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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
Davi José de Souza da Silva 1
RESUMO: O presente trabalho propõe uma leitura da história do direito internacional por meio das
chaves conceituais da teoria da Justiça de Nancy Fraser. Defendemos que o conceito de
sustentabilidade, ápice das deliberações globais sobre meio ambiente e desenvolvimento, é um
resultado normativo da política pós-westphaliana que, no âmbito jurídico, concretiza o princípio
político democrático radical de Nancy Fraser da igualdade de participação paritária na vida social em
âmbito transnacional.
Palavras-Chave: direito internacional, sustentabilidade e política.
1.
Retrospectiva histórica do direito internacional ambiental: rumo à sustentabilidade.
Em nossa época de riscos intersubjetivamente compartilhados (HABERMAS, 2000)
as questões ambientais tornaram-se importantes e estabeleceram uma agenda política que
desde seus primeiros movimentos ultrapassou as fronteiras nacionais. Em seus registros
históricos o meio ambiente se tornou questão de direito internacional público a partir do fim
do século XIX e início do século XX. O internacionalista ambiental Guido Fernando Silva
Soares (2003, p. 15) entende que no fim do século XIX não há consciência da necessidade em
preservar a natureza e seus recursos naturais, bem como constata uma cegueira das ciências
naturais e exatas para com o problema ambiental. Aduz o internacionalista que as primeiras
regulamentações desse período tinham finalidade estritamente econômica, sendo por isso
desconsideráveis do ponto de vista ambiental, uma vez que não levavam em consideração as
relações ecológicas sistêmicas entre animais e vegetais, bem como a conservação de seus
habitat (SOARES, 2003, p. 16).
Desse período, Allain Pellet e Patrick Dallier (2002, p. 1327-1328) apontam uma
série de tratados, convenções internacionais e decisões arbitrais que procuraram regulamentar
a proteção da fauna e flora (marinhas e terrestres): Caso das Focas para extração de peles no
1
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Bolsista CAPES. Mestre em
Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Professor de Teoria Geral do Estado e Ciência
Política da Faculdade de Castanhal. Email: [email protected].
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
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Mar de Behring, 1893; Acordo de 30 de maio de 1983 entre Grã-Bretanha e Rússia, sobre
proteção às otárias no pacífico norte; e a Convenção de Paris de 1902, proteção de aves
úteis. Temos uma relação de tratados internacionais cujo principal objetivo era proteção dos
estoques de recursos naturais. Ainda, não se tratava de uma articulação preocupada com o
meio ambiente em termos globais, pois não se assentava na deliberação consciente da
interdependência de diversos elementos do ecossistema, assim como:
(...) os princípios enunciados em cada uma das convenções adotadas não
estão ligados a qualquer concepção jurídica global e estes instrumentos não
formam um conjunto normativo coerente, cuja unidade seja assegurada por
alguns grandes princípios gerais que permitem apreendê-los como um ramo
distinto do Direito Internacional. (PELLET et al., 2002, p. 1328).
Esse diagnóstico da ausência de um corpo coerente e sólido de regras internacionais
sobre o meio-ambiente perdurou ainda no período Entre-Guerras (1919-1945). Embora Guido
Fernando Silva Soares (2003, p. 18-22) observe o aumento da percepção sobre a necessidade
de interdependência e cooperação internacional, da profusão de debates científicos
internacionais2 e da contribuição dos foros e organismos internacionais, OIT, por exemplo, o
direito internacional do meio ambiente ainda não estava consolidado. De importante destaque
nessa etapa transitória é o caso da Fundição Trail (Estados-Unidos v. Canadá, 1941), pelo
fato de ser, segundo Guido Fernandes Soares (2003, p. 21), “a primeira manifestação pública
e solene da existência” de normas internacionais ambientais. Foi com esse procedimento
arbitral que restou consignado em sentença3 a responsabilidade ambiental dos Estados pelos
danos causados ao meio ambiente: “Nenhum Estado tem o direito de usar ou permitir o uso de
seu território de tal modo que cause dano em razão do lançamento de emanações ao território
de outro”.
As bases do futuro direito ambiental estavam lançadas. Com o pós-guerra e
desenvolvimento das economias a nível global, emerge a preocupação cada vez mais
massificada com o meio ambiente. Por meio da consolidação da Organização das Nações
Unidas, como espaço de deliberação e ação internacionais, as questões ambientais ganham
tônus e capilaridade. Tanto o avanço industrial tecnológico dos países ricos quanto à
ampliação das Nações Unidas face à incorporação de vários Estados asiáticos e africanos após
as lutas pós-coloniais, contribuíram para que as questões ambientais passassem a ser debatidas
2
I Congresso Internacional para a proteção da natureza, Paris, 1923.
3
Para leitura do tratado que estabeleceu o procedimento arbitral e a sentença do caso conferir o endereço
eletrônico: http://untreaty.un.org/cod/riaa/cases/vol_iii/1905-1982.pdf
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nos foros internacionais (SOARES, 2003, p. 28). Adentra a agenda de organizações
governamentais e não governamentais temas como: a poluição transfronteiriça, poluição dos
mares e oceanos 4 , proscrição da experiência com armas nucleares na atmosfera, espaço
cósmico e águas5, não proliferação de armas nucleares6 (SOARES, 2003, p. 28-36).
Todos esses elementos conduziram para o marco divisor de águas quanto à questão
da proteção jurídica do meio ambiente: A Conferência de Estocolmo de 1972 (PELLET et al,
2002, p. 1328; REDGEWLL, 2007, p. 659; SOARES, 2003, p. 46). Essa conferência é o
resultado da internacionalização do debate ambiental em função da percepção de que somente
mediante a cooperação internacional poderia o meio ambiente ser protegido e de que para tal
fim necessário se fazia a harmonização das legislações nacionais em prol de uma política
ambiental global (SOARES, 2003, p. 39-40). Dessa feita, a Conferência de Estocolmo de
1972 foi:
Encarada pela Assembléia-Geral dede 1968 (Res. 2398, XXIII) – devia
então incidir sobre o meio humano, a Conferência foi cuidadosamente
preparada e reuniu 113 Estados participantes (a maior parte dos países
membros do COMECON não estavam presentes por acreditar fazer figuras
de acusados) assim como muitas numerosas O.N.G., fenômeno aliás pouco
frequente, salvo em matéria de direitos do homem – a sua presença
testemunha, aliás, o interesse da sociedade civil pelo tema da reunião e da
proximidade desta com os direitos do homem: a Declaração final confirmálo-ia. (PELLET et al, 2002, p. 1329).
Embora o número de participantes relatados acima seja surpreendente, não se pode
deixar de relatar que além da inclusão necessária a toda deliberação pública, a divergência e
contraposições de propostas e ideia também fez parte dos debates de Estocolmo. Guido
Fernandes Soares (2003, p. 42) nos relata que nos momentos introdutório da Conferência já se
poderia identificar dois grupos antagônicos. De um lado os países desenvolvidos defenderiam
uma regulação maior para a poluição das águas, solos e atmosferas, sobretudo diante da
situação gravosa da época. Na outra margem, estariam os países em desenvolvimento, cuja
maior preocupação era a manipulação dos termos do futuro tratado como forma de
intervenção em sua recém adquirida soberania nacional, bem como vedações à possibilidade
4
Por exemplo: Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por danos causados por poluição de óleo,
1969; Acordo Tovalop (Tanker Owners Voluntary Agreement Concerning Liability for Oil Pollution), Londres
1969.
5
Tratado de Moscou, 1963.
6
Comissão de desarmamento da ONU, 1º de julho de 1968; Tratado de proibição de colocação de armas
nucleares e outras armas de destruição de maciça no leito do mar e oceano nos respectivos subsolos, Londres,
Moscou e Washington, 1971.
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de desenvolvimento econômico, mantendo-se, assim, a divisão entre países industrializados e
não industrializados.
A questão ambiental também não ficaria apenas adstrita às disputas geopolíticas das
razões de Estado. O debate polarizado entre países desenvolvidos e países em
desenvolvimento também toca o ponto do desenvolvimento social. A questão ambiental
conseguiu canalizar para a Conferência questões em torno da igualdade de participação nos
resultados do desenvolvimento econômico. A repartição dos benefícios da riqueza para a
sociedade seria condição primordial para a proteção do meio ambiente. Neste sentido, é
contundente a citação de Guido Fernando Silva Soares (2003, p. 43) do relatório brasileiro
sobre os debates da época, abaixo:
A melhoria da qualidade de vida ambiental nos países em desenvolvimento
dependeria da obtenção de melhores considerações de saúde, educação,
nutrição e habitação, apenas alcançáveis através do desenvolvimento
econômico. As considerações ambientais deveriam, portanto, ser
incorporadas ao processo de desenvolvimento integral.7
Desse amplo debate entre Estados, cidadãos e organizações não governamentais
resultou:
Uma colheita de textos densos e heterogêneos adotados por aclamação com a
abstenção da China: quatro resoluções sobre estes pontos particulares, 109
recomendações destinadas a constituir o um plano de ação e, sobretudo, uma
Declaração comportando uma proclamação em sete pontos, a que não falta
um sopro normativo limitado, e 26 princípios traduzindo a convicção comum
dos participantes. (PELLET et al, 2002, p. 1329)
Dentre estes textos, a Declaração de Estocolmo de 1972 passa a ser uma norma que
dá sentido, unidade e sistematicidade ao direito ambiental internacional e nacional. Allain
Pellet e Patrick Dallier (2002, p. 1339) destacam o sentido de norma fundamental que esta
assume ao destacar que:
- A Declaração de 1972 é o resultado consolidado das práticas e princípios
ambientais que estavam dispersos setorialmente nos tratados, convenções e
julgados sobre o meio ambiente;
- A Declaração de 1972 federa, unifica e dá sistematicidade ao conjunto de
princípio e regras públicas internacionais sobre o meio ambiente;
- A Declaração de 1972 ultrapassa a sua esfera de validade, passando não
apenas a regular questões ambientais, mas contribuindo para ampliar o
7
Brasil. Presidência da República. Comissão Interministerial para preparação da Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CIMA). O desafio do desenvolvimento sustentável, p. 181 apud
Guido Fernando Silva Soares (2003, p. 43).
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conceito de ambiente, formatando a ideologia dos 4D (desenvolvimento,
direitos humanos, desarmamento e descolonização);
Em suas considerações preliminares a Declaração de 1972 proclama a capacidade
humana para a transformação do meio ambiente natural e artificial e sua importância enquanto
condição indispensável ao bem-estar e gozo dos direitos humanos fundamentais. Alerta para
os perigos da utilização indiscriminada dos recursos naturais, bem como da abrangência
global dos riscos e danos da atividade econômica que não leva em consideração a proteção
ambiental. Estabelece a ligação conceitual entre desenvolvimento social e proteção ambiental
ao ligar os problemas ambientais dos países subdesenvolvidos à pobreza, falta de alimentação,
educação, vestuário e habitação. Reforça a necessidade de justiça social entre os povos,
declarando a necessidade de esforço por parte dos países desenvolvidos em diminuir a
distância econômica entre os povos. Aduz o imperativo da justiça transgeracional por meio da
necessidade de preocupação com as gerações futuras. Ao final, convoca a participação das
instituições governamentais, não governamentais, empresas e cidadãos para atuar de forma
responsável e diligente na proteção do meio ambiente, seja por meio da harmonização das
legislações seja por meio da fiscalização.
Da leitura da Declaração de Estocolmo, destacamos o seu primeiro princípio que
estabelece o direito fundamental à qualidade de vida e meio ambiente8, proteção das gerações
futuras, a proibição da segregação social e autodeterminação dos povos. Já os princípios de n.
02, 03, 04, 05 e 06 implicam na exploração planejada, regular, conservativa e preocupada com
as gerações futuras dos recursos naturais renováveis e não renováveis. Por sua vez o 7º
princípio retoma a responsabilização dos Estados por danos causados aos mares e oceanos. Os
princípios de n. 08 a 10 estabelecem a necessidade do desenvolvimento social e redução da
pobreza como formas de implementar e garantir o direito fundamental à qualidade de vida e
meio ambiente. No que tange a redistribuição de riqueza e desenvolvimento econômico, os
8
Como observa José Afonso da Silva (2003, p. 58) o direito fundamental a qualidade do meio ambiente decorre
de compreensão da necessidade de proteção ao meio ambiente como uma preocupação de todos. Decorre do
reconhecimento da preservação da “Natureza em todos os seus elementos essenciais à vida humana e à
manutenção do equilíbrio ecológico”, por isso “visa tutelar a qualidade do meio ambiente em função da
qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana”. Na explicação do
constitucionalista “encontramo-nos, assim, (...), diante de uma nova projeção do direito à vida, pois neste há de
incluir-se a manutenção daquelas condições ambientais que são suportes da própria vida, e o ordenamento
jurídico, a que compete tutelar o interesse público, há que dar uma resposta coerente e eficaz dessa nova
necessidade social”.
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princípios 11 e 12 firmam a necessidade de cooperação econômica e a preocupação com as
circunstâncias desiguais dos países em desenvolvimento.
A responsabilidade primária dos Estados e a ação planejada ficam consignados dos
princípios 13 a 17. O fomento da educação, ciência e tecnologia para redução das
desigualdades sociais e defesa do meio ambiente são contempladas pelos princípios 18 ao 20.
A cooperação internacional e a autodeterminação dos povos são objeto dos princípios 21 ao
25. Ao final, a paz adentra a Declaração quando se firma como meta a abolição do uso de
armas nucleares e todos os demais dispositivos de destruição em massa.
Além dos aspectos normativos, os resultados da Conferência de Estocolmo de 1972
foram importantes para o estabelecimento de um direito global administrativo do meio
ambiente. Nela foram criadas estruturas administrativas para concretizar as medidas
programáticas. Na conferência foram aprovadas resoluções sobre os aspectos financeiros e
organizacionais no âmbito da ONU e uma resolução criando o Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente – PNUMA, órgão subsidiário da Assembleia Geral, composto por um
conselho de administração de 58 membros, delegados dos Estados, e de um secretariado
integrado por 181 administradores, funcionários internacionais, com sede em Nairóbi, Quênia
(SOARES, 2003, p. 44).
O impacto da Declaração de Estocolmo de 1972 é comparável ao da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, como aponta Guido Fernandes Silva Soares (2003,
p. 45), uma vez que:
(...) ambas as declarações têm exercido o papel de verdadeiros guias e
parâmetros na definição dos princípios mínimos que devem figurar seja nas
legislações domésticas dos Estados, seja na adoção dos grandes textos do
direito internacional na atualidade. Por outro lado, ambas as declarações
cumprem função própria dos grandes textos de natureza fundamental da
humanidade, qual seja de petrificar em textos escritos e solenes aqueles
valores que já se encontravam estabelecidos nos sistemas jurídicos da
maioria das nações e nas relações internacionais recíprocas, ao mesmo
tempo em que declaram outros valores que constituem novidade e
representam exteriorizações da emergente consciência de necessidade da
preservação do meio ambiente global. (SOARES, 2003, p. 45).
Sucedâneo de suas diretrizes é a ampliação do número de tratados internacionais
sobre o meio ambiente (SOARES, 2003, p. 47). Como Catherine Redgwell (2007, p. 660)
elucida, após a Declaração de Estocolmo de 1972 houve um maior estímulo e aumento de
tratados internacionais (regionais e globais) sobre o meio ambiente, sobretudo quanto à
proteção do meio ambiente marinho. Ainda, após a Declaração de Estocolmo de 1972 foram
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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
realizados importantes avanços em relação à proteção da cultura (Convenção da UNESCO de
1972 para proteção do patrimônio mundial cultural e natural), assim como para com a
proteção das espécies.
Vinte anos após Estocolmo, a comunidade internacional retomaria o tema do meio
ambiente com a mesma preocupação da necessidade de ação global sobre o tema na
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – 1992 realizado
na cidade do Rio de Janeiro. Allain Pellet e Patrick Daillier (2002, p. 1330) destacam que
estiveram presentes 178 delegações, das quais 117 foram conduzidas por um Chefe de Estado
ou Governo, valendo ao evento a alcunha de “Cimeira da Terra” (MILARÉ, 2009, p. 1210;
PELLET et al, 2002, p. 1330; SOARES, 2001, p. 76). Na história do evento os
internacionalistas destacam que:
A sua preparação estende-se por uma dezena de anos. Em 1983 a
Assembleia-Geral por iniciativa do P.N.U.E, instituiu uma comissão
encarregada de propor estratégias a longo prazo para assegurar o
desenvolvimento sustentado daqui até o ano de 2000 e para além disso. Tal é
a origem do Relatório Brundtland (Nosso futuro para todos, 1987), em nome
do Presidente da Comissão que se encarrega desta missão e constitui a fonte
de inspiração essencial da Conferência, cujo desenvolvimento não foi menos
marcado por menos vivas oposições entre os diversos grupos de Estados e
entre estes e as O.N.G representadas em força na Conferência. (PELLET et
al, 2002, p. 1331).
A ECO-92 foi precedida por uma série de eventos ambientais catastróficos 9 que
proporcionaram a possibilidade de uma sinergia pública entre os Estados cumulada com a
pressão da opinião pública sobre a diplomacia, como relata Guido Soares (2003, p. 51-52).
Mas não apenas a questão da proteção ambiental seria o tema da conferência. Com o fim da
Guerra-Fria, a discussão sobre a necessidade de uma “nova ordem econômica mundial” seria
polarizada entre os países desenvolvidos (Norte) e os países em desenvolvimento (Sul)
(SOARES, 2003, p. 52):
(...) As oposições e contrastes entre os países industrializados e os países em
vias de desenvolvimento ganhariam dimensões ambientais, dos mais
variados tipos, a exemplo: os esforços daqueles países industrializados,
responsáveis pela poluição global da atmosfera, derivada da industrialização
caótica dos séculos anteriores, de estabelecerem níveis de práticas
preservacionistas (diga-se, à guisa de ilustração: o congelamento da
instalação de mais polos petroquímicos, ou de outros polos da moderna
industrialização pelo mundo, a fim de evitar-se o lançamento na atmosfera
da terra de gases tóxicos ou daqueles denominados greenhouse gases, que
aumentaram a temperatura da Terra, agindo como se criassem um efeito
9
Um bom inventário desses acidentes ambientais é feito por Guido Fernandes Soares (2003, p. 48-51). Dentre as
ocorrências sinistras, destacamos o acidente nuclear da Usina de Tchernobyl, Ucrânia, em 1986.
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estufa; ou ainda, a proibição da destruição de extensas florestas tropicais, a
fim de preservar o “pulmão” do mundo), em tudo prejudicando os interesses
dos países em vias de desenvolvimento. No fundo emergiu a oposição
política, entre, de um lado, continuarem os Estados industrializados suas
práticas, e de outro, criarem-se santuários de purificação, verdadeiros
“zoológicos ambientais”, ou “jardins botânicos continentais”, estáticos e
preservados, nos países em vias de desenvolvimento. (...) (SOARES, 2001,
p. 71).
Como destaca a doutrina internacionalista ambiental (SOARES, 2001, p. 71;
SOARES, 2003, p. 52; PELLET et al, 2002, p. 1331) o tema do desenvolvimento econômico
foi um elemento que marcou a ECO-92, distinguindo-a acentuadamente da Conferência de
Estocolmo de 1972. Após os preparativos autorizados pela Resolução 44/228 de 1989 da
Assembléia-Geral das Nações Unidas, assim como da articulação política dos países latinoamericanos (Plataforma de Tlatelolco de 07 de março de 1991), dentre outros eventos
preliminares (SOARES, 2003, p.53-54), a ECO-92 se realiza consolidando a ligação entre
meio ambiente e desenvolvimento (REDGWELL, 2007, p. 661)10:
A Rio 92, em que se oficializou a expressão desenvolvimento sustentável, foi
convocada para que os países dessem conta da necessidade de reverter o
crescente processo de degradação do Planeta, mediante a consideração da
variável ambiental nos processos de elaboração e implementação de políticas
públicas e da adoção, em todos os setores, de medidas tendentes a garantir a
compatibilização do processo de desenvolvimento com a preservação
ambiental. (MILARÉ, 2009, p. 1209)
Da Conferência do Rio em 1992 foram produzidos os seguintes resultados
(MILARÉ, 2009, p. 1210; PELLET et al, 2002, p. 1331; REDGWELL, 2007, p. 661;
SOARES, 2001, p. 76-77; SOARES, 2003, p. 56-57):
- Elaboração e subscrição de três documentos principiológicos do direito
internacional do meio ambiente: i. Declaração do Rio de Janeiro sobre o
Meio Ambiente e Desenvolvimento, ii. Declaração de Princípios sobre as
Florestas e iii. Agenda 21;
- Duas convenções multilaterais: i. Convenção-Quadro das Nações Unidas
sobre Mudança do Clima e ii. Convenção sobre Diversidade Biológica;
10
Além do Relatório Brundtland, outra fonte do conceito de desenvolvimento sustentável anterior a ECO92 é o
caso Gabcikovo-Nagymaros Project julgado em 1997, como destaca Edis Milaré (2009, p. 1209).
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- A adoção de compromissos de Estado, gentlemen agreements11, ligados à
determinação
da
agenda
para
reuniões
diplomáticas
multilaterais
coordenadas pela ONU.
Além dos aspectos programáticos, medidas administrativas globais (KINGSBURY,
2004) foram adotadas com a criação da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável, cuja
missão é monitorar a concretização da Declaração do Rio e da Agenda 21, sendo uma
medida, segundo Guido Fernando Silva Soares (2003, p. 60), de “remediar aquelas
dificuldades de implementação das ações votadas pelos Estados internacionalmente”. Dentre
as suas atribuições fundamentais, a Comissão para o Desenvolvimento Sustentável gerencia
os pedidos de financiamento ligados às atividades ambientais (SOARES, 2003, p. 58).
No aspecto dos compromissos normativos estabelecidos pela Declaração do Rio de
1992 é importante destacar para os objetivos deste trabalho que ela foi:
Mais rigorosamente centrada sobre a dupla ambiente/desenvolvimento, só se
dirige aos direitos do homem na medida em que eles estão aqui directamente
ligados (direito ao desenvolvimento, direito do ambiente). Além disso,
confirmando-se a ligação dos participantes ao princípio da soberania
(princípio 2º) e fazendo do Estado o destinatário quase único dos princípios
que ela enuncia, a Declaração é menos estatista que a de Estocolmo, cujos
apelos apoiados na planificação são apagados. Em contrapartida, o direito
público à informação, que não pode ser reconhecido em Estocolmo é-o no
Rio (princípio 10.º). (PELLET et al, 2002, p. 1331).
Além de reconhecer os princípios normativos fundamentais do direito internacional
do meio ambiente (SOARES, 2003, p. 63), bem como, sob o prisma jurídico, seus conceitos
serem objeto de enunciados mais rigorosos e mais sistemáticos (PELLET et al, 2002, p.
1331), a Declaração do Rio de 1992 inova com sua
(...) preocupação com a disparidade existente entre as nações e, sobretudo,
com o enfoque de realizar-se o desenvolvimento sustentável entre todos os
Estados. Em definitivo, consagrou-se a regra de que quaisquer políticas e
normas legais que os Estados viessem a adotar, nos respectivos
ordenamentos jurídicos nacionais e nas suas relações internacionais, em
quaisquer campos, deveriam estar indelevelmente marcadas com o sinal da
preocupação com a dimensão de proteção ao meio ambiente. (SOARES,
2003, p. 64)
11
Como leciona Guido Fernandes Silva Soares (2003, p. 57), Gentlemen’s Agreement “é um acordo informal
entre os negociadores, representantes dos Estados, de prosseguirem-se negociações futuras, a partir de normas já
acordadas, considerando-se estas como definitivas”.
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Definitivamente a Declaração do Rio de 1992 estabelece a ligação indissolúvel da
ação estatal com o desenvolvimento sustentável, pois em seus 27 princípios estão contidos um
compromisso com:
(...) um novo modelo de desenvolvimento, fundado na utilização sustentável
dos recursos ambientais, no respeito à capacidade do Planeta de absorção de
resíduos e de efluentes líquidos e gasosos poluentes e, por fim, na
valorização da qualidade ambiental como requisito imprescindível à
qualidade de vida, que somente pode ser proporcionada através da
solidariedade socioeconômica e da cooperação técnico-científica entre os
povos. (MILARÉ, 2009, p. 1210).
Como bem sintetizam os internacionalistas Allain Pellet e Patrick Dallier (2002,
1331):
A Declaração do Rio consuma a globalização do Direito Internacional do
ambiente, que a de Estocolmo tinha sido a primeira a tentar sistematizar. Isso
traduz-se pela trilogia desenvolvimento sustentado (princípio 1º.), satisfação
equitativa das necessidades das gerações presentes e futuras (princípio 3.º) e
responsabilidades comuns mas diferenciadas (princípio 7.º)
Por sua vez a Agenda 21 representa uma lista de prioridades para os Estados. Tratase de um documento “programático a ser implementado pelos governos, pelas agências de
desenvolvimento, pela Organização das Nações Unidas e por grupos setoriais independentes”
(MILARE, 2009, 1210-1211). Quanto à sua juridicidade, a Agenda 21 não é uma declaração,
tampouco uma convenção internacional. Na lição de Guido Fernandes Silva Soares (2003, p.
67) a Agenda 21 é um ato normativo resultante do expansão da “diplomacia multilateral,
exercida nas organizações internacionais, sob a égide de um dever geral de cooperação entre
os Estados”. Para o internacionalista a Agenda 21 é uma soft law,
(...) ou seja, atos normativos que criam obrigações menos impositivas aos
Estados (portanto, acompanhados de sanções brandas, com o objetivo de se
tornar mais suscetível de adoção pelos Estados), em tudo assimiláveis às
tradicionais e obrigações naturais do velho direito civil de família , do direito
romano-germânico. (SOARES, 2003, p. 67).
Quanto ao seu conteúdo, não podemos deixar de concordar com a doutrina sobre a
complexidade do texto da Agenda 21. Ela prevê um programa global para todos os países
(desenvolvidos e em desenvolvimento) cujas prioridades são listadas por Guido Fernandes
Silva Soares apud Edith Brow Weiss (2003, p. 68), dentre as quais destacamos:
- Alcançar o desenvolvimento sustentável, pela integração de conceitos de
meio ambiente e desenvolvimento, dentro de processos decisórios;
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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
- Lutar por um mundo equitativo, pelo combate a pobreza e pela proteção da
saúde humana.
Por último, face às necessidades de nosso trabalho, cumpre descrever ainda
acompanhando Guido Fernandes Silva Soares (2003, p. 69) as dimensões que organizam o
texto da Agenda 21:
Seção I – dedicada às dimensões social e econômica do desenvolvimento
sustentável, tais como: cooperação internacional e políticas nacionais para
acelerar o desenvolvimento sustentável em países em desenvolvimento;
combate à pobreza; mudança de padrões de consumo; a dinâmica e
sustentabilidade demográficas; proteção e promoção da saúde humana;
desenvolvimento de estabelecimentos humanos; integração do meio
ambiente e desenvolvimento no processo decisório dos Estados;
Seção II – dedicada a conservação e gestão de recursos naturais para o
desenvolvimento. Inclui: proteção da atmosfera; desertificação e seca;
proteção e gestão de oceanos; gestão e gerenciamento de água doce; a
questão dos resíduos perigosos e químicos tóxicos e de resíduos radiativos;
diversidade biológica; controle do desfloramento; gestão e planejamento
integrado do solo; proteção dos ecossistemas montanhosos; promoção da
agricultura sustentável e desenvolvimento rural;
Seção III – trata do fortalecimento do papel dos grupos sociais na
implementação do objetivo sustentável: o papel das mulheres, da juventude,
das crianças, dos indígenas, das ONG’s, das autoridades locais, dos
trabalhadores e sindicatos, do setor empresarial e industrial, dos agricultores
e dos integrantes da comunidade científico-tecnológica;
Seção IV – refere-se aos meios de implementação da Agenda 21, tema dos
mais difíceis negociados no Rio de Janeiro. Além de capítulos sobre
recursos e mecanismos financeiros; Transferência, Cooperação e
Capacitação Tecnológica. Arranjos Institucionais Internacionais; e
Instrumentos e Mecanismos Jurídicos Internacionais.
Para fechar o ponto, não podemos deixar de concordar que a Agenda 21 é mais
detalhada, sistemática e operacional que o plano de ação da Conferência de Estocolmo de
1972, uma vez que prevê arranjos institucionais de acompanhamento (PELLET et al, 2002, p.
1331). Diante dessas razões, podemos entender que a ECO-92:
Da mesma forma como a Conferência de Estocolmo de 1972, a ECO/982 já
deixou sua marca na evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente.
Da ECO/92 em diante, tal como se contou com um marco importante na
política internacional dos Estados no relativo ao meio ambiente, em 1972, a
partir da Conferência do Rio de Janeiro em 1992, em particular pela
mudança da ênfase no conteúdo de suas normas, o Direito Internacional do
Meio Ambiente passará a consagrar o enfoque da necessidade de
regulamentações que deem maior vigor ao conceito de justiça nas relações
internacionais. (SOARES: 2001, p. 85)
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
2013.
86
Davi José de Souza da Silva
Imbricado na busca pela justiça entre os povos está o conceito de desenvolvimento
sustentável, pois é por meio dele que se pode pensar:
(...) o reconhecimento da disparidade entre os Estados na atualidade, no que
se refere ao dano ambiental mundial e à disponibilidade de meios humanos,
materiais, tecnológicos e financeiros para repará-lo ou evitá-lo. Tal política,
na atualidade, pelo menos na retórica dos países em desenvolvimento,
tenderia a ser identificada com o conceito político e diplomático de
desenvolvimento sustentável, conceito anunciado em vários Princípios da
Declaração do Rio e nos preâmbulos e diversos dispositivos de ambas as
Convenções assinadas durante a ECO/92. (SOARES, 2001, p. 85).
De Estocolmo em 1972 ao Rio em 1992 podemos ver que os problemas ambientais
foram canalizados e redimensionados em um nível que ultrapassa os conceitos e elementos
clássicos da Teoria do Estado moderno. Após 1992, as grandes conferências e reuniões
internacionais foram desdobramentos dessa construção e consciência global sobre os riscos
comuns que a humanidade está sujeita face o consumismo desmedido, industrialização sem
regras e desigualdades sociais advindas do passado imperialista e colonial ainda não
corrigidas no presente. Protocolo de Kyoto, Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento
Sustentável de Joanesburgo de 2002, e finalmente a Rio + 20 reiteraram as linhas
programáticas desse período criativo e inovador na política.
2.
A Justiça para além do frame Keynesiano-Westphaliano no pensamento de Nancy
Fraser.
A história do direito internacional do meio ambiente claramente revela que os
elementos da teoria clássica do Estado foram mitigados à luz das demandas globais sobre o
meio ambiente e desenvolvimento sustentável. Quando tratamos da relativização da soberania
e da necessidade de interdependência entre os Estados a literatura é bastante vasta. Na
segunda parte desse trabalho iremos abordar essas questões, mas com um enfoque diferente.
Para nós interessa como as demandas por justiça social oriundas dos individuos podem ser
redimensionadas num mundo globalizado. Por meio da história do direito internacional
público queremos saber como os indivíduos podem articular suas exigências por justiça.
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
2013.
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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
Para tanto, iremos acompanhar o pensamento da filosofa Nancy Fraser12, que nos
propõe a superação da política kenesiana-westphaliana em prol de uma esfera pública
transnancionalizada, capaz de atender as demandas por redistribuição, reconhecimento e
participação política. Em sua obra Scales of Justice: reframing political space in a globalizing
World (2010) Nancy Fraser fornece uma série de chaves conceituais por meio das quais
podemos ler e entender a história do direito internacional do meio ambiente como um sinal da
necessidade de uma nova configuração política de um mundo global.
Segundo Nancy Fraser (2010, p. 12) as demandas de justiça conseguiram ser
acomodadas no interior do modelo Keneysiano-Wesphaliano. Este modelo estaria pautado nos
pilares da soberania nacional dos Estados territoriais modernos. A gramática dos argumentos
sobre justiça eram formulados levando-se em conta a relação entre os cidadãos nacionais de
um dado Estado nacional. Assim, as principais demandas por Justiça, redistribuição e
reconhecimento, conseguiram ser acomodadas pelo modelo de bem-estar social facilitado
pelas diretrizes de Bretton Woods. Nesse aspecto o imaginário político Westphaliano, se
utilizando da consciência nacional, conseguia dar vazão as demandas por reconhecimento e
redistribuição, pois, no âmbito de um Estado nacional, os nacionais devem ser igualmente
reconhecidos em suas culturas e identidades, assim como devem ter acesso aos mesmos
recursos e bens para poderem participar da interação social como membros plenos de uma
comunidade política.
Porém, o mundo globalizado afronta os indivíduos com problemas oriundos de
forças transnacionais, como o HIV-Aids, terrorismo internacional, e, conforme demonstramos
acima, os problemas sócio-econômicos-ambientais. Esses elementos todos gerando um novo
senso de vulnerabilidade, cujas soluções capazes de constituir uma boa vida não comportam
mais as possibilidades do frame westphaliano. Nesse sentido, na história dos movimentos
sociais podemos ver que tanto as demandas por redistribuição, quanto as demandas por
reconhecimento passaram a ultrapassar as fronteiras dos Estados nacionais (FRASER, 2010,
p. 14). A gramática dos argumentos de justiça passou por um reformulação deixando de ser
apenas uma disputa em torno do conteúdo material da Justiça, o quê (What) para um quem
(Who), pois num mundo globalizado resta posta a pergunta sobre quem (Who) deve contar
como um membro da comunidade política (FRASER, 2010, p. 15).
12
Professora de Filosofia da New Scholl of Social Sciences.
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
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Davi José de Souza da Silva
Nancy Fraser (2010, p. 15) então nos apresenta uma análise da atual gramática dos
argumentos sobre Justiça, agora, dividida em três classes: uma primeira que envolve questões
de primeira ordem, questões ligadas ao quê da Justiça (What), ou seja, ao conteúdo material
da Justiça13; uma segunda classe, questões de segunda ordem (second-order ou meta-level
questions), ligadas aos destinatários da Justiça, ou seja, o quem (Who) da Justiça; e uma
terceira classe ou dimensão ligada ao como (How) da Justiça, ou seja, como as questões sobre
a Justiça, sejam elas envolvendo a redistribuição ou reconhecimento, podem ser
redimensionadas levando em conta que os destinatários da Justiça não apenas os cidadãos
nacionais. Quanto à última dimensão, Nancy Fraser propõe uma teoria tridimensional da
Justiça, na qual se incorpore a dimensão política da representação em conjunto com a
dimensão econômica e a dimensão do reconhecimento. A configuração tridimensional da
Justiça, segundo Nancy Fraser (2010, p. 16) nos levaria a uma teoria pos-westphaliana da
justiça democrática.
Essa composição tridimensional da Justiça seria capaz de realizar o que Nancy Fraser
entende ser o núcleo fundamental da Justiça: a paridade de participação nas interações
sociais. A realização da Justiça depende, nessa visão radical da democracia, “de arranjos
sociais que permitam a todos participar como pares na vida social”. Nesse sentido, superar as
injustiças implica em desmantelar as estruturas e arranjos institucionais que não permitem a
realização desse princípio, ou seja, que não permitem que os sujeitos participem em pé de
igualdade com os demais nas interações sociais (FRASER, 2010, p. 16). Nas sociedades
capitalistas, as pessoas podem ser impedidas de participar como pares plenos na vida social
por injustiças ligadas à ausência de redistribuição (misredistribution) – dimensão econômica,
ausência de reconhecimento (misrecognition) – dimensão cultural e ausência de representação
política (misrepresentation) – dimensão política – nas instâncias decisórias de uma
comunidade política (FRASER, 2010, p. 16-17).
As duas primeiras dimensões, segundo Nancy Fraser (2010, p.16), não tem uma
ordem de predominância uma sobre a outra. As demandas por redistribuição econômica,
ligadas aos problemas de estrutura de classe, interagem com as demandas por reconhecimento
nas sociedades capitalistas sem haver uma imbricação de uma sobre a outra. Assim, pode
haver demandas por redistribuição econômica por diferentes grupos culturais, como pode
13
Aqui questões sobre se o conteúdo da justiça é o reconhecimento e o igual respeito dos cidadãos ou quais são
os limites da desigualdade econômica permitidas pela Justiça.
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
haver demandas por reconhecimento nas diferentes classes sociais. Todavia, a dimensão do
político, no sentido específico (FRASER, 2010, p. 17) da participação do processo decisões
da ação estatal, embora Nancy Fraser não explicite isso, possui certo predomínio sobre as
outras dimensões, pois é neste âmbito que se decide o quê (What) será o conteúdo da Justiça,
bem como quem (Who) terá direito à (entitled) redistribuição e ao reconhecimento:
Ao estabelecer as regras da decisão, a dimensão política também estrutura os
procedimentos para situar e resolver demandas de dimensão tanto
econômicas quanto culturais: ela nos diz não apenas quem pode fazer
exigências por redistribuição e reconhecimento, mas também como [how]
tais exigências estão aptas a serem debatidas e implementadas14 pelo Estado
– tradução nossa.
A dimensão da política ainda revela especificidade importante para a análise de
Nancy Fraser. As injustiças causadas por ausência de representação (misrepresentation)
podem ser encontradas em dois níveis (2010, p. 18). No primeiro nível, denominado
ordinário (ordinary), a ausência de representação implica na impossibilidade dos sujeitos
participarem do processo decisório e da ação necessária para a concretização da vida em plena
igualdade de participação no âmbito interno dos Estados nacionais. Aqui, em termos bem
diretos, Nancy Fraser se refere aos problemas da democracia representativa como sistemas
eleitorais, votos diretos ou proporcionais, representação dos grupos vulneráveis e minorias na
Administração Pública, etc.
Por sua vez um segundo nível, menos claro e mais problemático no mundo
globalizado, se manifesta quando as “fronteiras da comunidade política são desenhadas de tal
forma que equivocadamente exclui certas pessoas de ter a chance de participar plenamente em
suas legítimas reivindicações sobre a Justiça” (FRASER, 2010, p. 19). Nesse caso, se opera a
ausência de um frame, ou seja, de um espaço público-estatal, ausência de um foro em que as
demandas por Justiça possam ser discutidas politicamente com vistas a realizar a igualdade de
participação paritária na vida social. Para esse nível de injustiça ainda pouco tematizado,
Nancy Fraser dá o nome de misframing.
Seus efeitos são perversos, uma vez que impede que os diretamente afetados pelos
problemas possam discutir adequadamente uma solução (FRASER, 2010, p. 19). A partir
dessa modalidade de injustiça ocorre uma espécie de morte política, uma vez que aqueles que
sofrem com as injustiças não podem decidir as soluções para os problemas que lhes afetam,
14
No original em língua inglesa adjudicated.
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
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Davi José de Souza da Silva
sendo apenas destinatários de caridade ou benevolência dos outros, pois estão privados da
possibilidade de debater questões de primeira ordem, tornando-se, assim, non-persons em
face da Justiça (FRASER, 2010, p. 20).
No contexto da Globalização, essa segunda forma (misframing) de ausência de
representação (misrepresentation) vem à tona na agenda política, pois uma série de problemas
são globais e afetam os indivíduos para além do âmbito territorial dos Estados nacionais. O
paradigma Keynesiano-Westphaliano não consegue mais dar conta de atender as demandas
dos cidadãos contra as injustiças, porque estas são causadas por fatores que ultrapassam os
limites das fronteiras territoriais e do exercício da cidadania ligada à pertença nacional.
Assim, o Estado nacional não é capaz de dar conta sozinho dos problemas globais, seja no
âmbito de sua ação, seja como espaço público de debate sobre como (How) debater e resolver
as questões de justiça de primeira-ordem.
Para superar essa terceira dimensão de injustiça (misrepresentation), seja no seu
nível ordinário, seja no seu nível mais profundo e exposto com a globalização (misframing),
Nancy Fraser (2010, p. 22) propõe a democratização do processo de construção dos espaços
políticos. Por meio da análise do que ela entende ser a política do frame, ou seja, as
reivindicações e disputas políticas de quem e em qual foro as discussões políticas serão
tratadas, Nancy Fraser distingui duas abordagens. A primeira é uma estratégia de contestação
do frame ao mesmo tempo em que adota a gramática Westphaliana.
Nesse caso, aqueles que sofrem injustiças por ausência de frame (misframing
injustices) procuram redesenhar as fronteiras do Estado clássico ou até mesmo reivindicar um
Estado nacional. A sua solução é, como explica Nancy Fraser, reafirmar o Estado territorial
como a unidade apropriada para serem postas e resolvidas as disputas sobre a Justiça. Em
síntese, são o grupo que adota uma estratégia afirmativa do frame baseada no princípio da
territorialidade estatal como base apropriada para determinar o Who da justiça (FRASER,
2010, p. 22).
Já uma segunda estratégia identificada por Nancy Fraser é a transformativa. Esta
propõe que o Estado territorial não é mais a base adequada para determinar o quem (Who) da
Justiça. Nesse grupo há o entendimento de que o princípio da territorialidade ainda é
importante, não sendo necessário eliminar inteiramente o Estado clássico. Porém, explica
Nancy Fraser, estes opõem que a gramática de reivindicações está fora de sincronia (out of
synch) com as causas estruturais das injustiças de um mundo globalizado, que em muitos
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
casos é sem raízes é não territorial. Esse segundo grupo entende que as causas estruturais das
injustiças não pertencem a um espaço físico dos lugares, mas, a um espaço de fluxos, a título
de exemplo: a. os mercados financeiros que determinam quem estará empregado ou não; b. as
redes de informações tecnológicas que determinam quem é incluído ou não na comunicação
global; c. a biopolítica do clima, doenças, fármacos que determinam quem viverá ou morrerá.
(FRASER, 2010, p. 23).
O problema dessa segunda corrente é que ela entende como ilegítimas as
reivindicações por justiça, pois tais exigências são formuladas em termos espaciais territoriais
localizados, enquanto, por sua vez, as injustiças não são produzidas por causas localizadas no
espaço. A consequência é que essa corrente, ao invés de mostrar as insuficiências do principio
da territorialidade, desqualifica as reivindicações por Justiça, tornando as causas estruturais da
injustiça, por sua fluidez, inalcançáveis pelos indivíduos que sofrem com suas mazelas. Ao
final, ao invés de servir de crítica a ausência de frame para debates globais ela reforça a
manutenção da inoperância do frame westphaliano. (FRASER, 2010, p. 23).
Diante desse quadro, a proposta de Nancy Fraser (2010, p. 24) é aprofundar a
estratégia transformativa, tornando-a uma estratégia de diferenciação pós-westphaliana em
que o princípio da territorialidade seja substituído pelo princípio de afetados, o qual sustenta
que aqueles que são afetados por uma dada estrutura social ou instituição tem a posição moral
(standing moral) de serem sujeitos destinatário da Justiça, assim:
Nesta visão, o que transforma um grupo de pessoas em sujeitos com laços de
justiça não é a proximidade geográfica, mas a sua co-imbricação num quadro
institucional ou estrutural comum que estabelece os fundamentos das leis
que regulam sua interação social, portanto, modelando suas respectivas
possibilidades na vida em padrões de vantagens e desvantagens. (FRASER,
2010, p. 24) – tradução nossa.
O princípio de todos os afetados é a força normativa das comunidades políticas.
Segundo Nancy Fraser destaca, esse princípio por algum tempo coincidiu com alguns Estados
territoriais, sobretudo os Estados desenvolvidos e nas lutas por emancipação dos Estados excolônias em relação às suas metrópoles. Porém, num mundo globalizado, destaca Nancy
Fraser, o princípio de todos os afetados entra em divergência em relação ao princípio da
territorialidade, passando a ser a base para as reivindicações contra a inoperância dos Estados
territoriais e a necessidade de construção de novos espaços de discussão e estruturas de ação
para a solução dos problemas de um mundo globalizado:
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Isto é precisamente o que alguns militantes da política transformativa estão
tentando fazer. Buscando lutar contra as fontes desterritorializadas da
ausência de distribuição e reconhecimento, alguns ativistas globais estão
apelando diretamente para o principio de todos os afetados para contornar a
divisão estatal-territorial do espaço político. Contestando sua exclusão pelo
frame Keynesiano-Westphaliano, ambientalistas e povos indígenas estão
reivindicando posicionar-se como sujeitos da Justiça em relação aos poderes
extra e não territoriais que interfere em suas vidas. Insistindo que a
efetividade de suas causas supera a territorialidade estatal, eles tem se
reunido com ativistas desenvolvimentistas, feministas internacionalistas,
dentre outros, em assegurar o seu direito de fazer reclamações contra as
estruturas que lhes causam dano, mesmo quando estas não podem ser
situadas em um espaço localizado. Rejeitando a gramática Westphaliana de
construção do frame, esses grupos de reivindicadores estão aplicando o
principio de todos os afetados às questões de justiça em mundo globalizado.
(FRASER, 2010, p. 25) – tradução nossa.
A consequência mais importante da aplicação do princípio de todos os afetados é a
democratização radical do processo de construção dos espaços de discussão e ação política
num mundo globalizado. Ao exigir o direito de participar na construção do frame político,
garantindo sua participação como sujeitos da Justiça, garantindo ser um quem destinatário da
Justiça, o processo de construção do frame passa por uma remodelagem ao ponto de agora
somente poder ser construído por meio da manifestação democrática. Da necessidade de
transformações do quem da Justiça uma nova dimensão se abre o como (How) se constrói a
Justiça. (FRASER, 2010, p. 26).
Uma nova dimensão da justiça se abre num nível meta-político correspondente ao
como (How) da Justiça. Nancy Fraser a exemplifica como a negativa da construção
democrática dos processos de construção do frame político, falhando, assim, em garantir a
institucionalização da paridade de participação no nível meta-político das deliberações e
decisões sobre o quem da Justiça. Seria uma ausência de representação meta-política (metapolitical misrepresentation) que surge quando os Estados e as elites transnacionais
monopolizam o processo de construção do frame político, negando voz àqueles que podem
sofrer dano no processo e bloqueando a criação de arenas democráticas. (FRASER, 2010, p.
26):
Em geral, portanto, lutas contra a ausência de frame estão revelando um
novo tipo de déficit democrático. Assim como a globalização tornou visível
as injustiças de ausência de frame, também as lutas transformativas contra a
globalização neoliberal estão tornando visíveis a injustiça da ausência de
representação meta-política. Ao expor a ausência de instituições nas quais
as disputas sobre o quem pode ser democraticamente ventilado e resolvido,
estas lutas estão focando sua atenção sobre o how. Ao demonstrar que a
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
ausência de tais instituições impede os esforços de superação das injustiças,
elas estão revelando uma conexão interna profunda entre democracia e
justiça. O efeito é trazer à luz a característica estrutural da conjuntura
presente: lutas por justiça num mundo globalizado não podem ser bem
sucedidas se elas não forem mãos em mãos uma luta por uma democracia
meta-politica. Neste nível, também, não haverá reconhecimento ou
redistribuição sem representação. (FRASER, 2010, p. 27) – tradução nossa.
Ao elaborar essa reconstrução da política em tempos de globalização, Nancy Fraser
propõe teoricamente uma mudança de paradigma. As teorias da justiça não podem ignorar a
problemática da formatação do frame (espaço de discussão, decisão e ação) político. Com a
globalização torna-se cada vez mais imperioso o debate em torno de quem são os
autores/destinatários da justiça e de como eles podem contribuir para o processo de
construção de novas arenas políticas capazes de dar conta das questões de primeira ordem
como reconhecimento, redistribuição e representação ordinária (FRASER, 2010, p. 27).
Diante das necessidades sociais efetivas, uma teoria da justiça tem de ser
reformulada em termos dialógicos, uma vez que a construção dos debates e soluções dos
problemas contemporâneos depende de processos democráticos se pretender atender ao
principio fundamental da paridade de participação na vida social. Para isso é necessário uma
guinada dialógica (dialogical turn) para que os processos de determinação do what da justiça,
do Who da justiça e do how da justiça possam atender as demandas coletivas contemporâneas.
(FRASER, 2010. p. 28)
A visão de Nancy Fraser relê a construção da política recente propondo um princípio
que emerge das lutas sociais e das necessidades práticas da vida em comunidade. Não
podemos deixar de concordar quando ela indica a dupla qualidade que tal princípio possui ao
expressar seu caráter democrático. De um lado ele é um princípio que serve de padrão
normativo substantivo capaz de nos informar e apontar quando os arranjos sociais são justos
ou não: são justos apenas os arranjos sociais capazes de permitir a todos os sujeitos uma
participação paritária na vida social (FRASER, 2010, p. 28). Doutra feita, o princípio da
paridade é uma noção processual que específica um padrão procedimental pelo qual nós
podemos avaliar a legitimidade democrática das normas: são legítimas apenas as normas que
podem receber o assentimento de todos os interessados num processo equitativo e aberto de
deliberação em que todos possam participar como pares. (FRASER, 2010, p. 29). Levado a
ultima instância, o princípio da paridade de participação nos aponta para a necessidade de
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Davi José de Souza da Silva
criação de uma esfera pública global e de instituições transnacionais capazes de dar voz a
todos os afetados pelos problemas difusos e fluídos da globalização.
3.
A sustentabilidade como ápice do desenvolvimento do direito internacional do meio
ambiente lido por meio das escalas da Justiça.
Aqui podemos fazer a ligação com a história do direito ambiental internacional. É
interessante notar como a questão da proteção ambiental evoluiu numa primeira etapa da mera
proteção econômica dos recursos naturais para consciência dos riscos compartilhados ou uma
sensação global de vulnerabilidade. Numa segunda etapa, adquire uma dimensão econômicosocial a partir do momento em que passam a ser feitas reivindicações em torno da distribuição
econômica global por meio das exigências dos países em desenvolvimento, em sua maioria
ex-colônias. Também a dimensão do reconhecimento adentra a questão ambiental por meio da
temática da proteção da diversidade cultural e étnica dos povos tradicionais. Por último, temos
a questão da representatividade política nos âmbitos de discussão sobre o meio ambiente.
O cume alcançado com o conceito de sustentabilidade é deveras interessante e pode
ser lido com as ferramentas teóricas apontas por Nancy Fraser. Quando a dogmática jurídica
se debruça sobre os aspectos políticos da construção do conceito de sustentabilidade, podemos
ver que seu resultado é eminentemente uma síntese da superação do paradigma kenesianowestphaliano. Na leitura de Antonio Fernando Pinheiro Pedro (2004, p.17/18), a
sustentabilidade surge como uma reposta tanto ao descontrole dos processos produtivos
quanto da necessidade de um novo paradigma econômico-social. A sustentabilidade enquanto
ápice da construção político-ambiental revela-se ao mesmo tempo como um tema sobre
questões de primeira ordem (redistribuição e reconhecimento) quanto sobre questões de
segunda ordem (quem deve decidir e em qual quadro institucional se deve decidir):
(...) O perfil ideológico do desenvolvimento sustentável vincula-se às
demandas por participação popular na formulação de políticas públicas e
tomadas de decisões em processo de impacto social e ambiental e demandas
por melhor qualidade de vida e autonomias. Vincula-se, a sustentabilidade,
também, à necessidade econômica de racionalização do uso de energia, de
utilização controlada de recursos naturais cada vez mais escassos, de
esgotamento sanitário, tratamento e destinação final de resíduos, de
eliminação de modos de produção e consumo desconformes e, sobretudo, da
busca pela redução da pobreza como fator de profundo desequilíbrio
ambiental. (PEDRO, 2004, p. 20).
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O Direito Internacional do Meio Ambiente nas Escalas da Justiça de Nancy Fraser.
A tridimensionalidade principiológica da sustentabilidade apontada por Antonio
Fernando Pinheiro Pedro (2004, p. 22) é sobremaneira interessante. O princípio da
prevenção-precaução outorga responsabilidade aos Estados na exploração sustentável dos
recursos naturais. Ao invés de confirmar o frame Westphaliano, tal princípio aponta a
possibilidade de identificação de responsáveis por explorações ambientais que geram danos
aos indivíduos. Uma vez que é dever dos Estados planejar a exploração de forma sustentável
em última instância não se pode apelar às forças fluídas da globalização para omitir-se da
responsabilidade.
O princípio do poluidor-pagador opera da mesma forma, ao determinar que o
responsável pelo dano ambiental deve ser o responsável com o ônus de promover a
descontaminação. Assim, os Estados e organismos públicos devem estimular, criar e aplicar
políticas econômicas capazes de obrigar os usuários de recursos ambientais (insumo e
consumo) a contribuir de maneira retributiva com o uso adequado dos recursos naturais.
Conforme acentua Antonio Fernando Pinheiro Pedro (2004, p. 25) estamos diante da
utilização da parafiscalidade como instrumento de gestão dos recursos naturais. Por sua vez
os agentes privados devem internalizar os custos ambientais de sua atuação, permitindo-se,
assim, que a mensuração do passivo ambiental avaliado pelo impacto de sua atividade
econômica.
Esses dois primeiros princípios surgidos na história político jurídica do direito
internacional são o resultado dos debates sobre o quê (What) da Justiça. De maneira mais
enfática e perfeitamente condizente com o princípio político de Nancy Fraser da paridade de
participação na vida social é o princípio jurídico da participação. A dimensão do quem da
justiça ambiental e do como da Justiça Ambiental são contempladas por tal norma jurídica.
Embora seja longa, devemos fazer a citação abaixo, uma vez que ela comprova bem o ponto
aqui levantado:
O princípio da participação, por sua vez, conforma politicamente os
instrumentos de implementação da sustentabilidade ambiental, pois, como
visto acima, tratando-se a questão ambiental de objeto diversificado e difuso,
não poderia a moderna administração pública pretender tutelá-la sem a
interferência sistemática e obrigatória da comunidade em todas as instâncias
de decisão. Com efeito, seja nas estruturas públicas de gestão ambiental,
seja nos sistemas privados, a interferência da coletividade provoca hoje
mudanças consideráveis no resultado de projetos de impacto ambiental e
social. Não pode mais o administrador decidir sozinho, e a solidão pode
significar a rejeição do empreendimento ou política proposta. A tutela
pública de interesses difusos e coletivos, como os de consumo e minorias,
entre outros, aliada as avanços tecnológicos nos meios de informação,
Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 76-98, Nov.,
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Davi José de Souza da Silva
transformou o cidadãos comum, de observador passivo e destinatário
resignado de produtos e serviços em um agente crítico, uma espécie de sócio
palpiteiro dos empreendimentos ou políticas que lhes são afetos, direta ou
indiretamente, e que não hesita em buscar no Judiciário ou na mídia o
reconhecimento de seus interesses. Para atender a essa nova demanda, o
Estado procura aparelhar-se com instrumentos estruturais e paliativos, tais
como os conselhos comunitários, ambientais, etc., mecanismos de audiência
pública, métodos de deliberação colegiada, pesquisas de opinião dirigidas,
bem como mecanismos de acesso à justiça e ao sistema de ouvidorias
administrativas as quais, pouco a pouco, retiram nitidez dos limites de esfera
dos poderes constituídos, confundindo-os. O fruto disso é a assunção de uma
nova democracia participativa, que tende a reduzir os poderes de formas
representativas de gestão republicana, de primeira e segunda geração, como
hoje são conhecidas. (PEDRO, 2004, p. 24/25).
Embora Antonio Fernando Pinheiro Pedro apresente certa desconfiança quanto à
qualidade da participação democrática no processo de construção das políticas ambientais,
não há como assumir que hoje é incontornável, em termos de validade, que as políticas
ambientais levem em conta o princípio político social apontado por Nancy Fraser: a de que
todos os afetados devem participar da construção das políticas ambientais. Como visto acima
na retrospectiva história do direito internacional do meio-ambiente, o conceito de
sustentabilidade é ápice de uma construção que vai do what da justiça, passa pelo quem e
culmina com o how. Dificilmente se poderá retroceder nessa construção, a sustentabilidade é
um conceito que já nasce impregnado por um paradigma pós-Westphalia, ou seja, por uma
política democrática transnacional.
International Environment Law in the Scales of Justice of Nancy Fraser
ABSTRACT: This paper aims a historical reading of international environment law under the key
concepts from Nancy Fraser philosophy. I argue that the concept of sustainability is the climax of
global deliberations about environment and development. Sustainability ís the normative product of
pos-westphalian politics wich, in the politics realm, set out the radical democratic principle of Nancy
Fraser that is egalitarian participation in the social life, now, in the transnational frame.
Keywords: international Law, sustainability, politics.
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