Equipe 172 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

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Equipe 172 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Equipe 172
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor
vs.
Elizabetia
MEMORIAL DOS REPRESENTANTES DAS VÍTIMAS
2013
Equipe 172
ÍNDICE
LISTA DE ABREVIATURAS ...................................................................................................... iv
ÍNDICE DE JUSTIFICATIVAS ................................................................................................... v
I. DECLARAÇÃO DOS FATOS ................................................................................................... 1
1. Estado de Elizabetia................................................................................................................. 1
2. Serafina Conejo Gallo ............................................................................................................. 1
3. Aspectos jurídicos da identidade de gênero ............................................................................. 2
4. Adriana Timor .......................................................................................................................... 3
5. Questão contenciosa ................................................................................................................ 4
II. ANÁLISE LEGAL .................................................................................................................... 5
A. QUESTÕES PRELIMINARES ........................................................................................... 5
1. Da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ........................................ 6
2. Da aplicação de outras fontes de Direito Internacional ...................................................... 6
3. Da legitimidade das partes .................................................................................................. 6
4. Da tempestividade............................................................................................................... 6
5. Da não litispendência internacional .................................................................................... 6
6. Da inocorrência da fórmula da 4ª instância ........................................................................ 7
7. Do esgotamento dos recursos internos ................................................................................ 7
8. Da possibilidade de aplicação do princípio iuria novit curia pela Comissão e pela Corte
Interamericanas de Direitos Humanos ........................................................................................... 13
9. Do cabimento de medidas provisórias .............................................................................. 13
B. QUESTÕES DE MÉRITO ................................................................................................. 13
ii
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1. Considerações iniciais ....................................................................................................... 13
2. Da violação dos direitos de proteção à família, da honra e da dignidade ......................... 16
3. Da violação do direito de igualdade perante a lei e do princípio da não-discriminação .. 20
4. Da violação do direito à garantia e à proteção judicial ..................................................... 22
5. Da responsabilidade internacional do Estado ................................................................... 24
5.1. Da violação do dever de respeitar os direitos............................................................ 25
5.2. Da violação do dever de adotar disposições de direito interno ................................. 27
III. SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA ................................................................................... 29
1. Da reparação e das custas ...................................................................................................... 29
2. Do pedido .............................................................................................................................. 29
iii
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LISTA DE ABREVIATURAS
Art. / Arts.
Artigo / Artigos
CIDH, Comissão
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CADH, Convenção
Convenção Americana de Direitos Humanos
Constituição
Constituição Política de Elizabetia
Corte EDH
Corte Europeia de Direitos Humanos
Corte IDH, Corte
Corte Interamericana de Direitos Humanos
Ed.
Edição
Governo, Estado, Elizabetia, País
República de Elizabetia
LGBTI
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais
Mariposa
Movimento Mariposa
Nº
Número
OC
Opinião Consultiva
OEA
Organização dos Estados Americanos
ONU
Organização das Nações Unidas
Pag., p. / Págs., pp.
Página / Páginas
Par., § / Pars., §§
Parágrafo / Parágrafos
Vol.
Volume
Vs.
Versus
iv
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ÍNDICE DE JUSTIFICATIVAS
Documentos Legais
Convenção Americana de Direitos Humanos.
Convenção de Viena.
Princípios de Yogyakarta sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em
relação à orientação sexual e identidade de gênero.
Declaração Universal de Direitos Humanos.
Doutrinas
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O esgotamento de recursos internos no direito
internacional. 2ª ed. atualizada. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997 ............... 7 ,11
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos
humanos. Porto Alegre: Ed. Sergio Fabris, 1997....................................................................... 25
DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 4ª edição. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2009. ........................................................................................ 17
LEDESMA, Héctor Faúndez. El sistema interamericanode protección de lós derechos humanos:
Aspectos institucionales y procesales. 2ª Edição. IIDH: São José, 1999 .............................. 8, 12
PASQUALUCCI, Jo M. The Inter-american Human Rights System: Establishing Precedents and
Procedure in Human Rights Law 26U. Miami Inter-American Law Review, 297, 1995 ......... 10
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Tendências modernas do direito de família. Editora RT, v. 628..... 17
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Editora Saraiva,
2006. ................................................................................................................................ 24,25,26
v
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RAMOS, André de Carvalho.Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2ª
Edição. São Paulo: Saraiva, 2012 .............................................................................................. 22
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. 1ª edição. Porto Alegre: Editora Revista dos
Tribunais, 2001 .......................................................................................................................... 16
STEINER, Henry J. International human rights in context: law, politics, morals. Oxford
University Press. 2000 ................................................................................................................. 9
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade: da possibilidade jurídica do
casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 1ª edição. São Paulo:
Editora Método, 2008 ................................................................................................................ 17
Jurisprudência
Casos contenciosos
Corte IDH. Caso “Niños de La Calle”(Vilagran Morales e outros) vs. Guatemala. Fundo.
Sentença de 19 de novembro de 1999 .................................................................................. 10,19
Corte IDH. Caso Acosta Calderón vs. Ecuador.Fundo, reparações e custas. Sentença de 24 de
junho de 2005 ............................................................................................................................ 10
Corte IDH. Caso Atala Riffo y Ninas vs. Chile. Fondo, Reparaciones e Costas. Sentença de 24 de
fevereiro de 2012 ....................................................................................................................... 22
Corte IDH. Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala. Fundo. Sentença de 25 de novembro de 2000
............................................................................................................................................. 10,23
Corte IDH. Caso Bulacio vs. Argentina. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 18 de
Septiembre de 2003. Serie C, nº 100 ......................................................................................... 29
Corte IDH. Caso Caballero Delgado y Santana vs. Colombia. Exceções preliminares. Sentença
de 21 de janeiro de 1994 ............................................................................................................ 25
vi
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Corte IDH. Caso Cantoral Benavides vs. Perú. Exceções Preliminares. Sentença de 3 de
setembro de 1998, Série C, nº 40. ................................................................................................ 8
Corte IDH. Caso Castañeda Gutman vs. México. Sentença de 06 de agosto de 2008 ................... 10
Corte IDH. Caso Carpio Nicolle e outros vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 22 de Noviembre de 2004. Serie C, nº 117 .......................................................... 30
Corte IDH. Caso Castillo Páez vs. Perú. Sentença de 30 de janeiro de 1996. Exceções
Preliminares ................................................................................................................................. 7
Corte IDH. Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Perú. Exceções Preliminares. Sentença de 4 de
setembro de 1998. Série C, nº 41 ............................................................................................... 12
Corte IDH. Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Perú. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 30
de maio de 1999 ......................................................................................................................... 27
Corte IDH. Caso Cayara. Exceções Preliminares. Sentença de 24 de março de 1995 .................. 13
Corte IDH. Caso Claude Reyes e outros vs. Chile. Sentença de 19 de setembro de 2006. Série C,
no 151. ................................................................................................................................... 23,30
Corte IDH. Caso Escher e outros vs. Brasil. Sentença de 06 de julho de 2009 ............................. 10
Corte IDH. Caso Fairén Garbi y Solís Corrales vs. Honduras. Fundo. Sentença de 15 de março
de 1989. Série C, nº 6 ........................................................................................................ 9,10,11
Corte IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Exceções Preliminares, Fundo, Custas e
Reparações. Sentença de 30 de agosto 2010 ............................................................................... 6
Corte IDH. Caso Gangaram Panday vs. Suriname. Exceções Preliminares. Sentença de 04 de
dezembro de 1991 ...................................................................................................................... 12
Corte IDH. Caso Garibaldi vs. Brasil. Exceções preliminares, fundo, reparações e custas.
Sentença de 23 de setembro de 2009. Série C, nº 203 ............................................................... 23
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Corte IDH. Caso Garrido e Baigorria vs. Argentina. Reparações e Custas. Sentença de 27 de
agosto de 1998 ........................................................................................................................... 27
Corte IDH. Caso Genie Lacayo vs. Nicarágua. Exceções preliminares. Sentença de 27 de janeiro
de 1995. Série C, nº 21 .............................................................................................................. 28
Corte IDH. Caso Godínez Cruz vs. Honduras. Fundo. Sentença de 20 de janeiro de 1989 .......... 26
Corte IDH. Caso González y outros vs. México (Campo Algodonero). Exceções Preliminares,
Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 16 de novembro de 2009 .......................................... 6
Corte IDH, Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México. Resolução de 19 de
janeiro de 2009 .......................................................................................................................... 13
Corte IDH. Caso Gutiérrez Soler vs. Colômbia. Sentença de 12 de setembro de 2005. Série C. nº
132 ........................................................................................................................................ 19,25
Corte IDH. Caso Hilaire, Constantine y Benjamin y otros vs. Trinidad y Tobago. Fundo,
Reparações e Custas. Sentença de 21 de junho de 2002 ........................................................... 10
Corte IDH. Caso “Instituto de reeducación del menor” vs. Paraguay. Exceções preliminares,
fundo reparações e custas. Sentença de 02 de setembro de 2004. Série C, nº112 ..................... 23
Corte IDH. Caso Juan Humberto Sánchez vs. Honduras. Exceções preliminares, fundo,
reparações e custas. Sentença de 7 de junho de 2003 ................................................................ 10
Corte IDH. Caso Loayza Tamayo vs. Peru. Exceções Preliminares. Sentença de 31 de janeiro de
1996. Série C, nº 25 ................................................................................................................ 5,19
Corte IDH. Caso López Álvarez vs. Honduras. Fundo, reparações e custas. Sentença de 01 de
fevereiro de 2006. Série C, no 141 ............................................................................................. 30
Corte IDH. Caso López Mendoza vs. Venezuela. Sentença de 01 de setembro de 2011. Fundos,
reparações e custas. Série C, nº 233 .......................................................................................... 23
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Corte IDH. Caso Masacre de las Dos Erres vs. Guatemala. Sentença de 24 de novembro de 2009
................................................................................................................................................... 10
Corte IDH. Caso “Masacre de Mapiripán” vs. Colombia. Sentença de 15 de Setembro de 2005
................................................................................................................................................... 13
Corte IDH. Caso Moiwana Village vs. Surinam. Exceções Preliminares, Fundo, Reparações e
Custas. Sentença de 15 de junho de 2005 .................................................................................. 19
Corte IDH. Caso Neira Alegria e Outros vs. Perú. Reparações e Custas. Sentença de 19 de
janeiro de 1995 .......................................................................................................................... 26
Corte IDH. Caso Palamara Iribarne vs. Chile. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 22 de
novembro de 2005. Série C, no 135 ...................................................................................... 29,30
Corte IDH. Caso Radilla Pacheco vs. México. Exceções Preliminares, Fundo, Reparações e
Custas. Sentença de 23 de novembro de 2009. Série C, nº 209 ................................................ 23
Corte IDH. Caso Ricardo Canese vs. Paraguai. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 31 de
agosto de 2004. Série C, no111 .................................................................................................. 29
Corte IDH. Caso Rosendo Cantú e outros vs. México. Exceções Preliminares, Fundo, Reparações
e Custas. Sentença de 31 de agosto 2010. Série C, nº 216 .......................................................... 6
Corte IDH. Caso Tribunal Constitucional vs. Peru. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 24
de setembro de 1999. Série C, nº 55 ....................................................................................... 5,23
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de Julho de 1988.
Série C, nº 4 ............................................................................................................. 9,10,11,25,26
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de
junho de 1987. Serie C, nº 1 ......................................................................................... 9,10,12,23
Caso Paniagua Morales y otros. Exceções Preliminares. Sentença de 25 de janeiro de 1996. Série
C, nº 23 ...................................................................................................................................... 13
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Corte EDH. Caso Dewer. Sentença de 27 de dezembro de 1980 ..................................................... 7
Corte EDH. Caso Guzzardi. Sentença de 06 de novembro de 1980. ............................................... 7
Corte EDH. Caso Akdivar vs. Turkey. Sentença de 16 de setembro de 1996 ................................... 7
Documentos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CIDH. Relátorio de Admissibilidade e Mérito. nº 35/08. 18 de julho de 2008 ........................... 7,13
CIDH. Relatório Anual de 1996. Relatório nº 11/96. Caso 11.230. Chile. 03 de maio de 1996 .... 18
CIDH. Comunicado à imprensa número 89/12 de 16 de julho de 2012 ........................................ 15
CIDH. Comunicado à imprensa número 79/12 de 6 de julho de 2012 .......................................... 15
CIDH. Relatório de Admissibilidade nº 71/12. Petição P-1073-05 de 17 de julho de 2012 ........ 8, 9
CIDH. Relatório de Admissibilidade nº 62/09. Petição 1173-05 de 04 de agosto de 2009 ........... 10
CIDH. Relatório de Admissibilidade nº 128/10. Petição P-265-05 de 23 de outubro de 2010 ...... 13
CIDH. Plano de Ação nº 4.6.i. (2011 – 2012) ................................................................................ 15
CIDH. Demanda perante a Corte IDH. Caso Karen Atala Hiffo e hijas vs. Chile. Caso 12.502. 17
de setembro de 2010 .................................................................................................................. 18
CIDH. Informe nº 04/01. Caso 11.625. María Eugênia Morales de Sierra vs. Guatemala. 19 de
janeiro de 2001. OEA/Ser.L/V/II.95. ......................................................................................... 21
CIDH. Relatório de Admissibilidade nº 138/10. Petição 12.363.. Juan José Meza vs. Ecuador. 1º
de novembro 2010, par. 28 e 29................................................................................................... 5
CIDH. Relatório nº 39/96, Caso 11.673, Santiago Marzioni vs. Argentina, 15 de outubro de 1996
..................................................................................................................................................... 7
CIDH. Informe Anual nº 8/98, Caso 11.671, Carlos García Saccone vs. Argentina, 02 de março de
1998 ............................................................................................................................................. 7
CIDH. Informe nº 10/96. Caso 10.636. Guatemala. 5 de março de 1996 ........................................ 8
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Artigos
RIOS, Roger Raupp. Direitos Sexuais de Gays, Lésbicas e Transgêneros no Contexto Latino
Americano .................................................................................................................................. 14
BORTOLUZZI, Roger Guardiola. A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual ....... 19
Opiniões Consultivas
OC-4/84 de 19 de janeiro 1984. Série A, nº 4. ............................................................................... 19
OC-6/86 de 9 de maio de 1986. Série A, nº 6 ................................................................................ 26
OC-9/87 de 06 de outubro de 1987. Série A, nº 9 .................................................................... 10, 23
OC-11/90 de 10 de agosto de 1990. Série A, nº 11 .................................................................... 9, 11
OC-14/94 de 9 de dezembro de 1994. Série A, nº 14 ..................................................................... 28
OC-16/99 de 01 de outubro de 1999. Série A, nº 16 ............................................................ 6, 14, 26
OC-18/03 de 17 de setembro de 2003 Série A nº 18 ...................................................................... 21
Miscelânea
OEA/Ser.G/CP/CAJP/INF. nº166/12. Orientación Sexual, Identidad de Género y Expresión de
Género: Algunos Términos y Estándares relevantes. 23 de abril de 2012 .................. 1, 3 ,15, 18
OEA/Ser.L/V/II.106. Consideraciones sobre la compatibilidad de las medidas de acción
afirmativa concebidas para promover la participación política de la mujer con lós principios
de igualdad y no discriminación ............................................................................................... 21
Supremo Tribunal Federal Brasileiro. Ação direta de Inconstitucionalidade nº 4377. Amicus
Curiae Conectas Direitos Humanos ..................................................................................... 15, 1, 19
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Senhor Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
O Movimento Mariposa (doravante Mariposa), entidade não governamental legalmente
reconhecida, representante das vítimas no caso “Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs.
Elizabetia” vem, tempestivamente, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(doravante Corte IDH ou Corte), apresentar suas razões de fato e de direito para que se proceda a
responsabilização da República de Elizabetia (doravante Elizabetia, Estado, governo ou país)
pelas violações dos direitos humanos contidos nos artigos 8.1 (garantias judiciais), 11 (proteção
da honra e da dignidade), 17 (proteção da família), 24 (igualdade perante a lei) e 25 (proteção
judicial), todos relativos à obrigação contida nos artigos 1.1 (obrigação de respeitar os direitos) e
2 (dever de adotar disposições de direito interno) da Convenção Americana de Direitos Humanos
(doravante CADH ou Convenção), em detrimento de Serafina Conejo Gallo (doravante Serafina)
e Adriana Timor (doravante Adriana).
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I. DECLARAÇÃO DOS FATOS
1. Estado de Elizabetia
A República de Elizabetia é um país do continente americano de aproximadamente 100.000
km² e população estimada em 12 milhões de habitantes. Apesar de adotar o regime democrático
representativo de governo, seu Poder Executivo sofre invariáveis alternâncias políticas entre os
partidos Rosado e Celeste, de direita e esquerda respectivamente, por períodos inexatos de cinco
anos.
Berço do povo indígena Granti, o território elisabetano divide-se em sete províncias e três
grandes regiões: noroeste, central – onde se localiza a capital São Benito – e sudeste. Esta última,
local de maior concentração indígena, conta com os mais baixos índices de desenvolvimento
social do país. Durante séculos a região sudeste foi alvo de medidas de erradicação e
exterminação sistemática da cultura granti, considerada bárbara e imoral. É possível identificar
referências de transição entre gêneros em suas tradições e costumes, a exemplo do culto da
divindade Granti’ltna que ao nascer como homem e morrer como mulher, simbolizava a
perfeição.
2. Serafina Conejo Gallo
Serafina Conejo Gallo, transexual 1 nascida em 28 de novembro de 1963 sob o prenome de
Serafim na província de Santa Marta – região sudeste, cresceu na fazenda da família Goblana do
Atelo onde seus pais trabalhavam. Frequentou a escola na propriedade da mesma família e,
durante o período escolar, por diversas vezes foi repreendida e humilhada por sua professora que
não tolerava seu comportamento feminino, o qual considerava um traço indígena e pervertido.
1
Transexuais são aquelas pessoas que se sentem e se concebem como pertencentes ao sexo oposto daquele que é
socialmente e culturalmente atribuído ao seu sexo biológico, podendo realizar intervenções médicas hormonais,
cirúrgicas, ou ambas, para adaptar a sua aparência física à sua realidade biológica, psicológica, espiritual e social.
OEA/Ser.G/CP/CAJP/INF. 166/12. Orientación Sexual, Identidad de Género y Expresión de Género: Algunos
Términos y Estándares relevantes. 23 de abril de 2012, p. 5. (Tradução livre).
1
Equipe 172
Aos onze anos de idade, após a realização de um procedimento sumário, Serafina foi retirada
do seio familiar por funcionários da Tutela Estatal da Infância e internada em um centro para
menores abandonados na cidade de Virgínia. Lá permaneceu por cinco anos, durante os quais foi
privada de sua liberdade e violentada por seus custódias e companheiros de internação.
Em 1985, depois de passar por intervenções cirúrgicas para implante de próteses mamárias e
arredondamento das formas de seu corpo e rosto, Serafina adotou definitivamente a identidade
feminina e passou a lutar para tê-la aceita socialmente. Assim, em 1990 fundou o Movimento
Mariposa visando o ativismo, a educação e a formação na comunidade transexual de São Benito,
movimento que alcançou abrangência nacional ao longo dos anos.
Militante em prol dos direitos LGBTI, através do Movimento Mariposa Serafina completou os
estudos secundários e atuou como administradora de diversos projetos financiados com recursos
da cooperação internacional, decidindo obter o reconhecimento de sua identidade de gênero. Para
tanto, entre os anos de 1993 e 1999, apresentou diversos pedidos administrativos pleiteando a
mudança de seu nome e a retificação registral de seu sexo perante o Registro Civil e, depois de
negados, interpôs sete recursos de amparo perante a Câmara Constitucional da Corte Suprema de
Elizabetia, todos julgados improcedentes.
3. Aspectos jurídicos da identidade de gênero
Em 10 de fevereiro de 2000, face ao reiterado insucesso de seus pleitos administrativos,
Serafina Conejo Gallo ingressou com a petição individual P-300-00 perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, buscando o reconhecimento de sua identidade de gênero.
Na oportunidade, o governo elisabetano opôs-se ao mérito com base em seu “sólido sistema de
valores”.
Em 2005, quando da emissão do relatório sobre o mérito, a CIDH declarou a violação de
diversos artigos da Convenção Americana pelo Estado de Elizabetia e recomendou a adoção de
2
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medidas de reparação e não repetição. Tais recomendações culminaram na apresentação de um
Projeto de Lei de Identidade de Gênero que entrou em vigor no país em 2007. No dia 13 de
janeiro do mesmo ano, Serafina obteve o reconhecimento de sua identidade de gênero perante o
Registro Civil.
No ano de 2010 a Câmara Constitucional da Corte Suprema de Justiça declarou a
inconstitucionalidade da frase “entre um homem e uma mulher” na regulamentação da união de
fato e determinou que o Poder Legislativo promovesse as alterações pertinentes para que não
houvesse distinção alguma de sexo e/ou gênero. Entretanto, a respectiva modificação legislativa
do artigo 406.2 do Código Civil do Estado 2 ressalvou que, quando formada por duas pessoas do
mesmo sexo, a união de fato não será considerada família, não tendo direito à adoção de maneira
conjunta e não estando sujeita à proteção especial do Estado nos termos do artigo 85 da
Constituição Política do país 3.
4. Adriana Timor
Adriana Timor, mulher lésbica 4 filha única e órfã de pai e mãe, foi excluída de seu círculo
familiar por conta de sua orientação sexual e perdeu contato com seus parentes há mais de quinze
anos. Adriana conheceu Serafina Conejo Gallo no ano de 2010 com quem iniciou uma relação
afetiva e decidiu se casar.
2
Art. 406.2, Código Civil de Elizabetia: A união de fato, conformada por duas pessoas do mesmo sexo, inclui todos
os efeitos descritos no artigo 397 da legislação, com uma ressalva: essa união não será considerada “família” no
sentido do artigo 85 da Constituição, e não tem o direito à adoção de maneira conjunta.
3
Art. 85, Constituição Política de Elizabetia: A família, derivada da união livre entre um homem e uma mulher, é a
unidade fundamental da sociedade e merece a proteção especial de todas as instituições do Estado.
4
Homossexuais são pessoas que sentem uma profunda atração emocional e sexual por pessoas do mesmo sexo,
mantendo relações íntimas e sexuais com estas pessoas. É uma tendência no movimento LGBTI a reivindicação do
uso da espressão “lésbica” para referir-se à homossexualidade feminina. OEA/Ser.G/CP/CAJP/INF. 166/12.
Orientación Sexual, Identidad de Género y Expresión de Género: Algunos Términos y Estándares relevantes. 23 de
abril de 2012, p. 6. (Tradução livre).
3
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5. Questão contenciosa
Adriana e Serafina solicitaram autorização para contrair matrimônio perante a Secretaria
Nacional da Família através de um pedido administrativo apresentado em 15 de março de 2011,
negado com base no artigo 396 do Código Civil do Estado 5. Ante a negativa, o casal apresentou
um recurso de reposição perante a mesma autoridade, também indeferido. Visando a nulidade do
ato administrativo, ingressaram com um recurso judicial contencioso administrativo declarado
improcedente por decisão definitiva e irrecorrível emanada do 7º Tribunal Contencioso
Administrativo, transitada em julgado em 05 de agosto de 2011.
Tal decisão analisou apenas a legalidade do ato administrativo da Secretaria Nacional da
Família, novamente à luz do artigo 396 do Código Civil do Estado. Ante a fundamentação
ventilada na tese recursal de Adriana e Serafina a elencar a cláusula de não discriminação
estabelecida no artigo 9 da Constituição Política de Elizabetia 6 , o Tribunal estabeleceu que
excluir um casal do mesmo sexo da instituição do matrimônio é uma restrição “razoável e
necessária” para preservar a noção de família na ordem constitucional elisabetana.
Em 18 de novembro de 2011 Adriana e Serafina interpuseram um remédio constitucional de
amparo perante a 3ª Vara da Família que, segundo a legislação interna, deveria decidir
imediatamente, salvo em situações especialmente complexas, nas quais seria possível a extensão
do prazo por um período de, no máximo, três meses. Ocorre que, no último dia do prazo, o
recurso foi rejeitado sem a análise de seu mérito.
5
Art. 396, Código Civil de Elizabetia: Todo casal composto por um homem e uma mulher maiores de 18 anos, pode,
por mútuo consentimento, contrair matrimonio. Para tanto, o casal deverá apresentar uma solicitação administrativa
perante a Secretaria Nacional da Família. O casamento deverá ser celebrado perante a autoridade judicial competente
e terá efeitos constitucionais e legais a partir do momento da sua inscrição no Registro Civil Nacional.
6
Artigo 9, Código Civil de Elizabetia: Todas as pessoas são iguais perante a lei. Proíbe-se todo ato ou omissão que
tenha por objeto ou resultado uma distinção, restrição, exclusão ou preferencia arbitrária com base no sexo, raça,
origem nacional, origem étnica, religião, opinião política, orientação sexual ou identidade de gênero, entre outras
condições sociais análogas. Toda distinção, restrição, exclusão ou preferencia que esteja baseada e/ou tome em
consideração algum destes aspectos, é inconstitucional e deverá ser justificada por razões imperiosas, ser idônea,
necessária e estritamente proporcional.
4
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Ademais, em 1º de fevereiro de 2012, Mariposa apresentou a petição inicial P-600-12 perante
a Comissão Interamericana, que decidiu pela sua admissão como objeto de per saltum,
declarando no relatório de admissibilidade 179-12 de 22 de setembro de 2012 que, no momento
de seu pronunciamento, os recursos internos haviam sido efetivamente esgotados. Ainda
conforme o entendimento da CIDH em resposta às alegações do Estado, não seria necessário o
esgotamento da ação de inconstitucionalidade prevista na legislação doméstica de Elizabetia.
Em 03 de janeiro de 2013 a Comissão emitiu relatório sobre o mérito 1-13, declarando a
violação dos diretos estabelecidos nos artigos 8.1, 11, 17, 24 e 25, todos em relação aos artigos
1.1 e 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos. O caso foi então submetido à Corte em 1º
de fevereiro do mesmo ano, que convocou uma audiência sobre exceções preliminares, e
eventualmente sobre o mérito, reparação e custos.
II. ANÁLISE LEGAL
A. QUESTÕES PRELIMINARES
1. Da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos
O Estado de Elizabetia reconheceu a competência contenciosa da Corte em 1º de janeiro de
1990 quando da ratificação da CADH e de todos os demais instrumentos interamericanos em
matéria de direitos humanos, oportunidade em que aceitou suas cláusulas opcionais sem
reservas 7. Assim, a Corte é competente para conhecer e julgar as violações de direitos humanos
contempladas na presente demanda 8, conforme o artigo 62.3 da Convenção, porquanto a petição
preenche os requisitos de admissibilidade ratione materiae, loci, temporis e personae 9.
7
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 19.
Corte IDH. Caso Loayza Tamayo vs. Peru. Exceções Preliminares. Sentença de 31 de janeiro de 1996. Série C, nº
25, par. 21; Corte IDH. Caso Tribunal Constitucional vs. Peru. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 24 de
setembro de 1999. Série C, nº 55, pars. 32, 33 e 35.
9
CIDH. Relatório de Admissibilidade nº 138/10. Petição 12.363.. Juan José Meza vs. Ecuador. 1º de novembro 2010,
par. 28 e 29.
8
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2. Da aplicação de outras fontes de Direito Internacional
A Corte poderá utilizar outros instrumentos internacionais, constitutivos do corpus juris do
caso, para fins interpretativos 10, sendo também competente para conhecer violações de demais
Convenções e Tratados Internacionais à luz do artigo 29 da CADH. Entende-se que a abrangente
contextualização dos direitos humanos visa sua garantia efetiva e a mais ampla proteção às
vítimas de violações 11.
3. Da legitimidade das partes
Mariposa é uma organização não governamental reconhecida legalmente, enquanto a
República de Elizabetia é signatária da CADH desde 1990, tendo reconhecido a competência
contenciosa da Corte 12. Assim, encontram-se preenchidos os pressupostos de legitimidade ativa e
passiva previstos no artigo 44 da Convenção.
4. Da tempestividade
Em 05 de agosto de 2011 transitou em julgado a decisão definitiva e irrecorrível do recurso
judicial contencioso administrativo interposto pelas peticionárias no âmbito doméstico de
Elizabetia, data em que foram esgotados os recursos internos ordinários. Tendo em vista que a
petição inicial foi apresentada por Mariposa em 1º de fevereiro de 2012, dentro do prazo de seis
meses previsto no artigo 46.1.b da CADH, preenchido o pressuposto de tempestividade da
demanda.
5. Da não litispendência internacional
Haja vista que a matéria constante na presente demanda não se encontra pendente em outro
10
Corte IDH. Caso González y otros (Campo Algodonero) vs. México. Sentença de 16 de novembro de 2009; Corte
IDH. Caso Fernández Ortega e outros vs. México. Sentença de 30 de agosto 2010; e Corte IDH. Caso Rosendo
Cantú e outros vs. México. Sentença de 31 de agosto 2010.
11
Opinião Consultiva OC-16/99 de 01 de outubro de 1999. Série A, nº 16. Voto do Juiz Cançado Trindade, pars. 4, 5,
9 e 11.
12
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 19.
6
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processo de solução internacional 13 , nem reproduz substancialmente petição ou comunicação
anteriormente examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional, preenchidos estão
os requisitos do artigo 46.1.c da CADH, não sendo caso da aplicação de seu art. 47.d, porquanto
não caracterizada a litispendência internacional.
6. Da inocorrência da fórmula da 4ª instância
A fórmula da quarta instância não se aplica ao presente caso, uma vez que esta diz respeito à
revisão, por parte da Corte, de erros de fato ou de direito cometidos por tribunais nacionais. Tal
ocorrência não se observa, uma vez que a presente demanda não se presta a revisar as decisões
proferidas pelas autoridades domésticas. Busca-se, em verdade, a declaração de violações de
direitos consagrados na Convenção 14.
7. Do esgotamento dos recursos internos
O esgotamento dos recursos internos, previsto no artigo 46.1.a da CADH como requisito de
admissibilidade da petição, tem sido aplicado com flexibilidade tanto pela Comissão 15 quanto
pela Corte Interamericana 16 , a exemplo da Corte Européia 17 , a fim de lograr soluções mais
equitativas e justas às demandas de direitos humanos 18.
No caso em tela, os procedimentos jurídicos internos do Estado de Elizabetia, ainda que
confusos e inefetivos, foram esgotados. Conforme se depreende dos fatos, a decisão definitiva do
recurso judicial contencioso administrativo interposto por Adriana e Serafina perante o 7º
13
CIDH. Relatório de Admissibilidade e mérito nº 35/08. Caso 12.019. Antonio Ferreira Braga vs. Brasil.. 18 de
julho de 2008, par. 41.
14
CIDH. Relatório nº 39/96, Caso 11.673, Santiago Marzioni vs. Argentina, 15 de outubro de 1996, par. 61; CIDH.
Informe Anual nº 8/98, Caso 11.671, Carlos García Saccone vs. Argentina, 02 de março de 1998, par. 53.
15
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O esgotamento de recursos internos no direito internacional, p. 233.
16
Corte IDH. Caso Castillo Páez vs. Perú. Sentença de 30 de janeiro de 1996. Exceções Preliminares. Voto
Arrazoado do Juiz A. A. Cançado Trindade, par. 3.
17
Corte EDH. Caso Dewer. Sentença de 27 de dezembro de 1980, par. 19; Corte EDH. Caso Guzzardi. Sentença de
06 de novembro de 1980, pars. 72, 80 e 113; Corte EDH. Caso Akdivar vs. Turkey. Sentença de 16 de setembro de
1996, par. 69.
18
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O esgotamento de recursos internos no direito internacional, p. 250.
7
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Tribunal do Contencioso Administrativo - visando à nulidade do ato emanado da Secretaria
Nacional de Família a negar seu pedido de autorização para contrair casamento - transitou em
julgado no dia 05 de agosto de 2011 19. Assim, em cumprimento ao disposto no art. 46.1.b da
Convenção Americana, as vítimas apresentaram a petição inicial P-600-12 em 1º de fevereiro de
2012 20.
Embora não seja obrigação das peticionárias o esgotamento de absolutamente todos os
recursos internos disponíveis
21
, já tendo a Corte firmado jurisprudência no sentido de
desconsiderar a necessidade do esgotamento de recursos extraordinários 22, na esperança de ter
seu conflito solucionado no âmbito doméstico, o casal interpôs um remédio constitucional de
amparo contra a decisão proferida pelo 7º Tribunal, antes de acessar a instância internacional.
Segundo a legislação interna, o recurso de amparo deveria ter sido julgado de imediato. Face à
demora injustificada 23 do Estado, à inexigibilidade de esgotamento deste recurso 24 e à
observância do prazo de seis meses (art. 46.1.b da CADH), Mariposa apresentou a petição à
Comissão na data supracitada.
Em 18 de fevereiro de 2012, após a apresentação da petição, o recurso foi enfim resolvido
negativamente pela 3ª Vara de Família. A última alternativa encontrada por Adriana e Serafina
nos trâmites domésticos de Elizabetia foi apelar da decisão da 3ª Vara, porém, o Tribunal
Colegiado de Causas Diversas do Distrito nº 5 negou provimento ao recurso das vítimas
considerando, a exemplo de todas as outras decisões proferidas no caso, apenas a legalidade do
ato judicial.
19
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 47.
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 50.
21
LEDESMA, Héctor Faúndez. El sistema interamericanode protección de lós derechos humanos: aspectos
institucionales y procesales, p. 233.
22
Corte IDH. Caso Cantoral Benavides vs. Perú. Exceções Preliminares. Sentença de 3 de setembro de 1998, par. 33.
23
CIDH. Informe nº 10/96. Caso 10.636. Guatemala. 5 de março de 1996, par. 38.
24
CIDH. Relatório nº 71/12. Petição P-1073-05, par. 22.
20
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No dia 10 de maio de 2012 a CIDH deu abertura ao trâmite da petição como objeto de per
saltum por considerar que a discriminação baseada na orientação sexual e/ou na identidade de
gênero é um problema com implicações estruturais, e notificou o Estado da demanda 25.
Mesmo ante a comprovação do esgotamento dos recursos internos de Elizabetia por parte das
demandantes, assim não entendendo esta honorável Corte, destaca-se que tal requisito sequer
seria exigível de cumprimento considerando que os recursos alegados como não esgotados são
inadequados e inefetivos para a solução das violações de direitos humanos sofridas pelas
peticionárias.
Ante a construção de leis violadoras de direitos humanos por um Estado e a certeza de que o
Poder Judiciário as aplicará, desnecessário se faz o esgotamento de seus recursos internos 26. A
reclamação deste requisito de admissibilidade pressupõe, notadamente, a existência de recursos
efetivos à garantia dos direitos das vítimas e à sua reparação, porquanto inconcebível a criação de
recursos ilusórios
27
que visem à dilação indevida do prazo de acesso às instâncias
internacionais 28.
Destarte, os princípios de direito internacional insculpidos no art. 46.1.a da CADH, reclamam
pressupostos de adequação e efetividade, assim entendidos como aqueles recursos capazes de
apresentar um remédio à situação infringida 29, o que não se verifica in casu.
25
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 50.
STEINER, Henry J. International human rights in context: law, politics, morals, p.82.
27
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de junho de 987.
Série C, nº 1, para. 93.
28
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987.
Serie C, nº 1, par. 93; CIDH. Relatório nº 71/12. Petição P-1073-05, par. 22.
29
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C, nº 4, pars.
64 e 66; Caso Godínez Cruz. Fundo. Sentença de 20 de janeiro de 1989, pars. 67 e 69; Caso Fairén Garbi y Solís
Corrales. Fundo. Sentença de 15 de março de 1989. Série C, nº 6, pars. 88 e 91; Opinião Consultiva OC-11/90 de 10
de agosto de 1990.
26
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O dever de esgotar os recursos internos decorre, então, da existência de recursos idôneos. O
Estado tem, portanto, o dever prévio de dispor de recursos internos eficazes e capazes de produzir
resultados efetivos 30 na garantia dos direitos reclamados. Conforme já sugerido pela Corte, a
mera formalidade de existência de recursos incapazes de alcançar efetividade real exime os
peticionários da necessidade de esgotá-los uma vez que, na prática, estes não alcançam seu
objetivo 31.
A análise da efetividade dos recursos internos, para fins de aplicação da exceção à regra do
esgotamento (art. 46.2.a da CADH), é atribuição da Corte IDH 32 , a ponderar se as decisões
emitidas pela jurisdição doméstica do país foram, e se poderiam ser, suficientes para efetivamente
cessar, reparar e prevenir as violações dos direitos humanos da Convenção 33.
Outrossim, é entendimento firmado no âmbito do Sistema Interamericano 34 o fato de que não
podem ser considerados efetivos recursos que resultem meramente ilusórios, sob pena de
configurar-se uma denegação de justiça 35. É o que flagrantemente se constata na jurisdição de
Elizabetia quando as autoridades competentes restringem-se a verificação de legalidades pautadas
na aplicação do Código Civil do Estado - que claramente viola direitos humanos das vítimas
garantidos pela Convenção Americana.
30
Corte IDH. Caso Masacre de las Dos Erres vs. Guatemala. Sentença de 24 de novembro de 2009, par. 107; Caso
Escher e outros vs. Brasil. Sentença de 06 de julho de 2009, par. 196; OC-09/87 de 06 de outubro de 1987. Série A nº
9; Corte IDH. Caso Castañeda Gutman vs. México. Sentença de 06 de agosto de 2008, par. 78; Corte IDH. Caso
Acosta Calderón vs. Ecuador. Sentença de 24 de junho de 2005, par. 86.
31
Corte IDH. Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C, nº 4, par. 68;
Caso Godínez Cruz vs. Honduras. Fundo. Sentença de 20 de janeiro de 1989, par. 71; e Caso Fairén Garbi y Solís
Corrales vs. Honduras. Fundo. Sentença de 15 de março de 1989. Série C, nº 6, par. 93.
32
Corte IDH. Caso Hilaire, Constantine y Benjamin y otros vs. Trinidad y Tobago. Fundo, Reparações e Custas.
Sentença de 21 de junho de 2002, par. 145; CIDH. Caso Villagrán Morales y otros (Caso de los “Niños de la
Calle”). Sentença de 19 de novembro de 1999, par. 222; Caso Bámaca Velásquez. Sentença de 25 de novembro de
2000, par 188; e CIDH. Caso Juan Humberto Sánchez vs. Honduras. Sentença de 7 de junho de 2003, par. 120.
33
CIDH. Relatório nº 62/09. Petição 1173-05, par. 22.
34
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987.
Série C, nº 1, para. 93.
35
PASQUALUCCI, Jo M. The Inter-american Human Rights System: Establishing Precedents and Procedure in
Human Rights Law 26U. Miami Inter-American Law Review, 297 (1995), p.337.
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Nos casos Hondurenhos 36, considerou-se desnecessária a análise aprofundada do esgotamento
dos recursos internos quando se tratar de “práticas estatais” constitutivas de “violações maciças e
sistemáticas” de direitos humanos, em que se comprova a ineficácia do Poder Judiciário.
Assim, a fundamentação legal das decisões proferidas pelas autoridades estatais competentes,
embasadas em preceitos discriminatórios, demonstra a inefetividade de se recorrer às instâncias
judiciais e administrativas nacionais e reforça a alegação de violação à proteção e à garantia
judicial levantadas adiante, devido à inexistência de recursos efetivos.
Não obstante, o ônus da prova da existência de recursos idôneos recai sob o Estado, que
deverá apontar não apenas quais recursos estão disponíveis na legislação doméstica, mas também
comprovar sua efetividade 37 . Frisa-se que o único recurso apresentado pelo Estado em sua
manifestação perante a CIDH foi a ação de inconstitucionalidade. Esta, porém, não está
adequadamente regulamentada na legislação interna de Elizabetia 38 e estabelece, como requisito
prévio, a necessidade de autorização outorgada pela Promotoria de Direitos Humanos da
República. Ocorre que tal anuência é resultado da conveniência política discricionária da
Promotoria. Assim, desnecessário seu esgotamento, conforme o endosso manifesto da própria
CIDH quando da análise de admissibilidade da demanda 39.
Ademais, mesmo considerando a existência de possíveis outros recursos internos a serem
utilizados, os mesmos não foram alegados pelo Estado nas oportunidades devidas. Segundo o
princípio de estoppel, a prova da existência de outros recursos disponíveis recai sobre o Estado
36
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C, nº 4, pars.
64 e 66; Caso Godínez Cruz. Fundo. Sentença de 20 de janeiro de 1989, pars. 67 e 69; Caso Fairén Garbi y Solís
Corrales. Fundo. Sentença de 15 de março de 1989. Série C, nº 6, pars. 88 e 91; Opinião Consultiva OC-11/90 de 10
de agosto de 1990.
37
Corte IDH. Opinião Consultiva OC-11/90 de 10 de agosto de 1990. Exceções ao Esgotamento dos Recursos
Internos, p. 16, § 41; CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O esgotamento de recursos internos no direito
internacional, p. 263.
38
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 14;
Perguntas e Respostas para Esclarecimento 2013, nº 10.
39
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 52.
11
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demandado, que deve se manifestar sobre a suposta falta de esgotamento e comprovar a
idoneidade e efetividade dos mesmos desde as primeiras etapas procedimentais na CIDH e, em
não o fazendo, presume-se a renúncia tácita 40.
Os recursos internos disponibilizados pelo Estado de Elizabetia não garantem efetivamente os
direitos humanos consagrados na CADH, o que se comprova pelo fato de a legislação doméstica
do Estado não dispor de meios eficazes para o pleno exercício e gozo de tais direitos a violá-los
expressamente, justificando a iniciativa de solicitar a proteção internacional e caracterizando a
urgência da demanda.
Por fim, a Comissão Interamericana emitiu o relatório de admissibilidade número 179-12, no
qual expressamente declara que o requisito do esgotamento dos recursos internos foi devidamente
preenchido pela petição P-600-12 das vítimas 41 . Assim, quando do julgamento do caso,
importante que a Corte priorize a análise do mérito a prestigiar adequadamente a proteção dos
direitos humanos 42 , considerando que as questões de admissibilidade já foram previamente
observadas pela Comissão.
Ante a manifestação expressa da CIDH pelo esgotamento, está estabelecida a competência da
Corte para conhecer o mérito da demanda, uma vez que os ditames da justiça, da busca pela
igualdade das partes e dos princípios de direito internacional geralmente reconhecidos, são no
40
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Exceções Preliminares. Sentença de 26 de junho de 1987,
Série C, nº 1, § 88.
41
Corte IDH. Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Perú. Exceções Preliminares. Sentença de 4 de setembro de 1998.
Série C, nº 41, pars. 52, 54 e 55; LEDESMA, Héctor Faúndez. El sistema interamericanode protección de lós
derechos humanos: aspectos institucionales y procesales, p. 230.
42
Corte IDH. Caso Gangaram Panday. Exceções Preliminares. Sentença e 04 de dezembro de 1991. Voto Arrazoado
do Juiz A.A. Cançado Trindade, p. 17-23.
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sentido de não limitar a apreciação dos casos à mera reabertura de questões formais de pura
admissibilidade 43.
8. Da possibilidade de aplicação do princípio iuria novit curia pela Comissão e pela Corte
Interamericanas de Direitos Humanos
Em observância ao princípio iura novit curia, tanto a Comissão 44 quanto e Corte 45 , no
exercício de suas atribuições, possuem a faculdade de analisar as violações de direitos humanos
com base nos fatos narrados, não estando restritas à interpretação dos direitos alegados pelos
peticionários, podendo aplicar as disposições jurídicas que julgarem pertinentes à causa, mesmo
quando estas não foram invocadas expressamente. Deste modo, a Corte tem plena competência
para julgar as violações decorrentes dos fatos descritos no caso e a eles atribuir a capitulação dos
direitos que julgar adequada sem ferir nenhum princípio inerente a sua investidura.
9. Do cabimento de medidas provisórias
Com base no artigo 63.2, a Corte poderá conhecer de eventuais medidas provisórias que se
fizerem necessárias ao curso da demanda, quando se tratarem de questões de extrema gravidade e
urgência, pertinentes aos assuntos que estiver conhecendo.
B. QUESTÕES DE MÉRITO
1. Considerações Iniciais
A análise histórica das violações dos direitos humanos ocorridas no Estado de Elizabetia, tais
como as práticas de exterminação e erradicação da cultura granti e as violações sofridas por
43
Corte IDH. Caso Cayara. Exceções Preliminares. Sentença de 24 de março de 1995, par. 42; Caso Paniagua
Morales y otros. Exceções Preliminares. Sentença de 25 de janeiro de 1996. Série C, nº 23, par. 38.
44
CIDH, Antônio Ferreira Braga vs. Brasil. Caso 12.019, Admissibilidade e Mérito. Relatório nº 35/08 de 18 de
julho de 2008, par. 48 e 49; CIDH Relatório nº 128/10 de 23 de outubro de 2010, par. 29.
45
Corte IDH, Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México. Resolução de 19 de janeiro de 2009, § 32;
Corte IDH. Caso “Masacre de Mapiripán” vs. Colombia. Sentença de 15 de Setembro de 2005, par. 59.
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Serafina ao longo de sua vida, embora não sejam objeto da presente demanda, demonstram a
reiterada prática discriminatória no país como um problema de implicações estruturais 46.
Tema latente, porém negligenciado e, por vezes, discriminado na legislação doméstica de
Elizabetia, a luta pelo reconhecimento dos direitos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais, e intersexuais intenta a obtenção da efetiva igualdade em todos os âmbitos da vida
social e privada, inclusive na esfera legislativa 47.
O presente caso serve como importante precedente na Corte IDH no sentido de garantir a
efetivação dos direitos humanos da comunidade LGBTI, tendo em vista que o direito não pode
abster-se de solucionar os conflitos que lhe são apresentados, sendo-lhe vedado o silêncio 48. . A
aplicação das normas jurídicas deve considerar a dinâmica social e sobrepor-se ao positivismo
jurídico e à cristalização do direito, a fim de que o conteúdo e a eficácia das normas acompanhem
a evolução dos tempos 49, e não tome por base uma legislação que não mais reflete os anseios e as
relações sociais.
O reconhecimento dos direitos de pessoas LGBTI no âmbito do Sistema Interamericano é
matéria de grande importância. Tanto que, em 2011, foi emitida uma Resolução pela Assembleia
Geral da OEA, solicitando que a CIDH realizasse estudos sobre as implicações legais e os
desenvolvimentos conceituais e terminológicos relativos à orientação sexual, identidade e
46
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, pars. 10 e 50;
Perguntas e Respostas para Esclarecimento 2013, nº 28.
47
RIOS, Roger Raupp. Direitos Sexuais de Gays, Lésbicas e Transgêneros no Contexto Latino Americano
48
PIOVESAN. Flávia. Implementação das obrigações standards e parâmetros internacionais de direitos humanos no
âmbito intergovernamental e normativo apud BENVENUTO, Jayme. Direitos humanos internacionais: perspectiva
prática no novo cenário mundial, p. 116.
49
Corte IDH. Opinião Consultiva OC-16/99 de 1º de outubro de 1999. Voto do Juiz A.A. Cançado Trindade, pars. 5 e
11.
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expressão de gênero, devido a sua preocupação com os atos de violência e discriminação
praticados contra pessoas pertencentes à comunidade LGBTI 50.
Neste contexto, a Comissão incluiu em seu Plano Estratégico um Plano de Ação 51 em prol dos
direitos LGBTI e criou uma Unidade Especializada na matéria no âmbito de sua Secretaria
Executiva. No ano de 2012, emitiu diversos comunicados à imprensa 52 condenando atos
violentos e discriminatórios contra as minorias sexuais, na defesa pelos direitos humanos.
A CIDH salientou a obrigação dos Estados em prevenir, investigar e sancionar as violações
cometidas em face deste grupo, de modo que as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e
intersexuais possam exercer uma vida livre de discriminação e violência. É também dever estatal
a adoção de ações que evitem os abusos aos direitos humanos, e a realização das reformas
necessárias para adequar as leis domésticas aos instrumentos interamericanos na matéria 53.
A comunidade internacional demonstra a mesma preocupação acerca da garantia dos direitos
LGBTI tanto que, em 2006, foram elaborados os Princípios de Yogyakarta 54 , norteadores da
aplicação e interpretação de normativas internacionais no que tange às minorias sexuais. Tais
princípios buscam esclarecer o modo como os direitos garantidos nos diversos Tratados e
Convenções também protegem aqueles que sofrem violações de direitos humanos por conta de
sua orientação sexual e/ou identidade de gênero 55, assim como Adriana Timor e Serafina Conejo
Gallo.
50
OEA/Ser.G CP/CAJP/INF. 166/12. Orientación Sexual, Identidad de Género y Expresión de Género: Algunos
Términos y Estándares relevantes. 23 de abril de 2012. Preâmbulo e par. 6.
51
CIDH. Plano de Ação nº 4.6.i. (2011 – 2012). Pessoas LGTBI.
52
CIDH. Comunicados à imprensa nº 79/12 e 89/12.
53
CIDH. Comunicado à imprensa nº 89/12, par. 3.
54
Princípios de Yogyakarta: Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação
à orientação sexual e identidade de gênero. Yogyakarta, Indonésia, 2006.
55
Supremo Tribunal Federal Brasileiro. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4377. Amicus Curiae Conectas
Direitos Humanos, p. 22.
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2. Da violação dos direitos à proteção da família, da honra e da dignidade
O direito à proteção da família, disposto no art. 17 da CADH, foi violado por Elizabetia
quando o Estado negou o pedido de Adriana e Serafina para contrair casamento com base na
disposição legislativa interna do art. 396 do Código Civil que elenca que “todo casal composto
por um homem e uma mulher maiores de 18 anos, pode, por mútuo consentimento, contrair
matrimonio [...]”. Sendo as peticionárias um casal formado por pessoas do mesmo sexo, sua
solicitação para casarem foi denegada, o que claramente viola não apenas o direito humano do
artigo 17.2 da CADH, acerca da proteção da família, mas também a dignidade e a honra das
vítimas, elencadas no art. 11 da Convenção Americana.
Cumpre ressaltar que o art. 17.2 da CADH abarca o direito, tanto de um homem quanto de
uma mulher, independentemente do sexo, de contraírem casamento e fundarem uma família,
desde que preenchidos o requisito etário e as demais condições eventualmente exigidas pela
legislação doméstica. Porém, tais condições não podem afetar o princípio da não-discriminação
estabelecido na própria Convenção e em demais normas de direito internacional. Assim, qualquer
critério que estabeleça diferenciações com base no sexo ou na orientação sexual, expressamente
vedadas no artigo 1.1 da CADH, é inválido e por si só viola os direitos humanos consagrados na
Convenção.
A definição tradicional de família sob a ótica hierárquico-patriarcal é considerada
ultrapassada 56 , de modo que a evolução e o dinamismo social refletem, e não poderia ser
diferente, em mudanças interpretativas da legislação e dos desígnios conceituais da entidade
familiar. Hoje, entende-se como família aquela unidade formada com base no amor (núcleo
central de qualquer relação afetiva) que vise uma comunhão plena de vida e interesses, de forma
56
RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito, p. 102.
16
Equipe 172
pública, contínua e duradoura 57 . Esta definição é baseada na dignidade como fundamento da
conduta humana, a priorizar a busca da felicidade de um casal 58.
Assim, o único valor capaz de dar origem, sentido e sustentação ao casamento é o amor 59.
Logo, a reivindicação da proteção familiar legitima-se pela observância deste elemento único,
que deve sobrepor-se aos caracteres de ordem puramente genética.
Ora, sendo o amor familiar como o elemento essencial para a formação da família, inaceitável
o fato de uniões entre pessoas do mesmo sexo não receberem o mesmo tratamento jurídico dado
às uniões heteroafetivas, uma vez que o elemento constitutivo do núcleo familiar, o amor, está
presente em ambas as relações, justificando que as primeiras recebam a mesma proteção estatal
dada as segundas 60.
A legislação doméstica de Elizabetia 61 expressamente declara a não equiparação à família aos
casais homoafetivos quando disciplina a união de fato 62 e de mesmo modo os impede de contrair
matrimônio face a uma interpretação restritiva e discriminatória de uma expressão legislativa
interna.
Não há, porém, justificação plausível para a exclusão de casais compostos por pessoas do
mesmo sexo da consideração de família, tendo em vista que a única diferença existente entre
estas uniões e as uniões heteroafetivas é o sexo e/ou a identidade de gênero 63. Como já aventado,
57
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da possibilidade jurídica do casamento civil, da
União Estável e da Adoção por Casais homoafetivos. 1ª edição. São Paulo. Editora Método. 2008. Pag 196-211.
58
DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 4ª edição. Porto Alegre. Editora Livraria do
Advogado. 2009, pp. 125 e 126.
59
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Tendências modernas do direito de família. Editora RT, v. 628, p. 19 -39, fev. 1988.
60
Ação direta de Inconstitucionalidade número 4377. Supremo Tribunal Federal Brasileiro. Amicus Curie.
Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo.
61
Art. 406.2 do Código Civil de Elizabetia: A união de fato, conformada por duas pessoas do mesmo sexo, inclui
todos os efeitos descritos no artigo 397 da legislação, com uma ressalva: essa união não será considerada “família”
no sentido do artigo 85 da Constituição, e não tem o direito à adoção de maneira conjunta.
62
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 17.
63
DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 4ª edição. Porto Alegre. Editora Livraria do
Advogado. 2009. Pag 75 a 88.
17
Equipe 172
estes elementos não podem ser utilizados como critérios discriminatórios a limitar o exercício dos
direitos humanos das pessoas LGBTI.
A Secretaria Nacional da Família, quando do indeferimento do pedido de casamento de
Adriana e Serafina, fundamentou sua decisão puramente no artigo 396 do Código Civil 64 que
transcreve uma expressão que flagrantemente afronta o princípio da não-discriminação
estabelecido na Convenção e, em consequência, viola o direito à proteção da família.
O direito de proteção familiar também encontra respaldo nos Princípios de Yogoakarta que
dispõe que toda pessoa, independentemente de qualquer condição, tem o direito de constituir
família 65. No caso Atala Riffo vs. Chile 66, a Comissão asseverou que o direito de formar relações
pessoais e familiares fundadas na identidade de gênero, também encontra respaldo na garantia da
vida privada, ainda que não aceita ou tolerada pela a maioria.
No que tange à proteção da honra e da dignidade, inerentes à condição de ser humano e
indissociáveis da proteção da família, esta se encontra prevista no art. 11 da CADH que elenca
em seu item 2 que ninguém pode sofrer ingerências arbitrárias ou abusivas em sua privacidade 67.
É, portanto, obrigação do Estado o respeito, a prevenção e a proibição de interferências ou
ataques que violem tais direitos 68, tendo em vista que toda pessoa faz jus a proteção legal contra
ações ofensivas no âmbito de sua vida familiar.
O princípio da dignidade 69 demanda a criação, a aplicação e a efetividade dos mecanismos
jurídicos, práticos e legais que garantam o pleno gozo e exercício dos direitos humanos dela
64
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vS. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 43.
Princípios 24 de Yogyakarta: Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em
relação à orientação sexual e identidade de gênero. Yogyakarta, Indonésia, 2006.
66
CIDH, Demanda perante a Corte IDH. Caso Karen Atala Hiffo e hijas vs. Chile. Caso 12.502. 17 de setembro de
2010, par. 111.
67
OEA/Ser.G/CP/CAJP/INF. 166/12. Orientación Sexual, Identidad de Género y Expresión de Género: Algunos
Términos y Estándares relevantes. 23 de abril de 2012, p. 9, § 30.
68
CIDH. Relatório Anual de 1996. Relatório nº 11/96. Caso 11.230. Chile. 03 de maio de 1996.
69
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 19481948. Preâmbulo, art. 1.
65
18
Equipe 172
decorrentes.
A dignidade está intimamente relacionada à garantia dos direitos humanos, pois não há como
se falar em dignidade sem promoção dos direitos fundamentais 70 de modo que, uma vez negada a
proteção da família, resta também violado o art. 11 da CADH. Seu conceito é indissociável do
princípio da igualdade, vez que todas as formas de tratamento discriminatório de um grupo em
face de outro caracteriza a concomitante violação dos direito de igualdade e dignidade 71.
Logo, a honra e a dignidade de Adriana e Serafina foram flagrantemente violadas pela ação do
Estado em proibir que sua união seja considerada família, frustrando, inclusive, suas expectativas
em torno de seu projeto de vida familiar.
A Corte Interamericana defende a proteção do “projeto de vida” 72, sendo este referente às
opções que um indivíduo pode tomar para conduzir sua vida a fim de alcançar o destino que
almeja 73. Como bem elucida Cançado Trindade “a dignidade da vida requer a possibilidade de
concretização de metas e projetos 74”. Deste modo, o projeto de vida é consubstancial ao direito à
vida e sua concretização requer o desenvolvimento de condições de vida digna 75.
A meta de Serafina e Adriana é o reconhecimento de sua entidade familiar como tal e a
garantia de seus direitos, em tratamento equitativo àquele dado às demais famílias, para que
possam contrair casamento e exercer plenamente sua dignidade. O Estado não pode, portanto,
privá-las de sua busca pela felicidade, frustrando-lhes o alcance de seu projeto de vida familiar.
70
BORTOLUZZI, Roger Guardiola. A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual. Teresina, ano 10, nº
625. 2005.
71
Opinião Consultiva OC-4/84 de 19 de janeiro 1984. Série A, nº 44.
72
Corte IDH. Caso Villagran Morales vs Guatelama..Fundo. Sentença de 19 de novembro de 1999. Pars 8, 191 e
Caso Moiwana Village v Suriname
73
Corte IDH. Caso Loayza Tamayo vs. Perú. Reparações e Custas. Sentença de 27 de novembro de 1998, par. 148.
74
Corte IDH. Caso Gutiérrez Soler vs. Colômbia, 12 de setembro de 2005. APUD Recurso Especial nº 1.183.378 –
RS – Julgado pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro
75
Corte IDH. Caso “Niños de La Calle”(Vilagran Morales e outros) vs. Guatemala. Fundo. Sentença de 19 de
novembro de 1999.
19
Equipe 172
Por fim, o fato de Elizabetia negar a Adriana e Serafina o direito de contraírem matrimônio ou
mesmo de terem sua união de fato considerada família 76, evidencia a violação dos direitos à
proteção da dignidade, da honra e da família dispostos nos artigos 11 e 17 da Convenção
Americana.
3. Da violação do direito de igualdade perante a lei e do princípio da não-discriminação
O Estado de Elizabetia violou o artigo 24 da CADH, quando criou distinções normativas entre
casais formados por pessoas de mesmo sexo e casais formados por um homem e uma mulher,
estabelecendo disposições impeditivas à concessão do casamento fundadas em critérios
discriminatórios e arbitrários.
No intuito de suprimir a busca pelo reconhecimento das uniões homoafetivas, o governo
possibilitou que estes casais pudessem figurar como uniões de fato. Entretanto, diferentemente de
da união heteroafetiva, as uniões de fato dos casais LGBTI, não são consideradas família 77.
Desta forma, a inadmissível distinção entre tais uniões caracteriza a violação do direito de
igualdade perante a lei e do princípio da não-discriminação, pois garantir alguns direitos aos
casais homoafetivos, como o reconhecimento da união de fato, mas vedar-lhes a possibilidade de
constituir família, nada mais é do que uma flagrante afronta os princípios e os direitos da
Convenção Americana.
Tal distinção legislativa reflete numa série de consequências jurídicas, vez que, não sendo
considerados família, os casais homoafetivos, além de não contarem com proteção jurídica
especial, se veem presos ao preenchimento de requisitos obrigatórios somente necessários para o
reconhecimento de uniões de fato, a exemplo da comprovação de convivência mínima de cinco
anos, quando, em se tratando de casamento, tais condições não se fazem necessárias.
76
77
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor v. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 43.
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 17.
20
Equipe 172
Outrossim, a interpretação taxativa da expressão legal “entre um homem e uma mulher”,
ofende o direito de igualdade dos casais LGBTI, e inclusive já foi declarada inconstitucional pelo
próprio Estado de Elizabetia 78. Portanto, não pode o próprio Estado utilizá-la como parâmetro
para embasar suas decisões violando o artigo 24 da CADH.
O direito a não discriminação constitui um dos princípios fundamentais 79 na interpretação e
proteção dos direitos humanos 80, tendo caráter de jus cogens 81. Ademais, no preâmbulo dos
Princípios de Yogyakarta se observa que a legislação internacional impõe proibição absoluta a
qualquer ato ou omissão que gere discriminação e impeça o pleno gozo de quaisquer dos direitos
humanos, nestes inseridos os direito sexuais, dos quais a orientação sexual e a identidade de
gênero são partes essenciais.
O governo Elizabetano, em diversas oportunidades alega possuir aquilo que considera um
“sólido sistema de valores consagrados constitucionalmente” 82. Entretanto, a própria Constituição
Política de Elizabetia, em seu artigo 9 expressamente proíbe “todo ato ou omissão que tenha por
objeto ou resultado uma distinção, restrição, exclusão ou preferência arbitrária com base no sexo
[...]”83. Não obstante, tal distinção afronta o art. 24 da Convenção Americana.
A primeira vez que a Corte proferiu sentença em relação à discriminação baseada em
orientação sexual foi no caso Atala Riffo vs. Chile no qual considerou que uma diferença de
78
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor v. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 17.
79 CIDH. OEA/Ser.L/V/II.106. Consideraciones sobre la compatibilidad de las medidas de acción afirmativa
concebidas para promover la participación política de la mujer con lós principios de igualdad y no discriminación.
80
CIDH. Informe nº 04/01. Caso 11.625. María Eugênia Morales de Sierra vs. Guatemala. 19 de janeiro de 2001.
OEA/Ser.L/V/II.95, par. 36.
81
Opinião Consultiva. OC-18/03 de 17 de setembro de 2003.
82
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 33.
83
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 13.
21
Equipe 172
tratamento baseada na orientação sexual é uma flagrante violação ao artigo 24 da CADH em
relação ao artigo 1.1 84.
Tendo em vista que a presente demanda objetiva o reconhecimento igualitário de uniões
formadas por casais do mesmo sexo em relação aquelas formadas por um homem e uma mulher,
de modo que também possam constituir família 85. Uma vez que do direito à igualdade decorre a
necessidade de pleno exercício dos direitos humanos para todas as pessoas indistintamente.
O discurso de que o povo Elizabetano é homogêneo e possui um sólido sistema de valores 86
não pode, portanto, ser pretexto para a formulação e aplicação de políticas públicas
discriminatórias. A proteção internacional dos direitos humanos visa sua garantia mesmo quando
em confronto com a Constituição, as leis locais 87 , ou à vontade da maioria. Pois, ainda que
pautada em valores democráticos, tal legitimação dos atos do governo é indevida quando asfixia
os direitos das minorias 88.
4. Da violação do direito à proteção e garantias judiciais
A ausência de apreciação do mérito dos recursos interpostos por Adriana e Serafina, não só
comprova a violação dos direitos elencados no presente caso, como também atesta o fato de o
Estado de Elizabetia não lhes ter proporcionado os devidos mecanismos de reparação interna das
violações de direitos humanos sofridas pelas peticionárias, em absoluta incompatibilidade aos
artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana.
84
Corte IDH. Caso Atala Riffo y Ninas vs. Chile. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 24 de fevereiro de 2012,
par. 221.
85
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 13.
86
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 4.
87
RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 180.
88
RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 184.
22
Equipe 172
A interpretação sistemática do art. 25 da CADH pela Corte 89 demonstra que não basta ao
Estado dispor formalmente de recursos internos, pois a real garantia de proteção judicial vinculase à existência de recursos capazes de identificar violações a direitos humanos e de prover os
meios úteis para remediá-las 90.
As instâncias processuais domésticas devem cumprir uma série de requisitos para que as
pessoas possam defender-se adequadamente de quaisquer atos que afetem seus direitos 91 . As
garantias judiciais estabelecidas no art. 8 da CADH buscam proteger, assegurar e fazer valer a
titularidade e o exercício de um direito 92. Em voto já proferido pelo juiz Cançado Trindade, em
caso submetido à apreciação desta Corte, entendeu-se que as garantias judiciais são mais do que
simples requisitos do devido processo legal ou diretrizes para sua observância, são verdadeiros
princípios gerais do direito que devem nortear o devido processo 93.
Já o artigo 25 versa sobre a possibilidade de alcançar a tutela judicial dos direitos humanos, ou
seja, a efetiva prestação jurisdicional em sede recursal 94 . Ante a própria omissão legislativa
quanto às condições que deverão ser preenchidas para a configuração do requisito legal que
qualifica “homem” e “mulher” para fins de concessão de autorização para o matrimônio, a
possibilitar a perpetração de verdadeiras arbitrariedades por parte do Poder Público – que ora
89
Corte IDH. Caso López Mendoza vs. Venezuela. Sentença de 01 de setembro de 2011, Série C, nº 233, §184;
Opinião Consultiva, Garantias Judiciais no Estado de Emergência, OC-9/87 de 06 de outubro de 1987, Série A, nº 9;
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Sentença de 26 de junho de 1987, Série C, nº 1, §177;.
Sentença de 25 de maio de 2010, Série C, nº 212, §190. Caso Garibaldi vs. Brasil. Sentença de 23 de setembro de
2009, Série C, nº 203, §113; Caso Radilla Pacheco vs. México. Sentença de 23 de novembro de 2009, Série C, nº
209, §139; e Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala. Fundo. Sentença de 25 de novembro de 2000.
90
Corte IDH. Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala. Fundo. Sentença de 25 de novembro de 2000.
91
Corte IDH. Caso Claude Reyes y otros. Sentença de 19 de setembro de 2006. Série C, nº 151, par. 116; Corte IDH.
Caso Yatama. Sentença de 23 de junho de 2005. Série C, nº 127, par. 192; Corte IDH. Caso Ivcher Bronstein.
Sentença de 6 de fevereiro de 2001. Série C, nº par. 146 e 149; Caso Baena Ricardo e outros. Sentença de 2 de
fevereiro de 2001. Série C, nº 72, par. 124; Caso Tribunal Constitucional. Sentença de 31 de janeiro de 2001. Série
C, nº 71, par. 69.
92
Corte IDH. Opinião Consultiva. OC-8/87 de 30 de janeiro de 1987. Serie A. nº 8, § 25.
93
Corte IDH. Caso “Instituto de Reeducación Del Menor”. Voto Arrazoado do Juiz A.A. Cançado Trindade, §18.
94
Corte IDH. Garantias Judiciais nos Estados de Emergência. Opinião Consultiva OC-9/87 de 06 de outubro de
1987, Serie A, nº 9, par. 24.
23
Equipe 172
poderá valer-se dos registros civis e ora poderá valer-se do sexo genético – evidente a ineficácia
dos recursos internos disponibilizados por Elizabetia.
A legislação elisabetana é tão vaga e imprecisa que permite que os Poderes Executivo e
Judiciário abusem de suas funções de modo a negar injustificadamente a autorização para contrair
casamento. Desta forma, a falta de critério legislativo e o embasamento legal utilizado pelo
Estado na fundamentação das decisões proferidas no âmbito de seus recursos internos,
comprovam que suas decisões são manifestamente arbitrárias e contrárias aos artigos supra da
CADH.
A proteção judicial clama pela aplicação de um processo legal efetivo que determine
procedimentos administrativos e judiciais capazes de assegurar a concretização dos direitos
humanos. As autoridades contenciosas, administrativas e judiciárias nacionais do Estado teriam
cumprido os requisitos constantes na legislação doméstica do Estado, que não reconhece aos
casais compostos por pessoas do mesmo sexo a constituição de família, e lhes impede de contrair
casamento.
Claro está que os órgãos nacionais negaram a proteção dos direitos humanos protegidos pela
Convenção em seus arts. 8.1, 11, 17, 24 e 25. Conclui-se, dessa forma, que a ausência de recursos
administrativos e judiciais efetivos demonstra a violação aos direitos de proteção e garantias
judiciais das vítimas.
5. Da responsabilidade internacional do Estado
Os direitos humanos universalmente consagrados são valores fundamentais inerentes à
condição humana 95 . São, essencialmente, direitos de proteção 96 , uma vez que seu objetivo é
95
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p.145.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Apresentação. apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito
constitucional internacional, p. xxix.
96
24
Equipe 172
salvaguardar os direitos dos seres humanos em face dos Estados 97, vez que estes se encontram
ostensivamente em condição desfavorável, buscando remediar os efeitos gerados por estas
relações de desequilibro 98.
A Convenção Americana de Direitos Humanos é instrumento jurídico vinculante e obrigatório
aos Estados que a ratificaram 99. Deste modo Elizabetia assumiu internacionalmente a obrigação
de respeitar os direitos nela consagrados e de garantir o livre e pleno exercício dos mesmos a
qualquer pessoa que se encontrar sob sua jurisdição, sem discriminações de qualquer natureza,
observando os princípio da boa-fé e do pacta sunt servanda elencados também na Convenção de
Viena 100 em 1º de janeiro de 1990.
5.1. Da violação do dever de respeitar os direitos
O artigo 1 da CADH estabelece aos Estados o dever fundamental de garantia e respeito ao rol
de direitos consagrados na Convenção, de modo que se torna ilícita toda forma de exercício do
Poder Público que viole tais direitos 101. Ou seja, em todas as circunstâncias em que um Estado
através de um agente, órgão ou funcionário, lesar um direito regulamentado pela Convenção
Americana, resta configurada a inobservância do artigo 1 da CADH, qual seja, a obrigação de
respeitar os direitos 102.
97
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Apresentação. apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito
constitucional internacional, p. xxix.
98
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos, p. 26.
99
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 43.
100
Corte IDH. Caso Gutiérez Soler vs. Colômbia. Medidas provisionales respecto de La República de Colômbia.
Resolução de 30 de junho de 2011, par. 4; Caso Caballero Delgado y Santana vs. Colombia. Exceções preliminares.
Sentença de 21 de janeiro de 1994, par. 2.
101
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C, nº 4, par
162.
102
Corte IDH. Caso quez Rodríguez vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C, nº 4, par 162 e
169.
25
Equipe 172
Com essa disposição, entende-se que, uma vez violado qualquer dos artigos da CADH por
parte de um Estado signatário, há, consequentemente, a violação do art. 1 103, conforme assinalado
pela própria Corte, ao dispor que o primeiro artigo da Convenção contém a obrigação estatal
contraída em relação a cada um dos demais direitos protegidos neste instrumento 104 . Desta
maneira, qualquer ação ou omissão estatal que lesione algum dos direitos da CADH, constitui um
ato imputável ao Estado, sendo sua a responsabilidade de reparação 105.
O exercício da função estatal esbarra em limites que derivam dos direitos humanos 106 por
conta da existência de atributos invioláveis inerentes à toda pessoa humana e que não podem ser
prejudicados pelo Poder Público 107ainda que por meio de atos convalidados pela lei doméstica 108.
Portanto, é obrigação de Elizabetia tomar todas as medidas necessárias para que sejam
reconhecidos os casamentos ou uniões entre pessoas do mesmo sexo, equiparando todos as
prerrogativas e privilégios concedidos para as pessoas casadas ou vivendo em uniões de fato, para
aqueles que se encontrem em igual situação com pessoas do mesmo sexo 109, face aos arts. 11, 17
e 24. O Estado deve também assegurar que todo seu aparato reconheça a diversidade das formas
de família, de modo que nenhuma delas esteja sujeita a discriminações baseadas em orientação
sexual ou em identidade de gênero.
103
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C, nº 4, par
161 e 162.
104
Corte IDH. Caso Velásquez Rodrigues vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de julho de 1988. Série C, nº 4, par
162; Caso Godinez Cruz. Fundo. Sentença de 20 de janeiro de 1989. Série C, nº 5, par. 171; Caso Neira Alegria e
outros vs. Perú. Reparações e Custas. Sentença de 19 de janeiro de 1995.
105
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, pp.9 e 11.
106
Corte IDH. Caso Velásquez Rodrigues vs. Honduras. Fundo. Sentença de 29 de Julho de 1988. Série C, nº 4 par.
165.
107
Opinião Consultiva OC-6/86 de 9 de maio de 1986. Série A, nº 6, par.21.
108
Opinião Consultiva OC-16/99 de 01 de outubro de 1999. Voto do Juiz Cançado Trindade, par. 4.
109
Princípios de Yogyakarta: Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação
à orientação sexual e identidade de gênero. Yogyakarta, Indonésia, 2006. Princípio 24.
26
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Conclui-se, portanto, que ao violar os artigos 2, 8.1, 11, 17, 24 e 25 da CADH, o Estado de
Elizabetia descumpriu, consequentemente, seu dever de respeitar os direitos, que o próprio
Estado, livremente e sem ressalvas, ratificou no dia 1º de janeiro do ano de 1990 110.
5.2. Da violação do dever de adotar disposições de direito interno
Quando da ratificação da Convenção, o Estado de Elizabetia assumiu o compromisso de
erradicar qualquer norma e/ou prática que viole algum direito ou garantia nela previstos, bem
como o de adequar seu sistema jurídico aos termos da CADH, adotando medidas em
conformidade com os direitos e nela garantias estabelecidos 111.
Cabe frisar que o artigo 2º da Convenção elenca um dever geral do qual decorre duas vertentes
distintas: a supressão de normas e práticas de qualquer natureza que violem as garantias previstas
na Convenção e a exigência de expedição de normas e o desenvolvimento de práticas condizentes
a efetiva observância daquelas garantias 112.
A obrigação do Estado implica que as medidas de direito interno devem ser efetivas, de forma
que o Estado deve adotar todas as ações necessárias para que o que foi estabelecido na
Convenção seja realmente cumprido no ordenamento jurídico interno. Essas medidas são
consideradas efetivas quando toda a comunidade adéqua sua conduta aos preceitos normativos da
CADH 113.
Dentre as muitas maneiras em que um Estado viola a Convenção observa-se a hipótese de
quando ele dita disposições que não estão com conformidade com as obrigações estabelecidas
110
Caso Hipotético Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor vs. Elizabetia. 21 de novembro de 2013, par. 19.
Corte IDH, Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Perú. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 30 de Maio de
1999. Serie C, nº 52, par. 207.
112
Corte IDH, Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Perú. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 30 de Maio de
1999. Serie C, nº 52, par. 207.
113
Corte IDH Caso Garrido e Baigorria vs. Argentina. Reparações e Custas. Sentença de 27 de agosto de 1998, par.
69.
111
27
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pela CADH 114, a exemplo do item 2 do art. 406 do Código Civil de Elizabetia. É, portanto,
vedado o Estado ditar medidas que violem os direitos e liberdades reconhecidos na
Convenção 115.
Resta evidente, portanto, a violação do artigo 2 da Convenção. Além disto, quando da
emissão do relatório sobre o mérito de número 1-12, a CIDH declarou a violação, por parte do
Estado de Elizabetia do artigo 2 da CADH em virtude da aplicação do princípio iura novit cúria,
restando, portanto, indiscutível o fato de que a violação do referido artigo claramente ocorreu.
É imprescindível que a legislação doméstica do Estado de Elizabetia proteja e promova os
direitos humanos, de modo a assegurar que sua legislação interna se encontra apta a garantir a
plena execução de suas obrigações internacionais. Entretanto, o mesmo não se observa, uma vez
que a legislação doméstica cria critérios de distinção entre os efeitos legais da união estável para
casais homoafetivos, diferentes daquelas disposições aplicáveis aos casais formados por um
homem e uma mulher. Tal critério discriminatório encontra-se expresso não apenas na figura da
união de fato, mas também na normativa que rege o casamento.
Perceptível afronta ao dever de adotar disposições de direito interno, encontra-se na
justificativa do próprio Tribunal Contencioso Administrativo do Estado, que, baseado na
legislação doméstica estabelece que, excluir um casal do mesmo sexo da instituição do
matrimonio é uma restrição razoável e necessária para preservar a noção de família na ordem
constitucional elisabetana em flagrante contradição ao artigo 17.2 da CADH.
114
Corte IDH. Caso Genie Lacayo vs. Nicarágua. Exceções Preliminares. Sentença de 27 de janeiro de 1995. Série
C, nº 21.
115
Opinião Consultiva OC-14/94 de 9 de dezembro de 1994.
28
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Devido à sua universalidade, os direitos humanos necessitam de proteção integral por parte
dos Estados, de modo que não se pode admitir qualquer violação a estes baseadas em
peculiaridades meramente culturais 116.
Não obstante a ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos e de todos os
demais instrumentos interamericanos na matéria, Elizabetia descumpre o artigo 2º da CADH,
quando não adéqua seu aparato legal à Convenção, mantendo em vigor normas evidentemente
discriminatórias.
III. SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA
1. Das reparações e das custas
Em virtude da responsabilidade internacional do Estado de Elizabetia pelas violações dos
artigos 2, 8.1, 11, 17, 24 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos e com base na já
consolidada jurisprudência da Corte acerca da obrigação do Estado, a presente demanda busca a
reparação dos danos às vítimas.
2. Dos pedidos
Ante o exposto, os representantes das vítimas vêm através desta, solicitar a esta honorável
Corte:
a) A declaração da responsabilidade internacional do Estado de Elizabetia pelas violações de
direitos humanos dos artigos 2, 8.1, 11, 17, 24 e 25, todos em relação ao art. 1.1 da CADH em
relação à Adriana Timor e Serafina Conejo Gallo;
b) Que seja outorgada a concessão de casamento para Adriana Timor e Serafina Conejo Gallo;
c) Que seja alterada a disposição legislativa do Código Civil de Elizabetia para que não mais
contenha as distinções discriminatórias de forma a igualar a todas as uniões, o status jurídico de
família 117;
116
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais: perspectiva prática no novo cenário mundial, p. 145.
29
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d) Que o Estado pague a justa indenização referente aos danos morais causados às vítimas 118;
e) Que o Estado de Elizabetia arque com as despesas processuais, tanto as referentes à
presente demanda junto à Corte IDH, quanto aos procedimentos internos 119;
f) Que o Estado publique em seu Diário Oficial e em outro periódico de ampla circulação
nacional, a sentença a ser ditada pela Corte, no prazo de seis meses contados a partir da
notificação da mesma 120;
g) Que o Estado reconheça, em ato público e na presença das mais altas autoridades, sua
responsabilidade internacional, de modo a servir de exemplo e garantir a não repetição de
qualquer das violações sofridas 121.
117
Corte IDH. Caso Palamara Iribarne vs. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Série C no. 135. Par. 254
Corte IDH. Caso Bulacio vs. Argentina. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 18 de Setembro de 2003. Série
C, nº 100, pars. 72 e 73; Corte IDH. Caso Ricardo Canese vs. Paraguai.Sentença de 31 de agosto de 2004. Série
no111, pars. 206 e 207. Corte IDH. Caso Claude Reyes e outros vs. Chile. Sentença de 19 de setembro de 2006. Série
C, no 151, par. 156; Corte IDH Caso López Álvarez vs. Honduras. Sentença de 01 de fevereiro de 2006. Série C, no
141, § 201.
119
Corte IDH. Caso Palamara Iribarne vs. Chile. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 22 de novembro de
2005. Serie C, nº 135, par. 242.
120
Corte IDH. Caso Carpio Nicolle e outros vs. Guatemala. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 22 de
novembro de 2004. Serie C, nº 117, par. 138.
121
Corte IDH. Caso Carpio Nicolle e outros vs. Guatemala. Fundo, Reparações e Custas. Sentencia de 22 de
novembro de 2004. Serie C, nº 117, par. 136.
118
30