda
a passagem acima citada, resulta de uma crítica radical ao indivíduo
interiorizado que emerge como o produto mais acabado dos novos
tempos na Alemanha. Pois, ao acreditar que refutava o mundo da
convenção aristocrática e, portanto, aquilo que se situava na ordem
204 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
do superficial, o alemão voltou-se para si mesmo, na tentativa de
reconciliar-se com o que julgava ainda existir de mais profundo em
seu próprio ser9. Mas, na prática, esse movimento de interiorização
engendrou uma nova forma de vida comandada por exigências de
outra ordem. Deixando-se “vagar por onde lhe bem conviesse”,
“deixando-se ir”10, o alemã o inverteu as exigências da cultura e entregou ao seu próprio “eu” – já liberto da convenção e em condições
de externar sua “livre personalidade” – a tarefa de conduzi-lo no
aprimoramento dos costumes. De agora em diante, toda manifestação
da “cultura”, bem como todas as apreciações em torno do seu significado, resultarão diretamente da projeção de um “eu” liberto e incapaz
de reconhecer no mundo tudo o que não diga respeito ao horizonte de
sua interioridade. Inversão de perspectivas: o senso de utilidade e de
praticidade – exigências outrora secundárias e subalternas11 – saltam
para o primeiro plano da cultura, operando em seu interior uma reviravolta que não tardará a produzir efeitos profundos. “(...) todas as
instituições públicas, todos os estabelecimentos de ensino, de arte e
de cultura são adaptados à sua formação, às suas necessidades (...)”
(DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.165). Assim, com o desaparecimento da
convenção, desaparece também a disciplina e de tudo o mais apto a
conduzir a cultura segundo uma vontade forte e profunda.
9
10
11
A esse propósito, Norbert Elias dirá a respeito do confronto dos alemães com o formalismo da etiqueta francesa ocorrido na segunda metade do século XVIII: “leviandade,
cerimonial, conversação superficial de um lado; interiorização, profundidade de
sentimento, leitura, formação da personalidade individual do outro (...)”. (ELIAS, N.
La Civilisation des moeurs. Paris: Calmann-Levy, 1973, p. 32).
Alusão à doutrina econômica do laissez-faire que aos olhos de Nietzsche representa
o estado de indigência e liberdade desenfreada que tomou conta dos alemães (e do
próprio mundo moderno). Essa expressão aparecerá numerosas vezes nos escritos
de Nietzsche.
É o caso mais especificamente da cultura aristocrática que será citada no texto mais
adiante.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 205
Moura, C.
Anos mais tarde Nietzsche verá na aristocracia do séc. XVII a
antítese por excelência do pragmatismo que determina esse modo de
ser. Indiferente à pressa e a qualquer tipo de inclinação de natureza
utilitária, as convenções aristocráticas submetem o indivíduo a um
regime de disciplina que ainda é capaz de conduzi-lo por meio de
exigências de outra ordem. “O século XVII, na França, é digno de
admiração”, diz Nietzsche em uma passagem do Crepúsculo dos
Ídolos. “É preciso fazer do bom gosto um princípio de seleção das
relações sociais, do lugar, da vestimenta, da satisfação sexual, é
preciso preferir a beleza à vantagem pessoal, ao hábito, à opinião,
à preguiça” (GD/CI, Divagações de um Extemporâneo, 47, KSA
6.149). E conclui: “Regra suprema: é preciso não ‘deixar-se ir’”
(GD/CI, Divagações de um Extemporâneo, 47, KSA 6.149). Em outra
passagem, onde a cultura aristocrática é confrontada de modo mais
explícito ao modo de vida alemão, Nietzsche afirma:
O século XVII é aristocrático, ordenador, desdenhoso a respeito da
animalidade, severo para o coração, de uma ‘inconfortável’ reserva,
hostil a toda efusão, ‘não alemão’ [grifo nosso], não apreciando em
quase nada o burlesco e o natural, generalizante e souverain em relação ao passado: pois ele crê em si próprio (KSA 12. 440, Nachlass/
FP 9 [178]).
Severo com o coração, em nada apreciando o “natural”, reservado: assim Nietzsche define o século XVII. A exaltação das
paixões individuais, a expansividade do espírito, a espontaneidade própria da “natureza”, elementos tão caros aos alemães, e
em boa medida tributários da filosofia de Rousseau, tudo isso é
completamente estranho ao século XVII. As referências feitas
pelo fragmento citado não são fortuitas; elas aludem diretamente
ao movimento de insurreição contra as regras formais da sociedade
aristocrática, que tanto marcaria os alemães na segunda metade
206| cadernos Nietzsche 27, 2010
Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
do século XVIII. As reivindicações morais e estéticas deste movimento, que ficou conhecido como Sturm und Drang, embora não
se revestissem de um cunho político, contribuíram decisivamente
para a eclosão dos ideais de gosto do ancien régime, ora libertando
a arte das regras rígidas impostas pelo Classicismo, ora rompendo
com o formalismo da etiqueta que tanto impedia, sob a ótica dos
alemães, a livre expressão da interioridade individual. Nietzsche
não apenas tem consciência desse momento histórico, como nele
identifica a origem de uma atitude subjetiva que, não ao acaso, o
levará a se referir aos alemães como “célebre povo da profundidade interior” (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.276), esfacelados entre
um interior e um exterior (HL/Co. Ext II, 4, KSA 1.272), marcados pela “contradição entre conteúdo e forma” (HL/Co. Ext II, 4,
KSA 1.275). Se, contudo, critica esse programa de oposição aos
valores do ancien régime, não é como um classicista ou philosophe
da corte que pensa, pois não se trata de reativar formas antigas de
pensamento para tentar demolir o que existe de atual. O resgate de
alguns dos elementos da sociedade aristocrática representa parte
de uma empreitada crítica através da qual Nietzsche, com a ironia
e habilidade que lhe são próprias, nos mostra como o programa de
liberdade estética e moral de uma época é capaz de voltar-se contra a própria cultura, ao abrir caminho, sob um pretexto qualquer,
para a eclosão de forças que antes ocupavam uma posição servil
em seu interior. Em certos momentos, foi preciso vestir a máscara
do classicista e se reapropriar de suas teses, deslocando-as para
um quadro de pensamento onde elas pudessem ganhar uma nova
vitalidade, que lhes permitisse constituir uma tensão renovada com
o espírito alemão. Foi preciso mostrar como o desejo de autonomia
individual, de atitude transgressora, converteu-se num movimento
de liberdade desenfreada apto a dar vazão ao que de bárbaro havia
entre os alemães. “Esse século conheceu uma tentativa tragicamente grave, a mais instrutiva de todas, para dissipar este vapor e
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 207
Moura, C.
abrir a perspectiva para as altas nuvens do espírito alemão” (BA/
EE, 5ª conferência, KSA 1.747).
Por isso, um dos méritos de Nietzsche foi o de ter percebido
que os anseios de liberdade estética e moral que marcaram os
alemães, no lugar de assumir uma conotação revolucionária, terminaram por favorecer o desenvolvimento de forças que lentamente
passaram a adquirir proporções jamais antes pensadas – a vitória
sobre a França, como marco simbólico de uma nova “identidade
alemã”, constitui o momento de consumação desse processo. A
aversão pela forma, pela superficialidade e, por conseguinte, por
tudo que pertencia à ordem da convenção aristocrática, encontrou
sua contrapartida em um movimento de interiorização exacerbada
que gradativamente apartou o indivíduo do mundo, distanciando-o
dos propósitos mais elevados da cultura. Nesse indivíduo, que se
pretende livre porque “natural”, que se “deixa ir” da maneira como
melhor lhe convém, Nietzsche enxerga a fiel tradução de um fenômeno de retraimento interior próprio de um novo tipo de barbárie.
“O laissez-faire universal que chamam de ‘livre-personalidade’ não
pode ser nada mais que o signo distintivo da barbárie” (BA/EE, 2ª
conferência, KSA 1.681).
Longe das figuras ruidosas da selvageria, da regressão ou da
violência, a barbárie moderna emerge como uma espécie de processo
silencioso; um processo que gradativamente aniquila a grandeza de
todas as coisas das quais se apropria, para reduzi-las às determinações de uma subjetividade “emancipada” – e doravante projetada
como instância única de sentido.
* * *
O processo de inversão de avaliações sofrido pela cultura não
é algo novo na obra do jovem Nietzsche. O Nascimento da tragédia
já mostrava como o triunfo do conhecimento racional sobre a arte
208| cadernos Nietzsche 27, 2010
Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
derivava de um movimento mais geral em que a vida, de instância
avaliadora, passava a ser, ela mesma, submetida à razão, tornada
agora a juíza suprema de todas as avaliações. Os textos posteriores
ao Nascimento da tragédia não deixarão de seguir essa orientação.
A novidade, porém, é que esse ponto de vista adquire um novo
desdobramento ao se concentrar em um momento mais específico
da história do homem; é quando um novo tipo existencial emerge
como dominante e assume para si a tarefa de determinar o que seja
“cultura”, assim como a ordem de prioridades acerca do que é vital
à existência.
Foi preciso que Nietzsche se libertasse da crença do ressurgimento de uma nova Alemanha para que sua obra pudesse ganhar
um desdobramento crítico que alçasse seu pensamento rumo a um
novo patamar. Essa crítica aos alemães jamais poderia traduzir um
sentimento anti-germânico e tampouco alinhá-lo em um horizonte
ideológico dominado pelas figuras da nação, do povo, da raça.
Sabe-se bem o tratamento que será dado a essa crítica nos anos
que se seguirão quando, nas páginas de Zaratustra, Nietzsche dedicar sua atenção a um tipo mais “universal” do qual o alemão não
é senão a proto-gênese: o “último homem”.
Abstract: The present article analyses Nietzsche’s criticism of the Germans from the literature produced after The Origin of Tragedy, specially
those of his youngness. The importance of such texts can be testified not
only by the emergency of central problems involving the meaning of the
notion of culture, but also by the way the phenomenon of subjectivization,
increasingly present among the Germans, is articulated with the advent of
a new form of barbarity.
Key-words: Nietzsche – germans – culture – civilization – barbarity.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |209
Moura, C.
referências bibliográficas
1. ANSELL-PEARSON, K. Nietzsche contra Rousseau.
Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
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posthumes de Frederic II, XIV).
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Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 19671978. 15 v.
6.
. La naissance de la tragédie suivi de fragments
posthumes – automne 1869- printemps 1872. Trad.
Michel Haar, Philippe Lacoue-Labarthe et Jean-Luc
Nancy. Paris: Gallimard, 1974.
7.
. Considerations Inatuelles I et II: David Strauss,
l’apôtre et l’écrivain – De l’utilité et des inconvénients
de l’histoire pour la vie suivi de fragments posthumes
été 1872 – hiver 1873-74. Trad. Pierre Rusch . Paris:
Gallimard, 1990.
8.
. Sur l’avenir de nos établissements d’enseignement. Trad. Jean-Louis Backès, Michel Haar et Marc
de Launay. Paris: Gallimard, 1975 (Oeuvres philosophiques completes, I, 2).
210 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Cultura, civilização e barbárie do ponto de vista da crítica de Nietzsche aos alemães
9.
. Gai savoir suivi de fragments posthumes – été
1881 – été 1882. Trad. Pierre Klossowski. Paris: Gallimard, 1982 (Edição revista, corrigida e aumentada por
Marc B. de Launay em 1982) (Oeuvres philosophiques
completes, V).
10.
. Fragments posthumes – automne 1887 – mars
1888. Trad. Henri-Alexis Baatsch et Pierre Klossowski. Paris: Gallimard, 1976 (Oeuvres philosophiques
complètes, XIII).
11.
. Crépuscule des idoles. 1974. Trad. Jean-Claude
Hémery. Paris: Gallimard, 1974 (Oeuvres philosophiques completes, VIII, 1).
12.
. Cinco prefácios para cinco livros não escritos.
Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Sete Letras,
2005.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
211
Nietzsche e as perspectivas
do perspectivismo
Thiago Mota*
Resumo: Este artigo propõe um balanço do debate recente acerca do
perspectivismo de Nietzsche cujos objetos de disputa são o problema da
referência ao devir e o problema da auto-referência ou o puzzle do perspectivismo. Cinco posições se delineiam no debate: 1) perspectivismo metafísico, 2) perspectivismo hermenêutico-fenomenológico, 3) perspectivismo
transcendental, 4) perspectivismo semântico e 5) perspectivismo pragmático.
Nossa conclusão é que a leitura pragmática do perspectivismo é aquela
que oferece mais vantagens para a reconstrução do perspectivismo, pois
ela permite pensar de modo anti-fundacionista e anti-correspondencialista e ao mesmo tempo autoriza falar nos termos de um perspectivismo
pragmático-agonístico.
Palavras-chave: conhecimento – linguagem – perspectivismo – pragmatismo – agonística
Introdução
“Perspectivismo” é a designação corriqueira para a suposta
teoria do conhecimento de Nietzsche, cuja idéia básica resume-se
nas seguintes palavras: “não há fatos, apenas interpretações” (KSA
12.315, Nachlass/FP 7[60]), que, no nosso entender, têm significação equivalente ao trecho de Para além do bem e mal que diz, demovendo as pretensões do discurso de uma hard science como a física:
*
Doutorando em Filosofia pela Université Catholique de Louvain.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
213
Mota, T.
“isso é interpretação e não texto” (JGB/BM 22, KSA 5.37).1 No entanto, ao dizer que o perspectivismo é uma teoria do conhecimento
e precisamente aquela que se desenvolve em Nietzsche, já tocamos
em, pelo menos, dois problemas. O primeiro consiste em saber se
há algo como uma teoria do conhecimento, uma Erkenntnistheorie,
nos escritos de Nietzsche. Em caso afirmativo, deparamo-nos com
um segundo problema: em que medida essa teoria pode se inserir
como uma posição forte no debate epistemológico contemporâneo.
Um panorama da discussão atual acerca do perspectivismo é capaz
de lançar alguma luz sobre esses problemas.
O uso cada vez mais recorrente do termo “perspectivismo” em
círculos intelectuais variados2, de modo especial, mas não exclusivamente, no debate filosófico contemporâneo, por si só justifica
uma tentativa de compreensão do que se quer dizer com o mesmo.
Defensores e críticos do perspectivismo muitas vezes não falam sobre a mesma coisa. O termo adquiriu, como não é raro ocorrer, uma
pluralidade semântica que parece se confundir com aquilo mesmo
que o termo quer significar. O perspectivismo é, entre outras coisas,
a afirmação de que há uma pluralidade de sentidos, uma polissemia
irredutível, no limite, a uma definição unívoca e não ambígua. Num
aforismo de título Nosso novo “infinito”, Nietzsche dá conta disso:
“penso que hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula
imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele
1
2
A contrapartida prática dessa formulação teórica é a seguinte: “não existem fenômenos
morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos” (JGB/BM 108, KSA 5.92),
com base na qual se pode falar em um perspectivismo ético.
Além da filosofia, o termo “perspectivismo” é empregado, por exemplo, em teoria
literária (perspectivismo narrativo) e antropologia. O mais célebre desses casos talvez seja o conceito de perspectivismo ameríndio cunhado pelo antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro. Cf. CASTRO, E. “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo
Ameríndio”. In: Mana. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 1996, p. 115-144.
214 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
pode-se ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente ‘infinito’
para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de
que ele encerre infinitas interpretações” (FW/GC 374, KSA 3.627).
Portanto, não é por acaso que “perspectivismo” ocorre em diversos
empregos.
A genealogia do termo certamente antecede a Nietzsche. Segundo F. Kaulbach, seu uso foi introduzido em filosofia por Leibniz, no
interior do modelo monadológico. Kant também o teria utilizado em
sua filosofia transcendental. Desse modo, a discussão atual acerca do
perspectivismo excede em muito os limites da Nietzsche-Forschung.
Exemplo disso é um volume organizado por V. Gerhardt e N. Herold
com o título Perspektiven des Perspektivismus3, que mostra a fecundidade da noção em diferentes autores e campos de investigação filosófica. Entretanto, é principalmente devido à influência de Nietzsche
que o termo se dissemina pela filosofia e alhures.
Apesar disso, o uso de “Perspektivismus” em Nietzsche se revela surpreendentemente raro. Em geral, apontam-se apenas três
momentos de emprego efetivo do termo na vastidão de seus escritos
publicados e póstumos.4 Bem mais freqüente é, por outro lado, a
utilização de “perspectiva” (“Perspektive”) e seus derivados, como
perspectivístico, empregado tanto como adjetivo, “perspektivistische”
3
4
Coletânea de ensaios publicada em homenagem a Kaulbach que discute o perspectivismo em vários autores além de Nietzsche, tais como Bacon, Descartes, Kant, Frege,
abordando questões de antropologia filosófica, filosofia da natureza e da ciência,
teoria do conhecimento, epistemologia, teoria da ação, estética etc. Cf. GERHART,
V.; HEROLD, N. (orgs.). Perspektiven des perspektivismus: Gedenkschrift für Friedrich
Kaulbach. Würzburg: Königshausen, Neumann, 1992.
A saber, uma vez na Gaia ciência (FW/GC 374, KSA 3.626) e mais duas nos póstumos dos anos 1885-1889 (Nachlass/FP, 7[60], KSA 12.315) e primavera 1888 (KSA
13.373, 14[186],). Cf. COX, C. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley:
University of California Press, 1999, p. 109.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
215
Mota, T.
(GM/GM III, 12, KSA 5.365), quanto como substantivo, “das Perspektivistische” (JGB/BM, Prólogo, KSA 5.12), que ocorrem de modo
cada vez mais freqüente a partir de 1885.
A despeito dessa escassez, o perspectivismo se torna um motivo central nas discussões acerca da obra de Nietzsche, sobretudo,
a partir da década de 1960.5 Em parte em função desse déficit de
evidências textuais, não há minimamente consenso acerca do que
se entende por perspectivismo em Nietzsche. Toda investigação
a respeito do tema lida com um amontoado de fragmentos, peças
soltas de um quebra-cabeça, cujas possibilidades de interpretação
são muitas e, enquanto tais, constituem-se como reconstruções
peculiarmente criativas. O quebra-cabeça do perspectivismo é marcado por uma incompletude característica, que leva o intérprete
a colher em algum lugar fora da imanência dos textos nietzschianos as peças que faltam. Portanto, o trabalho de interpretação do
perspectivismo nietzschiano jamais se restringe a mero esforço
exegético, tendo, por conseguinte, um aspecto inevitavelmente
propositivo, incomum na pesquisa filosófica padrão. Com relação
ao perspectivismo, portanto, torna-se particularmente pertinente
a idéia de que interpretar é criar.
E são muitas as possibilidades de reconstrução do perspectivismo, tantas que retomá-las amiúde equivaleria a compor toda
uma história da filosofia desde Nietzsche até os dias atuais. Nem
de longe temos tal pretensão. Não obstante, podemos pôr as cartas
à mesa mostrando quais são os delineamentos básicos das posições
em jogo.
5
A Nietzsche-Bibliographie da Klassik Stiftung Weimer registra 143 obras para a
entrada de busca “Perspektivismus”, que vão se tornando mais recorrentes a partir
dos anos sessenta. Disponível em: http://ora-web.swkk.de:7777/swk-db/niebiblio/
index.html.
216 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
Minha sugestão consiste, então, em tomar como linhas interpretativas centrais no debate acerca do perspectivismo nietzschiano as seguintes: 1) perspectivismo metafísico, 2) perspectivismo
hermenêutico-fenomenológico, 3) perspectivismo transcendental, 4)
perspectivismo semântico e 5) perspectivismo pragmático.
1. Perspectivismo metafísico
Diversos intérpretes entendem que o perspectivismo não é
de forma alguma uma Erkenntnistheorie, mas uma doutrina ontológica. O problema central com que têm de lidar tais intérpretes
deriva de que Nietzsche fez do ataque à ontologia e à metafísica,
que ele parece não dissociar, uma profissão de fé. Ele afirma, por
exemplo, que
A força inventiva, que tem poetado categorias, labora a serviço da
necessidade, ou seja, da segurança, do entendimento rápido à base
de sinais e sonidos, de reducionismos: – não se trata de verdades
metafísicas nos casos de “substância”, “sujeito”, “objeto”, “ser”,
“devir”. – Os poderosos é que do nome de coisas fizeram leis: e entre
os poderosos foram os grandes artistas da abstração que elaboraram
as categorias (KSA 12.237, Nachlass/FP 6[11]).
Nessa constelação, fica difícil imaginar como se poderia interpretar o perspectivismo como uma espécie de ontologia.
Os que defendem essa posição, no entanto, se servem de outras
passagens de Nietzsche, em que este suprime a possibilidade de
uma teoria do ser, em nome de uma teoria do devir, a que se refere
em seus últimos escritos com o conceito de vontade de potência: “O
mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o
seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
217
Mota, T.
nada mais. –” (JGB/BM 36, KSA 5.55).6 Tratar-se-ia de uma ontologia da pluralidade, ao invés da unidade, da diferença, ao invés da
identidade, da imanência, ao invés da transcendência. A questão
que surge aí é como se dá, em Nietzsche, o acesso a essa realidade
perspectivisticamente estruturada e em que sentido o perspectivismo
ontológico não repõe aquilo mesmo que ele pretende negar. Essa é
uma das questões cruciais a serem enfrentadas numa reconstrução
do perspectivismo: o problema da referência ao devir.
Heidegger enfrenta essa questão ao elaborar uma interpretação
que designamos aqui como perspectivismo metafísico. Diga-se de
saída que se trata de uma “reconstrução desconstrutivista”7, ou
seja, uma interpretação eminentemente crítica do perspectivismo.
Para Heidegger, a despeito de todo o esforço crítico que possa ter
realizado, o pensamento de Nietzsche é tão metafísico quanto o de
Platão. A metafísica de Nietzsche representaria o acabamento da
tradição metafísica na medida em que atualiza e esgota todas as
possibilidades dessa mesma tradição. A crítica que Heidegger dirige
a Nietzsche é, assim, a mesma que ele opõe à tradição metafísica
em conjunto: a filosofia nietzschiana seria, também ela, uma forma
de esquecimento do ser.
Em Nietzsche, o esquecimento do ser se dá por meio da metafísica da vontade de potência. De acordo com Heidegger, “a vontade
6
7
W. Müller-Lauter diz: “Do pensar não-metafísico de Nietzsche, falo apenas quando
apresento, de modo imanente, seu entendimento de metafísica. Se compreendemos,
porém, metafísica de modo muito mais abrangente, como o perguntar pelo ente
em sua totalidade e enquanto tal, então temos que, segundo minha concepção,
designar também Nietzsche como metafísico” (MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina
da vontade de poder em Nietzsche. 2.ed. Trad. O. Giacoia Jr. São Paulo: Annablume,
1997, p. 72).
Cf. MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial/
Ed. UNIJUÍ, 2003, p. 120.
218 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
de potência é o caráter fundamental do ente enquanto tal (...) é o
caráter fundamental da vida. ‘Vida’ é para Nietzsche outra palavra
para dizer ser”.8 Assim, “todo ente, posto que se essencializa como
vontade de potência, é ‘perspectivista’”.9 Nesse contexto, o perspectivismo surge como um dos aspectos da metafísica de Nietzsche. Heidegger o compreende basicamente à luz de um fragmento
póstumo que diz que “por meio do qual todo centro de força – e
não somente o homem – construiu, partindo de si mesmo, todo o
resto do mundo, quer dizer que o homem mede, apalpa e aplaina
o mundo segundo sua própria força...” (KSA 13.373, Nachlass/
FP 14[186]).
Desse modo, perspectivismo quer dizer, “a constituição do ente
como ver que põe pontos de vista e calcula”.10 O perspectivismo
é o caráter mesmo do ente, é a vontade de potência presente em
cada ente em particular que lança sobre a totalidade do ente sua
perspectiva para organizar a partir de si essa totalidade em função
de seu interesse de poder, de conservação e crescimento. Como diz
Heidegger, “a vontade de potência é, em sua essência mais íntima,
um contar perspectivista com as condições de sua possibilidade,
condições que ela mesma põe como tais”.11
O perspectivismo seria metafísico precisamente porque para
uma teoria perspectivista do conhecimento não se trata de conhecer
o ser, nem sequer o ente, mas de exercer poder sobre ele. Conhecimento é o processo por meio do qual o ser que conhece se apodera,
em função de seus interesses vitais, do ser em geral. Na medida em
8
11
9
10
HEIDEGGER, M. Nietzsche. Trad. J. L. Vermal. Barcelona: Destino, 2000. 2 v., cap.
“ La voluntad de poder”.
Idem.
Idem. No mesmo sentido, v. I, “La voluntad de poder como conocimiento”.
Idem.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
219
Mota, T.
que entende que esse ser que conhece é o sujeito a partir do qual se
lançam as perspectivas, Heidegger entende que o perspectivismo é
uma forma de subjetivismo: “A vontade de potência se desvela como
a subjetividade que se distingue por pensar em termos de valor.
Apenas se experimenta o ente enquanto tal no sentido desta subjetividade, isto é, como vontade de potência”.12 No perspectivismo
nietzschiano se revela com toda clareza que o motivo fundamental
da metafísica não foi conhecer o ser, mas dominá-lo; o perspectivismo explicita que a relação entre o sujeito e objeto é uma relação de
poder, que tem de ser pensada em termos de vontade de potência.
A história da metafísica se conclui, assim, com Nietzsche e, após
ele, o esquecimento do ser passa a se identificar com a técnica.
Um enfrentamento crítico com a imensa interpretação heideggeriana13 de Nietzsche foge a nossos propósitos. Entretanto, parece-nos
que Heidegger comete um excesso ao ler o perspectivismo como
uma forma de metafísica da subjetividade, pois uma das bases do
perspectivismo está precisamente na crítica da noção moderna de
subjetividade, que Nietzsche entende como obra do processo de
substancialização resultante de nossa crença na linguagem.
2. Perspectivismo hermenêutico-fenomenológico
Heidegger exerceu, e ainda exerce, forte influência sobre os
intérpretes de Nietzsche, sobretudo, na França. No que diz respeito ao perspectivismo, essa influência se faz sentir principalmente
12
13
Idem.
Segundo M. Haar, “jamais un philosophe majeur n’avait mené une lecture aussi longue, détaillée et persistante, dans sa volonté réductrice, que Heidegger de Nietzsche”
(HAAR, M. Heidegger: une lecture ambivalente. Magazine Littéraire, Paris, n. 3,
out.-nov. 2001, p. 76).
220 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
na leitura hermenêutico-fenomenológica que J. Granier articula
nutrindo-se não do que Heidegger diz acerca do perspectivismo,
mas do modo de pensar heideggeriano.
Granier entende que, em certa medida, o conceito hermenêutico
de Ser já estaria formulado em Nietzsche, que não o teria esquecido nem tampouco abolido, mas compreendido que “todo Ser é
como ser-interpretado”.14 Nesse sentido, haveria um perspectivismo
hermenêutico-fenomenológico. Segundo Granier, em Nietzsche
o dualismo da aparência e da Ding-an-sich é definitivamente superado:
cada aparência é uma aparição, isto é, uma manifestação real, e não
há nada a buscar além dessas manifestações. Ser é aparecer. Não no
sentido em que o aparecer igualar-se-ia ao Ser, mas no sentido de que
toda aparição é revelação do Ser. O perspectivismo nietzschiano não
é, pois, de forma alguma um fenomenismo (...). Ao afirmar o perspectivismo do conhecimento, Nietzsche defende, de fato, um pluralismo
ontológico: o Ser tem por essência de se mostrar, mas de se mostrar
segundo uma infinidade de pontos de vista.15
A noção nietzschiana de perspectiva é, desse modo, associada
à de fenômeno, não no sentido fenomenalista kantiano, mas no
sentido da fenomenologia. Cada perspectiva é uma “aparição”, uma
“manifestação”, da “coisa mesma”, do real, do Ser, que se desvela
de infinitas formas nas perspectivas. “A noção de perspectivismo se
14
15
GRANIER, J. Le problème de la verité dans la philosophie de Nietzsche. Paris: Éditions
du Seuil, 1966, p. 327.
Idem, p. 314.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
221
Mota, T.
imbrica com aquela de interpretação”16, de modo que “introduzindo
a noção de interpretação, Nietzsche impõe a definição do Ser como
“texto”. O Ser é semelhante a um texto do qual nós teríamos de tentar
a exegese (...) Assim, enquanto a idéia de perspectivismo enfatiza
mais o caráter de desvelamento do Ser, a idéia de interpretação
acentua seu caráter equívoco”17.
Conforme Granier, Nietzsche teria defendido um realismo
pluralista, uma ontologia da pluralidade que pensa o ser como
texto fundamental, isto é, a vontade de potência como um texto
caótico, fragmentário, estruturado em múltiplas perspectivas.
Granier chega inclusive a entender que essa seria uma ontologia
do caos. Por conseguinte, apesar de jamais termos como esgotar
a multiplicidade de possibilidades de interpretação do “texto do
ser”, é o ser mesmo que se desvelaria perspectivamente nas diversas interpretações.
O principal problema em interpretar o perspectivismo como
uma ontologia, ou uma metafísica, como quer Heidegger, decorre
de que encontrar em Nietzsche um realismo, ainda que pluralista,
se não é propriamente inviável, soa como algo forçado. Nietzsche
faz ataques diretos à postura realista e, por vezes, parece oferecer
o perspectivismo como uma alternativa a essa forma de pensar.
Some-se a isso que a idéia da vontade de potência como um texto
fragmentário plural tem de enfrentar as aporias da formulação de
um “monismo pluralista”. No caso específico de Granier, acresce
ainda o problema de conciliar a idéia do “texto do ser” com a tese
central do perspectivismo, que afirma haver apenas interpretações
e, por conseguinte, nega que haja sob elas um “texto” fundamental
(JGB/BM 22 e 38, KSA 5.37 e 56).
16
17
Idem, p. 314.
Idem, p. 316.
222 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
3. Perspectivismo transcendental
Se o perspectivismo não é uma ontologia, isto é, não é uma
descrição do mundo, mas, em certo sentido, uma epistemologia, ou
seja, uma tentativa de descrição daquilo que se passa no plano do
conhecimento, então, uma questão reflexiva se impõe como ponto
de partida para a reconstrução. Trata-se de saber se a tese básica
do perspectivismo seria retro-aplicável, ou seja, se ao enunciar
a proposição p – “todo conhecimento é perspectivo” poderíamos
acrescentar, sem incorrer em contradição, que inclusive p é perspectivo. Ou seja, trata-se de investigar se há alguma possibilidade da
tese perspectivista ser consistentemente auto-referente, ou se, pelo
contrário, ela seria necessariamente uma tese auto-refutável. Desse
modo, o perspectivismo suscita os mesmos problemas performativos
que o relativismo.
Tendo em vista esse “paradoxo do perspectivismo”, certos
intérpretes propõem que se distinga entre diferentes níveis discursivos. Assim, o perspectivismo seria um discurso de segunda
ordem que descreve, de modo não perspectivo, os vários discursos
de primeira ordem. Postula-se, por assim dizer, a existência de dois
tipos de conhecimento: um primeiro, direto ou imediato, de caráter
perspectivista, que consiste nas várias descrições realizadas pelas
ciências, pela arte, pela religião etc., através da aplicação de nossos
esquemas conceituais ao mundo; e um segundo, que seria indireto
ou mediado e de caráter não perspectivista, consistindo no discurso
da epistemologia ou da teoria do conhecimento e resultante de uma
reflexão acerca desses esquemas conceituais. Podemos designar
as leituras que operam essa distinção entre níveis discursivos de
perspectivismo transcendental, pois entendem que o perspectivismo
resulta da reflexão acerca de nossos esquemas conceituais, sendo,
portanto, um discurso de segunda ordem.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
223
Mota, T.
F. Kaulbach e V. Gerhardt são os principais defensores do perspectivismo transcendental na Alemanha. Ao colocar o problema da
formulação de uma Perspektive des Perspektivismus18, os autores procuram mostrar que o perspectivismo é o desdobramento da tradição
epistemológica moderna, em especial, da filosofia de Kant. Do ponto
de vista nietzschiano, a estrutura cognitiva do homem, a subjetividade transcendental, seria marcada por uma perspectividade. Baseado
numa passagem da Gaia ciência que diz: “Não podemos enxergar
além de nossa esquina: é uma curiosidade desesperada querer saber
que outros tipos de intelecto e perspectiva poderia haver” (FW/GC
374, KSA 3.626), Gerhardt afirma que “todo conhecimento está
vinculado a perspectivas”.19 Segundo ele, “Nietzsche tem consciência de que, dessa maneira, traz à expressão uma constituição
do conhecimento humano, que se aproxima bastante daquilo que
Kant buscou compreender como condições transcendentais: não
concebemos a realidade como ela é em si, mas apenas como ela
‘aparece’ para nós”20.
O perspectivismo seria, assim, a resposta de Nietzsche à pergunta transcendental pelas condições de possibilidade do conhecimento
e seria uma superação de Kant, não no sentido de uma ruptura em
relação a este, mas de uma reformulação neokantiana, na medida
em que teria situado tais condições de possibilidade no próprio
mundo. Nietzsche considera que a pergunta “o que posso saber?”
seria, como em Kant, precedida pela questão “o que é o homem?”,
18
19
20
Com esse termo Kaulbach designa o problema da auto-referência do perspectivismo.
Cf. KAULBACH, F. Philosophie des Perspektivismus. 1. Teil: Wahrheit und Perspektive
bei Kant, Hegel und Nietzsche. Tübingen: Mohr, 1990, p. 230 e ss.
GERHARDT, V. Friedrich Nietzsche. Munique: Beck, 1999, p. 138.
Idem, p. 138-9.
224 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
entretanto, o homem surge em Nietzsche como um ser finito, um
ser natural e histórico em sua existência concreta no mundo.21 No
entanto, afirmar o pertencimento do homem ao mundo não significa
negar que haja características humanas universais. Há uma perspectiva humana universal que se situa na base de todas as demais
perspectivas.
Especialmente influente na literatura de língua inglesa sobre
Nietzsche22, é a reconstrução neokantiana do perspectivismo elaborada por M. Clark. Segundo a autora, Nietzsche parte de uma crítica
à teoria metafísica da correspondência, para propor uma versão de
neokantismo que, nesses termos, pode ser incluída sob a rubrica de
um perspectivismo transcendental.
Tal como eu o interpreto, escreve Clark, Nietzsche concorda
com Kant no fato de que não conhecemos coisas em si e no fato
de, contrariamente a Descartes, a verdade que somos capazes de
descobrir não satisfazer à teoria metafísica da correspondência. No
entanto, Nietzsche é anti-kantiano no fato de negar a possibilidade
de pensar a coisa em si. Todavia, parece apropriado designar essa
posição como “neokantiana” porque chegou a ela pela aceitação e
longa reflexão acerca da recusa de Kant em aceitar o conhecimento
da coisa em si.23
21
22
23
Nessa linha segue também a interpretação de A. Marques, tomando, no entanto, o
corpo como esquema e fio condutor, cf. MARQUES, A. op. cit., p. 149-79.
Para uma síntese das principais abordagens de Nietzsche no mundo de língua inglesa,
cf. HALES, S. Recent work on Nietzsche. American Philosophical Quarterly. Chicago,
v. 37, n. 4, out. 2000. Disponível em: http://www.bloomu.edu/departments/philosophy/
pages/content/hales/hales.html, p. 317-8.
CLARK, M. Nietzsche on truth and philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990, p. 61.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 225
Mota, T.
Clark entende que o pensamento epistemológico de Nietzsche
se desdobra em duas fases. A primeira fase, caracterizada principalmente por Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, denotaria
uma espécie de ceticismo decorrente da aceitação da noção de
verdade como uma correspondência que seria, no entanto, irrealizável. Nesse sentido, Nietzsche teria elaborado o que ela chama
de tese da falsificação, segundo a qual, todos as nossas sentenças
falsificam e distorcem a realidade. A verdade seria pressuposta,
assim, como coisa em si incognoscível, da qual todo conhecimento
seria a falsificação.
A tese da falsificação é claramente auto-refutativa, pois “se todo
conhecimento é falso”, também o é a proposição que afirma precisamente o que acabou de ser dito. Clark considera que Nietzsche
ter-se-ia dado conta disso e, por conseguinte, procurou eliminar a
tese da falsificação no momento de articulação do perspectivismo.
Ao aprofundar a crítica à coisa em si, Nietzsche abandona a idéia de
correspondência metafísica e conseqüentemente renuncia à tese da
falsificação.24 Desse modo, na segunda fase de seu pensamento, ele
tem de retornar, de alguma forma, ao correspondencialismo.
A célebre passagem do Crepúsculo dos ídolos em que se afirma
que “com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente”
(GD/CI, Como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula
6, KSA 6.81) é vista, nesse sentido, como a proposição de uma da
correspondência mínima, que Clark colhe do realismo interno de H.
Putnam.25 Haveria em Nietzsche, portanto, um “realismo perspectivista”, para o qual a realidade manifestar-se-ia, sempre como real,
nas diversas perspectivas, isto é, nos diversos esquemas conceituais
de que dispomos. Com efeito, não é possível uma verdade absoluta,
24
25
Cf. Idem, p. 103-24.
Cf. Idem, p. 132.
226 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
correspondente em sentido metafísico, que seria o equivalente do
ponto de vista de Deus26, mas seriam possíveis múltiplas verdades
diversamente correspondentes porque baseadas em pontos de vistas
distintamente situados. O problema da teoria da correspondência
não seria, assim, a idéia de correspondência enquanto tal, que segue fornecendo o modelo a partir do qual se pensa a verdade, mas a
imposição de uma única correspondência. O correspondencialismo
mínimo entende ser possível estabelecer múltiplas relações correspondenciais, todas referidas a um mesmo real, que, entretanto, não
pode ser concebido de “lugar nenhum”, ou seja, de fora de nossos
esquemas conceituais, nossas perspectivas.
A maior dificuldade das reconstruções transcendentais do perspectivismo deve-se a que Nietzsche rejeita, em diferentes momentos,
uma distinção entre níveis discursivos. Nesse sentido, a principal
objeção perspectivista ao kantismo consiste em que este não pode
justificar, senão por meio de uma postulação haurida na crença no
valor incondicional da verdade, que, ainda que o conhecimento que
temos do mundo seja fenomênico, o conhecimento que temos das
condições de possibilidade do conhecimento do mundo, ou seja, o
discurso de segunda ordem, seja não fenomênico, mas transcendental. Com base nisso Kant distingue entre quaestio facti e quaestio
juris e formula precisamente uma distinção que Nietzsche pretende
repudiar.
No que diz respeito especificamente à abordagem de Clark,
parece por demais forçosa a atribuição de um correspondencialismo, ainda que mínimo, a Nietzsche. Sua crítica à noção de verdade
ganha radicalidade quando a lemos como uma objeção frontal ao
26
Dado que, para Nietzsche, Deus está morto, não pode haver o que Putnam chama de
God’s eye view. Cf. PUTNAM, H. Realism with a human face. Cambridge: Harvard
University Press, 1990.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 227
Mota, T.
correspondencialismo. O perspectivismo, como já vimos, parte da
negação da existência de fatos, o que implica a impossibilidade
do estabelecimento de relações correspondenciais (o que haveria
de corresponder a nossas proposições se precisamente “fatos” não
existem?). Desse modo, a teoria da verdade que melhor se ajusta ao
perspectivismo tem de ser uma espécie de anti-correspondencialismo. O perspectivismo assume, assim, uma postura anti-realista que
não precisa fazer as concessões que o realismo interno faz.
4. Perspectivismo semântico
Uma outra linha interpretativa do perspectivismo, eminentemente lógico-analítica, é aquela que está articulada nos trabalhos de S.
Hales e R. Welshon. Trata-se aqui de um perspectivismo semântico
que, como os próprios autores reconhecem, aborda Nietzsche com
aporte na filosofia analítica contemporânea e, nessa medida, tem
como precursores A. Danto, M. Clark, P. Poellner, e como companheiros de viagem R. Schacht e A. Nehamas.27 No entanto, sua
singularidade não reside apenas em utilizar categorias analíticas
para reconstruir o perspectivismo, mas em considerá-lo como uma
posição forte no debate analítico atual. Ou seja, Hales e Welshon
não apenas se valem de ferramentas analíticas para pensar o perspectivismo; como também se servem do perspectivismo para dar
respostas e fornecer alternativas para a filosofia analítica.
O ousado projeto em que esses analíticos nietzschianos se
envolveram pode ser definido como uma tentativa de formular um
relativismo consistente com o padrão analítico de racionalidade,
ou seja, trata-se de propor um relativismo auto-referencialmente
27
Cf. HALES, S; WELSHON, R. Nietzsche’s perspectivism. Urbana/Chicago: University
of Illinois Press, 2000, p. 3.
228 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
consistente. As intuições de Nietzsche sobre o perspectivismo são,
nesse sentido, uma inspiração fundamental. Hales entende que o
problema da consistência do relativismo, tão antigo quanto a própria
filosofia, poderia ser colocado em outro patamar por meio da formulação de uma semântica perspectivista baseada numa relação entre
os “mundos possíveis” de Kripke e as perspectivas nietzschianas. A
semântica perspectivista consiste na introdução de certos operadores
na lógica modal alética: os “operadores perspectivísticos”. Segundo
Hales, “não é mais incoerente relativizar a verdade de proposições
a perspectivas dada uma semântica perspectivista que relativizar
a verdade de proposições a mundos possíveis dada uma semântica
de mundos possíveis, ou relativizar verdade a linguagens dado um
rol (array) de linguagens”.
A formulação de um relativismo consistente, nesses termos,
implica uma ampla reconstrução do perspectivismo, a começar por
uma teoria perspectivista da verdade. Tendo em vista , o problema
da auto-referência do perspectivismo, a que chamam de puzzle of
perspectivism28, Hales e Welshon propõem a superação da dicotomia
absolutismo forte/perspectivismo forte (equivalente à noção paradoxal
de relativismo absoluto), que se reduzem um ao outro, por meio da
adoção de um perspectivismo fraco.
O perspectivismo fraco deve ser tomado como a tese de que há ao
menos uma sentença tal que há alguma perspectiva na qual ela é verdadeira, e alguma perspectiva na qual ela é não-verdadeira. Observe
que é consistente com o perspectivismo fraco que algumas sentenças
mantêm o mesmo valor de verdade em todas as perspectivas, isto é,
pode-se sustentar que verdadeiramente muitas – quase todas – as
sentenças mantêm seu valor de verdade perspectivamente, e ainda
28
Cf. Idem, p. 21-31.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 229
Mota, T.
entender que não obstante algumas sentenças mantêm seus valores
de verdade absolutamente. Em outras palavras, algumas sentenças
mantêm seus valores de verdade através de todas ou em todas as
perspectivas. Essa é visão acerca da verdade oferecida em favor de
Nietzsche.29
Com base nessa teoria perspectivista da verdade, os autores
passam a uma reconstrução do perspectivismo entendido como tema
unificador das reflexões de Nietzsche, que dessa forma assumem
um caráter marcadamente sistemático. O termo “perspectivismo”
ganha, assim, vários significados, podendo ser referido a uma lógica,
uma ontologia, uma epistemologia, uma teoria da causalidade e uma
teoria da consciência ou do eu, todas igualmente perspectivistas.30
Entre outras coisas, defendem que Nietzsche dispõe de uma ontologia anti-realista que culmina em uma teoria dos feixes de objetos
(bundle theory of objects)31, a qual é correlata a uma epistemologia
contextualista que rejeita a possibilidade de conhecimento de re,
mas admite a possibilidade de conhecimento de dicto.32
Certamente são muitos os méritos dessa sofisticada versão
semântico-modal do perspectivismo. Seus efeitos e alcance, em
especial, no interior do debate analítico contemporâneo dificilmente
podem ser, por enquanto, mensurados. O perspectivismo semântico
pode se mostrar como um novo alento para uma tradição que ameaça
soçobrar.
No entanto, a nosso ver, seu principal defeito consiste em ter forçado ao extremo o enquadramento de Nietzsche e do perspectivismo
31
32
29
30
Idem, p. 31.
Cf. Idem, passim.
Cf. Idem, p. 57 e segs.
Cf. Idem, p. 111 e segs.
230 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
no standard de consistência da filosofia analítica, com o que esses
acabam por perder seus propósitos. Ao conceber um perspectivismo
fraco que admite sentenças de “validade transperspectiva”, Hales e
Welshon chegam à contradictio in adjecto de uma “perspectiva absoluta”. Ou seja, para evitar a auto-refutabilidade do perspectivismo,
terminam por entender que a sentença que contém a tese básica
do perspectivismo conta com tal validade transperspectiva, assim
como ocorre com os princípios da lógica clássica, demonstrados,
via contradição performativa, pelo menos, desde Aristóteles. Nesse
contexto, cabe uma pergunta: seria possível conceber uma perspectiva constituída somente e tão-somente de sentenças com validade
transperspectiva? Isso parece ser, ainda que não o reconheçam, o
que fizeram Hales e Welshon.
5. Perspectivismo pragmático
Baseados no pragmatismo, tanto aquele da tradição norte-americana, especialmente o de James, quanto em sua forma lingüística
mais recente, que deriva das reflexões do segundo Wittgenstein, vários intérpretes propõem um tipo de reconstrução do perspectivismo
que aqui se designa por perspectivismo pragmático. A despeito de
suas diferenças específicas, Nietzsche as philosopher, de A. Danto,
que adquiriu o status de clássico, continua sendo o modelo para as
leituras pragmáticas do perspectivismo.
No contexto, que já não é o nosso, de total hegemonia da filosofia
analítica, Danto ousa reconstruir o pensamento de Nietzsche em
termos que fazem dele justamente um precursor desse movimento.
Nietzsche raramente foi tratado como filósofo, e nunca, eu acho,
a partir da perspectiva, que compartilha em certo grau, da filosofia
analítica contemporânea. Nos últimos anos, filósofos estiveram preocupados com pesquisas em lógica e lingüística, pura e aplicada, de
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
231
Mota, T.
modo que eu não hesitei em reconstruir os argumentos de Nietzsche
nesses termos. (...) Nietzsche não pode ser visto como sendo uma
influência sobre o movimento analítico na filosofia, exceto de uma
maneira tortuosa e subterrânea. Antes, cabe ao movimento reclamá-lo
como predecessor.33
A principal razão para a então inusitada aproximação entre
Nietzsche e a analítica, Danto a encontra no tratamento terapêutico
da linguagem que aquele desenvolve.
As afinidades de Nietzsche com a filosofia analítica (...) não são tão
evidentes em outro lugar quanto em sua preocupação com a linguagem.
(...) Seria claramente uma distorção sugerir que Nietzsche antecipou
as discussões que dominaram a filosofia nos anos recentes. Mas ele
é inquestionavelmente um predecessor. Podemos ver problema após
problema atacado por ele em referência ao que chama de modos enganosos de expressão – que são os modos de expressão empregados
em toda parte. Pareceu-lhe claro que os homens são seduzidos pela
gramática da linguagem que falam e implicitamente acreditam estar
descrevendo o mundo quando, de fato, o mundo tal como concebem é
apenas um reflexo da estrutura de sua língua.34
Nietzsche lidaria, assim, com os problemas clássicos da filosofia
não tendo em vista resolvê-los, mas dissolvê-los, torná-los destituídos de sentido (unsinnig), revelando-os como pseudo-problemas
através de uma terapia da linguagem. Essa terapia seria o sentido
da frase do Crepúsculo dos ídolos que adverte: “Receio que não
nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática” (GD/CI,
33
34
DANTO, A. Nietzsche as philosopher. Nova York, Londres: MacMilan, 1965, p. 13-4.
Idem, p. 83-4.
232 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
A “razão” na filosofia 5, KSA 6.78). A leitura pragmática do perspectivismo parte, portanto, de uma aproximação com Wittgenstein,
segundo o qual “a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de
nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem”.35 É a sedução
da linguagem, no dizer de Nietzsche, ou as ilusões gramaticais, nas
palavras de Wittgenstein36, o que nos leva a substancializar itens lingüísticos, isto é, a crer o que “sujeito”, “objeto”, “ser” etc., seriam,
mais que meras funções da linguagem, entidades substanciais.
A relação entre Nietzsche e o segundo Wittgenstein mostra-se
fértil, para além da questão da terapia, sobretudo, no que diz respeito
ao pluralismo lingüístico que ambos defendem. Perspectivas podem
ser aproximadas, de modo particularmente pertinente, de jogos de
linguagem, assim como as formas de vida de Wittgenstein são semelhantes aos “tipos” nietzschianos.37 Em suma, ambos os autores
desenvolvem uma abordagem da linguagem em termos pragmáticos,
considerando-a como uma práxis social e definindo o significado e
a verdade em termos de uso.38
A proximidade entre perspectivismo e pragmatismo pode ser
evidenciada também no que diz respeito à teoria da verdade.39
Segundo Danto, abandonando o correspondencialismo, “Nietzsche
35
36
37
38
39
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2.ed. Trad. J. C. Bruni. São Paulo: Abril
Cultural, 1978 (Col. “Os Pensadores”), §109.
Cf. Idem, §§ 110, 116.
Nesse sentido, compare-se o KSA 12.315, Nachlass/FP 7[60] com o §23 das Investigações filosóficas.
O §354 da Gaia ciência pode ser lido, nesse sentido, como uma antecipação do argumento da linguagem privada. Acerca desse último, cf. WITTGENSTEIN, L. op.cit.,
§§243 e ss.
Cf. MOTA, T. Para uma leitura lingüístico-pragmática da teoria da verdade do jovem
Nietzsche. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, v. 3, n. 2,
p. 134-42, dez. 2006. Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo/
cognitio_estudos/cog_estudos_v3n2/cog_est_v3_n2_mota_t14_134_142.pdf.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
233
Mota, T.
(...) avança um critério pragmático de verdade: p é verdadeiro e
q é falso se p funciona (works) e q não”.40 Ou seja, não só há uma
teoria perspectivista da verdade, de modo que este pode se afastar
das formas mais cruas de ceticismo e relativismo, como tal teoria é
pragmática, pois estabelece como critério de verdade a eficácia, o
melhor desempenho, enfim, a utilidade. É isso o que Nietzsche quer
dizer quando define verdade como “a espécie de ‘erro’ sem o qual
uma determinada espécie de seres vivos não poderia sobreviver”
(KSA 11.502, Nachlass/FP 34[243]).
No entanto, é também a partir da problematização da noção de
utilidade em Nietzsche que as diferenças entre o perspectivismo e
o pragmatismo podem ser concebidas. Na Gaia ciência, lemos:
Não temos nenhum órgão para o conhecer; para a “verdade”: nós
“sabemos” (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode
ser útil ao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui
se chama “utilidade” é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e,
talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos
(FW/GC 354, KSA 3.593).
Nietzsche não parece disposto a comungar com a tendência
utilitarista do pragmatismo, ainda que entenda que o critério de
verdade se encontra, de alguma forma, na utilidade. É que Nietzsche
pensa a utilidade como uma utilidade na luta: “‘Útil’ no sentido da
biologia darwiniana, i. é, o que se revela favorável e propício na
luta com os outros” (KSA 12.309, Nachlass/FP 7[44]). A adoção
de um critério pragmático de verdade no perspectivismo pressupõe, assim, que as perspectivas não são incomensuráveis como os
jogos de linguagem de Wittgenstein, mas que se estabelecem lutas
40
DANTO, A. Nietzsche as philosopher. Nova York, Londres: MacMilan, 1965, p. 72.
234 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
entre perspectivas, relações de poder que constituem um espaço
conflitual interperspectivo, em que cada perspectiva combate pela
supremacia. Portanto, a utilidade é assumida por Nietzsche como
critério de modo agonístico, ou seja, trata-se do poder como critério
pragmático-agonístico de verdade.
Essa é, a nosso ver, a principal deficiência do perspectivismo
pragmático tal como concebido até aqui. Ao perder de vista que a relação entre verdade e poder é a base da epistemologia perspectivista,
a leitura pragmática não é capaz de perceber que o perspectivismo
se complementa e esclarece por meio de um agonismo. Problema
que não é pequeno, na medida em que esta seria precisamente a
contribuição que uma reflexão sobre Nietzsche poderia trazer ao
movimento pragmático.
Abstract: This paper proposes a balance of the recent debate on
Nietzsche’s perspectivism, discussion which aims the problem of the reference to the becoming and the problem of the self-reference or the puzzle
of perspectivism. Five positions were identified in the debate: 1) metaphysical perspectivism, 2) hermeneutic-phenomenological perspectivism, 3)
transcendental perspectivism, 4) semantic perspectivism and 5) pragmatic
perspectivism. We conclude that the pragmatic interpretation is the one
offering the most of advantages for it permits to think in a non-fondationist
and non-correspondentist way and at the same time it authorizes to speak
in terms of a pragmatic-agonistic perspectivism.
Key-words: knowledge – language – perpectivism – pragmatism –
agonistics
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
235
Mota, T.
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236 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo
12. KAULBACH, F. Philosophie des Perspektivismus. 1.
Teil: Wahrheit und Perspektive bei Kant, Hegel und
Nietzsche. Tübingen: Mohr, 1990.
13. MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche.
São Paulo: Discurso Editorial/ Ed. UNIJUÍ, 2003.
14. MOTA, T. Para uma leitura lingüístico-pragmática da teoria da verdade do jovem Nietzsche. Cognitio-Estudos:
Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, v. 3, n. 2, p.
134-42, dez. 2006. Disponível em: http://www.pucsp.
br/pos/filosofia/Pragmatismo/cognitio_estudos/cog_
estudos_v3n2/cog_est_v3_n2_mota_t14_134_142.
pdf
15. MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder
em Nietzsche. 2.ed. Trad. O. Giacoia Jr. São Paulo:
Annablume, 1997.
16. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 19671978. 15 v.
17.
. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
18.
. A gaia ciência. Trad. Paulo César Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
19. PUTNAM, H. Realism with a human face. Cambridge:
Harvard University Press, 1990.
20. WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2.ed. Trad.
J. C. Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Col. “Os
Pensadores”).
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
237
Relativismo e circularidade:
a vontade de potência como
interpretação*
André Luís Mota Itaparica**
Resumo: O artigo analisa as objeções de relativismo e circularidade
endereçadas ao conceito de vontade de potência e as respostas oferecidas
a elas por uma série de comentadores. O artigo procura mostrar que a
reformulação desses problemas conduz a uma defesa do relativismo em
Nietzsche e a uma nova compreensão da circularidade presente na vontade
de potência.
Palavras-chave: vontade de potência – interpretação – perspectivismo –
relativismo – circularidade.
1. Introdução
Diversos leitores se debruçaram sobre o conceito de vontade de
potência, com resultados distintos, sobretudo no que diz respeito
ao estatuto que esse conceito assumiria no conjunto da filosofia de
Nietzsche, em associação às noções de interpretação e perspectiva.
Seria a vontade de potência um princípio metafísico, uma ficção
reguladora, uma tese cosmológica, uma tese psicológica ou a chave
*
**
Agradeço aos colegas do GT Nietzsche pelos comentários, quando se sua apresentação
oral, e ao colega Ricardo Andrade pela leitura e comentários ao texto.
Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 239
Itaparica, A. L. M.
para uma filosofia antimetafísica?1 Essa diversidade de explicações
se deve, sobretudo, ao próprio caráter lacunar e exploratório do
conceito – que só encontra um maior desenvolvimento na massa de
fragmentos póstumos da década de oitenta – e à própria ambiguidade com que se reveste a filosofia de Nietzsche. Mesmo assim, há
um denominador comum sobre o que, em linhas gerais, se poderia
entender com esse conceito, independentemente de qual estatuto se
reserve para ele. Nos dias atuais, sobretudo depois da publicação
da edição crítica e dos trabalhos de Müller-Lauter2, há uma linha de
interpretação que, se não é consensual, pode-se dizer hegemônica,
sobre algumas questões centrais a respeito da vontade de potência.
A chamada (a depender do comentador) doutrina, ontologia ou cosmologia da vontade de potência consistiria em uma tese (ou ao menos
uma hipótese) que poderia ser sintetizada da seguinte maneira: o
mundo compreendido como vontade de potência consiste em centros
de forças em relações antagônicas.
A vontade de potência, como força em constante efetuação,
organiza-se em estruturas de duração variável, tendo em vista o
seu acréscimo. Essa formação de domínio envolve delimitação e
demarcação de seu campo de atuação. Cada centro de forças é
inseparável de uma ação sobre seu meio. Cada um deles, estando
relacionado com todos os outros existentes, possui uma posição,
1
2
Essas posições podem ser identificadas – grosso modo – com as seguintes leituras:
HEIDEGGER, M. Nietzsche . Stuttgart: Neske Verlag, 1998; VAIHINGER, H. The
philososphy of ‘as-if’. Trad. C. K. Ogden. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1949;
MARTON, S. Nietzsche – Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo:
Brasiliense, 1990; KAUFMANN, W. Nietzsche – Philosopher, psychologist, antichrist.
Princeton: Princeton UP, 1974; DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Ruth Joffily
e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo
Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997.
240 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
“um ponto de vista”, a partir da qual ele organiza o todo; cada um
deles possui uma perspectiva do mundo. Essa perspectiva, por sua
vez, é inseparável daquilo que Nietzsche chama de interpretação: “A
vontade de potência interpreta: na formação de um órgão, trata-se de
interpretação; ela demarca, determina graus, diferenças de potência
(...). Na verdade, interpretação é um meio de se assenhorear de algo.
(O processo orgânico pressupõe um interpretar)” (KSA 12.139,
Nachlass/FP 2[148]).
Interpretação é para Nietzsche, portanto, toda atividade plasmadora de formas, criadora de sentido a partir de interação entre
forças, estruturadora de si e do seu meio. Cada complexo de vontade de potência não só é definido por sua atividade, como também
por meio dessa atividade define os outros complexos de potência.
Desse modo, cada complexo de potência define e é definido pela
ação de outras vontades de potência. Sem esse caráter relacional,
nem a vontade de potência nem seu perspectivismo poderiam ser
corretamente compreendidos.
Nietzsche geralmente se refere ao perspectivismo como se este
fosse exclusividade do orgânico, como causa do erro, da imprecisão,
da interpretação, que surgiria posteriormente ao desmembramento
do inorgânico no orgânico: “Toda vida orgânica já é uma especialização: o mundo inorgânico que se encontra atrás dela é a grande síntese de forças, e, por isso, é superior e mais venerável. – Falta nele
o erro, a limitação perspectiva (KSA 12.35, Nachlass/FP 1[105]).
Sem dúvida, o perspectivo no orgânico, e mais especificamente no
homem, por meio de impulsos e afetos, será de fundamental importância para compreender a vontade de potência, como pode ser observado no seção 36 de Para além de bem e mal, quando Nietzsche,
a partir de experiência dos impulsos humanos, procura compreender
o mundo mecânico como uma forma primitiva dos afetos. Mas se
o perspectivismo se define pela própria atividade da vontade de
potência – de formação de complexos de potência resultantes da
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
241
Itaparica, A. L. M.
interação de forças –, e se a vontade de potência não está limitada ao
orgânico, então podemos concluir que tem de haver uma expressão
do perspectivismo também no mundo inorgânico. De fato, é com o
conceito de especificidade, extraído da química, que Nietzsche expande o perspectivismo ao mundo inorgânico. A capacidade de uma
substância reagir com apenas determinadas substâncias é uma forma
de interferir no seu meio, e por isso é uma forma de perspectivismo.:
“O perspectivismo é apenas uma forma complexa de especificidade”
(KSA 13.373, Nachlass/FP 14[186]).
A vontade de potência, compreendida enquanto essa força
interpretativa presente no orgânico e no inorgânico é também uma
interpretação, como era a interpretação mecânica do mundo. A vantagem da interpretação de Nietzsche seria a de que se reconheceria
como interpretação. Com isso, ele não resvalaria em um relativismo,
já que assumiria a superioridade de sua interpretação. Superioridade
essa que residiria no reconhecimento de seu caráter perspectivo e
em um critério de verdade: o aumento do sentimento de potência.
Considerando fiel essa síntese da relação entre vontade de potência, perspectivismo e interpretação, duas questões se colocam.
Em primeiro lugar, ela não deixaria de ser relativista, já que professa
a multiplicidade de interpretações e tem um critério de verdade – o
aumento da vontade de potência – maleável o suficiente para que
interpretações conflitantes e incomensuráveis pudessem conviver.
Em segundo lugar, sua argumentação apresentaria uma escandalosa
circularidade: a superioridade de sua interpretação pressupõe a
aceitação de sua noção de interpretação, e seu critério de verdade ou
de superioridade de interpretações pressupõe a aceitação da vontade
de potência. No primeiro caso, os problemas que essa noção tem de
enfrentar são os mesmos encarados por teses relativistas: se toda
teoria é interpretação, a própria posição de Nietzsche não seria apenas mais uma interpretação convivendo com outras interpretações
incompatíveis entre si? E, por isso mesmo, ela não seria autorrefutá-
242 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
vel, pelas mesmas razões pelas quais Platão refutou o relativismo de
Protágoras? No segundo caso, se se defende uma superioridade da
interpretação nietzschiana, coloca-se a questão sobre o critério que
determina essa superioridade: se ela residir no fato de se assumir
como interpretação ou no fato de aumentar o sentimento de potência,
não estaria Nietzsche assim incorrendo em circularidade, em uma
petição de princípio? O objetivo de nossa comunicação é discutir
essas duas objeções à luz das respostas que lhe foram oferecidas
por diversos comentadores. Mais que uma tomada de posição, esta
exposição deve ser entendida como uma breve revisão crítica de
uma parcela da literatura sobre o assunto.
2. Relativismo
O perspectivismo da vontade de potência consiste em conceber o mundo como uma pluralidade de interpretações imanentes;
esta é, por sua vez, também uma interpretação. A primeira questão
que se coloca é se Nietzsche não defenderia aqui um relativismo,
questão cuja resposta varia a partir da concepção que se tem do
relativismo.
Desde o Teeteto, de Platão, a crítica ao relativismo de Protágoras
e sua tese do homem-medida repete-se invariavelmente: se tudo é
verdadeiro para aquele que o experimenta, como podem conviver
duas posições a respeito de um mesmo fato? Ou ainda, como a
própria posição defendida por Protágoras pode ter a pretensão de
universalidade, já que ela pode não ser verdadeira para outros? A
proposição “tudo é relativo” é autorrefutável: ou ela é verdadeira,
não-relativa, e portanto falsa, ou ela é admitidamente falsa, e portanto indefensável. O relativista seria aquele que defenderia que
sobre um mesmo estado de coisa haveria teses contraditórias e
cognitivamente equivalentes.
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Itaparica, A. L. M.
Em relação a Nietzsche, comentadores se colocaram diante
dessa questão, seja para negar um relativismo em Nietzsche ou
para censurar a sua adoção, justamente por pressuporem a noção de relativismo segundo a qual todas as interpretações seriam
equivalentes. Alexander Nehamas3 propõe que a multiplicidade
de estilos de Nietzsche é uma forma de individualizar sua posição,
evitando que o perspectivismo caia em um dogmatismo; essa tese,
frutífera para o estudo estilístico e uma boa defesa do antidogmatismo, não fornece uma argumentação convincente para a questão
do relativismo, pois esse esteticismo que ele defende em Nietzsche
não escapa de permanecer possuindo critérios subjetivos, como
aponta Peter Poellner4. Para este último comentador, a pluralidade
de mundos decorrente de perspectivas subjetivas não seria válida,
pois os interesses e as faculdades cognitivas em sujeitos humanos
não são radicalmente distintos. E mesmo se o fossem, como então a
perspectiva de Nietzsche se imporia e persuadiria diante das outras
perspectivas subjetivas?
Ruediger Grimm5 aproxima-se de uma resposta menos problemática, ao associar Nietzsche a concepções pragmáticas ou coerentistas de verdade. Peca, no entanto, por afirmar que, assumindo uma
dessas noções de verdade, duas proposições poderiam, ao mesmo
tempo e sob as mesmas circunstâncias, ser verdadeiras e falsas, o
que comunga com o sentido de relativismo de que queremos nos
afastar. Todas essas posições, enfim, tocam no ponto central, mas
falham por não compreender que é a própria noção de relativismo
que pode ser mudada. Para isso, é necessário retomar a argumentação de Nietzsche a respeito da verdade, do perspectivismo e da
interpretação.
5
3
4
NEHAMAS, A. Nietzsche – Life as literature. Cambridge: Harvard UP, 1985.
POELLNER, P. Nietzsche and metaphysics. Oxford: Claredon Press, 1995.
GRIMM, R. Nietzsche’s Theory of Knowledge. Berlim: Walter de Gruyter, 1977.
244 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
A questão se coloca quando investigamos o relativismo em
relação à verdade, do qual decorrem o relativismo epistemológico
e moral, ou seja, quando perguntamos se a verdade é relativa ou
absoluta. Em termos nietzschianos, a verdade é uma questão de
interpretação ou ela está além de toda e qualquer interpretação? Se,
por um lado, for independente de toda interpretação, a verdade seria
uma forma de apreensão do real que independeria de qualquer elemento acrescentado pelas faculdades cognitivas e pelos interesses
e afetos humanos. Ela seria, antes, o resultado da subtração desses
elementos, de tal modo que haveria uma correspondência precisa ou
pelo menos aproximada entre nossas representações e as próprias
coisas. Além de toda e qualquer subjetividade, a verdade seria o
conhecimento de uma realidade metafisica independente. Se, por
outro lado, a verdade for dependente de interpretação, sublinha-se
justamente o contrário: o fato de que, limitados que estamos por
nossas faculdades cognitivas e motivados por nossos interesses,
nosso conhecimento está inelutavelmente condenado à finitude, de
tal modo que o próprio conceito de objeto já traz consigo elementos subjetivos, os quais não podemos eliminar, uma vez que não
possuímos um ponto de vista que não o nosso. Nesse caso, o que
é afirmado é justamente o caráter interpretativo do conhecimento
e portanto da verdade. Resultado de uma interpretação, a verdade
não mais se apresentaria como um conceito para além de nossas
faculdades e interesses: ela seria sempre um arranjo ou uma perspectiva determinada.
Nesse segundo caso, cada interpretação não é equivalente,
pois há critérios (pragmáticos e coerentistas, por exemplo) para
determinar qual é mais verdadeira. Elas não são verdadeiras e falsas
ao mesmo tempo, sob as mesmas circunstâncias, pois uma se mostrará melhor que outra, a partir do critério adotado em determinada
circunstância. Mas é um relativismo, se consideramos relativismo
como a afirmação segundo a qual não há um conhecimento do mundo
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Itaparica, A. L. M.
independente dos interesses e valores humanos: todo conhecimento
está inserido em uma tradição. Para Nietzsche, nossa concepção de
conhecimento, intimamente ligada à ciência, também tem de ser
considerada como parte de uma tradição que remonta a Sócrates e
Platão. O relativismo revela-se, portanto, como um remédio contra
o dogmatismo: “Serão novos amigos da ‘verdade’, esses filósofos
vindouros? Muito provavelmente: pois até agora todos os filósofos
amaram suas verdades. Mas com certeza não serão dogmáticos. Ofenderia seu orgulho, e também seu gosto, se sua verdade fosse tida com
verdade para todos: o que sempre foi, até hoje, desejo e sentido oculto
de todas as aspirações dogmáticas” (JGB/BM 43, KSA 5.60).
A defesa do relativismo, mais do que uma posição epistemológica, parece revelar sua força quando contraposta a consequências
éticas do dogmatismo. A pretensão a uma verdade independente de
interesses e valores desconhece diferenças de culturas e práticas,
pode uniformizar o homem e justificar totalitarismos em nome de
valores universais. O relativismo, nesse sentido aqui apresentado,
justifica-se epistemologicamente por apontar para interesses cognitivos que determinariam a concepção de verdade (a precondição
mínima de coerência ou a observação de consequências pragmáticas, por exemplo), compreendendo também a sua dimensão ética.
Se Nietzsche for relativista, então devemos limitar esse sentido
a sua rejeição do dogmatismo e sua compreensão de que não há
dissociação entre conhecimento e interesse, e que uma noção absoluta de verdade pode trazer consequências éticas mais perigosas
(o niilismo), do que uma concepção relativa. Quanto a isso, ele não
estaria distante de defesas contemporâneas do relativismo, como a
realizada por Paul Feyerabend: “O mundo, tal como é descrito por
nossos cientistas e antropólogos consiste de regiões (sociais e físicas)
com leis específicas (...). Alguns desses pontos de vista são mais
detalhados – assim são nossas teorias científicas, – outros são mais
simples, mas gerais – são as diversas ideias filosóficas e do senso
246 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
comum, que influenciam a construção da ‘realidade’. A tentativa de
estabelecer uma verdade universal (um procedimento universal de
determinação da verdade) conduziu a catástrofes no campo do social
e a formalismos vazios, combinados a promessas nunca realizadas
pela ciência”6.
3. Circularidade
Um relativismo em termos nietzschianos é defensável. As
perspectivas são relativas, mas não equivalentes – o dogmatismo
é inferior a esse relativismo, por exemplo – pois há um critério de
superioridade para a interpretação nietzschiana a partir da vontade
de potência. Há, como vimos, pelo menos duas respostas possíveis:
ela se reconhece como interpretação ou ela aumenta o sentimento de
potência. Nos dois casos, enfrentamos problemas de circularidade.
A superioridade da compreensão do próprio caráter perspectivo
pressupõe que o perspectivismo seja verdadeiro; o aumento do sentimento de potência pressupõe que a própria vontade de potência
seja verdadeira.
Nietzsche parece nesses momentos reeditar a concepção contraditória do intelecto que ele encontra em Kant: “Para poder fazer tal
diferenciação [entre a ‘essência das coisas’ e seu fenômeno], ter-se-ia
de se pensar nosso intelecto estando com um caráter contraditório:
primeiro, preparado para o olhar perspectivo, como é necessário para
seres de nossa espécie se poderem manter na existência, de outro
lado, simultaneamente, com uma faculdade de perceber esse olhar
perspectivo como perspectivo, o fenômeno como fenômeno (KSA
6.238, Nachlass/FP 6[14])”.
6
FEYERABEND, P. Irrwege der Vernunft. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1989, p.91.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 247
Itaparica, A. L. M.
Nietzsche afirma que só possuímos um olhar perspectivo, e portanto supor uma coisa em si diferente do fenômeno seria irrelevante
e indemonstrável. Mas a afirmação de que não existe uma coisa em
si atrás também é indemonstrável. Para Nietzsche poder afirmar
isso não seria necessário pressupor que ele estaria em um ponto
exterior a todas as perspectivas, para que pudesse compreender a
própria perspectividade do mundo? Não necessariamente, pois o
reconhecimento desse limite é que permite a Nietzsche considerar
ininteligível a adoção da distinção coisa em si e fenômeno.
Reconhecendo as diferenças de valor cognitivo entre perspectivas, a perspectiva de Nietzsche seria superior por apontar para
esse limite intransponível: “Suposto que também isso seja somente
interpretação – sereis bastante zelosos para fazer essa objeção? –
Ora, tanto melhor!–” (JGB/BM 22, KSA 5.37). Por que tanto melhor?
Podemos entender: tanto melhor porque, sendo tudo interpretação,
o mundo compreendido como vontade de potência é também interpretação, só que mais ampla e refinada, por reconhecer seu próprio
caráter interpretativo. Müller-Lauter, seguindo Jaspers, considera
que Nietzsche compreendeu que todo saber é interpretação, exposição (Auslegung), expondo (auslegen) o próprio caráter da exposição (Auslegung). Se todas as perspectivas são relativas, a própria
interpretação tem de impor sua superioridade, a partir de um critério
de verdade que Nietzsche esboça nos póstumos; o critério de verdade
reside no aumento do sentimento de potência, que seria uma expressão psicológica do aumento da vontade de potência: “O critério da
verdade repousa no aumento do sentimento de potência”7.
7
Esse texto aparece na segunda edição da Vontade de potência com o número 534,
mas inicialmente não constava na edição Colli-Montinari, pois o manuscrito tinha
sido dado por perdido. Posteriormente ele foi encontrado por Montinari e incluído
no aparato crítico do oitavo volume da KGW (Cf. DJURIC, M. Nietzsche und die
Metaphysik. Berlim: Walter de Gruyter, 1985, p. 38).
248 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
Peter Poellner apresenta um problema de autorreferência nesse
argumento: ao insistir que não há concepção que não pressuponha
esse perspectivismo, Nietzsche considera que as diversas perspectivas determinam mundos diferentes, e não perspectivas limitadas
referentes a um mundo ontologicamente independente do sujeito;
contudo, os textos do filósofo alemão se baseiam em afirmações psicológicas e epistemológicas cuja verdade é pressuposta, seus juízos
pretendem referir de modo verdadeiro a uma realidade, e o seu próprio critério de verdade depende da validade de sua interpretação.
Müller-Lauter afirma que não há contradição entre conceber
uma interpretação verdadeira do mundo e assumir um critério
relativo de verdade (aumento de potência): “Se a filosofia nietzschiana da vontade de potência pretende asserir a verdade sobre a
efetividade, então ela não entra em contradição com o critério de
verdade surgido dessa própria filosofia. A partir dele, ela é a única
interpretação do mundo consequente. Movemo-nos em círculo. Tal
circularidade pertence a toda compreensão”8 (Müller-Lauter 8, p.
133). De fato, como já vimos, um conceito de verdade relativo não
implica a equivalência entre teorias. Certamente não há contradição,
mas sim uma circularidade. Essa circularidade não é uma resposta
para uma possível contradição, mas é um problema para a própria
argumentação nietzschiana. Para o critério de verdade (aumento do
sentimento de potência) ser válido é necessário que a própria doutrina da vontade de potência seja válida. O aumento do sentimento de
potência é uma consequência do aumento da vontade de potência;
como esse critério de verdade, que já pressupõe a verdade da vontade de potência, pode ser utilizado para afirmar a superioridade, a
verdade, da vontade de potência em relação a outras interpretações?
Há uma circularidade problemática nessa argumentação.
8
MÜLLER-LAUTER, W. ibid., p.133.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 249
Itaparica, A. L. M.
Retomemos: Müller-Lauter afirma que não há contradição
entre conceber uma interpretação verdadeira do mundo e assumir
um critério relativo de verdade (aumento de potência). Certamente
não há, o que há, em termos lógicos, é um argumento circular; mas
Müller-Lauter rejeita o que seria uma concepção “formal” da circularidade, aproximando-se de uma compreensão hermenêutica; para
ele, trata-se de saber como ingressar nesse círculo, o que significa
compreender o que significa “força” e “potência”, sabendo que a filosofia da vontade de potência é, ela mesma, um querer-potência.
Müller-Lauter rejeita a aplicação de critérios “lógico-formais”
para a filosofia de Nietzsche, já que este não reserva nenhum estatuto
especial e privilegiado para a lógica. Ruediger Grimm, ao contrário,
procurará enfrentar essa circularidade lógica em Nietzsche. Para ele,
o critério nietzschiano do aumento de potência não é considerado
essencialmente verdade; ele é apenas a experiência primordial dos
afetos, a partir da qual podemos considerar algo verdadeiro. Ele é,
portanto, também uma ilusão utilizada por nós para fins práticos. O
mais importante é que ele seria internamente consistente (autoverificável), pois ele depende daqueles que são capazes de realizá-lo (o
que o torna verdadeiro) ou não (o que o torna falso). Quanto à questão
da circularidade lógica da vontade de potência, Ruediger Grimm,
aponta para a questão central: em havendo uma circularidade entre
a ontologia dos quanta de força e a epistemologia do aumento de
potência, ela é analiticamente circular. Por que então a ontologia da
vontade de potência e sua epistemologia não seriam, no conjunto,
apenas um formalismo vazio? Grimm responde de duas maneiras: (1)
Justificando que a verdade lógica também é tautológica, e nem por
isso vazia; (2) Afirmando que objetar a circularidade entre epistemologia nietzschiana e ontologia da vontade de potência é pressupor
que ela teria de corresponder a fatos, o que Nietzsche nega. Para
Grimm, portanto, o mais importante na teoria do conhecimento de
Nietzsche é que ela nega a noção de verdade como correspondência,
250 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
é internamente coerente e permite, pragmaticamente, a adoção de
diversas teorias, compreendendo o real de forma plástica. Podemos,
contudo, fazer duas observações: em primeiro lugar, a verdade lógica
é tautológica justamente porque a lógica é vazia de conteúdo, e por
isso não pode afirmar nada sobre o mundo, que é o que Nietzsche
parece pretender fazer. Em segundo lugar, ao rejeitar a verdade
como correspondência, Nietzsche não almeja criar uma mera ficção
internamente coerente; seu pragmatismo, no que diz respeito ao
aumento do sentimento de potência, possui um conteúdo bastante
explícito: isso pode significar um maior domínio sobre o mundo,
a condução de uma vida com valor e virtudes superiores, que se
reconhece experimentalmente como tal, etc.
Günter Abel apresenta uma compreensão mais defensável da
questão da circularidade, ao atentar para o caráter processual da
vontade de potência: Abel compreende a atividade interpretativa
da vontade de potência como um círculo de interpretação lógicoprocessual (der geschehens-logische Interpretations-Zirkel). Ele
esclarece que lógica aqui está sendo usada no sentido de “lógica
filosófica” (que pesquisa a estrutura original e a criação de sentido
do mundo) e que a circularidade, portanto, não deve ser entendida
nem como circularidade lógica nem como hermenêutica, pois se trata
do próprio processo em que a realidade é construída: “Realidades
são sempre realidades construídas. Trata-se de produção, e não de
reprodução ou espelhamento”9.
Visto dessa forma, o mundo da vontade de potência é um
mundo de processos. Esses processos são interpretados como uma
multiplicidade de forças em combate por mais potência, mas não
no sentido de um fim ou um objetivo, já que sua natureza consiste
9
ABEL, G. Nietzsche – Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr.
Berlim: Walter de Gruyter, 1998, 173.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
251
Itaparica, A. L. M.
justamente no seu próprio efetuar-se. As vontades de potência
impõem uma interpretação, selecionam e organizam o seu redor
com seu perspectivismo. Mais que isso, o mundo não só consiste
em processos como é constituído por processos. Nesses termos,
vemos que, se há circularidade na vontade de potência, ela não
seria tautológica, já que os processos são singulares e efetivos, e
não abstrações. Assim, diferentemente do que ocorre com a ideia da
interpretação da interpretação, ou da concepção da perspectiva que
já é uma perspectiva, sobre um processo que pressupõe processos
não pairaria nenhuma sombra de tautologia, pois eles são sempre
distintos. É nesse sentido que podemos compreender o mundo como
uma interpretação que produz interpretações, como um conjunto
de perspectivas que se constitui a si mesmo e como um processo
produzido por processos. É como processo que podemos entender
a interpretação ontologicamente.
Enfim, a compreensão da filosofia de Nietzsche como uma espécie de filosofia do processo encontra um elemento exterior – a
noção de evento – que procura evitar que Nietzsche entre em uma
circularidade analítica ou tenha que se submeter a uma circularidade hermenêutica, quando sua teoria da vontade de potência
pretende não apenas ser uma interpretação do mundo, mas uma
interpretação do mundo a partir de sua própria constituição processual. A vontade de potência, entendida como processo, introduz
o perspectivo no mundo, sustentado assim uma circularidade que
não é vazia de conteúdo. Passamos a entender a vontade de potência
como um nome que procura explicitar determinados processos, dos
quais somos parte e somos afetivamente atingidos e efetivamente
atuantes. A vontade de potência, nesse sentido, é um nome para o
processo: “Não se deve perguntar: ‘quem interpreta’ então? Mas o
próprio interpretar, como uma forma de vontade de potência, tem
existência (mas não como um ser, e sim como um processo, um vira-ser), como um afeto” (KSA 12.140, Nachlass, FP 2[151]).
252 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
4. Conclusão
Procuramos analisar as objeções de relativismo e circularidade
endereçadas ao conceito de vontade de potência e as respostas oferecidas a elas por uma série de comentadores. Através de uma leitura
crítica desses comentários, identificamos a possibilidade de defesa
de uma forma mitigada de relativismo; do mesmo modo, divisou-se
a necessidade de compreender a circularidade presente no critério
de superioridade de interpretações como uma circularidade que
não é lógica nem hermenêutica, mas processual. A reformulação
desses problemas, assim, conduz a uma defesa do relativismo em
Nietzsche e a uma nova compreensão da circularidade presente na
vontade de potência.
Nosso objetivo aqui foi mostrar como a fortuna crítica de Nietzsche procurou resolver os problemas do relativismo e da circularidade, sobre as bases de uma leitura hoje hegemônica do conceito
de vontade de potência. Consideramos que esses problemas não se
dissolvem completamente com as soluções encontradas. De qualquer
modo, essas tentativas fornecem maior robustez e inteligibilidade aos
temas da vontade de potência, perspectivismo e interpretação.
Abstract: The paper analyzes the objections of relativism and circularity
addressed to the concept of will to power as well as the answers given by the
commentators to them. The paper intends to show that the reformulation of
these notions leads to a defense of relativism and a new comprehension of
the circularity that is connected with the concept of will to power.
Keywords: will to power – interpretation – perspectivism – relativism –
circularity.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
253
Itaparica, A. L. M.
referências bibliográficas
1. ABEL, G. Nietzsche – Die Dynamik der Willen zur Macht
und die ewige Wiederkehr. Berlim: Walter de Gruyter,
1998.
2. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Ruth Joffily
e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora
Rio, 1976.
3. DJURIC, M. Nietzsche und die Metaphysik. Berlim:
Walter de Gruyter, 1985.
4. FEYERABEND, P. Irrwege der Vernunft. Frankfurt a.M.:
Suhrkamp, 1989.
5. GRIMM, R. Nietzsche’s Theory of Knowledge. Berlim:
Walter de Gruyter, 1977.
6. HEIDEGGER, M. Nietzsche. Stuttgart: Neske Verlag,
1998.
7. KAUFMANN, W. Nietzsche – Philosopher, psychologist,
antichrist. Princeton: Princeton UP, 1974.
8. MARTON, S. Nietzsche – Das forças cósmicas aos valores
humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990.
9. MÜLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. São
Paulo: Annablume, 1997.
10. NEHAMAS, A. Nietzsche – Life as literature. Cambridge:
Harvard UP, 1985.
11. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 19671978. 15 v.
254 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Relativismo e circularidade: a vontade de potência como interpretação
12.
. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues
Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Col.
“Os Pensadores”).
13.
. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
14. POELLNER, P. Nietzsche and metaphysics. Oxford:
Claredon Press, 1995.
15. VAIHINGER, H. The philososphy of ‘as-if’. Trad. C. K.
Ogden. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1949.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
255
Instruções para os autores
Informações gerais
1. Os artigos enviados para publicação devem ser inéditos em língua
portuguesa. As idéias, posições e interpretações neles apresentadas
são exclusivamente de responsabilidade dos autores.
2. Os artigos devem ser enviados por via eletrônica em formato PDF
(caixa abaixo).
3. Os artigos devem conter no máximo 55.000 caracteres (incluindo espaços), sendo digitados em fonte Times New Roman, com parágrafos
justificados e espaçamento 1,5. Para o corpo do texto, deve-se utilizar
tamanho 12.
4. Citações de até 5 linhas entram no corpo do texto. Para citações em
destaque, deve-se utilizar tamanho 10 e recuo de 1,5cm à esquerda
e 0,5cm à direita; para notas de rodapé, tamanho 10 e números arábicos.
5. Os termos de alfabeto não-latinos devem ser transliterados. Todos os
termos ou expressões em destaque deverão estar em itálico e não em
negrito.
6. Não serão aceitos trabalhos com figuras, gravuras, ilustrações ou
desenhos em geral.
7. Os trabalhos devem ser precedidos de resumo (no máximo, de cem
palavras), seguido de palavras-chaves (no máximo, seis). A versão em
inglês do resumo (abstract) e das palavras-chaves (keywords) deve vir
na sequência.
8. Os originais devem ser acompanhados do nome completo do autor, instituição a que pertence (por extenso e sigla) e endereço eletrônico.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
257
Instruções para os autores
9. Os Cadernos Nietzsche detêm os direitos autorais dos textos que publicam. Os autores têm, no entanto, sem a necessidade de autorização
expressa, permissão para republicar seus textos desde que sejam
mencionados os dados da publicação nos Cadernos Nietzsche.
10. Todos os trabalhos encaminhados serão submetidos à arbitragem cega
(blind referee) de dois pareceristas, podendo ser reenviados para o autor com sugestões de mudanças. Contribuições recusadas não poderão
ser reapresentadas.
Preparação de manuscritos
1. As referências bibliográficas devem ser incluídas no final do artigo,
limitando-se aos títulos das obras nele citadas. Devem obedecer à
ordem alfabética pelo sobrenome do autor (no caso do mesmo autor,
as obras devem ser elencadas da mais antiga para a mais recente).
Exemplos:
Livros:
MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze
und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova York: Walter de
Gruyter, 1971.
Capítulos de livros:
BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O avesso
da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57.
Artigos:
MÜLLER-LAUTER, W. Décadence artística enquanto décadence
fisiológica. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo,
n.6, p.11-30, 1999.
MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la philosophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris,
t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006.
258 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Instruções para os autores
2. As referências às obras de Nietzsche deverão ser feitas no corpo do
texto, como segue: Obra ou Fragmento Póstumo; seção; número do
aforismo, do parágrafo ou do fragmento; número do volume da KSA
ou KSB ou KGW ou KGB e (depois do ponto) número da página (no
tocante às edições e às siglas, ver, abaixo, a “Convenção para a citação
das obras de Nietzsche”).
As referências às obras de outros autores devem constar em nota de
rodapé.
Exemplos:
ZA/ZA I, Da mordida da víbora, KSA 4.88
Nachlass/FP 1881, 11[143], KSA 9.496
EH/EH, Assim falava Zaratustra 6, KSA 6.343 s./f.
EH/EH, Por que sou tão esperto 10, KSA 6.297
GD/CI, Moral como contra-natureza 6, KSA 6.87
GM/GM I, 13, KSA 5.278
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 259
Convenção para a citação
das obras de Nietzsche
Os Cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição
Colli/ Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português
acompanham, porém, as siglas em alemão, no intuito de facilitar o trabalho
de leitores pouco familiarizados com os textos originais.
I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:
I. 1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:
GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)
DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:
Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:
David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen
und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas
II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)
SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer
como educador)
WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard
Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner
em Bayreuth)
MA I/HH I – Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado
humano (vol. 1))
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
261
Convenção para a citação das obras de Nietzsche
MA II/HH II – Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2))
VM/OS – Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças)
WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein
Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua
sombra)
M/A – Morgenröte (Aurora)
IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência)
Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)
WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner
I. 2. Textos preparados por Nietzsche para edição:
AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)
EH/EH – Ecce homo
DD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)
II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:
GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)
ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia)
DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)
GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico)
262 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Convenção para a citação das obras de Nietzsche
BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de
nossos estabelecimentos de ensino)
CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios
a cinco livros não escritos)
PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia
na época trágica dos gregos)
WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre
verdade e mentira no sentido extramoral)
III. Sigla dos fragmentos póstumos:
Nachlass/FP
IV. Edições:
KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe
KGW = Werke: Kritische Gesamtausgabe
KSA = Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe
KSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe
V. Formas de citação
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará
a seção; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico remeterá à parte do livro; no caso de ZA/ZA, o algarismo romano remeterá
à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/CI
e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,
indicará a seção.
Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,
conforme o caso, indicará a parte do texto.
Para os fragmentos póstumos, os algarismos arábicos, que se seguem
ao ano, indicarão o fragmento póstumo.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 263
Notes for contributors
General Information
1. Only articles unpublished in Portuguese will be accepted. The authors
are the only responsible for the ideas, positions and interpretations
expressed in the articles.
2. The articles should be sent by e-mail, in a file attached in PDF format
(Box below).
3. Articles should not exceed 55.000 characters (including spaces) and
be typed in Times New Roman, letter size 12, with aligned paragraphs
and spacing 1,5.
4. Quotations up to 5 lines may appear incorporated in text. For longer
quotations letter size 10 should be used.
5. Terms from non-latin alphabets must be transliterated. All terms or
expressions in prominence should appear in italics, not in bold.
6. Contributions with figures, carvings, illustrations and drawings will
not be accepted.
7. Contributors should enclose an abstract (not exceeding 100 words)
and key-words (not exceeding 6 words), both in the original language
and in English.
8. The original articles must present the author´s full name, institution
s/he belongs to (in full and in abbreviations) and e-mail.
9. Cadernos Nietzsche retains the copyrights of its published texts. However, authors have permission to republish their own texts with no need
of an explicit authorization, since they mention Cadernos Nietzsche
publication data.
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 265
Notes for contributors
10. Cadernos Nietzsche uses a double-blind review process. Contributions
not accepted for publication should not be submitted a second time.
Manuscript Preparation
1. Bibliographical references should come at the end of the article and
should include only titles wich had been quoted. The titles should be
enumerated following the authors last names ordered alphabetically.
If two or more works written by the same author had been quoted,
these titles should ordered from the least to the most recent work).
Examples:
Books:
MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze
und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova York: Walter de
Gruyter, 1971.
Books chapters:
BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O avesso
da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57.
Articles:
MÜLLER-LAUTER, W. Décadence artística enquanto décadence
fisiológica. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo,
n.6, p.11-30, 1999.
MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la philosophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris,
t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006.
266 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Notes for contributors
2. References to Nietzsche’s works should be done as follows: Work or
Posthumous Fragment; section; number of the aphorism, paragraph
or fragment; number or volume of KSA’s or KSB’s or KGW’s or KGB’s
volume; and (after the dot) page number. With respect to issues
and acronyms, see below the Convention for citations of Nietzsche’s
Works.
References to other authors’ works should appear in footnotes.
Examples:
ZA/ZA I, Of the Adder’s Bite, KSA 4.88
Nachlass/PF 1881, 11[143], KSA 9.496
EH/EH, Thus spoke Zarathustra 6, KSA 6.343 s./f.
EH/EH, Why I am So Wise 10, KSA 6.297
GD/CI, Morality as Anti-Nature 6, KSA 6.87
GM/GM I, 13, KSA 5.278
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 267
Convention for citations
of Nietzsche’s Works
Cadernos Nietzsche follows the convention adopted by Colli/Montinari
edition of Nietzsche’s Complete Works. The acronym in Portuguese should
follow the acronym in German.
I. Acronyms of texts published by Nietzsche:
I. 1. Texts edited by Nietzsche himself:
GT/NT – Die Geburt der Tragödie
DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:
Der Bekenner und der Schriftsteller
HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen
und Nachteil der Historie für das Leben
SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher
WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard
Wagner in Bayreuth
MA I/HH I – Menschliches allzumenschliches (volume 1)
MA II/HH II – Menschliches allzumenschliches (volume 2)
VM/OS – Menschliches allzumenschliches (volume 2): Vermischte Meinungen
WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (volume 2): Der Wanderer und
sein Schatten
cadernos Nietzsche 27, 2010 | 269
Convention for citations of Nietzsche’s works
M/A – Morgenröte
IM/IM – Idyllen aus Messina
FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft
Za/ZA – Also sprach Zarathustra
JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse
GM/GM – Zur Genealogie der Moral
WA/CW – Der Fall Wagner
GD/CI – Götzen-Dämmerung
NW/NW – Nietzsche contra Wagner
I. 2. Texts prepared by Nietzsche for edition:
AC/AC – Der Antichrist
EH/EH – Ecce homo
DD/DD – Dionysos-Dithyramben
II. Acronyms of unfinished writings:
GMD/DM – Das griechische Musikdrama
ST/ST – Socrates und die Tragödie
DW/VD – Die dionysische Weltanschauung
GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens
BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten
CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern
PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen
WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn
270 | cadernos Nietzsche 27, 2010
Convention for citations of Nietzsche’s works
III. Abbreviations and acronyms of posthumous fragments:
Nachlass/FP
IV. Editions:
KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe
KGW = Werke: Kritische Gesamtausgabe
KSA = Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe
KSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe
V. Forms of citation
For texts published by Nietzsche, Arabic numeral will indicate the
section; in the case of GM/GM, the Roman numeral right before the Arabic one indicates the part of the book; in the case of ZA/ZA, the Roman
numeral indicate the part of the book and will be followed by the discourse
title; in the case of GD/CI and EH/EH, the Arabic numeral, which follows
the chapter, indicate the section.
For the unfinished writings, the Arabic numeral or the Roman one
indicates the part of the text. For the posthumous fragments, the Arabic
numeral, which follows the year, indicates the posthumous fragment.
cadernos Nietzsche 27, 2010 |
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