Editorial Tecido de diversos fios

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Editorial Tecido de diversos fios
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2012). Editorial: tecido de diversos fios. Memorandum, 23, 1-11. Recuperado em__ de
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Editorial
Memorandum: memória e história em psicologia
Número 23
Tecido de diversos fios
A edição 23 da Memorandum mostra que a busca por uma psicologia abrangente e
integrada com as demais ciências humanas compõe um tecido de diversos fios.
Algumas contribuições aqui apresentadas ressaltam a importância da empatia - e de
modo geral da perspectiva fenomenológica em psicologia - para a compreensão de
importantes fenômenos tais como alteridade, educação, ação em suas potencialidades sociais,
dimensão religiosa de processos de subjetivação, cuidados psicológicos.
A empatia como vivência de Leandro Penna Ranieri e Cristiano Roque Antunes Barreira
aborda os aspectos centrais da vivência de empatia segundo de Edith Stein e suas
implicações do ponto de vista psicológico e ético. Da empatia à compreensão empática: evolução
do conceito no pensamento de Carl Rogers de Rebeca Cavalcante Fontgalland e Virginia Moreira
apresenta um percurso evolutivo do conceito de empatia no pensamento de Rogers até
chegar a definir a compreensão empática na clinica centrada na perspectiva do cliente. À
terapia rogeriana e as suas aplicações em psicopatologia é dedicado também o artigo
Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das paixões de Emanuel Meireles
Vieira e José Célio Freire. A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de
um projeto educativo que articula escola e bairro de Suzana Filizola Brasiliense Carneiro e Heloisa
Szymanski propõe uma original aplicação da perspectiva fenomenológica ao estudo da
articulação entre uma escola municipal de ensino fundamental na periferia de São Paulo e
grupos de jovens que desenvolvem um trabalho de divulgação da cultura local por meio de
oficinas de literatura marginal. Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita:
investigação fenomenológica de Yuri Elias Gaspar e Miguel Mahfoud emprega a abordagem
fenomenológica para investigar as inter-relações entre voluntariado e experiência religiosa
vivida e revelada pelos sujeitos da experiência apontando para a realização de si como fator
estruturante daquela modalidade de ação social.
Um segundo conjunto de contribuições problematizam as possibilidades de
abordagem das questões alteridade, cultura, religião e processos de subjetivação.
Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas de Raquel Redondo
Rotta e José Francisco Miguel Henriques Bairrão propõe a perspectiva de etnopsicologia para
uma aproximação ao recurso ritual de caboclos na umbanda, contemplando sentidos e
alcances psicológicos. De la Peña e l'evangelizzazione degli indios: epicheia e matrimoni nel Nuovo
Mondo de Fabio Giovanni Locatelli é uma pesquisa histórica que apresenta a proposta de um
teólogo do século XVI quanto ao uso da ética aristotélica (a epicheia), para adaptar as
Memorandum 23, out/2012
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normativas eclesiásticas aos processos relacionais e subjetivos próprios das culturas
indígenas latino-americanas. Ainda no âmbito da investigação da história da cultura, o texto
Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da modernidade ocidental e do Brasil
colonial de Marina Massimi mostra a abordagem histórica a uma temática atual da psicologia,
a saber, a da imagem e os processos de sua elaboração psíquica.
Abordagens de cunho epistemológico podem discutir as mesmas temáticas na interface
entre fenômenos culturais, educação e processos de subjetivação. É o que nos mostram as
seguintes contribuições: O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai de
Vitor Hugo Lopes Paese e Adriano Furtado Holanda investiga o sentido de Deus para
Moreno enquanto um elemento fundamental para a compreensão da visão de mundo e de
homem no psicodrama. O Bem, o Mal: é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth
de Shakespeare de Dante Marcello Claramonte Gallian e Rafael Ruiz analisa, num dialogo com
a filosofia antiga, moderna e contemporânea - segundo o itinerário delineado pela peça de
Shakespeare - qualidades, força e efeitos da palavra no âmbito das paixões, dos atos e da
ética. A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman de Luciana
Helena Mussi e Beltrina Côrte aborda o tema da finitude e sua contextualização histórica.
Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos epistemológicos propostos por
Jansen e Qvortrup de Silvia Cabrera Berg discute os modelos epistemológicos no que diz
respeito a estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas na sociedade plural e de valores
culturais híbridos como a contemporânea.
Outubro de 2012
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editores
Editorial
Memorandum: memory and history in psychology
Issue 23
Contexture of several threads
The 23rd edition of Memorandum shows that the search for an extensive and
integrated psychology with other human sciences comprises contexture of several threads.
Some contributions presented here highlight the importance of empathy - and
generally the phenomenological perspective in psychology - for the understanding of
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relevant phenomena such as alterity, education, action on its social potentialities, religious
dimension of subjectivation processes, and psychological care.
Empathy as lived experience by Leandro Penna Ranieri and Cristiano Roque Antunes
Barreira addresses the central aspects of the experience of empathy in accordance with Edith
Stein and their implications from psychological and ethical views. From empathy to empathic
comprehension: evolution of the concept in the thought of Carl Rogers by Rebeca Cavalcante
Fontgalland and Virginia Moreira presents an evolutionary path of the concept of empathy
in Rogers' thought up to the point of defining the empathic understanding in the clinic
focused on client's perspective. The article Psychopathology and client centered therapy: for a
clinic of the passions by Emanuel Meireles Vieira and José Célio Freire is also dedicated to
Rogerian therapy and its applications in psychopathology. The contribution of phenomenology
of Edith Stein to the understanding of an articulated education project between school and
neighborhood by Suzana Filizola Brasiliense Carneiro and Heloisa Szymanski proposes an
original application of the phenomenological perspective to the study of the relationship
between a public elementary school on the outskirts of São Paulo and groups of young
people who develop a project promoting local culture through workshops of marginal
literature. The Voluntary action and religious experience in a Spiritist institution: phenomenological
investigation by Yuri Elias Gaspar and Miguel Mahfoud employs the phenomenological
approach to investigate the interrelationships between volunteering and religious experience
lived and revealed by the subjects of the experience indicating the fulfillment of oneself as
the factor of structuralization of that modality of social action.
A second set of contributions problematize the possibilities of addressing the issues
alterity, culture, religion, and subjective processes.
The Meanings and psychological scope of caboclos in umbandist experiences by Raquel
Redondo Rotta and Francisco José Miguel Henriques Bairrão proposes ethnopsychology
perspective for an approximation to the ritual resource of caboclos in Umbanda,
contemplating meanings and psychological scope. The De la Peña and the evangelization ofthe
Indians: epikeia and weddings in the New World by Fabio Giovanni Locatelli is a historical
research that presents the proposal of a sixteenth-century theologian regarding the use of
Aristotelian ethics (the epicheia) in order to adapt ecclesiastical normativity to the relational
and subjective processes from Latin America indigenous cultures. Also in the investigation
range of history of culture, the text Imagination and images: concepts and practices in cultural
traditions of the Western modernity and colonial Brazil by Marina Massimi shows the historical
approach as a current topic of psychology, namely the image and processes of its psychical
elaboration.
Epistemological approaches can discuss the same topics at the interface among cultural
phenomena, education, and processes of subjectivation. This is what the following
contributions show: The meaning of God according to Jacob Levy Moreno in The Words of the
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Father by Victor Hugo Lopes Paese and Adriano Furtado Holanda investigates the meaning
of God according to Moreno as a key element for understanding world and man views in
psychodrama. Good, Evil - are they all the same? The drama of the words and passions in
Shakespeare's Macbeth by Dante Marcello Claramonte Gallian and Rafael Ruiz examines
qualities, strength, and effects of the word in the ambit of the passions, acts, and ethics, in a
dialogue with ancient, modern, and contemporary philosophes, according to the itinerary
outlined by the Shakespeare play. The finitude as awareness of death in The Seventh Seal by
Ingmar Bergman by Luciana Helena Mussi and Beltrina Côrte addresses the issue of finitude
and its historical contextualization. Teaching strategies and pedagogical tools according to
epistemological models proposed by Jansen and Qvortrup by Silvia Cabrera Berg discusses the
epistemological models with regard to teaching strategies and pedagogical tools in the plural
society with hybrid cultural values such as the contemporary one.
October 2012
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editors
Equipe/ Editorial Board
Editores
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
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Marina Massimi
Universidade de São Paulo
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Universidade Federal de Minas Gerais
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Regina Helena de Freitas Campos
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William Barbosa Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Giovanna Zanlonghi
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José Francisco Miguel Henriques Bairrão
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Marcos Vieira da Silva
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Marisa Todeschan D. S. Baptista
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Raul Albino Pacheco Filho
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Vanessa Almeida Barros
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Abraão Coelho - desenvolvedor web.
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em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH/UFMG.
Núcleo de Epistemologia e História das Ciências Miguel Rolando Covian, Universidade de
São Paulo - USP/Ribeirão Preto.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
USP/Ribeirão Preto.
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A revista eletrônica Memorandum é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa
"Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", vinculado ao
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais - UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras Universidade de São Paulo - USP/Ribeirão Preto.
The electronic scholarly journal Memorandum is an initiative of the Research Group
"Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória",
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Humanas of Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG and to Departamento de
Psicologia e Educação of Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras of Universidade de São
Paulo - USP/Ribeirão Preto.
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Ranieri, L. P. & Barreira, C. R. A. (2012). A empatia como vivência. Memorandum, 23, 12-31. Recuperado em__ de
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A empatia como vivência
Empathy as lived experience
Leandro Penna Ranieri
Cristiano Roque Antunes Barreira
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
O objetivo desta investigação é elucidar os aspectos centrais da vivência de empatia no
pensamento de Edith Stein, compreendendo como estes aspectos são desenvolvidos em
sua obra O problema da empatia (1917/1998). Parte-se da discussão acerca do tema na
literatura científica recente, visando compreender os modos como a empatia é tratada,
passando ao acesso da literatura especializada em fenomenologia, concepção norteadora
da investigação, buscando os elementos envolvidos com o tema. A concepção da empatia
como uma vivência, como reconhecimento do outro como outro eu, desdobra-se
eticamente como um movimento de compreensão da experiência do outro, um
testemunho sensível daquilo que ele vive.
Palavras-chave: empatia; corporeidade; fenomenologia; psicologia
Abstract
The aim of this article is to elucidate the central aspects of the experience of empathy in
the thought of Edith Stein, understanding how these aspects are developed in her work
On the problem of empathy (1917/1998). The article starts with the discussion concerning
the theme in recent scientific literature in order to understand the ways in which
empathy is treated, passing to the access of specialized literature on phenomenology,
guiding conception of this research, and seeking the elements involved with the issue.
The conception of empathy as an experience, as a recognition of the other as another self,
ethically unfolds as a movement for understanding the experience of the other, a
sensitive testimony of which oneself lives.
Keywords: empathy; corporeity; phenomenology; psychology
Introdução
A relação interpessoal tem sido objeto de análises de diversas áreas do conhecimento,
podendo ser considerada como unidade que toma parte na constituição genética do
emaranhado social1. Em determinadas profissões, como na área da saúde, há um enfoque na
discussão sobre o papel da relação interpessoal no cuidado e no tratamento, tema caro, por
exemplo, aos esforços pela humanização nas práticas da saúde. Na psicologia, a relação
interpessoal se coloca frequentemente como problema prático - na atuação - e teórico.
Primeiramente, deve-se pontuar que a pessoa está entre os objetos contemplados pelo estudo
científico da psicologia; numa perspectiva fenomenológica, parte de seu propósito é
Apoio financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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descrever a estrutura constituinte da psique humana (Ales Bello, 2004) ou, antes,
fundamentar a própria psicologia científica interrogando "originariamente o quê e o como
da psique das pessoas" (Mahfoud & Massimi, 2008, p. 57). Assim, a relação interpessoal é
própria dos seres humanos, na medida em que, por via desta relação intersubjetiva, o ser
humano apreende a si mesmo e ao outro como pessoas, bem como, graças a ela, é capaz de
apreender a camada humanizada do mundo enquanto unidade de objetos com sentidos
compartilháveis.
Há um elemento essencial que algumas vezes pode ser descolado ou simplesmente
ignorado no momento de se analisar a relação intersubjetiva, dada sua natureza e sua
característica implícita: a empatia. Por outro lado, muitas vezes a empatia vem à frente desta
discussão como elemento e como conceito estrutural em algumas posições da psicologia,
como a psicologia humanista. A partir do interesse pelo fenômeno da psique e da
experiência vivida e intersubjetiva, a fenomenologia em sua vertente originária clássica
tomou um posicionamento radical frente ao paradigma positivista que norteava
predominantemente as ciências em geral, inclusive as ciências humanas. A fenomenologia
fundamenta a filosofia como ciência de rigor para analisar os fenômenos, a partir de um
método peculiar elaborado por Edmund Husserl (1859-1938) e seguido inicialmente por seus
alunos, como Edith Stein (1891-1942), filósofa que tratou especificamente do tema da
empatia.
Este trabalho tem como objetivo elucidar os aspectos centrais da vivência de empatia
no pensamento de Edith Stein, compreendendo como estes aspectos são desenvolvidos
dentro de sua obra O problema da empatia (1917/1998), onde a autora investiga
prioritariamente a temática anunciada no título. Num primeiro momento, busca-se
compreender a descrição do conceito (A empatia: definição), seguindo-se a uma
apresentação de como o conceito - referido a Stein - tem comparecido na literatura científica
recente e não precisamente fenomenológica (A empatia de Stein nas ciências humanas), para,
depois, relacionar os aspectos discutidos aos elementos desenvolvidos por Stein em sua obra.
A empatia: definição
Koss (2006) apresenta algumas ocorrências da palavra empatia (einfühlung) ao longo da
história e em autores reconhecidos, principalmente nos séculos XIX e XX, em áreas como as
artes. A palavra alemã Einfühlung consiste em duas partes: Ein, "em", efühlen, "sentir". Uma
possível tradução, segundo Ales Bello (2004 e 2006) e Manganaro (2002), é entropatia,
trazendo a expressão pathos do grego e podendo significar "sentir dentro", "sentir em". Na
tradução da obra de Stein para as línguas neo-latinas (francês, italiano, espanhol e
português), Einfühlung é traduzido normalmente como empatia, que se assemelha a
entropatia, "sentir dentro o outro" (Manganaro, 2002). Há concordância entre Ales Bello e
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Manganaro na definição da tradução por entropatia, incluse destacando os equívocos e
confusões que permeiam este conceito, especialmente na psicologia. A empatia é
frequentemente tratada como sinônimo de simpatia, o que, fenomenologicamente, é uma
vivência psíquica, uma reação (Ales Bello, 2004); daí certa preferência destas autoras pela
denominação do fenômeno como entropatia. A opção da fenomenóloga Natalie Depraz (1995)
em suas traduções ao francês é renunciar tanto à versão empatia como à versão entropatia,
mantendo o uso do original em alemão. Seu argumento é de que empatia carregaria o pathos
como componente afetivo inadequado, alusivo a um sentido fusional. Já entropatia,
argumenta Depraz, traria à cena um elemento binário (interior e exterior) também
inadequado a um conceito como empatia que traz a imediaticidade da relação. Pode-se
questionar se sua recusa pela tradução, embora prudente para evitar mal entendidos
hermenêuticos, passa pelo próprio crivo fenomenológico, onde o afeto é componente
essencial, necessário a qualquer percepção, a qualquer contato corpóreo vivente. O mesmo
questionamento vale para o problema do elemento binário, já que, se a fenomenologia de
Husserl, de fato, desenvolve-se se distinguindo de um naturalismo espacializante da
interioridade e exterioridade da experiência subjetiva, ainda assim há contatos com as coisas
e ideais que guardam a característica de superficialidade ou profundidade, propriedade e
impropriedade, gradações de exterioridade e interioridade, onde esta última é conferida pela
possibilidade de entrar no fenômeno, apreendê-lo em sua inerência. Mesmo que imediata e
independente de um aprofundamento, o acesso à interioridade do fenômeno alter ego, à sua
natureza, é dado pela empatia. Logo, embora as traduções possam trazer mal entendidos se
contempladas por um crivo conceitual não fenomenológico, esse parece ser um risco
constante que a fenomenologia corre pelo seu próprio anti-naturalismo, risco insuficiente,
portanto, para justificar convincentemente a conservação da palavra em alemão. Nesse
sentido, quer se considere justificáveis a convenção do uso da palavra em alemão ou da
tradução por entropatia, a manutenção da versão empatia também o é. Isto porque se entende
que uma das vocações da fenomenologia é o enfrentamento dos mal entendidos, a fim de
que os conceitos utilizados pelas ciências, no caso pela psicologia, sejam fundamentados na
revelação do que é próprio aos fenômenos a que fazem referência.
Segundo Ales Bello (2004 e 2006) e Manganaro (2002), a empatia é um ato sui generis,
uma vivência própria do ser humano, ao contrário de perspectivas psicológicas que tomam a
empatia como simpatia ou, ao contrário, antipatia, que, do ponto de vista fenomenológico,
são reações de ânimo e, portanto, psíquicas. Empatizar é reconhecer o outro como alter ego,
como outro eu. Este é, segundo Manganaro (2002), o ponto nodal da essência da empatia: "o
colhimento do 'tu' como alter ego" (p. 44, tradução própria). Sintetizando as características
próprias ao fenômeno, Pezzela (2003) dá uma definição de empatia partindo da perspectiva
fenomenológica seguida por Stein:
um instrumento natural, imediato, tipicamente humano através do qual se
consegue colher e compreender os outros seres humanos, as suas vivências,
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os seus estados de alma, os sentimentos. Não é uma prática que se aprende
ou aplica quando há necessidade, mas é co-natural ao ser humano (p. 110,
tradução própria).
A empatia de Stein nas ciências humanas
Como sugerido acima, fora da produção filiada à fenomenologia, a relevância do tema
da empatia tem tido algum destaque na literatura do campo da saúde, especificamente na
relação interpessoal no atendimento entre médico/enfermeiro/fisioterapeuta e
paciente/usuário. Koss (2006), em outra perspectiva, envolve este tema com outras áreas,
como a arte, trazendo conceitos como empatia estética e empatia psicológica. Alguns autores
tentam trazer a contribuição da análise do fenômeno empatia feita por Stein para suas
respectivas práticas envolvendo esta relação (Määtä, 2006; Davis, 1990). Diga-se que a
aplicação do conceito na prática é o principal objetivo destes trabalhos. Mesmo trazendo
contribuições importantes para as suas respectivas práticas, enriquecendo e valorizando as
possibilidades de abordagem da experiência vivida nas relações em saúde, os autores, ao se
focarem neste objetivo, parecem perder de vista elementos essenciais da empatia. Tal fato
pode ser evidenciado primeiramente no próprio objetivo: a aplicação do conceito. Conforme
Määtä (2006), também fazendo referência a Davis (1990), é possível "preparar-se para o
processo empático [empathetic] com a ajuda de treino" (p. 6, tradução própria). Essa posição
não está em consonância com a definição de orientação fenomenológica, pois a empatia é um
ato natural, imediato; sendo assim, não é preparado. O que é possível é evidenciar a empatia,
o que talvez apontasse para essa preparação como um movimento de evidenciação
fenomenológica da vivência empática. Davis (1990) também comenta sobre uma possível
facilitação para o acontecimento da empatia. Na verdade, fenomenologicamente, havendo
encontro, a empatia como vivência sempre acontece e irá acontecer; o que é possível é
facilitar a tomada de consciência da empatia como elemento presente na relação
intersubjetiva. Portanto, mesmo com as contribuições fundamentais da explicitação da
presença da empatia na área da saúde, estimulando a atenção à importância deste conceito,
os equívocos associados à tomada da vivência empática como sendo um conceito
instrumental esvaziam a própria cena ética, originada por essa experiência e garantida pela
re-atualização da orientação fenomenológica ao mundo da vida (Barreira, 2011).
Hollan e Throop (2008) trazem a questão da empatia para o âmbito da antropologia,
fazendo alusões a outras perspectivas também. No entanto, os autores oscilam entre
elementos fenomenológicos da vivência empática - destacando o papel do aperfeiçoamento e
estímulo da consciência da relação intersubjetiva - e posicionamentos que reduzem o
conceito de empatia a um comportamento ou ato que pode ser ativado ou não. Um exemplo
deste ponto é a menção a um estudo etnográfico que aponta como, em certa sociedade, o
"conhecimento empático" pode ser tomado por essas pessoas como "uma intrusão ou
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ataque". Esta noção parece tomar a empatia como um ato deliberadamente dirigido, se
distanciando da noção experiencial - e, portanto, fenomenológica - empática, que é natural,
intencional e imediata. Nunca é excesso de prudência ressaltar o fato de que a
intencionalidade na fenomenologia não corresponde à intenção deliberada, mas ao simples
tender a, próprio da consciência.
Estas leituras brevemente descritas tendem a tomar a empatia, para além daquilo que é
enquanto experiência imediata descrita por Stein e Husserl, como espécie de ação deliberada
de compreensão da alteridade, deslizando de modo pouco discriminado entre a vivência da
empatia em si e a tomada de consciência da relação intersubjetiva que se desenvolve da
vivência empatizada à empatia iterativa, isto é, ao ir e vir próprio ao cruzamento de vivências.
Este cruzamento de vivências se dá individual e comunitariamente, podendo implicar, por
exemplo, reação ou juízo do ato de um outro, mas também o dar-se conta da reação e do
juízo do outro em relação a si e, assim, necessariamente, dos posicionamentos assumidos
pelo sujeito que caracterizam a iteratividade. A partir desse deslize conceitual, não sem
consequências éticas potencialmente maiores, discutir a possível aplicação da "empatia", seu
aperfeiçoamento ou questionar se há pessoas que nascem com maior possibilidade de
manter relações empáticas, são exemplos encontrados nos artigos mencionados. A título de
esclarecimento, portanto, a última questão talvez só faça sentido para patologias graves que
porventura afetem radicalmente o domínio da percepção; já as demais questões fazem
sentido enquanto não tratem mais da empatia por si mesma, mas das possibilidades de uso e
aperfeiçoamento da compreensão empática.
Por outro lado, outros dois trabalhos recentes, que não podem ser considerados
filiados à fenomenologia clássica, merecem destaque pela maneira apropriada com que
fazem referência ao conceito segundo o pensamento de Edith Stein.
Astell (2004) buscou diferenciar a empatia de outros conceitos de teorias
contemporâneas, como o contágio e o mimetismo, elaborados por René Girard, articulando
seus argumentos também às perspectivas trazidas por Simone Weil e Robert M. Gordon. O
plano de fundo desta articulação é colocar o conceito numa perspectiva comparativa,
destinada à compreensão da moral. Ao delinear a análise da experiência de empatia e de
suas especificidades em Stein, o autor a distingue do contágio mimético e de seus efeitos2,
atribuindo ao último as próprias fontes do mal e à primeira, o substrato para o modelo de
2
Segundo a "teoria mimética", a mímesis, imitação, é o próprio caráter do desejo. Diferentemente, por exemplo, da
triangulação freudiana, não a mãe como objeto do desejo faz do pai um rival, mas o desejo do pai faz da mãe um
objeto desejável. O desejo submete-se, assim, à imitação, segue um modelo que designa o que é desejável. Este
mesmo modelo, no entanto, ao mesmo tempo em que designa o desejo, comparece como obstáculo, espécie de
interdição, de impedimento a seu acesso. Desenvolve-se a rivalidade entre o modelo e o sujeito, posto que ambos
desejam a mesma coisa e são, respectivamente, obstáculo e ameaça à posse da coisa. No limite, com a
intensificação da imitação, não há mais distâncias entre desejo e rivalidade, entre rivalidade e violência, entre
modelo e sujeito, quando, então, desejo mimético se converte em ataques mútuos. O contágio mimético ocasiona
indiferenciação, borram-se as fronteiras entre as partes, as coisas, as hierarquias, as identidades. Para uma visão
panorâmica e crítica do pensamento e obra do autor, veja-se: Andrade (2011).
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santidade. O modelo de santidade equivale tanto a üustragao maior do bem, quanto à
expressão das dificuldades que fazem a adesão ao bem um sacrifício das tendências
impulsivas curtas, próprias ao contágio mimético. Assim, obedecendo aos princípios
distintivos do fenômeno empatia, tais quais descritos por Edith Stein, Astell (2004) enxerga
na imitação do modelo de santidade, não uma forma de fusão indiferenciadora, um ceder a
um desejo impulsivo, mas uma árdua imitação deliberada, empenhada que, sobretudo,
sustenta a individualidade e a responsabilidade pessoal pelas ações cumpridas. Portanto, o
autor extrai e articula consequências relevantes do conceito junto a um exercício de filosofia
moral.
No âmbito da clínica psicológica, Safra (2006) traz algumas consequências relevantes
das análises de Edith Stein na orientação de seu próprio pensamento. Procurando
fundamentar a abordagem clínica em acordo com uma ontologia da condição humana e da
constituição da pessoa, Gilberto Safra revê proposições psicanalíticas, referenciando-se de
modo muito articulado na filosofia, mas também na literatura e na teologia, por exemplo,
conduzindo-se a uma perspectiva existencial que caracterizará como hermenêutica. É,
portanto, a situação clínica que está em pauta quando o autor apresenta aspectos
importantes das análises de Stein, entre estes, a explicitação do que se passa na empatia. Na
relação que se desenvolve entre o analista e o analisando, Safra destaca a corporeidade como
estrato primário da empatia, ressaltando a possibilidade do analista acompanhar a
experiência do paciente. Esse acompanhamento, ensina Stein, não corresponde a viver de
forma originária o que o outro vive, mas é realizar em seu próprio corpo o circuito de
sensibilidade da experiência deste outro. O autor não deixa de considerar também a
possibilidade empática de acompanhar o circuito da articulação do pensamento do outro.
Mas, afastando-se das abordagens representativas, apegadas a noções que tratam a relação
terapêutica por via de processos mentais, para Safra, é primeiramente o que se apresenta que
vem em destaque, realçando-se a sensibilidade corporal como condição de compreensão dos
sentimentos alheios. Há uma comunicação intercorpórea, em que "o analista intui o que se
passa (...) pelo fato de seu corpo estar sendo continuamente afetado pela forma de ser do
paciente" (Safra, 2006, p. 48). A maneira como a situação clínica se compõe plasticamente
pelo modo de se apresentar do paciente, informa e explicita questões que não estão ditas em
palavras. Na situação clínica, a clareza do conceito de empatia incorre na distinção entre
sensibilidade e sentimentalismo, pelo que se evidencia uma posição na "qual podemos
acompanhar o paciente subjetivamente e nos discriminarmos dele, sem que para isso seja
necessária a objetificação do analisando" (idem).
Fenomenologia e o problema da empatia
A fenomenologia, ciência e método elaborados por Husserl, é a reflexão acerca dos
fenômenos, estes tomados por aquilo que se manifesta à consciência. Então, grosso modo, as
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experiências vividas ou as coisas acompanhadas de seus atos conscienciais correlativos são o
objeto de estudo da fenomenologia, isto é, como tais vivências se dão no fluxo de consciência
das pessoas, uma vez que consciência, nesta perspectiva, é sempre consciência de algo (Ales
Bello, 2006). A redução eidética e a redução transcendental são os momentos decisivos dentro da
fenomenologia como método nos quais há a passagem da atitude natural - existência factual
dos fenômenos - à fenomenológica, visando a essência dos fenômenos, aquilo que constitui
estruturalmente as experiências e como estas se dão à consciência dos sujeitos. A partir das
análises configuradas nas reduções é que Husserl objetivava constituir uma solidez
conceitual para as ciências humanas, valendo-se da filosofia.
Conforme lembram Salum e Mahfoud (2012), Ales Bello (2004 e 2005) e Manganaro
(2002), ao refletir sobre os atos vividos, Husserl (1931/2001a), se questiona se sua reflexão
não é solipsista, isto é, se seu caminho analítico não está fechado sobre si mesmo. Diante de
uma redução transcendental do eu, Husserl pergunta: "mas o que acontece então com os
outros egos?" (Husserl, 1931/2001a, p. 105). Sua resposta alude diretamente ao tema da
empatia, embora seu desenvolvimento alcance também outras esferas fenomenológicas que
serão apenas indicadas: "Eles não são por certo simples representações e objetos
representados em mim das unidades sintáticas de um processo de verificação que se
desenvolve 'em mim', mas justamente nos 'outros'" (idem), de tal forma que "percebo-os ao
mesmo tempo como sujeitos desse mundo: sujeitos que percebem o mundo - esse mesmo
mundo que eu percebo - e que têm, dessa forma, a experiência de mim, como tenho a
experiência do mundo e nele, dos 'outros'" (Husserl, 1931/2001a, p. 106). Esta preocupação
explicitada na quinta das Meditações cartesianas (Husserl, 1931/2001a), mas presente menos
ou mais implicitamente em toda a reflexão husserliana, é intrínseca, segundo apontam as
autoras, à questão da intersubjetividade. O modo fenomenológico de abordar a subjetividade
da pessoa (eu psicológico) em relacionamento, isto é, na dimensão entre subjetividades,
passa necessariamente pela análise da dimensão da consciência dos atos vividos (unidades
apreensíveis no fluxo de consciência), ou seja, as experiências vividas por cada um através de
uma redução que coloca toda a sua atenção naquilo que se passa aí, deixando o restante em
suspenso, entre parênteses. Portanto, aquilo que se passa individualmente, na singularidade
da experiência concreta de cada pessoa, encontrará, a partir da redução transcendental análise de como se dão os atos ao eu puro, à consciência - a existência de um aspecto
universal, um elemento comum (a todos nós): uma essência (eidos). Portanto,
podemos considerar desde já como estabelecido o fato de que tenho em
mim, no quadro de minha vida de consciência pura transcendentalmente
reduzida, a experiência do "mundo" e dos "outros" (...) não como uma obra
de minha atividade sintética de alguma forma privada, mas como um
mundo estranho a mim, "intersubjetivo", existente para cada um (Husserl,
1931/2001a, p. 106).
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Segundo Ales Bello (2005 e 2006), para elucidar tal questionamento, Husserl percorre
um caminho analisando primeiramente o que é a percepção "externa", dos objetos, animais e
pessoas. Assim, ele nota que é a partir da propriedade diferenciada das próprias coisas, de
suas essências, que as pessoas conseguem, imediatamente, perceber e diferenciar o que tem
vida daquilo que não tem, ou mesmo diferenciar as coisas que se apresentam de
determinado modo, com suas qualidades, algumas semelhantes ao eu, outras diversas (Ales
Bello, 2003b). Tal ação, segundo Husserl, é a vivência específica, chamada Einfühlung,
empatia ou entropatia. Enquanto para Husserl, "a empatia é o pressuposto que consente o
alcance do conhecimento do mundo objetivo, cuja constituição é, de qualquer maneira,
resultado ligado à relação transcendental intersubjetiva" (Manganaro, 2002, p. 45-46,
tradução própria), para Stein, através da empatia pode-se chegar "ao conhecimento da
consciência estranha (a alteridade pessoal)" (Manganaro, 2002, p. 46, tradução própria). Estas
podem ser pontuadas como as preocupações mais específicas a cada um dos autores, Husserl
e Stein, embora não possam ser reduzidas a isto, já que estão necessariamente articuladas a
outros problemas filosóficos abordados por ambos. Note-se que estas preocupações
husserlianas têm suas equivalências com a própria fenomenologia transcendental e atravessa
propriamente toda a noção de objetividade e sua constituição (Salum & Mahfoud, 2012).
Husserl deixa este aspecto muito claro afirmando que "o mundo da experiência contém
objetos determinados por predicados 'espirituais', que, conforme sua origem e sentido,
remetem a sujeitos e, geralmente, a estranhos a nós mesmos e a sua intencionalidade
constituintes" (Husserl, 1931/2001a, p. 107). Ou seja, o problema da existência do outro, do
alter ego, da impossibilidade de constituir em mim e a partir de mim a estranheza própria do
conteúdo vivido por um alter ego - o que leva à delimitação da originariedade e nãooriginariedade abaixo tratadas - coloca-se para Husserl em sua natureza ampliada: "De início
isso tem que ver com qualquer alter ego, mas depois com tudo aquilo que, pelo seu sentido
existencial, implique um alter ego; em suma, o mundo objetivo, no sentido pleno e próprio do
termo" (idem, p. 109).
Edith Stein (1891-1942) foi aluna e assistente de Husserl. Teve formação em psicologia
e cultura germânica pela Universidade de Breslávia entre 1911 e 1913, transferindo-se para
Göttingen para complementar sua formação filosófica e estudar a fenomenologia de Husserl
(Ales Bello, 2000; Stein, 1917/1998). Como objeto de sua tese de doutorado, a empatia foi
tematizada sob análise do método fenomenológico, aplicado com o rigor da fenomenologia
husserliana, chegando a resultados muito próximos das reflexões feitas pelo mestre. Stein
teve contato com inúmeros manuscritos do filósofo, inclusive transcrevendo a obra Idéias
para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica II e, após 1916, ano da defesa de sua
tese, continuou assistindo voluntariamente Husserl (idem). Considera-se, conforme indica
parte do referencial bibliográfico acessado, que Stein se aprofundou no problema da empatia
de maneira original valendo-se da fenomenologia como ciência de rigor, buscando,
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sobretudo, os limites de seu objeto, dialogando com a psicologia da época e com outros
autores como Max Scheler, Theodor Lipps e Wilhelm Dilthey, tendo produzido uma tese que
se constitui como uma fonte de potenciais contribuições a esta última ao tomar a empatia
como uma vivência e ver seu alcance estrutural para a constituição da pessoa.
O tema da empatia está diluído em escritos de Husserl que se espalham de 1905 a 1935
reunidos em publicações póstumas que se intitulam Sobre a intersubjetividade (Husserl,
1973/2001b e 1973/2001c), sendo, portanto, um tema antigo e desafiador na obra de Husserl,
presente dentro da ampla esfera de discussão sobre a intersubjetividade (Ales Bello 2004,
2005 e 2006; Depraz, 1995 e 2007; Manganaro 2002). Em O problema da empatia, há uma fina
sintonia com essa amplitude abordada por Husserl ao longo da vida e, além do
aprofundamento na vivência da empatia - tratando de suas modalidades essenciais,
comparando com outras vivências e fazendo uma descrição da unidade da pessoa em seus
estratos corporais, psicológicos e espirituais -, Stein cumpre uma aproximação entre
psicologia e fenomenologia, destacando o alcance e os limites da primeira ao tratar do tema
da empatia (Manganaro, 2002; Stein, 1917/1998).
Em Ideias II, Husserl aplica o método descrito em Ideias I à análise da constituição das
naturezas material (corporal), animal (psíquica) e espiritual (pessoal) do ser humano
(Husserl, 1952/2004), cujo tratamento claramente inspirou as questões abordadas por Stein.
Com a possibilidade desse contato com o trabalho de Husserl, mencionado por ela no
prefácio de sua obra (Stein, 1917/1998, p. 66), a autora segue os passos analíticos
fenomenológicos sem deixar de atribuir explicitamente ao mestre a preeminência e o
exemplo filosófico como estímulos para o desenvolvimento de sua própria investigação.
Os momentos e o duplo movimento da empatia
A partir do desenvolvimento que veio sendo feito acima se pode retomar alguns
elementos característicos da vivência da empatia. O primeiro é o caráter imediato do ato da
empatia, ou seja, "sentimos imediatamente que estamos em contato com outro ser humano"
(Ales Bello, 2006, p. 63), sendo, "portanto, uma apreensão de semelhança imediata" (idem).
Constatar que se reconhece, que se colhe um outro semelhante, não idêntico (Ales Bello,
2004), significa conferir que se reconhece vida humana ou, de modo mais geral, que
"captamos que estamos diante de seres viventes como nós" (Ales Bello, 2006, p. 65). Assim, a
vivência empática também contempla esse reconhecimento mais genérico da vida animal,
todavia, nesta relação não se reconhece um outro semelhante, mas divergente, o que se dá
primeiramente pela corporeidade que, de imediato, se mostra estruturalmente diferente da
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humana3. Portanto, pode-se destacar um primeiro momento na atuação da empatia: o
reconhecimento do outro que, como eu, vive.
A seguir, segmentando o processo de maneira esquemática, passa-se para a percepção
de que o outro humano tem a mesma estrutura vivencial que a minha, bem como ao
movimento aperceptivo e ético de aprofundar o relacionamento, conforme ad verte Ales Bello
(2004):
Reconheço imediatamente: sei que ele tem todas as características estruturais
que eu tenho, todas as possibilidades que eu tenho. Não sei, porém, quais
possibilidades ele ativou verdadeiramente. Este é um segundo momento.
Devo tentar entender, no sentido de sentir, quais possibilidades ele ativou, o
que ele está vivendo (p. 185).
Entretanto, mesmo as possibilidades vivenciais entre as pessoas humanas sendo as
mesmas, ou seja, ainda que a estrutura essencial das vivências seja universal, sua ativação
(vivência efetiva) em primeira pessoa é diferente, obedecendo à marca da singularidade
própria a cada um, com seu horizonte perceptivo, historicidade e núcleo pessoal particulares.
Isso não significa uma impossibilidade de comunicação, mas que sentir e entender a
experiência vivida do outro dependem da sensibilidade intercorpórea e do nexo
motivacional. Em relação ao entendimento, trata-se de acompanhar e apreender a relação
motivacional que é "uma relação compreensível e significante, por oposição àquele causal"
(Stein, 1917/1998, p. 185, tradução própria). Assim, "compreender não quer dizer nada
diferente de viver (não um objetivar) a passagem de uma parte a outra no interior de uma
totalidade de vivências e, tudo aquilo que é objetivo, todo o sentido do objeto, se constitui
somente mediante vivências desta espécie [motivação]" (idem, p. 186, tradução própria).
Compreender, então, corresponde a acompanhar os nexos significativos de uma ação vivida.
Nesse sentido, existe
a possibilidade de eu sentir que o outro está vivendo aquilo que eu mesmo
posso viver. Isso significa que nos comunicamos, mas ao mesmo tempo
somos diferentes: nós temos uma vida autônoma, apesar de existirem
estruturas comuns que, de vez em vez, se ativam (Ales Bello, 2004, p. 119).
Portanto, o que a empatia também carrega como elemento essencial é a possibilidade
de proximidade (Ales Bello, 2004), conservando aquilo que é original e próprio da pessoa
(Manganaro, 2002).
3
Stein coloca que o corpo próprio e seus membros "não são dados precisamente como tipo fixo, mas como
realização casual de um tipo variável dentro de limites imutáveis" (1917/1998, p. 150). Assim, quanto à
corporeidade, "existem tipos com vários graus de generalidade e a esses correspondem vários graus de
possibilidade de empatia" (idem). Com um cão, por exemplo, é possível certa transposição empática, como com
relação à dor, no caso em que haja um ferimento; mas, num animal, quando se trata de certas atitudes e
movimentos é possível haver a transposição apenas na forma de representações vazias, sem preenchimento
intuitivo. Constata-se que "quanto mais se distancia do tipo homem, tanto menores se tornam as possibilidades
de preenchimento" (idem, p. 151).
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As faces fundamentais da empatia analisadas por Edith Stein
De acordo com os aspectos aqui levantados por meio da literatura, na tese de Stein O
problema da empatia, após apresentar o percurso metodológico utilizado, orientado pela
fenomenologia, a autora começa a descrever a empatia a partir da comparação de outros
atos, se questionando inicialmente: o que é dar-se conta da vivência estranha?
Ela confronta a empatia, primeiramente, com a percepção externa afirmando a
impossibilidade de se perceber uma vivência estranha em si mesmo, isto é, perceber em mim
uma vivência vivida por um outro de modo idêntico ao outro, mesmo sendo possível
perceber consequências e reações da mesma. Segundo Stein, "a percepção externa é um título
de atos no qual o ser coisal espaço-temporal e o seu realizar se dão em carne e osso"
(1917/1998, p. 72, tradução própria). Seguindo o próprio exemplo dado por ela, é possível
perceber a expressão de dor, como a modificação na face de um outro que sofre pela perda
de um parente querido, mas esta modificação do rosto não é a dor enquanto manifesta, não é
este sentimento em si mesmo. A dor é percebida "em um rosto com expressão dolorosa, rosto
que percebo exteriormente e 'junto' ao qual a dor vem dada" (Stein, 1917/1998, p. 72,
tradução própria).
Para se entender aquilo que é original, o vivido em primeira pessoa, e aquilo que é nãooriginal, o que se empatiza, é preciso enunciar uma lei simples: "o dado entropatizado não
pode ser idêntico ao dado entropatizante" (Ales Bello, 2005, p. 50, tradução própria). Assim,
aquilo que o outro vive não é idêntico em relação ao conteúdo, sendo apenas universal em
sua estrutura. O dado empatizado está diante de mim; a pessoa está em "carne e osso" e é
vivente, sendo que eu posso compreender o que ela vive, mas não viver o mesmo ato em
primeira pessoa. O conteúdo, dado não-originário, pode ser vivido em múltiplos modos, em
múltiplas possibilidades. A vivência da empatia se diferencia de outras vivências, como o
recordar e o fantasiar, sendo, portanto, para a individuação do ato experiencial que é a
empatia, necessária a distinção entre o ato originário (o "dar-se conta") e o ato não originário
(o conteúdo do ato vivido pelo outro) (Ales Bello, 2003a, p. 45, tradução própria). Eu não
abstraio aquilo que o outro está vivendo em minha frente, mas intuo a sua vivência, como
um testemunho. Embora a intuição eidética, ou ideação, seja "um ato originário que permite
colher intuitivamente relações essenciais", a empatia, também originária, "não é uma
ideação, dado que se trata de colher isto que existe 'hic et nunc' [aqui e agora]" (Stein,
1917/1998, p. 73, tradução própria). Por "originárias se dizem todas as nossas vivências
presentes entendidas como tais" (idem). Em outras palavras, a marca da originariedade é o
dar-se agora da coisa. Ao contrário, dar-se conta de algo (coisa) que não está aqui e agora, mas
que esteve no passado, é não-originário: "a não-originariedade do 'agora' envia à
originariedade de então: o agora tem o caráter de ser um agora que foi; com isso a recordação
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tem o caráter de posição, enquanto aquilo que é recordado tem o caráter de ser" (Stein,
1917/1998, p.75, tradução própria). Ao comparar a empatia com o ato de recordar - que,
assim como outros atos, o esperar e o fantasiar, lhe são notavelmente análogos -, Stein
explicita a diferença entre tais atos a partir do momento em que há um sujeito recordado,
que se torna presentificado, mas que não coincide com aquele que vive a recordação de
maneira originária, mesmo ha vendo certa identidade, um "outro" (de então) de minha
experiência própria, permanecendo "a diversidade entre o Eu originário que recorda e o Eu
não-originário que vem recordado" (Stein, 1917/1998, p. 75, tradução própria). Já na vivência
da empatia,
o sujeito empatizado, porém, não é o mesmo que cumpre o ato de empatizar,
mas um outro [...] a partir do momento em que os dois sujeitos estão
reciprocamente separados, não co-ligados como no outro caso através de
uma consciência de identidade, uma continuidade nos vividos (idem, p. 79,
tradução própria).
Assim, no caso da empatia, "é precisamente o outro sujeito aquele que experimenta de
maneira viva a originariedade, se bem que eu não viva tal originariedade" (idem), ou seja,
na minha experiência vivida não originária, eu me sinto acompanhado de
uma experiência vivida originária, a qual não foi vivida por mim, apenas se
anuncia em mim, manifestando-se na minha experiência vivida não
originária. De tal modo, nós chegamos por meio da empatia a uma espécie de ato
experiencial sui generis" (idem).
Portanto, uma descrição geral da empatia sob a perspectiva analítica do eu puro, meta
inicial de Stein no começo da obra, seria "a empatia enquanto experiência da consciência
estranha" (idem).
Após um debate com algumas teorias sobre a empatia, a autora começa a tratá-la como
um problema de constituição, descrevendo primeiramente como se configura
fenomenologicamente a individualidade da pessoa humana, buscando entender como se dá
o ato da empatia, como é o colhimento da psique do outro. Tendo em consideração que a
empatia é uma vivência que se dá entre dois eus, um que será reduzido a eu puro e outro que
mantém-se como eu estranho, como outro, o esclarecimento da vivência proposto por Stein é
iniciado pela distinção descritiva do eu puro, sujeito da experiência, que empatiza, para se
entender o outro eu que é empatizado. Deve-se considerar que a redução ao eu puro aponta à
"experiência vivencial privada de qualidade e não descritível diferentemente" (Stein,
1917/1998, p.120, tradução própria), isto é, vivência abstraída das coisas, além do fato de que
"vive no presente" (p. 121, tradução própria). O eu puro experimenta a sua individualidade
"não pelo fato de que se encontra diante de um outro, mas pelo fato de que sua
individualidade (...) vem em destaque no confronto com a alteridade do outro" (Stein,
1917/1998, p. 121, tradução própria). Este vir em destaque é uma característica singular à
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individualidade, sendo que, num primeiro momento em que a análise se atém ao eu puro,
uma individualidade não se distingue qualitativamente de outra; a diversidade é revelada
pelo fato de que a outra é uma outra individualidade, ou seja, o outro se mostra como outro
eu (tu) e que vive como eu (idem).
Stein também considera o eu como uma unidade de um fluxo de consciência, em que o
elemento temporal é o que é evidenciado. O eu que vive atualmente (no presente) não está
em todo momento em uma mesma vivência, mas está em um fluxo ininterrupto de vivências
que se dão para ele. É na atualidade vivencial deste eu, atualidade definidora do eu puro, que
é possível re-percorrer vivências anteriores, atingi-las novamente, tomá-las como vivências
que foram anteriormente presentes e que, retidas, sejam trazidas de volta por um "ato de
presentificação memorativa" (idem). Embora essa presentificação não seja uma retomada
direta (em carne e osso) das vivências que se obscurecem no passado, é a retomada de
vivências ligadas ao eu puro que as viveu originalmente. Essa ligação constitui a unidade do
fluxo. Nesse sentido, o eu, unidade de um fluxo, pode estar diante de um outro fluxo, o do
outro. Segundo Stein, a diversidade qualitativa dos fluxos está no conteúdo de uma vivência
singular, mais especificamente a posição que tal vivência ocupa na consciência.
Após o esclarecimento de como se constitui o indivíduo próprio, o sujeito psicofísico,
sinteticamente definido como sendo uma ligação simultânea e indissociável entre o corpo
próprio e a alma (psique), pode-se passar a como se constitui o indivíduo estranho, sendo este
movimento pautado no relacionamento empático. Primeiro, o sujeito é um ser unitário,
no qual a unidade da consciência de um Eu e um corpo físico se conjugam
indissoluvelmente; para tanto, cada um dos dois assume um caráter novo: o
corpo se apresenta como corpo próprio, enquanto a consciência se apresenta
como alma do indivíduo unitário (Stein, 1917/1998, p. 147, tradução
própria).
Dado o caráter imediato da empatia, portanto caráter não representativo ou reflexivo, a
dimensão constitutiva básica desta vivência será aquela privilegiada aqui. Esta dimensão
corresponde à esfera da corporeidade que abrange, pela sua natureza viva, a psique. Embora
Stein examine também a esfera espiritual atuando nas vivências empáticas, na reciprocidade
intersubjetiva, deve-se notar que Stein considera "uma necessidade eidética o fato de que o
espírito possa entrar em relação recíproca com o espírito somente através da mediação da
corporeidade" (Stein, 1917/1998, p. 228-229, tradução própria)4.
As precisas análises do corpo próprio presentes no texto de Stein, certamente
inspiradas direta ou indiretamente nos manuscritos das aulas dadas em 1907 por Husserl
(1973/2009), não serão retomadas a não ser enquanto indicação de resultados e naquele que
4
A esfera espiritual na fenomenologia clássica é aquela correspondente à dos atos volitivos e intelectivos, lidos
como momentos entrelaçados, mas qualitativamente diferenciáveis de outros como os impulsivos e sensíveis
próprios às esferas psíquica e corporal. Essa diferenciação qualitativa, contudo, não equivale a uma separação,
mas ao efeito distintivo da redução fenomenológica, capaz de qualificar esses momentos e seus atos próprios.
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parece ser o elemento fundamental e paradigmático para haver uma compreensão adequada
da empatia. A particularidade do corpo próprio é a de ser contemporaneamente objeto e
sujeito. Como objeto, à diferença dos demais corpos, o corpo próprio "está sempre 'aqui',
enquanto todos os outros objetos estão sempre 'lá'" (Stein, 1917/1998, p. 125, tradução
própria). Essa característica faz do corpo próprio o ponto zero de orientação, "enquanto ao
contrário todos os corpos se encontram de fora deste ponto" (p. 128). As sensações táteis são
fundantes para o corpo próprio e para a localização de suas partes. Todavia, paradigmático é
o fato de que o "corpo próprio se constitui de modo duplo - como corpo sensível (percebido
com o corpo próprio) e como corpo do mundo externo percebido exteriormente" (p. 128).
Enquanto corpo que contata outros corpos, pode-se distinguir três elementos apercebidos na
unidade dessa constituição. Primeiro: o dedo que toca uma mesa, exemplifica a autora, dá a
sensação tátil. Segundo: "a dureza da mesa e o ato correlativo de percepção externa".
Finalmente, "em terceiro lugar, a ponta do dedo que toca e o ato correlativo da percepção do
corpo próprio" (p. 129).
O entendimento da passagem constitutiva para a empatia neste estrato mais
fundamental que é o corpo próprio, no caso da empatia, o corpo próprio estranho, depende
da compreensão da experiência de co-originariedade. A co-originariedade é bem
exemplificada pela percepção de uma coisa externa (espacial) que, quando tem um lado
visto, não é percebida apenas por esse lado, mas é percebida no seu todo, isto é, em seu
interior e com a antecipação de seus outros lados. Esta visão do todo, isto é, esta visão
originária acompanhada de seu horizonte próprio, torna então aquelas faces co-originárias
em originárias, no sentido de que é uma implicação necessária que um objeto visto por um
lado tenha outros lados não vistos, mas implícitos por essência.
O contato com um corpo próprio estranho dá-se junto - por co-originariedade - a seu
campo sensorial, isto é, apreende-se intuitivamente o lado sensível (não visível) desse corpo,
lado que o faz ser corpo próprio, corpo vivente, não mero objeto, mas sujeito. Mesmo que tal
lado não possa jamais se tornar originário - já que é próprio de um outro -, é sua
característica ser preenchido pela presentificação empatizante. Tem-se pela co-originariedade
acesso à camada sensível da dupla constituição do corpo vivo, necessário correlato da faceta
objetiva do corpo vivo.
Ainda na esfera corpórea ocorre a importante passagem de meu corpo próprio como
ponto zero de orientação à posição de orientação do outro, apreendido também como corpo
próprio. Segundo Stein, não é uma substituição, ou seja, eu não passo do meu referencial
corporal para o outro, mas se trata "de obter empaticamente a outra orientação de modo não
originário" (Stein, 1917/1998, p. 154, tradução própria). Assim, "partindo do ponto zero de
orientação obtido mediante a empatia, devo considerar agora o meu próprio ponto zero não
mais como ponto zero, mas como um ponto espacial entre muitos" (Stein, 1917/1998, p. 156,
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tradução própria). Aqui, a autora destaca o papel da experiência intersubjetiva como
condição de possibilidade de constituição do indivíduo próprio e do mundo real externo.
A empatia e alguns desdobramentos
Tomada de modo estritamente reduzido, a empatia é um ato que colhe imediatamente
o outro como alter ego. Portanto, este ato é especial em relação à percepção de uma coisa
tomada como objeto, pois o outro se apresenta como "coisa" psicofísica, tendo assim sua
própria subjetividade que é acessível para o eu apenas indiretamente. O que é direto, o que é
imediato é o dar-se como alter ego, não a subjetividade própria deste alter ego, não sua
vivência em primeira pessoa e originariamente. Excetua-se a possibilidade de colhimento
originário da experiência do outro - já que esta nunca pode ser vivida pelo eu; caso o fosse,
este outro não seria um alter ego, mas um ego idêntico a mim, portanto, seria o eu mesmo.
Depraz (1995) encontra no conjunto da obra husserliana resultados analíticos que ela
denomina alteridade a si, pontuando duas experiências constitutivas desse fenômeno de
duplicação do eu: a temporalidade e a imaginação. Essas experiências permitem o dar-se conta
de um eu passado e, respectivamente, de um eu potencial. A duplicação do eu não corresponde
a uma divisão do eu, a uma espécie de esquizofrenia, mas, justo ao contrário, à própria
individualização do eu concreto, da mônada, que articula passado e devir com a unidade do
fluxo de consciência, isto é com um dar-se conta próprio, originário, a consciência
transcendental ou eu puro. Nesse caso, as diferentes experiências vividas não pertencem a um
alter ego enquanto são articuladas à experiência originária do ego. É também com a presença
das atividades temporalizante e imaginária, determinantes para haver uma
intrasubjetividade, que se efetiva a intersubjetividade. Esta, contudo, tem que ser
"antecipada" pela vivência empatizante, isto é, a empatia é um pressuposto. Comparando os
achados de Depraz (1996) a partir dos manuscritos husserlianos (Husserl, 1973/2001b;
1973/2001c) com O problema da empatia de Stein, observa-se a proficuidade das análises de
Stein que não deixa passar a descrição dos atos que ensejam a alteridade a si e tampouco deixa
de tangenciar as análises genéticas que, na dimensão da corporeidade, evidenciam aspectos
constitutivos que anunciam a condução às sínteses passivas estudadas a fundo por seu
mestre (Husserl, 1998)5.
5
Após analisar algumas condições de possibilidade para a empatia sensorial, camada mais elementar do
fenômeno, Stein conclui sinalizando sua prudência e o limite de seu propósito analítico: "Aqui se colocam
questões importantes para a investigação. Devemos nos contentar com o que dissemos e tê-lo presente como um
ponto de referência para questões 'transcendentais' que possam surgir, sem podermos proceder a um exame mais
aprofundado" (Stein, 1917/1998, p. 151). É interessante pontuar que, precisamente com relação a esse estrato
constitutivo da empatia, o que Stein nomeou como "empatia sensorial" ou "endosensação", Husserl fez
importantes avanços a partir de análises transcendentais (Salum & Mahfoud, 2012), desvelando o que se nomeou
"analogia vivida" e "emparelhamento" de corpos próprios (Depraz, 1996, 2007; Husserl, 1931/2001a, 1973/2001b,
1973/2001c).
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Alguém pode empatizar a si mesmo? Em princípio não, contudo, apenas em princípio.
Isto porque a experiência primeira, a vivência da experiência de alguma coisa, sendo vivida
por um eu não pode ser vivida por um outro, portanto, a empatia aqui é um non sens. Tratase de constatar que se o eu empatizasse diretamente a si mesmo não estaria empatizando um
alter ego, um outro, logo não estaria vivendo o ato de empatizar, mas um simples voltar a
atenção à experiência própria do eu, princípio do movimento reflexivo. Em segunda mão, ou
seja, representativamente, porém, alguém pode sim se colocar em segunda pessoa, ver-se
imaginariamente nesta condição e empatizar com este outro imaginado. Stein trata disso
como "empatia reiterada" atribuindo a esta a condição de possibilidade da constituição do
indivíduo próprio, onde há "doação espelhada de mim mesmo na recordação e fantasia"
(Stein, 1917/1998, p. 156, tradução própria), espelhamento corporal, central para a
constituição do indivíduo psicofísico. Pode-se também haver um desprendimento da própria
experiência vivida e um voltar da atenção a um objeto ou a um encadeamento narrativo
impessoal que remetam a uma subjetividade passível de ser empatizada enquanto
subjetividade correspondente àquele episódio narrado ou àquele objeto apresentado. Essa é a
condição para que se efetive uma apreciação objetiva de si mesmo, uma apreciação que se
volte reflexivamente não ao eu propriamente dito, mas à ação enquanto tal, ao objeto, àquilo
que é posto diante de um eu. Isto realiza num eu referido a um si mesmo impessoalizado a
"intersubjetividade". Esta é, por exemplo, a condição para que haja senso de justiça, senso
cuja essência passa pela noção de equitativo (Ricoeur, 2008). Estas possibilidades acima
descritas formalmente com o recurso de atos implicados na intersubjetividade, isto é, daquilo
que se passa na redução ao eu puro, não podem, entretanto, obscurecer o fato de que estes
atos devem, por força de legalidade transcendental, vincularem-se a coisas, a fenômenos.
Assim, imaginação, por exemplo, deve ser imaginação de alguma coisa. Ao empatizar
concreto tem-se não apenas um outro, mas um outro situado, vinculado no mundo:
adormecido, desperto, distraído de algo, vigoroso, engajado em algo, acabrunhado, etc.
Testemunhar este outro existindo lança o sujeito que testemunha àquilo que o outro vive, ao
seu mundo presente, às coisas com que está envolvido, ao seu mostrar-se desvelador no
mundo, portanto, abre o sujeito empatizante ao vivido pelo sujeito empatizado, lança-o a
essa apreensão e permite-lhe vivê-la por sua própria vez. Vivê-la por sua vez é dar-se conta
daquilo de que se dá conta o outro, daquilo a que se dirige o outro. Este compartilhar
possibilita a intersubjetividade, uma passagem constitutivamente dependente da empatia,
mas não idêntica a esta.
Considerações Finais
O tema da empatia está na base, ou melhor, é preliminar e fundante, de qualquer
reflexão "sobre o mundo circundante comum, sobre a possibilidade da comunicação
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interpessoal, sobre as múltiplas formas de associação humana, sobre o valor da relação ética
e do diálogo" (Manganaro, 2002, p. 43, tradução própria). A partir da discussão de Stein
sobre este problema, há uma nítida tentativa da autora em fazer uma aproximação efetiva
entre psicologia e fenomenologia. No entanto, tal afirmação implica uma crítica ao modo de
se conceber o problema da empatia em cada uma das disciplinas. Enquanto na psicologia ou,
conforme a definição do tempo de Stein, na psicologia genética, o elemento causal originário é
um problema intrinsecamente definido, por outro lado, a fenomenologia está interessada na
essência, ou seja, como no caso do tema estudado, no que é a empatia em sua essência, sem
conceber outras ciências como elementos norteadores da investigação (Stein, 1917/1998). Tal
clarificação é necessária para se saber o ponto de partida, os limites e o alcance de cada uma
das ciências, considerando ambas não autônomas e sem subordinar a fenomenologia aos
resultados e paradigmas da psicologia. No caso deste trabalho, a localização e a concepção
da empatia, segundo os autores referenciados e a própria Stein, como uma vivência, como
reconhecimento do outro como outro eu, implica que, "é necessária uma abertura ao outro
(...) um primeiro grau para a compreensão, para a possibilidade de entendimento, e só onde
há abertura e disponibilidade, existe a possibilidade de fundar uma comunidade que possa
verdadeiramente dizer-se humana" (Pezzela, 2003, p. 115, tradução própria). O que pode ser
depreendido é um movimento que passa pela empatia e vai à compreensão da experiência
do outro, um testemunho daquilo que o outro vive frente a nós. Além dessa abertura para
outro, há a possibilidade de desenvolvimento de uma autoavaliação, um autoconhecimento
frente ao outro, pela constatação e consideração da apercepção do outro diante de nossa
experiência.
Contudo, existe a possibilidade de obscurecimento do fenômeno empático em função
da presença de roupagens de ideias a seu respeito, isto é, ideias a respeito da possibilidade
de apreensão do outro. Essas roupagens podem formar concepções de empatia que a tomam
como representações dependentes de certas condições, treinamento, projeção/introjeção, por
exemplo, artificializando-a. Assim, a abertura ao outro, embora permaneça sempre sendo um
ato imediato de fundo, passa a ser acompanhada na superfície por representações que, ao
assumirem definições de certas condições para se acessar o outro, tendem a se desdobrar
tecnicamente numa instrumentalização desse acesso visando certos fins (terapêuticos ou
analíticos, por exemplo). Pode-se perguntar o que, no limite, tal roupagem não faz com o
próprio ser humano ao torná-lo reconhecido através do produto de um treinamento técnico?
Nesse caso, deixa-se de lidar com o que é manifesto pelo outro, para se lidar com o que se faz
dessa manifestação, como se a instrumentaliza - o que pode ser particularmente adequado a
determinados momentos e determinadas tarefas profissionais, mas eticamente informa o
comprometimento com o terrível mito progressista que anima o espírito da modernidade
(Maffesoli, 2007). Essas finalidades técnicas, contudo, não autorizam que se parta delas para
se chegar à definição do conceito de empatia desde seu modo de se manifestar. Elas devem,
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por outro lado, ensejar a definição precisa destas tarefas e dos conceitos que lhe sejam
pertinentes, podendo valer-se de modo adequado do que está posto pela evidenciação da
empatia. Daí a importância, por exemplo, de se assumir a empatia como é para que se tenha
consciência de que a companhia humana não se confunde com intimismo, tecnicismo, mas se
define por um estar com que pode se enriquecer na atenção recíproca, na resposta àquilo e no
compartilhamento daquilo que se manifesta, avanço intersubjetivo que é assegurado pela
convicção da possibilidade de proximidade do compartilhamento de vivências com a
possibilidade da garantia de se guardar a distância que mantém eu e outro como diferentes.
Os exemplos de Safra (2006) e Astell (2004), respectivamente no campo da clínica e da moral,
mostram bem a fecundidade do fenômeno desvelado por Stein para se cumprir avanços
significativos nas ciências humanas.
Conclui-se também que a literatura científica recente, mas não especializada em
fenomenologia, ganha em considerar conceitos oriundos dessas análises, mas teria ganhos
ainda mais substanciais ao buscar fundamento metodológico na própria fenomenologia. Isto
não apenas para orientar a discussão sobre o tema da empatia, onde frequentemente se
incorre num deslize conceitual que a confunde com a consciência da relação intersubjetiva,
mas também para uma fundamentação científica fenomenologicamente orientada.
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Nota sobre os autores
Leandro Penna Ranieri - graduado em Ciências da Atividade Física e mestre em
Ciências, área de concentração Estudos do Esporte, pela Universidade de São Paulo.
Atualmente é professor da União das Instituições Educacionais do Estado de São Paulo.
Contato: [email protected]
Cristiano Roque Antunes Barreira - psicólogo, doutor em Psicologia pela Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP (2004), professor da Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo entre 2005 e 2009, é atualmente
docente da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (USP). Contato:
[email protected]
Data de recebimento: 16/03/2012
Data de aceite: 20/08/2012
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ranieribarreira01
Fontgalland, R. C. & Moreira, V. (2012). Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no pensamento de
Carl Rogers. Memorandum, 23, 32-56. Recuperado em __ de ______________, ____, de
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/fontgallandmoreira01
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Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no
pensamento de Carl Rogers
From empathy to empathic comprehension: evolution of the concept in the thought of
Carl Rogers
Rebeca Cavalcante Fontgalland
Virginia Moreira
Universidade de Fortaleza
Brasil
Resumo
Este artigo tem como objetivo compreender a evolução do conceito de empatia no
pensamento de Carl Rogers, a partir das fases propostas pelos comentadores de suas
obras. Inicialmente, Rogers não utilizava diretamente o termo empatia, mas já era
possível perceber o nascimento desse conceito em seu pensamento, desde as primeiras
obras, uma vez que para ele o terapeuta deveria compreender os problemas do cliente,
sem julgamento, sem preconceito e sem identificação emocional descontrolada. No
decorrer de seu pensamento esse conceito evoluiu de apenas um estado para um
processo, sendo mais do que apenas uma atitude, mas uma compreensão empática, que
está muito além de uma compreensão do senso-comum. Essa compreensão empática
consiste em experimentar o que o outro está sentindo dentro de uma condição de "como
se" estivesse no lugar dele, vendo através da perspectiva do cliente, podendo dividir com
ele toda essa compreensão, favorecendo o desenvolvimento da personalidade do cliente.
Palavras-chave: Carl Rogers; fases; empatia
Abstract
This article aims at understanding the evolution of the concept of empathy in the
thinking of Carl Roger from the phases proposed by commentators of his works. Initially,
Rogers did not directly use the concept of empathy, but it was possible to see the birth of
this concept in his thought since the early works once he believed the therapist should
understand the client's problems without judgment, without prejudice, and without
uncontrolled emotional identification. In the course of his thought, this concept has
evolved from a state to a process, being more than just an attitude, but an empathic
understanding, which is far beyond a common sense understanding. This empathic
understanding consists of the therapist experiencing what the client is feeling within a
condition of "as if" the former were in the place of the latter. By seeing through the
perspective of the client, the therapist may share with him his understanding, thus
favoring the development of the personality of the client.
Keywords: Carl Rogers; phases; empathy
Carl Rogers praticou a psicologia desde 1927, realizou estudos diagnósticos com
crianças e propôs formas de tratamento1. Fez aconselhamento com pais, estudantes, adultos,
1
Este artigo é fruto da dissertação de mestrado A experiência de ser empático para o psicoterapeuta humanista-
fenomenológico iniciante, defendida pela primeira autora sob orientação da segunda autora. As autoras agradecem
aos Professores Dra. Márcia Tassinari e Dr. Francisco Cavalcante Junior, cujos comentários como componentes da
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além de ter realizado psicoterapia com pessoas ditas normais, neuróticas, psicóticas e
portadoras de problemas. Formulou uma teoria inovadora de psicoterapia, foi um facilitador
do desenvolvimento pessoal e pioneiro na pesquisa em psicoterapia, a partir da qual se
baseou a sua evolução teórica. Inicialmente, dedicou-se à psicoterapia individual e,
posteriormente, às experiências grupais (Rogers, 1974/1977a). Em seus últimos anos, seu
foco passou a ser cada vez mais psicossocial, preocupando-se com grupos intensivos,
comunidades e relações diplomáticas. Ao longo de sua trajetória profissional, Rogers sempre
se dedicou a compreender o fenômeno humano, buscando elementos que propiciassem uma
melhor maneira de ser (Messias, 2001).
A experiência, adquirida por Rogers, vem de sua orientação dada à psicoterapia, que
foi elaborada ao longo dos anos (Rogers, 1961/1987). Sua abordagem terapêutica foi
desenvolvida em torno da ideia de que existe um movimento natural dentro de cada pessoa.
Esse movimento para o crescimento consiste na tendência atualizante. Ao postular isso,
Rogers tinha a finalidade de fundar uma "maneira peculiar e revolucionária de se entender o
organismo humano" (Tassinari, 2003, p. 57), que passou a ser um postulado fundamental da
sua teoria da personalidade de Rogers. E ao confiar nessa tendência do cliente para o
crescimento, o terapeuta tem como papel criar um clima favorável interpessoal que promova
seu desenvolvimento no indivíduo (Bozarth, 2001). Isto se dá quando se estabelece uma
relação significativa que promova o encontro (Távora, 2002).
Esse conceito está fundamentado em um movimento maior, a tendência formativa, que
é entendida como sendo a própria Vida atuando no universo e na Terra, mas não atua no
nível da personalidade, como é o caso da tendência atualizante, que está mais vinculada à
experiência organísmica (Branco, 2008); é uma tendência à mudança que se dá de forma
súbita e criativa em direção a estados novos e complexos (Moreira, 2007).
A partir dessa premissa, Rogers trouxe para o campo psicoterápico a ideia das
condições facilitadoras e das atitudes que um terapeuta deveria ter para proporcionar
condições de mudança na personalidade do cliente. Estas condições deveriam ser vistas
pelos psicoterapeutas em sua profundidade e não apenas em meras formas de agir,
representando um grande desafio para o psicoterapeuta.
As seis condições, estipuladas como facilitadoras por Rogers, foram ressaltadas em seu
artigo As condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica na personalidade
(1957/2008). Dentre essas condições, três são comumente designadas como atitudes
fundamentais ao terapeuta em relação ao cliente para uma mudança construtiva de
personalidade: a Autenticidade ou Congruência, a Aceitação e a Compreensão Empática.
comissão julgadora muito enriqueceram este trabalho. Agradecem, ainda, à Fundação Cearense de Apoio ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP, pelo financiamento desta pesquisa.
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Podemos compreender congruência, em Rogers (1961/1987), como sendo o
integralmente verdadeiro, na qual a pessoa transluz aquilo o que verdadeiramente é,
mostrando-se transparente, tal como uma criança que demonstra e expressa tudo aquilo que
está sentindo. O terapeuta age sem máscaras e ao estar em acordo interno possibilita ao
cliente uma atmosfera adequada para o seu crescimento. A congruência apresenta-se em
diferentes níveis dependendo da situação apresentada, pois estes ní veis dizem respeito à
intensidade que podem ocorrer, e isso dependerá, exclusivamente, da aceitação que se tem
da experiência do outro, se o terapeuta se esquivará da situação ou a aceitará. Disso resulta o
que O'Leary (2008) ressalta, que a congruência consiste em o terapeuta não tentar fazer mais
do que aquilo que poderia fazer.
A aceitação positiva incondicional reside, enquanto condição facilitadora, para Rogers
(1961/1987), na calorosa preocupação do terapeuta pelo cliente, que não poderia ser
possessiva. É uma forma de considerar o outro "como uma pessoa separada, digna de
respeito por um mérito que lhe é próprio. É uma confiança básica - uma crença de que esta
outra pessoa é, de alguma maneira fundamental, digna de confiança" (Rogers, 1974/1977a,
p.149). E diz respeito a mais do que apenas o terapeuta aceitar o cliente, mas sim, que
igualmente deve existir uma aceitação do psicoterapeuta de si mesmo, o que para Vieira e
Freire (2006), não é algo totalizado, mas sim que existe uma abertura para possíveis
imprevisibilidades que possam ocorrer no decurso da terapia.
A empatia ou compreensão empática, como uma dessas condições facilitadoras, se
tornou fundamental na teoria rogeriana quando Rogers ressaltou a necessidade de o
terapeuta desenvolver uma compreensão empática pelo seu cliente (Sampaio, Camino &
Rozzio, 2009), a qual passou a ser compreendida como sendo uma parte essencial do
trabalho do psicoterapeuta (Grant, 2010). Este artigo tem como foco esta atitude facilitadora,
descrevendo uma pesquisa que buscou aprofundar este conceito tal como ele aparece ao
longo da teoria de Carl Rogers, identificando sua evolução sob a perspectiva das fases de seu
pensamento divididas por comentadores de suas obras (Shlien & Zimring, 1970; Cury, 1993;
Holanda, 1994; Boainain, 1999; Moreira, 1990, 2001, 2007, 2009a, 2010).
A ideia embrionária de empatia no pensamento de Carl Rogers
Ainda que não seja utilizado diretamente, em sua primeira obra O tratamento clínico da
criança problema de 1939, podemos perceber que o conceito de empatia começa a ser
delineado no pensamento de Carl Rogers ao explicar o conceito de "Tratamento
Interpretativo" - que busca que o indivíduo compreenda de forma plena suas reações e seus
comportamentos -, salientando a importância da compreensão dos problemas do cliente por
parte do terapeuta para o tratamento. Para Rogers, o sucesso dessa técnica terapêutica estaria
conectado à capacidade do cliente de aceitar a interpretação realizada pelo terapeuta, além
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de ser importante uma compreensão do ponto de vista dos clientes pelo terapeuta, sem
identificação emocional.
Ao abordar um tipo de tratamento descritivo, no qual o profissional desempenha um
papel mais ou menos passivo, Rogers defende a necessidade de não deixar o paciente
dependente de suas interpretações, porque a responsabilidade das decisões é do paciente e
não do terapeuta. Nessa forma de terapia uma das qualificações do terapeuta seria a
objetividade, a partir da qual deveria existir uma compreensão sem qualquer julgamento
moral, ou seja, sem preconceito por parte do terapeuta para com seus pacientes. Essa atitude
de respeito não deveria ser exageradamente sentimental, assim como não poderia ser fria e
impessoal. Seria uma atitude autêntica, receptiva, que colaborasse com a compreensão dos
sentimentos do cliente sem uma exagerada identificação por parte do terapeuta, com o
intuito de não prejudicar o tratamento. Uma identificação "descontrolada" por parte do
profissional propiciaria uma confusão dos sentimentos dele e do paciente, corroborando uma
identificação emocional.
É possível notar que nessa obra, Rogers (1939/1978) dá inicio a uma definição
embrionária de empatia como sendo uma compreensão, por parte do terapeuta, dos
sentimentos apresentados pelo paciente, o que colaboraria para a obtenção de um ambiente
terapêutico. Essa atitude - que posteriormente contribuiria para a formulação do conceito de
empatia - enfatiza uma relação terapêutica baseada na objetividade. Uma relação na qual o
centro estaria, ainda, mais voltado para o terapeuta, pois ele interpretaria o comportamento
do paciente.
A abordagem rogeriana foi estudada por muitos autores que dividiram e descreveram
em fases a evolução do pensamento de Rogers, que se deu a partir de sua experiência de
pesquisador e de psicoterapeuta. Essas fases descritas do pensamento rogeriano têm início a
partir de 1940, que é quando Rogers começa a desenvolver uma teoria própria de
psicoterapia, tendo como marco sua famosa palestra em dezembro de 1941. Existem algumas
divisões das fases de Rogers, mas a mais comumente utilizada é a formulada por Hart &
Tomlinson de 1970, que foram abordadas por outros autores como Cury em 1987, Wood em
1983, Holanda em 1994, sendo ampliada por Moreira em 1990, 2001, 2007 e mais
recentemente em 2010. Essas fases estão divididas da seguinte forma: a fase não-diretiva
(1940-1950); a fase reflexiva (1950-1957); fase experiencial (1957-1970); fase coletiva e interhumana (1970-1987) e mais recentemente, a fase pós-rogeriana (1987-atualidade).
Evolução da ideia embrionária na fase não-diretiva (1940 - 1950)
Nessa primeira fase, chamada não-diretiva, Rogers estava na Universidade de Ohio, no
período de 1940 a 1950. Caracteriza-se por ter uma proposta de terapia não-diretiva, na qual,
segundo Messias (2001), deveria haver um ambiente propício, que facilitasse ao cliente o
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desenvolvimento de seu potencial e que pudesse assumir a responsabilidade pelo seu
próprio processo.
Para Moreira (2010), essa psicoterapia não-diretiva
parte de conceitos que têm como base o impulso individual para o
crescimento e para a saúde, dá maior ênfase aos aspectos de sentimento do
que aos intelectuais, enfatiza o presente ao invés de enfatizar o passado do
indivíduo, o foco de interesse maior é o indivíduo e não o problema, e toma
a própria relação terapêutica como uma experiência de crescimento (p. 5).
Os aspectos fundamentais de uma relação terapêutica são estabelecidos na principal
obra concernente a esta fase, Psicoterapia e consulta psicológica (1942/1973), em que Rogers
propõe como primeiro aspecto na terapia o calor e a capacidade de resposta do terapeuta,
que torna possível o surgimento de uma relação e a evolução gradativa para um nível mais
profundo de entendimento.
Esta fase caracteriza-se pela permissividade na terapia, na qual os terapeutas não
diretivos estimulam seus clientes a falarem mais e livremente; portanto há a predominância
da atividade do paciente, visto que permite que o mesmo assuma a maior parte do seu
percurso, da conversação de seus problemas (Rogers, 1942/1973).
Rogers assume nesta fase inicial, quando ele cria uma proposta inovadora de
psicoterapia, uma posição de suposta neutralidade (Messias, 2001; Moreira, 2010) e
objetividade, na qual a intervenção do terapeuta deveria ser mínima, pois o cliente tem seu
mundo subjetivo e sua forma de reagir em relação a ele. Neutra no sentido de o terapeuta
não interferir "no direcionamento ou na construção de um jeito subjetivo de ver o mundo e
reagir a ele" (Messias, 2001, p. 31). E objetiva, pois se dá pelo empirismo e o rigor nas
pesquisas realizadas.
Essa ideia de não-diretividade ocasionou muitos mal entendidos acerca da atuação do
psicoterapeuta pouco ativo ou que não fala na sessão (Moreira, 2010). A permissividade de
Rogers sofreu muitas críticas, quando na verdade, como lembra Holanda (1994), seu objetivo
era desarticular a ideia de que o terapeuta estava em uma posição de autoridade.
A evolução do conceito de empatia começa a ser observada na fase não-diretiva, a
partir do livro Psicoterapia e consulta psicológica (1942/1973), quando Rogers descreve o
conceito de hipótese base da consulta psicológica, ao defini-la como sendo uma "relação
permissiva, estruturada de uma forma definida que permite ao paciente alcançar uma
compreensão de si mesmo num grau que o capacita para progredir à luz da sua nova
orientação" (Rogers, 1942/1973, p. 29).
Nesta obra, Rogers (1942/1973) propõe uma nova forma de psicoterapia - a
psicoterapia não-diretiva, cujo objetivo não é o de resolver um problema particular do cliente,
mas sim o de colaborar com o indivíduo para que ele possa se desenvolver, podendo assim
enfrentar o problema presente e os futuros de uma forma mais integrada. Essa psicoterapia
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tem como um de seus aspectos, uma confiança mais profunda de que o indivíduo pode
orientar-se para a maturidade, para a saúde e para a adaptação (Rogers, 1942/1973).
Essa nova experiência terapêutica possibilita uma vivência de desenvolvimento ao
sujeito, pois nela "o indivíduo aprende a compreender-se a si mesmo, a optar de uma forma
independente e significativa, a estabelecer com êxito relações pessoais de uma forma adulta"
(Rogers, 1942/1973, p. 42). Todavia, é ressaltado que o conselheiro não tem a obrigação de
dar respostas certas, pois tem como função proporcionar um ambiente e uma atmosfera, nos
quais os problemas possam ser refletidos e as relações apreendidas com maior clareza
(Rogers, 1942/1973). Ou seja, o psicoterapeuta não diz ao paciente o que é o seu problema,
nem diz a este o que deve fazer, mas proporciona uma atmosfera adequada, para o
desenvolvimento do cliente, em um ambiente terapêutico. Transmite confiança que
possibilite ao cliente expor todas as suas dificuldades e, assim, no decorrer da psicoterapia
bem sucedida, compreender e resignificar seus problemas.
Rogers ressalta que é interessante - em determinadas situações - que o terapeuta seja
mais prudente, tentando evitar os extremos da reserva ou da ultraimplicação, criando uma
relação qualificada pelo calor, pelo interesse, capacidade de resposta e uma dedicação afetiva
num grau limitado com clareza e precisão (Rogers, 1942/1973).
É possível perceber indícios do conceito de empatia no pensamento de Rogers, já nesta
época, quando ele menciona a importância do terapeuta não censurar o paciente, com
respostas críticas e reprovadoras, nem ser excessivamente simpático ou demasiado
compreensivo. O terapeuta deve procurar manter uma atitude mais equilibrada, a fim de que
o paciente possa se afastar dos mecanismos de defesa, sendo mais autêntico, permitindo um
melhor enfrentamento da realidade e um acesso aos seus problemas de adaptação (Rogers,
1942/1973).
Neste momento, podemos observar traços do que viria a ser o conceito de empatia,
uma vez que Rogers afirma que a não-identificação e a resposta não-reprovadora
possibilitam que o cliente se sinta livre para expressar seus sentimentos contraditórios. A
não-identificação é, posteriormente, enfatizada por Rogers, em sua conceituação de empatia,
como sendo uma condição de "como se" estivesse no lugar do outro. Tal como a resposta
empática que viria a ser o abster-se de uma resposta crítica e reprovadora. Segundo Bozarth
(1998/2001), Rogers não mencionava o termo empatia, mas vários de seus comentários
abriram caminho para este conceito, na medida em que se referia à conceituação de bom
terapeuta, à capacidade de compreensão como se fosse ele próprio, à ausência de coerção ou
pressão e ao calor da aceitação.
Nesta fase, não cabe mais ao terapeuta a interpretação do comportamento do cliente.
Aqui, Rogers ressalta que o cliente pode alcançar uma compreensão de si mesmo. O
terapeuta colabora com esse processo criando uma atmosfera agradável e propícia, que
permita que o cliente possa se sentir aceito. Os possíveis indícios das condições facilitadoras
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em psicoterapia já podem ser percebidos dentro da obra Psicoterapia e consulta psicológica
publicada em 1942, que traz a ideia de um ambiente propício, onde possa existir um calor da
aceitação, sem preconceitos e que o terapeuta tenha uma capacidade de resposta que torne a
relação possível e que tenha uma atitude mais equilibrada.
Antes, a responsabilidade de interpretar o comportamento do cliente era do terapeuta,
que agora deixa de assumir esse papel, para que, por meio de um calor que possibilita a
expressão do cliente, de uma atmosfera psicológica facilitadora em que possa existir
aceitação e o terapeuta seja uma pessoa compreensiva e não-avaliativa, o cliente possa ter
uma maior compreensão de si mesmo.
Surge o conceito de empatia na fase reflexiva (1950-1957)
A fase reflexiva caracteriza-se pela prática do reflexo de sentimentos e corresponde à
Terapia Centrada no Cliente, tendo como principal obra Terapia centrada no cliente (1951). Esta
fase corresponde à passagem da "não-diretividade" à "centrada no cliente", na qual o
terapeuta torna-se mais ativo - ao contrário da fase anterior que era mais passivo - e o cliente
passa a ser alvo da atenção do terapeuta (Cury, 1993; Holanda, 1994; Moreira, 2010; Shlien &
Zimring, 1970). Cury (1993) enfatiza que "se, anteriormente, seu papel era o de ficar fora do
caminho do cliente, agora ele é levado a comprometer-se numa busca por compreensão
empática do sistema de referência de outra pessoa" (p. 45).
No momento em que Rogers passou a denominar sua terapia de centrada no cliente,
deixando para trás a denominação não-diretiva, observa-se o desenvolvimento da noção do
quadro de referência do cliente (Grant, 2010). Branco, Cavalcante e Oliveira (2008) afirmam
que nesta fase Rogers passou a perceber que o terapeuta tinha condições de se tornar mais
ativo na relação com o cliente, podendo adentrar em sua experiência, deixando de ser apenas
um observador. Sobretudo, pelas atitudes empáticas do terapeuta.
É em seu livro Terapia centrada no cliente (1951/1992), que Rogers, inicialmente, procura
diferenciar duas formas de atitude, a declarativa e a empática, mostrando que o terapeuta
deve estar focado nesta última, pois corresponde a uma forma de passar o conteúdo
expressado de forma mais suave - diferente da primeira, que é mais rígida - tendo um
caráter empático e compreensivo, podendo o cliente entender que tem mais possibilidade de
se expressar. Assim, as atitudes do terapeuta não seriam de esclarecer as atitudes do cliente,
mas que seria um experimentar ativo, juntamente com ele (Rogers, 1951/1992).
Nos relacionamentos terapêuticos mais satisfatórios, o terapeuta tem como função
assumir, da melhor maneira possível, uma estrutura de referência interna do cliente, para que
possa perceber o mundo como o cliente o vê, deixando de lado todos os a priori, enquanto
estiver na relação, passando algo de sua compreensão empática ao cliente (Rogers,
1951/1992).
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Rogers (1951/1992) refere que a conceituação dos termos compreensão e aceitação
passaram a ser primordialmente considerados pelo terapeuta, uma vez que o mesmo
dedicou-se ao entendimento profundo do mundo íntimo do cliente. A partir de uma maior
concentração nesses conceitos, o terapeuta busca observar de maneira mais profunda o que o
cliente está vivenciando, ou até mais intensamente do que o próprio cliente é apto a
compreender no momento, e quando perceber a estrutura de referência interna do cliente,
indicar em que medida está captando seu mundo.
Com o intuito de conseguir alcançar essa meta e de tornar a relação terapeuta-cliente
única, o terapeuta tem que deixar de lado o seu próprio self, ou seja, a si mesmo, para poder
entrar no mundo do cliente a fim de ajudá-lo. É possível entender a relevância dessa
compreensão para com o cliente na terapia, na medida em que Rogers (1951/1992) assinala
que o terapeuta acaba cometendo menos erros ao deixar de tentar interpretar o que o cliente
está trazendo. O terapeuta tem como objetivo, na relação terapêutica, buscar a reconstrução
do campo perceptivo do cliente no momento em que ele se expressa, por meio de sua
habilidade e sensibilidade. Para que a empatia possa existir na relação, o terapeuta deve estar
atento, pois sem atenção ele não conseguirá compreender o que o cliente está sentindo e
dessa forma não existirá uma comunicação plena.
Ao discutir algumas tendências significativas no treinamento de terapeutas, Rogers se
reporta à necessidade dos mesmos passarem por uma experiência terapêutica, pois a terapia
pode ajudá-los a se sensibilizar em meio aos sentimentos e atitudes que o cliente vivencia,
tornando-os mais empáticos em um nível mais profundo. Desta maneira, o terapeuta poderia
experienciar todos os fenômenos empatic amente, a fim de que pudesse existir uma melhor
compreensão do mundo do sujeito. No entanto, Rogers lembra que é impossível alcançar
esse ideal.
Diferentemente de suas obras anteriores, no livro Terapia centrada no cliente (1951/1992)
Rogers trabalha com um conceito de terapia menos diretivo, já considerando explicitamente
que empatia é uma atitude necessária durante o processo para a criação de um ambiente que
facilite a compreensão do cliente de que ele é capaz de se autoatualizar. E, acaba se voltando
mais para essa capacidade do homem de acreditar em si. Para Bozarth (2001), "à medida que
Rogers começou a empregar o termo 'empatia', descreveu-a como o desenvolvimento, por
parte do terapeuta, de um interesse e receptividade em relação ao cliente e a busca de uma
compreensão profunda e não crítica" (p. 86).
Rogers (1951/1992) afirma que para ser um terapeuta eficaz é necessário que se utilize
um método ou uma técnica que seja adequada, ou seja, compatível com as suas atitudes
pessoais. O objetivo desse orientador seria trabalhar com o cliente acreditando que ele tem
condição suficiente para suportar positivamente os eventos de sua vida, que possam,
potencialmente, alcançar a percepção consciente. Isso seria possível, na medida em que o
cliente encontra uma situação favorável para que esse material chegue à sua consciência, e
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uma demonstração considerável de aceitação e capacidade de conduzir a si mesmo por parte
do terapeuta. Essa situação favorável ocorre por meio de uma relação de compreensão
verdadeira, na qual se produz uma atitude empática.
Isso se dá por meio da unicidade do experienciar, que Rogers menciona em seu artigo
Pessoas ou ciência? uma questão filosófica (1955/2008). Neste artigo mostra que essa unicidade é
como uma forma de estar junto com o cliente em seu mundo interno, numa relação
verdadeira. É um experienciar único numa relação com o cliente, mas sem qualquer
diagnóstico sobre o que o cliente está sentindo. É apenas compreender o cliente, por meio de
uma relação verdadeira, entrando nessa relação como uma pessoa.
Rogers (1955/2008) relata ter se lançado nessa relação terapêutica com uma hipótese,
de que a confiança, a estima e a compreensão do mundo do cliente proporcionariam um
significativo processo do vir-a-ser. Para ele, o cliente deve ser visto como pessoa dentro da
relação terapeuta-cliente, pois só desta forma ele poderá enxergar a si mesmo como pessoa.
Rogers continuamente lembra ao leitor de suas obras a importância da nãoidentificação, ao descrever acerca do experienciar os sentimentos do cliente sem ter qualquer
pensamento ou diagnóstico, o que sugere sua preocupação em explicitar que compreender
empaticamente não significa se identificar com o cliente, ideia que será retomada adiante em
seus escritos.
Da empatia à compreensão empática na fase experiencial (1957-1970)
Na terceira fase de seu pensamento, também chamada fase de Wisconsin, Rogers tem
como foco a experienciação do cliente e expressão da experienciação do terapeuta,
representando, segundo Holanda (1994), um grande salto no seu trabalho, influenciado pelo
conceito de experienciação de Gendlin. Segundo Tassinari (2003), Rogers "com a inspiração
de Gendlin, ocupa-se em sistematizar a experiência e os processos internos que se referem à
mudança na personalidade, promovendo uma mudança de paradigma (sistêmico e não mais
mecanicista)" (p. 52). Esse conceito de experiência estipulado por Gendlin visava, de acordo
com Boainain (1999), esclarecer o foco orientador o centrar-se do terapeuta rogeriano, sendo
entendido como "o fluxo de significados sentidos, isto é, o processo de eventos interiores e
pré-verbais fisicamente sentidos aos quais a pessoa pode ter acesso direto e concreto em sua
experiência" (Boainain, 1999, p. 85).
Segundo Holanda (1994), nesta fase existe a intenção de ajudar o cliente a utilizar
plenamente sua experiência, permitindo uma congruência do selfe um desenvolvimento das
relações. A autenticidade do terapeuta passa, também, a ser importante e a fazer parte da
relação terapeuta-cliente (Moreira, 2010). Ou seja, Cury (1993) entende que existe aí uma
bicentralidade, pois existe uma exploração de dois mundos (cliente e terapeuta) que se
esforçam em interagir em benefício do cliente.
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Fontgalland, R. C. & Moreira, V. (2012). Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no pensamento de
Carl Rogers. Memorandum, 23, 32-56. Recuperado em __ de ______________, ____, de
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De acordo com Moreira (2001, 2007, 2010), na fase experiencial a prática clínica de
Rogers se aproxima da tradição fenomenológica, na medida em que passa a focalizar a
experiência intersubjetiva, mais do que apenas se focar na pessoa, ou seja, ao se focar na
experiência intersubjetiva entre cliente e terapeuta, Rogers se aproxima, neste aspecto, de
uma visão fenomenológica.
Para Boainain (1999), quando Rogers foi para Wisconsin, em 1957, surgiram algumas
tendências e inovações que configuraram uma nova e importante fase para a Terapia
Centrada no Cliente, na qual houve uma aproximação do referencial existencialfenomenológico, pois nesta época Rogers era opositor das ideias behavioristas de Skinner.
Em seu artigo As condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica na
personalidade publicado na fase experiencial, Rogers (1957/2008) tem como preocupação
estabelecer teorias acerca da psicoterapia, da personalidade e das relações interpessoais,
englobando e contendo os fenômenos de sua experiência, além de definir as condições
básicas para o processo de mudança construtiva na personalidade. Para ele, essa mudança só
ocorreria caso houvesse a existência dessas condições por um determinado período de
tempo. Essas condições seriam:
1. Que duas pessoas estejam em contato psicológico;
2. Que a primeira, a quem chamaremos cliente, esteja num estado de
incongruência, estando vulnerável ou ansiosa;
3. Que a segunda pessoa, a quem chamaremos de terapeuta, esteja
congruente ou integrada na relação;
4. Que o terapeuta experiencie consideração positiva incondicional pelo
cliente;
5. Que o terapeuta experiencie uma compreensão empática do esquema de
referência interno do cliente e se esforce por comunicar esta experiência ao
cliente;
6. Que a comunicação ao cliente da compreensão empática do terapeuta e
da consideração positiva incondicional seja efetivada, pelo menos num grau
mínimo (Rogers, 1957/2008, p. 145).
Segundo O'Leary (2008), a quinta condição - compreensão empática - é o coração da
terapia, consistindo na arte de compreender com precisão o mundo de cada indivíduo, e o
terapeuta deve experimentar, com uma exata compreensão, essa estrutura interna do cliente,
esforçando-se em comunicar esta experiência.
Rogers (1957/2008) compreende empatia como sendo sentir o mundo do cliente como
se fosse o seu próprio mundo, mas o terapeuta, nesse momento, não pode perder a qualidade
de "como se" estivesse no mundo do outro. Para Bozarth (2001), "o terapeuta deve
continuamente estar consciente dos seus próprios sentimentos, como se eles fossem os
sentimentos do cliente, talvez 'como eles realmente são' e não 'como se fossem'" (p. 106).
Empatia consiste, portanto, em o terapeuta sentir o que o cliente está sentindo, a raiva, o
medo, como se fossem seu verdadeiramente, sem ao menos sentir ou se envolver com os
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sentimentos expressos pelo cliente (Rogers, 1957/2008), e comunicar essa compreensão a ele,
tanto o que é claro quanto o que pode estar pouco consciente para o cliente.
Importante entendermos que comunicar a compreensão ao cliente não quer dizer que
seja um reflexo da fala dele, mas que é passar uma compreensão apurada permitindo um
processo de resignificação do mundo interno do cliente. Bozarth (2001) alerta que respostas
de "reformulação de sentimentos" não devem ser confundidas com empatia, pois Rogers
salienta que essas respostas não são uma condição essencial na terapia, mas que servem de
canal técnico, através da qual as condições são veiculadas.
Bozarth (2001) busca esclarecer o que seria essa reformulação de sentimentos:
1. A reformulação é um modo do terapeuta se tornar empático, de verificar
se compreende o cliente e de lhe comunicar esta compreensão.
2. [...]. A reformulação é uma maneira de o terapeuta entrar no mundo do
cliente 'como se' o terapeuta fosse o cliente. A reformulação é uma técnica
que pode ajudar o processo.
3. A reformulação não é empatia. É um modo de ajudar o terapeuta a
tornar-se mais empático.
4. A empatia não é reformulação. É um processo de o terapeuta entrar no
mundo do cliente 'como se' o terapeuta fosse o cliente. A reformulação é
uma técnica que pode ajudar o processo (pp. 98-99).
Para Bozarth (2001), Rogers deixou claro que fazer uso de técnicas seria pouco valoroso
se porventura as mesmas não estivessem enraizadas nas atitudes do terapeuta, pois essas
atitudes ajudam a provocar uma mudança construtiva da personalidade e do
comportamento do cliente. De acordo com Rogers (1961/2008), essa mudança ocorre devido
às atitudes do terapeuta, e não devido ao que ele estudou, aos seus conhecimentos e às suas
técnicas, mas como ele age na relação. Estas descobertas significam, para Rogers, que a
terapia é um relacionamento que desafia o terapeuta a ser a pessoa que é, e a sua afeição e
compreensão empática podem ajudar na promoção de crescimento do cliente.
O conceito de compreensão empática, propriamente dito, enquanto uma evolução do
conceito de empatia, desenvolvido na fase experiencial, consiste em o terapeuta ser "sensível
aos sentimentos e às reações pessoais que o cliente experiencia a cada momento, quando
pode apreendê-los 'de dentro' tal como o paciente os vê, e quando consegue comunicar com
êxito alguma coisa dessa compreensão ao paciente" (Rogers, 1961/1987, p. 66).
Esse tipo de compreensão difere daquela que nós, com frequência, recorremos ao
dizermos ao outro que compreendemos seu problema, que sabemos o que o levou a agir de
determinada maneira. Esta seria uma compreensão do senso-comum, o que para Rogers
(1961/1987) consiste naquelas compreensões que normalmente damos e recebemos, que
julga do exterior. Mas quando a pessoa que ouve, compreende sem querer analisar ou julgar,
proporciona o crescimento e o desabrochar do outro. Ou seja, quando o terapeuta apreende a
experiência do cliente "momento a momento em seu mundo interior, como este o sente e o
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vê, sem que a sua própria identidade se dissolva nesse processo de empatia, então a
mudança pode ocorrer" (Rogers, 1961/1987, p. 66).
No trabalho com seus clientes, Rogers procurava criar um clima e um ambiente que
houvesse segurança, calor e compreensão empática. Para ele, mesmo que seja mínima, a
compreensão empática é fundamental; mas, evidentemente, como afirma Rogers (1961/1987),
a ajuda é muito maior quando o terapeuta é capaz de captar e formular com clareza o que
experimentou do cliente. Podemos dizer que, neste sentido, o terapeuta tem a capacidade de
se abandonar e de se permitir adentrar na experiência do outro a fim de compreendê-lo, não
existindo barreiras que o impeça de chegar a esse objetivo, de sentir o que ele próprio e o
cliente sentem no momento da relação, transmitindo esse sentimento ao cliente, transmitindo
a sua compreensão empática acerca do que fora apreendido no mundo do cliente.
Rogers (1961/1987) mostra que ao se lançar nessa relação a confiança e a compreensão
do mundo interno do outro estimularão um significativo processo de mudança, de
transformação. Ou seja, insiro-me numa relação pessoal, olhando o cliente como sujeito e não
como um objeto. Para tanto,
abandono-me ao caráter imediato da relação ao ponto de ser todo o meu
organismo, e não simplesmente a minha consciência, que é sensível à relação
e se encarrega dela. Não respondo conscientemente de uma forma planejada
ou analítica, mas reajo simplesmente de uma forma não reflexiva para com o
outro indivíduo, baseando-se a minha reação (embora não conscientemente)
na minha sensibilidade total organísmica a essa outra pessoa. Eu vivo a
relação nesta base (pp. 181-182).
Diante do explanado, a empatia é compreendida como sendo o experimentar uma
compreensão do mundo particular do cliente, o que justifica a evolução do conceito de
empatia para compreensão empática, captando assim seu mundo particular de uma maneira
"como se" tivesse sentindo seus medos, suas angústias, seus receios, enfim, do que ele
expressou, sem se afetar por isso. É o movimentar-se pelo mundo do cliente, compreendendo
esse mundo e comunicando ao cliente essa compreensão obtida. Esse acesso ao mundo do
cliente se dá por meio dos sentimentos manifestados, que passo a passo o terapeuta escuta,
parte do ponto de vista do cliente e "entra" no mundo deste. Dessa forma acurada, o cliente
passa a sentir segurança na relação e a ter novas e variadas formas de se relacionar com o
mundo e consigo mesmo. Portanto, a eficácia do terapeuta apresenta-se quando ele é sincero,
quando aceita o cliente tal como ele é e a si mesmo dentro de um estado de acordo interno, e
manifesta uma empatia total, na qual possa enfrentar o mundo do cliente a partir dos olhos
deste. Rogers (1961/1987) afirma que a congruência, a aceitação e a empatia do terapeuta
devem ser comunicadas com êxito ao cliente e não é suficiente apenas que o terapeuta as
tenha.
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A compreensão vem relacionada ao fato do cliente ser aceito pelo terapeuta e este o
tratar como pessoa, acreditando que o cliente tem a capacidade de crescer e resolver seus
próprios problemas. Devemos ser facilitadores dentro de um processo de "como se", com o
cliente e não por ele ou sobre ele. Assim, ser empático provoca uma aceitação pelo outro,
contribuindo para atitudes positivas e suscetíveis de levar a soluções (Rogers, 1961/1987).
Em Conceito de pessoa em funcionamento pleno (1963/2008) Rogers presume que uma
pessoa que possui uma relação intensa e extensa com a Terapia Centrada no Cliente e se essa
terapia é bem sucedida, então, significa que o terapeuta é capaz de entrar numa relação
pessoal com o cliente, e que essa relação se dá de forma subjetiva e intensa. À medida que
isso acontece, está ocorrendo aí uma relação de pessoa para pessoa, na qual o terapeuta sente
o cliente como uma pessoa, independentemente de sua condição, de seu comportamento ou
de seus sentimentos, o cliente é visto como uma pessoa incondicionalmente valorosa.
Na obra Psicoterapia e relações humanas (Rogers & Kinget, 1965/1977), Rogers afirma que
a empatia é uma das noções relativas à fonte de conhecimento. Para ele, empatia
consiste na percepção correta do ponto de referência de outra pessoa com as
nuances subjetivas e os valores pessoais que lhe são inerentes. Perceber de
maneira empática é perceber o mundo subjetivo do outro 'como se' fossemos
essa pessoa - sem, contudo, jamais perder de vista que se trata de uma
situação análoga, 'como se'. A capacidade empática implica, pois, em que,
por exemplo, se sinta a dor ou o prazer do outro como ele os sente, em que
se perceba sua causa como ele a percebe (isto é, em se explicar os
sentimentos ou as percepções do outro como ele os explica a si mesmo), sem
jamais se esquecer de que estão relacionados às experiências e percepções de
outra pessoa. Se esta última condição está ausente, ou deixa de atuar, não se
tratará mais de empatia, mas de identificação (p. 179, grifo do autor).
É importante lembrar que a compreensão empática está relacionada às experiências e
percepções de outra pessoa, não às nossas, por isso a não-identificação - preocupação já
antiga de Rogers. Para Vieira e Freire (2006), esse "como se" se apresenta como uma abertura
a visitação do estranho, do que não é reconhecido como nosso. Nessa visitação entramos em
contato com o que é do outro, e ao experimentarmos uma compreensão empática do ponto
de referência interno do cliente, temos que informar explicitamente ao cliente, ou seja,
verbalmente que as estamos experienciando. Isso deve acontecer, mesmo que minimamente.
No entanto, o terapeuta não deve fingir que as está vivenciando, pois ele só deve comunicar
ao cliente se ele estiver realmente experimentando esses sentimentos. Isso quer dizer que, o
terapeuta deve estar em eficaz estado de acordo interno para que possa experimentar os
sentimentos que supõe ter de experimentar (Rogers & Kinget, 1965/1977).
Ao explicar as condições do desenvolvimento de uma relação que se deteriora, Rogers
demonstra que se as condições facilitadoras, de um processo terapêutico, não forem
devidamente implantadas na relação, essa relação se torna negativa. Caso o cliente não esteja
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sentindo uma relação empática, ele se sentirá menos confortável para expressar o que sente,
se sentirá menos capaz de expressar sentimentos relativos ao eu, sua percepção será menos
diferenciada, ele estará menos capacitado a perceber e a exprimir o desacordo existente entre
os dados de sua experiência e a imagem que faz de si próprio, ele se tornará menos
habilitado a reorganizar sua imagem (Rogers & Kinget, 1965/1977).
Após vivenciar todo esse processo facilitador, proposto pelo terapeuta, o cliente viverá
uma experiência ótima, conseguindo se entregar a uma exploração progressiva de
pensamentos e de sentimentos porque percebeu que o terapeuta o aceitava de modo
incondicional (Rogers & Kinget, 1965/1977). Essa aceitação incondicional por parte do
terapeuta faz com que o cliente perceba esta disponibilidade e se sinta compreendido e
respeitado enquanto pessoa. Desta forma, os sentimentos que antes não eram expressos vêm
a tona, possibilitando ao cliente uma maior compreensão de suas dificuldades, de seus
problemas, de seu mundo interno.
Percebe-se uma ligação existente, desde o início dos escritos de Rogers, entre aceitação
positiva incondicional e empatia, nos quais podemos observar que uma não pode se
apresentar sem a outra, havendo assim uma espécie de complementação, pois a partir dessa
consideração positiva incondicional para com o cliente é que vai existir uma possibilidade de
compreensão empática. Isso é observado, quando Rogers afirma que a consideração positiva
incondicional é realizada através da compreensão empática (Rogers & Kinget, 1965/1977).
Bozarth (2001) enfatiza essa concepção de Rogers afirmando que para que o olhar
incondicional positivo ocorra é preciso que se dê dentro de um processo de compreensão
empática.
As atitudes estipuladas por Rogers são inseparáveis e interdependentes. A
compreensão empática é uma manifestação e um veículo de comunicação da consideração
positiva incondicional. Além do que a congruência do terapeuta está completamente
interligada à compreensão empática, e isto quer dizer que ao ser transparente, verdadeiro,
mais intensa será a empatia do terapeuta em relação ao seu cliente.
A compreensão empática como um processo na fase inter-humana ou coletiva (1970-1987)
Diante de possíveis nomenclaturas para essa fase, é necessário justificar a posição de
cada um dos precursores das mesmas. Moreira (2010) a nomeia como sendo Fase Coletiva,
porque Rogers passou a se interessar por questões referentes às atividades de grupo e às
relações humanas coletivas, que o fizeram abandonar suas atividades de terapeuta
individual, assumindo uma definição mais ampla de seu trabalho, passando de Psicoterapia
para Abordagem.
Holanda (1994), ao repensar as fases do pensamento de Rogers, denomina essa fase de
Inter-Humana baseando-se na linguagem buberiana, pois considera que "'coletiva' privilegia
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demasiado uma outra dimensão da existência humana, a social, representada pelo grupo
onde temos a realização desse coletivo, mas que, em geral, suprime o elemento pessoal,
individual, 'justamente o elemento mais importante'" (p. 9). Além dessas nomenclaturas
citadas para essa quarta fase, é importante citar ainda a ideia de Boainain (1999), que em sua
descrição da Abordagem Centrada na Pessoa - ACP, mantém as denominações das três fases
anteriores e quanto às duas últimas as designa como sendo a quarta fase, a Fase dos Grupos
de Encontro (anos 60 a meados de 70) e a quinta fase, a Fase dos Grandes Grupos (de meados
dos anos 70 em diante).
A Fase dos "Grupos de Encontro" corresponde, segundo Boainain (1999), ao momento
em que Rogers praticamente abandona suas atividades individuais, tais como, terapeuta,
pesquisador e professor universitário, passando a se tornar um escritor, um conferencista e
um facilitador de grupos.
Na Fase dos "Trabalhos de Grandes Grupos", proposta por Boainain (1999), três
aspectos centrais merecem ser destacados, pois caracterizam a última década da vida de
Rogers. O primeiro destes aspectos corresponde ao surgimento da modalidade de trabalho
grupal, denominado de trabalho com grandes grupos, tais como as comunidades de
aprendizagem, encontros de aprendizagem comunitária, workshops comunitários, ou outras
grandes reuniões de pessoas. O segundo aspecto refere-se à conscientização das
potencialidades políticas de Rogers desenvolvido pelo seu pensamento e sua prática. O
terceiro consiste na aproximação, que vem crescendo, com a perspectiva místico-espiritual,
que se caracteriza, atualmente, como sendo o movimento transpessoal em psicologia..
Independentemente da denominação dada a esta fase, o fato é que nos seus últimos
anos de vida, Rogers estende sua visão para mais do que apenas workshops; estende para
visões mais universais, para questões relacionadas a desacordos internacionais propondo
para seus membros e parlamentares que sejam adeptos do ouvir, da compreensão e do
respeito mútuo, e volta-se para questões educacionais, familiares, organizacionais e tudo
quanto exista uma visão universal de humanidade, respeito e coletividade.
Para Holanda (1994), esta fase correspondeu à transcendência de valores e ideias, na
qual Rogers demonstrou preocupação com o futuro da humanidade e do mundo. Essa seria,
então, segundo Holanda, uma fase mística e holística de Rogers, voltada para a
transcendência da existência humana. E, de acordo com Boainain (1999), corresponde,
também, à perspectiva místico-espiritual.
Nesta fase, Rogers assume a denominação de Abordagem Centrada na Pessoa, pois
não diz respeito apenas à relação entre cliente e terapeuta na psicoterapia, mas a toda e
qualquer relação de desenvolvimento humano.
E é nesta fase que, dentre os vários escritos de Rogers sobre empatia e compreensão
empática, Rogers escreveu seu famoso artigo Uma maneira negligenciada de ser: a maneira
empática (1975), no qual afirma a necessidade de dar uma maior importância à resposta
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empática e mirar a empatia com novos olhos, passando a considerá-la como talvez um fator
mais relevante numa relação e como sendo um dos fatores mais importantes para a
promoção de mudanças e aprendizagem (Rogers, 1975/ 1977b). Assim, Rogers defende a tese
de se reexaminar uma maneira especial de ser, a maneira empática. Para ele, é uma maneira
sutil e poderosa no funcionamento pessoal, mas é raramente encontrada integralmente numa
relação interpessoal.
Rogers havia dado inúmeras definições de empatia até então, mas necessitava formular
uma definição mais atual, e para tanto lançou mão do conceito de vivência de Gendlin para
nortear suas ideias mais recentes sobre a empatia.
Para Rogers, Gendlin entende que existe no sujeito um fluxo de vivência, que o
indivíduo se reporta inúmeras vezes e o usa como ponto de referência para encontrar o
significado de sua existência. E a empatia, em Gendlin, é justamente "ressaltar com
sensibilidade o 'significado sentido' que o cliente está vivenciando num determinado
momento, a fim de ajudá-lo a focalizar este significado até chegar à sua vivência plena e
livre" (Rogers, 1975/1977b, p. 72).
Logo após essa retaguarda conceitual, Rogers passa então a formular uma definição
mais atual de empatia, a qual não é mais, definitivamente, vista como um estado, mas como
um processo. Como nos esclarece Amatuzzi (1995), esse processo não é um estado, mas um
movimento, pois "quando o processo se instaura é a própria estrutura que se questiona, se
flexibiliza, se transforma" (p. 65). Diante dessa nova maneira de compreender a empatia,
surgiu uma conceituação mais atual estabelecida por Rogers (1974/1977a), cuja empatia
significa penetrar no mundo perceptual do outro e sentir-se totalmente a
vontade dentro dele. Requer sensibilidade constante para com as mudanças
que se verificam nesta pessoa em relação aos significados que ela percebe, ao
medo, à raiva, à ternura, à confusão ou ao que quer que ele/ela esteja
vivenciando. Significa viver temporariamente sua vida, mover-se
delicadamente dentro dela sem julgar, perceber os significados que ele/ela
quase não percebe, tudo isto sem tentar revelar sentimentos dos quais a
pessoa não tem consciência, pois isto poderia ser muito ameaçador. Implica
em transmitir a maneira como você sente o mundo dele/dela à medida que
examina sem viés e sem medo os aspectos que a pessoa teme. Significa
frequentemente avaliar com ele/ela a precisão do que sentimos e nos
guiarmos pelas respostas obtidas. Passamos a ser um companheiro confiante
dessa pessoa em seu mundo interior. Mostrando os possíveis significados
presentes no fluxo de suas vivências, ajudamos a pessoa a focalizar esta
modalidade útil de ponto de referência, a vivenciar os significados de forma
mais plena e a progredir nesta vivência. Estar com o outro desta maneira
significa deixar de lado, neste momento, nossos próprios pontos de vista e
valores, para entrar no mundo do outro sem preconceitos; num certo
sentido, significa pôr de lado nosso próprio eu (p.73).
Essa definição foi analisada por Freire (2000), que percebeu que Rogers engloba três
facetas do modo de ser empático. Designou-as, portanto, como sendo "experiência empática",
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"compreensão empática" e "reflexo de sentimentos". Para esta autora, a primeira faceta diz
respeito à maneira de estar na relação e a segunda se refere ao conhecimento dos significados
e dos sentimentos que o outro está experienciando na relação. E o reflexo de sentimentos,
apresenta-se como método ou uma maneira de se comunicar com o cliente (Freire, 2000).
Por mais que aparente ser sutil e suave, ser empático é algo complexo, pois exige muita
doação, disponibilidade e aprendizado. Rogers (1974/1977a) nos mostra que muitas
pesquisas demonstraram o quanto existe uma correlação entre a empatia transmitida pelo
terapeuta, a autoexploração do paciente e as mudanças que ocorrem no cliente. Para tanto,
faz-se necessário ouvir o cliente de forma interessada e não-avaliativa. Isso é um fator muito
poderoso dentro do processo psicoterapêutico, pois se estabelece uma alta sintonia entre
ambos. Nesse momento, o cliente desenvolve, a partir da compreensão, sua identidade. A
empatia confirma isso, de que existimos como pessoa, que possuímos uma identidade, valor
e unicidade. Ou seja, o cliente passa a perceber um novo aspecto de si mesmo. Daí em diante,
"o comportamento modifica-se no sentido de corresponder ao self que acaba de ser
percebido" (p. 83). Trata-se de pro ver, por meio da empatia, a aprendizagem do respeito a si
mesmo, ao seu mundo interno, e entrar em contato com uma variedade maior de suas
vivências, permitindo seu fluxo normal. Isto quer dizer que a pessoa passa a ser promotora
de seu crescimento.
Na relação terapeuta-cliente, ser compreendido proporciona que o cliente tome posse
de si mesmo; e nas relações grupais, permite que os sentimentos sejam expressos, esclarecidos
e entendidos pelos participantes dos grupos. A expressão do sentimento se dá por meio de
uma comunicação aberta, na qual as atitudes e sentimentos são levados em consideração não
importando a intensidade deles (Rogers, 1977/1986). "É evidente que as atitudes facilitadoras
podem criar uma atmosfera onde seja possível uma expressão aberta. Expressão aberta, neste
tipo de clima, leva à comunicação. Melhor comunicação leva, frequentemente, à compreensão
e compreensão derruba muitas das antigas barreiras" (p. 131).
Rogers orgulhava-se dos membros de seus grupos quando estes mostravam
preocupação e tinham um interesse mais amplo uns pelos outros. Para ele, quando existia
um clima facilitador, desenvolvia-se um comportamento responsável tanto entre jovens,
quanto nos idosos. Esse interesse significa que o outro, ao qual demonstro essa abertura,
precisa simplesmente ser ouvido. Seus sentimentos, sua raiva devem ser levados a sério e
compreendidos com empatia.
Em Um jeito de ser (1980/2007), Rogers destaca a importância de um ouvir atento as
experiências e as perspectivas pessoais do cliente e das pessoas. Deve ser uma escuta atenta e
não-avaliativa, pois é necessário que a pessoa não fique julgando ou tentando assumir a
responsabilidade pela outra, é preciso ouvir de forma empática, sensível e concentrada.
Trata-se de escutar os pensamentos, o significado pessoal dos sentimentos, do que está por
trás da consciência, mesmo que seja um grito humano profundo. Esse ouvir o significado real
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existe de três formas: o terapeuta ouvir a si mesmo, o terapeuta ouvir ao cliente e o cliente
ouvir a si mesmo. Esse ouvir provoca muitas mudanças significativas, tanto em terapia
individual, quanto nas experiências intensivas de grupo, pois os indivíduos passam,
gradualmente, a ouvir uns aos outros.
Quando as pessoas são aceitas e consideradas, elas acabam por considerar mais os seus
sentimentos. Ao serem ouvidas de modo empático as pessoas podem, igualmente, ouvir de
forma mais detalhada o fluxo de suas experiências internas. Dessa forma, o cliente torna-se
mais congruente com suas próprias experiências, torna-se assim propiciador do seu próprio
crescimento (Rogers, 1980/2007).
O conceito de empatia na fase pós-rogeriana (1987 - Atual)
Moreira (2009a, 2010) nomeou de fase pós-rogeriana a produção da Abordagem
Centrada na Pessoa por parte de outros autores após a morte de Rogers, compreendendo o
período de 1987 até a atualidade. Durante esses últimos vinte e cinco anos, em vários lugares
do mundo, a Abordagem Centrada na Pessoa vem se desenvolvendo por meio de várias
vertentes (clássica, experiencial, existencial-fenomenológica, transcendental, analítica, entre
outras) e a partir das diferentes fases do pensamento de Rogers (Moreira, 2010).
É importante ressaltar que, assim como existem inúmeras vertentes contemporâneas
baseadas no pensamento de Carl Rogers, a partir de diferentes fases de seu pensamento, mas
que seguem seu próprio caminho, o conceito de empatia também tem sido retomado pelos
vários autores das várias vertentes teóricas contemporâneas de seu pensamento. A empatia,
como as outras atitudes facilitadoras, continua sendo fundamental nestas várias vertentes
contemporâneas que partem do pensamento rogeriano (Moreira, 2010). Algumas dessas
conceituações merecem ser citadas para ilustrar uma melhor compreensão dos vários
desenvolvimentos pós-rogerianos.
Bozarth (2001) analisa como o conceito de empatia evoluiu na Teoria Centrada no
Cliente. Para ele, Rogers considerava a empatia como sendo uma noção essencial terapêutica
e a tornou a chave da mudança no processo terapêutico. A essência da terapia rogeriana seria
fundamentada, então, na empatia não-diretiva, que seria expressa em termos de atitude do
terapeuta. É por meio da compreensão empática que o olhar incondicionalmente positivo é
transmitido ao cliente, dentro de um contexto de congruência.
Bozarth (2001) finaliza sua investigação, tratando da empatia na estrutura básica da
Terapia Centrada no Cliente, da mesma forma que Rogers a considerava. Assim, ela é um
conceito terapêutico fundamental, uma atitude e uma experienciação, um processo
interpessoal, e faz parte de uma atitude global na qual existe a inter-relação entre as atitudes
facilitadoras.
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Fontgalland, R. C. & Moreira, V. (2012). Da empatia à compreensão empática: evolução do conceito no pensamento de
Carl Rogers. Memorandum, 23, 32-56. Recuperado em __ de ______________, ____, de
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Já Cavalcante (2008), mostra-nos três níveis nos quais a empatia é compreendida por
Maria Bowen: o nível de relacionamento; o nível de energia (cujo trabalho terapêutico
acontece de duas formas: pela escuta ativa e por meios habilidosos); e o nível da unidade. O
primeiro é compreendido como sendo aquele que inicialmente refere-se ao conteúdo e aos
sentimentos que surgem na relação terapeuta-cliente. E a principal função do terapeuta seria
"criar um espaço de confiança no qual os clientes possam explorar e manifestar diferentes
partes de si mesmos e experienciar as suas próprias energias curativas, em seus tempos e
ritmos próprios" (Cavalcante, 2008, p. 25). Neste nível, o trabalho terapêutico tem como
material de trabalho o que o cliente traz à tona em terapia, as atitudes do terapeuta e a
relação existente entre ambos (Cavalcante, 2008).
O nível da energia mostra-nos um poder que pode passar despercebido ou
subestimado, como é o caso da escuta ativa, pois uma escuta de qualidade pode ter um
poder curativo não sendo necessário, muitas vezes, que o psicoterapeuta faça ou diga
alguma coisa (Cavalcante, 2008). Os meios habilidosos são aqueles que "depende do nível de
desenvolvimento espiritual do terapeuta. Quando o que ele utiliza em terapia não é somente
uma técnica isolada, mas algo que se tornou intrinsecamente parte experiencial da sua vida"
(Cavalcante, 2008, p. 26, grifo do autor), por exemplo, os exercícios de visualização de
sonhos, meditações, entre outros que possuam o objetivo de proporcionar e facilitar ao
cliente o contato com seus recursos internos (Cavalcante, 2008).
No nível da unidade, terapeuta e cliente passam a compartilhar, como um só, do
mesmo mundo. A empatia passa a ser entendida como sendo uma ferramenta a ser utilizada
dentro de uma perspectiva de trabalho com o cliente, dentro de uma realidade
compartilhada, transcendendo cada um dos envolvidos na relação, de forma individual
(Cavalcante, 2008).
O referido autor em seu texto, A empatia formativa é!, tem a intenção de ampliar a noção
de empatia no nível da unidade. Para tanto, utiliza-se do pensamento de Maria Bowen, a
respeito da unidade: "para se operar no nível da unidade, a conexão entre os terapeutas e os
clientes tem que estar presente, mesmo sendo transcendida para além da relação, incluindo
uma energia que ultrapassa a mente consciente" (Bowen, 1992 citado por Cavalcante, 2008, p.
59). A esse tipo de fluxo terapêutico, Cavalcante denomina de Empatia Formativa.
Essa Empatia Formativa "brota do cosmo, que vive em nós e nos convida a nele
mergulhar onde ele e eu somos um" (Cavalcante, 2008, p. 60, grifo do autor). Não se trata
apenas de adentrar na realidade do outro como se fosse a nossa, é a empatia que faz nosso
espírito nos mover a dizer algo que brota, simultaneamente, de dentro e de fora (Cavalcante,
2008).
Cavalcante (2008) afirma que para Maria Bowen é no nível da unidade que a intuição
está relacionada com um elevado grau de empatia. Ele cita textualmente uma carta aberta de
Bowen (sobre o que Rogers lhe escrevera), onde esta afirma que "a intuição é uma forma
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elevada de empatia, e eu concordo com ele que ela somente acontece em momentos especiais
em terapia e que, quando acontece, traz a ela uma qualidade poderosa de cura" (Bowen, 1991,
citado por Cavalcante, 2008, p. 61, grifo do autor).
Cavalcante e Bowen consideram a Empatia Formativa como uma expressão da mística
da ACP, referindo-se o primeiro autor à dimensão mística e espiritual. Essa dimensão,
segundo Cavalcante, foi subestimada por Rogers e outros autores da ACP.
Boainain (1999) já concordava com essa questão da intuição, para ele a "intuição
extraordinária revelada em momentos de excelência terapêutica associados à alteração
ampliadora da consciência descrita por Rogers tem sido algumas vezes considerada, na
literatura da ACP, como uma forma particularmente profunda e potente da habitual atitude
rogeriana da empatia" (p. 204).
Já em outra vertente, a humanista-fenomenológica, retomamos o conceito de empatia a
partir do pensamento de Rogers, quando este a compreende como sendo uma maneira de
penetrar no mundo perceptual do outro e captar com precisão seus sentimentos e
significados pessoais, numa condição de "como se" e comunicar essa compreensão ao
cliente. Moreira (2009b) enfatiza essa posição acrescentando que ser empático possibilita ao
terapeuta além de entrar no mundo do cliente, se mover na companhia do mesmo, em busca
de compreender sua experiência vivida.
Para Vanaerschot (1990), o terapeuta quando é empático entra em contato com as
partes do mundo fenomenológico do cliente, e é por meio da escuta empática que o
terapeuta se familiariza com esse mundo fenomenológico. Por isso, ainda de acordo com
Vanaerschot (1990), o terapeuta pode ter a sensação de que está em fusão com o cliente, mas
essa sensação não implica na perda da condição de "como se". Isso é importante, pois o
terapeuta tem que estar ciente de que o que está experimentando naquele momento vem e
pertence ao cliente e que não é dele.
Nesta vertente, trata-se, "em primeira instância, de buscar o significado da experiência
vivida, ou seja, compreender o Lebenswelt, o mundo vivido" (Moreira, 2009b, p. 51, grifo do
autor). Essa compreensão é captada em sua totalidade, pois se dá a partir do entrelaçamento
que ocorre entre as experiências objetivas e subjetivas. Trata-se de compreender o indivíduo
tal como ele é, de acordo com suas experiências: "Quando, como psicoterapeuta, busco
compreender o significado do Lebenswelt, busco captar esta mistura do vivido, que é,
simultaneamente, tanto subjetivo como objetivo, tanto consciente como inconsciente, tanto
individual como social e, portanto, ambíguo" (Moreira, 2009b, p. 52, grifo do autor).
Dentro do processo psicoterapêutico, existe um entrelaçamento entre os lebenswelten do
cliente e do terapeuta. Neste entrelaçar que se estabelece, o psicoterapeuta caminha com seu
cliente de mãos dadas no mundo vivido dele, mas numa condição de "como se", sem se
separar de seu lebenswelt. E isso é possível por meio da empatia (Moreira, 2009b).
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É por meio da empatia que se compreende os significados do sofrimento do cliente, e
essa compreensão somente é possível quando o cliente aceita receber o psicoterapeuta em
seu mundo vivido. Esse sofrimento pode ser compartilhado com o psicoterapeuta, e este o
compreende como um facilitador empático. Desta forma, ocorre uma possibilidade de
resignificação do sofrimento pelo cliente.
Por meio da redução fenomenológica, o terapeuta pode colocar suas opiniões acerca do
cliente em suspenso, para compreender o mundo do cliente na perspectiva deste e deixá-lo
percorrer seu caminho, por mais que essa redução não seja completa (Moreira, 2009b).
Vanaerschot (1990) afirma que o terapeuta deve escutar o cliente e estar comprometido com
o que ele está dizendo, praticando a redução fenomenológica. Neste sentido, reduzir
fenomenologicamente consiste em o terapeuta deixar de lado seu conhecimento teórico,
opiniões e expectativas, além de suspender a sua própria estruturação, organização,
conhecimentos, entre outros para penetrar no mundo do cliente e entrar em um processo de
profunda compreensão.
Enfatiza Moreira (2009b), que com o decorrer do tempo o cliente passa a conhecer
melhor seu Lebenswelt, passando a identificar os melhores caminhos, seus limites e suas
potencialidades. Além disso, "na medida em que aprende sobre seu Lebenswelt, o cliente
aprende sobre os significados de sua experiência vivida, tanto os significados negativos
como os positivos, tanto sobre os seus ganhos como sobre suas perdas" (Moreira, 2009b, p.
56, grifo do autor).
Podemos entender que, no enfoque humanista-fenomenológico a compreensão
empática é a capacidade de penetrar no mundo vivido do cliente, por meio da redução
fenomenológica, e aprender, juntamente com o cliente, sobre sua experiência vivida.
Estes desenvolvimentos teóricos mais recentes sobre a empatia, que fazem parte da
fase pós-rogeriana, ilustram aqui no Brasil a preocupação dos autores em pensar e repensar a
compreensão empática enquanto um recurso precioso na facilitação do crescimento do outro,
nos mais distintos desdobramentos teóricos do pensamento de Carl Rogers (Moreira, 2010;
Cavalcante, 2008; Bowen, 1987).
Considerações Finais
O conceito de empatia evoluiu de apenas um estado para um processo, sendo mais do
que apenas um conceito, mas uma atitude fundamental, uma compreensão profunda,
verdadeira e sem julgamentos, por meio de um ver e ouvir verdadeiros, proporcionando
todo um ambiente ideal de acolhimento e de facilitação para que o cliente se sinta
compreendido e caminhe em prol do crescimento e amadurecimento de sua personalidade.
Para tanto, é fundamental que o terapeuta esteja em estado de acordo interno para
proporcionar todo esse ambiente ideal ao seu cliente, pois este está ali confiando na
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possibilidade de crescer como pessoa, confiando na integridade e disponibilidade de
facilitação do terapeuta. Ou seja, o terapeuta é um facilitador desse processo, buscando em
sua autenticidade, em sua congruência, subsídios para uma maior consideração positiva
incondicional e uma compreensão empática mais adequada a cada situação dos fenômenos
emergentes.
Este artigo mostra que este conceito fundamental surge e ganha cada vez mais espaço
no pensamento de Carl Rogers, passando a ser entendido como um processo. Compreender
empaticamente na psicoterapia, nos grupos ou nas várias situações clínicas ou de
crescimento pessoal é um processo que exige um constante esforço por parte da pessoa. Este
conceito, ainda que com desenvolvimentos teóricos recentes, segundo as várias vertentes
contemporâneas do pensamento rogeriano, foi, sem dúvida, uma das mais geniais
compreensões e desenvolvimentos de Carl Rogers em sua busca de facilitar e compreender o
outro no sentido de seu amadurecimento e crescimento, e merece muito mais pesquisas que
contribuam para a compreensão e incrementação de seu potencial facilitador.
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Nota sobre as autoras
Rebeca Cavalcante Fontgalland - Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Universidade de
Fortaleza - UNIFOR. Email: [email protected]
Virginia Moreira - Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade de Fortaleza, onde coordena o APHETO - Laboratório de Psicopatologia e
Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica. É Doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP, com Pós-Doutorado em Antropologia Médica por Harvard University. É membro da
World Association of Person Centered and Experiential Psychotherapy e da Associação
Universitária de Pesquisadores em Psicopatologia Fundamental. Endereço Institucional:
Universidade de Fortaleza, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Washington
Soares 1321 (Bairro Edson Queiroz). CEP 60811-905. Fortaleza/CE, Brasil. E-mail:
[email protected]
Data de recebimento: 13/04/2012
Data de aceite: 20/08/2012
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
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Vieira, E. M. & Freira, J. C. (2012). Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das paixões.
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Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das
paixões
Psychopathology and Client Centered Therapy: for a clinic of the passions
Emanuel Meireles Vieira
Universidade Federal do Pará
José Célio Freire
Universidade Federal do Ceará
Brasil
Resumo
A psicopatologia é tema central na clínica psicológica. Tentativas de definições de
normalidade e patologia estão presentes nas teorias e engendram práticas clínicas
diferenciadas. O objetivo deste trabalho é discutir psicopatologia na Terapia Centrada no
Cliente, através da noção de pessoa em pleno funcionamento, de Carl Rogers. Questionase esta noção, baseado na ética da alteridade radical, de Emmanuel Lévinas, reafirmando
o pathos como paixão e reconhecendo a necessidade de a psicoterapia centrada na pessoa
escutar o radicalmente Outro. Aponta-se, finalmente, a desconstrução da ideia de pessoa
em pleno funcionamento, por esta desconsiderar a diferença do Outro, numa concepção
totalizante da subjetividade.
Palavras-chave: alteridade; psicopatologia; terapia centrada no cliente
Abstract
Psychopathology is the central theme on clinical psychology. Endeavors for statements of
normality and pathology are presented in the theories and engender different clinical
practices. The aim of this work is to discuss psychopathology on Client Centered Therapy
through the notion of person in fully functioning by Carl Rogers. Questions are made,
based on the ethics of radical alterity by Emmanuel Lévinas, reaffirming the pathos as
passion and recognizing the necessity of the person centered psychotherapy to be open to
listen to the radically Other. Finally, the desconstruction of the idea of fully functioning
person is pointed, once it disregards the difference of the Other, in a whole conception of
subjectivity.
Keywords: alterity; psychopathology; client centered therapy
Introdução
A psicopatologia atravessa toda a história dos saberes psicológico e psiquiátrico. As
produções de discurso sobre esse tema, ao longo da história (Pessotti, 1999), nos mostram
quão diversos são os modos de compreensão do fenômeno psicopatológico. Tal diversidade
é, em todas variedades teóricas destes saberes, marcada por uma discussão cara a
Canguilhem (1943/2002): o que é normal e o que é patológico? Os vários saberes "psi" e suas
diversas variações se depararam com essa pergunta e ofereceram variadas respostas.
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Vieira, E. M. & Freira, J. C. (2012). Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das paixões.
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57-69.
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Entre as diversas correntes em psicologia que tiveram que lidar com a questão está a
Terapia Centrada no Cliente (TCC), desenvolvida por Carl Rogers. Este sempre se furtou a
definir aquilo que seria normal ou patológico, em sua teoria psicológica. Segundo o aludido
autor, o psicodiagnóstico seria, inclusive, perda de tempo (Evans, 1979), e, em seu
desenvolvimento, desconsideraria a pessoa em terapia, ou seja, poder-se-ia aprisioná-la num
determinado diagnóstico e desconsiderar sua singularidade, ou, nos dizeres rogerianos,
deixar-se-ia de vê-la como uma pessoa.
Apesar de seu desejo e esforço em não criar, nem se utilizar de categorias
psicopatológicas, Rogers não consegue fugir dessa questão, principalmente por suas
concepções de pessoa em pleno funcionamento (Rogers, 1978) e de tendência atualizante
(Rogers & Wood, 1978).
Baseado nas ideias de Berlinck (1997), Freire (2000), Moreira (2002, 2007) e Vieira e
Freire (2006), este trabalho visa a questionar o lugar desses conceitos na concepção do
patológico na terapia centrada na pessoa e propor a prática psicoterápica, não como uma
ferramenta ortopédica (Berlinck, 1997; Freire, 2000), mas como escuta do pathos - aqui
compreendido como paixão, desmesura. Assim, situa-se numa perspectiva crítica do modelo
de saúde mental apresentado por Rogers, e visualiza novas possibilidades para a
compreensão do patológico na TCC.
Considerações sobre o patológico na TCC
Rogers produziu bastante acerca do processo terapêutico. Especificamente, pesquisou,
como ninguém havia feito até então, o fenômeno da mudança da personalidade envolvido
nesse processo (Rogers, 2001), a ponto de conseguir descrever aquilo que denominou
condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica da personalidade (Rogers,
1994).
A definição de categorias psicopatológicas, contudo, é algo que passa ao largo de toda
a produção rogeriana. Em diálogo com Buber, por exemplo, ocorrido em 1959 e só
recentemente traduzido e publicado em português, Rogers explicita sua posição a respeito
do estabelecimento de categorias diagnósticas, quando, questionado por Buber sobre seu
relacionamento em terapia com pessoas doentes, afirma:
Sinto que se, do meu ponto de vista, esta for uma pessoa doente, então, eu
não o ajudarei tanto quanto eu poderia. Sinto que essa é uma pessoa. Sim,
outros podem chamá-lo de doente, ou se eu olhar para ele de um ponto de
vista objetivo, então eu poderia concordar, também, "Sim, ele está doente."
Mas ao entrar em uma relação, me parece que, se estou olhando para isso
como "eu sou uma pessoa relativamente bem e esta é uma pessoa doente [...]
não servirá de nada." (Rogers & Buber, 2008, p. 236).
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Rogers responde a Buber, como se o fato de considerar o outro como uma pessoa
resolvesse o imbróglio que envolve a questão. Não há dúvida de que a consideração positiva
incondicional, a empatia e a genuinidade são elementos cruciais para o bom andamento do
processo terapêutico. Contudo, conforme Moreira (2007) nos mostra, a noção de pessoa implicada com as atitudes do terapeuta diante do indivíduo em terapia - traz diversos
problemas para o pensamento rogeriano, a se destacar a concepção individualista de pessoaindivíduo, a dicotomia dentro-fora, o não-reconhecimento dos múltiplos contornos que
compõem a subjetividade e uma liberdade meramente subjetiva, descolada das condições
socioculturais.
Além disso, Rogers (1978) define uma pessoa em pleno funcionamento, a partir do
seguinte questionamento: "qual (...) o ponto final ótimo da psicoterapia, o ponto de maior
crescimento psicológico possível?" (p. 264). Esse conceito não se foca na patologia, e
apresenta uma perspectiva do potencial do cliente, que seria caracterizado, após um processo
psicoterápico bem-sucedido, pelos seguintes atributos: abertura à experiência, vivência de
modo existencial (vivendo cada momento como único) e confiança no organismo.
De acordo com a descrição acima, podemos perceber que se trata de um modo de viver
cujos fundamentos repousam sobre o conceito fundamental da TCC, qual seja, o de
tendência atualizante, corolário do conceito de autorrealização de Kurt Goldstein, em sua
teoria Organísmica. A presença dessa tendência em todos os seres humanos significa que "o
homem tem uma tendência inata para desenvolver todas as suas capacidades destinadas a
manter ou a melhorar seu organismo - a pessoa total, mente e corpo. Esse é o único
postulado básico da terapia centrada no cliente" (Rogers & Wood, 1978, p. 194-195). Os seres
vivos, portanto, segundo tal conceito, tenderiam sempre a agir em função de sua preservação
e crescimento.
Rogers salienta que a ciência deu muita atenção aos processos de autodestruição dos
seres vivos (a entropia - nível de desorganização inerente aos sistemas), e não se focou na
sintropia, uma "tendência sempre atuante em direção a uma ordem crescente e a uma
complexidade inter-relacionada, visível tanto no nível inorgânico quanto no orgânico"
(Rogers, 1983, p. 45). A ênfase rogeriana, decididamente, é na possibilidade de
desenvolvimento da tendência atualizante, com base em uma visão otimista e, por vezes,
ingênua, do ser humano (Moreira, 2001).
Na pessoa em pleno funcionamento, pois, todas as escolhas do indivíduo teriam como
parâmetro a sabedoria organísmica (Rogers & Kinget, 1977) do indivíduo, isto é, levaria em
conta aquilo que sente no momento, e não o que as pessoas significativas esperariam que
sentisse ou fizesse. A conformação entre o self (imagem que indivíduo constrói acerca de si
mesmo) e o organismo resultaria numa fronteira cada vez mais fluida e menos nítida entre
eles.
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É a imagem dessa pessoa que Rogers (2001) transmite, quando descreve as etapas do
processo terapêutico. Divididas em sete, essas etapas iriam de uma não-comunicação de
aspectos pessoais do indivíduo à fluidez da vivência imediata de um sentimento antes não
reconhecido pelo indivíduo, dada a cisão entre seu organismo (instância pré-reflexiva) e seu
self. Para Rogers (2001), "nas novas vivências imediatas que ocorrem nesses momentos, os
sentimentos e os conhecimentos interpenetram-se, o eu está subjetivamente presente na
experiência, a vontade é (...) de um equilíbrio harmonioso na direção organísmica" (p. 181).
Aplicando raciocínio inverso ao desenvolvido por Rogers, podemos perceber o que não
seria saudável a partir de uma perspectiva centrada na pessoa, e logo vemos que aquele que
se encontra na escala um dos sete níveis do processo psicoterapêutico estaria nessa condição.
Ou seja, não conseguir estabelecer uma boa comunicação entre o self e o organismo para a
atualização de possibilidades é algo característico de alguém que desenvolveu algum tipo de
patologia.
Rogers (1994), inclusive, coloca como uma das condições necessárias e suficientes para
a mudança da personalidade a necessidade de que o cliente esteja em estado de desacordo
interno. Este desacordo ocorre, segundo a teoria rogeriana da personalidade (Rogers, 1975),
por um desvirtuamento da tendência autorreguladora do organismo. A necessidade de
manutenção do selfpassa a concorrer com a do organismo, de modo que os comportamentos
passam a ser confusos, sem a clareza da real necessidade sentida pelo indivíduo.
Compreensões dos sentidos do psicopatológico
Conforme Pessotti (1999), em A loucura e as épocas, a psicopatologia é uma invenção
recente que encontra suas referências históricas na apropriação do fenômeno da loucura pela
ciência médica. A princípio, faziam parte dos asilos todos aqueles que não se encaixavam na
sociedade, não havendo necessidade de comprovação clínica de seu estado "patológico".
Patológico, portanto, seria aquilo que foge às normas sociais, aquilo que, não
encontrando abrigo na sociedade, era depositado em asilos, sem uma clara distinção entre
seus habitantes. O patológico, nessa concepção, significa sofrimento, padecimento,
adoecimento. Quem sofre de uma patologia deve ser curado.
Berlinck (1997), ancorado no referencial psicanalítico, tece uma crítica ao modo
tradicional (curativo) de compreensão da psicopatologia, apresentando o pathos não como
doença, mas como paixão, excesso, desmesura. Sublinha o autor: "Pathos, então, designa o
que é pático, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência" (p.18).
A visão trazida por Berlinck, a que chama psicopatologia fundamental, inaugura um
novo modo de pensar o psicopatológico. Se, usualmente, se pensa o psicopatológico como
algo a ser extirpado, uma condição a ser superada por uma intervenção corretiva, neste
referencial o termo adquire a perspectiva de reconhecimento de uma condição de desmesura
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na constituição da subjetividade. Mais do que extirpar o patológico, deve-se acolhê-lo, deixar
que se manifeste como constituinte da tragédia humana.
Moreira (2002) faz uma retrospectiva da construção do conceito de psicopatologia,
desde Emminghaus, passando por Ribot e Jaspers, sem esquecer a importância de Freud,
enfatizando a mudança de paradigmas - alienação mental, doenças mentais e grandes
estruturas. De fato, o que ela busca é uma psicopatologia crítica, mundana, com fundamento
nos estudos de Merleau-Ponty, Tatossian e de autores culturalistas.
Noutro campo de discurso que não os de Berlinck, Pessotti e Moreira, o filósofo francolituano Emmanuel Lévinas desenvolveu uma perspectiva conhecida como ética da alteridade
radical (Pivatto, 2000). Não nos caberia aqui discorrer sobre a filosofia social de Lévinas,
dada sua complexidade e o escopo deste trabalho.
Interessa-nos saber que, para Lévinas (1998), a subjetividade se funda na
responsabilidade para com o Outro - alteridade infinitamente distante e que nos coloca uma
exigência absoluta. Lévinas, judeu, ex-prisioneiro de campos de concentração nazistas,
desenvolveu uma filosofia que se contrapõe à noção de totalidade construída pela tradição
filosófica (Lévinas, 1961/2000), a partir da ideia de Infinito, e denuncia a violência para com
o Outro que os saberes praticam, quando se debruçam sobre a questão do ser. O Infinito não
se dá a conhecer, revelando-se por um Rosto não-fenomênico, tensionando a interioridade,
na assunção da exterioridade como constitutiva da subjetividade.
Lévinas (1961/2000) coloca o ser em questão e afirma que aquilo que constitui o
humano não pode ser totalizado. Há sempre um aspecto da subjetividade que escapa ao
entendimento totalizante do saber científico moderno. Para Lévinas, assim como para
Berlinck, a subjetividade é marcada pela paixão, pela afecção, por uma dimensão de
estranhamento que questiona a mesmidade e institui uma incondição humana. Incondição,
porque não há escolha: sou tomado pelo Outro contra minha vontade. De acordo com Freire
(2002, p. 46), isso significa "(...) estar cara-a-cara com a alteridade (...) oferecer o rosto à
bofetada (...) não há opção, não há decisão, só intimação pelo Outro".
A temporalidade, por tal ponto de vista, vem do Outro, que me fala de um lugar
inatingível, quer dizer, a relação com ele, além de se dar de modo diacrônico, e não
sincrônico - como pressupõe, por exemplo, o diálogo em Buber (Holanda, 1997) -, é
assimétrica. O Outro, também, não pode ser "capturado" por uma imagem de seu rosto,
muito menos apreendido no tempo - o que reforça o aspecto excedente que lhe é peculiar. O
Outro, portanto, não pode ser desvelado, mas se revela em seu mistério e singularidade.
Como se pode perceber, tanto em Berlinck, quanto em Lévinas, há uma dimensão de
afecção por uma diferença que me excede, e um reconhecimento desta, não como algo que
deve ser suplantado, mas acolhido. Segundo Pivatto (2000), "no acolhimento, o outro é
referido na sua alteridade, o eu o acolhe no seu em-si" (p. 90), ou seja, não se trata de uma
relação de poder, mas, sobretudo de ser afetado por essa diferença. A partir dessas ideias - e
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dialogando com outras desenvolvidas por Freire (2000), Moreira (2007) e Vieira e Freire
(2006) -, procederemos a um questionamento a respeito do psicopatológico na TCC.
Psicopatologia e estranhamento na clínica das paixões
Conforme já citado acima, categorias psicopatológicas não só são evitadas, como
rechaçadas por Rogers, em sua produção intelectual. Quando, por exemplo, realizou estudos
com esquizofrênicos, Rogers (1976) evidenciou que essa condição de seus "pacientes" nada
mais é do que um jeito singular da experiência, como pode ser visto na seguinte passagem:
"a alucinação, a ilusão, a linguagem ou postura excêntricas têm, naturalmente, o seu sentido
na dinâmica psicológica do indivíduo esquizofrênico. Mas no relacionamento terapêutico
simplesmente forma uma linguagem mais difícil de comunicação" (p. 220).
Como se percebe, há uma compreensão, por parte de Rogers, da idiossincrasia
apresentada por seu cliente, uma vez que o considera uma pessoa, digna de aceitação.
Moreira (2007), no entanto, questiona a noção de pessoa em Rogers, utilizando a
fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Entre as críticas elaboradas por ela, encontram-se
a insistência de Rogers em colocar o indivíduo como centro - ideia a que se opõe o
reconhecimento da mútua constituição entre homem e mundo, que toma de empréstimo a
Merleu-Ponty -, a visão dicotômica de Rogers acerca da relação externo-interno e a
insistência na categoria "pessoa" para o desenvolvimento do processo terapêutico. Esta
última crítica nos interessa mais, para o presente trabalho.
Moreira (2007) afirma que
todas as vezes em que sua concepção teórica de pessoa é priorizada em
detrimento do próprio processo terapêutico, Rogers deixa de intervir
fenomenologicamente para voltar a centrarse na pessoa (...) a noção de
pessoa (...) aparece como um biombo entre o terapeuta e a experiência da
relação (p. 215).
Moreira (2007) prossegue, apontando a necessidade de superar "a idéia de
centramento, que mantém a psicoterapia de Carl Rogers presa e a impede de se realizar
fenomenologicamente. É importante que esta evolua para uma concepção de homem mundano
(...) como fenômeno em mútua constituição com o mundo" (p. 219).
Como se pode perceber na crítica elaborada por Moreira, a noção de pessoa, presente
em toda a obra rogeriana, se traz o respeito pelo indivíduo como algo fundamental ao
processo terapêutico (e isso, sem dúvida, é digno de louvor), aprisiona o desenrolar do
processo terapêutico. Mesmo guiado pelo respeito ao outro como pessoa digna de respeito e
aceitação por parte do terapeuta, Rogers captura outras possibilidades que possam advir na
relação terapêutica, com base nessa noção, como criticada por Moreira.
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Freire (2000), por sua vez, aponta uma surdez na Terapia Centrada no Cliente em lidar
com o absolutamente Outro. As atitudes propostas por Rogers, para esse autor, não avançam
em direção à radicalidade do Outro, tal como concebida por Emmanuel Lévinas. Todavia,
Freire (2000) identifica alguma proximidade entre a TCC e a filosofia dialógica de Buber,
visto que há uma tentativa de mutualidade na relação terapêutica, tal como proposta por
Rogers
Vieira e Freire (2006) tecem crítica semelhante, ao afirmarem que a pessoa em pleno
funcionamento, descrita por Rogers e por nós já explicitada, "seria quase a imagem e
semelhança do terapeuta, pois se caracteriza por uma maior abertura (...), viveria de maneira
existencial (...) e sentiria seu organismo como digno de confiança" (p. 429). Partindo dessas
ideias, questionam se "tornar-se pessoa" significa tornar-se um ideal de pessoa préestabelecido pelo terapeuta e frisam que, caso assim seja, "a abertura à diferença, tão
presente e marcante no que se refere à teoria rogeriana, seria uma técnica ortopédica de
transformação do outro numa réplica daquele que se 'abre' a sua diferença (em nosso caso, o
terapeuta)" (p. 429).
Tendo apresentado de forma breve as críticas realizadas por tais autores e as
concepções expostas anteriormente sobre o pathos, retomamos agora a noção do
psicopatológico, presente na teoria rogeriana, enfocando, principalmente, a tendência
atualizante e a pessoa em pleno funcionamento.
Rogers sustenta, em diversos momentos de sua obra, que o processo terapêutico se
caracteriza como devir. Assim, nem cliente, nem terapeuta têm ao certo um ponto fixo ao
qual o processo terapêutico deva conduzir. Todavia, nas etapas do processo terapêutico
descritas por Rogers (2001) e por nós já explicitada alhures, o cliente parte de um modo
impessoal de expressão a uma comunicação fluida consigo e com o psicoterapeuta. Essa
fluidez indicaria uma maneira saudável de se comunicar e se relacionar consigo e com os
outros.
Isso indica que, mesmo que Rogers afirme que cliente e terapeuta se entregam ao fluxo
do devir experiencial, há a previsão de um jeito de ser esperado pelo terapeuta. O "biombo"
a que Moreira (2007) faz alusão, em passagem já citada, se interpõe em todo o processo
terapêutico, nessa concepção. Vejamos o que diz Rogers (2001) sobre o desenvolvimento das
etapas do processo terapêutico: "No extremo superior do contínuo nunca se verifica mais do
que uma incongruência temporária entre a vivência e a consciência, pois o indivíduo já não
tem necessidade de se defender contra os aspectos ameaçadores da sua própria experiência"
(p. 180).
Conforme podemos perceber, na passagem transcrita, fica evidente a concepção de
subjetividade que é valorizada na perspectiva centrada na pessoa. Só se torna pessoa parafraseando a famosa expressão utilizada por Rogers - aquele que se desenvolve na
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direção do extremo superior do desenvolvimento na terapia. E aqueles que não o fazem?
Representariam eles o fracasso do processo terapêutico?
A compreensão de Rogers a respeito do clássico caso Ellen West pode nos indicar algo
nesse sentido. Rogers (1986) se posiciona desde o início nitidamente contra a ideia de o
suicídio de Ellen ter sido considerado como resolução de seu conflito. A hipótese de Rogers é
de que a famosa paciente de Binswanger não encontrou um terapeuta que pudesse
compreendê-la, de modo que ela "(...) mesma estaria se relacionando com outras pessoas, e
ela novamente descobriria que não é perigosamente inseguro, mas antes muito mais
satisfatório, ser o eu real ao se relacionar com os outros" (Rogers, 1986, p. 101).
Mesmo sem conhecer Ellen West, ou tê-la atendido, Rogers nos mostra que, com ela,
apostaria no processo de tornar-se pessoa, aproximando-a de sua sabedoria organísmica.
Neste ponto, cabe uma ressalva importante: a ideia que nos passa Rogers é de certa
"fabricação" em torno da subjetividade, de sorte que é desejado que todos aqueles que se
submetam ao processo terapêutico desenvolvam ao máximo possível as características de
uma pessoa em pleno funcionamento. De fato, podemos entender as psicoterapias como
dispositivos de constituição de subjetividades, nisso não nos afastando muito de ideias
foucaultianas que podemos identificar em Figueiredo (2009) e Ferreira (2004). O que faz a
diferença aqui é que há um ideal de pessoa a ser perseguido, em Rogers, o que o aproximaria
perigosamente de uma posição disciplinadora.
Dessa forma, tornar-se pessoa pode significar tornar-se um tipo de pessoa que Rogers
identificou como o de funcionamento ótimo da personalidade. Podemos constatar, assim, a
inabilidade de Rogers em lidar com o pathos como paixão, uma vez que, a partir da leitura
que ele faz do caso Ellen West, é possível perceber que as manifestações que faziam Ellen
sofrer necessariamente deveriam ser suplantadas por uma forma mais autêntica e aberta à
experiência. A abertura ao outro, portanto, se dá apenas na medida em que este atinja um
modo de funcionamento desejado pelo psicoterapeuta. Ou seja, essa abertura não se dá de
fato para a diferença do outro, mas para sua semelhança com o mesmo - no caso, o
terapeuta.
Esse funcionamento ótimo da personalidade encontraria seu fundamento na tendência
atualizante. Mesmo que noutro momento tenhamos imaginado tal tendência como uma
constante renovação de padrões, um processo alimentado pela diferença (Vieira & Freire,
2006), há um aspecto nela que merece ser destacado - sua unidirecionalidade. Retomando a
análise que Rogers faz do caso Ellen West, vemos que sua compreensão é de que a tendência
atualizante de Ellen apenas não encontrou um clima propício para seu desenvolvimento. De
acordo com Rogers (1986), somente quando se relaciona com o outro, considerando-o como
uma pessoa, "(...) existe um encontro de uma profundidade tal que dissolve, tanto no cliente
quanto no terapeuta, o sofrimento da solidão" (p. 101).
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O desenvolvimento da tendência atualizante de Ellen West garantiria o dissolver de
sua solidão e, quem sabe, poderia fazer com que ela pudesse experimentar uma "vida boa"
(Rogers, 2001), pela perspectiva apresentada por Rogers. A abertura que Rogers dá ao
cliente, a partir de sua consideração positiva incondicional, que, segundo Vieira e Freire
(2006), pode ser uma via de acesso ao Outro, em Rogers, mostra-se limitada no sentido de
que essa abertura implica que haja um desenvolvimento numa dada direção.
O pathos como paixão a ser ouvida e acolhida no processo terapêutico se dissolve na
expectativa de que o indivíduo venha a se tornar mais congruente, mais criativo, enfim, mais
próximo de sua sabedoria organísmica, em profunda conexão com sua tendência atualizante.
A perspectiva de saúde explicitada por Rogers (e seu avesso, na concepção por ele
desenvolvida de psicopatologia) parece desconhecer a desmesura do humano. Ao tentar
fazer com que o processo terapêutico facilite a ação da tendência atualizante e que, portanto,
o cliente se perceba como uma pessoa, Rogers ignora a possibilidade de que outras formas de
ser possam ser igualmente saudáveis.
As concepções rogerianas de processo terapêutico e de tendência atualizante indicam,
por conseguinte, que o acolhimento do pathos poderia dar-se de modo normativo. Isso
caracterizaria tal abordagem, como bem salienta Freire (2000), como uma prática ortopédica
de psicologia.
Uma clínica das paixões, conforme postulada por este texto, coloca o psicoterapeuta
numa posição de des-inter-esse (não haveria uma troca entre seres) pelo Outro, isto é, não há
um ponto a se chegar ou um tipo de subjetividade a ser moldada, durante o trabalho
psicoterapêutico. Compreendemos que se trata de um aprofundamento da atitude de
consideração positiva incondicional do terapeuta com relação ao cliente, um respeito pelas
experiências expressas, bem como pelo direcionamento que a expressão dessas experiências
pode dar ao desenrolar do processo.
Retomemos a ideia de consideração positiva incondicional. Para Kinget (1977), "o
objeto desta atitude incondicional não é alguma abstração tal como 'o cliente enquanto ser
humano', 'ser potencial', 'a personalidade que poderá tornar-se, ou poderia ter sido'. É o
cliente em sua totalidade, tal qual existe, hic et nunc" (p. 136, grifos da autora).
Como podemos perceber, na passagem acima, a atitude de consideração positiva
incondicional acarretaria a aceitação plena do cliente, sem pretensões, inclusive, de que ele
venha a se tornar algo pré-estabelecido. Todavia, o que se observa no modo como Rogers
descreve o desenvolvimento do processo terapêutico indica a expectativa e a aceitação, por
parte do terapeuta, quanto ao que o cliente pode vir a se tornar - uma pessoa.
Considerar positiva e incondicionalmente o cliente, de acordo com essa proposta, é
compreender que o direcionamento do processo terapêutico pode, por vezes, ser distinto
daquilo que Rogers (2001) descreve como seu objetivo, ou seja, que o cliente se torne o que é.
Tal frase, segundo o próprio Rogers (2001), inspirada em Kierkegaard, denota, na obra
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rogeriana, certa essencialidade presente, por exemplo, no conceito de tendência atualizante.
Em Kierkegaard, ela evidencia a tensão entre o ser e a doença mortal, o homem perante Deus
e a existência, cindido e bem distante de um ponto de vista essencialista. Portanto, ser o que
já se é, ou mesmo já se foi, quando poderíamos ter uma compreensão diferente - ser o que se
pode vir a ser (Nietzsche), criar um novo modo de ser (Foucault), ou mesmo sair do ser em
direção ao outro (Lévinas).
Agir assim significa abrir-se à diferença do Outro ou, no dizer levinasiano, estar aberto
a visitação do estranho, sem que se estabeleça uma teleologia a priori ao trabalho terapêutico.
Clínica das paixões, pois, pressupõe uma ótica do Outro como radicalmente diferente de
mim e possivelmente distante de minhas expectativas.
Considerações finais
O fato de não criar categorias de psicopatologia não quer dizer que um autor não tenha
concepções do psicopatológico, em sua produção intelectual. Com Rogers não é diferente,
conforme pudemos verificar com este trabalho. Adotar a noção de pessoa no trabalho
psicoterapêutico, por mais respeitoso que possa parecer, a princípio, pode trazer à tona o
risco de tomar o outro como algo a ser transformado num desejo do terapeuta.
Carl Rogers se insere na Matriz Romântica do pensamento psicológico, numa
submatriz Vitalista e Naturista, a partir da categorização de Figueiredo (1991). Isso implica
numa démarche que parte do intuicionismo de Bergson, passando pelo humanismo de
Maslow até chegar ao não-diretivismo do primeiro Rogers. Nesse sentido, apesar de
contrapor-se ao modelo positivista, não o faz com a "virulência crítica" de pensadores como
Nietzsche e Schopenhauer, por exemplo, que apostaram num irracionalismo que prima pela
negatividade.
Aproximar a perspectiva centrada na pessoa de autores como Kierkegaard, Husserl,
Heidegger ou Merleau-Ponty, não deixa de ser um exercício epistêmico aceitável, mas as
diferenças precisam estar demarcadas. Há que se superar o ideal de pessoa plena, aberta à
experiência de tornar-se o que é, e abrir-se à estranheza de si e do outro.
Ir para além da pessoa, como propõe Moreira (2001, 2007), pode significar abster-se de
toda expectativa criada em torno da relação terapêutica e entregar-se, de fato, ao devir que
essa relação cria, sem a necessidade da expectativa de que o cliente "se torne uma pessoa".
Estas críticas não significam, porém, que a Terapia Centrada no Cliente não possua
interessantes possibilidades de escuta do Outro. Como demonstram Vieira e Freire (2006),
essa abordagem possui elementos que desconsideram a diferença na constituição da
subjetividade, ao mesmo tempo em que apresenta possibilidades de lidar com tal alteridade,
a partir de uma abordagem ex-cêntrica da pessoa.
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/vieirafreire01
Vieira, E. M. & Freira, J. C. (2012). Psicopatologia e terapia centrada no cliente: por uma clínica das paixões.
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Portanto, não se trata aqui de dizer que todos os aspectos da TCC são alérgicos à
diferença, senão apresentar questões relativas ao tratamento dado à psicopatologia, nessa
abordagem, em direção aos descentramentos propostos por Moreira (2001, 2007) e Vieira e
Freire (2006), e a necessária condição ética de reconhecer a psicoterapia, não como escuta de
uma pessoa, mas, sobretudo, um fluxo de paixões (pathos) possíveis.
Algumas questões, contudo, permanecem: de que modo lidar com a psicoterapia, sem
que se tenha uma expectativa de resultado em torno dela? Quais as implicações práticas de
tal perspectiva? Que parâmetros estabelecer para o bom andamento do trabalho? Que
possibilidades empíricas pode oferecer tal perspectiva da clínica, no referencial da TCC?
Essas e outras questões merecem melhor tratamento, em trabalhos posteriores.
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Nota sobre os autores
Emanuel Meireles Vieira. Professor Assistente da Faculdade de Psicologia da
Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do
Ceará (UFC) e coordenador do projeto Plantão Psicológico na Clínica-Escola da UFPA. Email: [email protected]
José Célio Freire. Professor Associado do Departamento de Psicologia e do Mestrado em
Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Professor Tutor do Programa de Educação
Tutorial (PET-SESu/MEC), grupo PET Psicologia. Investiga questões vinculadas à relação
entre Alteridade e Subjetividade, Ética e psicologias e Literatura e Psicologia, no âmbito do
Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS). E-mail:
[email protected].
Data de recebimento: 08/05/2012
Data de aceite: 24/09/2012
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Carneiro, S. F. B. & Szymanski, H. (2012). A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de um
projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________,
_ _ , d e http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/carneiroszymanski01
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A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão
de um projeto educativo que articula escola e bairro
The contribution of Edith Stein's Phenomenology of Edith Stein for the comprehension
understanding of an articulated education project between school and neighborhood
Suzana Filizola Brasiliense Carneiro
Heloisa Szymanski
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
Resumo
A pesquisa relatada teve por objetivo compreender a articulação entre uma escola
municipal de ensino fundamental situada na periferia de São Paulo e grupos de jovens
que desenvolvem um trabalho de divulgação da cultura local por meio de oficinas de
literatura marginal. Foram feitas observações participantes; encontros com gestores,
educadores e com o responsável pelas oficinas; e uma entrevista reflexiva com os alunos.
O fenômeno da articulação mostrou-se como importante ação educativa à medida que
aproximou os alunos da literatura, ajudou-os a tomarem consciência de sua participação
na sociedade e a perceberem o conhecimento como ferramenta para transformação social.
O jovem responsável pelas oficinas também se transformou ao descobrir-se educador. As
mudanças ocorridas no nível individual repercutiram positivamente nas duas
comunidades envolvidas no projeto: escola e bairro (coletivos).
Palavras-chave: fenomenologia e educação; Edith Stein; relação escola-comunidade;
literatura marginal
Abstract
This research aimed at understanding the articulation between a public elementary
school on the outskirts of São Paulo and groups of young people who develop a work of
divulgation of the local culture through workshops of marginal literature. The research
involved participant observations; meetings with the managers, educators, and the
responsible for the workshops; and a reflexive interview with the students. The
phenomenon of articulation revealed itself as an important educational action insofar it
brought the students to the Literature - it helped them to be aware of their role in society,
and to realize knowledge as a tool of social transformation. The young person in charge
of the workshops was also transformed when he found himself as an educator. The
changes occurred in the individual level have positively had repercussions in both
communities involved in the project: the school and the neighborhood (collectives).
Keywords: phenomenology and education; Edith Stein; school-community relationship;
marginal literature
Introdução
Esta pesquisa insere-se em um projeto mais amplo denominado "Articulação e
Diálogo", que estuda a inter-relação entre instituições educativas formais e informais,
localizadas na periferia da Zona Norte da cidade de São Paulo. Coordenado pelo grupo de
pesquisa em Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional à Escola, Família e
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Comunidade (ECOFAM), do programa de pós-graduação em Psicologia de Educação
(Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o projeto visa
compreender o processo construtivo de propostas articuladas, bem como o contexto de
ensino e aprendizagem que delas emerge, apontando possibilidades, obstáculos e caminhos,
com o intuito de contribuir para as políticas públicas em Educação. Inserido nesse contexto, o
estudo aqui apresentado investigou o processo de articulação entre uma escola municipal de
ensino fundamental (EMEF) e grupos de jovens do bairro - auto denominados coletivos - que
buscam a transformação social através da produção e divulgação da cultura periférica
(trabalham com literatura, música, fotografia, grafite, entre outros). A investigação ocorreu a
partir de oficinas de literatura marginal ministradas por um jovem dos coletivos aos alunos
do ensino fundamental II da escola.
De acordo com Nascimento (2006), "literatura marginal" refere-se à produção de
autores que vivenciam situações de marginalidade (social, editorial ou de outras formas) e
que trazem para o campo literário os temas, termos e o linguajar igualmente "marginais".
Visa à expressão do que é peculiar aos espaços tidos como marginais. É uma produção que
se refere especialmente às periferias das grandes cidades.
O termo articulação foi utilizado neste estudo com dois sentidos complementares. O
primeiro corresponde à compreensão dos participantes do projeto "Articulação e Diálogo" a
respeito de uma ação articulada. Durante uma reunião do projeto, eles a formularam da
seguinte maneira:
Um encontro dialógico entre pessoas que compartilham objetivos comuns, para a
construção de conhecimento com a participação de representantes de idade, gênero,
escolaridade, experiências, origens diferentes, envolvendo a criação de vínculos entre
os protagonistas e compartilhamento de responsabilidade entre eles. Essas ações
resultam em ganhos para todos os que dela participam e um sentimento de satisfação
pessoal.
O segundo sentido dado à articulação apoia-se sobre a visão de comunidade de Edith
Stein, discutida no próximo item do artigo. A articulação, neste caso, é vista e discutida como
o encontro entre duas comunidades: a "comunidade-escola" e a "comunidade-bairro"
(representada pelos coletivos).
A articulação escola e bairro
A importância de projetos educativos que articulam escola e bairro é um tema bastante
discutido por autores contemporâneos, que os apontam como um caminho alternativo para a
recuperação do sentido da vida cotidiana e para a superação de uma "pedagogia da
exclusão" (Barroso, 2005). Segundo Torres (2003), a única possibilidade de assegurar
educação e aprendizagem permanente, relevante e de qualidade é fazer da educação uma
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projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________,
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necessidade e tarefa de todos. Isto implica a superação da distinção convencional entre escola
e comunidade, educação formal, informal e não formal, e a integração entre saber científico e
saber comum (Torres, 2003; Gohn, 2004; Afonso, 2001). Como resposta à necessidade de
diversificar a oferta educativa, Torres (2003) propõe o modelo de "comunidade de
aprendizagem", caracterizada como:
uma comunidade humana organizada que constrói um projeto educativo e
cultural próprio para educar a si própria, suas crianças, seus jovens e
adultos, graças a um esforço endógeno, cooperativo e solidário, baseado em
um diagnóstico não apenas de suas carências, mas, sobretudo, de suas forças
para superar essas carências (Torres, 2003, p. 83).
Como vemos, a autora propõe uma visão sistêmica do sistema escolar, segundo a qual
o projeto educativo não é apenas institucional, mas o resultado de ações articuladas entre
escola e bairro (Torres, 2003; Blank, Johnson & Shah, 2003).
A importância da articulação estudada também pode ser vislumbrada pela análise
sociológica de Berger e Luckmann (2005), que apontam para o importante papel das
"instituições intermediárias" como forma de evitar a crise de sentido que ameaça a sociedade
moderna. Por instituições intermediárias, os autores compreendem aquelas instituições
capazes de fazer uma ponte entre o indivíduo e os padrões de experiência e ação
estabelecidos pelos macrossistemas sociais. Essas instituições colaboram para que as pessoas
participem da construção do acervo social de sentido, deixando, assim, de experimentá-lo
como algo imposto e prescrito autoritariamente. Neste sentido, apostamos que uma escola
aberta à comunidade local possui, ao menos em potencial, o importante papel de instituição
intermediária. A articulação entre pequenos grupos locais e a instituição escolar traria, assim,
a possibilidade de construção, partilha e comunicação de sentidos que, através da escola,
poderiam chegar às instâncias de governo como Secretaria de Ensino, Subprefeitura, entre
outras, contribuindo efetivamente para a construção de um novo modelo escolar.
Vimos, portanto, o contexto maior em que este estudo se insere (Projeto "Articulação e
Diálogo"); o sentido dado à articulação; e a relevância do tema para o contexto atual. A
seguir, apresentaremos a visão de comunidade e formação de Edith Stein - autora de
referência para a análise do fenômeno estudado -, seguida de breve apresentação dos grupos
comunitários envolvidos (escola e coletivos) e da descrição das oficinas de literatura
marginal. Posteriormente, descreveremos os procedimentos metodológicos, seguidos da
análise e discussão dos principais resultados apreendidos.
Comunidade e formação em Edith Stein
A visão de comunidade apresentada por Edith Stein é fruto de investigações
fenomenológicas que a autora realizou a respeito da estrutura da vida associativa. Ao
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analisar as relações interpessoais, ou seja, ao estudar as vivências de um indivíduo em
relação ao outro, Stein percebeu variações no grau de abertura e na ênfase dada às
dimensões corpórea, psíquica e espiritual do ser humano. Tais variações lhe permitiram
identificar três tipos de agrupamento social: a massa, a sociedade e a comunidade. Embora
cada um deles tenha sido analisado separadamente, Stein afirma que não existe uma forma
de agrupamento pura, ou seja, os agrupamentos são mistos e dinâmicos, refletindo os
movimentos pessoais de seus membros.
A massa é compreendida como uma forma de reação coletiva fundada na
excitabilidade da psique individual. As pessoas se juntam por reação a algo externo a elas, o
que significa que as relações são pautadas por vivências corpóreas e psíquicas. A dimensão
espiritual do ser humano - responsável pela abertura a si mesmo, ao outro e ao mundo, e
pela possibilidade de avaliação e tomada de posição consciente e pessoal- não está presente.
Isto significa que uma massa não possui projetos próprios, mas caminha conduzida por um
líder externo que dela se aposse. Na massa, portanto, os sujeitos não possuem autonomia,
mas servem a um projeto alheio.
Na sociedade - segundo tipo de agrupamento -, as pessoas se relacionam em função
de objetivos comuns. Sua união depende de um ato voluntário, o que indica a presença da
dimensão espiritual nesse tipo de agrupamento. A sociedade é constituída por relações
objetivas, determinadas pelo papel específico de cada membro em uma estrutura prédefinida de acordo com a finalidade que a gerou.
O terceiro tipo de agrupamento social, para o qual voltaremos nossa atenção neste
artigo, é a comunidade. Uma comunidade se origina da relação recíproca entre as pessoas,
olhadas na sua totalidade. Os vínculos são corpóreos, psíquicos e espirituais e o trabalho de
cada membro depende de suas características particulares e não de um papel determinado
de antemão como na sociedade. Por isso, Stein compara a comunidade a um organismo vivo,
em que cada pessoa é um órgão único no todo.
A abertura ao outro é uma característica fundamental nas relações comunitárias.
Segundo Ales Bello (2000), a vida comunitária acontece quando "os indivíduos estão abertos
uns a respeito dos outros, onde as tomadas de posição de um não ficam sem efeito sobre o
outro, mas o estimulam e desenvolvem a própria eficácia" (p. 167). Mahfoud (2007) afirma
que uma relação se torna comunidade quando "a alma do outro é apreendida no concreto da
vida cotidiana; quando nos voltamos para uma pessoa na experiência que lhe é própria e
passamos a viver com ela algo em comum" (p. 120).
A formação de uma vivência comunitária é ilustrada por Stein (1999b) pela
comunicação de um pensamento, maneira pela qual a ciência se desenvolve. A autora nos
apresenta o seguinte exemplo: Quando uma pessoa me comunica o seu pensamento, ela me
abre passo a passo à compreensão do sentido que se constituiu originalmente no seu
pensamento. Vivendo o mesmo sentido, este me impulsiona a continuar a pensar não mais
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como uma reprodução do pensamento do outro, mas como uma produção originária.
Desenvolve-se, assim, pela comunicação, um pensar junto no qual o pensamento de ambos é
movido pela mesma motivação. O desenvolvimento da ciência ocorre desta maneira
segundo Stein (1999b). O que oferecemos como contribuição própria cresce sobre o
fundamento de um patrimônio já acumulado e aceito por nós. Tal contribuição, por sua vez,
se transforma no fundamento sobre o qual outros construirão depois de nós (Stein, 1999b).
A vivência comunitária implica, portanto, uma experiência de "nós", de pertença, que
não é puramente subjetiva, mas se pauta sobre um conteúdo comum, denominado por Stein
núcleo de sentido comum (Coelho Jr, 2006). A autora (Stein, 1999b) distingue a vivência
comunitária de uma vivência pessoal comparando-as a partir de uma situação de perda. A
dor pela perda de uma pessoa amiga é uma vivência diferente da dor pela perda do
comandante de uma tropa da qual faço parte. No primeiro caso, o sujeito da experiência é
um "eu", enquanto no segundo, é um "nós", já que a dor é partilhada por todos os membros
da tropa. Neste exemplo, o núcleo de sentido comum é a perda de uma pessoa importante
para a tropa. Tal núcleo gerou uma vivência comum de tristeza. Podemos dizer que a tristeza
é uma vivência comunitária porque a dor de todos os membros da tropa está voltada para o
mesmo núcleo de sentido comum: a perda do comandante. Segundo Edith Stein (1999b), o
núcleo de sentido comum possui um significado objetivo que será colhido e vivido por cada
membro de maneira pessoal quanto à continuidade, profundidade e intensidade. No
exemplo citado, cada pessoa terá um tempo de luto e uma intensidade de dor particular.
Stein chama de invólucro esta maneira específica como cada pessoa vivencia as significações
do núcleo de sentido comum, e afirma que a vivência comunitária é constituída pelos vários
invólucros de seus membros (Coelho Jr, 2006). A interação entre os diferentes invólucros
contribui para uma maior aproximação do significado objetivo do núcleo de sentido comum
e expressa a forma como uma comunidade vivencia algo.
Edith Stein compara a comunidade a uma personalidade individual que se forma a
partir da interação entre as vivências pessoais de seus membros. Esta interação não é de tipo
somatório e sim constitutivo, ou seja, o conjunto dos invólucros forma uma nova totalidade
que é supraindividual (Stein, 1999b). Isto significa que cada membro, com suas
particularidades, contribui para a constituição da vida comunitária, enriquecendo-a de forma
a ampliar a compreensão do significado objetivo do núcleo de sentido comum. Na
comunidade Anarcopunk (uma das comunidades às quais pertencia o educador da oficina
de literatura marginal), por exemplo, quanto mais um membro vive o ser anarcopunk de
forma única e pessoal, mais ele contribui para a sua comunidade. Ao mesmo tempo, o fato
de estar inserido nesta comunidade o ajuda a crescer e desenvolver-se no seu modo de ser
anarcopunk. Nesse sentido, Stein (1999b) demonstra que há uma interdependência
ontológica entre pessoa e comunidade. A pessoa enriquece a comunidade com o seu modo
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de ser próprio, ao mesmo tempo em que a vida comunitária a auxilia no caminho formativo
de tornar-se cada vez mais si mesma.
Entramos, assim, na visão de formação de Edith Stein, que poderia ser brevemente
traduzida como um caminho através do qual a pessoa torna-se cada vez mais si mesma.
Formação ou "Bildung" - palavra utilizada pela autora em língua alemã - significa "conduzir
a uma sabedoria de vida, à realização plena de si" (Stein, 1999c, p. 21). Stein compara o
processo formativo das matérias inanimadas a animadas e, ao abordar estas últimas,
especifica semelhanças e diferenças entre o grupo dos vegetais, dos animais e no ser
humano. Apresenta os três grupos de forma hierárquica, de acordo com o grau de
autonomia de cada um neste processo.
Nas matérias inanimadas, a formação ocorre de acordo com uma forma exterior
imaginada, por exemplo, por um artesão que talha um pedaço de madeira. A matéria
inanimada depende necessariamente de uma intervenção externa, caso contrário
permanecerá imutável. Nos organismos vivos, ao contrário, é possível observar uma
transformação autônoma, sem qualquer intervenção. Isto, segundo Stein (1999c), pelo fato de
existir uma ação plasmadora que acontece a partir do interior. Neste caso, o modelo não é
algo pronto e nem externo, mas um princípio dinâmico que constitui o organismo e que pode
sofrer modificações de acordo com as influências do ambiente. Na pessoa, este princípio não
é tão estruturante como nos vegetais e animais; ele é uma referência interna que a auxilia no
processo de escolhas, que aponta limites e possibilidades do desenvolvimento pessoal sem,
contudo, determiná-lo. De fato, Stein (1999c) afirma que a formação da pessoa acontece a
partir da integração entre esse princípio vital (fator interno), fatores externos (ambiente) e do
livre arbítrio daquele que é formado. Mas como isso ocorre?
Como vimos, o princípio vital, presente no íntimo da alma humana (ou no "núcleo""Kern"- de acordo com a nomenclatura utilizada por Stein), age de forma dinâmica
oferecendo parâmetros de referência para o desenvolvimento. O núcleo não se desenvolve,
mas contém as predisposições originárias da pessoa, possíveis de serem desenvolvidas. Esta
é, portanto, a contribuição do fator interno. Os fatores externos por sua vez, fornecem o
alimento necessário a esse desenvolvimento. Enquanto o corpo alimenta-se de substâncias
que provêm do mundo material, a alma se abastece de "bens culturais", ou seja, de
"produtos do espírito humano que contribuem para a constituição do mundo interior"
(Stein, 1999c). Os sentidos e o intelecto são responsáveis por procurar o material espiritual e
eles possuem uma força íntima denominada "animo" (complexo de afetos e sentimentos)
capaz de sentir quais das provisões adquiridas possuem valor para a finalidade formativa.
Segundo Stein (1999c), somente o que é acolhido no íntimo da alma, pelo núcleo, torna-se
parte integrante da pessoa. Este é o papel do livre arbítrio na formação.
Stein (1999c) afirma que "toda educação é autoeducação"; ou seja, o material espiritual
trazido do exterior é submetido à vontade, que irá repeli-lo ou acolhê-lo de acordo com a
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abertura e a disposição da alma para se deixar transformar por aqueles valores (Stein, 1999c,
p. 30). Essa livre escolha pode ser tanto aleatória quanto pautada sobre modelos externos em
que o sujeito aspira algo que não se harmoniza com suas predisposições naturais. Em ambos
os casos, a pessoa acaba alienando-se de si mesma. Por outro lado, as escolhas pessoais
podem seguir as orientações contidas no núcleo. Neste caso, o sujeito se aproxima de um
caminho formativo de autorrealização, ou seja, de tornar-se cada vez mais si mesmo. É
importante notar que o processo formativo é dinâmico e que as três formas de escolhas
(aleatórias, pautadas em modelos externos e/ou de acordo com as orientações do núcleo)
acontecem a todo instante.
Segundo Stein, é papel do educador auxiliar o educando a "viver de acordo com a
própria alma" (Rus, 2006, p. 181). Isto significa auxiliá-lo em um processo de
autoconhecimento, explicitando a importância de suas referências internas para a formação.
Significa, ainda, "colocar a pessoa em contato com a diversidade dos campos da cultura,
ajudando-a a conhecer o campo que lhe é indicado por seu talento natural" (Stein, 1999a, p.
236).
Stein é muito atenta à dupla tarefa educativa, ou seja, a individual e a comunitária.
Neste sentido, ao falar em autoconhecimento e referências internas, a autora não nos aponta
para algum tipo de individualismo ou ensimesmamento. Pelo contrário, vimos
anteriormente como ela afirma a importância da comunidade para a formação humana. "A
vida comunitária desperta na pessoa aptidõese características que poderiam permanecer
adormecidas na falta deste ambiente". Além disso, "ela possibilita a apreensão de
significados e valores compartilhados que, talvez, sozinha a pessoa não apreendesse"
(CoelhoJr, 2006, p. 62).
Diante destas constatações, percebemos que formação para Edith Stein implica
abertura: abertura a si mesmo, ao outro e ao mundo. Neste sentido, é papel da escola
promover situações que favoreçam esta abertura. Stein (1999b, p. 226) afirma, por exemplo,
que uma classe escolar em si mesma se caracteriza como uma sociedade, e que é papel do
educador ajudá-la a ser comunidade. Além disso, dentro de uma mesma comunidade, ela
diferencia o grau de participação de seus membros. Quanto maior a abertura de uma pessoa
e a comunicação de seu mundo interior, maior o seu envolvimento na vida comunitária.
Àquele que vive a vida na comunidade "a partir de sua alma", cujas ações particulares
refletem o sentido do todo, a este Stein denomina "sustentador" de uma comunidade. No
projeto educativo apresentado, um dos objetivos dos educadores pareceu-nos ser justamente
este; ou seja, auxiliar os alunos a se inserirem na vida comunitária escolar e do bairro com
maior abertura e comprometimento.
Antes de finalizarmos este item, vale lembrar que Stein aponta para as possíveis
repercussões do encontro entre duas comunidades. Afirma que, quando falta a uma
comunidade uma fonte de força interna (proveniente de seus membros), ela pode buscar esta
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ISSN 1676-1669
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Carneiro, S. F. B. & Szymanski, H. (2012). A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de um
projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________,
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fonte fora, por exemplo, no contato com outra comunidade. O encontro entre comunidades
foi um dos sentidos dado à articulação nesta pesquisa: encontro entre a comunidade-bairro,
representada pelos coletivos, e a comunidade-escola. Passaremos agora à descrição dos
coletivos, da escola e das oficinas de literatura marginal.
Os coletivos
Os coletivos a que nos referimos neste trabalho são movimentos político-culturais
formados por jovens da periferia da Zona Norte de São Paulo que visam transformar o
bairro buscando despertar os moradores para o seu papel político através de uma produção
cultural própria. Existem diferentes coletivos, organizados de acordo com uma determinada
forma de expressão: alguns trabalham com música, outros com literatura, outros ainda com
vídeo e fotografia. Embora as expressões variem, os objetivos sociais são comuns. As letras
de rap cantadas, as poesias declamadas nos saraus e os desenhos grafitados nos muros
denunciam as precárias condições de vida dos habitantes da periferia; ao mesmo tempo em
que anunciam, com esperança, um protagonismo capaz de transformar estas condições. São
jovens profetas que anunciam, nas ruas, nas praças, nas escolas, um amanhã melhor; e
convocam a população para "arquitetá-lo" em conjunto, somando forças em uma
" coletividade".
Em 2008, um dos coletivos, cujo trabalho centra-se na literatura, começou a se reunir
semanalmente em um bar da região para a realização de saraus abertos à comunidade. O
sarau foi definido pelo educador das oficinas como "uma esquina onde os coletivos se
conheceram". Deste encontro surgiu o desejo de maior integração entre eles, dando início ao
movimento de criação de um "Espaço Cultural". Ocuparam um cinema abandonado do bairro
e começaram a se organizar para que cada coletivo tivesse a sua sede ali instalada e os
projetos acontecessem de forma mais articulada. Mas a ocupação não durou muito tempo.
Tiveram dificuldades com o proprietário do imóvel e acabaram saindo do local. Foi nesse
período - início de 2009 - que a escola chegou ao bairro.
A escola
A EMEF iniciou suas atividades em 2009, com o objetivo de atender às famílias da
região e de bairros pobres mais distantes, cujas condições não permitem a instalação de uma
escola. A história de vida do diretor, desde cedo atuante em movimentos sociais e políticos,
contribuiu para a consolidação de uma visão particular de educação. Possui o desejo de
oferecer uma "educação humanista" e acredita que o caminho para isto seja a "abertura da escola
para a comunidade" do entorno. Espera que os professores selecionem conteúdos relacionados
a realidade local, ajudando os alunos a problematizarem esta realidade. Movido por esses
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princípios e buscando colocá-los em prática no dia a dia da escola, elaborou vários projetos
de articulação com a comunidade, sendo a oficina de literatura marginal um deles. Ao
conhecer alguns jovens dos coletivos e saber da dificuldade de encontrarem um local para se
reunir, o diretor cedeu-lhes uma sala na EMEF e propôs - em meio a outras atividades
promovidas por eles neste novo "Espaço Cultural"- a realização de oficinas de literatura
marginal, descritas a seguir.
As oficinas de literatura marginal
As oficinas foram oferecidas aos alunos do ensino fundamental II da escola. Elas
faziam parte de um conjunto diversificado de atividades (como teatro, xadrez, grafite e
leitura) coordenadas por diferentes pessoas (professores da escola e pessoas do bairro) que
aconteciam no mesmo horário. Os alunos se inscreviam de acordo com seu interesse. As
oficinas de literatura marginal aconteciam uma vez por semana, durante o horário letivo e
duravam duas horas. O educador responsável era um jovem pertencente ao movimento
Anarcopunke membro do coletivo de literatura. O objetivo era aproximar os alunos da
literatura, trabalhando produções de pessoas do bairro - moradores que eles conheciam -,
além de poemas tirados de outros contextos que lhes fossem familiares, como letras de rap
ou frases grafitadas nos muros. Inicialmente os conteúdos das produções eram discutidos de
forma a proporcionar ao aluno uma reflexão acerca da sua própria realidade. Em seguida,
eram encorajados a se posicionar como autores, produzindo fanzines, poemas, raps, e que
posteriormente eram expressos em livretos organizados pelo educador, ou em saraus
promovidos pela escola.
Tendo explicitado o contexto geral desta pesquisa, passaremos à apresentação dos
procedimentos metodológicos, descritos como caminhos para a emergência e compreensão
do fenômeno.
Procedimentos metodológicos
A emergência do fenômeno da articulação foi possibilitada por três diferentes vias. A
primeira delas foi o acompanhamento quinzenal das oficinas de literatura, durante um
semestre letivo. Este acompanhamento se configurou como uma observação participante
através da qual a pesquisadora interagia com o grupo de acordo com solicitação do
educador. As observações tinham como intenção compreender a proposta das oficinas
(objetivos e metodologias), a relação dos alunos entre si e a relação destes com o educador. A
segunda via percorrida foi a realização de conversas individuais e informais (pois não foram
previamente agendadas) com o próprio educador, com a coordenadora pedagógica e com o
diretor da EMEF, o que possibilitou a compreensão do contexto individual desses
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participantes do projeto e dos sentidos pessoais desvelados ao longo da experiência. A
terceira via foi a realização, ao final do semestre, de uma "entrevista reflexiva" (Szymanski,
2010) com o grupo de alunos participantes, com a finalidade de compreender os sentidos
desta experiência para eles. Seguindo a proposta de Szymanski (2010), a entrevista se iniciou
com uma atividade de aquecimento em que os alunos confeccionaram crachás com os seus
nomes e lembraram as atividades realizadas nas oficinas. Em seguida iniciou-se uma
conversa ao longo da qual a pesquisadora propôs as seguintes questões:
- Quando vocês se inscreveram na oficina de literatura, o que buscavam?
- Vocês tiveram o que queriam?
- Vocês tiveram outras coisas que não esperavam?
- O que mais gostaram?
Durante a entrevista, buscou-se apresentar aos alunos a compreensão de suas falas de
forma a garantir maior fidedignidade, além de possibilitar ao entrevistado pensar a respeito
do seu discurso, decidindo mantê-lo ou não de acordo com sua própria compreensão.
Segundo Szymanski (2010), este procedimento favorece um movimento reflexivo e permite
que a entrevista se configure como uma construção conjunta de conhecimento.
Este material foi organizado em forma de "narrativas" (Benjamin, 1994), compostas
pelas mãos da pesquisadora e das poesias dos artistas da quebrada: alunos, educador, jovens
dos coletivos e diretor da EMEF. As narrativas foram o texto de referência a partir do qual
realizou-se uma "análise compreensiva" de acordo com os passos metodológicos sugeridos
por Szymanski (2010, p. 2):
-Transcrição da entrevista e registro dos encontros ocorridos no contexto de pesquisa;
- Elaboração do texto de referência para a análise (narrativas): transformação da
linguagem oral em escrita e inclusão de impressões, sentimentos e percepções do
pesquisador;
- Devolutiva aos participantes da pesquisa;
- Explicitação de significados: seleção de unidade de significados;
- Agrupamento das unidades de significado de acordo com o tema, dando origem às
categorias de análise ou "constelações" (Szymanski, 2004)1;
- Descrição e análise de cada constelação;
- Análise final em diálogo com o referencial teórico adotado;
- Devolutiva aos participantes da pesquisa.
Este procedimento foi realizado em primeiro lugar com os dados de cada participante
(diretor, coordenadora pedagógica, educador das oficinas, professores de artes e português e
1
O termo "constelação" é utilizado por Szymanski (2004) em comparação às constelações celestes, que variam de
acordo com a localização geográfica e a cultura de quem as observa. Com isso, Szymanski chama a atenção para o
fato de que a compreensão do fenômeno pelo pesquisador é circunstancial, ou seja, depende daquilo que ele pode
enxergar a partir do lugar que ele ocupa no "vasto universo de possibilidades de interpretação" (Szymanki, 2004,
p.3).
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alunos). Em seguida, as constelações surgidas a partir dos movimentos individuais foram
analisadas em conjunto, dando origem a quatro grandes constelações: 1. Sentidos
desvelados; 2. O vivido; 3. Desafios e 4. Repercussões (da articulação). Apresentaremos a
seguir cada constelação com breve descrição e análise dos resultados em cada uma delas.
Resultados e análise das constelações
1. Sentidos desvelados
Esta constelação discute de forma relacional as motivações e expectativas que
colocaram cada participante da experiência de articulação em movimento. Explicita, desta
forma, os sentidos desvelados para o diretor e a coordenadora pedagógica da escola, para o
educador responsável pelas oficinas e para os alunos participantes. O diretor compreendia
que abrir a escola para os coletivos (e para outros grupos do bairro) havia sido uma
consequência natural de sua história de vida. Contou que foi atuante em movimentos de
jovens, na pastoral operária, nas comunidades eclesiais de base e no sindicato do professores,
entre outras atividades, e afirmou que "pela sua história, quando veio para a escola, já tinha um
olhar para os movimentos so ciais". A sua proximidade com esses grupos, a abertura em relação
às pessoas foi um compromisso que ele manteve como ação educativa no âmbito
profissional. Manifestou o desejo de construir uma "escola humanista" e acreditava na
articulação com a comunidade local como um caminho para isso.
A coordenadora pedagógica, por sua vez, via nas oficinas de literatura marginal a
possibilidade de "despertar o interesse dos alunos", deajudá-los a descobrir algo que gostam de
fazer. Contou que "ficou impressionada com a paixão dos jovens [dos coletivos] pela literatura" e
achava que eles poderiam "passar essa paixão para os alunos". Via a escola não como um local
para "passar conteúdos" e sim como "um espaço que abre lugar para vivências", e acreditava que
as oficinas trariam isto. Achava que a proposta dos coletivos se alinhava aos objetivos da
escola no sentido de promover uma "reflexão da pessoa como ser histórico, inserido em uma
sociedade". Em suas palavras, "o coletivo traz essa reflexão para os alunos. Uma literatura com
consciência política: o que sou na comunidade?"
A visão da coordenadora pedagógica a respeito dos coletivos coincidiu, de fato, com
uma das motivações que levaram o educador responsável a participar do projeto. No início
das oficinas, contou que esta va fazendo este trabalho "porque acredita[va] que esse tipo de ação
pode transformar a visão dos alunos"; e ainda que queria "tentar fazer com que o máximo de alunos
[tomassem] gosto pela literatura, que [tomassem] a poesia como um meio de se expressar". Além da
transformação dos alunos, o educador via na articulação com a EMEF e no Espaço Cultural que passou a funcionar em uma sala da escola - a possibilidade de maior integração entre os
coletivos, dando visibilidade e fortalecendo o seu trabalho.
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Em relação aos alunos, a escolha pela oficina de literatura marginal tinha como
motivação "melhorar a leitura", "escrever poemas" e "conhecer novas formas de literatura"
(referiam-se à literatura marginal). O principal interesse da grande maioria, entretanto, era
aprender a grafitar. Isto porque, como estratégia para promover uma aproximação dos
alunos à literatura, a escola associou a oficina de grafite à de literatura marginal. Assim,
quem quisesse participar do grafite teria que frequentar também a de literatura. Após alguns
mal entendidos em função desta regra, parte dos alunos inscritos no grafite mudaram de
atividade e outros ficaram e participaram das duas oficinas. Estes últimos acabaram
aproveitando bastante a literatura marginal. Escreveram poemas, aprenderam a fazer rimas e
também grafitaram os muros da escola, expressando em seus desenhos os temas discutidos
na literatura.
Os sentidos acima apresentados revelam que, apesar de cada participante apresentar
motivações particulares em relação ao projeto, é possível traçarmos elementos comuns, ou, se
quisermos, "núcleos de sentidos comuns" de acordo com a visão de comunidade de Edith
Stein. O diretor, coordenadora pedagógica e o educador responsável pareciam se unir em
torno da luta pela humanização, pela transformação social, do querer despertar os alunos
para uma participação mais consciente e ativa na vida comunitária do bairro e da própria
escola, e da crença na articulação e na literatura como caminhos para a concretização destes
ideais. Já os alunos pareceram unir-se a esta vivência comunitária a partir da literatura.
Embora alguns não tivessem ligação com ela no início das oficinas, a convivência com o
educador os ajudou a descobri-la como canal de expressão pessoal e de transformação social.
Tendo apresentado os sentidos da articulação para os participantes, passaremos agora à
discussão da articulação vivida, segunda constelação da análise.
2. O vivido
O vivido trata dos relatos e observações da experiência dos participantes. Aborda o
projeto de articulação não do ponto de vista dos ideais, expectativas ou motivações, mas do
ponto de vista prático, sendo o resultado de uma análise das ações e das tomadas de posição
das pessoas no acontecer cotidiano. Abordamos principalmente os movimentos pessoais do
diretor e do educador responsável, contemplando, desta forma, um representante de cada
um dos grupos comunitários envolvidos na articulação: escola e bairro (coletivos).
Com relação ao diretor, este relatou que havia tido uma experiência em outra escola
como coordenador pedagógico, onde atuara em um projeto de articulação com o bairro. O
relato desta experiência desvelou o papel fundamental do diretor de uma instituição escolar
para a realização de projetos educativos em que a escola abre suas portas para a comunidade
local. Na experiência relatada, contou-nos que "a diretora o incentivava, mas não havia um apoio
de fato" , ou seja, que "ela não se envolvia" e que ele, como coordenador pedagógico, "não tinha
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tanta liberdade para negociar com as instituições, fazer a coisa acontecer. Com isso, o projeto ficou
impossibilitado".
Diferentemente da experiência relatada, o diretor foi um dos principais motivadores e
sustentadores da articulação estudada. Buscou diálogo e apoio de diferentes instituições,
interveio com frequência no sentido de alinhar o projeto aos princípios da escola e mantevese aberto apesar dos frequentes desafios surgidos na articulação. Como exemplo do seu
comprometimento, podemos citar uma conversa que ele teve com o educador das oficinas a
respeito do muro da escola. Os alunos tinham começado a grafitar o muro na oficina anterior
e o desenho só seria terminado no encontro seguinte. Ao ver o muro inacabado, o diretor
alertou o educador para o fato de ser um "atrativo para pichadores", e pediu que ele desse um
acabamento para não prejudicar o trabalho. Ao perceber a vulnerabilidade da situação, o
diretor poderia ter se posicionado no sentido de fechar as portas da escola ao grafite, por
exemplo, o que não ocorreu. Houve, sim, um zelo em relação à escola, mas sua intervenção
foi no sentido de alertar e dar continuidade, sem romper.
Tomadas de posição como esta revelaram o quanto o diretor esteve comprometido com
o ideal da articulação, que, em última instância, alinhava-se ao seu ideal pessoal de
proporcionar uma educação mais humana. Podemos dizer que o diretor trouxe uma
contribuição importante para a comunidade-escola ao colocar à disposição desta, valores
pessoais e um modo de ser próprio; ao compartilhar o seu mundo interior, contribuindo para
a realização de um projeto educativo rico e complexo como o da articulação.
Em sintonia com a ideia de que uma comunidade sustentada apenas por um único
líder acaba por perecer (Stein, 1999b), o diretor manifestou desde o início o receio de que a
importância de uma "escola aberta" fosse um sentido não partilhado pelos outros membros da
comunidade-escola, restringindo-sea um projeto pessoal seu. Na prática, entretanto, houve a
adesão da coordenadora pedagógica e da auxiliar de administração, por exemplo,
reconhecida por ele como tendo sido essencial para a concretização desta ação. Nas palavras
do diretor, "é fundamental uma equipe articulada, aberta eflexível para lidar com os desafios que esse
tipo de projeto exige".
O grau de envolvimento do educador das oficinas com a escola e com os alunos
também parece ter sido um fator decisivo para a articulação. O longo tempo que permanecia
voluntariamente na EMEF, cuidando não apenas das oficinas, mas da gestão do Espaço
Cultural e das atividades dele decorrentes (como saraus e cine debates abertos à comunidade
local), mostrou-nos uma doação que nos permitiu identificá-lo também como um
sustentador do projeto. O educador correspondia ao que Stein (1999b) chama de pessoas que
"participam com sua alma da vida comunitária" (p. 223).
Tal posicionamento pode ser exemplificado pelo fato de ele ter assumido a oficina de
grafite após desistência dos jovens responsáveis (membros de coletivos de grafite), que
alegaram dificuldade em lidar com os alunos, além de uma expectativa de remuneração não
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correspondida. Ao se deparar com a interrupção do grafite, o educador não hesitou em
assumir a oficina, pois compreendeu que "o trabalho não podia parar no meio". Esta mesma
consideração em relação ao trabalho e aos alunos foi observada na sua ação pedagógica, em
sala de aula. Acolhia cada aluno na sua singularidade, apresentando o material de acordo
com a possibilidade de aproveitamento de cada um. Para alguns, por exemplo, emprestou
livros densos, que iam além da programação, por perceber interesse e possibilidade de
leitura. Além disso, mostrou uma expectativa de coerência dos alunos entre seus
posicionamentos nas discussões e suas atitudes concretas na vida. Em umas das oficinas, ao
se deparar com brigas entre os colegas manifestou-se da seguinte maneira: "- Vocês escrevem
coisas bonitas, mas estas coisas bonitas estão sendo da boca prafora porque as atitudes são de violência.
Aqui não é teoria, é prática. Vocês têm que colocar em prática o que falam". Esta fala expressa o
sentido de formação apresentado por Edith Stein. Ao exigir coerência entre palavra e ação, o
educador auxiliou os alunos a refletirem e se posicionarem a partir de princípios de
convivência que eles mesmos manifestavam nas discussões, ajudando-os a darem uma
resposta pessoal perante os acontecimentos eevitando reagircegamente aos estímulos
externos.
A postura dialógica do educador em relação aos alunos contribuiu para que se
construísse uma relação de respeito mútuo entre eles e, em alguns casos, até mesmo de
solidariedade. Como vimos, para Edith Stein uma classe escolar por si mesma é uma
sociedade onde todos têm uma meta comum escolhida voluntariamente; mas pode tornar-se
uma comunidade se as pessoas que dela fazem parte estabelecerem relações com vínculos
espirituais mais profundos, evitando exclusão dos mais fracos e apresentando atitudes de
ajuda mútua. Este parece ter sido o caso das oficinas. Liderada pelo educador e, neste
sentido, orientada pelos seus posicionamentos no dia a dia, as oficinas pareceram
proporcionar aos alunos uma experiência de sair da massa para expressar a própria
singularidade.
Vimos, portanto, a partir de atitudes do diretor e do educador das oficinas, como os
movimentos pessoais destes dois participantes foram importantes para a sustentação da
articulação. Conforme afirmamos, entretanto, os avanços do projeto não ocorreram isentos
de desafios. Tais desafios serão apresentados na constelação a seguir.
3. Desafios
Esta terceira constelação aborda os desafios vividos pelos participantes durante o
desenvolvimento das oficinas de literatura marginal e de outras ações decorrentes
daarticulação. De modo geral, podemos dizer que a maioria das situações enfrentadas se
inseria no desafio de integrar cultura escolar e cultura local. Um exemplo foi a adaptação do
formato de oficinas que normalmente o coletivo de literatura oferecia em outros contextos às
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necessidades e princípios da EMEF. Originalmente as oficinas eram compostas por quatro
encontros nos quais trabalhavam o conceito de literatura marginal, poesia, fanzine e a
produção de um livreto apresentado em um sarau de fechamento. Na escola, embora estes
conteúdos tenham permanecido, foi acrescentado o tema da "Cultura de Paz" e a proposta
de um tempo maior de duração (um semestre). Tais mudanças repercutiram de modo
diferente nos membros do coletivo. O educador responsável, por exemplo, buscou adaptarse a esta realidade. Estudou "Cultura de Paz" e se envolveu cada vez mais com a escola,
desenvolvendo um trabalho com continuidade, que durou maisde um ano. Já os outros
membros compreenderam que a natureza do coletivo e das oficinas era ser itinerante, e
optaram por não permanecer na escola. Com isso, o educador acabou se afastando do
coletivo e assumindo sozinho tanto as oficinas de literatura e grafite, quanto a gestão do
Espaço Cultural.
Como vimos, o sentido inicial dado pelos coletivos à articulação com a EMEF era o de
uma gestão partilhada do Espaço Cultural em que todos os coletivos estivessem
representados e as ações acontecessem de forma mais articulada entre eles. Na prática,
porém, isto não ocorreu. Segundo o educador, as pessoas não tinham a disponibilidade
necessária para se dedicarem a este projeto. O fato de não serem remunerados pelos
trabalhos (principalmente pelas oficinas) também foi algo que interferiu na adesão dos
membros dos coletivos. Para o educador, esta situação também era difícil, mas a crença na
possibilidade de transformação das pessoas através deste tipo de trabalho pareceu falar mais
alto do que as dificuldades enfrentadas pela falta de verba. Segundo ele, "apesar do
voluntariado, o que ele faz é uma coisa legal".
É importante ressaltar que havia uma preocupação do diretor e da coordenadora
pedagógica em oferecer uma remuneração para o educador, e que eles buscavam a verba
para isto apresentando o projeto a instituições que pudessem financiá-lo. Tiveram o retorno
de um investidor quase dois anos depois do início do projeto, época em que o educador
começara um novo trabalho fora da escola, e não tinha mais a mesma disponibilidade de
tempo do início para dar continuidade ao projeto. Isto porque o fato de o Espaço Cultural
estar localizado dentro da instituição escolar exigiu diálogo e articulação entre a escola e o
educador, o que significava disponibilidade de tempo e uma organização compartilhada. No
Espaço funcionava, por exemplo, uma biblioteca comunitária que exigia a presença de
alguém por longos períodos para atender as pessoas. Além disso, muitas atividades
aconteciam à noite ou aos finais de semana. Na prática, isto exigia a presença de um
segurança e um responsável para abrir a escola fora do horário letivo. Este é apenas um
exemplo da complexidadede detalhes e negociações necessárias para colocar em prática a
articulação.
Outro desafio enfrentado foi a dificuldade de integrar as oficinas de literatura marginal
e o trabalho desenvolvido pelo professor de português da escola. Este desejo inicial da
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coordenadora pedagógica não se concretizou por opção dos dois educadores, que decidiram
trabalhar separadamente por não enxergarem pontos convergentes em suas propostas. Para
o professor da escola, "eles [jovens do coletivo de literatura] não tinham as mesmas preocupações
de um professor de português, como corrigir a parte gramatical por exemplo. A proposta era trabalhar
a literatura da periferia, uma coisa mais livre". Ao compreenderem as diferenças entre literatura
escolar e literatura marginal como obstáculo para um trabalho conjunto, os educadores
fecharam-se às oportunidades que um trabalho articulado poderia proporcionar.
Esta situação exprime a visão do diretor de que a cultura escolar é rígida e há uma
resistência em buscar formas alternativas de trabalho. Acha que "há uma resistência dos
professores em ousar porque faz parte do humano a busca por segur ança", que neste caso seria o
trabalho dentro de um modelo já instituído de antemão na escola - modelo este que não
contempla a abertura para a comunidade do entorno. Aliada a esta dificuldade de
flexibilidade em relação à cultura instituída na escola, a falta de estratégias por parte da
gestão para integrar os professores na articulação e o pouco tempo disponível acabaram
comprometendo a participação deles no projeto. A professora de artes, por exemplo, alegou
não conhecer a proposta das oficinas de literatura marginal. Segundo ela, "cada um prepara a
sua oficina, mas não sabe da oficina do outro pela falta de tempo".
Com isso, a articulação acabou restringindo-se a atividades periféricas, permanecendo
o desafio de incorporar experiências como esta ao projeto político pedagógico da EMEF. Por
outro lado, ao contemplarmos a articulação como um processo, não podemos esquecer que
esta pesquisa acompanhou uma das primeiras ações com a comunidade, ou seja,
acompanhou apenas o início de um processo que tenderá a amadurecer com o tempo. De
acordo com o diretor, "transformar a visão e o modo de trabalhar da escola exige tempo".
Foi também o diretor quem nos alertou para outro grande desafio da articulação com a
comunidade local, não tão aparente à primeira vista. Segundo ele, existem conflitos na
comunidade e esses conflitos podem ser trazidos para dentro da escola.
a comunidade tem conflitos e as pessoas querem se expressar onde há visibilidade.
Um acerto de contas, por exemplo, pode acontecer no meio de umafesta [da escola]
(...) O que vemos acontecer nas oficinas é o aparente, e este aparente é o resultado de
um longo processo de encontros e negociação de conflitos.
Segundo ele, este é "o lado oculto da articulação", e seu papel é zelar para que as ações
estejam alinhadas aos princípios da escola. Alertou para o fato de que a escola não é um
"centro de eventos", dando a entender que, se os projetos acontecem, é porque colaboram para
o processo educacional dos alunos.
Por fim, podemos dizer que manter a abertura ao outro parece ser o grande desafio
para a sustentação de um projeto de articulação. Embora o ideal perseguido fosse o do
diálogo e da gestão democrática, manter essa postura o tempo todo parece impossível. Voltar
o nosso olhar para as relações comunitárias no sentido apresentado por Stein pode nos
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/carneiroszymanski01
Carneiro, S. F. B. & Szymanski, H. (2012). A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de um
projeto educativo que articula escola e bairro. Memorandum, 23, 70-92. Recuperado em____de______________,
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auxiliar neste caminho. Segundo Stein, as relações comunitárias contemplam a
singularidade, vista como contribuição para a comunidade. Neste ideal de convivência
humana, o diferente é tido como riqueza e não como ameaça. Sendo assim, o modo de ser
anarcopunk, o modo de ser acadêmico e os diversos modos de ser dos participantes do
projeto deixam de ser excluídos como obstáculos para serem acolhidos como contribuição.
Neste caso, o desafio seria o de buscar pontos de convergência ou "núcleos de sentido
comuns" em torno dos quais a articulação se torna possível, sem absolutizar os modos
pessoais de concretizá-la.
Passaremos a seguir para a quarta e última constelação, que trata das repercussões do
projeto.
4. Repercussões
Este item descreve as repercussões das oficinas de literatura marginal tanto do ponto
de vista individual quanto coletivo. Explicitamos o percurso pessoal do educador e de um
dos alunos participantes, e discutimos as repercussões da articulação para as duas
comunidades envolvidas: escola e bairro (coletivos).
Iniciaremos a análise das repercussões, a partir do percurso pessoal de um aluno e do
educador responsável pelas oficinas, por ilustrarem como o projeto de articulação se
configurou como um contexto formativo -no sentido steiniano - ao ajudar as pessoas a
tornarem-se mais si mesmas. O aluno em questão poderia ser descrito como um dos jovens
cuja falta de interesse preocupava a coordenadora pedagógica. Falava bastante durante as
oficinas, provocava os colegas e a atitude que mais parecia "atrapalhar" a sala eram os
constantes batuques que ele fazia com uma caneta sobre a carteira. No início, este aluno
participou da oficina de literatura porque não queria perder o grafite. Afirmou que o
educador "só deixou ir pra parede quem estava frequentando a literatura". Entretanto, o contato
com as oficinas despertou nele um novo interesse. Escreveu poemas, fez rimas e gostou.
Descreveu esta experiência de seguinte forma: "você vai se abrindo, você flutua, você viaja na
maionese". Descobriu que a literatura tinha ligação com um interesse seu que até então havia
sido compreendido como bagunça, barulho: a música. Passou a compor raps, como este:
O grafite é uma oficina que você vem pra aprender
Depois de um tempo, ta aí você vai ver
O grafite tá na veia e também no coração
Um abraço, pra todos, pra todos os meus irmãos
O percurso deste aluno ilustra repercussões que aconteceram também com os outros
alunos das oficinas, que, além de se aproximarem da literatura, tornaram-se mais conscientes
da sua participação na vida da comunidade local. Compreenderam a aquisição de
conhecimento como uma ferramenta que permitiria a eles contribuir para o desenvolvimento
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Carneiro, S. F. B. & Szymanski, H. (2012). A contribuição da fenomenologia de Edith Stein para a compreensão de um
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desta comunidade. Um dos alunos explicou que na oficina "a gente aprendeu a ver o lado bom
da periferia e a usar o conhecimento para perceber, por exemplo, que o fato da televisão mostrar as
coisas ruins [do seu bairro] não significa que seja verdade". Tal experiência trouxe visibilidade e
autonomia aos alunos, que puderam vivenciar a passagem de relações massificadas para
relações pessoais de comunidade.
O educador também viveu transformações pessoais durante o projeto. A principal
delas parece ter sido o fato de descobrir-se educador. Relatou ter se surpreendido ao ser
chamado de "educador" por uma pessoa de uma instituição que visitou com os alunos.
Contou como esta experiência o fez lembrar-se de sua época de escola, quando faziam
excursões e bagunçavam como os alunos, e que "o estranho é de repente estar do outro lado,
responder pelo B.O dos caras"; ou seja, passar a ser o educador-responsável. A partir desta
experiência, resgatou a dimensão educativa do movimento anarcopunk através da
pedagogia libertária e passou a direcionar sua vida profissional para esta área. Algum tempo
depois, começou a trabalhar como educador em um centro cultural da região. Retomando as
ideias de Stein, vemos como esta vivência comunitária foi importante para o crescimento do
educador à medida que o despertou para novos valores, suscitando propósitos que
motivaram novos posicionamentos e ações concretas.
Segundo Stein, as transformações pessoais dos membros de uma comunidade acabam
repercutindo na comunidade como um todo, uma vez que a vida comunitária é comparada a
um organismo vivo, onde o singular e o coletivo se inter-relacionam. Desta forma, podemos
dizer que a articulação repercutiu na comunidade-escola e na comunidade-bairro (coletivos),
promovendo transformações nas dimensões física, psíquica e espiritual destes grupos. O
aspecto físico pode ser ilustrado pelas transformações ocorridas na escola devido à ocupação
de uma sala pelos coletivos. Pode ser ilustrado também pelo fato de ela ter aberto novos
horários de funcionamento (à noite e aos finais de semana) e ter crescido em número de
membros, com a presença de pessoas da comunidade local. Os coletivos também se
modificaram no aspecto físico, sendo a transformação mais evidente, o fato de passarem a ter
um local concreto (um território) para se reunirem.
A dimensão psíquica também sofreu alterações em ambas as comunidades. Tanto
escola como coletivos pareceram se fortalecer no contato uns com os outros. O educador
transmitiu aos alunos a paixão pela literatura, despertando neles proximidade e interesse por
esta forma de expressão. Os coletivos, por sua vez, ganharam visibilidade com o trabalho na
escola e uma experiência com as oficinas que lhes abriu novos campos de trabalho em outras
instituições escolares.
Finalmente, do ponto de vista espiritual a articulação enriqueceu as duas comunidades
por ter provocado uma reflexão no sentido de reverem seus objetivos e ideais e de darem
uma resposta pessoal às provocações que o encontro com o diferente promoveu. Um
exemplo deste tipo de repercussão foi o fato de o coletivo de literatura ter se conscientizado
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de que seu papel era ser itinerante e não permanecer em um único lugar por longo período.
Vemos, portanto, que apesar dos desafios, a articulação teve um papel importante e
enriquecedor tanto para a comunidade-escola como para a comunidade-bairro (coletivos).
Tendo apresentado as quatro constelações de análise, passaremos à discussão final
deste artigo, buscando sintetizar os pontos que julgamos relevantes para a compreensão da
articulação estudada.
Discussão
O fenômeno da articulação mostrou-se como possibilidade de formação de vivências
comunitárias no sentido steiniano do termo; ou seja, como unidades de vida que se formam
em torno de núcleos de sentido comuns. Esta percepção pode ser ilustrada por duas
vivências. A primeira envolveu o diretor e a coordenadora pedagógica da EMEF com o
educador das oficinas; e segunda, os alunos com o educador.
No primeiro caso, o núcleo de sentido partilhado foi a visão de pessoa e os objetivos do
projeto. O fato de trabalharem pautados em uma visão de ser humano comum foi um
aspecto importante que favoreceu a aproximação entre a escola e os coletivos, dando origem
a um projeto educativo como a oficina de literatura marginal. Segundo Edith Stein (1999a), a
visão de ser humano é a base para se traçarem os objetivos e os meios do processo
educacional e, portanto, compartilhá-la, neste caso, foi um ponto importante para o diálogo e
para o início da articulação.
Os três envolvidos (diretor, coordenadora pedagógica e educador das oficinas)
compreendiam o ser humano como um ser histórico, inserido em uma sociedade, e
buscavam despertar nos alunos a consciência desta participação na vida da social. Tal
objetivo se alinha à visão de Stein a respeito da dupla tarefa educativa. Para a autora, "ao se
desenvolver, o sujeito contribui para o desenvolvimento da sua comunidade, e esta, por sua
vez, o encoraja a manifestar sua singularidade em direção ao pleno desenvolvimento" (Rus,
2006, p. 186).
A consciência da própria inserção na sociedade também diz respeito ao modo como
Stein se refere ao envolvimento das pessoas em uma comunidade. Como vimos, a autora
(Stein 1999b) afirma que existem diferentes graus de envolvimento com a vida comunitária,
podendo variar desde pessoas que vivem fechadas em si mesmas, que não partilham seu
mundo interior e, portanto, vivem à margem da vida comunitária, até uma inserção em que
seus membros se envolvem com sua alma, tornando-se sustentadores da mesma. Partindo
desta ideia, podemos dizer que um dos objetivos das oficinas de literatura marginal era
transformar a relação dos alunos com a sua "comunidade-bairro". De membros passivos
foram encorajados a se descobrirem como membros fundamentais para a dinâmica da vida
comunitária, sustentadores da mesma. Isto ocorreu de fato com alguns alunos. Os
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depoimentos durante a entrevista e os poemas produzidos nas oficinas revelaram um novo
olhar para a periferia: não mais a periferia transmitida pela mídia, vista apenas pelo lado
sombrio das dificuldades; mas a periferia a qual pertencem e cuja vivência cotidiana lhes
permite enxergar bem mais do que apenas pobreza e violência.
O olhar ampliado sobre a própria realidade, a consciência de que a periferia não é algo
genérico, abstrato, mas uma comunidade de pessoas na qual estão inseridos pode ser
ilustrado pelo poema abaixo, produzido por outro aluno:
Periferia não é sinônimo de violência
Por isso escrevo esse poema
Pra mostrar pra família da comunidade
Que seus sonhos podem se tornar realidade
O a u t o r escreve o p o e m a "pra mostrar pra família da comunidade que seus sonhos podem se
tornar realidade". Com isso, ele demonstra uma participação ativa na vida comunitária.
Podemos dizer que este aluno se reconheceu como membro da "comunidade-bairro" e, como
membro, percebeu que possui um conhecimento a respeito dela maior do que aqueles que
estão de fora (mídia), cuja visão é parcial e negativa. Neste sentido ele denuncia: "periferia não
é sinônimo de violência". Ao mesmo tempo, anuncia que os "sonhos" da sua comunidade
"podem se tornar realidade". Ao denunciar uma visão parcial e anunciar um amanhã promissor
através de um poema, este aluno se une aos objetivos dos coletivos, tornando-se com eles
produtor de cultura, agente de transformação social. Este exemplo ilustra uma das
repercussões das oficinas e do projeto de articulação na vida dos alunos. Demonstra a
mudança de postura como membro comunitário e, ao mesmo tempo, explicita um caminho
de aproximação da literatura - caminho este confirmado tanto pelas produções nas oficinas,
quanto pelo aumento gradativo do número de participantes e do grau de envolvimento deste
nos saraus e, ainda, pela percepção do professor de português de que as meninas estavam
lendo mais.
A segunda vivência comunitária percebida - além daquela citada entre educador,
diretor e coordenadora pedagógica da EMEF - foi entre os alunos e o educador no contexto
das oficinas. As transformações relatadas em relação aos alunos a respeito da aproximação
da literatura e da consciência de sua pertença à "comunidade-bairro" ocorreram inseridas
neste contexto comunitário. De fato, pudemos observar como, ao longo do semestre, a
relação dos alunos com o educador se configurou como uma relação de abertura e
reciprocidade, através da qual cada um foi afetado pessoalmente ampliando a visão de si e
dos colegas. Uma situação que ilustra a construção de relações comunitárias foi o fato de um
dos alunos ter decidido participar de uma oficina que ocorrera fora do horário letivo mesmo
tendo outro compromisso naquele horário. Ele foi o único a participar daquela oficina e, em
conversa com a pesquisadora, manifestou o que o motivara a isto. Explicou que sabia que os
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colegas não poderiam estar presentes e que não gostaria de deixar o educador sozinho. Tal
atitude demonstra solidariedade do aluno em relação ao educador; demonstra um deixar-se
afetar pelo outro que é consequência da abertura característica das relações comunitárias
compreendidas por Edith Stein.
Esta abertura também se desvelou no percurso de outro aluno cujo interesse inicial
centrava-se exclusivamente no grafite e que se ampliou com a participação nas oficinas. O
aluno que no início do projeto afirmava ser seu único desejo "pegar na lata", ao entrar em
contato com os poemas escritos por pessoas do bairro e produzir os seus próprios, encontrou
sentido na literatura. O processo de escrita lhe proporcionou abertura ao seu mundo interior
e o acesso dos colegas a este mundo. Após ele ler um poema seu em voz alta para o grupo,
uma aluna comentou: "Nossa, você está mostrando outro lado seu. Estou gostando". Falou de si,
mas não só. Experimentou novas aptidões compondo letras de rap. Além de toda essa
riqueza, o contato com o educador das oficinas também lhe possibilitou ampliar o olhar a
respeito do ser punk. Relatou o olhar preconceituoso que tinha a respeito deste modo de ser,
antes de conhecer o educador, e conta como este olhar se transformou a partir da
convivência com ele nas oficinas: "Punk vê as coisas de outro jeito, imagina outro mundo. É bom
ser punk porque você aprende mais".
As relações comunitárias configuradas nas oficinas também repercutiram no educador.
Tal experiência o provocou no sentido de querer estudar e buscar formas de aliar o "ser
educador" ao trabalho profissional, o que gerou um movimento reflexivo de articulação
interna, através do qual buscou integrar esta nova dimensão de seu ser. A resposta a esta
integração, ele pareceu encontrar de duas formas: pela decisão de estudar de forma
autônoma (não acadêmica) e, apoiando-se na visão da pedagogia libertária que, segundo sua
interpretação, fora concebida por anarquistas.
Vemos, portanto, que o encontro entre as comunidades escola e bairro fez germinar
novas relações comunitárias, fecundas para o processo formativo dos seus membros.
Conforme relato, percebe-se que a articulação envolveu principalmente os gestores da EMEF,
seus alunos e o educador. Parece que um dos desafios a serem enfrentados em projetos
futuros seria o de encontrar formas de envolver também os professores, membros essenciais
da "comunidade-escola" e, portanto, essenciais também para que experiências como esta
sejam incorporadas ao projeto político pedagógico da mesma, conforme desejo do diretor.
Por fim, de acordo com a visão de Edith Stein, podemos dizer que as transformações
ocorridas nos membros da "comunidade-escola" e da "comunidade-bairro" contribuíram
para o crescimento destas comunidades, gerando reflexão e maior consciência a respeito de
seus ideais e de seu modo concreto de ser e viver. O acompanhamento deste projeto nos
permitiu afirmar que a articulação é um caminho educativo fecundo. Caminho cujos
pressupostos de abertura e diálogo por parte dos envolvidos possibilitam a formação de
vivências comunitárias, tão importantes para a formação humana na visão de Edith Stein.
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Nota sobre as autoras
Suzana Filizola Brasiliense Carneiro é mestre em Educação (Psicologia da Educação) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutoranda do Programa de Psicologia
Clínica da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]
Heloisa Szymanski é doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora titular do Programa de
Estudos Pós-graduandos em Educação: Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e coordenadora do grupo de pesquisa em Práticas Educativas e
Atenção Psicoeducacional à Escola, Família e Comunidade (ECOFAM). E-mail:
[email protected]
Data de recebimento: 20/09/2011
Data de aceite: 09/09/2012
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/carneiroszymanski01
Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2012). Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita: investigação
fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
http:/ / www.fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ gasparmahf oud02
9
3
Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita:
investigação fenomenológica
Voluntary action and religious experience in a spiritist institution: phenomenological
investigation
Yuri Elias Gaspar
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Resumo
Dada a atualidade da discussão da significação do voluntariado em determinado
contexto religioso, objetivamos investigar a inter-relação entre voluntariado e experiência
religiosa vivida e revelada pelos sujeitos da experiência. Para tanto, selecionamos uma
instituição espírita como ocasião de apreensão dessa inter-relação pois, além de
compreender que o Espiritismo propõe o voluntariado de modo próprio, percebemos
como a religiosidade daquelas pessoas se apresenta enquanto elas se dedicam ao trabalho
voluntário. Os dados foram coletados em entrevistas semi-estruturadas e analisados
fenomenologicamente. A análise indica que (1) ação voluntária é vivida como abertura à
experiência religiosa: doando-se ao outro em gestos, a pessoa reconhece sua ação
sustentada por presenças transcendentes e direcionada à afirmação de horizonte
absoluto; (2) vivência da religiosidade ordena a compreensão da realidade,
fundamentando e direcionando a ação reconhecida como dever correspondente a si.
Conclui-se que realização de si é fator estruturante da mútua-constituição entre
voluntariado e experiência religiosa.
Palavras-chave: psicologia fenomenológica; voluntariado; religiosidade; auto-realização
Abstract
Given the current discussion of the significance of volunteering in a specific religious
context, we aimed at investigating the inter-relationship between volunteering and the
religious experience, lived and revealed by the subjects that have such experience. To this
end, we selected a spiritist institution as occasion for the understanding of this interrelationship because, besides understanding that Spiritism proposes volunteerism in its
own way, we realized how the religiousness of those people was presented while they
engage in volunteer work. We collected data in semi-structured interviews and analyzed
them phenomenologically. The analysis indicates that (1) voluntary action is experienced
as an openness to religious experience: by giving themselves to the other through
gestures, people recognize their actions both supported by transcendent presences and
pointed to the assurance of the absolute horizon; (2) the experience of religiousness
arranges the understanding of reality, basing and guiding the recognized action as a
corresponding duty to oneself. We conclude that the self-fulfillment is a structural factor
of mutual-constitution between volunteering and religious experience.
Keywords: phenomenological psychology, volunteering; religiosity; self actualization
Introdução
Dada a atualidade da discussão da significação do voluntariado em determinado
contexto religioso, estudos acadêmicos têm se voltado para o tema partindo da realidade
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ gasparmahfoud02
Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2012). Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita: investigação
fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
http:/ / www.fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ gasparmahf oud02
"
brasileira.1 Dentre tais estudos, emergem investigações que dão visibilidade a movimentos
culturais que há muito propõem o voluntariado, em que se destaque o movimento espírita
(cf. Cavalcanti, 1983; Giumbelli 1998; Sampaio, 2009; Stoll, 2003). Embora existam diferenças
importantes no modo de interpretação da constituição do Espiritismo na realidade brasileira,
é unanimidade entre os investigadores o reconhecimento da centralidade do voluntariado
nesta constituição.
Tomamos como referência as propostas de Giumbelli (1998) e Sampaio (2009), que
evidenciam que, não obstante a recorrente associação genérica e pejorativa ao
assistencialismo, a experiência de voluntariado no âmbito da Doutrina Espírita carrega uma
complexidade que lhe é própria.
Ambos os autores demonstram que tal experiência remete direta ou indiretamente à
noção de caridade, um dos pilares do Espiritismo. No entanto, alertam que não é suficiente
explicar o investimento espírita na assistência social somente aludindo ao compromisso
doutrinário com a caridade. É preciso considerar as novas formas de envolvimento e
elaboração da assistência social que vêm emergindo no contexto espírita. Trata-se de
configuração emergente que ressalta a "caridade como cidadania, mas também cidadania
afirmada pela caridade" (Giumbelli, 1998, p. 165).
Essa discussão ganha nova consistência ao aproximarmos da experiência de pessoas
que trabalham voluntariamente numa instituição espírita. Vislumbramos nesse contexto
ocasião preciosa de compreender a articulação entre voluntariado e experiência religiosa, na
medida em que percebemos como a religiosidade daquelas pessoas se apresenta enquanto
elas se dedicam àquele trabalho. Nesse sentido, objetivamos neste artigo investigar a interrelação entre ação voluntária e experiência religiosa, tal como vivida e revela pelos sujeitos
da experiência.
1. Referencial teórico
Encontramos na Fenomenologia de Husserl (1952/2006a, 1924/2006b, 1954/2008) e
Stein (1932-33/2003, 1922/2005) o referencial teórico-metodológico capaz de nos auxiliar a
investigar a experiência em sua unidade e complexidade, pois solicita um modo de olhar que
parte das provocações daquilo que se manifesta - o fenômeno - tendo como meta
compreendê-lo, deixando-o viver (Ales Bello, 1998, 2004). Olhar que repousa na relação que
se estabelece entre o eu e o mundo, na realidade enquanto percebida por alguém (van der
Leeuw, 1933/1964). Para apreender tal relação, a Fenomenologia se volta para a vivência,
1
O presente artigo é baseado na dissertação de mestrado "Ser voluntário, ser realizado: investigação
fenomenológica numa instituição espírita" (Gaspar, 2010), orientada pelo prof. Miguel Mahfoud, defendida no
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Apoio CAPES.
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que se refere justamente à unidade entre ato do sujeito e fenômeno por ele apreendido (Ales
Bello, 2004; van der Leeuw, 1933/1964).
1.1. Dimensões constitutivas da pessoa
Por meio da análise das vivências, Husserl identifica uma estrutura compartilhada,
propriamente humana, que se configura como a base da subjetividade. Estruturalmente,
somos capazes de perceber, sentir, imaginar, refletir, agir, embora o conteúdo dessas
vivências possa ser variado. Apreendendo diferenciações qualitativas das vivências, a
Fenomenologia reconhece três dimensões constitutivas do humano: a corpórea (corpo
vivente), a psíquica (esfera do que nos acontece, vivências de reação) e a espiritual (esfera do
posicionamento, vivências volitivas e intelectivas) (Ales Bello, 1998; Husserl, 1952/2006a;
Stein, 1922/2005).
Constituído por dimensões diferenciadas, o ser humano é uno e único, existente como
eu-no-mundo, ser de relações. Para descrevê-lo, a Fenomenologia retoma o conceito de
pessoa, que contempla a unidade humana singular e dinâmica, capaz de abertura para dentro
(autoconsciência) e para fora (esfera de relações). Estruturalmente, o ser pessoal possui um
princípio formativo que lhe confere potências e limites, e permite-lhe ordenar aquilo que
recebe de modo a se constituir e a intervir no mundo externo (Stein, 1932-33/2003).
1.2. Pessoa em ação
Giussani (2009) abre caminho para apreender os elementos constitutivos da pessoa ao
propor como ponto de partida a observação do eu em ação (Gaspar & Mahfoud, 2009).
Ao analisar a constituição da pessoa em ato, Stein (1922/2005) destaca a radicalidade
da dinâmica de motivação como capaz de desvelar as especificidades da experiência
humana. É pela motivação que os atos se conectam, não automaticamente, pois o eu é o
ponto de origem desse processo. Ao se voltar para o modo como os motivos se realizam na
ação, Stein apreende o valor do ato livre enquanto plenamente motivado, isto é, em que o eu
se expressa a partir de suas exigências radicais mobilizadas no mundo.
Wojtyla (1982) destaca ainda que é somente em ação que a pessoa se revela em sua
unidade e totalidade. Toda ação contém auto-realização, embora nem toda ação realize
plenamente quem age, o que explicita a centralidade de um posicionamento moral que
corresponda, a um só tempo, ao núcleo da pessoa e às solicitações da realidade.
1.3. A pessoa e o mundo-da-vida
Para compreender o substrato que possibilita ao sujeito elaborar a própria experiência
em mútua constituição com o mundo que o cerca, Husserl (1954/2008) formula o conceito de
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mundo-da-vida: mundo histórico-cultural concreto, fundamentado intersubjetivamente em
usos e costumes, saberes e valores (Zilles, 1996). A um só tempo baseado na experiência
pessoal e coletiva, o mundo-da-vida é "constituído por toda a bagagem de experiências
vivenciais que cada ser humano possui e compartilha com o grupo ao qual pertence", e, por
isso, é o fundamento sob o qual se assentam elaborações mais complexas que se constituem
como cultura (Ales Bello, 1998, p. 38).
O mundo-da-vida refere-se ao que é habitual, que nos confere segurança para nos
movermos no campo da vida prática, cotidiana e, portanto, configura-se como estável e préreflexivo, embora possa posteriormente tornar-se objeto de reflexão (Ales Bello, 1998). Assim,
cada pessoa não precisa inventar soluções novas a cada problema que surge: pode percorrer
caminhos já trilhados por outros, sem se sentir sozinho e sem precisar lidar sempre com o
desconhecido (Schutz cf. Wagner, 1979). Dando-lhe certezas, fornece a coragem para
enfrentar o desconhecido e fazer um trabalho pessoal ao elaborar aquilo que encontra,
podendo chegar até mesmo a questionar elementos do seu próprio mundo-da-vida.
1.4. Expressão pessoal e experiência religiosa
Ao se voltar para a análise do modo como se constitui a experiência propriamente
humana, Giussani (2009) evidencia a possibilidade de um juízo diante do que se vive a partir
de um critério imanente à estrutura originária da pessoa, chamado experiência elementar:
conjunto de evidências e exigências (liberdade, justiça, beleza, felicidade, verdade, amor)
constitutivas da pessoa.
Em sua dinâmica característica, a experiência elementar é um ímpeto existencial de
abertura à realidade que busca nela pontos de correspondência e de realização desse ímpeto,
"face interior" da pessoa (Giussani, 2009, Mahfoud, 2012). Essa abertura pessoal, fator
constituinte da razão, se exprime em certas perguntas radicais e inextirpáveis da vida do eu e
pedem uma resposta total. E quanto mais a razão se volta na tentativa de respondê-las, mais
se evidencia a desproporção dramática entre a resposta dada e o horizonte total que a solicita
(Giussani, 2009). No impacto com a realidade, a vida desperta perguntas cujas respostas
estão para além da medida do homem, mas que, existencialmente, em vez de paralisá-lo, o
instiga cada vez mais (Giussani, 2009; Mahfoud, 2001, 2012).
Esse dinamismo, denominado senso religioso, refere-se à "capacidade que a razão tem
de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última, é o lócus da consciência que o
homem tem da existência" (Giussani, 2009, p. 88, grifos do autor). Isso significa que o ápice da
conquista da razão consiste justamente em se abrir à totalidade dos fatores, aceitar
maravilhado a provocação da realidade e perceber o sinal da Presença de um ser
transcendente do qual tudo e todos dependem. Esta é a idéia de mistério. Portanto, o senso
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religioso é a base da experiência religiosa, que consiste no relacionamento do eu com esta
Presença misteriosa reconhecida como fonte de sentido (Giussani, 2009).
Tal definição aproxima-se das elaborações de van der Leeuw (1933/1964) sobre a
estrutura interna irredutível do fenômeno religioso. Analisando diferentes religiões, o
fenomenólogo pôde identificar que todas apontam para o reconhecimento de um Poder
transcendente, surpreendente e altamente solicitador. A experiência religiosa é, então, a
resposta concreta que tenta realizar a busca propriamente humana por um sentido último e
por um relacionamento com o Mistério que a transcende.
2. Procedimentos metodológicos
A partir da imersão na realidade de uma instituição espírita - a que chamaremos de
Casa Espírita - de reconhecida notoriedade dentro do Movimento Espírita Mineiro e
oficialmente vinculada à Federação Espírita Brasileira (FEB), selecionamos intencionalmente
pessoas-referência quanto ao modo ideal de trabalhar ali, isto é, pessoas reconhecidas como
modelos pelo modo como se envolvem pessoalmente e como vivenciam sua religiosidade
naquele trabalho voluntário.
Coletamos os dados por meio de entrevista semi-estruturada com a proposta de
privilegiar não opiniões sobre o assunto, mas a expressão da experiência (Amatuzzi, 2008).
Em momentos propícios à elaboração, solicitamos aos sujeitos que discorressem sobre o
trabalho voluntário que realizam2. Ao longo da entrevista, buscamos não induzir que os
sujeitos falassem aquilo que esperávamos deles, respeitando a dinâmica de elaboração de
cada um, mas com cuidado para auxiliá-los a retomarem o foco na experiência sempre que
necessário (Thompson, 1992). Como forma de resguardar os sujeitos, alteramos todos os
nomes próprios.
Os registros sonoros gravados foram transcritos integralmente, com cuidado para
manter os estilos de linguagem de cada sujeito. Incluímos nas transcrições dados não verbais
que pudessem ser reveladores da vivência dos sujeitos no momento da entrevista.
Posteriormente, realizamos a textualização das transcrições com vistas a facilitar a leitura e a
compreensão da experiência comunicada, com cuidado para que não fosse perdida sua
vitalidade e complexidade original (Mahfoud, 2003).
2.1. Análise dos dados: método fenomenológico
A análise dos dados guiou-se pelo método fenomenológico (van der Leeuw,
1933/1964), que toma os relatos como expressão do vivido e escava a subjetividade e o
mundo-da-vida. Com esse procedimento, podemos chegar à constituição mútua eu-mundo e
' A entrevista também foi acompanhada pela leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
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á estrutura das vivências, como elas se organizam e se manifestam (Amatuzzi, 1996; Ales
Bello, 2004).
Essa análise é viabilizada pela atitude de epoché, que consiste em suspender concepções
prévias para voltar-se ao fenômeno buscando colher seus elementos essenciais. Tal postura
crítica e antiespeculativa quer evitar sobreposição de construções categoriais ao significado
do fenômeno estudado, para favorecer que emerja o que lhe é mais próprio, sua estrutura
(Ales Bello, 1998, 2004; van der Leeuw, 1933/1964; Zilles, 1996).
Como procedimento de análise, realizamos leituras sucessivas do material buscando,
num primeiro momento, apreender o movimento da pessoa, seu modo próprio de
elaboração. Num segundo momento, procuramos compreender os dados do ponto de vista
da experiência de nosso interesse, atentando para o modo como a ação voluntária e a
experiência religiosa se inter-relacionam.
Como meio de apreender metodicamente a dinâmica da experiência e chegar a
delimitar uma experiência-tipo a partir dos dados colhidos, tomamos como referência as
diretrizes metodológicas propostas por van der Leeuw (1933/1964):
(1) Nomeação: ato de dar nome às vivências, de modo a delimitar um problema a ser
investigado. (2) Inserção na própria vida: vivência consciente e metódica das ressonâncias
que o fenômeno em estudo provoca no pesquisador. Não "mergulhamos" de modo
inconsciente nos dados, mas sim buscamos colher com rigor o impacto das vivências do
outro como indicativos de um sentido a ser apreendido. (3) Inserção entre parênteses:
suspensão da faticidade e de convicções pessoais prévias para a captação do sentido e da
estrutura da vivência. (4) Elucidação: clarificação das vivências contempladas, em que se
estabelecem categorias que ressaltem as conexões de sentido existentes. (5) Compreensão:
espécie de união ou culminância das diretrizes antecedentes, na qual "a realidade caótica,
inerte, converte-se (...) em uma informação, em uma revelação" (p. 648). (6) Retificação
contínua: correção das compreensões alcançadas a partir do confronto com outros materiais.
(7) Reconstrução da experiência vivida pelo sujeito visando a sua apresentação a terceiros de
modo a possibilitar o acesso à compreensão da vivência alcançada.
3. Resultados
3.1. Olívia
Manhã de sábado. O café da manhã é servido no refeitório às pessoas menosfavorecidas, os assistidos, que procuram a Casa Espírita em busca de assistência social. Já os
voluntários que trabalham na Casa Espírita são conhecidos como tarefeiros. Alguns destes
organizam-se para distribuir o café, o leite achocolatado, o pão com manteiga. Continuando
em frente, saímos do refeitório e adentramos outro ambiente: cerca de vinte tarefeiros
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vestidos com jaleco branco, touca, bocal e luvas debruçam-se sobre vasilhas picando frutas.
Ao lado, outros tarefeiros preparam uma espécie de suco que será misturado às frutas
picadas num grande recipiente, com capacidade para mais de cem litros. Terminada esta
primeira etapa, enquanto alguns cuidam da limpeza das vasilhas utilizadas, outros
distribuem a mistura em pequenos potes. Está pronta a salada de frutas. Mais tarde, a partir
das onze horas, ela será servida aos assistidos como sobremesa da sopa.
Acompanhando todo o processo, destaca-se a figura de Olívia, 54 anos, contadora
aposentada e coordenadora desta tarefa. Ela não somente segue de perto a preparação da
salada de frutas, verificando a quantidade precisa de cada ingrediente e o modo de distribuíla nos potes, como recebe de braços abertos todos os tarefeiros que vão chegando, verifica
quem está presente e quais são suas atividades, orienta a redistribuição de funções, solicita
que todos acelerem a tarefa caso seja necessário. O modo como Olívia realiza essas
atividades chama nossa atenção: são marcantes sua alegria que contagia e dita o tom de
como os tarefeiros realizam a tarefa, sua afeição autêntica com cada pessoa que encontra e o
gosto de cuidar de cada detalhe para que a tarefa aconteça da melhor forma.
Para tantas pessoas que encontramos na Casa Espírita, Olívia é a grande referência da
tarefa da Salada de Frutas, não somente por ser coordenadora, mas principalmente por seu
empenho em dar continuidade à tarefa e em defender a Salada nos mais variados contextos.
Ao ser indagada sobre este trabalho que realiza no sábado, Olívia nos conta de seu
"carinho especial" pela Salada, destacando os percalços que enfrentou ao longo da
consolidação desta tarefa.
Acontece. Igual outro dia: um dos colaboradores saiu... (...) Qualquer dinheiro
para nós faz falta. Aí no mesmo dia em que eu estava falando com a Mariana
chegou uma tarefeira e falou: "Olívia, eu queria colaborar, mas eu só posso dez por
mês." Então já não é vinte que eu preciso, é dez, né? Que nós [ênfase] precisamos.
Falei: "mas lógico, é muito bem-vindo." Aí chegou outro: "Olívia, posso colaborar
com dez reais?" Inteirou os vinte! [risos] Eu fico feliz porque é a resposta da
Espiritualidade, a resposta de Jesus para nós, certo? Porque se não fosse uma tarefa
que fosse feita com amor, já tinha acabado, não ia durar tanto tempo. Quando eles
dão essa resposta rápida, tipo assim: "é isso mesmo, eu estou no caminho". Então,
você faz parte desse negócio todo sabendo que está no caminho. Eu estou dando o
meu melhor e a Espiritualidade está aí, concordando com a gente.
Justamente porque são as pessoas que assumem financeiramente a tarefa da Salada,
colaborando com o próprio dinheiro voluntariamente, há o risco de alguém deixar de
contribuir, e isso acontece. Quando um dos colaboradores saiu porque não tinha mais condições de
ajudar, sustentar financeiramente a tarefa ficou mais difícil, uma vez que qualquer dinheiro faz
falta. Mas, algo inesperado acontece: uma tarefeira quis contribuir, outro tarefeiro pediu para
colaborar, e eis que inteirou os vinte reais necessários para continuar sustentando a tarefa. Ao
se dar conta do caráter providencial deste acontecimento, isto é, quando reconhece que ele se
dá segundo um desígnio que lhe é favorável, Olívia fica feliz, se realiza identificando neste
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fato a intervenção de presenças de ordem superior, porque é a resposta da Espiritualidade, a
resposta de Jesus para nós. Para Olívia, a rapidez com que esta resposta é dada indica que ela
está no caminho, e o fato dela dar o seu melhor neste caminhar mostra que esta presença da
Espiritualidade está concordando com ela. Sem a intervenção desta ordem, a tarefa não ia durar
tanto tempo, porque as pessoas da Salada não dariam conta, por si mesmas, de efetivamente
assumi-la. Portanto, fazer com amor é fazer sabendo que não é só você quem faz.
Para Olívia, é a percepção de que a Espiritualidade e Jesus estão facilitando e
concordando com o caminho percorrido que direciona a ação voluntária por ela
desenvolvida. Embora distintos, esses dois níveis de vivência se entrecruzam: é por
trabalhar, isto é, por realizar a tarefa que Olívia pode perceber a intervenção divina
providencial e, reconhecendo essa experiência religiosa como realizadora de si, ela a toma
como resposta que sustenta e orienta o modo de agir voluntariamente.
E como se dá o relacionamento de Olívia com a Espiritualidade?
As vezes em que nós passamos dificuldades, a gente fala: "Paulo, você é mentor da
Salada, meufilho, dá um jeito aípra gente." (...) E ele responde em atos. A gente
passava sábados com pouco para dar para as crianças, (...) a gente punha aquele
pouquinho... "ô tia, eu quero mais...". E eufalava "ó, Paulo, você se vira aí, meu
filho. Nós estamos aqui e está muita pouca fruta." Aí no sábado seguinte sempre a
gente ganhava mais uma caixa daqui, alguém que doava algum dinheiro, entendeu?
Então, ele faz bem o papel dele de mentor. [risos]
Em momentos de dificuldade, é a Paulo, mentor espiritual da tarefa, que Olívia recorre:
dá um jeito aí pra gente. Para ela, o modo como Paulo responde é fazendo algo acontecer que
resolva a situação, pois ele responde em atos. É por isso que para Olívia ele faz bem o seu papel de
mentor. Trata-se de um relacionamento tão pessoal que Olívia tem a liberdade de pedir para
ele "se virar aí" e a intimidade de chamá-lo de meufilho.
Fico muito feliz quando a gente mentaliza João Alberto e Paulo, eles estão juntos,
né? Não é só Paulo, tem o João Alberto, e, mais que tudo, Jesus. A gente está
sempre lembrando que a tarefa é para Ele. Ele falou: "o que fizeres para qualquer
um dos pequeninos épara mim quefazeis".
Ao mentalizar João Alberto e Paulo, que estão juntos enquanto mentores da Sopa e da
Salada de Frutas, atividades do departamento de Assistência Social, Olívia fica feliz por
entrar em sintonia com a Espiritualidade. E entrar em sintonia com a Espiritualidade é entrar
em sintonia, mais que tudo, com Jesus. Por que mais que tudo? No modo como Olívia toma a
frase do Evangelho, é razoável entendermos que, para ela, servir salada de frutas para os
assistidos é realizar a tarefa para Ele.
Mais uma vez, Olívia nos comunica como a vivência religiosa incide diretamente no
objetivo de sua ação voluntária. Não há como desvencilhar uma da outra: no ato mesmo de
trabalhar voluntariamente para os assistidos, Olívia amplia seu horizonte de observação e
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compreende que está atendendo ao chamado de Jesus e, portanto, trabalhando para Ele. E
Jesus é, mais que tudo, sentido último da tarefa que direciona o modo concreto de doar para
os assistidos.
Esta compreensão ajuda Olívia a problematizar o sentido da tarefa:
Toda tarefa, afinalidade dela éessa [a reforma íntima]. (...) A gente, aqui na Casa
Espírita, tenta sempre passar isso para as pessoas, que ser tarefeiro é muito mais
que ser voluntário. Porque o voluntário, no conceito geral, é aquela pessoa que vai
quando tem uma horinha, quando pode. Têm alguns até que são persistentes, mas se
prendem à palavra "voluntário". "Eu sou voluntário." (...) Já o tarefeiro, ele tem
um compromisso [ênfase] com a Casa. Ele tem um horário a cumprir (...) É um
trabalho, mas para Jesus, não é para nenhum de nós. Então, o compromisso é muito
grande. Não que o voluntário também não faça. Mas a gente, dentro da Casa
Espírita, tem que ter muita consciência disso. (...) E... se você falta e eu falto,
sempre tem alguém. Mas é pela nossa própria necessidade.
Para Olívia, tomar a reforma íntima como finalidade da tarefa é um ponto que diferencia
a postura do tarefeiro da postura do voluntário. Enquanto o voluntário, no seu conceito geral,
trabalha quando pode e faz questão de dizer que é voluntário, se auto-afirmando sob o próprio
trabalho, o tarefeiro, para ser considerado como tal, precisa ter a consciência do compromisso
assumido consigo mesmo, com a Casa Espírita e com o sentido último que a tarefa expressa,
isto é, com um trabalho para Jesus. Esse compromisso assumido não significa auto-afirmação
voluntarista, pois se você falta e eu falto, sempre tem alguém, a tarefa vai continuar. Isso significa
que, para Olívia, não estão somente no indivíduo a força e o sentido da tarefa: pelo contrário,
a pessoa deve trabalhar percebendo e afirmando sua participação em uma obra maior,
reconhecendo que está ali pela sua própria necessidade. Em síntese, ser tarefeiro é muito mais que
ser voluntário, é ser capaz de aderir a uma proposta feita por um outro com consciência dos
objetivos a serem alcançados, com clareza do sentido último a ser afirmado e com
comprometimento com o próprio processo de crescimento pessoal.
Para Olívia, fazer a tarefa é um dever que não elimina a possibilidade de realização que
este fazer contém. A todo o momento, Olívia descreve a satisfação que a tarefa lhe traz,
independente de qual seja:
Eu tenho outra tarefa na segunda, que é de Passe, que é outra gratificante, porque o
passista, ele é o primeiro a receber mesmo. Então quando você sai, conclui essa
tarefa, você sai altamente revigorado, sabe? Você sai com uma energia que dá
vontade de abraçar o mundo! Porque você é um canal. A Espiritualidade pega
energia sua, trabalha nessa energia e a passa para aquele paciente. E é por isso que
você tem que ter uma entrega principalmente no dia da tarefa. (...) Aliás, toda
tarefa tem que vir com o seu melhor.
Olívia se realiza na tarefa do Passe por reconhecer que é a primeira a receber, pois fazer
esta tarefa a revigora de um modo tal que lhe dá vontade de abraçar o mundo. Então é
gratificante, mas isso não significa que o foco principal seja favorecer o tarefeiro, pois o que é
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característico dessa tarefa é o fato de o passista ser canal para que a Espiritualidade trabalhe
passando energia para aquele paciente. Para Olívia, ser este canal a solicita a empenhar-se e a
cuidar-se no dia a dia de modo a estar efetivamente disposta para que a tarefa se concretize.
Reconhecendo essa sua entrega ao trabalhar como passista, Olívia apreende um critério que
deve orientar todas as tarefas: tem que vir com o seu melhor.
Portanto, ela se realiza ao perceber que sua atividade a transforma em instrumento da
Espiritualidade: ela recebe e doa energia para o outro e, nesse processo, toma para si o que
recebe, vitalizando-se e sentindo-se mobilizada a agir considerando horizontes de totalidade.
E na tarefa de Visita aos Lares, em que ela também atua, não é diferente:
Na terça, eu faço Visita aos Lares, que também é gostoso. (...) A gente vai levar o
Evangelho [ênfase] de Jesus para dentro da casa da pessoa. E a gente sabe que
quando é pedido um passe no lar, a pessoa está com o comprometimento espiritual
maior. (..) Muitas vezes não é a pessoa que está tomando o passe, ela é só um canal
para dentro de casa. E nunca você está sozinho naquele ambiente, tem irmãos que
estão vendo do plano espiritual e que estão tão necessitados quanto. (...) A gente faz
um pequeno culto. Você vai cantar um hino para sintonizar; fazer uma oração
inicial; fazer uma leitura; (...) comentar a leitura; dar o passe e encerrar. É um
culto isso aí. (...) são vinte minutos em que a gente percebe a ansiedade que a
pessoa fica esperando a gente, sabe? "Ah, vocês chegaram!" Então não pode nem
atrasar, porque a gente sabe da ansiedade do outro. É um quadro gostoso.
Olívia enumera vários fatores envolvidos na tarefa de Visita aos Lares: o
comprometimento espiritual da pessoa que é visitada, o fato de ela ser um canal para dentro de
casa, a presença naquele ambiente de Espíritos desencarnados tão necessitados quanto; mas
reafirma que a questão é levar o Evangelho de Jesus. Todo o conhecimento espírita e a estrutura
de como se deve fazer este pequeno culto estão em função desse objetivo. O alcance deste
objetivo, acrescido da espera de quem será visitado e do cuidado que isso desperta em
Olívia, compõem para ela um quadro gostoso. E que gosto é esse que Olívia vivencia?
Entáo... é difícil, a pessoa está com uma dificuldade... mas o gostoso é perceber...
Igual, um lar que a gente adentrou de uma pessoa muito chorosa. (...) E essa
semana, que ela está tomando o quarto passe, é outra pessoa. O prazer... é um
prazer enorme. Vocêfala: "pó\...". Cara, eu chego em casa (...) efalo assim: "Jesus,
você me deixa [ênfase] participar disso!", sabe como? Eu vou agradecer: "Jesus,
você me deixa [ênfase] participar dessa maravilha de...". Lógico que eu tenho
consciência que não sou eu, não é a minha dirigente, nem a equipe. Nós fazemos
parte, Ele deixa a gente fazer parte, porque... vê se Ele precisa da gente, né? Então
por isso que a gente tem que ter essa cautela [ênfase] de não achar [ênfase], não é?
Se achar [ênfase], não. Ele só deixa a gente participar. Para, quem sabe um dia,
desenvolver a caridade real... Hoje em dia a gente aindafaz porque precisa, mas um
dia a gente vai fazer com esse desprendimento com que a Espiritualidade faz,
simplesmente porque ama. Não tem outro sentido a não ser esse. Então, é
gratificante. Essa semana ela [está] mais centrada, mais tranquila...
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Embora envolvida em uma situação difícil, em que precisa lidar com pessoas em
dificuldade, Olívia vivencia um prazer enorme por poder ajudar uma pessoa a sair de uma
postura chorosa, de modo a ficar mais centrada, mais tranqüila. Retomando essas experiências
quando chega em casa, ela se dá conta de que a maravilha desse acontecimento não está
unicamente em sua mãos. Olívia tem clareza de que não é ela que faz o processo acontecer,
porque sabe que nem Jesus nem a Espiritualidade precisam dela para fazer a caridade: vê se
Ele precisa da gente, né? Olívia, a dirigente e a equipe participam dessa experiência, mas não a
sustentam por si mesmos, pois é um Outro que a faz: Ele só deixa a gente participar. Por isso
não há sentido em se achar. Por isso o fato dela poder participar dessa experiência gratificante
é reconhecido como uma oportunidade concedida, despertando gratidão: "Jesus, você me
deixa participar disso!". Gratidão também porque tais experiências se constituem como ocasião
de aprendizado e crescimento pessoal, pois, se hoje ela aindafaz porque precisa, sua esperança
é de que a prática a conduza a fazer com esse desprendimento com que a Espiritualidade faz.
Em síntese, o maravilhamento diante de um acontecimento solicita Olívia a reconhecer
que esta experiência lhe foi dada por Alguém. Assim, não há porque se auto-afirmar
exaltando o próprio trabalho: a resposta que lhe corresponde é a gratidão por poder
participar de algo que ultrapassa sua própria capacidade. Essa experiência abre horizontes
que a permitem vislumbrar sua espera pela caridade real, espera por um dia poder agir com
desprendimento, simplesmente porque ama. Chegar a fazer por amor: é por isso que Olívia se
dedica à tarefa, porque não tem outro sentido a não ser esse, e gostaria que todos soubessem de
quê se trata:
Tarefa é muito gostoso. Se as pessoas soubessem a força, a grandeza que é essa
oportunidade... de estar junto de Jesus fazendo o que Jesus fazia, contente,
caminhando lado a lado, ombro a ombro... acho que o mundo todo abraçava, cada
um abraçava uma coisa para fazer.
Retomando todo seu percurso de elaboração sobre o sentido da tarefa e sobre o gosto
que se vive ao realizá-la, Olívia pode expressar com convicção que se as pessoas soubessem o
que ela sabe, o mundo todo abraçava. Partindo do âmbito circunscrito da sua experiência
pessoal, da alegria por estar junto a uma Presença tão significativa para ela, por caminhar
ombro a ombro com Ele e por se realizar na tarefa em Sua companhia, Olívia é capaz de dar
um juízo que se abre para a humanidade inteira. Ela identifica aforça e a grandeza, isto é, o
valor da oportunidade oferecida pela tarefa e daí extrai a potência que o conhecimento desse
valor tem de provocar o ser humano a se mover, a abraçar uma coisa para fazer.
Assim, tantos sentidos abertos pela tarefa, tantas possibilidades de realização e de
vivência de experiências religiosas de integração com a divindade retornam ao elemento
mais concreto, à ação: tudo isso é possível pelo fazer e convida a fazer. É a concretude da
tarefa realizada, com esforço e cuidado, que possibilita e sustenta essa dinâmica.
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2012). Ação voluntária e experiência religiosa numa instituição espírita: investigação
fenomenológica. Memorandum, 23, 93-119. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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3.2. Telma
No sábado pela manhã, logo após as onze horas, cresce a fila de assistidos na porta do
refeitório. Crianças, suas mães e pessoas idosas têm preferência e adentram o salão enquanto
os demais aguardam. Os caldeirões já foram dispostos nas cabeceiras das mesas e estão
cheios de sopa fervilhante. Enquanto os assistidos são instruídos a se acomodarem nas
mesas, tarefeiros executam suas respectivas funções: preparar e colocar a sopa nos
caldeirões, servir a sopa nos pratos, entregá-la aos assistidos, repor a sopa para aqueles que
solicitam repetição, limpar as mesas quando necessário e todo o salão ao final da tarefa. O
ritmo é ditado pelo número de assistidos que receberão a refeição e, para que o processo
tenha continuidade, é preciso que os pratos e talheres utilizados sejam constantemente
lavados para serem reutilizados.
A "lavação dos pratos" é feita por quatro a cinco tarefeiros num espaço próximo ao
refeitório. Sobre uma bancada, bacias cheias de água e produtos de limpeza são instrumento
para um processo cuidadoso de lavagem. Nesse espaço, o rigor com que são cumpridas as
normas de higiene é entremeado por gargalhadas. É lá que encontramos Telma, uma dona de
casa de 60 anos que caminha com dificuldade e que por onde passa leva um sorriso no rosto,
sendo alvo constante de brincadeiras. Suas risadas são inconfundíveis. Embora não seja
coordenadora, Telma, que há trinta anos trabalha na Casa Espírita, é uma figura bastante
conhecida e respeitada no setor de nutrição por sua simplicidade, vivacidade e trajetória de
vida. Para muitos, é surpreendente que ela continue perseverando na tarefa mesmo com a
saúde debilitada por problemas de articulação nos joelhos e por uma catarata progressiva,
que ameaça roubar-lhe completamente a visão. É também digno de nota o fato de que ela
não possui sequer o ensino fundamental completo, freqüenta a Igreja Católica e que, sendo
muito pobre, mora em um bairro periférico distante e por isso precisa pegar dois ônibus para
chegar até a Casa Espírita.
Não admira que Telma seja alguém capaz de solicitar tanto os demais tarefeiros, sendo
considerada referência por muitos. Vejamos o que ela mesma comunica da sua experiência
na tarefa.
Yuri: Eu queria saber como é o trabalho que vocêfaz, o que vocêfaz aqui na Casa...
Telma: De uns tempos para cá, agora, eu estou só na sexta e no sábado. Na sextafeira a gente vem, corta legumes, lava tudo direitinho e guarda. E cozinha ofeijao...
põe tudo no freezer e guarda tudo direitinho. E lava tudo, as vasilhas, tudo
direitinho, seca e guarda. Isso na sexta, né?
Yuri: Vocês cortam o legume para sábado?
Telma: Corta tudo, separa, guarda o que tem que guardar na geladeira e... casca
tudo, corta e lava com muito cuidado para não sair nada errado. [tom de
brincadeira]
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Ao iniciar o relato sobre seu trabalho, Telma enfatiza a dimensão cronológica das
tarefas que realiza: de uns tempos para cá, agora, eu estou só na sexta e no sábado. Nessa primeira
afirmação, é possível colher seu interesse em comunicar que já esteve envolvida em outras
tarefas, dando a entender que está na Casa Espírita há algum tempo e que, comparado ao que
ela já fez, o trabalho que ela realiza atualmente é pouco: estou só na sexta e no sábado. A ênfase
nesses dois fatores, o tempo de trabalho e a quantidade de atividades realizadas, sugere-nos
o valor, para Telma, do ato de fazer tarefa. Outro indício desse valor pode ser apreendido no
modo como ela, ao listar suas tarefas de sexta, destaca seu empenho para que saia tudo
direitinho. Não basta vir, separar, cortar, cozinhar, lavar, secar e guardar, é preciso realizar
cada uma dessas atividades com muito cuidado para não sair nada errado. Descrevendo o
cotidiano da tarefa, Telma ressalta seu empenho e zelo com cada alimento e objeto
manuseado: tudo é cuidado assim.
[Hoje] eu fico mais é na lavação no sábado. Justamente agora que eu não tenho
muita força nas pernas, também não estou enxergando direito, então eu me imagino
no meio do povão lá dentro, eu tenho medo de esbarrar em alguém e cair, tenho
medo de tropicar e cair. Então para cá eu fico mais segura. Então, de qualquer
maneira, é a tarefa que está saindo. Mas se precisar de mim ali no meio do povão, é
lógico que vou. Comigo não tem escolha de serviço não. Qualquer [ênfase] lugar na
Casa que precisar de mim, eu vou lá. Por enquanto eu estou para cá, eu estou
contente [risos]. Está tudo certo.
Diante de sua fragilidade física e do medo daí decorrente, Telma opta por não realizar
tarefas dentro do refeitório onde é servida a sopa, e por se dedicar à tarefa de lavação, pois lá
ela se sente mais segura. Entretanto, mesmo diante dessas limitações, Telma faz questão de
afirmar que não é essa condição que a determina, já que a tarefa está saindo, ela está contente e,
como conclusão, está tudo certo. Independente de sua fragilidade ou da atividade a ser
realizada, Telma reafirma o gosto por permanecer trabalhando e sua disposição para
continuar: se precisar de mim, é lógico que vou, pois comigo não tem escolha de serviço não.
Mais uma vez, emerge o valor da ação voluntária para Telma, valor que é exacerbado
seja na descrição das condições adversas, seja na afirmação da disposição por superá-las.
Nessa elaboração, Telma sublinha as restrições ao mesmo tempo em que comunica seu
empenho: o ponto é explicitar que ela se dedica onde for preciso. Trata-se de uma dedicação
que reformula o modo como ela concebe o próprio trabalho.
[Antes], se eu fizesse o trabalho e visse alguém ganhar alguma coisa, eu também
queria. Eu achava que eu também trabalhei, entáo... Só que a gente, assim, no
íntimo da gente, a gente ganha muito mais do que... né? Então é isso que me dá
força.
Telma reconhece que ao trabalhar ganha muito mais do que alguma coisa. Com o tempo,
ela descobriu que fazer a tarefa lhe traz uma gratificação muito maior que qualquer
recompensa material. Trabalhando, Telma acredita ter se modificado, tornando-se capaz de
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não levar em consideração o que não lhe faz "bem", em suas palavras. Sua ação voluntária
abriu possibilidade de rever posicionamentos e caminhar desprendendo-se do que lhe é
nocivo. Além disso, reconhecer o verdadeiro ganho, aquele que se dá no íntimo, lhe dá força.
Força para quê?
Telma: Me dá força, nossa! Igual, hoje mesmo eu acordei sentindo tanta [ênfase]
dor nas pernas. Falei: "ô meu Deus, eu não vou lá não, porque eu não vou dar
conta." Aí depois eu pensei: "meu Deus, éferiado. Eu vou tomar o remédio e vou!"
Aí tomei o remédio, enfiei debaixo do chuveiro e estou lá: "ai, João Alberto, dá força
nas minhas pernas, dá força nas minhas pernas...". Quando eu me vi eu estava
aqui! [risos] É engraçado isso, né? É muito engraçado! Eu não dou sossego para o
João Alberto não, eu peço força para o João Alberto o tempo todo. Nó! Tenho fé
mesmo, muito.
Yuri: E você quis vir no feriado, por quê?
Telma: Porque eu imaginei que viria pouca gente. Aí falei: "gente, deixa eu ir lá."
A força que Telma ganha é disposição para trabalhar superando as dificuldades,
disposição sustentada pelafé. Sofrendo com a dor nas pernas, ela dialoga com Deus, dizendolhe acreditar que não conseguirá realizar a tarefa: eu não vou dar conta. Mas a intuição de que
no feriado poderia haver pouca gente trabalhando na tarefa reacende em Telma o juízo de se
dedicar ao trabalho sempre que for preciso. Retomando esse ponto, as hesitações
desaparecem, e Telma pode se posicionar a favor do que reconhece como mais
correspondente: eu vou tomar o remédio e vou! Entretanto, ela sabe que cuidar do que lhe
corresponde não é algo que possa fazer sozinha: por isso pede ajuda a João Alberto, mentor
espiritual da tarefa, para sustentar sua disposição para o trabalho. O reconhecimento da
resposta imediata, quando eu me vi eu estava aqui, é vivido com surpresa, levando-a a retomar
suafé em João Alberto, a quem ela recorre o tempo todo: Eu não dou sossego para o João Alberto
não.
Telma reafirma constantemente o seu ímpeto por superar os obstáculos para
permanecer se dedicando à tarefa e, neste trecho, ela nos comunica que seu empenho é
sustentado por interlocutores de seu diálogo íntimo: Deus e João Alberto. Nesse sentido, a
vivência religiosa de relacionamento com figuras transcendentes incide no modo como ela
realiza a ação voluntária: é a elas que Telma recorre quando percebe que não consegue
sustentar sozinha o seu posicionamento. Observando que adquire forças para trabalhar
mesmo quando acredita que não vai dar conta, Telma compreende que é a intervenção deles
que opera modificando a realidade e instigando-a a continuar.
3.3. Márcia
Num espaço próximo ao refeitório em que são servidos o café da manhã, a sopa e a
salada de frutas, bebês e crianças de até quatro anos transitam no colo ou de mãos dadas com
tarefeiras vestidas de aventais. O modo como as crianças saem dali, limpinhas, cheirosas,
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com cabelo bem penteado e roupa impecável chama atenção de todos que as vêem e já
anuncia o que elas foram fazer: tomar banho. O "Banho Infantil" é uma tarefa que acontece
todos os sábados, das nove às onze e meia da manhã. Embora a tarefa aconteça há muitos
anos, o local em que é realizada foi recentemente alterado: é o "Banho novo". Em virtude da
alteração do local, hoje, todo o setor da Assistência Social acompanha o trânsito de crianças e
tarefeiras e são notáveis o cuidado e o carinho com que os pequenos são tratados.
Aproximando-nos do local do Banho, vemos por uma vidraça que cada tarefeira cuida de
uma criança em uma etapa diferente do processo: primeiro tirar a roupa, depois dar o banho
propriamente dito, secar, vestir a roupa, arrumar o cabelo.
Em meio a este trabalho, destaca-se a figura alegre de Márcia, coordenadora da tarefa.
Ela possui 59 anos, é atriz e produtora executiva, trabalha na Casa Espírita há treze anos e, há
nove, começou no Banho Infantil. Sua vivacidade e a proximidade que demonstra ter com as
crianças e as mães bem como o modo como orienta as colegas de trabalho indicam-nos sua
centralidade na execução daquela tarefa.
Ao nos mostrar o espaço do Banho Infantil, Márcia opta por descrever cada etapa do
trabalho, voltando-se para a sua experiência de modo a nos comunicar a importância do
cuidado da preparação, da organização e do cuidado no desenvolvimento da tarefa.
Acompanhemos como Márcia se propõe a transmitir às mães esse cuidado:
Por exemplo, aconteceu um caso aqui muito interessante e toda vez eu cito. Tinha
uma mãe que não dava banho aqui porque tinha medo. Ela falava "eu não conheço
as pessoas que dão banho, não sei como é que é". Aí eu a trouxe aqui para conhecer
o Banho. Ela achou lindo: "eu vou deixar o meu neném tomar banho com vocês."
Mas a irmã dela não quis deixar: "você nem conhece, como é que você vai deixar?".
No outro sábado, eufalei para ela: "e aí?", e elafalou: "minha irmã acha que eu não
devo." E o que aconteceu? A menina dela teve uma diarréia tão grande que sujou
até a raiz do cabelo, de tanto que a menina ficou suja. Aí ela chegou com a menina
aqui e falou: "gente, pelo amor de Deus, me ajuda." Eufui, dei banho e botamos a
menina toda cheirosa, toda linda. Quando eu entreguei para a mãe, ela viu, olhou
para mim e falou: "de hoje em diante, minha menina vai tomar banho aqui todos os
sábados." Essa menina... quando a gente chega lá, ela fica doida! Desde
pequenininha até hoje, quando a gente chega, ela fica com os bracinhos. Eu tenho
que pegá-la e ela fica o tempo todinho comigo porque sabe que vem dar banho. E se
eu a devolvo para a mãe, ela não quer. O que ela quer? Tomar banho. Então, para
você ver, como até mesmo os Espíritos encaminham, porque sabem que aquela
criança está precisando.
Para mostrar como constrói seu relacionamento com as mães, Márcia se ancora em um
caso que ela cita toda vez por considerar muito interessante. Diante da opção de uma mãe por
não deixar sua filha tomar banho devido ao medo por não conhecer as tarefeiras nem o modo
de realização da tarefa, Márcia se posiciona levando-a para conhecer o Banho. Mesmo
impactada pela beleza do que viu, a mãe mantém a decisão de não deixar a filha lá,
influenciada pela opinião da irmã. Mas eis que um novo fato acontece: a menina, com
diarréia, suja-se muito, obrigando a mãe a recorrer à ajuda de Márcia para limpar sua filha. A
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mãe, provocada pelo resultado final do trabalho, que deixou sua filha toda cheirosa, toda linda,
reformula sua decisão: "de hoje em diante, minha menina vai tomar banho aqui todos os sábados." E
não foi só a mãe que gostou. A menina, quando vê Márcia, já sabe que é a hora do banho,
ficando doida porque quer tomá-lo. Para Márcia, toda essa experiência é uma evidência da
intervenção dos Espíritos que, neste caso, encaminharam esta criança para o banho porque
sabem que ela está precisando.
Compreendemos que, para Márcia, este caso é interessante porque evidencia diversos
aspectos que ela considera essenciais em sua ação voluntária no Banho Infantil: o fato de que
é a reflexão sobre situações concretas por ela vivenciadas que orienta o modo de conduzir a
tarefa; o valor do cuidado e do respeito no relacionamento com as mães; a experiência de
maravilhamento que essa tarefa provoca em quem a conhece; a importância de, pelo
trabalho, despertar o gosto e conquistar a confiança tanto das crianças quanto das mães; o
reconhecimento da intervenção dos Espíritos em função da necessidade da pessoa.
Com relação a este último aspecto, Márcia afirma:
Porque o banho não é só um banho. Como a sopa. Os Espíritos põem dentro da sopa
tudo aquilo que... Eles estão nos vendo e sabem o que a gente precisa. Então, cada
assistido vai comer aquela sopa e vai ter ali dentro o que ele necessita para poder...
E eu acho que o banho é assim também. A tarefeira está dando um passe na criança,
e [transmitindo] o amor que elas têm pelas crianças. Aquilo faz com que aquela
criança, quando está doente, melhore; a mãe, quando está com problema, melhora.
Ao comparar o banho com a sopa, entendemos que Márcia objetiva explicitar o modo
de intervenção dos Espíritos na tarefa, ressaltando o saber que eles têm sobre o que a pessoa
precisa. Para ela, enquanto na sopa os Espíritos colocam ali dentro o que é necessário, no
banho a intervenção é via passe, isto é, as tarefeiras são instrumentos que repassam energia
para a criança. Soma-se a isso a transmissão do amor que elas têm e, como resultado, Márcia
apreende como a ação realizada na tarefa do banho faz com que aquela criança, quando está
doente, melhore; a mãe, quando está com problema, melhora.
É nesse sentido que o banho não é só um banho. Compreendemos que, na experiência de
Márcia, está implícito algo a mais nessa atividade, pois sua ação é ocasião tanto de abertura
para o relacionamento com presenças que transcendem o plano material, mas que intervêm
material e espiritualmente em função do que é preciso, quanto de concretização do amor que
o tarefeiro nutre pela criança assistida. Contemplando esse processo, Márcia conclui que a
comunhão desses fatores faz com que aconteçam transformações na vida dos assistidos, o
que significa que, para ela, sua ação voluntária atinge horizontes mais amplos do que sua
finalidade imediata.
E como Márcia lida com o reconhecimento destes horizontes presentes na tarefa?
No começo do ano, o marido de uma das mães foi assassinado. Uma das menininhas
deles tomava banho aqui. E elaficou assim... ela presenciou tudo. Sempre quando
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ela chegava aqui, a gente se reunia, fazia uma oração para ela e para o pai. Porque a
gente sabe que [se a pessoa] morrer naquelas circunstâncias, fica por aí. E ele era
muito apegado com ela. A menina o via, sabe? Falava para a mãe: "olha o meu pai
ali." Quer dizer, não está, mas ele estava presente. Ele não queria ir embora. Então
nós fizemos muita oração para eles, todas as tarefeiras. Toda vez lá em casa, no
Culto no Lar, colocamos o nome dele. São pessoas que a gente nunca viu, não
conhece, mas o nome e o endereço estão ali para orarmos.
O fato de que uma das crianças assistidas presenciou o assassinato do próprio pai
provoca Márcia profundamente. De acordo com a sua compreensão calcada na Doutrina
Espírita, morrer naquelas circunstâncias leva a pessoa a ficar por aí, o que justificaria o fato de
que a menina o via e a conclusão de que ele não queria ir embora. A provocação vivida diante
deste acontecimento e a compreensão sobre o que nele está implícito mobilizam Márcia e as
demais tarefeiras a reformularem o modo de lidar com a menina, reunindo-se antes de
recebê-la no Banho para fazer uma oração para ela e para o pai. Esse movimento de oração se
estende para fora dos muros da instituição, pois Márcia também ora para ele em sua casa, no
Culto no Lar.
Na forma como Márcia narra este caso e apresenta seu posicionamento a respeito,
vislumbramos como, de modo semelhante ao que afirmou a respeito dos Espíritos, ela age
buscando levar em consideração o que a mãe e a criança estão precisando em suas vidas. E,
ao relatar que ora em sua casa por pessoas que nunca viu, ela indica como sua experiência
religiosa contribui no modo como ela se relaciona pessoalmente com os assistidos,
especialmente com as mães.
Você ter essa relação também com as mães. De ver o que a gente pode fazer para
diminuir um pouco o sofrimento delas, porque não é fácil não. É uma vida muito
difícil a delas. A gente, que não passa por esse tipo de coisa, acha às vezes que nem
existe (...) mas acontece, e muito. E aqui a gente aprende essa lição. Aprende a
agradecer a família que a gente tem, aprende a agradecer ter nascido espírita e saber
da Doutrina Espírita. Porque tudo que a gente faz, a Doutrina Espírita dá uma
força para a gente.
Márcia, que não passa por esse tipo de dificuldade, acha às vezes que nem existe, m a s a
convivência com as mães proporcionada pela tarefa lhe ensinou a lição de que é preciso
reconhecer que os problemas acontecem, e muito, e de que é preciso fazer o que se pode para
diminuir um pouco o sofrimento delas. Diante dessa provocação, Márcia também colhe a lição da
gratidão: aprende a agradecer a família que tem, aprende a agradecer ter nascido espírita e saber da
Doutrina Espírita. Gratidão pelo fato de ter uma base familiar e religiosa que lhe dá umaforça
em tudo que ela faz.
Compreendemos que, para Márcia, a experiência de trabalhar voluntariamente é
ocasião de abertura para o relacionamento com o outro em toda a sua dramaticidade, isto é,
nas dificuldades que ele enfrenta em sua vida e na possibilidade concreta de se posicionar
pessoalmente ajudando-o a enfrentar e diminuir seus problemas. Além disso, ao se dar conta
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dessa realidade, Márcia agradece por aquilo que recebeu, seja no âmbito familiar, seja no
âmbito religioso, e que lhe dá sustentação e lhe impulsiona em tudo que ela faz, inclusive em
sua ação voluntária.
Além disso, nas palavras de Márcia, as tarefeiras "estão aqui aprendendo", ou seja, ela
destaca a função de aprendizado que a tarefa do Banho Infantil possui:
Inclusive, tem uma tarefeira que está de licença, a Joana. Ela chegou aqui e falou
assim: "gente, eu vim para cá para aprender a ser mãe. E eu já estou tentando ter
um filho há uns três anos e não consigo. Então eu vim porque eu quero aprender
como é que se cuida de uma criança, como se dá banho. Porque quando o meu
vier...". Elaficou aqui com a gente trabalhando e um tempo depois estava grávida.
A nossa mentora é a Mirian. Então a Mirian deu a... "é agora! Está na hora, elajá
aprendeu." Agora ela está de licença e veio aqui esse mês para mostrar a barriga
dela para gente. Então assim, é uma tarefa que eu acho abençoada.
O aprendizado como fator constitutivo da tarefa é tão explícito para Márcia que ela faz
questão de apresentar o exemplo de uma pessoa que procurou o Banho Infantil justamente
para aprender a ser mãe, aprender como é que se cuida de uma criança, como se dá banho. Neste
exemplo, a mulher que há três anos tentava ter um filho, ao trabalhar no Banho Infantil, um
tempo depois ficou grávida e, já de licença, retornou para compartilhar o fato com as demais
tarefeiras. Ao relatar-nos esse caso, Márcia afirma que o trabalho voluntário, além do
aprendizado, proporciona também outros ganhos, pois a gravidez da tarefeira é descrita
como uma benção e sua convivência com as demais, que começou com um interesse
específico, transformou-se em amizade: mesmo tendo interrompido suas atividades, ela foi
ao encontro das outras tarefeiras para mostrar a barriga.
Em sua elaboração sobre a gravidez aparentemente improvável, mais uma vez vemos
como, para Márcia, a atuação dos Espíritos incide sobre a ação voluntária. Anteriormente,
compreendemos como ela descreve a ação como um canal para a atuação da Espiritualidade,
bem como se descobre amparada ao agir voluntariamente em benefício daqueles que
precisam. E, neste trecho, ao definir a gravidez como uma bênção recebida a partir da
intervenção da mentora Mirian, Márcia novamente ressalta como, em sua experiência, a ação
voluntária não se separa da intervenção providencial dessas presenças. Intervenção que,
para ela, não prescinde do posicionamento daquele que será beneficiado: a tarefeira precisou
aprender para que chegasse a sua hora, ou seja, precisou se empenhar para merecer aquilo
que tanto almejava.
3.4. Shirley
Quinta-feira. São quase oito horas da noite. As pessoas chegam à Casa Espírita para a
reunião pública. Enquanto algumas ficam no primeiro andar para serem atendidas, para
irem à livraria ou à biblioteca, a grande maioria sobe para o segundo andar, acomodando-se
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nas cadeiras do salão onde acontecerá a reunião, que está prestes a começar. No terceiro
andar, onde se localiza o departamento de Evangelização, o cenário é dominado pelas
crianças: enquanto algumas, tímidas, ficam encostadas na parede, outras conversam
animadamente sentadas sobre uma mesa, e outras, subvertendo a ordem, ainda correm pelos
corredores onde se localizam as salas de evangelização, sendo rapidamente repreendidas
pelos pais e pelos evangelizadores que se encontram por perto. Muitos dizem que se trata de
um verdadeiro "colégio" devido tanto à quantidade de crianças quanto à disciplina, à
responsabilidade e ao trabalho que são exigidos. Adentrando a sala da coordenação,
encontramos evangelizadores conversando descontraidamente sobre a vida cotidiana e, logo
depois, reunindo-se em volta de uma mesa para a realização de "leitura edificante" e da
prece do dia, antes de irem para as suas respectivas salas de evangelização.
É nesse ambiente que somos recebidos pela dirigente geral da Evangelização Infantil,
Shirley, que nos convida para sentar à mesa de reuniões. Formada em pedagogia, trabalhou
durante vinte e um anos como professora e hoje, aos 46 anos, não exerce a profissão. É a ela
que as pessoas se referem quando o assunto é evangelização. Observando a dinâmica de
funcionamento desse departamento, percebemos como Shirley destaca-se como referência
não só pelo cargo de direção que ocupa e pelo fato de ser filha de um casal que atuou na Casa
Espírita desde a sua fundação. É visível o quanto Shirley é querida pelos evangelizadores,
que a ela recorrem para sanar dúvidas concretas, para compartilhar preocupações,
conquistas e alegrias, seja a respeito do cotidiano da tarefa, seja com relação outros
acontecimentos da vida. A disposição, a alegria e a seriedade com que Shirley conduz o
trabalho contagia e dita o tom da conversa nesta sala de reuniões.
Ao ser questionada sobre a função da evangelização para as crianças, Shirley diz:
Uai... é divulgar mesmo os ensinamentos de Jesus à luz da Doutrina Espírita às
crianças que aqui vêm! Ensinar para elas desde pequenininhas os ensinamentos de
Jesus, para que elas possam, ao longo da vida, da sua caminhada evolutiva, focar a
sua vida nesses ensinamentos. Então a gente lança essas sementes.
Diante da pergunta pelo objetivo, a resposta emerge como pura evidência: uai. É tão
óbvio para Shirley, está tão perto, que ela se surpreende ao explicitá-lo, uai. O motivo é
simples no sentido de ser transparente, evidente, é divulgar mesmo. Entendemos que não é
divulgar qualquer coisa de qualquer jeito: é divulgar ensinamentos de Jesus a partir das luzes
lançadas pela Doutrina Espírita, ou seja, é apresentar às crianças conhecimentos iluminados
por parâmetros precisos. É isso, simplesmente, ensinar. Para Shirley, este é um ensino que, ao
mesmo tempo em que se propõe a focar, lança; ao mesmo tempo em que é para crianças,
pequenininhas, é para o decorrer da vida, da caminhada evolutiva. Nesse sentido, sua ação
voluntária consiste em propor um modo educativo de responder à vida a partir de certos
ensinamentos. Um modo focado, mas não fechado, pois a aposta é que estes ensinamentos
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repassados sejam sementes lançadas no presente com consciência de sua possível fecundidade
futura, ao longo da caminhada da vida.
Ao aprofundar os modos como se empenha nessa tarefa, Shirley recorre a elementos de
sua própria história como professora para justificar o porquê desta tarefa, concluindo que,
embora tenha parado de dar aulas profissionalmente, continuou com a evangelização porque
"é a missão da gente mesmo!". O que isso significa?
Porque teve épocas que tive vontade de sair da tarefa de evangelizar, e eu falava
assim "eu já dava aula, mexia com meninos e ainda tinha de noite [voz de
preguica]... e tinha queficar e tal". Passou pela minha cabeça essa questão, sabe?
E quando eu pedi uma orientação para o mentor da Casa Espírita, ele falou: "não,
essa tarefa é missionária." Então assim, quando foi colocado dessa forma, aí que eu
realmente senti que era uma oportunidade única que estavam me dando e que eu
precisava persistir nela.
Estamos perplexos... Por que Shirley reconhece como missão a adesão a uma tarefa
que vai contra a sua vontade? Que missão é essa que, proposta (outros diriam, "imposta")
por um outro, é vivida como oportunidade única? Esta persistência na missão não seria, no
fundo, alienação?
Vejamos como Shirley se debruça sobre o acontecimento relatado anteriormente:
"Quando ele falou isso [que a tarefa é missionária], eufalei "nossa! Eu não posso sair né? É uma
responsabilidade muito grande! Eu que assumi isso daqui perante a Espiritualidade." Então agora eu
tenho que abraçar."
Não foi o desejo de querer fazer uma coisa diferente ou o estado de preguiça que
orientou a decisão de Shirley. É verdade que passou pela sua cabeça, mas esse não foi o fator
preponderante na sua resolução por continuar ou não naquele caminho. O fato de o caráter
missionário da tarefa de evangelização ser apontado por um outro não elimina o
posicionamento pessoal de Shirley. Pelo contrário, exalta-o. Foi diante da proposta do
mentor de considerar a tarefa enquanto missão que Shirley sentiu realmente a provocação que
estava contida ali, retomando a grandeza da oportunidade e da responsabilidade dessa ação
voluntária. Além disso, na resposta ao anúncio recebido, Shirley afirma compreender que foi
ela mesma quem assumiu isso perante a Espiritualidade: diante da proposta do outro,
apresenta-se como resposta à consciência do eu. O chamado é assim reconhecido como dever
que a convoca a persistir na tarefa, a continuar abraçando-a.
Ao tomar a tarefa de Evangelização enquanto missão, Shirley indica-nos que essa ação
voluntária é vivida como oportunidade concreta de realização do sentido da sua vida. Tratase de uma experiência em que, a partir de algo que é dado, apontado por um outro, emerge
um posicionamento pessoal de seguir as indicações recebidas, um posicionamento que não é
alienado porque se vincula ao reconhecimento desse dado como correspondente a si mesmo.
Daí a responsabilidade que essa ação carrega para Shirley e o reconhecimento de dever
realizá-la no mundo, realizando-se como pessoa nesse ato.
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É nesse sentido que a Espiritualidade, para Shirley, é companhia que a ajuda a tomar nas
mãos o próprio percurso. O modo como ela adere ao chamado da Espiritualidade evidencianos a importância e a incidência que esse relacionamento tem em sua vida.
Essa compreensão continua a nos interrogar: qual a natureza desse relacionamento?
Que modo é esse de responder ao chamado da Espiritualidade? Quais os desdobramentos
dessa resposta em sua vida? Iniciemos do primeiro questionamento:
A Espiritualidadefica mais próxima da gente. (...) Eu não tenho vergonha de pedir,
não tenho vergonha de implorar tem hora, você entendeu ? Porque acaba tendo tanta
intimidade que a gente não tem nem vergonha mais de ficar escondendo. Por que
esconder? Esconder o quê?
Trata-se de um relacionamento pessoal, de tanta intimidade, que permite a Shirley se
mostrar por inteiro: não existe vergonha de pedir, de implorar. A Espiritualidade é, portanto,
reconhecida como companhia que acolhe tanto o que é pedido, implorado, quanto a própria
fragilidade de quem solicita ajuda. Por isso não há sentido em ficar escondendo.
Compreendemos que a elaboração sobre a ação voluntária de Shirley não pode ser
dissociada de sua experiência religiosa. Fazer a tarefa, para ela, é ocasião de proximidade
com a Espiritualidade, reconhecida como presença que transcende o plano material (e que
não deixa de ser uma companhia na experiência) que prepara, intui e ampara, convocando-a
a persistir no trabalho anunciado e reconhecido como missão. Nesse sentido, apreendemos
como a ação voluntária é vivida por Shirley como experiência que possibilita a conexão com
o transcendente e que se configura como abertura, abraçando a totalidade da sua existência.
Diante da oportunidade concedida, Shirley é provocada a se mover, levando-nos à
questão do modo como ela responde ao que lhe é proposto no relacionamento com a
Espiritualidade. Acompanhemos sua elaboração:
Quando você descobre que você está com alguma coisa, quando você descobre que
uma pessoa que você ama, que você gosta, está com uma coisa grave, a primeira
coisa que você tem é aquele choque! Às vezes você tenta entrar no desespero, e
quando você vê, começa acontecer alguma coisa que te acalma, te aserena [sic]. (...)
Eu tefalo assim, a sintonia com a Espiritualidade é tão grande que até o tempo de
sofrimento é pequeno.
Ao vivenciar situações dramáticas, a primeira reação de Shirley é o choque. Se algo
inesperado entra no horizonte de sua experiência, pode provocar desespero, mas quando você
vê, isto é, quando Shirley abre os olhos para sintonizar-se com a Espiritualidade, um
acontecimento se dá, alguma coisa a acalma, levando-a a refletir:
Se tiver que passar, vai passar com tranqüilidade, se tiver que sofrer alguma coisa,
vai sofrer com tranqüilidade. (...) O que vai diferenciar um do outro vai ser como
você vai passar, se vai ser com mais sofrimento, ou com menos sofrimento, ou com
nenhum sofrimento. Eu acho às vezes impossível, porque um pouquinho, nem que
seja um pouquinho, a gente sofre. (...) Mas é o tempo mesmo de sofrimento, é a
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importância que você dá para determinadas coisas. Então é assim, a vida vai dando
oportunidade de demonstrar "poxa, você estuda tanto, fala tanto e tal. Então vamos
pôr uma prova, vamos passar agora um pouquinho para ver se você realmente fixou
aquilo." Às vezes a gente capenga mas vai [risos]. Não desiste.
Nessa reflexão, vemos que Shirley, ao reconhecer que a duração do sofrimento
depende do posicionamento da pessoa, do modo como ela vai passar, explicita valores a
serem cuidados: o tempo mesmo de sofrimento, a importância que a pessoa dá para determinadas
coisas. Portanto, para ela, a dinâmica própria da vida convida à fixação da compreensão, à
elaboração da experiência. Sofrer, nem que seja um pouquinho; ficar capenga, às vezes. Mas o
foco da questão não é eliminar por completo o sofrimento ou nunca mais capengar. O ponto
é que o fato de não desistir, de continuar persistindo, é que faz a pessoa ir, caminhar.
O caminhar da gente é assim, é altos e baixos. Ninguém está aqui só para colher os
louros. Está todo mundo aqui para passar por uns pedacinhos. Mas tudo é
passageiro. Você tem que ter muita paciência, prudência, e ter a certeza de que a
nossa caminhada aqui é evolutiva. A evolução não dá saltos. Tudo é no seu tempo.
Do seu caminhar, isto é, da elaboração sobre seu modo de responder ao amparo
concedido pela Espiritualidade, Shirley passa a discorrer sobre o caminhar da gente, de todas
as pessoas. Retomando a sua história, ela colhe a certeza de que a nossa caminhada aqui é
evolutiva porque é capaz de apreender para quê todo mundo está aqui e que tudo é passageiro,
no sentido de que as pessoas passam pelas coisas e de que as coisas mesmas passam. Isso
significa que, partindo da sua experiência circunscrita de responder às oportunidades que
lhe são dadas pela Espiritualidade, ela amplia horizontes de compreensão sobre o que é a
vida, uma evolução que não dá saltos, e sobre como todos precisam se posicionar diante dela,
com muita paciência e prudência.
Retomemos agora o percurso que nos permite apreender o modo como Shirley se
posiciona ante a proposta da Espiritualidade, ante a tarefa de Evangelização e, por que não,
ante a própria vida. Vimos que ela reconhece na Espiritualidade uma companhia segura,
para a qual ela se mostra por inteiro e não tem vergonha de pedir, vivendo assim uma
experiência de intimidade e de compartilhamento da vida. Com a certeza desse
relacionamento, ela pode vivenciar situações dramáticas em que suas reações frágeis são
acompanhadas pela possibilidade de reconhecer intervenções que a tranqüilizam. Só então
ela é capaz de ir além do desespero e de pedir à Espiritualidade que lhe dê a possibilidade de
se posicionar naquela situação de sofrimento em prol de uma renovação da vida. E, ao se
empenhar para aproveitar essas oportunidades, Shirley reflete e toma nas mãos suas
experiências, apreendendo critérios de orientação que ampliam sua compreensão da vida.
Trata-se de uma compreensão que mobiliza responsabilidade com o próprio processo de
crescimento pessoal, que a realiza enquanto pessoa e que desperta gratidão:
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Aqui, eu só tenho alegrias, só tenho que agradecer mesmo as bênçãos de Deus por
ter me dado essa chance, essa oportunidade de trabalhar. Agradeço sempre a
Espiritualidade, (...) por terem confiado no meu trabalho, na minha postura aqui
dentro. É um trabalho que eu levo com muita seriedade. Isso aqui eufaço como meu
trabalho, onde eu não tenho o salário em espécie, mas a gente sabe dos bônus!
Então, para mim, trabalhar neste departamento aqui, meu filho, é uma benção. Eu
me considero uma pessoa privilegiada pela Casa ter me concedido essa oportunidade
de trabalho, porque a grandeza desse departamento aqui é uma coisa imensurável.
Não tem como medir o trabalho que é desenvolvido aqui com essas crianças. Porque
eu sempre penso assim: "poxa vida, eu estou tendo a oportunidade de trabalhar
num departamento onde a gente está trabalhando a nova geração com valores, com
posturas, com exemplos do Cristo." Então assim, para mim, foi uma dádiva divina
ter sido me dada essa oportunidade de estar aqui servindo essa Casa nesse
departamento.
Admirando-se com a grandeza do departamento de Evangelização, reconhecendo a
oportunidade que lhe foi concedida de participar e de crescer interiormente nesta tarefa e
conscientizando-se da confiança que lhe foi depositada e dos bônus recebidos, Shirley só tem
a agradecer mesmo às bênçãos de Deus e à Espiritualidade. Doando-se na tarefa, ela se percebe
como beneficiada e é grata por isso. A oportunidade de trabalhar voluntariamente na
Evangelização é vivida por Shirley como uma dádiva que lhe foi dada por alguém, e por isso
a gratidão por quem permitiu e possibilitou que isso acontecesse, e a realização de si, cheia
de alegria, por poder agradecer e desfrutar desta benção recebida.
4. Discussão dos resultados: a ação voluntária como abertura ao relacionamento com
presenças transcendentes3
Os relacionamentos se mostram centrais na experiência de voluntariado dos sujeitos
que encontramos e, dentre esses relacionamentos, um se destaca como especial. Olívia,
Telma, Márcia e Shirley, todas elas reconhecem que são acompanhadas e sustentadas pela
Espiritualidade, isto é, por presenças transcendentes que atuam de modo providencial sobre
a realidade. Atribuindo tais intervenções a entidades individualizadas e benfeitoras, os
sujeitos buscam constituir relacionamentos pessoais com essas entidades percebidas como
companhias. Nos depoimentos, eles fazem referência a Deus, a Jesus e à Espiritualidade,
sendo esta última a interlocutora mais constante.
Apreendemos nesse movimento a configuração de relacionamentos de fé, nos quais os
sujeitos constroem o diálogo por meio da oração e do pedido e reconhecem mudanças no
curso dos acontecimentos como respostas que lhes são dadas. Respostas que podem não
atender exatamente ao que foi solicitado, mas sempre se constituem como intervenção
benéfica, que a pessoa reconhece como correspondente por orientar-se em favor do critério
que fundamenta o pedido. E, tendo a certeza de serem beneficiados pelas presenças
3
Termo cunhado para designar o reconhecimento, na experiência, de entidade(s) que transcende(m) o plano
material, mas que não deixa(m) de ser vivida como presença, companhia, numa relação de proximidade.
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transcendentes que operam transformando o mundo, os sujeitos também se vêem solicitados
a agir, a dar a sua resposta como contribuição à obra dos benfeitores.
Comprometendo-se com essa obra que os ultrapassa por meio de sua ação voluntária,
os sujeitos apreendem que os resultados de sua ação são potencializados pela intervenção
superior e reconhecem que conseguem persistir na tarefa porque são fortalecidos. Sentindose gratos pelas oportunidades que lhes são dadas, eles se realizam nesse processo por se
perceberem amparados e por vislumbrarem que estão progredindo no caminho que mais
corresponde a eles mesmos e ao ideal que carregam.
Vimos a partir das elaborações de Giussani (2009) tanto a importância do senso
religioso como dimensão humana que fundamenta a estrutura da experiência religiosa,
quanto a importância de apreender a expressão do eu em ação.
A explicitação desse dinamismo permite-nos afirmar com maior segurança como a
experiência religiosa articula-se à ação voluntária no contexto sociocultural da Casa Espírita.
Compreendemos que a experiência religiosa é vivida intensamente pelos sujeitos, chegando
a ordenar sua apreensão da realidade e a fundamentar e direcionar sua ação voluntária. A
percepção do caráter providencial da realidade os realiza como pessoa, mobilizando-os a
buscar contribuir, com a totalidade da sua pessoa, para a concretização de um bem que
supera seus interesses imediatos. E esse bem que os ultrapassa também os abraça: eles se
sentem pertencentes a um horizonte totalizante, um horizonte cuja amplitude lhes permite
dar a sua contribuição sem se prenderem aos resultados concretos do seu gesto. Um
horizonte, portanto, que os convida a ampliar o olhar sobre a ação e sobre o que ela indica,
convida-os a se perguntarem sobre o sentido da realidade e sobre o modo como têm se
orientado nela.
Em síntese, a compreensão de como Olívia, Telma, Márcia e Shirley elaboram sua
experiência permite-nos afirmar como, no contexto sociocultural da Casa Espírita, a interrelação entre voluntariado e religiosidade constitui-se por duas vias: (1) a ação voluntária é
vivida como abertura para a experiência religiosa, pois, doando-se ao outro em gestos
concretos, os sujeitos reconhecem que sua ação é sustentada por presenças transcendentes e
direcionada à afirmação de um horizonte absoluto; (2) a vivência da religiosidade ordena o
modo da pessoa compreender a realidade, fundamentando e direcionando sua ação,
reconhecida como dever e como correspondente a si.
5. Conclusão
Essa pesquisa nasceu da provocação de experiências que nos solicitaram a adentrar o
universo do voluntariado em sua relação com a experiência religiosa. Assim impactados e
mobilizados com os resultados apreendidos, nos perguntamos: o que colhemos de essencial
dessa experiência?
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Identificamos evidências de como a religiosidade aparece concretamente no modo
como os sujeitos trabalham voluntariamente. Não de modo setorizado, pois reconhecemos o
movimento de pessoas que, doando de si ao outro, expressam-se inteiramente. Doação
vivida como realização correspondente ao centro da pessoa, doação capaz de contemplar
horizontes mais amplos do que a concretude do gesto mesmo. Portanto, essa ação voluntária
sustenta e é sustentada por uma obra da qual cada um participa de modo próprio. Obra que
é maior também porque se abre para a experiência religiosa, situando-a num horizonte de
totalidade. Nesse sentido, o gesto voluntário de cada sujeito é concretização do
relacionamento com a transcendência, em que a doação de si ao outro é doação de si a um
Outro. Além disso, trata-se de um gesto que, abrindo-se para tudo aquilo que o mobiliza, é
vivido como profundamente realizador da pessoa. Tal realização mostrou-se então como
fator estruturante da inter-relação profunda entre experiência religiosa e voluntariado.
Portanto, ficamos, por um lado, com a certeza quanto à potência da experiência
religiosa de impulsionar à ação, de estruturar o modo como o gesto é realizado e o modo
como a pessoa se realiza nesse gesto; e por outro, com a capacidade da ação voluntária de
abrir horizontes de compreensão, realização e de vivência profunda da própria religiosidade.
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Notas sobre os autores
Yuri Elias Gaspar é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. E-mail: [email protected]
Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor associado do Departamento de
Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Suas pesquisas referem-se às áreas de memória, cultura e
subjetividade. E-mail: [email protected]
Data de recebimento: 13/06/2012
Data de aceite: 06/09/2012
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Rotta, R. R.. & Bairrão, J. F. M. H. (2012). Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas.
Memorandum,
23,
120-132.
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em
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de
______________,
______,
de
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Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas
Meanings and psychological scope of caboclos in umbandist experiences
Raquel Redondo Rotta
José Francisco Miguel Henriques Bairrão
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
Os caboclos são entidades espirituais largamente encontradas no panteão umbandista. O
objetivo deste estudo foi revelar, no recurso ritual a caboclos na umbanda, os seus
sentidos e alcance psicológicos. Para tanto foi realizada uma escuta participante, atenção
flutuante aos significantes que se repetiram, para ouvir em profundidade a enunciação na
rede de interlocução em questão. Entre esses significantes, repetiram-se alguns termos
como terra, luz, água, raiz, amadurecimento, liberdade e ideal, que podem assumir mais
de um nível de significância, por meio de uma 'escrita por imagens'. Percebeu-se que as
pessoas em contato com os caboclos estão diante de uma elaboração de suas raízes (pais,
ancestrais) que, bem cuidadas e iluminadas (conhecidas e elaboradas), em terra fértil,
resultam em plantas (pessoas) fortes e bonitas, que desenvolvem seu potencial,
amadurecem. E este amadurecimento inclui o desprendimento em relação às figuras
paternas ou autoridades, o que remete à liberdade.
Palavras-chave: etnopsicologia; umbanda; alteridade; caboclos
Abstract
Caboclos are spiritual entities frequently found in umbandist pantheon. The aim of this
study was to reveal their psychological senses and range in the ritual resource for
caboclos in Umbanda. To this end, a participative listening was carried out through a
floating attention to recurrent significants, in order to deeply listen to the enunciation in
the focused inter-location net. Among those significants some terms were repeated as
earth, light, water, root, matureness, freedom, and ideal, which may assume more than
one level of significance, by means of 'writing by images'. It was shown that people in
contact with caboclos are faced to an elaboration of their roots (parents, ancestors) that,
when well-cared and enlightened (known and elaborated) in fertile soil, produce strong
and beautiful plants (people), who develop their potential and get maturate. And this
matureness includes being released in relation to the figures of parents or authorities;
what leads to freedom.
Keywords: ethnopsychology; Umbanda; alterity; caboclos
Introdução
A umbanda é considerada uma religião afro-brasileira1, cuja prática raramente está
atrelada a um controle rígido ou unificação severa dos rituais, o que abre espaço para transes
diversificados (Maggie, 2001). De acordo com Concone (2004), a variedade de personagens
presentes na sua mitologia e cerimoniais concede-lhe uma gama de possibilidades infinitas,
Apoio FAPESP.
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Rotta, R. R.. & Bairrão, J. F. M. H. (2012). Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas.
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porém com margens definidas por alguns tipos espirituais comuns, especialmente caboclos e
pretos velhos. A autora defendeu que personagens espirituais como exus, caboclos, pretos
velhos, baianos e boiadeiros, entre outros, têm como base as figuras sociais típicas da
realidade brasileira. Caboclos (representação dos índios brasileiros) e pretos velhos
(divindades relacionadas aos escravos), para ela, corresponderiam a uma dimensão mítica da
sociedade, pois são mitos e símbolos fundantes da brasilidade (Concone, 1973).
Dessa forma, o alcance dos estudos a respeito dessa religião não se restringe ao seu
caráter religioso. Brumana e Martínez (1991) afirmaram que a umbanda pode ser
considerada "um código para a interpretação e para a ação que permeia a sociedade brasileira e
cujas marcas se manifestam em diversos registros" (p. 30, grifos do autor). O contexto
umbandista comporta uma grande riqueza discursiva e ritual que inclui tradições culturais
expressas por músicas, danças, fatos, narrativas etc. E a partir desses materiais simbólicos,
"patrimônio comum da nacionalidade", são elaborados conflitos (psíquicos) de uma grande
parte de sujeitos brasileiros em contato com esse imaginário (Bairrão, 1999, pag. 26). O
mesmo autor defendeu que a umbanda proporciona a circulação de significantes que não se
reduzem a elementos verbais e escapam ao domínio do ego individual, estabelecendo laços
entre pessoas, atingindo cada participante de maneira singular e não restrita à consciência,
delineando identidades. Tais significantes são veiculados socialmente, em rituais religiosos e
fora deles, na convivência diária entre pessoas pertencentes a esse universo.
Neste trabalho, estão em foco os inegáveis efeito e alcance do contexto simbólico
umbandista na vida psíquica dos seus adeptos, tanto do ponto de vista subjetivo (pessoal)
quanto na esfera social, sem de forma alguma pretender reduzir o religioso ao psicológico. É
nesta perspectiva, até o momento pouco explorada, que se insere a proposta deste artigo:
desvelar sentidos e o alcance psicológicos de caboclos espirituais na umbanda.
Caboclas e caboclos
Caboclas e caboclos são conhecidos não só na umbanda. Entre as figuras sagradas
presentes nas várias religiões afro-brasileiras, eles formam uma linha de entidades
espirituais bastante recorrente. Seus fiéis relacionam-se com os espíritos caboclos durante os
rituais e fora deles, na suas vidas cotidianas. Pode-se dizer que suas manifestações
satisfazem anseios e dão sentidos a vivências dos praticantes contemporâneos desses cultos,
pois possuem significativo espaço e força entre seus adeptos.
Esta linha de entidades também é bastante conhecida na comunidade acadêmica. Os
espíritos caboclos foram estudados por diversos autores, que os associam a uma imagem do
indígena brasileiro. Carneiro (1964) afirmou que em rituais onde eles aparecem, podem-se
observar acessórios como penas, cocares, tacapes, arcos e flechas, além de um linguajar que
traz alguns termos supostamente do tupi-guarani. De acordo com Santos (1995), os caboclos
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podem ser vistos como "molde de uma representação que dá conta do índio como legítimo
'dono da terra'" (p. 12). Negrão (1996) defendeu que, para os fiéis das religiões afrobrasileiras, caboclo é índio na condição de espíritos de luz após sua morte. Seriam espíritos
dos antepassados indígenas brasileiros (Ortiz, 1980). Silva (1994) afirmou que eles são os
representantes dos índios que viviam no Brasil antes da chegada de brancos e negros. Boyer
(1993) descreveu esta categoria no Norte do país (Belém do Pará), porém sem adentrar uma
análise do seu significado psicológico.
Apesar de estes espíritos serem cultuados em diversas partes do país, em várias
religiões de influência africana, restringe-se este estudo, por questão de recorte
metodológico, ao contexto umbandista no interior paulista, rico em material simbólico que
"concretiza-se em tradições vivas, psiquicamente intervenientes em dinâmicas pessoais e
sociais" (Bairrão, 2003, p. 285). E, apesar de existirem muitos estudos sobre o assunto,
apresenta-se aqui uma pesquisa com enfoque etnopsicológico, que objetiva revelar os
sentidos e alcance psicológicos do recurso ritual a caboclos na umbanda.
Metodologia
Esta pesquisa foi desenvolvida em terreiros de umbanda (seis, do interior de São
Paulo) em que, regularmente, manifestam-se caboclos. Em média, os terreiros foram
frequentados quinzenalmente no período de dois anos. O trabalho de campo abrangeu
convivência com os frequentadores, conversas informais com os médiuns, pais e mães de
santo e consulentes, com registros em diário de campo e gravações em áudio e vídeo. Com
base nesse convívio com os terreiros colaboradores, foi realizado um levantamento dos
dados etnográficos a eles referentes, com informações no que concerne ao espaço físico, à
organização do culto, a seus frequentadores, a imagens e entidades mais ou menos cultuadas
e a detalhes que se fizeram importantes em cada caso.
Foram realizadas e registradas entrevistas livres com onze médiuns que incorporam
esta linha de entidades, além de entrevistas com eles incorporados. Os dizeres dos chefes de
terreiros e de seus filhos sobre a linha dos caboclos também foram considerados, com o
objetivo de se obter explicações por meio da linguagem e do saber do outro.
Realizou-se uma escuta participante, atenção flutuante aos significantes que se
repetiram nesse contexto, para ouvir em profundidade a enunciação na rede de interlocução
em questão (Bairrão, 2005). Deu-se ouvido ao que os médiuns dizem dos seus caboclos e ao
que eles próprios dizem de si e de seus médiuns, por meio de sonhos, transe de possessão,
intuições ou outros meios reconhecidos pelos umbandistas como comunicações autênticas.
As entrevistas, passes e conversas com os médiuns em transe (incorporados pelas
entidades caboclas, especialmente), foram 'ouvidos' considerando-os como alteridade
veiculadora de significantes, que colocam em circulação conteúdos inconscientes, deslocando
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significados entre sujeitos e comunidades. Cabe ressaltar que, ao entender as entidades
caboclas como alteridade veiculadora de significantes, não se nega seu estatuto de sagrado
tal como os religiosos as consideram, nem se pressupõe a existência metafísica de entidades
espirituais. Houve a suspensão do juízo de realidade em relação ao fenômeno, para que sua
manifestação e consequências nas vivências dos umbandistas possam ser entendidas.
Neste estudo, mostrou-se mais adequado, ao invés de um modelo mais tradicional de
pesquisa de campo, adotar a concepção de campo-tema proposta por Spink (2003), em que
campo se refere à processualidade de um tema determinado. Para ele, não há um campo
independente ou um lugar físico específico, o do pesquisado, onde o pesquisador entra para
observar e coletar os dados e sai com eles registrados, para serem analisados no laboratório,
ou na biblioteca, ou em outro ambiente do pesquisador. De acordo com Spink (2003), o campo
é "um processo contínuo e multi-temático no qual as pessoas e os eventos entram e saem dos
lugares" (p. 23). Nesse sentido, pode ser considerado o argumento no qual o pesquisador se
insere, que acontece em muitos lugares. Os terreiros de umbanda, onde os colaboradores se
reúnem para realizar os rituais coletivos e mais estruturados, assim como as entrevistas
propriamente ditas, não configuraram a totalidade do que o autor chama de territorialidade
do campo-tema. Esta incluiu as casas dos médiuns, cozinhas dos terreiros, reflexões e
comentários sobre o assunto em momentos inesperados, conversas em locais públicos etc.
Resultados e discussões
1. Gênero: uma questão relevante?
Com o objetivo de revelar os sentidos e alcance psicológicos do recurso ritual a
caboclos na umbanda, a pesquisa teve como base inicial uma pergunta relativa à pertinência
ou não de subdividir essa categoria espiritual em masculina e feminina. Partiu-se dessa
hipótese porque é sabido que no catimbó (religião encontrada principalmente no nordeste
brasileiro, com influências africanas e indígenas e onde se manifestam essas entidades) os
espíritos de caboclas e de caboclos são tratados de forma distinta, com funções diferentes. No
interior de São Paulo, encontra-se essa distinção? E se sim, seria útil para este estudo?
Através desse ponto de partida, inicialmente as pombagiras, outra linha de entidades,
fizeram-se notar. Muitas vezes, foi necessário conversar com as colaboradoras incorporadas
por elas, antes de obter um contato maior com as caboclas e os caboclos. Outras vezes, as
médiuns falaram mais sobre essas entidades, mesmo quando as perguntas se referiam às
caboclas. Uma delas insistiu para que sua interlocutora conhecesse a sua "mulher da
esquerda". As próprias, incorporadas em suas médiuns, indicaram a importância de se
trabalhar com as pombagiras: "precisa aprender a fazer fogo para se virar na mata" (Cabocla
Ianka). 'Fogo' associa-se comumente às pombagiras, enquanto 'matas' refere-se geralmente à
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linha dos caboclos. Este fato está de acordo com a organização do culto umbandista, cujos
rituais não começam antes de se homenageá-las juntamente com os exus. Além disso, essas
entidades são comumente relacionadas à defesa das pessoas e dos rituais em curso. É preciso
se deixar conhecer por elas para que se obtenha um efetivo acesso ao universo umbandista.
Pesquisadores então devem mostrar-se, explicitar seus objetivos, o que buscam e o que
pretendem deixar ali e levar dali.
Percorrendo o caminho necessário, que passa pelas conversas com (e sobre) as
pombagiras, foi possível acessar o universo relativo aos caboclos. Inicialmente, houve uma
sutil diferenciação entre gêneros. As entidades caboclas, masculinas e femininas, ora
pareciam iguais, ora eram vistas e sentidas como diferentes. Durante a investigação dessas
possibilidades, repetiu-se o fato de se pedir para conversar com as caboclas e ser
encaminhada para um caboclo. Pesquisadora: "mas eu gostaria de conversar com uma cabo cla" .
Umbandista: "ah, é tudo a mesma coisa". Por outro lado, uma das médiuns, por exemplo, disse
saber intuitivamente que caboclas e caboclos são diferentes, apesar de o objetivo do trabalho
de cada um ser o mesmo: "Não sei explicar bem, mas sinto que elas são mais doces, mais carinhosas.
Os caboclos são mais diretos, mais 'pá-puf’". Portanto, na umbanda, da perspectiva das suas
funções rituais, não parece haver distinção entre gêneros. Já do ponto de vista da vivência
psíquica e da interação pessoal entre eles e os médiuns, a história poderá ser outra, posto
serem muito singulares e específicas as inter-relações entre as personificações de caboclos (na
forma de construtos narrativos que articulam e mobilizam elementos simbólicos
característicos que se lhes associam) e os traços de personalidade e biográficos dos seus
médiuns (Bairrão, 2003).
Nomeadamente, sentidos de beleza e emoção repetiram-se de forma significativa no
que diz respeito às caboclas2. Como exemplo, o relato de uma médium vidente que, em
prantos, definiu a Cabocla Sete Cascatas como "uma imagem assim muito delicada mesmo, bonita
de se ver". Não foram raras as ocasiões em que a pesquisadora se emocionou diante da beleza
relacionada ao contexto das caboclas. Já em relação aos caboclos, sentidos entre o peso e a
leveza se fizeram perceber. Um dos médiuns relatou que "eu sinto quase que palpável a energia
dele [caboclo], as minhas pernas pesam (...) parece que eu 'tô segurando um peso dele". O pai de
santo, cujo Caboclo Ogum da Mata é seu chefe de cabeça (sua entidade espiritual principal),
considera sua vivência religiosa como uma missão, um peso que ele deve carregar até sua
morte. "Enquanto burro [médium] puder trambucar [trabalhar] vai trambucando", disse o Caboclo
Ogum da Mata, comparando o trabalho espiritual a um fardo. Ainda, a médium do Caboclo
Flecha Dourada disse ficar muito leve quando incorporada por ele, sentindo um enorme
peso quando ele vai embora: "essa energia dele que é muito leve, muito suave, que quando eu
recobro a minha consciência, eu sinto meu corpo muito pesado."
' Para este assunto, ver Rotta e Bairrão (2010) sobre as caboclas especificamente.
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Contudo, beleza e emoção também foram encontradas entre os caboclos. Por exemplo,
o médium do Rompe Mato revela que quando fala "dele, (...) me emociono, é uma coisa muito
forte." E as caboclas também podem veicular nuances entre a leveza e o peso. A médium da
Flecha da Mata disse sentir "seu peso, sua vibração", assim como a da Caboclinha, que sente
sua presença como "uma coisa como se tivesse alguém te empurrando, um peso". É como se a
experiência de campo dialogasse com a pergunta inicial, negando em princípio uma
distinção categórica entre caboclas e caboclos, no atinente a gênero, mas ao mesmo tempo
assinalando nuances.
Da mesma forma, a princípio a beleza em forma de flores parecia mais comumente
relacionada às caboclas e ao feminino. Uma das colaboradoras disse que "elas [caboclas] nos
trazem flores (...) para tornar nossa caminhada mais cheia de coloridos", e a médium da Caboclinha
sabe da presença dela quando sente o cheiro de flores do campo. Mas elas aparecem também
relacionadas a um dos caboclos colaboradores: o Flecha Dourada trabalha com uma flor
branca nas mãos.
O significante "água" também se repetiu com frequência no cenário relacionado às
caboclas (Rotta & Bairrão, 2010). Apesar de mais rara, existe também uma ligação entre
caboclos e esse elemento. Entre os colaboradores desta pesquisa, o Caboclo Gira Mundo
confirmou a existência de caboclos das águas. E o Ogum da Mata contou que "vive na beira da
mata, na beira do rio, ã?".
Esses resultados mostraram que, apesar de certa diferenciação, a delimitação de
significantes em função de gênero não parece tão relevante. Concone (1996) defende que "A
umbanda costuma escapar das generalizações; reserva sempre uma surpresa àquele que se
aventura a enquadrá-la num modelo simplificador" (p. 9). Os resultados encontrados
corroboram essa afirmação, na medida em que evidenciaram a necessidade de manter os
"ouvidos abertos" ao que nossos interlocutores dizem, para evitar conclusões precipitadas. A
pertinência de uma análise com base no rastreamento de símbolos supostamente femininos
ou masculinos mostrou-se menos importante do que se pensou a princípio. O campo
incumbiu-se de ir desfazendo essa primeira suposição, embora essa negativa apenas se
tivesse consumado com clareza no momento da análise dos dados.
Continuemos então com os resultados, "abrindo os ouvidos" para outros sentidos. A
Cabocla Flecha da Mata contou que não pensava em casar e ter filhos, "essa nã. Essa índia essa
pensava só essafazer caça, essafazer pesca, essa cuidar da tribo". Buscava o sustento fora do lar,
como fazem tantas mulheres contemporâneas. O Caboclo Ogum da Mata não tinha como
missão correr atrás do pão de cada dia: "Oguna saía caçar também, mas as mulher caçava mais,
ã?". A Cabocla Flecha Pequena disse que todas as crianças (meninas e meninos) eram
preparadas para buscar o sustento se fosse preciso: "pequena aprenda na mata, corra, caça",
assim como a Ianka, que contou que todos eram livres para aprender, iam "se virando, porque
se faltar algo, sobrevivem." Porém, ao contrário da Flecha da Mata, a tarefa da Cabocla Ianka
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era cuidar dos filhos enquanto seu marido caçava. Se o foco fosse a divisão sexual do
trabalho, percebe-se que não se trata de uma simples inversão de papéis e sim de
composições originais. Mais uma vez, quando interpeladas a respeito de diferenças
substanciais e estáticas entre papéis masculinos e femininos, essas entidades espirituais
comunicam-se desconstruindo estereótipos de gênero. Um estudo com quatro caboclas e
suas médiuns (Bairrão, 2003) também relata essa abertura de possibilidades, desde que as
caboclas (Jupiras das Matas) "valorizam muito a vida familiar e gostam de cuidar de
crianças. Mas ao contrário de outras mulheres da sua época, eram guerreiras, acompanhando
os homens nas lides da guerra" (p. 297).
Essa mesma abertura de possibilidades aparece também na biografia dos médiuns.
Como exemplo, uma das médiuns, em sua vida cotidiana, exerce funções de liderança:
comanda uma equipe em seu trabalho, foi candidata a vereadora e dirige uma escola de
samba. Em consonância com suas características, a cabocla que a acompanha (Sete Espadas)
é guerreira e decidida. Disse ela que "fazia, esse buscador, esse ajudador, prafazer esse alimentar
todos". As duas apresentam habilidades que se distanciam do ideal de passividade ligado
tradicionalmente ao gênero feminino. Ao mesmo tempo, este espírito feminino contou que
se enfeitava para "ficar formosa, cabocla sempre gostou deficar muito formosa, bonita". Diz que vai
a guerra sem perder a 'feminilidade', ajudando sua médium a lidar com as vivências de uma
mulher que tenta conciliar o trabalho, o cuidado com os filhos e o lar (é uma mãe cuidadosa),
sem deixar de cuidar de si. Além de sua cabocla, essa mesma mulher incorpora um caboclo,
homem, chamado Flecha Dourada. Ele, quando incorporado, exala "Este, serenidade, filha."
Trabalha de forma calma e com uma flor. E comove, como as caboclas. Disse uma médium
que ao entrar em contato com ele, "chorava que nem criança". Mas também traz consigo a ideia
de liderança por ser seu nome o mesmo que o do caboclo chefe do terreiro. Dessa forma, o
panteão pessoal reflete e ilumina a complexa combinatória de aspectos do sujeito que muitas
vezes são superficialmente vistos como antagônicos ou incompatíveis. Ou seja, é a partir
dessa complexa combinatória de significantes que circulam entre humanos e espíritos que os
médiuns podem compor e vivenciar suas próprias maneiras de ser e seus conflitos.
Além das mulheres líderes, foram encontrados homens, esposos e pais emotivos, de
choro fácil, que incorporam caboclas. A característica tradicionalmente feminina de chorar
facilmente pode ser associada ao conjunto de alteridades sagradas que acompanham suas
vivências. O médium da Cabocla Sete Cascatas, ao se descrever "um cara pacato, chorão", ou
ao dizer que se emociona em contato com suas entidades, se identifica com seu panteão
pessoal, na medida em que incorpora uma cabocla de Oxum (entidade feminina ligada à
água doce), além de ser regido por esse orixá. Homem não chora? Caboclas e caboclos, ao
constituírem-se como alteridade que reflete modos diferentes de ser (feminino ou
masculino), parecem abrir possibilidades para que humanos, ao se espelharem no mundo
espiritual, elaborem suas vivências, relacionadas ao ambiente profissional, às relações
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familiares, e inclusive às características tradicionalmente ligadas a cada gênero. Há uma
reiteração do desprendimento de estereótipos, não obstante os caboclos se dizerem
masculinos ou femininos. Porém, se gênero aparece como uma questão secundária ou menos
relevante, talvez essa primeira impressão tenha sido suscitada pela preponderância de
sentidos relacionados à família e à vida social.
Frente aos resultados apresentados até agora, talvez seja útil continuar refletindo sobre
a abertura de possibilidades para diversos significados proporcionada pela relação com as
entidades espirituais caboclas, com base em uma escrita imagética, cujos significantes que
mais se repetiram são apresentados a seguir.
2. Terra luminosa e flechas certeiras
No âmbito desta enunciação plástica no contexto das entidades caboclas, alguns
elementos se fizeram notar. A "luz", em seus vários sentidos, é um deles. Como exemplo,
disse a médium da Caboclinha: "eu consegui enxergar, estava escuro, né (...) essa luz era ela
[cabocla]". Complementa: "Quando ela chega, parece que o ambiente fica mais claro, parece que a luz
aumenta." A estrela desenhada no ponto riscado3 da Cabocla Jurema serve "para iluminar a
fiarada da terra".
Outro termo recorrente foi "terra": uma das médiuns disse que sua cabocla é pé no
chão, é "da terra, mesmo". Ou a Cabocla Ianka, que ensina como identificar sua presença: "se
ouvir bater no chão com o pé, sou eu". Sua médium diz que adora andar descalça, sentindo o
chão nos seus pés. A confluência entre luz e terra se relaciona com sentidos de caminho,
caminhada (orientação). O chão, a terra é "o que te dá subsídios pra caminhar", disse uma das
médiuns. O Caboclo Rompe-Mato oferece à pesquisadora "auxiliar, essa cada passador [passo],
dos vosso caminhar".
Mesclado com a ideia de caminho a ser percorrido, evidenciou-se também, entre
caboclas e caboclos, sentidos de força, firmeza, luta pela vida e assertividade, muitas vezes
ilustrados pelas flechas, presentes nos nomes, e pelos pontos riscados e/ou discursos de
espíritos caboclos. Como exemplo, disse o Caboclo Rompe Mato que "Essa que vem essa a
frente, fia, essa que não teme o que tem a campreendê e esse enfrentá (...) essa flecha essa caboclo essa
cantinua essa rampendo essa os dificuldade que essa caboclo é imposto, essa romper". Mais uma vez,
encontramos coincidências com o estudo de Bairrão (2003), cujas caboclas se dizem
determinadas, exigentes e firmes, com toques de serenidade. "Personalidades fortes e
rigorosas, gostam do que é certo e nunca deixam de fazer algo que considerem necessário,
nem guardam para si algo que avaliem que deva ser dito, não temendo as conseqüências" (p.
296-297). São como flechas certeiras.
Desenho ritual.
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3. Aldeias e famílias ideais
A Cabocla Jurema contou que vivia em "oca grande, com muitos índios (...) todos eram pais,
todos filhos (...) tudo ali junto", veiculando sentidos relativos à vida em comunidade, assim
como as Jupiras das Matas descritas por Bairrão (2003), que fazem referências à família e à
aldeia e também às florestas e às águas. A Cabocla Sete Espadas também descreve que em
vida "fazia o que toda aldeia fazia (...) prafazer esse alimentar todos (...) Todos esses ficava junto". O
sentido de vida que flui, numa situação ideal, aparece mesclado com a ideia de vida
comunitária. Cada um tem seu lugar, dentro de uma comunidade, como explica o Caboclo
Ogum da Mata: "esse cada índio tem triba [tribo], (...) cada um tinha sua triba".
Os sentidos de aldeia e comunidade se mesclam com a ideia de uma vida harmoniosa
com os parentes mais próximos, muitas vezes em contraste com a vivência de conflitos
familiares por parte dos médiuns. A Cabocla Sete Flechas descreveu um ambiente doméstico
harmônico: "cabocla esse tinha muita alegria esse de tá esse junto com esses irmãos, esse mamãe, esse
papai". Considera-se teimosa, mas quando desobedecia, "esse paizico essa mãezica foram
entendendo esse, foi encaminhando, ã?". Percebe-se um desprendimento em relação aos seus
progenitores, que ela chamou de teimosia. Essa teimosia pode ser entendida como
determinação. E em uma família ideal, o processo de formação de uma personalidade
própria é facilmente entendido e aceito pelos mais velhos. Já entre humanos, essa etapa pode
ser mais complexa. Sua médium vê sua mãe como "uma pessoa complicada, (...) é a coisa mais
certa nesse mundo pra dar trauma, é a mãe", não tão compreensiva, ao contrário do modelo de
ideal veiculado pela sua cabocla. A relação desta com a mulher que acompanha é permeada
por afeto e entendimento, enquanto a médium diz que "não tinha carinho da minha mãe". O
médium do Caboclo Rompe Mato também reconheceu alguns problemas decorrentes de sua
criação. Diz que "às vezes eu acho que eu precisava dar um soco em alguém, na escola (...) meu pai
num gostava, então a gente também num desenvolveu", enquanto não existem falhas nos
ensinamentos de seu caboclo, que "tá na mata pra atender quem necessita de conhecedor".
Esse médium possui uma família muito unida. Os pais e irmãos, assim como
cunhados, primos e agregados, compartilham as tarefas do cotidiano de forma significativa.
Formam uma aldeia. E valorizam a união: "nós não vamos nos separar"'. Seu caboclo, em
muitos momentos, ressalta a importância da vida em comunidade. Diz ele que "essa caboclo
Rompe Mato essa trás essa afinidade esse Caboclo Guarani, esse como Sete Mata, essa Sete Foia, essa
Tupinambá, (...) essa com Sete Flecha". Cada um destes caboclos incorporam em um dos
médiuns da casa, e a união deles é tida como "(...) tão forte, fia, essa aqui é capaz essa de unir essa
espiritualidade, essa da mesma forma fia, essa que em outro casuá [casa]". Em qualquer lugar que
estejam, estes espíritos e humanos formam uma comunidade. Contudo, esta forte união
parece estar sendo posta em foco por esta família, no sentido de detectar os possíveis
problemas relacionados a uma 'superproteção', decorrente deste modo de viver. No discurso
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do médium sobre suas entidades caboclas, ele contou que "trabalhei a vida toda com meu pai, na
própria empresa, depois na do meu tio, até que eu dei um grito de liberdade que eu to cansado de
trabalhar com a família". De acordo com o médium, "a gente mudou muita coisa na nossa vida"
com a ajuda da espiritualidade. "Queimamos algumas placentas e [a gente] se desprendeu, foi
aonde a gente começou a caminhar pra frente e pra cima". Caminhar para frente e para cima como
a direção das flechas em muitas das imagens de caboclos. Continuaram juntos, porém
'desgrudados'.
Caboclas e caboclos podem estar empiricamente a serviço de uma 'reedição'
aperfeiçoada da função simbólica do pai e da família, que recria, compensa ou recupera algo
perdido ou desfavorecido nas percepções de experiências pessoais, que podem facilitar o
amadurecimento, desde que ajuda a compor a relação harmônica com a família, sem
detrimento da uma abertura para o desenvolvimento das particularidades de casa um.
Afinal, de acordo com os caboclos, todos têm sua tribo. E dentro de cada tribo, cada um tem
seu lugar.
E essa 'reedição' da ancestralidade pode ocorrer tanto no sentido imediato (com os pais
concretos) como de uma forma mais ampla, numa linhagem ou afiliação indígena mítica. O
Caboclo Rompe Mato se descreve "essa fio essa cá essa pátria". "Ele éfilho do Brasil, ele não é de
longe, daqui de onde nós tamo hoje geograficamente", explica seu cambono 4 . E a Cabocla Sete
Espadas valoriza as qualidades de onde viveu: "sabe ondefica? Aqui mesmo nessa terra, filha (...)
esse lugar, filha, esse formoso", trazendo à tona sentidos de valorização da pátria e o
pertencimento a um passado comum mítico, que culminam em um modelo de ideal, e que,
por meio da relação entre humanos e espíritos caboclos, possibilitam reelaborações referentes
a ancestralidade, edificando identidades inspiradas em ideais originais, tanto pessoais como
construídos coletivamente. De acordo com Bairrão (2003), nesse contexto,
a palavra 'aldeia' reporta-se a vivências comunitárias e a um ordenamento
das dificuldades de convivência familiar e conflitos sociais. Também é um
modo de dar lugar a uma filiação e ao retorno dignificado de ancestrais
indígenas, historicamente maltratados, que se tentaram eliminar psicológica
e simbolicamente das biografias de nacionais e da história do país. O
desrecalcamento de uma filiação mal vista, uma vez benquisto, permite
organizar, re-atar e expressar elos atuais (p. 300).
As entidades caboclas, ao 'desenharem' imagens de uma convivência tranquila com
parentes e uma vida comunitária perfeita, passando pela elaboração da ancestralidade,
expressam ideais de convivência harmônica. Ensina a Cabocla Jurema que, em sua aldeia,
não era preciso muito trabalho, como hoje em dia, pois Tupã trazia "toda la correrada", ou
seja, tudo o que era necessário. A vida flui. O Caboclo Rompe Mato ensina que cada caboclo
faz o seu trabalho: "essa num é essa imposto. Essa porque essa espiritualidade, essa cando essa
Pessoa desincorporada que auxilia a entidade espiritual a realizar seus trabalhos.
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Rotta, R. R.. & Bairrão, J. F. M. H. (2012). Sentidos e alcance psicológicos de caboclos nas vivências umbandistas.
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canvidado, essa aceitado essa trabalhador, essa faz essa fluir". Assim como a cabocla Ianka, que
sabia desde criança qual o índio que iria ser seu companheiro, num misto de destino e
escolha. Escolhe-se o que está destinado. Ainda, a médium da Cabocla Flecha da Mata disse
que acorda em paz como se tudo fosse perfeito, quando tem contato com sua cabocla durante
o sono. O Caboclo Flecha Dourada disse que trabalha para "preservar este vida, filha. E fazer
este vida florescer". Assim, o ideal parece estar relacionado a uma serenidade decorrente do
autoconhecimento e da maturidade. Essa complexa arquitetura de significantes que
perfazem as entidades espirituais aqui estudadas pode remeter a ideias de um desabrochar
da vida, com raízes (ancestralidade) bem tratadas (reelaboradas), promovendo o
amadurecimento ou desenvolvimento do potencial de pessoas e comunidades em
interlocução com os caboclos.
Considerações
A umbanda tem sido estudada pelas ciências humanas por múltiplos enfoques.
Sociólogos, historiadores e psicólogos trabalham a partir de um olhar diferente e
complementar sobre o contexto umbandista e seus desdobramentos na vida dos adeptos.
Sabe-se que nenhuma disciplina acadêmica esgota o estudo sobre tal assunto, pois o
fenômeno religioso não se reduz às descrições e análises de nenhuma área de conhecimento,
nem à soma dos resultados de todas elas. E que "o fato de provavelmente ninguém jamais ter
tido acesso à totalidade do sistema e às suas significações não implica que ele seja destituído
de coerência" (Bairrão, 2003, p. 286). Assim, os diversos focos de estudo, apesar de não
darem conta da totalidade do assunto, são úteis na elucidação de nuances dessa religião, cuja
estrutura cultural é subjacente a todos os setores das vidas dos que são permeados por ela,
possivelmente originando, fundamentando e motivando as suas manifestações existenciais.
Percebeu-se que as pessoas em contato com os caboclos se veem frente a suas raízes
(pais, ancestrais). De acordo com essa etnoteoria, pode-se dizer, a partir de uma metáfora
entre plantas e humanos, que essas raízes, bem cuidadas e iluminadas (conhecidas e
elaboradas), em terra fértil, resultam em plantas fortes e bonitas, que desenvolvem todo seu
potencial, amadurecem. E o amadurecimento, no caso dos humanos, inclui o
desprendimento em relação às figuras paternas, o que remete à liberdade.
Isso se aplica inclusive aos pesquisadores, que foram obrigados a se livrar, a partir do
movimento desenhado pelo andamento da pesquisa, de suas premissas (ou pré-conceitos
iniciais). O contato com o contexto umbandista revelou uma plasticidade em relação aos
significantes que supostamente distinguiriam o feminino do masculino e que a princípio
pareciam indicadores importantes para os caminhos que o estudo percorreria. Sentidos como
liberdade, amadurecimento e imagens de autorrealização mostraram-se mais relevantes que
a atenção à subdivisão das entidades caboclas por gênero. Assim, o trabalho, inicialmente
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permeado pela busca de traços de feminino e de masculino, permitiu que viessem à tona
outros sentidos que caboclas e caboclos inspiram, constituintes de uma base segura para a
elaboração de questões mais radicais. Mais do que ser homem ou ser mulher, está em
questão ser.
A relação com as entidades caboclas intervém na vivência dos umbandistas,
veiculando significantes que trazem à tona questões subjetivas a que poderiam não ter acesso
por outras vias. Parecem incitar à liberdade de viver e de lidar com as marcas identitárias de
cada um (ou de uma comunidade), que vão significando os sujeitos durante suas vivências e
os situam em uma posição mais ou menos confortável. Caboclas e caboclos podem espelhar
esses contrastes - eventualmente conflitos humanos - entre o ser e o dever/querer ser,
flexibilizando-os e proporcionando um caminho fértil para a elaboração de contradições
inerentes à condição humana. Ressalta-se que esses sentidos dialogam ainda com aspectos
relacionados ao amadurecimento e a imagens de autorrealização. Configuram-se como
imagens de ideais não estereotipados, desde que construídos a partir de marcas pessoais e
comunitárias entrelaçadas com o universo simbólico umbandista. No lugar de modelos de
perfeição extrínsecos ao próprio ser, são vistos como imagens personalizadas de
autorrealização, ou o produto do potencial da pessoa envolvida. A umbanda, com suas
caboclas e seus caboclos, abre assim espaço para acolher amplamente o humano em sua
complexidade.
Referências
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Nota sobre os autores
Raquel Redondo Rotta. Mestre em Psicologia pela FFCLRP-USP e pesquisadora
(doutoranda)
do
Laboratório
de
Etnopsicologia
da
mesma
instituição.
E-mail:
[email protected], [email protected]
José Francisco Miguel Henriques Bairrão. Docente e pesquisador da FFCLRP-USP e
coordenador do Laboratório
[email protected]
de
Etnopsicologia
da
mesma
instituição.
E-mail:
Data de recebimento: 18/04/2012
Data de aceite: 29/08/2012
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De la Peña e l'evangelizzazione degli indios: epicheia e matrimoni nel
Nuovo Mondo
De la Peña and the evangelization of the Indians: epikeia and marriages in the New World
Fabio Giovanni Locatelli
Università degli studi di Milano
Italia
Riassunto
Il presente lavoro analizza il significato della virtù dell'epicheia nell'Itinerario para
parrocos de indios, manuale destinato ai parroci del Nuovo Mondo redatto dal vescovo di
Quito Alonso de la Peña Montenegro. Secondo il vescovo le leggi in ambito
matrimoniale, formulate dal Concilio di Trento allo scopo di disciplinare la celebrazione
dei matrimoni, possono essere interpretate e adattate alle circostanze di vita del Nuovo
Mondo. Attraverso l'epicheia è possibile correggere il decreto Tametsi e, così, permettere
agli indios e agli abitanti delle campagne di contrarre matrimonio. I contraenti possono
godere dei diritti e dei benefici che derivano dall'integrazione legittima per via
matrimoniale alla società cristiana. La Chiesa si estende nei luoghi più distanti e,
soprattutto, compie il suo mandato universale.
Parole chiave: matrimonio; inclusione sociale; psicologia e religione
Abstrat
This work analizes the meaning of epikeia in the handbook Itinerario para parrocos de
indios written by the bishop of Quito Alonso de la Peña Montenegro. In the opinion of the
bishop marriage laws, established by Trento's Council to regulate marriages, can be
interpreted and adapted for the life of Indians. Through epikeia, it is possible to
particularly correct the decree Tametsi, and thus allow the Indian and rural people to
contract marriage. Thus, the contractors can enjoy the rights and benefits that derive from
legitimate integration by marriage into Christian society. So the Church extends in the
farthest places and, above all, it performs its universal mandate.
Keywords: marriage; social inclusion; psychology and religion
Introduzione
Alonso de la Peña Montenegro naque a Padrón (Galizia) nel 1596. Trascorse la prima
parte della sua vita in Spagna, dove si impegnò sia nella carriera ecclesiastica, sia in ambito
accademico. Si formò nella tradizione di pensiero legata alla Seconda Scolastica, che
influenzò fortemente il suo pensiero. Divenne dottore in teologia e fu rettore dell'università
di Santiago de Compostela. Nel 1654 abbandonò per sempre l'Europa e giunse a Quito per
ricoprire la carica episcopale. Governò la diocesi fino alla morte, sopraggiunta nel 16871.
Nel Nuovo Mondo non abbandonò la pratica dello studio e, così, nel 1668 comparve a
Madrid l’Itinerario para parrocos de indios. Si tratta di un'opera vasta e approfondita nella
1
Sulla figura di de la Peña si dispone della biografia redatta da Manuel Bandín (1951). Attualmente Pilar Pérez
Ordoñez (Flacso-Ecuador) sta conducendo ricerche circa il "potere pastorale" nella vita e opera di de la Peña. La
studiosa sta dedicando una parte delle ricerche al ruolo dell'epicheia come strumento di governo.
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quale de la Peña condensò sia la sua elevata cultura accademica, maturata in Europa, sia le
riflessioni nate durante la sua esperienza pastorale a Quito. Il suo obiettivo era fornire a
parroci e missionari consigli, indicazioni e riflessioni per migliorare la qualità e l'efficacia
dell'evangelizzazione. L’ Itinerario contiene molte informazioni utili per conoscere la storia
degli uomini e della società dell'America Latina del XVII secolo. Si contraddistingue per il
livello di approfondimento e la sensibilità che de la Peña impiega per analizzare - a livello
interiore (le dinamiche psicologiche) e a livello sociale - la vita quotidiana degli abitanti del
Nuovo Mondo (indios, spagnoli, neri o meticci che fossero)2.
In questo lavoro si analizzeranno le riflessioni proposte da de la Peña circa l'epicheia.
Questa virtù poteva essere applicata per correggere le norme che disciplinavano il
matrimonio (stabilite dal Concilio di Trento), per favorirne l’amministrazione. Il fine era
integrare gli indios emarginati nella società e permettere loro di accedere alla salvezza
eterna. Si cercherà inoltre di capire se l'oggetto di studio può offrire informazioni sulle
dinamiche dell'evangelizzazione cattolica attuata nell'età moderna.
I problemi e le modalità dell’amministrazione dei sacramenti all'epoca dell'espansione
europea hanno sollevato notevole interesse storiografico in Italia. In particolare è utile
segnalare due raccolte di articoli: la prima dedicata ai dubia circa sacramenta (Broggio,
Castelnau-L'estoile & Pizzorusso, 2009); la seconda dedicata all’amministrazione dei
sacramenti in Europa e nel resto del mondo in ottica comparata (Politiche, 2010). Per quanto
riguarda il matrimonio, che nell'ambito di questa letteratura è oggetto di particolare
interesse, è utile ricordare che negli ultimi anni si sono condotte ricerche negli archivi per
comprendere quali conseguenze le nuove norme matrimoniali tridentine ebbero sulla società
italiana (Seidel Menchi & Quaglioni, 2001). Per il Nuovo Mondo, Benedetta Albani (20082009) si è occupata (e continua ad occuparsi in vista di una futura pubblicazione) della
concessione di dispense da parte delle autorità romane per favorire la celebrazione dei
matrimoni nella Nuova Spagna. Se al centro di queste ricerche c'è lo studio dei rapporti tra
centro (Roma) e periferia (le realtà concrete nel resto del mondo), nell'ambito di questo
articolo si metteranno in evidenza, relativamente alle esperienze descritte da de la Peña, sia
l'impossibilità di prendere contatto con le autorità romane per richiedere le dispense a causa
2
L'Itinerario para parrocos de indios fu pubblicato per la prima volta a Madrid nel 1668 "por Joseph Fernández
Buendía". La voluminosa opera è divisa in cinque libros, ciascuno di questi è suddiviso in tratados, a loro volta
composti da secciones, che al loro interno contengono capoversi numerati. I libri, i trattati e le sezioni hanno
ciascuno un titolo che ne identifica l'argomento. Tale struttura era necessaria perché i parroci potessero accedere
agilmente all'argomento che interessava loro. Il manuale non era destinato esclusivamente alla missione presso
gli indios, ma era utile per la pastorale presso tutti gli abitanti del Nuovo Mondo (Itin., Dedicatoria; de la Peña
Montenegro, 1668/1995, p. 76). Tra le altre opere di de la Peña si segnala un gruppo di sermoni conservati
all'archivio del Banco central del Ecuador (Flores, 1997).
Per questo studio utilizzo la versione dell'Itinerario pubblicata a Madrid in due volumi tra 1995 (I e II libro e
appendici) e 1996 (III, IV e V libro). Il primo volume contiene saggi introduttivi redatti dagli stessi curatori
dell'edizione. In questo lavoro, cito Y Itinerario con l'abbreviazione "Itin." seguita dai numeri del libro, del trattato,
della sezione e del capoverso. Accanto, inserisco i dati nella forma prevista APA.
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delle enormi distanze, sia la necessità di amministrare il matrimonio indipendentemente
dall'ottenimento delle autorizzazioni da parte di Roma, attraverso l'applicazione
dell'epicheia.
É difficile individuare una definizione esaustiva di epicheia perché, a seconda delle
epoche e delle prospettive, ha assunto diverse connotazioni e significati. In questo lavoro (nel
paragrafo "De la Peña e la legge") sarà analizzata la definizione che ne dà de la Peña, il quale
sostiene che l'epicheia possa essere detta anche equità. Il dibattito plurisecolare sull'idea di
epicheia ebbe origine nel pensiero greco (D'Agostino, 1973) e, dopo aver subito una rilettura
da parte della cultura cristiana, fu vivo anche in epoca medievale (D'Agostino, 1976).
Durante il medioevo, l'epicheia fu oggetto di particolare attenzione nell'ambito del diritto
canonico. Tra XII e XVI secolo i giuristi ne rielaborarono gli antichi significati greco (epicheia),
romano (aequitas) e patristico (misericordia) (Caron, 1971). Nella prima età moderna, Francisco
Suárez diede uno dei maggiori contributi alla riflessione. Con Suárez cambiò soprattutto
l'impostazione del problema. Ciò si intende se si confronta il suo pensiero con quello di
Tommaso d'Aquino. Angel Rodrìguez Luño (1997) sostiene che se Tommaso d'Acquino (che
diede un notevole contributo alla riflessione) affrontò il problema dell'epicheia nella
prospettiva morale, all'epoca di Suárez il problema fu affrontato secondo la prospettiva
canonica-politica per "difendere la libertà del singolo nei confronti di una legislazione civile
o ecclesiastica troppo invadente" (pp. 227-236). Il pensiero di Suárez rimase per secoli il
fondamento di tutte le riflessioni sull'epicheia (Rodríguez Luño, 1998). Si può ritenere che
l'epoca postridentina e il contesto culturale della Seconda Scolastica - nei quali si inseriscisce
la vita e l’opera di de la Peña, che cita con frequenza l’opera di Suárez - costituiscano un
punto d'osservazione privilegiato sul problema dell'applicazione dell'epicheia3.
In questo articolo, in primo luogo si proporranno riflessioni sull'applicazione del
Tridentino e le relative norme matrimoniali tra Europa e Nuovo Mondo. Poi si analizzerà,
dal punto di vista teorico, l’idea di epicheia (nelTámbito della riflessione circa la legge) nel
pensiero di de la Peña. Dal punto di vista pratico, si analizzeranno tre casi di applicazione
dell'epicheia tra le parrocchie (nelle "terre di cristiani") e le "terre d'infedeli".
Note su Trento e Tametsi tra Europa e Nuovo Mondo
Per comprendere il problema dell'applicazione dell'epicheia, si ritiene utile iniziare con
alcune riflessioni sul valore del Concilio di Trento e sui problemi connessi alla sua
interpretazione. La storiografia ha messo in rilievo come, durante il Concilio, la Chiesa, per la
3
Angel Rodríguez Luño (1997), nell'introduzione del suo lavoro, spiega di volersi concentrare sull'epicheia non
solo dal punto di vista teorico, ma desidera affrontare anche il problema della sua applicazione. In particolare,
suo obiettivo è capire se è possibile amministrare la comunione ai fedeli divorziati risposati attraverso
l'applicazione dell'epicheia. Anche in anni recenti si riflette sull'applicazione dell'epicheia per la soluzione dei
casi problematici che sorgono dall'intreccio tra matrimonio, diritto canonico e morale.
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prima volta nella storia, abbia chiaramente distinto i dogmi, cioè la dottrina, dal diritto
positivo, cioè la disciplina. I dogmi non sono modificabili mentre la disciplina lo è, in quanto
concepita come una qualsiasi altra legge umana: è passibile di essere modificata in base alla
mutazione delle circostanze storiche (Prodi, 2000, pp. 271-283). La Chiesa però, attraverso la
bolla Benedictus Deus del 1564, riservò esclusivamente a sé - all'organo romano della
Congregazione Cardinalizia del Concilio - la possibilità di interpretare e modificare i decreti.
Inoltre la Chiesa, attraverso il divieto di ogni interpretazione dei decreti che non fosse quella
romana e, per evitare il pericolo di promuovere la critica, la mancata divulgazione degli atti
conciliari (cioè la cronaca delle dinamiche, dibattitti e conflitti vissuti durante l'assemblea),
impedì la nascita di una letteratura giurisprudenziale e storiografica sulle decisioni
tridentine. Così gli esecutori non poterono disporre della letteratura giurisprudenziale, che
avrebbe fornito loro gli strumenti teorici per applicare al meglio le nuove norme, "la chiave
ermeneutica necessaria per la comprensione e l'interpretazione stessa dei decreti". Le nuove
regole tridentine dovettero essere applicate in modo univoco, "soltanto in quanto
formulazioni finali e formali, astratte dal contesto che le aveva prodotte" (Prodi, 1972, pp.
195-196). I problemi non riguardavano solo l'interpretazione, ma anche l'applicazione
quotidiana dei decreti disciplinari. Le nuove regole dovettero scontrarsi con abitudini e
usanze secolari. Le società cattoliche - i laici come gli ecclesiastici - impiegarono molti
decenni prima di cambiare e adeguarsi al modello e agli stili di vita proposti dal Tridentino.
Sembra che in Europa l'istituzione parrocchiale, strumento fondamentale per l'affermazione
del cattolicesimo moderno, cominciò ad essere ben funzionante ed efficiente soltanto nel
corso del XVIII secolo (Châtellier, 1994).
Nel resto del mondo si dovettero applicare, con molte difficoltà, le norme Tridentine
che erano state pensate e redatte per una Chiesa di dimensioni mediterranee. Adriano
Prosperi (2001) sostiene che si sia verificata una "storia che non passò da Trento". Durante il
Concilio non si prese in considerazione neppur minimamente l'attività missionaria, la quale
comunque caratterizzò "il mondo della Controriforma" (pp. 143-164). Per quanto riguarda il
Nuovo Mondo, la Corona spagnola, che aveva competenze in ambito ecclesiastico in virtù
del patronato regio, non consentì che i vescovi del Nuovo Mondo partecipassero al Concilio.
Si può ritenere che anche questa esclusione abbia contribuito a determinare le difficoltà di
applicazione delle norme Tridentine. A ciò si aggiunga che nel Nuovo Mondo i contatti
umani - e quindi la possibilità di applicare correttamente le norme e svolgere regolarmente
l'attività pastorale - erano rallentati e ostacolati dall'isolamento e dalle distanze - problemi
frequentemente presenti e fortemente accentuati nell’ Itinerario.
Malgrado le difficoltà, nel Nuovo Mondo - in particolare, nel vicereame del Perù - si
ebbe una storia che, anche se "non passò", fu condizionata da Trento. Nella seconda metà del
XVI secolo, si celebrarono importanti concili (come il Terzo Concilio di Lima) per rinnovare,
secondo l'impostazione tridentina, anche la Chiesa del Nuovo Mondo. Il rinnovamento
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avvenne non solo per mezzo di assemblee, ma anche attraverso persone (laici ed ecclesiastici)
che diedero applicazione e incarnarono lo spirito Tridentino sia attraverso le loro attività, sia
con la pubblicazione di importanti opere. Si tratta di Francisco de Toledo, san Toribio de
Mogrovejo, José de Acosta e Juan de Solórzano y Pereira4, solo per citarne alcuni. Il
Tridentino, dunque, rinnovò la Chiesa non solo in Europa, ma anche nelle Indie.
Il Concilio riformò anche l'istituto matrimoniale, al quale nell'Itinerario è dedicato
molto spazio e si attribuisce grande importanza5. De la Peña specifica che anche molti casisti
della sua epoca hanno dedicato pagine a questo sacramento ("De esta materia de matrimonio
tratan todos los sumistas") e altri hanno redatto numerose ed eccellenti opere ("doctísimos y
provechosísimos tomos enteros") dedicate esclusivamente al matrimonio (Itin., III, IX,
prólogo, 7; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 232). Del resto l'esperienza matrimoniale
era, come anche oggi, una importante espressione della vita umana a livello sia psichico, sia
biologico. Era sia un'opportunità per esprimere i sentimenti e finalizzarli ad un progetto di
vita, sia uno strumento per la continuità biologica della specie umana. Nel Nuovo Mondo la
vita e le scelte matrimoniali erano minacciate dagli abusi e dalle violenze perpetrate dagli
spagnoli a danno degli indios (Bernard, 1988). Di conseguenza si riducevano sia la
popolazione (in termini quantitativi), sia le prospettive di condurre una buona vita sociale e
familiare. De la Peña, in un significativo passaggio dell'Itinerario, descrive le ingiustizie che
potevano colpire le famiglie indigene e, così, esprime implicitamente il grande valore che
attribuisce al matrimonio e alla famiglia. Afferma che gli encomenderos quando, al fine di
distribuire meglio la forza lavoro sul territorio, separavano i mariti dalle mogli e dai figli,
commettevano un crimine contro l’umanità, si dichiaravano "enemigos crueles del género
humano" (Itin., II, IX, X, 3; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 591-592)6.
A parte il significato e i problemi specifici del matrimonio nel Nuovo Mondo, si può
ritenere che la concezione generale di de la Peña sul sacramento fosse coerente con quanto
stabilito dal Concilio di Trento, che - nel "Decretum de reformatione matrimonii" (1563) definì chiaramente la dottrina e la disciplina del sacramento. Per quanto riguarda la dottrina,
i padri conciliari affermarono il carattere sacramentale del matrimonio e la validità delle sole
unioni monogamiche. Il decreto confermò la necessità che i contraenti esprimessero il loro
consenso (Zarri, 2000, pp. 234-238). Il primo capitolo della parte disciplinare della sessione
XXIV o Tametsi (è detto Tametsi perché inizia con questo termine) affermava in primo luogo
che i matrimoni clandestini (cioè celebrati unicamente mediante lo scambio dei consensi),
nonostante siano proibiti e peccaminosi, erano comunque vere unioni. Ciò significa che la
4
Per quanto riguarda Juan de Solórzano y Pereira, la sua opera fu messa all' Indice a causa delle posizioni
"regaliste". Ciò non esclude che il giurista fosse fedele all'idea di disciplinare e cristianizzare il Nuovo Mondo
secondo lo spirito Tridentino (García Hernán, 2007).
5
Le riflessioni sul matrimonio proposte da de la Peña sono state oggetto di studio nell'ambito della mia tesi di
laurea magistrale (Locatelli, 2011, pp. 149-192).
6
Il problema delle conseguenze demografiche delle dinamiche sociali nell'ambito del Nuovo Mondo è stato
approfondito da Massimo Livi Bacci (2008).
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Chiesa, seppure stabilì la necessità di rispettare determinate formalità, riconobbe
implicitamente la possibilità di contrarre matrimonio senza rispettare alla lettera il Tametsi
(Gismondi, 1952-1953; Rasi, 1953-1954). De la Peña attribuisce grande importanza al
consenso dei nubendi: afferma che i "consentimientos legítimos" di entrambi i contraenti
sono la forma e la materia del sacramento (Itin., III, IX, prólogo, 4; de la Peña Montenegro,
1668/1996, pp. 230-231).
Di seguito, il Tametsi elenca le formalità da rispettare per amministrare i matrimoni.
Per evitare la bigamia (intesa come sovrapposizione di un matrimonio a un altro contratto in
precedenza)7 il matrimonio si può celebrare solo dopo che il parroco ha fatto, durante la
messa, le pubblicazioni per tre domeniche successive. Il matrimonio deve essere celebrato
d'innanzi alla chiesa (al suo interno solo dal 1614, come stabilito dal rituale romano), alla
presenza di due o tre testimoni e da parte del parroco che deve interrogare i contraenti,
accertare il loro consenso e poi dichiarare la loro unione attraverso una determinata formula.
Le pubblicazioni possono essere ridotte od omesse, dietro licenza del vescovo, qualora si
tema che qualcuno possa maliziosamente impedire il matrimonio. Chi si unisce in forma
diversa rispetto a quella descritta è dichiarato incapace e l'unione è annullata. Tutte le
persone responsabili di aver celebrato in forma diversa (che siano il parroco, i testimoni o i
contraenti) devono essere punite dall'ordinario. È vietata la convivenza prematrimoniale. Il
celebrante può essere unicamente il proprius parochus (cioè quello del domicilio delle parti o
di una di esse) o un sacerdote autorizzato dal curato o dal vescovo. I sacerdoti che celebrano
matrimoni senza autorizzazione devono essere sospesi. Il parroco deve tenere un registro sul
quale annotare i contratti. I coniugi devono ricevere il sacramento della confessione e
dell'eucarestia prima del matrimonio o tre giorni prima della consumazione. Gli ordinari
hanno il dovere di divulgare il Tametsi con particolare intensità nel primo anno dal momento
della pubblicazione. Infine, il Tametsi conclude indicando che le norme elencate entrano in
vigore trenta giorni dopo la pubblicazione del decreto stesso in parrocchia.
Gli obiettivi del Tametsi erano definire chiaramente il vero matrimonio (rispetto a
quello protestante) e disciplinarne la celebrazione attraverso l'imposizione di una chiara
forma cerimoniale (Zarri, 2000, pp. 203-250). Il Tridentino dichiarò illegale il matrimonio
contratto unicamente mediante lo scambio dei consensi e attribuí una funzione determinante
alle formalità e ai rituali ai fini della validità del contratto (Rasi, 1941). Tra medioevo ed età
moderna la gente comune subordinava il consenso al matrimonio dei nubendi agli interessi
familiari, soprattutto quando si trattava di matrimoni tra persone appartenenti a ceti sociali
elevati. I genitori intervenivano nelle decisioni, perché il matrimonio era concepito come un
affare utile al fine di tessere alleanze familiari (Bossy, 1990, pp. 24-32). Così si usava formare
(o, meglio, contrattare) le coppie quando i futuri sposi erano ancora in tenera età. Spesso i
7
Sul fenomeno della bigamia, ritenuto "un delitto specificamente «americano» e coloniale" (Bernard-Gruzinsky,
1988, p. 191), si veda Presta (2011).
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giovani convivevano sotto lo stesso tetto per molto tempo prima che si celebrassero
solennemente le nozze. Con il Concilio di Trento si volle porre termine a questi costumi
matrimoniali in uso da secoli tra la gente comune in Europa. Da un lato si confermò
l'importanza cruciale del consenso, dall'altro il matrimonio fu trasformato da affare privato,
domestico e gestito dal paterfamilias in tempi lunghi in cerimonia pubblica, celebrata in chiesa
e guidata dal parroco attraverso un rito che immediatamente e solennemente cambiava lo
status dei contraenti (Prosperi, 1996, pp. 630-662).
Nel corso della prima età moderna il cattolicesimo si espanse a livello universale e le
novità introdotte dal Tametsi dovettero essere applicate nei diversi luoghi del mondo. Il
Tametsi, ricorda de la Peña, indicava che "no obligue hasta que en cada parroquia se
publique": sarebbe entrato in vigore trenta giorni dopo la pubblicazione nella parrocchia
(Itin., III, IX, VI, 9; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 248). La Chiesa all'epoca del
Tridentino era in fase di espansione globale. Avrebbe avuto bisogno di molto tempo per
stabilire le parrocchie nelle quali pubblicare il decreto. Il Tametsi così entrò in vigore a livello
universale nel 1908. Soltanto a partire da questa data divenne vincolante per tutti i cattolici
del mondo. Nel periodo compreso tra la chiusura dei lavori tridentini e il 1908 si registrarono
diverse situazioni (Jemolo, 1997, p. 368). In primo luogo, il Tametsi entrò in vigore solo nei
paesi nei quali fu pubblicato come in Italia, Spagna e Portogallo, non senza sollevare dubbi e
problemi (Gismondi, 1952-1953). In secondo luogo, altri paesi, per diversi motivi, non ebbero
l'occasione di pubblicarlo; quindi continuarono legittimamente per diversi secoli a non
seguire la normativa tridentina (Jemolo, 1997, p. 65). Di queste situazioni era consapevole
anche de la Peña; egli stesso indica che il Tametsi non era in vigore "en tierras de cristianos"
dove "no está recibido" come in Grecia e in Polonia (Itin., III, IX, VI, 9; de la Peña
Montenegro, 1669/1996, p. 248). In terzo luogo, il Tametsi non vincolava nemmeno le
minoranze cattoliche che vivevano in paesi dove la maggioranza era di altra fede, perché in
questi paesi il decreto non era stato pubblicato e non c'erano parroci. Le minoranze cattoliche
avevano la possibilità di contrarre matrimonio in "forma straordinaria". Questa modalità era
stata concepita dalla Congregazione del Concilio per i cattolici perseguitati d'Olanda nella
seconda metà del XVI secolo e successivamente fu estesa in altri luoghi del mondo
(Gaudemet, 1989, pp. 232-233). È lo stesso de la Pena a specificare che i cattolici prigionieri in
"tierras de infieles" (ad esempio in Algeria) oppure i mercanti cattolici che risiedevano in
paesi dove la maggioranza era di confessione diversa (come in Turchia) potevano unirsi in
matrimonio senza rispettare la forma del Tametsi. Infine esisteva il caso dei paesi che
pubblicarono il Tametsi, ma che al loro interno contenevano enclave dove non era stato
pubblicato. In questi territori, come in alcuni luoghi della Francia, dice de la Peña, i cattolici
potevano legittimamente contrarre matrimonio senza rispettare la forma del Tametsi (Itin.,
III, IX, VI, 9; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 247-248).
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La Chiesa accettò - e de la Peña conosceva bene la questione - che in alcune realtà,
speciali per motivi geografici, politici, sociali e religiosi, si celebrassero i matrimoni in forme
eterogenee rispetto a quella canonica. Nella prossima sezione si analizzerà il pensiero
giuridico di de la Peña e si cercherà di capire quali possibilità di correzione, interpretazione e
modifica della legge disponessero i missionari (cioè gli esecutori delle norme) nei vari angoli
del Nuovo Mondo.
De la Peña e la legge
Date le citazioni sul Tametsi tratte dall’ Itinerario alle quali si è fatto riferimento, si
presume che de la Peña fosse competente in ambito giuridico. L'impressione è confermata
dalle numerose e notevoli riflessioni sul diritto canonico che sono proposte nell'Itinerario8. Il
trattato "De los preceptos de la Iglesia y de la ley natural que deben guardar los indios"
(Itin., IV, I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 319-338) è specificamente dedicato ai
problemi della definizione, applicazione e interpretazione della legge. In questo trattato de la
Peña afferma, coerentemente al pensiero di Tommaso d'Aquino e della Seconda Scolastica,
che la legge è l'ordine di compiere o no una determinata azione e la sua funzione è stabilire il
bene comune. Sostiene inoltre che può essere classificata in questo modo: esiste il diritto
divino, istituito e imposto da Dio, e il diritto umano, istituito e imposto dagli uomini. Il
diritto divino si divide in diritto naturale, che è impresso nella ragione naturale, e in diritto
divino positivo, che è stato rivelato attraverso il Vangelo. Il diritto umano si divide in diritto
ecclesiastico (o canonico), che è quello posto da pontefici, concili, vescovi e altri prelati, e
diritto secolare (o civile), posto da imperatori, re e repubbliche (Itin., IV, I, prólogo, 1-2; de la
Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 319-320). Nelle diverse sezioni del trattato, dopo aver
definito e classificato la legge, esprime considerazioni circa le responsabilità degli indios.
De la Peña dedica, con grande entusiasmo ("Cuestiòn es esta que la trato aquí de buena
gana"), l'ultima sezione del trattato al problema "Si se podrá interpretar la ley en algunos
casos de manera que sea lícito a los súbditos ir contra las palabras expresas de ella"9. Gli
esecutori (parroci e missionari) nell'atto di applicare letteralmente la legge ("la observancia
de la ley") si possono accorgere che l'esecuzione è problematica od ostacola la realizzazione
del suo fine, il bene ("estorba mayor bien"). Questi effetti negativi sono dovuti al fatto che i
legislatori "ponen [la legge] universalmente" - si presume che il vescovo voglia dire che la
legge ha una forma testuale standard breve e generica. De la Peña prosegue e asserisce che il
8
Molte opinioni di de la Peña sono studiate da storici del diritto. A tal proposito è interessante segnalare il lavoro
di Francisco Cuena Boy (2006) dedicato al significato dell'epicheia (non nell'ambito del diritto canonico ma, più
generalmente, del Derecho Indiano) secondo i pareri di tre giuristi della prima età moderna, tra i quali de la Peña
occupa notevole spazio.
9
De la Peña specifica che l'epicheia si può applicare unicamente alla "ley humana escrita" e non al diritto
naturale (Itin. IV, I, V, 2; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 336).
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testo della legge non può contemplare tutti i futuri casi di applicazione. Molti casi non sono
contemplati nel testo della legge per la loro singolarità ("suceden casos singulares") e
imprevedibilità ("todos los sucesos y casos que pueden acontecer"). Il testo della legge è
dunque limitato, per cui è dannoso ostinarsi ad applicarlo in modo letterale ("fuera dañoso
atarse a las palabras de la ley") e indiscriminato in qualsiasi situazione. Una volta avvertite le
difficoltà nell'applicazione della legge, gli esecutori dovrebbero ricorrere alle autorità
romane cui compete l'interpretazione in caso di dubbio - cioè il Papa e le congregazioni
romane preposte - che sono però troppo distanti (Itin., IV, I, V; de la Peña Montenegro,
1668/1996, pp. 336-338). In un'altra sezione de la Peña ricorda che esiste anche la possibilità
di ottenere una dispensa ma, anche in questo caso, l'autorità è troppo distante (Itin., V, I, VI,
3; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 462).
De la Peña sostiene che sia possibile applicare l'epicheia per agire diversamente da
quanto indicato nel testo della legge (Itin., IV, I, V, 3-4; de la Peña Montenegro, 1668/1996,
pp. 337-338). Che cosa è l'epicheia? Nella sezione in questione non se ne trova una
definizione, che invece si trova in una sezione diversa10. De la Peña asserisce che epicheia è
un termine di origine greca sinonimo di equità. È una virtù che si trova in tutte le altre virtù e
la sua funzione è correggere o interpretare la "ley promulgada". Attraverso l'epicheia è
possibile contraddire ("yendo contra") la lettera ("al semblante que parece por defuera")
della legge, per interpretarla in sintonia con le intenzioni profonde del legislatore ("sigue
antes el pensamiento de quien la promulgó")11. L'epicheia è necessaria nelle remote regioni
del Nuovo Mondo sia a causa della distanza dal legislatore che potrebbe dare delucidazioni
("para que explique la ley"), sia perché quando il legislatore stabilisce ("en hacer") una legge
si riferisce unicamente a "lo que más ordinario acontece" e non ai casi straordinari. In alcuni
casi particolari è dunque possibile "rasgar la letra" al fine di mantenere "entero" il "sentido"
della legge. Infine de la Peña richiama alla "mucha costa de prudencia" - si potrebbe dire
l'equilibrio - necessaria a chi deve applicare l'epicheia. Da un lato, non si deve perdere il
rispetto nei confronti delle parole della legge, usandola come pare e piace ("conforme a su
antojo"). Dall'altro, le parole non devono essere osservate così rigorosamente che, per
rispetto dell'"orden del Derecho", si permetta che "den en tierra mayores intereses" (Itin., III,
IX, VI, 11-12; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 249)12. Dopo aver esposto l'idea di
10
La definizione di epicheia si trova nella sezione: "Si en las partes remotas de las Indias, donde no se hallan ni se
pueden hallar párrocos, podrá un simple sacerdote asistir al matrimonio o los proprios contrayentes casarse sin
párrocos" (Itin., III, IX, VI; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 244-249). Questa sezione sarà analizzata anche
nel paragrafo "Tra «tierras de infieles» e «tierras de cristianos»", in merito al problema dell’applicazione concreta
dell'epicheia.
11
De la Peña usa le espressioni quali l'"intencion del legislador" (Itin., III, IX, VI, 6; de la Peña Montenegro,
1668/1996, p. 246), il "pensamiento de quien la promulgó" e il "sentido de la ley" (Itin., III, IX, VI, 11-12; de la
Peña Montenegro, 1668/1996, p. 249) non per indicare lo scopo per cui è nata una legge (la ratio legis), ma per
riferirsi alla volontà del legislatore storico (Cuena Boy, 2006, pp. 21-22).
12
De la Peña specifica che l'epicheia è una virtù e quindi non può essere utilizzata in caso di dubbio, ma solo
quando, a causa delle distanze e della situazione di emergenza, non si può ricorrere al legislatore. In caso di
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epicheia di de la Peña, è ora il momento di analizzare tre sezioni dell'Itinerario nelle quali
sono descritti casi concreti di applicazione della virtù tra parrocchie e "terre di infedeli".
Vita, matrimoni e morte nelle parrocchie rurali del Nuovo Mondo
Attraverso le descrizioni e le riflessioni disseminate fra le varie sezioni dell'Itinerario, è
possibile ricostruire quali fossero i problemi dei parroci e dei parrocchiani di Quito. Le
parrocchie dell’immensa diocesi erano collocate su territori vasti e ricchi di ostacoli
geografici, quali fiumi del bacino amazzonico, monti, vulcani, foreste, paludi e deserti. Il cura
viveva, con alcuni fedeli, nel "pueblo principal", cioè il centro abitato dove era situata la
chiesa "matriz". Il resto dei fedeli viveva in "pueblos anejos", precari insediamenti di
capanne ("ranchos") abitati da piccole comunità tribali-familiari ("aillo") disperse
("desparramados") nel territorio. Le vie di comunicazione scarseggiavano o, se esistevano,
erano in pessimo stato. Il parroco si recava presso le comunità satelliti solo una o due volte
l'anno e, in ciascuna visita, si fermava tra i sei e gli otto giorni "enseñando la doctrina
cristiana, bautizando a los que hallan nacidos de nuevo y casando a los que quieren tomar
estado de matrimonio". Oltre alla catechesi, il parroco si occupava di amministrare soltanto
due sacramenti, il battesimo e il matrimonio. Si trattava di due "riti di passaggio"13
fondamentali attraverso i quali gli uomini cambiavano il loro status: il primo segnava
l'ingresso nella comunità cristiana e la subordinazione ai precetti cristiani; con il secondo si
formava una nuova unità con la persona scelta e, come con il battesimo, si assumevano
nuove responsabilità. De la Peña fa notare che gli indios di campagna erano cattolici solo di
"estado" - erano solo nominalmente cristiani - poiché avevano un rapporto occasionale e
approssimativo con il catechismo, con i sacramenti e con il parroco.
dubbio l'esecutore non può interpretare autonomamente la legge, ma deve contattare un superiore che faccia
chiarezza, perché l'epicheia non toglie alla legge la propria sfera di competenza (Itin., V, IV, VIII, 4; de la Peña
Montenegro, 1668/1996, p. 603).
Missionari e parroci, durante la prima età moderna, se avevano dubbi sulle norme, in particolare in merito
all'amministrazione dei sacramenti, dovevano contattare le congregazioni romane che avevano il compito di
chiarire, come la Congregazione del Concilio, il Sant'Uffizio e De Propaganda Fide. Della corrispondenza
"verticale" tra le periferie della cristianità e il centro romano sopravvive oggi la documentazione detta dei dubia
circa sacramenta (Administrer, 2009). Ben diverso era il caso in cui, a causa delle enormi distanze, non c'erano né il
tempo, né la possibilità di contattare i superiori. Quando il bene comune era in serio pericolo, era necessario
abbandonare il campo proprio della legge e interpretare la norma attraverso l'applicazione della virtù
dell'epicheia.
Il rapporto tra la virtù e la legge impone una riflessione sulla storia della relazione tra coscienza e diritto. Il
problema è stato studiato da Paolo Prodi (2000) e, per quanto riguarda la casistica italiana della prima età
moderna, da Miriam Turrini (1991). Nell'ambito di questo articolo è sufficiente segnalare che la legge in
determinate occasioni non era in grado di adempiere il suo fine - il bene comune - e, quindi, doveva essere
necessariamente coadiuvata dall'autorità della coscienza, che si orientava attraverso la virtù dell'epicheia.
13
L'espressione "Riti di passaggio", ampiamente diffusa tra gli esperti di scienze sociali, è utilizzata anche da
Adriano Prosperi per illustrare il ruolo del battesimo, del matrimonio e della morte nell'azione evangelizzatrice
condotta dai missionari presso le popolazioni rurali delle penisola italiana nel corso della prima età moderna
(1996, pp. 630-662). L'espressione, come segnala lo stesso Prosperi, è tratta dal titolo dell'af fascina te opera di
Arnold Van Gennep (2006), pubblicata per la prima volta nel 1909.
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Il pessimo stato spirituale degli indios si manifestava in tutta la sua gravità nei
momenti in cui si approssimava la morte, alla quale de la Peña dedica la sezione "Si estará
obligado el doctrinero a la asistencia de los que están in articulo mortis para ayudarles"14. De
la Peña lamenta che nella prassi quotidiana la pastorale in articulo mortis è fortemente
ostacolata dall'isolamento degli indios e della loro ignoranza circa la dottrina (del resto
anche il problema della mancanza d'istruzione in materia religiosa era dovuto al fatto che gli
indigeni vivevano isolati senza avere contatti con catechisti o maestri). Gli indios muoiono
senza sapere quanto è necessario conoscere per ottenere la salvezza; al massimo, si affidano a
qualche oggetto simbolico ("cuando mucho con una cruz en las manos"). De la Peña
riconosce che gli indios versano in stato di abbandono spirituale, ma giustifica i curas perché
patiscono enormi difficoltà per raggiungere gli indios: è "molestísimo irlos a buscar con dos
mil incomodidades de malos caminos, pasos peligrosos, faltos de comida, metidos de unas
chozas pequeñas". Che cosa doveva e/o poteva concretamente fare il parroco in condizioni e
in momenti così difficili?
Si può ritenere che a de la Peña non interessasse soltanto dare consigli concreti, ma
sembra volesse far comprendere ai lettori dell’Itinerario l'importanza del momento della
morte. De la Peña dedica poco spazio (soltanto il capoverso conclusivo della sezione) ad
indicare come assistere concretamente i moribondi. Afferma che il parroco debba insegnare a
due persone per ogni villaggio il "modo de catequizar y excitar" i moribondi. I due fungono
da sostituti del parroco, quando questi è assente, nella guida spirituale dei moribondi15. Tutti
gli altri capoversi mirano a sensibilizzare i parroci circa l'importanza capitale del momento
di passaggio della morte. De la Peña afferma che "No tiene el mundo cosa de tanta
importancia ni de tanta dificultad como morir bien". La morte è un momento di passaggio
importante ed impegnativo; perciò, de la Peña non si limita a richiamare i parroci alle loro
responsabilità giuridiche, ma si appella alle loro coscienze, perché si predispongano in modo
virtuoso alla pastorale in articulo mortis16. Spiega che, dal punto di vista del diritto canonico,
l'assistenza spirituale dei moribondi è un servizio pastorale che rientra nella cura animae, per
la quale i parroci ricevono una retribuzione dagli stessi fedeli. Afferma che l'autorità della
legge ("aprietos de ley") non è però sufficiente a vincolare i parroci al rispetto dei loro
doveri. La realtà del Nuovo Mondo richiede una predisposizione straordinaria. In ragione di
ciò, de la Peña invita i parroci a riporre particolare impegno nella pastorale in articulo mortis
non solo perché è previsto per legge, ma soprattutto perché "la caridad y equidad son su
aprieto" (Itin., I, IV, IV; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 216-220).
14
Il rapporto tra morte e conversione nell'esperienza degli indios andini è stato oggetto di studio da parte di
Gabriela Ramos (2011).
15
Le istruzioni per la guida spirituale dei moribondi sono proposte nella sezione "Exhortación breve para los
indios que están al cabo de la vida, para que el sacerdote u otro alguno les ayude a bien morir" (Itin., I, IV, V; de
la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 220-221).
16
Sul rapporto tra coscienza e diritto si veda quanto indicato in nota 12.
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La pastorale in articulo mortis era un'attività eccezionale che richiedeva un impegno
speciale. In un momento così delicato e per gli emarginati indios era necessario richiamare i
parroci ad agire secondo le virtù della carità e l'equità, tra le quali esisteva un profondo
legame (Caron, 1971). Di seguito, si metteranno in evidenza gli elementi comuni, nei contesti
rurali, tra il momento di passaggio della morte e il rito del matrimonio. Si cercherà di capire
perché in entrambi i momenti fosse necessario applicare al diritto la virtù dell'equità, e quali
interessi fossero in gioco.
De la Peña dedica una sezione al problema che sorge quando "Halla el confesor un
indio enfermo en casa de su manceba: ¿que hará en este caso?" (Itin., III, IV, XIX; de la Peña
Montenegro, 1668/1996, pp. 155-157). Suo proposito è spiegare come si deve comportare il
parroco nella veste di confessore - la sezione è collocata nel trattato "Del confesor" (Itin., III,
IV; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 113-159) - quando in luoghi isolati della propria
parrocchia incontra, com'era già successo ad alcuni parroci, un indio moribondo assistito da
una donna, concubina dell'agonizzante17. I due condividono una relazione sentimentale
extramatrimoniale e, quindi, illegittima e peccaminosa. Non è possibile separarli perché così
l'uomo rimarrebbe solo nel mezzo della foresta (non è possibile affidare il malato alle cure di
qualcun altro a causa dell'isolamento del luogo) e la donna dovrebbe abbandonare l'amato
compagno in un momento molto delicato; si tratterebbe di una vera e propria
"inhumanidad" (Itin., III, IV, XIX, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 156). De la Peña
specifica (basandosi sulle opinioni di diversi teologi morali) che se i due non si separano,
l'agonizzante non può essere assolto, perché permane esposto alla tentazione. Il confessore
deve presumere che peccherà di nuovo: "qui periculum amat, peribit in illo" (Itin., III, IV,
XIX, 2; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 156). Non è nemmeno possibile unire i due in
matrimonio a causa di ostacoli tecnici. Il matrimonio deve essere celebrato osservando le
condizioni previste dalle norme tridentine del decreto Tametsi. Nel caso in questione il
parroco è presente, i testimoni ci sono, ma non si sono precedentemente fatte le
pubblicazioni: il matrimonio non può essere celebrato. Visto che al moribondo rimangono
soltanto poche ore di vita, non c'è nemmeno il tempo necessario per ottenere una dispensa
da parte del papa o del vescovo per sollevare la coppia dal vincolo delle pubblicazioni.
Considerate le circostanze eccezionali, de la Peña sostiene che il parroco possa
applicare l'epicheia per dispensare virtualmente dall'obbligo delle pubblicazioni, così da
poter amministrare il matrimonio. Attraverso l'applicazione dell'epicheia, si interpreta
secondo il criterio della "benignidad" - il fine è il bene -l"intención" del Concilio di Trento
espressa nel Tametsi - che si può ritenere fosse quella di promuovere l'amministrazione dei
17
Si può ritenere che la confessione fosse un sacramento cruciale in articulo mortis. Era l'ultima possibilità del
moribondo per convertirsi e ottenere il perdono. Sulle incertezze, dubbi e problematiche della confessione nel
mondo della prima età moderna si veda lo studio di Claudia di Filippo Bareggi (2009).
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/locatelli01
Locatelli, F. G. (2012). De la Peña e l'evangelizzazione degli indios. Epicheia e matrimoni nel Nuovo Mondo.
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sacramenti e la promozione della salus animarum18. Gli indios, se e solo se non hanno la
possibilità di ricorrere alle autorità, "se entienden dispensados [si tratta di una dispensa non
reale, ma virtuale] por el Pontífice" e così possono contrarre matrimonio (Itin., III, IV, XIX, 3;
de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 156).
Attraverso l'epicheia la Chiesa adattava il matrimonio alle condizioni degli indios. Con
l’amministrazione del matrimonio si attuavano la normalizzazione e cristianizzazione della
coppia di fatto - si convertiva lo status scandaloso di concubini in quello legittimo di marito e
moglie. In questo modo, il moribondo poteva legittimamente trascorrere le ultime ore di vita
con la donna. A costei era concesso di stare accanto al marito nelle ultime ore per sostenerlo.
Per quanto riguarda la cura spirituale, il parroco nel ruolo di confessore - che è il
protagonista della sezione in questione - poteva assolvere il moribondo, che così era, in
seguito all'assoluzione, pronto per la morte.
Al centro di questo articolo è l'applicazione dell'epicheia rispetto al decreto Tametsi,
ma, nell’ Itinerario, la questione è trattata anche rispetto ad altri problemi19. Qui di seguito ci si
soffermerà sulla sezione "Si en los pueblos retirados de montañas podrá sin privilegio
dispensar el párroco con sus feligreses, para poder pedir el débito" (Itin., III, X, XII; de la
Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 303-307), perché in queste pagine de la Peña si sofferma
diffusamente, citando il pensiero di diversi doctores, sul problema dell'applicazione
dell'epicheia. In questione è la possibilità di applicare l'epicheia non per celebrare le nozze,
ma per risolvere i problemi che derivavano dal peccato dell'incesto tra persone sposate.
In base alle descrizioni del vescovo (che si possono trovare in varie sezioni
dell'Itinerario), è possibile ricostruire il contesto socio-culturale nel quale si verificava il
problema dell'incesto. Poteva capitare che un uomo, di etnia indigena o spagnola che fosse,
residente nelle distanti regioni di barbacoas, mocoa, sucumbios, quixos, maynas della diocesi di
Quito, commettesse un incesto carnale o spirituale (Itin., III, X, XII, 2; de la Peña Montenegro,
1668/1996, p. 304). L'incesto era un fenomeno diffuso tra gli abitanti delle campagne, non
solo tra gli indios, ma in generale tra la "gente rústica" (Itin., V, III, IV, 8; de la Peña
Montenegro, 1668/1996, p. 584). De la Peña non segnala alcuna differenza su base etnica
nella pratica dell'incesto e, quindi, non identifica il problema con l'appartenenza a un
gruppo. Piuttosto tratta di persone che, poiché vivevano in luoghi sperduti, erano
particolarmente esposte al rischio di commetterlo. I villani vivevano in comunità composte
da pochi individui e avevano scarse opportunità di comunicare e socializzare con membri
appartenenti ad altri villaggi. Per questo motivo era probabile che eventuali relazioni
nascessero all'interno delle comunità, nelle quali, a causa dell'esiguo numero dei
componenti, erano tutti quanti parenti a livello naturale, "civile" o spirituale. Inoltre gli
abitanti delle campagne, come è descritto in varie sezioni dell'Itinerario, erano inclini ad
18
Del resto il fine del diritto canonico, del quale l'epicheia è la sostanza, è la salus animarum (Pompedda, 1993).
w Cfr. nota 8.
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assumere comportamenti sessuali degenerati perché, in ragione della mancanza di maestri e
scuole che li educassero alla vita civile, erano solitamente ignoranti e selvaggi.
De la Peña spiega che i mariti o le mogli che commettono il peccato dell'incesto
perdono il diritto di chiedere il debito coniugale al coniuge, diritto che sor ge in virtù del
contratto matrimoniale. Non solo perdono il diritto, ma permangono in tale stato di
privazione, perché i parroci non dispongono dell'autorità necessaria per riabilitarli. Gli
incestuosi, qualora desiderino riacquistare tale diritto, devono recarsi dal Papa o dal
vescovo, che detengono l'autorità per assolvere l'incestuoso dalla colpa. A causa delle
enormi distanze, è però impossibile che gli impediti possano raggiungere agevolmente le
autorità alle quali chiedere le dispense (Itin., III, X, XII, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1996,
p. 303). De la Peña aggiunge che la condizione degli incestuosi peggiora con il passare del
tempo ed ha pesanti conseguenze sulle loro coscienze. Gli impediti, in quanto tali, devono
astenersi dall'"uso del matrimonio". Più il tempo passa più l'impedito è tentato ed è sempre
più difficile che possa controllare e reprimere le pulsioni sessuali. Così l'incestuoso corre, in
modo sempre più intenso, il "peligro próximo de incontinencia" e quindi aumenta il rischio
che commetta "mayores pecados" contro la legge divina e naturale, come la polluzione e la
fornicazione (Itin., III, X, XII, 2; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 304). Questo rischio era
aggravato da altre circostanze alle quali de la Peña fa riferimento in altre sezioni. I villani,
afferma, comunemente ignorano che, qualora commettano un incesto, devono rinunciare a
chiedere il debito (Itin., III, IX, IX, 4; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 255). Ignorano
pure quali siano i gradi di parentela entro i quali una relazione è definita incestuosa (Itin., V,
III, IV, 8; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 584). Infine, anche se ammoniti dal
confessore, continuano comunque a chiedere il debito al coniuge (Itin., III, IV, VIII, 2; de la
Peña Montenegro, 1668/1996, p. 133).
I vincoli della legge, trasgredita per ragioni di fragilità o di mancanza di alternative,
esponevano le persone al rischio di peccare e, contemporaneamente, le escludevano dalla
possibilità di rimediare agli errori. Si tratta di un paradosso: gli abitanti delle campagne
versavano in stato di emarginazione - ignoranti, poveri e isolati - e, a causa dei vincoli della
legge (il cui fine era, in teoria, il bene comune), rischiavano di peggiorare ancor più - non
solo cadevano, ma permanevano nello stato di peccatori.
Per risolvere questi gravi problemi, de la Peña sostiene che il parroco, attraverso
l'applicazione dell’epicheia, possa dispensare gli impediti. Il cura, se rileva la presenza di
gravi ostacoli spaziali e temporali che impediscono l'accesso alle autorità, se "teme
prudentemente" che il peccatore non potendo chiedere il debito al coniuge sia a rischio di
commettere "mayores pecados" e se valuta ("juzgando") che la forma della legge è generica
e non si riferisce alle situazioni di emergenza ("no quiso comprehender casos con tan
apretadas circunstancias"), può correggerla e adattarla al caso degli impediti, in favore del
bene ("juzgar por benigna interpretación"). Senza potestà ordinaria, può dispensare "sin
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privilegio" l’incestuoso, che così può riprendere a chiedere legittimamente il debito
coniugale al coniuge (Itin., III, X, XII, 1-4; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 304-305). In
questo modo, attraverso l'epicheia, il parroco aveva la possibilità di reintegrare gli impediti
alla normale vita coniugale e di ricondurli sulla via della salvezza.
Tra "tierras de infieles" e "tierras de cristianos"
Dopo aver analizzato i casi in cui è possibile applicare l'epicheia nell'ambito della
pastorale parrocchiale, è ora interessante spostare l'attenzione verso quanto accadeva
nell'esterno della diocesi di Quito, nell'area missionaria del Dorado. A partire dalle
descrizioni che si ritrovano a più riprese in diverse sezioni áeW! Itinerario, è possibile
ricostruire la geografia dei territori nei quali sono contestualizzati i problemi affrontati da de
la Peña. Nella Quito del XVII secolo, dal punto di vista istituzionale, era possibile
individuare un interno, cioé Tarea organizzata in parrocchie, e un esterno, cioé Tarea priva sia
di un'organizzazione ecclesiastica, sia civile. Il Dorado (situato ad occidente rispetto alla città
di Quito, nella regione amazzonica), che può essere considerato l’esterno, non era un'area
completamente priva di cristiani. Era, piuttosto, un luogo dove il cattolicesimo era in
espansione, i cattolici, se c'erano, costituivano la minoranza della popolazione e nel quale
non era stato ancora organizzato il sistema parrocchiale. Il Dorado non era solo una regione
geografica ma, poiché era per gran parte sconosciuto e misterioso, era anche luogo
dell’immaginario nel quale si concentravano speranze e illusioni degli uomini del tempo, i
quali partivano alla ricerca di fortune nel tentativo di trasformare i loro sogni in realtà20.
Ci si soffermerà ora sulla sezione "Si en las partes remotas de las Indias, donde no se
hallan ni se pueden hallar párrocos, podrá un simple sacerdote asistir al matrimonio o los
proprios contrayentes casarse sin párrocos" (Itin., III, IX, VI; de la Peña Montenegro,
1668/1996, pp. 244-249), che conclude con la definizione di epicheia (che si è analizzata
precedentemente nel paragrafo "De la Peña e la legge"). De la Peña descrive che soldati,
avventurieri e missionari si avventurano in barca lungo i corsi d'acqua del bacino fluviale nel
territorio della diocesi di Quito, "por el río Napo, que está en los quijos, o por el Caqueta en
mocoa o por el río Marañon en los xibaros". Spesso però le imprese falliscono: "cada día" si
verificano incidenti alle imbarcazioni che vengono trascinate dalle correnti, naufragano o
affondano perché troppo cariche. Gli avventurieri rimangano bloccati lungo le rive di
qualche fiume o vengano catturati dagli indios, con i quali entrano in relazione.
20
De la Peña descrive, basandosi sulle testimonianze di esploratori e missionari, che nel Dorado c'erano sia oro,
sia un'eleva ta quantità di indios ignoranti in fatto di costumi civili, privi di un'organizzazione poli tica e, i più
selvaggi tra loro, privi di una religione (Itin., II, IV, III, 8; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 473-474). De la
Peña descrive il Dorado come un luogo attraente sia per gli avventurieri in cerca di fortune, sia per i missionari in
cerca di anime da convertire (Itin., IV, I, I, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 323). La stessa idea di Dorado
é confermata dagli studi di Massimo Livi Bacci (2005).
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De la Peña si chiede: "Ahora pregunto yo si este sacerdote y soldados convierten
algunos gentiles a la ley de Cristo y quieren contraer matrimonio, ¿dejará de casarlos porque
no es cura?" (Itin., III, IX, VI, 4; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 245). In seguito al
naufragio, i cristiani entrano in contatto con gli infedeli e li portano a convertirsi - per via
battesimale - alla religione cattolica. In seguito al battesimo si contraevano responsabilità
giuridiche, come è spiegato in un'altra sezione21. Qui de la Peña asserisce che, attraverso la
contrazione del battesimo, i neoconvertiti sono subordinati al rispetto delle leggi divine ed
ecclesiastiche. I vincoli contratti impegnano il contraente in ogni luogo. Se un battezzato si
trova "entre gentiles" (come i neofiti del caso in questione) e desidera sposarsi, non è a tal
fine sufficiente che contragga matrimonio senza gli impedimenti previsti dalla legge del
luogo ("que usan los gentiles en aquellas partes"), ma deve necessariamente contrarlo
"conforme a las leyes de la Iglesia", cioè senza gli impedimenti previsti dal diritto canonico.
In base a quanto sostenuto da de la Peña, si può affermare che i cattolici per contrarre
matrimonio, in qualunque luogo si trovassero, dovevano sposarsi secondo le formalità
previste dal Tamesti, in particolare alla presenza di un parroco e non di un qualsiasi
sacerdote22. Questo significa che il sacerdote presente nell'esperienza del naufragio nel
Dorado, visto che non era un parroco, non poteva amministrare il matrimonio.
De la Peña si chiede se sia opportuno rinviare l’amministrazione del matrimonio per
non trasgredire il diritto canonico. Dubita circa l'opportunità di rinviare le nozze, perché
l'attesa eccessivamente protratta nel tempo potrebbe dar luogo a seri danni. In primo luogo,
escludere indios neoconvertiti dalla normalizzazione per via del matrimonio - cioè dallo
status di sposi legittimi autorizzati a vivere la sessualità - significa dar loro occasione di
compiere peccati sessuali ("adulterios y amancebamientos"). Ciò è particolarmente vero per
gli indios, perché non sono in grado di reprimere le esigenze della carne (Itin., III, IX, VI, 4;
de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 245). In secondo luogo, l'attesa non è conciliabile con i
tempi ristretti di chi sta lottando contro la morte. Gli indios neo-battezzati in questione
potrebbero essere in fin di vita e quindi a rischio di morire da peccatori, in quanto concubini,
e a rischio di non salvarsi. Se i problemi relativi all'incontinenza sessuale e alla mancata
preparazione al momento della morte sono già stati sollevati da de la Peña (e già analizzati in
questo lavoro), vi è un terzo problema non ancora considerato, l'illegittimità del nucleo
familiare e dei figli. De la Peña spiega che se il genitore agonizzante dovesse morire prima
dell'arrivo del parroco per l’amministrazione del matrimonio, i figli subirebbero un enorme
21
Si tratta della sezione "Si los indios gentiles que viven entre cristianos se han de casar conforme a las leyes de su
gentilidad. Y si algún cristiano viviendo entre gentiles, queriendo casarse con mujer gentil, si este matrimonio ha
de ser conforme allí se usa, o conforme a las leyes de la Iglesia" (Itin., V, IV, IX; de la Peña Montenegro,
1668/1996, pp. 604-607).
22
Il decreto Tametsi prevedeva la possibilità che il matrimonio venisse celebrato da un qualsiasi sacerdote, ma
soltanto dietro l'autorizzazione del parroco o del vescovo. Nel caso in questione i neoconvertiti si trovavano in un
luogo nel quale non esistevano né parrocchie né diocesi e, quindi, né parroci né vescovi che avrebbero potuto
autorizzare il sacerdote perché celebrasse legittimamente le nozze.
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danno. Rimarrebbero irrimediabilmente - per tutta la vita - nello status di illegittimi (Itin., III,
IX, VI, 8; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 247).
Durante la prima età moderna i figli illegittimi erano vittime di discriminazioni in
ambito economico e sociale. Gli illegittimi non avevano diritto all'eredità. Tuttavia, si può
presumere che questa fosse una discriminazione poco avvertita dagli indios, perché, come
ricorda lo stesso de la Peña, la maggior parte di essi erano così poveri che non avvertivano la
necessità di tutelare i loro interessi patrimoniali (Itin., I, XI, II, 1; de la Peña Montenegro,
1668/1995, p. 346). La discriminazione più grave si può ritenere fosse la penalizzazione degli
illegittimi in termini di diritti civili sia nell'ambito dello Stato, sia della Chiesa. Il Concilio di
Trento decretò chiaramente la forma del matrimonio legittimo e, così, definì implicitamente
la distinzione tra famiglie legittime e illegittime, tra figli legittimi e illegittimi (Twinam,
1999). Il Tridentino inoltre chiuse esplicitamente le porte della Chiesa all'accesso degli
illegittimi al sacerdozio. De la Peña ricorda, nel libro dedicato alla figura del parroco23, che il
diritto canonico e la recente normativa tridentina confermano che "los ilegítimos son por
derecho irregulares [...] están inhábiles para recibir Ordenes Sagradas [...] también lo serán
de tener beneficios" (Itin., I, I, XIX, 1; de la Peña Montenegro, 1668/1995, p. 153). Paolo Prodi
(1989; 1997), oltre a denunciare la mancanza di studi sul problema dello status giuridico
degli illegittimi, ha messo in evidenza la complessità del problema nell'ambito della Chiesa
del XVI secolo. Lo storico conclude spiegando che, tra gli estensori del Concilio di Trento, ci
furono tendenze di apertura in favore dell'integrazione degli illegittimi - come quella del
celebre vescovo di Bologna Gabriele Paleotti, il quale basava il suo pensiero proprio sull'idea
di equità canonica - ma queste aspirazioni furono ben presto ridimensionate per tutelare il
matrimonio legittimo, funzionale alle crescenti esigenze di disciplinamento sia dello Stato,
sia della Chiesa.
De la Peña era consapevole delle conseguenze negative che poteva avere l'osservanza
del diritto, per cui esprime i suoi dubbi circa l'opportunità di applicare letteralmente il
Tametsi: "Pregunto yo: si en este tiempo se ofrece un caso de urgente necesidad, ¿han de
cerrar la puerta al remedio?". Si chiede se sia opportuno osservare scrupolosamente la legge
in ogni situazione, anche quando ciò potrebbe danneggiare delicati e fondamentali interessi.
La risposta è negativa: "verdaderamente fuera vicio seguir siempre la corteza de la ley" (Itin.,
III, IX, VI, 10; de la Peña Montenegro, 1668/1996, p. 249). Nelle frasi successive (che
concludono la sezione) si trova la definizione di epicheia precedentemente analizzata.
Come si poteva applicare concretamente l'epicheia in favore degli indios neo-battezzati
del Dorado? De la Peña afferma che sia possibile celebrare il matrimonio anche in assenza
dei testimoni e del parroco. Per dare un fondamento autorevole alla sua opinione, riporta le
23
Si tratta del libro "En que se trata de la elección y canonica institución del párroco y de todas las demás
obligaciones que tiene el doctrinero" (Itin., I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 77-381).
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voci favorevoli e sfavorevoli a questo tipo di modifica del Tametsi24. Molti doctores, afferma,
ritengono che il Concilio di Trento abbia posto come forma essenziale e sostanziale la
celebrazione del matrimonio alla presenza del parroco e dei testimoni e che "de otra manera
sea irríto o nulo, quedan las personas inhábiles para contraer". Esiste, però, anche una
corrente minoritaria di doctores, i quali sostengono che in casi di "urgentísima necesidad será
valido el matrimonio sin la formula que puso el Concilio; que la epiqueia interpretando la
intención del legislador se colige prudentemente de su piadoso gobierno, que no quiso poner
por forma esencial del matrimonio la asistencia del párroco y testigos". De la Peña specifica
che quest'ultima è un'opinione meno certa rispetto a quella della maggioranza dei doctores,
ma in caso di "gran necesidad, cuando hay algún grande inconveniente" si può sostenere
l'opinione meno probabile25. L'"urgentísima necesidad" si può ritenere fosse la condizione
degli indios agonizzanti o residenti in luoghi isolati che non avevano la possibilità di
attendere l'arrivo del parroco e dei testimoni previsti dal Concilio. De la Peña ritiene
possibile trasgredire la "formula" Tridentina e interpretare prudentemente l'intenzione
dell'autore del Tametsi - il Concilio di Trento - che, specifica, si contraddistingue per il suo
"piadoso gobierno". Il rispetto della "formula" non è essenziale, perché con "aquel decreto
[il Tametsi] [il Concilio] no quiso obligar a lo imposible". La forma posta dal Concilio si deve
intendere "prudentemente": non vincola - sono "excusados de aquel precepto y ley" - quei
contraenti che non possono disporre del parroco e non hanno nemmeno la speranza di
disporne a breve termine. In ragione di ciò, il matrimonio può essere contratto in assenza del
parroco e/o in assenza dei testimoni (Itin., III, IX, VI, 1-9; de la Peña Montenegro, 1668/1996,
p. 244-246). Con la contrazione del vincolo, si riduceva il rischio che gli indios commettessero
peccati sessuali, si aumentava la probabilità che le anime si salvassero e si legittimava lo
status giuridico dei figli.
Attraverso l'applicazione dell'epicheia non solo si sottraevano gli indios dal rischio di
contrarre irrimediabilmente lo status illegittimo, ma era pure possibile amministrare il
sacramento dell'ordine agli illegittimi. Si è detto che nell’Itinerario sono riportate le norme
tridentine che vietavano l'ordinazione e la consacrazione degli illegittimi. De la Peña
specifica, sulla scia di quanto argomentato da altri doctores, che attraverso l'epicheia è
possibile correggere anche il divieto Tridentino e, così, gli ordinari possono dispensare gli
illegittimi affinché accedano agli ordini e al presbiterato. Non solo: confessa ai lettori
dell'Itinerario di aver egli stesso dispensato a favore di alcuni illegittimi perché si
candidassero per ottenere doctrinas de indios (Itin., I, I, XIX, 7; de la Peña Montenegro,
24
Miriam Turrini, che si è concentrata sullo studio della casistica italiana della prima età moderna, ha messo in
rilievo come il modo di argomentare dei casisti del Seicento fosse cambiato rispetto a quello degli autori del
secolo precedente. Nel XVI avrebbe dominato l'affermazione della veritas, mentre nel XVII secolo questa venne
meno in favore dell’opinio (Turrini, 1991).
25
Si può ritenere che le condizioni straordinarie della pastorale nelle estremità del mondo imponessero
l'assunzione di opinioni probabiliste.
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1668/1995, p. 157). Sostiene che sia necessario aprire le porte agli illegittimi sia per
aumentare la quantità di persone potenzialmente ordinabili, sia perché essi, essendo nati
nelle Indie, detengono un capitale umano fondamentale: sanno comunicare - quindi
predicare e confessare - nelle lingue particolari del Nuovo Mondo (Itin., V, I, V-VI; de la Peña
Montenegro, 1668/1996, pp. 458-466). De la Peña pensava che gli illegittimi non dovessero
essere discriminati per la loro origine familiare. Sosteneva che dovessero essere valorizzati e
inseriti nella società per la loro capacità di comunicare - fondamentale per l'esercizio della
pastorale (Agnolin, 2010). Attraverso l'epicheia era possibile aggirare i limiti e i pregiudizi
insiti nella legge e, quindi, promuovere sia l'emancipazione delle persone, sia la
cristianizzazione. Si tratta di un ribaltamento sorprendente: i margini della società e gli
esclusi dal diritto divenivano la speranza per il futuro della Chiesa del Nuovo Mondo26.
De la Peña era dunque favorevole all'integrazione degli illegittimi per aumentare la
quantità, oltre che per migliorare la qualità, del clero. Si può ritenere che alla base di questa
predisposizione per l'integrazione ci fosse l'esigenza concreta di parroci e missionari per
promuovere l'esercizio della pastorale in tutti i territori del Nuovo Mondo27.
Il clero mancava nelle "terre di infedeli", ma anche nelle parrocchie la mancanza del
parroco poteva protrarsi per anni. Per questo, nella sezione che si è analizzata in merito ai
problemi nella celebrazione dei matrimoni nel Dorado (Itin., III, IX, VI; de la Peña
Montenegro, 1668/1996, pp. 244-249), de la Peña ritiene possibile applicare l'epicheia per
celebrare il matrimonio senza parroco né testimoni non solo "en tierras de gentiles", ma
anche "en pueblos de cristianos" - nei territori formalmente organizzati in parrocchie. Non si
riferisce a casi astratti, ma riporta la sua testimonianza concreta: confessa che "Cuando esto
escribo, he visto irse prolongando los edictos de un beneficio de montañas, llamado las
Caballerías [...] y estarse más de año y medio sin cura". Per un anno e mezzo le persone che
risiedevano a las Caballerías non hanno avuto nessuno che si occupasse di loro. De la Peña
specifica che non si tratta di una circostanza rara. "Cada día" può succedere che in una
26
La possibilità di applicare l'epicheia per ordinare gli illegittimi valeva anche per gli indios. De la Peña, nella
sezione "Si pueden ser ordenados los indios, sin que para ello tengan necesidad de dispensación", sostiene che gli
indios per ricevere il sacramento dell'ordine non hanno bisogno di nessuna dispensa, almeno che non si tratti di
illegittimi. De la Peña sostiene che gli indios non solo hanno diritto al sacramento dell'ordine, ma devono essere
preferiti nell'attribuzione di benefici e prebende perché sono "naturales y por lo mucho que aprovechan a los
demás indios por saber mejor su idioma" (Itin., III, VIII, II; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 219-221). La
questione dell'ordinabilità degli indios è stata affrontata da Juan Carlos Estenssoro Fuchs. Lo storico ha messo in
rilievo che soltanto a metà del Settecento si riconobbe formalmente agli indios la possibilità di ricevere il
sacramento dell'ordine (Estenssoro Fuchs, 2003).
27
La scarsità di parroci e missionari si può ritenere sia uno dei motivi per cui de la Peña ha dedicato molto spazio
alla possibilità di riscattare gli illegittimi. Al problema sono dedicate le seguenti sezioni: "Si los ilegítimos pueden
tener doctrinas, así de indios como de españoles" (Itin., I, I, XIX; de la Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 153-158);
"Si los ilegítimos pueden ser ordenados"(Itin., III, VIII, I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 215-219); "Bula
de Gregorio XIII, despachada año de 1576, para que los obispos puedan dispensar en las Indias con los
ilegítimos" (Itin., V, I, I; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 449-451); "Si por bula de Pio V o el concilio de
Trento podrán los obispo dispensar para órdenes con los ilegítimos" (Itin., V, I, III; de la Peña Montenegro,
1668/1996, pp. 453-455) "Advertencia sobre la bula de Gregorio XIII, para dispensar con los ilegítimos" (Itin., V, I,
V; de la Peña Montenegro, 1668/1996, pp. 458-466).
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/locatelli01
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parrocchia "de las muy retiradas" il parroco muoia improvvisamente. La sostituzione del
prete è concretamente molto faticosa per una serie di motivi. Innanzitutto, a causa delle
distanze, si ritarda nell'avvisare il vescovo perché proceda nella sostituzione, la quale
avviene per mezzo di un lento iter burocratico28. Il problema non è tanto la procedura
elettiva, ma è dato dal fatto che è molto difficile trovare un sostituto. Nel Nuovo Mondo il
clero scarseggia numericamente e le parrocchie di campagna sono "beneficios tenues", cioè
istituzioni economicamente depresse appena sufficienti a garantire la sussistenza del parroco
titolare. Passa molto tempo prima di trovare un sacerdote che sia disposto a trasferirsi a
vivere in montagna per fare una vita "da fame" in solitudine o con la sola compagnia di
indios selvaggi. Alla luce di ciò, se nei luoghi isolati - nelle terre di infedeli come nelle
giursidizioni parrocchiali - ci fossero due persone che vogliono sposarsi e "no hay cura ni
esperanza de que lo habrá tan presto", il matrimonio può essere celebrato in assenza del
parroco attraverso lo scambio dei consensi (Itin., III, IX, VI, 10; de la Peña Montenegro,
1668/1996, pp. 248-249).
Conclusione
De la Peña riteneva necessaria l'applicazione dell'epicheia alle norme della Chiesa per
favorire la celebrazione del matrimonio. Si trattava di un sacramento fondamentale per il
progresso del bene temporale e spirituale degli abitanti del Nuovo Mondo. Non poteva
essere messo in discussione da eventuali vincoli imposti dalla forma della legge.
Il Concilio di Trento rinnovò la dottrina e la disciplina del sacramento matrimoniale
attraverso il decreto Tametsi. In alcuni luoghi però non c'erano le condizioni per rispettarlo e
non era possibile ricorrere alle autorità che avrebbero potuto interpretarlo e adattarlo alle
circostanze. Per favorire l'amministrazione dei matrimoni nelle periferie del Nuovo Mondo dove la Chiesa non era ancora solidamente affermata - il Tametsi doveva essere corretto
attraverso l'applicazione della virtù dell'epicheia. Sono state analizzate tre sezioni
dell'Itinerario per capire come e in quali occasioni applicarla. Le sezioni sono precedute da
una riflessione sulla pastorale in articulo mortis, che si può ritenere fondamentale per
comprendere le necessità umane e spirituali che richiedevano l'applicazione dell'epicheia. La
morte era infatti un momento di passaggio molto importante. I parroci dovevano fare tutto il
possibile per assistere i moribondi. Nelle sezioni successive si è cercato di mostrare perché
fosse necessario integrare il diritto con la virtù dell'epicheia. L'ordine delle sezioni è
funzionale a mostrare che più ci si allontanava dalle parrocchie e dai centri ove risiedevano
parroci e vescovi, più era difficile rispettare le norme della Chiesa. Nella prima sezione
analizzata, l'epicheia poteva essere applicata per dispensare i nubendi dal vincolo delle
28
L'iter è descritto nella sezione "Cómo se debe haber la elección de los doctrineros de indios" (Itin., I, I, II; de la
Peña Montenegro, 1668/1995, pp. 83-93).
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pubblicazioni. La seconda sezione analizzata non riguarda il Tametsi, ma mostra quali
fossero i problemi degli sposati che vivevano in campagna. In entrambe le sezioni, attraverso
l'applicazione dell'epicheia, il parroco poteva dispensare i fedeli, che così venivano sottratti
al rischio di peccare. Nella terza sezione de la Peña asserisce che è possibile, nelle "tierras de
infieles" e in caso di emergenza, contrarre matrimonio in modo aformale senza
pubblicazioni, testimoni e parroco. La stessa possibilità era però valida anche nei territori
parrocchiali, perché di fatto, al di là delle definizioni giuridiche, nelle parrocchie si
verificavano gli stessi problemi che si registravano al loro esterno.
De la Peña sostiene che sia possibile trasgredire quanto stabilito dal Tametsi e contrarre
matrimonio in modo aformale. La Chiesa però, durante il Concilio di Trento, aveva deciso di
imporre il Tametsi proprio per contrastare i matrimoni clandestini. Si capisce perché de la
Peña abbia fornito la definizione di epicheia proprio nella sezione ove legittimava i
matrimoni aformali: si può ritenere che avvertisse l'esigenza di giustificare con solide basi
un'opinione condivisa soltanto da pochi doctores e che metteva fortemente in discussione le
norme stabilite dalla Chiesa29. La proposta di de la Peña privava della loro importanza le
formalità del matrimonio, ma ne rispettava la natura sacramentale. Il matrimonio poteva
essere celebrato in modo aformale e cioè semplicemente con l'espressione, da parte dei
nubendi, dei consensi - che erano la materia e la forma del sacramento. Del resto, come si è
detto nel paragrafo "Note su Treno e Tamesti tra Europa e Nuovo Mondo", il testo del
Tametsi iniziava con la condanna dei matrimoni aformali in quanto peccaminosi, ma
contemporaneamente ne riconosceva la validità.
De la Peña riteneva possibile revocare, per mezzo dell'applicazione dell'epicheia, le
formalità stabilite dal Tametsi, ma attribuiva grande importanza al rispetto dei consensi e di
altre esigenze sociali, familiari e psicologiche degli emarginati. Anzi, era necessario applicare
l'epicheia proprio per il bene dei nubendi, delle loro famiglie e della società.
Per adempiere a queste esigenze, parroci e missionari dovevano adottare atteggiamenti
di grande sensibilità e umanità. Le miserie temporali e spirituali degli uomini del Nuovo
Mondo erano allo stesso tempo una sfida e il principale obiettivo dei missionari. Nelle aree
rurali, laici ed ecclesiastici erano costretti a lottare per affermare la vita e il vangelo in
condizioni difficili. Le numerose difficoltà quotidiane e lo stato di perenne emergenza non
giustificavano bassi e scadenti livelli di umanità, civiltà e servizio pastorale. Per attuare
l'estensione universale della Chiesa presso gli ultimi (spagnoli o indios che fossero) delle
periferie del mondo, era necessaria la massima dedizione. Le situazioni intricate degli
29
Si può ritenere che l'atteggiamento di de la Peña rispecchi le dinamiche e i problemi che attraversarono la
Chiesa della prima età moderna. A parere di Alain Tallon (2004) "ovunque la storia dell'applicazione della
riforma tridentina segna più insuccessi, più arretramenti e compromessi che avanzate spettacolari" (p. 89); ma
dopo il Concilio "tutti hanno ormai davanti agli occhi un modello morale e pastorale al quale non sempre si
conformano, ma con la netta consapevolezza di fare una trasgressione" (p.95).
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emarginati erano l'opportunità per agire secondo le più alte virtù della tradizione cristiana la carità e l'equità.
Il matrimonio era un sacramento fondamentale perché era legato ad aspetti essenziali
profondamente umani, quali l'amore e la procreazione. A ciò si aggiunga, come si è visto
negli esempi riportati, che il sacramento nelle aree rurali del Nuovo Mondo s'intrecciava a
momenti di passaggio di notevole valore per la vita del cristiano, come il battesimo e la
morte. Era necessario celebrare il matrimonio perché poteva essere occasione irrinunciabile
per promuovere il bene comune temporale e spirituale. Di conseguenza, poteva essere
celebrato anche senza aver fatto le pubblicazioni, senza testimoni e in assenza del parroco.
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Nota sull'autore
Fabio Giovanni Locatelli si è laureato in Storia presso l'Università degli Studi di Milano
con una tesi sull'Itinerario para parrocos de indios. E-mail: [email protected]
Data de recebimento: 18/05/2012
Data de aceite: 19/08/2012
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Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da
modernidade ocidental e do Brasil colonial
Imagination and images: concepts and practices in cultural traditions of the Western
modernity and colonial Brazil
Marina Massimi
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
O artigo aborda a integração entre os universos dos conceitos e o das práticas acerca da
ordenação da imaginação e do uso das imagens na Idade Média e na Idade Moderna no
Ocidente e no Brasil colonial. Evidencia que o funcionamento da imaginação é tomado de
modo integrado aos processos do conhecimento sensorial, da memória e do
entendimento, dos afetos e da vontade. Focaliza o estudo da imagem e do treino da
imaginação no âmbito da retórica. Enfatiza as múltiplas dimensões das imagens
enquanto processos culturais e a importância de apreender esta complexidade inclusive
ao investigar os processos psíquicos por elas estimulados. Ao abordar esta temática,
apresenta algumas sugestões metodológicas que se situam na interface entre a história
cultural, a história dos saberes psicológicos e a psicologia. Propõe exemplos de
transmissão de conceitos sobre imagens e imaginação e de utilização das imagens
visando mobilizar o dinamismo psíquico dos destinatários em práticas culturais do Brasil
colonial, tais como na pregação através do uso das metáforas, nas festas através do uso de
alegorias, emblemas, figuras e estátuas; e nas narrativas do gênero alegóricos.
Palavras-chave: imaginação; imagem; história dos saberes psicológicos; retórica
Abstract
The article approaches the integration between the universes of concepts and practices
concerning the arrangement of imagination and use of images in the Middle Age and
Modern Age in the West and in colonial Brazil. It evidences that the functioning of
imagination is viewed in an integrated manner to processes of sensory knowledge,
memory and understanding, affections and will. It focuses on the study of the image and
the training of the imagination in the field of rhetoric. It emphasizes the multiple
dimensions of the images as cultural processes and the importance of understanding this
complexity even when investigating the psychical processes stimulated by them. In
dealing with this issue, it presents some methodological suggestions that lie at the
interface among cultural history, history of psychological knowledge, and psychology. It
proposes examples of transmission of concepts concerning images and imagination and
of use of these images aiming at mobilizing the psychical dynamism of the recipients in
cultural practices of colonial Brazil, such as in preaching through the use of metaphors, in
parties through the use of allegories, emblems, figures and statues, and in narratives of
allegorical genre.
Keywords: imagination, image, history of psychological knowledge; rhetoric
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Massimi, M. (2012). Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da modernidade ocidental e do
Brasil colonial. Memorandum, 23, 158-184. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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Introdução
No presente estudo, investigamos a integração entre os universos dos conceitos e o das
práticas acerca da ordenação da imaginação e do uso das imagens na Idade Média e na Idade
Moderna no Ocidente e no Brasil colonial. Desse modo, abordaremos o conhecimento
disponível na Idade Moderna acerca das influências da imagem (verbal, visual, etc..) sobre o
dinamismo psíquico dos ouvintes e acerca das potências psíquicas diretamente implicadas
neste processo e as práticas culturais nele inspiradas, no horizonte do universo histórico de
sua produção e em suas influências no contexto espaço-temporal do Brasil colonial.
A discussão acerca da função da imagem e da imaginação nas culturas, ao longo do
tempo, demanda integrar as perspectivas da história cultural, da história dos saberes
psicológicos e da psicologia: ao propor este horizonte polivalente queremos resgatar uma
possibilidade de diálogo entre psicologia, história e cultura.
Tendo o objetivo de apresentar e discutir esta temática, traçaremos aqui um percurso
com os seguintes passos:
1. A posição de alguns historiadores da cultura acerca da dimensão polivalentes
das imagens e da articulação entre imaginação e memória
2. Os alicerces conceituais acerca de imagem e imaginação na cultura ocidental e
brasileira, acompanhando assim a constituição do universo do pensável
3. As relações entre universo do pensável e universo das práticas quanto a
tematização e uso das imagens no universo sociocultural brasileiro do período
colonial.
4. Imagens e imaginação no Brasil da Idade Moderna
Eliade e o debate acerca da dimensão polivalente das imagens
Mircea Eliade (1952/1991) atribui o interesse pelos temas da imagem e da imaginação
difundido na cultura contemporânea a vários fatores, sejam de natureza cultural, sejam
ligados às ciências humanas e notadamente às ciências psicológicas. Assinala, por exemplo, a
influência da psicanálise por ter introduzido na mentalidade atual o uso de termos como
imagem e símbolo. Evidencia também a exigência em âmbito filosófico de superar o
cientificismo, o positivismo e o racionalismo através da tematização do papel do imaginário;
e a importância do movimento surrealista na arte. Segundo Eliade, o pensamento simbólico e
o recurso à imagem são próprios de todo ser humano, precedendo a linguagem e o raciocínio
discursivo. Todavia, a experiência humana primordial onde se insere a emergência do
simbólico e do imaginário, não pertence ao domínio do reino animal ou a um substrato
orgânico vitalista (conforme se acreditava no século XIX).
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Eliade afirma que Freud, ao formular a doutrina do inconsciente, devido ao viés de sua
formação positivista, reduziu as imagens inconscientes a elementos instintivos; e que Jung
superou o reducionismo da psicanálise freudiana ao retomar a significação espiritual da
imagem. O ponto crucial da crítica é a modalidade de Freud conceituar o nexo entre a
sexualidade, núcleo central da psicanálise, e o imaginário.
Antes de mais nada, é incabível, segundo Eliade (1952/1991), reduzir a sexualidade
humana à pura vivência psíquica: "Freud, fascinado pela sua missão (...) não podia dar-se
conta de que a sexualidade nunca foi pura, pois em todo tempo e lugar ela é uma função
polivalente cujo valor primeiro e possivelmente supremo é a função cosmológica" (p. 18,
trad. nossa). Com efeito, investigando os significados da sexualidade em outros horizontes
culturais, vê-se que "fora do mundo moderno, a sexualidade em todo tempo e lugar é uma
hierofânia, sendo o ato sexual, algo integral e, portanto, podendo ser tomado inclusive como
meio de conhecimento" (idem). Desse modo, ao investigarmos a função da sexualidade, ao
longo do desenvolvimento humano e notadamente infantil, devemos considerar que "o
atrativo da criança para com a mãe e seu corolário, o complexo edípico, (...) devem ser
apresentados conforme sua natureza: enquanto Imagens" (idem). Pois o que está emjogo no
processo rotulado por Freud como complexo edípico é "a verdadeira imagem da Mãe e não
uma ou outra mãe específica, hic et nunc” (idem). Esta imagem é fundamental para o
desenvolvimento da pessoa, pois "é a imagem da Mãe que revela - e somente pode revelar a cada um, sua realidade e função ao mesmo tempo cosmológica, antropológica e
psicológica" (idem). Se, por um lado, "a atração pela mãe, interpretada no plano imediato e
concreto enquanto desejo de possuir a própria mãe, não significa nada mais do que diz", por
outro, se levamos em conta a possibilidade de tratar-se da Imagem da Mãe originaria, então,
o desejo de possuí-la, adquire múltiplos significados. Com efeito, trata-se do "desejo de
reencontrar a beatitude da Matéria vivente ainda não formada com todas suas possíveis
fraturas, o atrativo que a Matéria exerce sobre o Espírito, a nostalgia da unidade primordial e
o desejo de abolir os opostos, as polaridades" (1952/1991, p. 18). Evidentemente, há casos em
que "a psique fixa uma imagem num único plano de referência" e o símbolo da Mãe é
reduzido ao desejo incestuoso da própria mãe: "trata-se, porém, de um sinal de desequilíbrio
psíquico (...), é o sinal de uma crise psíquica" (idem).
Portanto, "as imagens, por sua mesma estrutura, são polivalentes" (Eliade, 1952/1991,
p. 18). De modo que, "traduzir as imagens em termos meramente factuais é uma operação
sem sentido: claro que as imagens englobam todas as referências ao concreto, assim como
foram evidenciadas por Freud, mas a realidade que elas buscam expressar não se esgota
nestas referências ao concreto" (idem). Reduzir uma imagem "apenas a um dos termos de
referência (...), significa aniquila-la enquanto instrumento de conhecimento" (p. 19).
Desse modo, a partir do questionamento acerca da apreensão da imagem segundo a
visão psicanalítica, Eliade (1952/1991) elabora uma critica mais ampla aos reducionismos de
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vária natureza que restringem a interpretação de certa imagem de modo unívoco e arbitrário.
A univocidade ocorre na medida em que é assinalada apenas uma dentre as múltiplas
dimensões próprias daquela imagem, ao passo de que esta possui um "feixe de significados"
(p. 19). Ainda segundo Eliade, ditos reducionismos são característicos da história recente da
cultura ocidental, tendo sido introduzidos pelas filosofias empiristas nos séculos XVII e XVIII
e reafirmados pelo positivismo no século XIX.
A posição de Eliade evidencia o fato de que as investigações acerca dos processos
imaginativos no âmbito da subjetividade, necessariamente devem tomar a imagem como
elemento essencial de seu domínio; mas que, ao mesmo tempo, devem cuidar para não
reduzir os significados deste fenômeno cultural ao âmbito conceitual, metodológico e
terminológico próprio da ciência psicológica.
Outros autores discutem as implicações metodológicas decorrentes da natureza
pluridimensional da imagem. Saxl (1957/2005), por exemplo, define a imagem como
"coagulo de ondas mnemônicas que devem ser gravadas e recuperadas em suas origens e ao
longo de seus percursos" (p. 10). Esta metáfora lhe sugere uma perspectiva metodológica:
"somente por este método (utilizando o estudo histórico como um sismógrafo ultra-sensível)
podemos ler uma imagem (...) apreendendo cada vibração interna e cada significação"
(idem).
A articulação entre imaginação e memória na perspectiva historiográfica
Uma proposta metodológica que nos parece significativa para abordar esta temática é
sugerida no âmbito da história cultural por Michel de Certeau (2000): segundo este autor, a
história dos conceitos (ou seja, do universo do pensável, numa determinada época histórica)
deve ser articulada com a história das práticas sociais em determinados recortes espaçotemporais. As articulações entre estes dois planos se transformam ao longo do tempo.
Segundo De Certeau (2000), deve-se também levar em conta a possibilidade de que, numa
mesma sociedade, aconteça uma pluralidade de desenvolvimentos heterogêneos mas
combinados, tendo-se assim uma "evolução pluridimensional" que permite conceber "estas
dimensões como articuladas e compensadas, obedecendo no entanto à lógicas próprias e a
diferentes ritmos de crescimento" (p. 127).
Consideremos o objeto de nossa investigação no âmbito do domínio da história dos
saberes psicológicos na cultura brasileira, sob a perspectiva indicada por De Certeau. Neste
âmbito, nossa escavação histórica visará apreender de modo integrado, no período entre o
fim do século XVI e meados dos séculos XVIII, tanto os processos de elaboração e
transmissão de conceitos acerca da imagem e das correlatas potências do dinamismo
psíquico, quanto as "práticas" (ou seja, das condutas e dos dispositivos utilizados para
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transformá-las) inerentes ao uso da imagem e à mobilização das potências psíquicas
correlatas.
Outra proposta interessante na abordagem dos conceitos de imagem e imaginação que
utilizaremos de modo complementar às dicas metodológicas de De Certeau, nos é oferecida
pelos recentes estudos históricos desenvolvidos sobre o tema da imagem e da memória por
Carruthers (2006). A pesquisadora inglesa, ao abordar de forma crítica o tema da
mnemotécnica, terreno de estudo histórico já explorado pelos trabalhos clássicos de Francis
Yates (1985), assinala a importância da arte da memória no que diz respeito aos processos
cognitivos em culturas orais e à relevância das articulações entre psicologia e retórica. O
campo das investigações de Carruthers abrange o treino da memória e das práticas retórica,
em universidades, mosteiros e cortes medievais. Carruthers (2006) afirma que a memória,
nestes contextos, não era utilizada, apenas, como meio persuasivo e sim de modo mais
amplo, em função da invenção e da construção do pensamento. Tece estas considerações com
base no significado etimológico da palavra latina inventio - uma das componentes
fundamentais da arte retórica - que assume o duplo significado de inventar e de inventariar,
recolher e ordenar a informação.
A abordagem proposta por Carruthers (2006) é possibilitada pela inclusão na análise
histórica de corpos documentais diversos dos manuais e textos de retórica (analisados por
Yates e pelos demais estudiosos do tema). Segundo a autora, as fontes conventuais e
monásticas, tais como regras e regimes, revelam um uso da retórica diferente do modo
próprio da oratória política ou religiosa, modo este que já fora amplamente investigado.
O uso da retórica destacado por Carruthers ocorre no campo da educação: se trata do
processo por ela denominado de ortopraxi, ou seja, a construção de uma experiência
disciplinada que permite ao usuário conhecer-se a si mesmo com base numa vivência
reconhecida como original e estruturante. As fontes analisadas foram elaboradas no período
medieval e antecedem, portanto, os "Exercícios espirituais" inacianos que formulados no
século XVI, propõem práticas similares, ao longo a Idade Moderna.
No que diz respeito ao uso das imagens e à decorrente mobilização da imaginação no
âmbito da ortopraxi, Carruthers (2006) destaca que a criação das imagens mentais não é
sugerida tanto pela imitação de objetos tidos como representativos da realidade, quanto pela
função cognitiva a ser desenvolvida. De fato, um elemento pontual é mais facilmente
localizável se pertencer a um conjunto (por exemplo, pode-se mais facilmente localizar uma
estrela numa figura de constelação, como o urso, o carro, o cruzeiro, etc..); ou se pertencer a
uma narrativa. Carruthes lembra que algo semelhante foi demonstrado, na psicologia
científica contemporânea, pelos experimentos de F.C. Bartlett (1886-1969) acerca dos
processos de memorização: a eficácia mnemônica das narrativas é aumentada quanto mais
forem afetivamente intensas e cognitivamente inusitadas. Assim, na tradição retórica
analisada por Carruthers, a construção das imagens obedece não a regras de conteúdo e sim
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a regras de forma: as imagens servem para compor relações e redes de relações úteis tendo
em vista a retenção, na memória, de conceitos importantes, e para auxiliar descobertas.
Podemos descrever as relações entre as imagens e os processos mnemônicos,
afirmando que uma específica configuração de imagens mentais propicia a memorização. As
formas e figuras dessas configurações pertencem a inventários sociais e mentais que
proporcionam mapas de orientação do pensamento e das condutas. A imagem é assim uma
espécie de veículo dos conteúdos da memória, sendo a imaginação utilizada para construir
estes mapas e para decifrar os percursos sugeridos.
Carruthers (2006) fornece como exemplo destes processos práticas muito freqüentes na
Idade Média e nos inícios da Idade Moderna: as peregrinações e as procissões. As
peregrinações para determinados lugares e as procissões de fieis seguindo imagens sagradas
nos andores não eram valorizadas tanto pela autenticidade histórica dos lugares e das
estátuas, quanto pelo fato de que estas práticas proporcionavam o reconhecimento de
imagens da memória. De modo que "a atividade física do deslocamento de um lugar para
outro, espelhava fielmente a atividade mental na qual se empenhavam os participantes da
procissão" (p. 68, trad. nossa). Neste sentido, a imagem era reconhecida não tanto pela
descoberta de seu significado e sim pela sua função. As imagens eram utilizadas como
suportes para o pensamento e inclusive sua forma estética e os apelos sensoriais e afetivos
por elas suscitados, deviam ser funcionais ao exercício do pensamento.
A concepção não mecanicista da memória implicada nestas práticas e as possibilidades
mnemônicas assim alcançadas proporcionam uma mais ampla compreensão do uso das
imagens mentais e das articulações entre os processos mentais da memória e da imaginação.
Com efeito, por um lado, a visualização do pensamento em esquemas organizados
compostos por imagens aproxima estes métodos a resultados importantes da psicologia
contemporânea, como os já citados experimentos de Bartlett. Por outro, esta concepção de
memória ativa (e não apenas repetitiva) que constrói esquemas e percursos de imagens para
organizar seus conteúdos, remete à memória coletiva, sendo esquemas e lugares, expressão
de fenômenos sociais e culturais influentes na construção desta arquitetura mental.
Os estudos de Carruthers mostram assim que os processos cognitivos e os métodos
para aprender a pensar, utilizados pelas culturas orais do Ocidente, pressupunham uma
articulação entre memória, imaginação, sensibilidade, afeto, pensamento e decisão. Nesta
articulação a memória tinha um papel ativo e a imagem ocupava um lugar específico não
tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma. Subentendia-se, portanto, uma diferente
concepção do dinamismo psíquico e do processo de conhecimento.
Se utilizarmos a abordagem proposta por Carruthers no estudo de práticas culturais e
religiosas difundidas no Brasil colonial, podemos reconhecer dinamismo análogo ao descrito
pela historiadora inglesa a partir das fontes medievais.
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Trata-se, nesse caso também, do emprego de uma maquina retórica visando transmitir
e ensinar certo tipo de elaboração da experiência a ser memorizada e reinventada. Sua
proposição é realizada em grande parte pelas congregações, irmandades e ordens religiosas
atuantes na sociedade colonial e lusitana que possivelmente apoiadas na memória coletiva
de vivências e matrizes culturais próprias de suas tradições específicas, elaboraram e
reinventaram estas práticas, acomodando-as ao contexto em que deviam ser efetivadas.
Nelas, a mobilização do dinamismo psíquico dos destinatários, visando promover neles certo
tipo de elaboração da experiência, parece ser orientada conforme a perspectiva da ortopraxi
descrita por Carruthers.
Os alicerces conceituais acerca de imagem e imaginação na cultura ocidental e brasileira
Tendo em vista nossa proposta de investigar o significado das imagens e da
imaginação na cultura brasileira da Idade Moderna, cabe compreender seja o universo do
pensável em que esses temas são abordados seja as práticas de seu uso assim como descritas
e interpretadas pelos documentos da época. No caso brasileiro, devemos ressaltar a forte
influência da tradição jesuítica que como já evidenciamos em pesquisas anteriores
(sobretudo, veja-se Massimi, 2005) considerava a imago como veiculo sensível, afetivo e
intencional, no âmbito de uma antropologia unitária de cunho aristotélico tomista
(Zanlonghi, 2002). Por vez esta tradição se põe como transmissora de um universo conceitual
mais antigo do qual vale assinalar algumas concepções que permaneceram numa longa
duração, e ainda vigoram no universo cultural da Idade Moderna.
Do universo cultural da filosofia grega, destacamos, pela sua influência no contexto
dos saberes da Companhia de Jesus, transmitidos no Brasil da Idade Moderna, a visão da
psicologia filosófica aristotélica (Aristóteles, século IV aC./2005): nesta, o funcionamento da
imaginação ocorre no âmbito do dinamismo psíquico, que envolve os cinco sentidos
externos, mas também os sentidos internos (a imaginação, a memória, a potência cogitativa, o
senso comum). Os dados obtidos pelos sentidos externos, são re-apresentados interiormente
pelos sentidos internos e a seguir atingem e movem os afetos, o entendimento e a vontade. A
imaginação ocupa um lugar de mediação entre a percepção sensível e o pensamento, sendo
sua atuação determinada pela vontade. Pode haver imaginação de algo sem percepção,
como, por exemplo, nos sonhos, quando as coisas nos aparecem sem que as vejamos pelos
olhos: "é possível que produzamos algo diante dos nossos olhos, tal como aqueles que,
apoiando-se na memória produzem imagens" (p. 110). Por este motivo, a percepção sensível
é sempre fidedigna, ao passo de que a imaginação pode ser falsa. Na concepção do
dinamismo psíquico, Aristóteles destaca as importantes relações entre memória e
imaginação: à pergunta "como é possível recordar o que não está presente", responde que "a
impressão produzida graças à sensação, na alma e na parte do corpo implicada com a
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sensação, é semelhante a um desenho, inscrito na memória. De fato o movimento produz no
espírito quase que um traço de sensação" (Aristóteles, século IV a.C/1993, p. 69, trad. nossa).
Exerce notável influência nos saberes da tradição ocidental medieval e moderna
também a concepção de imaginação e imagem formulada por Agostinho de Hípona (354430), que em várias obras filosóficas e teológicas aborda a questão do conhecimento humano
e o tema da imagem nesta perspectiva. Seu ponto de partida é a investigação acerca do
processo de conhecimento, não somente das pessoas cultas e letradas, como também das
pessoas analfabetas. Para tanto, Agostinho analisa o dinamismo psíquico pelo qual o homem
conhece. Em "O Mestre" (389/1985), ele procura responder à questão afirmando que cada
homem retém em sua memória as imagens das coisas experimentadas pelos sentidos e
contempladas pelo espírito, de modo que, ao ouvir as palavras, pode reconhecer as coisas
referidas, por meio das imagens que traz consigo. Por isto, nós podemos conhecer lendo os
textos escritos assim como também através da vista de uma imagem: "trazemos assim essas
imagens nos recessos da memória, como uma espécie de ensinamentos das coisas
anteriormente sensoriadas, e contemplando-as no espírito, em boa consciência não mentimos
quando falamos". (389/1985, p. 102). É este o motivo pelo qual podemos ter algum tipo de
referência cognitiva em nós acerca de algo não diretamente experimentado, mas que é de
algum modo nosso e pode ser partilhado com os outros.
A imagem mobiliza a potência psíquica da memória: por exemplo, ao olharmos uma
imagem, reconhecemos que representa um dado acontecimento, pelo fato da referida
imagem estar associada a um conteúdo já armazenado na memória. Na obra "A Trindade"
(422/1995), Agostinho formula uma teoria unitária do psiquismo e do sujeito pessoal onde as
potências (memória, afeto, entendimento) funcionam de modo conjunto: nela, a eficácia da
imagem no dinamismo psíquico é novamente associada à memória: "o que representa para o
sentido corporal algum objeto localizado, representa para o olhar da alma a imagem de um
corpo presente na memória" (p. 346). No livro décimo primeiro do tratado, Agostinho
aborda também o papel da memória, da consciência e da vontade, na formação da imagem.
Afirma que há semelhança entre a imagem conservada na memória e a que se forma "no
olhar interior" do sujeito (ou seja, na consciência que o sujeito tem do que ele está
experimentando). Se, porém, a atenção do sujeito se retirar daquela imagem, esta não
permanecerá. Por isto, é decisivo o papel da vontade: esta "daqui para ali leva e traz o olhar
da alma para informá-lo e o ligar ao objeto" (p. 345). No caso da vontade se concentrar toda
numa determinada imagem interior, "será encontrada tal semelhança entre a figura corporal
impressa na memória com a expressão da lembrança, que nem a própria razão conseguirá
discernir se o que vê é um corpo extrínseco, ou se é o pensamento formado em seu interior"
(idem). Agostinho relata casos de "pessoas que, seduzidas ou atemorizadas perante uma
representação por demais viva de coisas visíveis, ergueram exclamações repentinamente,
como se realmente participassem dessas ações ou se com elas sofressem" (idem). O mesmo
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vale para as imagens oníricas, e nos casos em que o sujeito imprima no "olhar da alma"
diversas imagens de objetos sensíveis, tendo a ilusão de perceber realmente. Tais
"impressões imaginativas" não se produzem somente "quando a alma tem um desejo forte e
fixa o olhar nelas", mas também pelo medo que "coage a se ocupar delas, embora sem o
desejar" (Agostinho, 422/1995, p. 346). De modo que, "quanto mais forte for o medo ou o
desejo, tanto mais atento é o olhar". Desse modo, Agostinho descreve o percurso psicológico
e somático pelo qual a imagem adquire eficácia: esta age no nível anímico dos sentidos, da
memória, dos afetos e da vontade, mas também pela mediação corporal.
Para Agostinho (422/1995), a memória é o lugar fundamental do "homem interior", ou
seja, da consciência de si mesmo: assim podemos conhecer a nossa experiência psíquica
somente através da memória. A partir do material contido na memória, a imaginação pode
construir imagens infinitas, conforme a vontade dirigir a imaginação: "Por exemplo, lembrome e apenas um sol, porque apenas vi um, como de fato só existe um. Mas, se quiser, posso
imaginar, ser informado pela memória que me faz recordar (...). E assim dele me lembro
como o vi, mas imagino-o como quero". (p. 356). Nesta relação entre memória, imaginação e
vontade, pode surgir a possibilidade o engano: "como essas formas dos objetos são corporais
e sensíveis, a alma às vezes se engana ao pensar que elas são exteriormente como julga e
pensa em seu interior, (...) não porque devido à infidelidade de tal recordação, mas à
mutabilidade da imaginação" (idem).
Agostinho (422/1995) aborda também o tema da influência da palavra ouvida sobre a
imaginação e a memória e descreve em pormenores o dinamismo desta articulação. Diante
de algo que ouço, "o que me represento são as imagens dos corpos que o narrador quer
significar com suas palavras e sons. Ora, penso nessas imagens, não recordando, mas
ouvindo". Todavia, se observarmos mais atentamente, nesse caso também intervém a
potência da memória: "pois eu não poderia entender o narrador e não me teria lembrado de
cada uma de suas frases" se não houver correspondência com "alguma recordação genérica
guardada por ela. Por exemplo, se alguém me conta que um monte foi desmatado e está
plantado de oliveiras, estará narrando algo sobre o que me lembro a respeito de imagens de
montes, florestas e oliveiras". Por isto, sempre recorremos à memória, "para aí encontrar o
modo e a medida de todas as formas que se representa com o pensamento. Ninguém pode
pensar em um a cor ou forma corpórea que nunca viu; num som que nunca ouviu; num
sabor que nunca provou; nem em aroma que nunca aspirou; nem contato corporal que nunca
sentiu". (pp. 357-58).
Outra doutrina sobre a imagem e a imaginação que exerceu grande influência na
cultura ocidental e brasileira, é a que Tomás de Aquino (1225-1274) formula na "Suma
Teológica" (1265-73/2001) e no tratado "Questões discutidas sobre a verdade" (126164/2000): ao elaborar uma teoria do conhecimento fundada na doutrina aristotélica, segundo
a qual todo o conhecimento racional do homem se baseia na alma sensorial, retoma a idéia
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aristotélica de que a imaginação teria um papel intermediário entre sensação e cognição. Na
parte primeira da "Suma", Tomás descreve o papel do dinamismo psíquico no processo de
conhecimento: em primeiro lugar os sentidos externos e depois os sentidos internos; em
terceiro lugar, aborda o estudo das potências intelectivas, ou seja, da razão, e por fim discute
se o conhecimento intelectual pode ser adquirido a partir das coisas sensíveis. Coloca-se aqui
a função mediadora de imagens, cenas, dramatizações, metáforas, bem como da palavra: em
suma, do uso de estímulos sensíveis para desencadear o processo de conhecimento. Ao
discutir a apreensão de conceitos, inclusive no âmbito da teologia, Tomás afirma que é
conveniente "apresentar uma verdade mediante imagens" usando metáforas, por ser
"natural ao homem elevar-se ao inteligível pelo sensível, porque todo o nosso conhecimento
se origina a partir dos sentidos" (p. 152).
Nas "Questões discutidas sobre a verdade" (1261-64/2000), Tomás buscando
responder à pergunta se exista falsidade nos sentidos, delineia assim o processo de
conhecimento:
o nosso conhecimento, que parte das coisas, segue essa ordem: principia nos
sentidos e completa-se na inteligência, de forma que os sentidos corporais se
situam de certa maneira a meio caminho entre as coisas e a inteligência.
Comparados às coisas, são como que algo de espiritual-intelectual;
comparados ao conhecimento espiritual, são como que coisas" (p. 121-122).
Acerca da apreensão por parte dos sentidos, Tomás (1261-64/2000) afirma que
existe certa força apreensiva, que apreende a imagem sensível das coisas
como um sentido criado especialmente para isto, quando a coisa sensível
está presente. Existe também uma outra força, que apreende a imagem
sensível das coisas, quando estas estão ausentes: tal é a imaginação" (p. 124).
E ao definir as funções da percepção e da imaginação coloca que
os sentidos apreendem sempre a coisa como é na realidade, a não ser que
haja algum impedimento no órgão ou na transmissão. Ao contrário, a
imaginação via de regra apreende a coisa diferente do que é, porquanto
apreende a coisa como presente, estando ela ausente (Tomás de Aquino,
1261-64/2000, p. 124).
Do universo do pensável ao universo das práticas
A transmissão do pensamento de Agostinho e de Tomás de Aquino na cultura
brasileira ocorreu pela mediação dos filósofos da Companhia de Jesus, especialmente os do
Colégio das Artes de Coimbra (Góis, 1602). No fim do século XVI estes interpretes modernos
da teoria aristotélico-tomista afirmam que o homem pode conhecer somente a partir da
mediação do corpo: os dados sensíveis são obtidos pelos sentidos externos; sendo, por sua
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vez, processados pelos sentidos internos (imaginação, potência cogitativa, memória, senso
comum): o resultado é chamado de "fantasma". A potência cogitativa é ratio particularis, por
manifestar no sensível, alguns elementos que remetem à essência (universal). O ato de
pensar requer a presença de imagens depositadas na memória, onde elas repousam prontas
para despertar novamente diante da solicitação da imaginação. A vontade pressupõe o
conhecimento e depende também do apetite sensitivo o qual, por sua vez, é orientado pela
imaginação. De modo que, em virtude da unidade alma-corpo, a esfera pré-racional dos
sentidos externos e internos, dos apetites e das paixões interfere profundamente, seja no
conhecimento, seja no livre arbítrio. A vontade, por sua vez, pode também agir sobre os
apetites, para orientá-los e discipliná-los, tratando-os como "cives" da alma e não como
servos, sendo submetidos "politicamente" e não de maneira "despótica". Este caminho para
realizar um governo político da alma passa através dos sentidos internos, os quais operam a
mediação entre o intelecto e vontade (Zanlonghi, 2002).
O destaque acerca da influência da vontade no dinamismo da imaginação é derivado
também do pensamento de Agostinho, que é também significativa fonte inspiradora da
filosofia jesuítica. A transmissão da concepção de Agostinho na Modernidade ocorreu dentre
outros pela mediação da vertente filosófica dos pensadores franciscanos. Dentre eles
destacamos frei Boaventura (1221-1274), autor do "Itinerario mentis in Deum" (1259) teólogo e
filósofo da Ordem dos Menores: para ele, o percurso do conhecimento de Deus é estruturado
em degraus onde todos os níveis do dinamismo psíquico e espiritual humano são
progressivamente envolvidos e mobilizados pela relação com o mundo. O mundo sensível é
por ele considerado como "um espelho pelo qual chegamos a Deus criador" (1259/1983, p.
48).
Estas concepções filosóficas e teológicas abrem caminho às práticas em que o recurso
da imagem é utilizado enquanto veiculo que leva do visível ao invisível. A importância
destas práticas no âmbito da tradição cultural do catolicismo medieval e moderno é
amplamente documentada pelas pesquisas de Bolzoni (2002). Ao pesquisar a pregação
popular, a autora descobre uma "estrutura retórica recorrente" dotada de uma "versão
visual", gerando-se assim um domínio onde há uma correspondência precisa entre palavras
e imagens. Esta estrutura retórica tem sede na mente tomando forma através de vários
instrumentos, colocando-se na fronteira entre palavra e imagem, visível e invisível, leitura e
escrita, fórum individual e público, didática e mística; criam-se assim vias de comunicação e
modalidades de tradução e reconversão entre diferentes níveis da realidade. Bolzoni
descreve magistralmente, o procedimento utilizado para a criação de imagens eficazes para
construir metáforas, organizado em três fases: em primeiro lugar, evidencia-se um detalhe
sensível, fixando-se a atenção sobre ele; depois, transforma-se este detalhe sensível, pelo uso
da analogia, numa imagem espiritual; por fim, carrega-se tal imagem de eficácia operacional,
ou seja, de sentidos morais que influenciam o comportamento. Desse modo "a imagem
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inicialmente capaz de falar aos olhos do corpo, torna-se imagem capaz de falar também aos
olhos da alma" (p. 58, trad. nossa) Trata-se antes de mais nada de agir sobre as três
faculdades da alma: intelecto, memória e vontade, sendo esta ação realizada pelas imagens
sensíveis, ponto de partida necessário para alcançar conceitos mais abstratos:
Estas imagens são as mediadoras entre mundo exterior e interior: por isto,
torna-se necessário controla-las, modifica-las e aumentar sua eficácia. (....) A
intenção é a de moldar os vastos espaços da alma, preenchendo todos os
"lugares" com imagens afetivamente eficazes, tais que sejam duráveis na
memória, e que falem ao intelecto através do jogo dos sentidos alegóricos
(Bolzoni, 2002, p. 57).
Estes sentidos alegóricos, carregados pelas diversas componentes da imagem (matéria,
cor, forma) sugerem comportamentos morais correspondentes: "a memória proporciona a
mediação entre o intelecto que sugere as significações e a vontade, a prática moral". (Bolzoni,
2002, p. 67).
Huizinga (1919/1995) observa que a cultura da Idade Moderna é marcada pela
tendência de que o pensamento se solidifique e expresse em "figuras", por uma "vontade
desenfreada de dar forma figurativa a todas as coisas sagradas, de conferir uma forma a cada
idéia de caráter religioso, de modo que essa se imprima no cérebro através de uma imagem
clara e precisa" (p. 205, trad. nossa).
Nos inícios da Modernidade, esta forma de pensamento inspira práticas de utilização
da imagem para desencadear processos de conhecimento com ênfase na potência
imaginativa. Trata-se de: imagens mentais e verbais (metáforas), pinturas e estátuas;
emblemas e empresas.
Um exemplo muito significativo do recurso à imagem em âmbito desta última tradição
e de grande relevância para a cultura brasileira é oferecido pelos "Exercícios espirituais" de
Loyola (1542/1982), sobretudo na proposta do método contemplativo da compositio loci.
Neste âmbito, destacamos o acento acerca da composição visual (n. 82, 91,103,112,151, 232,
92, 115,116) e da vista pela imaginação (65, 66,91). Inácio retoma alguns aspectos da cultura
tardo medieval, acima assinalados, para elaborar uma vivência espiritual modelar, onde as
imagens assumem a função de instrumentos de elevação do visível e terreno para o invisível
e espiritual (Bergamo, 1991).
Inácio considera a imagem como sendo eficaz pela sua ação na subjetividade da
pessoa, especialmente na memória, de modo a facilitar a meditação. Usa para isto imagens
narrativas (exemplo, a da viagem de Maria e José que fogem do Egito), mas também imagens
simbólicas.
Inácio (1542/1982) descreve o método da compositio loci, especialmente no primeiro
prelúdio do primeiro exercício, onde alerta acerca de duas maneiras diferentes para realizar
uma construção visual: distingue entre a res corporea (o tema visível), composta por imagens
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de tipo narrativo, e a res incorporea (tema invisível), construída por conceitos e argumentos
representáveis somente pelo modo simbólico. Em primeiro lugar, deve-se "compor o
ambiente imaginando-o de modo visível", e neste caso "a composição consistirá em ver pela
vista da imaginação o lugar material onde se encontra aquele que quero contemplar. Digo
um local material, como seria, por exemplo, um tempo ou um monte (...) - segundo a cena
que quero contemplar" (p. 25, n. 114). Já na contemplação, ou meditação de um tema
invisível, "a composição consistirá em ver pela vista da imaginação" (idem). Tratando-se de
argumentos que se referem a uma dimensão puramente espiritual (pecado, morte, paraíso,
amor de Deus), a imagem utilizada será simbólica, ou alegórica. Neste caso, as imagens
poderiam ser retiradas dos livros de Emblemas e do material didático inspirado neste gênero
muito utilizado no ensino dos Colégios da Companhia.
Com efeito, na Idade Moderna, a retórica introduz o uso dos emblemas e das empresas
no universo cultural do ocidente: tratava-se de dois gêneros alegóricos que utilizavam seja a
imagem seja o texto escrito. Acerca da empresa e do emblema, o pensador jesuíta Emanuele
Tesauro escreve (Veneza, 1678/1965): "a empresa (...) fundamentada em metáfora de
proporção, pela forma de argumento poético de semelhança, vem a significar um
pensamento particular e heróico", devendo ser "ser acompanhada por uma frase aguda,
breve". Ao invés, "por emblema entendemos um símbolo popular, composto por figura e
palavras, que significa pela maneira do argumento, algum documento pertencente à vida
humana". Assim, o emblema é "exposto por decoração nas salas, nas academias, nos
aparatos, ou nos livros de imagens e explicações, destinados ao público ensino do povo" (p.
455, trad. nossa). Ambas, são "metáforas simbólicas e por isso cada uma têm um significante
sensível e um significante inteligível, e mostrando uma coisa, acenam para outra" (idem). A
origem do emblema remonta aos hieroglíficos egípcios redescobertos no Renascimento pelo
achado de um manuscrito grego (Hieroglyphica), significando a possibilidade de exemplificar
de modo figurado o sentido alegórico das idéias.
A suma destas imagens alegóricas encontra-se na obra de Andrea Alciati (1492-1550),
"Emblemata", (1531/1577) - protótipo absoluto destas produções. O texto foi aumentado e
reeditado muitas vezes. O objetivo do texto nas palavras o autor, é o de servir para "horas
festivas, decorando roupas e chapéus e para que os interessados saibam escrever com
linguagens secretas" (p. 6, trad. nossa). A empresa na Idade Média era uma figura simbólica
que ornava as vestes ou as armas dos cavaleiros, sempre acompanhada por uma frase
alegórica; e na Idade Moderna assume um significado específico por ser destinado a pessoas
específicas ou a uma realidade precisa, sendo uma representação simbólica de um propósito
ou de uma linha de conduta por meio de uma palavra e de uma figura que se interpretam
uma a outra. O texto de Picinelli Mondo simbólico (Milão, 1653) é uma espécie de dicionário
das empresas.
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No século XVI, emblema e empresa começam a assumir um significado explicitamente
religioso, ligando-se assim à tradição da imaginética simbólica cristã, destinada, sobretudo a
um público culto. Nos colégios da Companhia de Jesus, a composição dos emblemas era um
dos exercícios didáticos propostos aos estudantes do curso de retórica; vários professores de
retórica e de humanidades publicaram textos de emblemas, seguindo a tradição clássica, mas
com matriz cristã, operando assim uma sorte de cristianização da tradição da emblemática
clássica1. Além do mais, em diversas Províncias, os jesuítas publicaram textos ilustrados por
diversas imagens alegóricas ou simbólicas, tendo por objetivo auxiliar a meditação
individual e nela o trabalho da compositio loci e tendo por temas vários argumentos religiosos.
Dentre outros, destacamos o "Imago Primi Saeculi" (1640/2004) produzido no colégio de
jesuítas de Anversa, na ocasião do centenário da fundação da Companhia e publicado por
Balthasar Moretus.
Na pregação, o recurso à imagem mental é viabilizado pelo uso das metáforas. No
século XVII, uma conceituação muito precisa do significado e do uso das metáforas encontrase na obra do já citado Tesauro (especialmente, na obra "Cannochiale aristotélico", 1670). Para
este pensador, a metáfora pode ser definida come uma espécie de luneta aristotélica (por ter
sido esta expressão utilizada por Aristóteles), cuja função é a de pôr os objetos de baixo dos
olhos para bem observa-los. Ela torna a linguagem aguda, de modo análogo ao efeito que a
luneta produz na pupila. Desse modo, a metáfora penetra e investiga as noções mais
abstrusas para acopla-las de modo genial, tendo como resultado uma dilatação do campo
semântico ordinário, "parecendo à mente de quem ouve, ver num só vocábulo, um teatro
pleno de maravilhas" (citado em Jori, 1998, p. 156; trad. nossa).
As regras que modelam o recurso à imagem na pregação são ditadas pelos manuais de
retórica sagrada. Paolo Aresi, um dos representantes mais significativos da arte retórica
inspirada ao Concílio de Trento, em seu tratado Arte di predicar bene (1627, em Ardissino,
2001) descreve o mecanismo psicológico do conhecimento por imagens, capazes de
representar os objetos como se fossem presentes, de modo tal que as potências anímicas se
1
Na Ratio studiorum elaborada por Giacomo de Ledesma, na primeira redação cujo título era De ratione et ordine
studiorum Collegi Romani de 1564-56, está escrito acerca das atividades públicas ao longo do ano acadêmico:
"podem-se expor vários gêneros de composições como os enigmas pintados com elegância acompanhados por
poesias e quem os adivinha vence. Também epigramas, epístolas, orações, traduções, emblemas e tábuas acerca
de algum autor, ou as figuras incisas e ordenadas destes argumentos acompanhadas poesias". (cit. p. 31 em
Lukács, Monumenta Paedagogica II, p. 552, Roma, 1986). Portanto, as imagens são consideradas juntamente com as
composições literárias. Na Ratio studiorum de 1586, onde discute-se acerca das composições literárias dos alunos,
afirma-se que estas composições e as imagens emblemáticas podem ser penduradas no vestíbulo ou no refeitório
do colégio, mas o recurso à imagem é justificado apenas em termos de sua estreita conexão com a parte escrita:
"ela é assim esvaziada de qualquer significação estética e decorativa. A palavra escrita torna-se suporte da
imagem mesma e por isso somente nesta roupagem é aceita no âmbito da didática jesuítas"(p. 33). Na edição de
1591 da Ratio, o emblema é incluído definitivamente e nas Regras para os professores de retórica e de
humanidades, sugere-se que os alunos sejam ensinados também em fazer desenhos para ilustrar os emblemas. O
mesmo uso é recomendado nas Academias dos Colégios - sendo as Academias um grupo de estudantes
escolhidos entre todos os alunos que se reúnem sob a presidência de um dos jesuítas, com finalidade educativa.
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mobilizem como se estivessem diante dos próprios objetos (Ardissino, 1998). Para ele, a
imagem tem a capacidade de atrair a atenção e ao mesmo tempo é funcional à memória:
As coisas, quanto mais são sensíveis e aptas ao deleite dos olhos, tanto mais
podem mover o intelecto e permanecer impressas na memória. As imagens
nós nos representam as coisas como sensíveis, como presentes e vistas por
nós e por isso possuem a força de despertar a nossa memória (citado em
Ardissino, p. 22, trad. nossa).
Aresi afirma que a imagem oferece um suporte eficaz para o processo mnemônico:
Parece-me que esta seja a diferença entre o decorar com o apoio das imagens
e o decorar sem elas: é a mesma diferença que há entre andar a cavalo e
andar a pé; pois assim como quem anda a pé cansa com facilidade e percorre
um breve trato do caminho, pelo contrário, quem anda a cavalo quase não
percebe o cansaço e mais rapidamente chega aonde quer. Da mesma forma,
a memória sem a ajuda das coisas sensíveis representadas à imaginação,
lembra de algumas coisas; caminhando apenas com as suas forças,
facilmente cansa e para no caminho, pois não consegue lembrar-se mais.
Todavia, utilizando-se do recurso das imagens, quase não percebe o cansaço
e levada pela imagem realiza a viagem até ao destino, felizmente (citado em
Ardissino, 1998, p. 23, trad. nossa).
Reafirmando os objetivos da retórica sacra estabelecidos pela tradição (docere, delectare e
movere) Aresi evidencia a importância de que, pelo sermão, o pregador agia sobre todas as
potências do dinamismo humano: "considerem-se quais sejam as coisas que induzem deleite
ao intelecto, à vontade, ao apetite sensitivo e aos sentidos externos, pois discorrendo destas
coisas o pregador estimulará o prazer nos ouvintes" (citado em Ardissino, 1998, p. 67).
Assim, a linguagem metafórica representa as coisas de modo tal que "pareça de ver a coisa
presente diante dos olhos - mais do que de ouvir - mesmo que se trate de algo do passado"
(idem, p. 112). Pois o sentido da vista é o principal órgão cognitivo: através dele, o mundo
exterior é representado ao intelecto e à imaginação.
A disputa entre católicos e reformados acerca da arte sacra potencializa a atenção à
imagem em âmbito católico. A polêmica verte acerca da representação de Cristo, ponto de
encontro entre humano e divino: segundo os protestantes, a natureza do Redentor não
poderia ser representada; segundo os católicos, ao contrário, sendo Cristo não dividido em
duas naturezas e sim união hipostática (pessoa), a visão de Sua imagem pintada é útil para
que o fiel possa relacionar-se também com a Sua Pessoa (Scavizzi, 1981).
A grande força de persuasão atribuída pela reforma católica à pintura e ao uso da
imagem, é documentada pelas diretrizes fornecidas pelos teólogos do Concílio de Trento e
pelos textos normativos que possibilitaram a aplicação de ditas orientações no Brasil,
especialmente as "Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia" (1707/2010),
promulgadas pelo Arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro da Vide.
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Merece destaque devido à sua influência inclusive na redação das "Constituições" da
Bahia, o livro do cardeal Gabriele Paleotti ("Discorso intorno alle immagini sacre e profane",
1582/2002). O livro afirma a importância das imagens baseado na tese de que essas penetram
o ânimo dos fieis com maior eficácia do que as palavras, induzindo-os a crer nas verdades
não demonstrá veis através da razão, pelo apelo às experiências visuais.
Paleotti, ao considerar o valor universal da imagem, apóia-se na doutrina tomista e
afirma que, em primeiro lugar, a imagem deve produzir prazer e a experiência do prazer
deve estar associada à beleza da imagem. O prazer que experimentamos diante da imagem
possui três níveis: o primeiro é o prazer sensorial; o segundo é o prazer racional; e o terceiro
é o prazer espiritual. Ao se referir ao prazer sensorial, Paleotti (1582/2002) afirma que
quanto aos sentidos, (...) a vista recebe um prazer enorme e uma sensação
maravilhosa pela contemplação das pinturas, pela variedade das cores, pelas
sombras, pelas figuras, pelas decorações e por todas as coisas que são
representadas, como montanhas, rios, jardins, cidades e outras coisas mais"
(p. 72, trad. nossa).
Quanto ao "prazer da razão", "além do gosto específico que cada um pode
experimentar conforme a qualidade das coisas representadas" há "um aspecto
universalmente reconhecido" (Paleotti, 1582/2002, p. 72), pois, o que acontece, no nível da
razão, quando vemos uma coisa bonita, é que queremos também aprender com ela, imitá-la.
Pode-se então reconhecer que a imitação é parte do processo de conhecimento e consiste no
fato de "saber aprender as coisas e depois saber transformar-se nelas" (idem). Desse modo,
diante de uma pintura aprendemos por meio dela, ao ponto de poder nos transformar, de
alguma forma, no que ela representa. Paleotti coloca um terceiro nível de prazer que nasce
do conhecimento espiritual, não derivado apenas da apreensão da cena representada pela
pintura, mas também advindo de uma mais ampla atitude intelectual, ao considerar o
significado pleno da cena, que ele (e a tradição filosófica e teológica que ele representa)
chama de contemplação.
A experiência sensorial proporcionada pela imagem age em níveis anímicos mais
profundos. Paleotti (1582/2002), inspirado em Agostinho e Tomás, afirma que "as imagens
vêm em auxílio às três faculdades da nossa alma: intelecto, vontade e memória" (p. 65). Com
efeito, "as imagens instruem o nosso intelecto como se elas fossem livros populares, pois o
povo pode compreender, através da pintura, aquilo que os acadêmicos compreendem
através dos livros" (idem). A vista das imagens devotamente pintadas aumenta os desejos
positivos da vontade, suscitando o desejo de imitar o sujeito retratado. A memória permite
que a imagem se fixe: "a memória voluntária, é suscitada em nós pelo uso das imagens"
(idem). A ostentação repetida da imagem, ou de uma cena, favorece este dinamismo,
possibilitando uma aproximação maior ao modelo real por uma impressão mais intensa,
como se o espectador estivesse diante da presença real da personagem representada. O
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espectador é assim modificado em seu dinamismo psíquico pela presença da imagem ou da
cena e, através desta modificação, começa a identificar-se com o objeto representado pela
imagem ou a sentir-se parte da cena representada.
De fato,
ao admirarmos a imagem, formam-se em nós diversos pensamentos. O
primeiro é voltado para a matéria, que é avaliada pelo valor, pela riqueza,
pela cores e assim diante. O segundo pode ser voltado para a capacidade
técnica do desenho e a sua precisão. O terceiro é voltado para a imagem que
produz o efeito de representar uma coisa real e desse modo, não nos
referimos mais à obra como apenas matéria ou figura, mas à coisa
representada pela imagem mesma e a esta voltamos a nossa atenção. Neste
terceiro modo, nós olhamos as imagens não como simples figuras, mas como
atos de uma representação. (Paleotti, 1582/2002, pp. 96-97).
Olhar assim as imagens não é apenas ver simples figuras, mas é ato, conforme continua
o texto: "não se trata de dois atos distintos, que visam duas finalidades diferentes, mas de
um único ato voltado para um único objeto, para o mesmo objeto, mesmo que de uma
maneira que põe a diferença entre a imagem e o imaginado" (Paleotti, 1582/2002, p. 98).
Os efeitos produzidos pelas imagens não se restringem apenas ao nível do dinamismo
psíquico (impressões sensoriais, representações, afetos e movimentos da vontade), mas
também atingem o nível corpóreo passando pelo psíquico:
Conforme ao que afirmam filósofos e médicos, conforme os conceitos que
em nossa fantasia criam-se a partir das formas reais, em nós geram-se
impressões tão fortes que produzem alterações e sinais visíveis no próprio
corpo. Um exemplo deste fenômeno é fornecido pela experiência quotidiana
que nos mostra partes do corpo visivelmente marcadas por manchas e
figuras: vinho, frutas, membros de animais, e outros. (Paleotti, 1582/2002, p.
80).
Desse modo, tais concepções vêm validar práticas onde o uso das imagens visa atingir
determinados objetivos no individuo e na coletividade, práticas essas que como veremos a
seguir tiveram ampla difusão no Brasil da Idade Moderna.
Imagens e imaginação no Brasil da Idade Moderna
Na cultura brasileira colonial, são propostas várias práticas tendo o objetivo de
mobilizar os processos de imaginação, de conhecimento e de decisão dos destinatários,
através de recurso imaginéticos: a pregação e o uso freqüente das metáforas; as novelas
alegóricas ou textos literários de outro tipo utilizando alegorias, o uso de estátuas, emblemas
e alegorias em procissões, cerimônias religiosas e civis.
a) Na pregação
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No Brasil, a concepção acerca do significado da imagem e de sua elaboração através do
processo psíquico da imaginação, foi mediada pela pregação, especialmente jesuítica que ao
transmitir a visão teológica da realidade enquanto sinal do mistério divino, afirma o valor
sacramental da imagem.
Pecora (1994) assinala que o modelo sacramental está na origem da maneira de
conhecer a realidade de Antônio Vieira, figura exemplar que encarna no Brasil colonial o
catolicismo da Idade Moderna. O modo sacramental é "o movimento característico através
do qual o que é da ordem de Deus - e, portanto, por natureza transcendente e não
determinado (...), - toma espécies visíveis, existentes no mundo da determinação material, e
imprime nelas a substância única e pessoal do seu Ser" (p. 113). O sinal exige do homem o
uso da capacidade de livre arbítrio: pois deste depende que a leitura do real seja realizada
em chave correta. O fato de a realidade mundana expressar a incansável atividade divina
que a sustenta, implica que o sagrado se explicite inclusive através das imagens.
A leitura das imagens remete ao trabalho da imaginação, discutida por Vieira no
"Sermão do Demônio Mudo" de 1661: "Dentro da nossa fantasia, ou potência imaginativa,
que reside no cérebro, estão guardadas, como em tesouro secreto, as imagens de todas as
cousas que nos entraram pelos sentidos, a que os filósofos chamam espécies". (Vieira, 16791748/1993, Vol. I, p. 1173). A ordenação e composição das imagens devem ser regidas pelo
juízo, a saber, o entendimento guiado por um critério, uma diretriz; com efeito, se esta
operação da imaginação for entregue ao dinamismo dos apetites sensoriais, poderá ocorrer
que as imagens preservadas na memória se componham de maneira enganosa. Com efeito,
devemos nos precaver quanto ao "engano do amor-próprio", bem como ao engano do
"demônio mudo": este usa das imagens "ordenando-as, e compondo-as como mais lhe serve,
pinta e representa interiormente à nossa imaginação, o que mais pode inclinar, afeiçoar, e
atrair o apetite" (idem).
Daqui deriva a importância da educação da imaginação, da ortopraxi descrita por
Carruthers (2006) que abordamos na parte anterior deste trabalho. Na tradição jesuítica, os
"Exercícios" (1542/1982), sobretudo na proposta do método contemplativo da compositio loci
acima descrito, constituem-se num recurso exemplar deste método. Neste âmbito, outros
dispositivos também são elaborados, com a mesma finalidade de dirigir e educar a
imaginação de modo a elaborar as imagens segundo determinado percurso.
A importância e o significado da imagem, na oratória sagrada, são enfatizados por
outros pregadores, além de Vieira. Eusébio de Mattos (1629-1692), irmão do poeta Gregório,
destacado pregador jesuíta, o qual posteriormente passou à Ordem dos Carmelitas, exerceu
suas atividades principalmente na Bahia. Num sermão dedicado às exéquias dos membros
da Irmandade dos Passos, discute a função do "ver" uma imagem - objeto real ou ficção que
seja -, na medida em que esta pode ser considerada um "espelho": "Quem põe os olhos em
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hum espelho para o ver, não vê ao espelho somente, senão que se vê a si mesmo
representado no espelho" (1694, p. 171). Neste sentido, a imagem adquire importante função
como auxiliar para o conhecimento de si mesmo. Por outro lado, as palavras podem se tornar
imagens, ao retratar objetos ou situações dispostos pelo pregador para a contemplação dos
fieis. Por isto, Mattos, em outro sermão dedicado às dores de Maria, conclui a prática
dizendo querer aliviar os olhos de Maria pelo "retrato" de seu discurso: "visto que os
retratos servem de alivio nas ausências, aqui ofereço a vossos olhos este ensangüentado
retrato" (p. 225).
Determinadas figuras são mais recorrentes do que outras, nos sermões. Tópicos
freqüentes são as imagens referentes ao mundo físico (água, luzes e objetos luminosos); as
imagens referentes ao mundo sensorial (sons e objetos que estimulam o ouvido como
instrumentos musicais, e a vista como os livros); imagens referentes ao mundo animado
(animais e fisiologia do corpo) (Massimi, 2008).
O uso das estatuas também pode acompanhar a palavra pregada para dirigir a
imaginação dos ouvintes à contemplação do conteúdo doutrinário por ambas figurado. Um
documento que comprova este uso é o sermão pregado pelo jesuíta Antônio de Sá na Sé da
Bahia no ano de 1660, diante da estátua de Nossa Senhora das Maravilhas, em desagravo
pelo "desacato que se fez à Nossa Senhora e ao seu amado Filho". O desacato ao qual Sá se
refere é um gesto sacrílego realizado contra a referida imagem, por um grupo de indivíduos
que reduziram em pedaço a estatua do menino Jesus e quebraram os braços da Mãe que o
carregava. Nas palavras do pregador, a destruição da imagem identifica-se totalmente com a
destruição do corpo real de Cristo: no exórdio do sermão afirma: "em fim que chegarão a ver
os nossos olhos a Deus Menino esquartejado!" (Sá, 1744, p. 1). E amplifica o ocorrido
estabelecendo uma analogia entre o corpo de Jesus e o corpo do próprio homem, inclusive de
quem foi capaz de realizar o ato ofensivo: "E como, dizes, desfizeste com tuas mãos a
Imagem daquele Artífice Onipotente, que te fez à sua Imagem com as suas?" (idem). Ao
longo do sermão, estabelece também a analogia entre o corpo do Menino Deus e a própria
Igreja de Salvador: "Pois aonde está mais atropelada a autoridade eclesiástica que na Bahia?"
(p. 22). O que interessa para os efeitos de presente investigação é um dos argumentos
utilizados por Sá, retomando um passo bíblico (Zacarias, capítulo 3, versículo 9), que se
refere ao fato de que o Verbo divino comunicou-se a si mesmo na forma de uma pedra.
Diante da pergunta acerca de como seria possível ao Deus onisciente abaixar-se a assumir a
forma néscia de uma pedra, Sá responde que é porque "de tal modo se há de portar um seu
amor, sabendo, como se pudera portar ignorando" (Sá, 1744, p. 12). Ou seja, o rebaixamento
de Deus à ignorância de uma pedra, é expressão de Seu extremado Amor pelo homem. Desse
modo, a mesma pedra torna-se manifestação do Amor divino. Por isto, ultrajar a imagem
sagrada, em sua materialidade, significa recusar e destruir esta amorosa oferta que Deus faz
de si mesmo ao homem, e especialmente à comunidade cristã da Bahia. Aqui, vemos,
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Massimi, M. (2012). Imaginação e imagens: conceitos e práticas em tradições culturais da modernidade ocidental e do
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portanto, explicitado o sentido sacramental da imagem, estabelecido pela palavra do
pregador que por vez sustenta-se na palavra sagrada da Bíblia (Santos & Massimi, 2005).
b) Em procissões e festas
O recurso às imagens e à imaginação perpassa também o universo das práticas da
cultura brasileira colonial. O uso dos emblemas e alegorias nas festas é freqüente, conforme
evidenciado pelas narrativas: dentre elas é bem conhecida a do "Triunfo Eucarístico" evento
realizado em Outro Preto na ocasião do translado do Santíssimo Sacramento entre a Igreja do
Rosário e a Matriz do Pilar, reedificada em 1733. Neste evento, narrado pela crônica de
Simão Machado (1734/1967), coreografias, imagens, carros alegóricos, empresas e emblemas
são utilizados com profusão tendo em vista envolver a população de Vila Rica no significado
religioso e político da festa: o reconhecimento da participação de cada um ao grande corpo
místico e político da sociedade cristã da Colônia.
A procissão é aberta com uma dança de turcos e cristãos, em numero de trinta e dois
personagens, divididos em partes iguais e trajando uniformes militares estilizados,
representando a hierarquia das cortes, do imperador ao soldado, e proporcionando assim a
memória dos seculares conflitos entre cristãos e muçulmanos. Em seguida, dois carros
alegóricos acompanhados por músicos e dançarinos, trazem as figuras enigmáticas de uma
serpente, um cavaleiro e uma abobada; e na continuidade do cortejo, vão quatro figuras
personificando os quatro ventos, nomeados pelos quatro pontos cardeais, montadas em
cavalos ricamente ajaezados, e trajando vestimentas luxuosas e estilizadas, cada qual
tentando esboçar pelas cores dos adereços e gestos a "personalidade" dos ventos. Os ventos
apresentam-se pela seguinte ordem: Oeste; Sul; Norte e Leste. Após o desfile dos ventos
entram em cena duas figuras alegóricas, definidas na crônica como as mais majestosas de
toda a procissão: "era seu adorno vagaroso empenho da vista, continuada novidade dos
olhos, agitada esfera da riqueza, notável aparato da magnificência" (1734/1967, p. 207), uma
representando a Fama e a outra o Ouro Preto.
A imagem alegórica da Fama, vestia-se à trágica, provavelmente usando
uma máscara, o que lhe atribuía uma silhueta de mistério e severidade. Em
sua cabeça repousava um toucado de flores de diamantes e plumas brancas,
no peito, bordados, em ouro e pedrarias e um broche de diamantes e nas
costas possuía duas azas de penas brancas e folhas de ouro. Na mão
esquerda segurava uma haste de prata em forma de cruz e na mão direita
um estandarte pintado em uma face a Arca da Aliança na outra uma
custódia e a inscrição em letras de ouro; Eucharistia in Tranlatione vinctrix.
(Machado, em Ávila, 1734/1967, p. 215).
A parte do desfile que se segue é o cortejo dos sete planetas, incluindo-se sol e lua.
Apesar dos conhecimentos astronômicos dos séculos XVII e XVIII terem revelado que nem o
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Sol nem a Lua são planetas, na organização do cortejo optou-se por utilizar os conceitos da
astrologia e alquimia medievais, tendo em vista a função metafórica das figuras. Inclusive na
figuração dos planetas são evidenciados traços de personalidade, segundo padrões
representativos das influencias sociais e psicológicas por estes exercidas.
A representação simbólica da igreja matriz finaliza o desfile: a figura majestosa
montada num cavalo branco ajaezado de veludo azul com franjas de ouro, traz na cabeça
uma caraminhola azul bordada com flores e cordões de ouro e diamantes e um cocar de
plumas brancas, veste chamalote azul cravejado de jóias de diamantes e franjas de ouro. No
braço esquerdo, segura um escudo dourado com a pintura da igreja matriz e os seguintes
dizeres: Hac est domus Domini firmiter edificata; e na mão direita segura uma haste com um
estandarte. Num lado deste, está pintada Nossa Senhora do Pilar com a inscrição: Ego dilecto
meo e na outra face a custódia da Eucaristia com a inscrição: Et ad me conversio ejus. A
personificação da igreja matriz denota esta ser assunto de grande importância: ao estilizá-la
sob a forma humana, os organizadores da festa atribuem-lhe uma natureza viva e interativa,
de modo que a igreja extrapola sua condição intrínseca de templo para assumir personalidade
própria.
c) Em novelas alegóricas
Outro exemplo de recurso às imagens visando promover, e ao mesmo tempo orientar,
o dinamismo da imaginação é o da novela alegórica. Dentre elas, tomemos o caso da
"História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito" (1685), de autoria do jesuíta
baiano Alexandre de Gusmão (1629-1724). O texto inaugura no Brasil a introdução do gênero
da novela alegórica (Moises, 2004). Construído com base na alegoria do homem como
peregrino - lugar comum da tradição judaico-cristã e retomada na modernidade pela teologia
protestante através da obra de Bunyan (1678/2004) - o texto propõe-se a ser uma versão
católica da mesma história. A peregrinação é aqui colocada não apenas como sendo o
percurso interior da consciência humana que se abre a Deus conforme a leitura da teologia
reformada e sim como movimento pessoal norteado pelo posicionamento da liberdade
diante de relacionamentos, acontecimentos e encontros. A função do texto e de sua leitura é
para que nesta história, "quem quiser considera-la, devagar", veja "nela retratada a história
de sua vida, ou a que vive, ou a que devia viver; e achará nela utilíssimo documento para se
salvar" (Gusmão, 1685, p. 1).
O rumo do percurso é decidido por posicionamentos realizados em cada etapa, pelas
duas personagens principais, cujos significativos nomes são: Predestinado e Precito. A
escolha destes nomes possivelmente é recurso semântico com significado teológico.
Predestinando significa aquele que está destinado de antemão a alguma coisa, quem Deus
destinou à glória eterna; eleito de Deus. Precito é o condenado, o réprobo, o maldito.
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Aparentemente, portanto, estes nomes evocam a teologia reformada da predestinação,
especialmente a interpretação calvinista do tema da liberdade e da graça na teologia de
Agostinho de Hipona. A ênfase dada por Agostinho ao fato de que a salvação do homem
demanda sempre a intervenção da graça divina foi lida e proposta por Calvino (1509-1564)
como a doutrina de que Deus predestina previa e absolutamente a humanidade, escolhendo
dentre os homens aqueles que irão salvar-se e aqueles que irão ser condenados. Retira assim
ao homem qualquer possibilidade de rejeitar ou aceitar livremente a graça. Portanto, a
novela de Gusmão pelo titulo escolhido a partir dos nomes de seus protagonistas, poderia
atrair leitores calvinistas, mas ao mesmo tempo desfazer ao longo da leitura os "erros" desta
perspectiva, recolocando a concepção católica do dinamismo da graça divina e da liberdade
humana. Desta forma, os dois protagonistas, na verdade, vão decidindo seu rumo ao longo
do percurso e em cada etapa. Trata-se de uma estratégia profundamente jesuítica de abordar
e debater a questão teológica e ao mesmo tempo transmitir aos leitores (e convence-los) sua
versão da discussão afirmada como a ortodoxa.
Os conceitos fundamentais da teologia católica são tematizados na novela através de
topos alegóricos: as seis cidades que o peregrino e seu irmão atravessam ao longo do
percurso que o leva ao destino final (podendo este ser ou Jerusalém, ou Babel) e que
organizam a estrutura do livro em seis partes; a composição da família de cada um dos
protagonistas: as esposas Razão e Própria vontade; e os filhos de ambos os casais: Bom
Desejo e Reta Intenção, de um lado; e Mau Desejo e Torta Intenção, de outro. Vales, colinas,
jardins, palácios, portas, animais, personagens com seus ofícios, trajes e características
psicossomáticas: são todos estes elementos que se fazem presentes na novela. São imagens
alegóricas utilizadas por Gusmão para construir sua narrativa mobilizando seus leitores para
que se empenhem no conhecimento verdadeiro de si anunciado como objetivo no prólogo.
Neste, Gusmão (1685) declara que a novela "vem a ser em Parábola a historia de todo aquele,
que seguindo os passos, que nesta vida leva, seguindo o caminho, que tomou, ou se salva, ou
se condena". Afirma ter optado por esta forma da narrativa "assim para mover a
curiosidade do leitor, como para imitar o estilo de Cristo nosso Mestre e Senhor, do qual diz
o Evangelista, que nunca jamais pregava ao povo senão debaixo de alguma parábola, como
que explicava a verdade de sua doutrina" (p. 6). A novela com suas imagens e figuras deve
servir ao leitor como um espelho para refletir sobre si mesmo (ver a si mesmo) em seu
movimento pessoal norteado pelo fim escolhido como sentido do próprio percurso
existencial: "no caminho e sucesso destes Peregrinos verá o leitor por onde se vai no Céu e
por onde se vai ao inferno". De modo que "será este livrinho como um roteiro de vida, ou
morte sempiterna, para que conforme a ele governe seus passos, e vendo não tenha escusa,
ao se perder" (idem).
A possibilidade de "governar seus passos", a saber, de ordenar suas condutas em
função de uma experiência modelar, que demanda ser conhecida e escolhida, à qual
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conformar a própria pessoa, depende da possibilidade de ver. O ver proporcionado pelas
imagens e pelos seus efeitos no dinamismo psíquico do destinatário, é parte de um percurso
de conhecimento (o desengano) que integra o trabalho da ordenação do homem ao seu
sentido último que o realiza.
Conclusão
Voltemos agora à proposta de Carruthers (2006) acerca do uso das imagens visando
tecer redes de relações úteis para reter na memória conceitos importantes e auxiliar
descobertas. Este parece o efeito pretendido seja pela composição do percurso imaginário da
peregrinação da novela de Gusmão, seja pelo percurso real da procissão alegórica do Triunfo
eucarístico, seja pelo percurso verbal do sermão. Em todos os casos, as imagens, verbais,
alegóricas, materiais que sejam, servem para auxiliar um processo de conhecimento onde
existe uma forte relação entre imagens e processos mnemônicos. Nestes percursos, a
específica configuração e a posição ocupada por cada imagem, permitem estimular os
sentidos, captar a atenção, suscitar a memorização, comover os afetos, solicitar a reflexão e a
decisão. Por sua vez, cada imagem pode ser decifrada pelos destinatários remetendo-se a
inventários sociais e mentais próprios de seu universo sociocultural de pertença; e estes
percursos funcionam quais mapas de orientação dos pensamentos e das condutas.
Em suma: o estudo da imagem e dos processos imaginativos no período da Idade
Moderna nos introduziu num mundo onde o universo do pensável e o universo das práticas
sociais eram profundamente enlaçados. Ao terminar este percurso, esperamos com ele ter
contribuído ao entendimento quanto à importância cultural e psicológica do uso das imagens
visando mobilizar a imaginação e as demais potências anímicas nos destinatários, no
contexto espaço temporal do Brasil colonial.
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Nota sobre autora
Marina Massimi é Professora Titular e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e
Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na
Cultura Luso-Brasileira. Contato: Departamento de Psicologia e Educação. Avenida
Bandeirantes, 3900, CEP 14040-901, Ribeirão Preto (SP), Brasil. E-mail:
[email protected]
Data de recebimento: 29/06/2011
Data de aceite: 26/09/2012
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Paese, V. H. L. & Holanda, A. F. (2012). O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai.
Memorandum,
23,
185-197.
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______________,
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O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai
The Meaning of God according to Jacob Levy Moreno in The Words of the Father
Vitor Hugo Lopes Paese
Adriano Furtado Holanda
Universidade Federal do Paraná
Brasil
Resumo
O artigo se refere a uma pesquisa de cunho epistemológico, que tem como objetivo
estudar o sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em seu livro As Palavras do Pai. São
discutidos seus argumentos sobre o sentido de Deus frente aos conceitos de
espontaneidade, de criatividade e de momento. Nas considerações finais, levanta-se a
possibilidade de Deus enquanto um elemento fundamental para a compreensão da visão
de mundo e a visão de homem no psicodrama de Moreno.
Palavras-chave: Deus; Jacob Levy Moreno; epistemologia; psicodrama; ética
Abstract
The article refers to an epistemological research which aims at studying the meaning of
God according to Jacob Levy Moreno in his book The Words of the Father. His arguments
regarding the meaning of the concept of God are discussed in face of the concepts of
spontaneity, creativity, and moment. In closing remarks, the possibility of God as a key
element for understanding the world and man views in psychodrama of Moreno is
raised.
Keywords: God; Jacob Levy Moreno; epistemology; psychodrama; ethics
Introdução
Este artigo tem por objetivo estudar a noção de Deus para J. L. Moreno, em seu livro As
Palavras do Pai, cuja versão utilizada é a tradução de 1992, para o português, da obra de 1941
publicada em inglês pela editora Beacon House de Nova York, pertencente ao próprio J. L.
Moreno. Esta edição americana é a tradução e a ampliação da obra de 1920, Das Testament des
Vaters (O Testamento do Pai) em alemão. Assim, o livro utilizado neste artigo, na versão em
português, torna-se relevante pois contém dois momentos históricos de sua confecção, 1920 e
1941, assim como, exclusivamente contém o prefácio de Zerka T. Moreno - esposa de J. L.
Moreno - para a edição brasileira, que esclarece o seguinte:
A versão inglesa era diferente em alguns aspectos em relação à versão
original alemã, na medida em que Moreno escreveu alguns dos seus
poemas-orações especificamente inspirados em sua vivência nos Estados
Unidos e uma grande parte do que ele tinha escrito originalmente foi
retirada (Z. T. Moreno, 1920/1992, p. 7).
A motivação para a escrita deste artigo deriva da hipótese de que uma epistemologia
psicodramática começa por um olhar para uma teologia implícita, associada a uma noção de
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Paese, V. H. L. & Holanda, A. F. (2012). O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai.
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Divindade psicodramática. Essa hipótese ganha corpo e pode ser sintetizada na seguinte
frase dita por Moreno, num breve relato seu, aos 85 anos de idade, dado - pouco antes de
morrer - a Pierre Weil quando da sua visita ao criador do psicodrama em 1974: "Passei a
vida procurando Deus e não o encontrei" (Moreno citado por Motta, 2008, p. 46).
Nosso trabalho é compreender, entre outras coisas, o peso desta frase de Moreno, visto
que a menção a Deus parece estar presente em grande parte, senão, em toda sua obra escrita,
como temos, por exemplo, em sua autobiografia, organizada no Brasil por Luis Cuchnir
(Moreno, 1997), onde encontramos a seguinte frase de Moreno:
Todas as minhas tentativas científicas no campo da psicoterapia tinham
fortes tendências religiosas por trás (...). Todas essas realizações e avanços
não se enganam quanto ao fracasso de concretizar o estabelecimento do PaiDeus para todas as pessoas como uma ligação de união entre elas (...). Em
nossa era, Deus não deveria estar apenas numa ou noutra igreja, mas em
todos os meios que ligam as pessoas umas às outras, em todas as telas de
TV, em todos os barcos, em todos os aviões, em todos os sonhos. Se Ele não
está, deveria estar. Ele deveria ser feito para ser. O final do mundo pode vir,
mas não o fim do Deus-Pai, enquanto houver coisas para criar (p. 155-157).
A justificativa para a relevância deste estudo se constitui pelo modo direto e enfático
pelo qual J. L. Moreno aborda a temática sobre Deus e Sua importância na construção de
toda a teoria e prática psicodramática (Moreno, 1920/1992; 1997). Já, na apresentação de seu
livro As Palavras do Pai (Moreno, 1920/1992, p. 9), J. L. Moreno faz referência ao significado
de Deus como uma concepção a ser explorada e compreendida em seus estudos. Tal
compreensão permeia a construção das ideias e da teoria psicodramática de modo profundo
e consistente: "Foi esse novo modelo de um Mestre Divino 'operacional' anunciado no The
words of the Father que se tornou minha escada para o sistema sociométrico" (Moreno, 1997,
p. 99).
Existem outros trabalhos já publicados que também abordam a temática de Deus e que
focam, em especial, as correlações com o existencialismo e a fenomenologia para
fundamentar e explicar a obra moreniana. Cabe aqui citá-los, tão somente: Martín (1978),
Naffah Neto (1979, 1980), Fonseca Filho (1980), Gonçalves (1988), Aguiar (1990), Almeida
(1988,1991), Blatner & Blatner (1996), Costa (2001) e Calderoni (2010), entre outros.
Há um livro, em especial, escrito por B. W. Nudel (1994) que devemos aqui apresentar
como sendo de grande relevância para o assunto que fala sobre as influências religiosas na
vida e obra de J. L. Moreno. Nudel (1994) destaca que seu trabalho é uma tentativa de
estabelecer uma ligação entre os princípios filosóficos morenianos e o hassidismo1, haja vista
que na presença de Moreno circularam pessoas tais como Chaim Kellmer, Martin Buber e
Guershom Scholem, judeus hassídicos.
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Hassidismo é uma vertente mística do judaísmo criada no século XVIII, no leste da Europa.
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Cabe aqui também salientar alguns elementos sobre o hassidismo. De acordo com
Nudel (1994), a origem judaico-sefaradim de Moreno remete ao povo judeu que migrou da
península Ibérica em direção à Turquia. Segundo Nudel (1994), o hassidismo surge enquanto
uma corrente dentro do judaísmo no ano de 1750 e tem como fundador Israel Ben Eliezer, o
Baal Shem Tov (o Bescht2). Dentre os preceitos básicos do hassidismo está a possibilidade de
transformar a vida num constante e perpétuo contato com a divindade, indo além dos
templos e dos ofícios sagrados. "Hassidismo significa piedade devota, devoção total a
serviço de Deus" (Nudel, 1994, p. 44), o que leva a um senso de totalidade na união com
Deus (Holanda, 1996). O Bescht saía das sinagogas e prega va junto à natureza, iniciando
assim o que chamou de "contato direto com a Criação" (Nudel, 1994, p. 44); pois não havia
mais separação entre o profano e o sagrado (Buber, 1966), "toda vida natural pode ser
santificada" (Holanda, 1996, p. 156). Além disso, "o Bescht introduziu uma forma de servir a
Deus através da alegria" (Nudel, 1994, p. 46), pois feliz é aquele que compartilha da essência
divina (Buber, 1966; Holanda, 1996).
As Palavras do Pai
Na apresentação de As Palavras do Pai, em 1941, Moreno explica suas inquietações e
pensamentos presentes à época em que escreveu a versão original de 1920. Uma de suas
primeiras indagações foi de cunho existencial: "Será que eu sou realmente, apenas e tão
somente, uma massa perecível, uma tão desesperançada existência, ou seria eu o centro de
toda a criação e da imensidão do cosmos?" (Moreno, 1920/1992, p. 10).
Moreno começou a se questionar sobre sua responsabilidade para consigo mesmo; se
essa responsabilidade também não seria para com todos os seus próximos e para com todos
os povos. "Será que todo o Universo está sob minha responsabilidade? Comecei a perceber
que não existem limites para a responsabilidade exceto para com o que nela há de inclusivo
de tudo que se move e que se transborda de vida" (Moreno, 1920/1992, p. 10, grifo no
original). Ele destaca que não há outra forma da responsabilidade existir, senão, existindo
esta para com o Todo. Moreno acrescenta ainda que a única forma de assumir esta
responsabilidade para com o Todo é, também, ter uma função criadora. "Eu devo ter estado
lá, no princípio, há bilhões de anos atrás e estarei lá, a bilhões de anos no futuro. 'Eu me criei,
logo, eu existo'" (Moreno, 1920/1992, p. 10).
Moreno (1920/1992) destaca que fez uma busca pelo entendimento e a compreensão de
Deus conforme sua função e momento histórico. Menciona que pensou então:
1. no Deus dos hebreus - "intangível" e nunca visto - um Deus que estava fora do
mundo deles, mas que sentiam importante e necessário para as suas vidas: um "Deus-Ele";
2
Bescht é apelido dado a Baal Shem Tov. É, segundo, Nudel (1994) a abreviatura de seu nome. O nome
verdadeiro do Bescht era Israel Ben Eliezer (Holanda, 1996).
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2. em outras formas de divindade inventadas pelo homem no decorrer dos séculos e dos
milênios, frente a grandes crises do desenvolvimento mundial: Cristo é quem traz um Deus
visível "na forma de uma aparência pessoal de um Deus-Tu, um Deus mais próximo, não
apenas de poder, mas com uma enorme sabedoria e inteligência, um Deus-de-amor, de
doçura e de recolhimento" (Moreno, 1920/1992, p.12).
Moreno (1920/1992) menciona que Deus não se transforma, mas que a concepção de
Deus criada pelo homem deve acompanhar a atualidade da vida humana, chegando a hora
de uma readequação do conceito de Deus. Assim, justifica Moreno (1920/1992):
Depois de tantas vezes traído, ele não é mais um Deus que vem de um Tu,
mas que vem de dentro de nós mesmos, através do Eu, através de Mim (...).
No Velho Testamento, Deus é Ele, no Novo Testamento, Deus é Tu, mas,
agora, há um novo Deus, uma nova voz da experiência, uma nova via de
comunicação com o Deus que vem do próprio Eu, através de Mim, através
de você, através de milhões de "Eus" (p. 10).
Deste modo, Moreno relata uma noção de Deus que se desenvolve historicamente e
que se adequa aos dias atuais. Passa de um Deus-cósmico, referente ao velho testamento, de
um Deus-de-amor, que inclui o Deus-cósmico, referente ao novo testamento, e vai para um
Deus "Eu", que traz o Deus-cósmico e o Deus-de-amor (Moreno, 1992).
Moreno entende o Universo como estando em constante transformação, tal qual é
Deus: "(...) como resultado de milhões e milhões de forças cósmicas ele está se
transformando a cada instante" (Moreno, 1992, p. 13). Ele destaca que somos todos
componentes destas forças cósmicas e que por isso fazemos parte do processo infinito de
criação, sendo este processo o elo de ligação entre todos, o elo da responsabilidade pela
criação infinita do Universo. A partir deste entendimento do Universo, Moreno passa a se
denominar "Pai", "Criador", responsável por toda criação, parte desta criação - o que o
coloca como "co-responsável" pelo universo e compreende assim que também é criador do
universo. Cria, assim, uma:
aliança operacional com o mundo (...). Então eu vi o mundo como um
gigantesco empreendimento com milhões e milhões de associados, vi mãos
invisíveis, mãos estendidas, uma querendo tocar a outra, todos sendo
capazes de, através da responsabilidade, tornarem-se deuses (Moreno, 1992,
p.14).
Moreno apresenta, em seu livro As Palavras do Pai uma inversão dos princípios
teológicos tradicionais. Destaca que Deus sempre é o mesmo, mas que o conceito de Deus se
modifica, assim como qualquer outro conceito. Destaca, como exemplo, que Brahma, Jeová
ou Cristo foram estágios de uma concepção de Deus. A menção a um Deus-Eu é, segundo
Moreno (1992), a expressão total e definitiva de Deus.
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Moreno relata um atributo importante desta noção de Deus, que é a sua "presença
instantânea". Aqui a criatividade é a forma mais intensa e presente de Deus. Não
desconsidera Seus (referindo-se a Deus) outros atributos: a onipotência, a infinita sabedoria,
a retidão, a caridade, mas enf atiza a criatividade, entendendo que esta, não recebeu a de vida
atenção por parte dos teólogos. A função de Criador é para Moreno o foco de estudo sobre
Deus. "O Universo é uma criação em contínuo desenvolvimento e cada novo indivíduo que
nasce cria, junto com Deus, o mundo que há de vir" (Moreno, 1920/1992, p. 22). Assim, há
nesta obra, segundo Moreno (1920/1992), um "esquema existencial" criado a partir da voz
do próprio Deus, onde a essência da nossa existência refere-se à fome por criar. Trata-se aqui
de uma corrente dinâmica de criatividade.
O seguinte argumento é dado por Moreno: "Como Deus é inseparável do Universo e o
Universo é inseparável de cada homem que vive nele, necessariamente cada homem é
inseparável de Deus (...). O princípio do Universo é a criatividade (...). Deus é pura
espontaneidade" (Moreno, 1920/1992, p. 24-29).
Moreno fala de um "atraso" sobre a concepção de Deus, um atraso teológico que
mantém todo um sistema de valores desatualizado de seu real momento. Destaca que uma
transformação revolucionária - se quiser atingir todo um sistema de valores - deve lidar
diretamente com um conceito principal, que é o conceito de Deus (Moreno, 1920/1992).
Nesta obra, Moreno explica os elementos básicos de sua teologia. Desta que é tão
somente a ciência da Divindade e que aborda Deus em si mesmo, sem religião alguma.
Moreno propõe uma filosofia da Divindade, onde Deus é igual para todas as religiões, para
todos os homens. Destaca que "cada organização quase individual, dos cristais às plantas, do
animal ao homem, do homem ao super-homem, tem uma experiência subjetiva especial do
mundo" (Moreno, 1920/1992, p. 135) e que uma filosofia dessa natureza não poderia ser
proposta, senão, pelo próprio Deus, que possui as características necessárias para contemplar
o Universo de uma só vez.
Ao se referir a uma frase escrita por Spinoza em seus Princípios de Filosofia Cartesiana,
Moreno (1920/1992) argumenta que tanto o homem quanto Deus existem de fato e são
necessários, visto que "quanto mais perfeito é um ser, mais necessário ele se torna". A
diferença entre Deus e o homem "está no grau de espontaneidade e criatividade que cada
um pode manifestar (...). Deus é o Ser portador de máxima espontaneidade e Ele é o Ser cuja
espontaneidade transformou-se totalmente em criatividade" (Moreno, 1920/1992, p. 136137). Assim, o lugar no qual Deus se encontra é o de expressão máxima de espontaneidade e
criatividade. A Espontaneidade é um produto do momento, que está em sincronicidade
temporal com o Universo.
Houve um tempo, na era mitológica, em que a Divindade podia "evocar a criatividade
e a espontaneidade necessárias para a criação de todo o Universo" (Moreno, 1920/1992, p.
137). O que se tem, na verdade, é um contínuo status nascendi na relação de Deus com o
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Universo. Para explicar isso, Moreno faz uso do conceito de momento, dentro de sua filosofia
da Divindade.
A noção de "momento" - algumas vezes entendido por "teoria", ou mesmo, "filosofia
do momento" - é uma necessidade conceitual para se entender a dinâmica Deus-UniversoEspontaneidade-Criatividade-Homem (elementos teóricos discutidos por J. L Moreno em As
Palavras do Pai). Moreno (1923/1984) em seu livro O Teatro da Espontaneidade escreve sobre
três fatores, fases diferentes de um mesmo processo, que contribuem para a compreensão do
momento, a saber: o status nascendi, o locus, e a matriz. "Não existe a 'coisa' sem locus, não
existe locus sem seu status nascendi, e não existe um status nascendi sem sua matriz" (Moreno,
1923/1984, p. 29). Destaca que o princípio de algo está justamente onde este algo veio à luz,
onde ele surgiu, ou seja, a própria criação.
Definir "momento" é uma tarefa difícil, segundo Moreno (1920/1992). Para ele, este
conceito tem sido posto em segundo plano pelos sistemas filosóficos conhecidos. Para os
filósofos, o "momento" nada mais seria do que uma transição entre passado e futuro, não
tendo, assim, substância real suficiente para compor um sistema teórico e prático da filosofia.
Moreno (1920/1992, p. 141) menciona que o conceito de "conserva cultural" serve como um
parâmetro para a espontaneidade, já que retira o sentido estéril teoricamente, e
pragmaticamente inútil do momento. Moreno fala de uma escala de ordem axiológica onde o
valor máximo da espontaneidade e da criatividade é a Divindade e onde o oposto ao
máximo, o mínimo, o zero da espontaneidade e da criatividade é a conserva cultural.
Tanto Nietzsche quanto Bergson, segundo Moreno (1920/1992), se depararam com a
falta de um conceito adequado sobre o "momento". A teoria dos valores apontados por
Nietzsche baseia-se em heróis e deuses que viveram a serviço da conserva cultural. Moreno
menciona que as criações destes, livros e escritos, se dão enquanto obras prontas e
finalizadas, com um alto grau de refinamento, mas pertencentes às conservas culturais.
Todos esses "tesouros culturais", apesar de denotarem criatividade, são conservas culturais e
estão em descompasso com o momento. Moreno (1920/1992) destaca que Bergson chega
perto de um entendimento da noção de criatividade em relação ao tempo, onde o homem é
eternamente criativo a qualquer instante, mas que
Bergson não construiu nenhuma ponte entre o criativo absoluto, o tempo e o
espaço no qual vivemos, que foi construído pelo homem. O resultado foi
que, mesmo se estas experiências imediatas tivessem que ter a qualidade de
uma realidade final que Bergson reclamava para elas, elas têm um "status"
irracional e por isso são praticamente inúteis para a metodologia e para o
progresso científico (p. 144).
Para Moreno (1920/1992), uma teologia da Divindade só pode existir se, em seu
princípio, estiver contido o conceito de "espontaneidade". Conceito este que assume tanto
um valor biológico, social, quanto Divino. Devemos, diz Moreno, ser críticos a todas as
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formas de profecias, atos e mensagens que foram no passado atribuídos "a Deus, às Bíblias,
às Igrejas, às prévias imagens Dele, do Seu ser e de Suas funções" (p. 145), já que estas
também são, em si, conservas culturais e que, assim, são desprovidas da própria
espontaneidade e criatividade.
Deus possui uma função revolucionária espontânea criadora que tem sido deixada de
lado frente a "Suas obras, Seu universo, Sua onipotência, Sua retidão e Sua sabedoria"
(Moreno, 1920/1992, p. 146). Isso se dá frente à noção de ideal e de perfeição que deriva das
coisas já acabadas e já concluídas que são conservas culturais e que são socialmente
valorizadas e aceitas muito mais do que as coisas que permanecem inacabadas e num estado
de imperfeição. Ao falar de obras respeitadas pelos seus bons acabamentos e por suas
consideráveis perfeições, tais como a Bíblia, as obras de Shakespeare e as sinfonias de
Beethoven, Moreno (1920/1992) explica que
A conserva cultural é, pois, uma categoria consoladora e que dá segurança.
Não é, portanto, surpreendente que a categoria do momento tenha tido uma
oportunidade muito pobre para desenvolver-se em uma cultura como a
nossa, saturada de conservas culturais e, relativamente, satisfeita com elas
(p. 146).
Ela mesma, a "conserva cultural", num estágio inicial, deriva de uma matriz de
criatividade espontânea. A espontaneidade, segundo Moreno (1920/1992) é um estado de
prontidão que permite ao sujeito uma resposta mais rápida quando solicitado. "É uma
condição - um ajustamento - do sujeito, uma preparação do mesmo para uma ação livre" (p.
152).
Ao explanar sobre a vulnerabilidade do homem frente à sua incapacidade de, por meio
das máquinas e das conservas culturais, tornar a si mesmo semelhança de Deus, Moreno
(1920/1992) destaca que a teoria da espontaneidade pode esclarecer três pontos
fundamentais da Divindade: "1 - como um criador e na relação Dele com a criatividade; 2 em Sua relação com o momento e o Seu conceito de onipresença; 3 - na relação Dele com o
Universo, com ênfase especial na história do nosso mundo pessoal" (p. 157).
Para Moreno (1920/1992), a Divindade está presente em todos os atos criativos do
Universo. Ela penetra em um sem-número de momentos pessoais, preenchendo-os sem
privá-los de sua existência num dado momento frente a qualquer partícula do Universo. Ela
(a Divindade) produz uma nova dimensão existencial, produz um "supramomento". A
Divindade:
Não cria, no segundo dia, o que criou no primeiro (...). A segunda vez é
exatamente tão espontânea e nova como foi a primeira (...). Quanto mais
livre é Deus em seus atos criativos, tanto mais livres serão os seres que dão à
luz. Naturalmente, ocorre-nos uma pergunta: como se pode explicar o
processo de criatividade de Deus, em termos de um universo humano?
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Devemos ver a Divindade como coexistente com todos os atos criativos dos
homens e, na verdade, Ela é a verdadeira essência deles (pp. 157-158).
Moreno escreve sobre a Divindade no tempo presente, como um fenômeno que
continuamente está presente no Universo. "Deus está presente em cada detalhe da
experiência" (Moreno, 1920/1992, p. 160). Isso faz com que Sua visibilidade total,
esmagadora, torne-O invisível. Ao mesmo tempo, a Divindade possui uma existência
subjetiva, "significando que Ela está viva e criativa no presente" (p. 162) e entendendo que
Ela é constituída de uma subjetividade em nível diferente da subjetividade do homem. O
momento para a Divindade "é um momento do qual grande número de momentos 'humanos' faz
parte" (Moreno, 1920/1992, p. 162, grifos nossos). Assim, o entendimento da "onipresença"
de Deus deve ser considerado como uma "multipresença", onde sua presença está em um
número limitado de momentos e situações independentes e onde o agrupamento, cada vez
maior, de presentes permite a experimentação da onipresença pela Divindade.
Moreno (1920/1992, p. 166-167) menciona que a ideia de Deus é o reflexo preciso de
um determinado estágio da cultura da humanidade, havendo um número grande e
indefinido de construções sobre a ideia da Divindade satisfazendo um mesmo número de
momentos requeridos em cada estágio. Fica, então, a dúvida sobre qual seria a verdadeira
ideia da Divindade. Moreno (1920/1992) destaca que tal dúvida é sem sentido, visto que
estas concepções sobre a Divindade nunca são definitivas, além do que, tal necessidade de
uma concepção fixa sobre a Divindade é uma necessidade do homem por "conceitos
antropomórficos" na intenção de criar uma ideia conservada sobre a Divindade. Moreno
(1920/1992) escreve que busca uma congruência entre as Divindades já concebidas e a
Divindade real que está na essência dessas concepções. Ele destaca que não há uma noção de
Divindade definitiva, pois cada novo momento requer uma nova construção sobre o que
vem a ser a Divindade - a despeito de considerar o Deus-Eu como a noção mais completa e
definitiva de Deus, Moreno destaca, mesmo que não seja claramente explicitada esta
contradição, que a noção de Deus nunca é definitiva, pois esta deve estar em consonância
com o momento. Logo, podemos inferir que a noção de um Deus-Eu é completa e definitiva
para o momento em que Moreno se encontra (a década de 1920).
Para Moreno (1920/1992) a velha ideia de Divindade apresentada por diferentes
religiões, onde uma Entidade Suprema era Senhora indiscutível do destino do Universo,
deve ser substituída pelo "homem-Deus", entendendo esta como sendo uma concepção mais
em acordo com o momento atual do homem em sua própria história.
Frente à sua nova ideia de Divindade, Moreno propõe uma teologia experimental. A
concepção de Deus é a concepção do Criador, repleto de espontaneidade e criatividade. "A
unidade da Divindade é compatível com a unidade da natureza" (Moreno, 1920/1992, p.
172). Assim, as subdivisões da ciência entre Sociometria, Antropometria, Biometria,
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Astronomia, Geometria entre outros, são transitórias e se consolidam numa ciência mais
ampla e universal, a qual chama de Teometria.
No instante em que apresenta sua Teometria, Moreno (1920/1992) menciona que a
operacionalização de tal ciência deve pautar-se no agente criador,
Não em sentido metafísico, mas num sentido "metaprático". Isso compele a
extensão lógica do operacionalismo rumo ao "criacionismo", termos esses,
usados num sentido moderno, expressando um ponto de vista metodológico
(...), quanto mais complexo é o nível de criatividade, tanto mais o
criacionismo desvia-se do operacionalismo simples. No plano mais elevado
da criatividade (o plano da Divindade) essa dissonância também chegará ao
seu grau máximo. Nesse nível, as operações fluem da agência criativa. Todas
as operações são levadas a cabo a partir do ponto de vista do Criador. Tudo
integra-se na operação, já que pode existir nenhuma meta fora Dele. A
metafisica transformou-se, por completo, numa "metapraxis" (p. 173).
Para Moreno "metafísica é o ponto de vista da coisa que é criada, da criatura... É a prescrição
para a experiência (...), consiste em generalizações que se referem a todas as manifestações
especiais da existência (...). Metapraxis é o ponto de vista do criador" (Moreno, 1923/1984, p.
48-49). Moreno (1923/1984) complementa o entendimento sobre a metapraxis escrevendo que
esta não é o caminho para a experiência, mas sim, a criadora da própria experiência. É, em
potencial, o locus do mundo. Existe antes do início e depois do fim do mundo. Trata-se de
uma filosofia de criação pura, onde o imaginário é tão possível e real quanto o mundo em
que vivemos. Menciona que após a retirada de todos os fenômenos e de tudo que está em
volta disso, a única coisa que sobra é a metapraxis. Esta "é a vida da imaginação e da criação,
a produção de entidades pessoais infinitas (...), é o lugar onde nossa eterna pergunta a
respeito da liberdade da vontade (do lívre-arbítrio) recebe uma resposta adequada" (p. 50).
Moreno (1920/1992, p. 174-177) cita os cânones do criacionismo como sendo a base
para os métodos experimentais pelos quais a Teologia deve se operacionalizar. Destaca que
estes cânones foram grandes teólogos que não se deram conta dos próprios métodos
experimentais pelos quais puderam explorar a existência e a essência da Divindade, que
foram as suas próprias existências. Aquilo que viveram na própria carne é o que fundamenta
uma teologia experimental.
Os cânones citados por Moreno (1920/1992) são: Buda, Cristo e Espinoza. Sobre Buda,
Moreno relata que sua busca por negar a ideia de Brahma, refugiando-se no vazio de
Nirvana não foi suficiente para dissipar sua própria vontade, vontade esta que, para Moreno
"poderia ter se tornado um impulso para um mundo novo sobre o qual buda poderia ter
dito, as mesmas palavras que ouvimos do Pai: 'Isto me pertence, isto sou Eu, tudo isto sou
Eu, mesmo'” (p. 175). Sobre Cristo, Moreno escreve que sua vida foi a expressão de um Deus
no presente, um Deus pessoal, espontâneo e íntimo. A filosofia do criador está implícita da
vida de Jesus. No que se refere a Espinoza, Moreno vai compará-lo com Cristo e Buda,
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Paese, V. H. L. & Holanda, A. F. (2012). O sentido de Deus para Jacob Levy Moreno em As Palavras do Pai.
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destacando que ele foi um crítico, diferentemente deles, que foram experimentadores.
Espinoza, para Moreno, buscou definir Deus por meio do pensamento, Deus já estava
encarnado na totalidade da natureza. Seu grande entendimento lógico de Deus o afastou do
sentido da evolução da existência de Deus.
Por fim, Moreno (1920/1992) destaca que o treinamento da espontaneidade à
experiência religiosa pode se dar de modo promissor. Tal aplicação de uma teologia
experimental pode ser feita por oração. Ele relata que a oração é formada por palavra,
pensamento, sentimento e plano de ação.
Ideias e emoções tais como amor, caridade, piedade, simpatia, felicidade,
dominação, subordinação, humildade, lealdade, piedade, tranquilidade e
silêncio todas essas categorias espirituais e psicológicas e muitas outras
podem ser iniciadas, desenvolvidas ou treinadas com exercícios de
espontaneidade (...) A espontaneidade e a criatividade, ambas são, desde já,
consideradas como valores biológicos e sociais, são, aqui também,
transformadas em supremos valores teológicos (Moreno, 1920/1992, p. 181182).
Considerações Finais
Se retomarmos nossa hipótese inicial de que uma epistemologia psicodramática
começa por uma teologia própria, por uma noção de Divindade psicodramática, então
podemos aqui nos questionar sobre o ponto essencial que Moreno aborda em As Palavras do
Pai. Moreno fala de uma Filosofia da Divindade em cujo princípio os conceitos de momento,
conserva cultural e espontaneidade e criatividade, filosofia esta que se sustenta em uma
"Teologia da Divindade", a qual compreende Deus como "Ser portador de máxima
espontaneidade" (Moreno, 1920/1992, p. 137).
Moreno dá ênfase, em As Palavras do Pai, para uma nova compreensão de Deus: um
homem-Deus capaz de manter a continuidade criativa do Universo, já que "o princípio do
Universo é a criatividade" (Moreno, 1920/1992, p. 29). Deus é a expressão máxima de
espontaneidade. Assim, "com finalidade de dar sentido à existência, devemos achar o
caminho da criatividade e permitir-nos uma comunicação direta e uma maior identidade
com o criador (...). A essência de nossa existência é a fome de criar" (p. 23-25).
Para que pudesse explanar mais sobre a Divindade, Moreno (1920/1992, p. 157-168)
lança mão sobre três pontos capitais: o conceito do criador e o processo da criatividade; o
conceito de momento e a onipotência da Divindade; e a Divindade nos vários estágios da
história mundial. No que se refere ao primeiro ponto, ele destaca que a criação é sempre
única e que nunca se repete. A Divindade coexiste com todos os atos criativos do homem em
seu momento de nascimento, seu status nascendi. No que tange ao segundo ponto, Moreno
fala da Divindade como um fenômeno presente em todo o Universo, presente em cada
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detalhe da experiência. Ele relata que a Divindade é única em cada momento; momento este
ligado ao todo, onde "devemos estabelecer de uma vez por todas que o momento para a
Divindade difere essencialmente do momento tal como é experimentado pelo homem. É um
momento do qual um grande número de momentos 'humanos' faz parte" (Moreno,
1920/1992, p. 165). Já, no que se refere ao terceiro ponto, Moreno destaca que as diversas
concepções de Deus construídas pelo homem frente aos estágios particulares de cada cultura
não abrangem a real concepção de Divindade. Ele entende que nenhuma concepção de
Divindade pode ser definitiva, pois a cada momento ela pode ser exigida e se atualizar frente
a necessidade da época.
Compreender a noção de Divindade proposta por Moreno, não apenas é importante,
mas é ainda fundamental para a compreensão e utilização dos conceitos de momento,
espontaneidade e criatividade. Neste sentido, podemos supor que há um forte
entrelaçamento entre o pensamento psicodramático - em seu caráter objetivo e prático - e
um pensamento "teológico" implícito nas palavras de Moreno.
Enquanto uma proposta de epistemologia, neste trabalho pudemos entrar em contato
com as visões de mundo e de homem presentes no pensamento moreniano, nas quais a ideia
de Deus é um elemento fundamental. Sobre a visão de mundo, Moreno entende o Universo
como fonte e, ao mesmo tempo, produto da criação Divina. Tudo é regido pela compreensão
da Divindade. E, sobre a visão de homem, este é considerado parte da criação e tão criador
quanto Deus; é um homem-Deus, um homem criador, capaz de manter-se em contato com o
momento da criação do Universo, o qual se mantém em um constante estado criativo,
Divino. O homem e Deus são sócios e parceiros na criação do Universo. Podemos, assim,
sintetizar que o homem espontâneo criativo também é o homem Divino.
Pretende-se que este primeiro momento de análise da obra moreniana seja igualmente
o passo inicial na discussão sobre as possíveis relações teológicas entre seu pensamento e o
Psicodrama, pois nos parece bastante claro que J. L. Moreno desenvolveu toda uma linha de
pensamento teórico e de procedimentos técnicos a partir de uma compreensão de Deus. Ora
pois, não estaria o psicodrama constituído, em sua matriz, da compreensão e de um
entendimento próprio de Deus? Seria, então, o psicodrama teísta? Cabem, ainda nessa
perspectiva investigativa, sugerir que sejam feitos estudos mais aprofundados sobre o tema,
haja vista as limitações apresentadas neste artigo, por se tratar de um estudo pontual sobre
um livro específico da obra de J. L. Moreno.
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Nota sobre os autores
Vitor Paese - Mestre em Psicologia, Professor da Associação Paranaense de Psicodrama
e Psicoterapeuta. Endereço para correspondência: R. Lauro Linhares, 2123, torre A, sala304.
CEP 88036-003 - Florianópolis/SC, Brasil. E-mail: [email protected]
Adriano Holanda - Doutor em Psicologia e Professor Adjunto da Universidade Federal
do Paraná. Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia - Universidade
Federal do Paraná Praça Santos Andrade, 50 - Sala 215 (Ala Alfredo Buffren)
CEP 80060-240 - Curitiba/PR, Brasil. Email: [email protected]
Data de recebimento: 18/01/2012
Data de aceite: 09/09/2012
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Shakespeare. Memorandum, 23, 198-209. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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O Bem, o Mal - é tudo igual? O drama das palavras e paixões em
Macbeth de Shakespeare
Good, evil - are they all the same? The drama of the words and passions in Shakespeare's
Macbeth
Dante Marcello Claramonte Gallian
Rafael Ruiz
Universidade Federal de São Paulo
São Paulo
Resumo
Partindo de uma experiência de leitura e reflexão do drama de Shakespeare, Macbeth, no
Laboratório de Humanidades do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da
Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, este artigo procura
problematizar a questão do poder das palavras. Dialogando com filósofos antigos,
modernos e contemporâneos, procuramos, no itinerário delineado por Shakespeare em
sua peça, analisar as qualidades, força e efeitos da palavra no âmbito das paixões, dos
atos e da ética humana.
Palavras-Chave: literatura; Shakespeare; palavra; ética; paixão
Abstract
Starting from an experience of reading and reflection of the drama of Shakespeare,
Macbeth, in the Laboratory of Humanities of the Center of History and Philosophy of
Paulista Medical School of Federal University of São Paulo, this article aims at
problematizing the question of the power of words. Dialoguing with ancient, modern
and contemporary philosophers, this article seeks, by the itinerary outlined in
Shakespeare's play, to analyse the qualities, power and effects of the word in the scope of
human passions, acts, and Ethics.
Keywords: literature; Shakespeare; word; ethics; passion
Introdução: Meras Palavras?
É curioso observar como, numa época tão pródiga de palavras como a nossa, estas
acabem sendo tão desvalorizadas. Talvez porque se aplique aqui também a lei fundamental
do mercado: quando algo sobra, acaba, inevitavelmente, perdendo o valor. E palavras, assim
como aparelhinhos eletrônicos e microchips, encontram-se ad nauseam em nosso mundo. São
miríades de miríades pronunciadas, escritas e difundidas nas mais diversas e tecnológicas
maneiras todos os dias, minutos, segundos. Elas superpovoam nosso campo de visão nas
ruas, nas telas de nossos computadores, celulares, "i-trecos", ressoam incontroláveis pelas
ondas do rádio, MPs 3, 4, 5, 6... nas reuniões de escritório, salas de aula, bares, elevadores...
Há uma superpovoação e uma superprodução de palavras, de maneira que ninguém já lhes
dá mais atenção. São proferidas de maneira automática, em escala industrial, e recebidas
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como algo praticamente desprovido de impacto ou significado, tal como consumimos a
maior parte das coisas que adquirimos no mercado. Afinal, palavras são apenas palavras e
nada mais do que meras palavras.
Mas, será isso mesmo? Seriam as palavras nada mais do que palavras? Uma experiência
recente realizada no Laboratório de Humanidades (LabHum) do Centro de História e
Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Escola Paulista de Medicina (EPM) da
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), que propõe fomentar a reflexão humanística
na área da saúde através da leitura e discussão de clássicos da literatura em encontros
semanais1. A obra provocadora foi o drama Shakespeareano Macbeth que, ao ser lido e
discutido no LabHum, levantou este questionamento e nos levou (os coordenadores da
atividade e demais participantes) a concluir o contrário: as palavras são coisa séria; elas são
muito poderosas, podendo determinar a nossa forma de ser e agir.
Não se chegou de imediato a essa conclusão. O método do LabHum exige paciência:
voltar uma vez e outra, numa reunião e noutra, sobre o texto de Shakespeare (as discussões
sobre Macbeth duraram oito semanas), e principalmente sobre aquilo que cada um dos
participantes pensava sobre o mesmo e também aquilo que na discussão e no debate, e a
cada reunião, voltava-se a repensar sobre o mesmo texto. É o que poderíamos denominar de
construção do conhecimento em espiral: para entender a fundo o sentido das palavras é
preciso voltar uma e outra vez sobre as mesmas. E é isso o que se faz no LabHum.
A partir daí, os autores deste artigo resumiram e sistematizaram as diferentes ideias,
sentimentos e reflexões que o debate sobre Macbeth provocou nos participantes que aqui
procuram compartilhar.
O Poder da Palavra-Ato
Segundo Larrosa Bondía (2002), professor de linguística da Universidade de Barcelona,
"as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes
mecanismos de subjetivação" (p. 20-21). E continua o professor, numa espécie de profissão
de fé da palavra:
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos
coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As
palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com
pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta
genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é
somente "raciocinar" ou "calcular" ou "argumentar", como nos tem sido
ensinado algumas vezes, mas é, sobretudo, dar sentido ao que somos e ao
1
Para maiores informações sobre o Laboratório de Humanidades do CeHFi/EPM/UNIFESP acessar:
http://labhum.blogspot.com.br/2009/10/o-que-e-o-laboratorio-de-humanidades.html
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que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver
com as palavras (p. 21).
Ao concordar com Larrosa Bondía (2002), na crença no poder e na força das palavras,
com a convicção de que fazemos coisas com as palavras e que as palavras fazem coisas
conosco, não podemos acreditar ingenuamente nas Três Bruxas que abrem o drama de
Shakespeare dizendo: "O bem, o mal - é tudo igual" 2 (Shakespeare, 1623/2004, p. 9). Apesar
de ser esta exatamente a perspectiva que não apenas vigora em nosso contexto mental, mas
que inclusive lhe dá sustentação.
Não é o mesmo uma palavra, analisada do ponto de vista filosófico, e uma palavra
inserida numa peça teatral. A palavra, quando filosófica, é um conceito abstrato,
previamente definido e sobre o qual recai um sentido e significado preciso, delimitado
precisamente pela sua definição. E, nesse sentido, quando nos deparamos com os termos
"bem" e "mal" poderemos estabelecer uma série de considerações teóricas, a partir das
diferentes perspectivas que a Filosofia nos oferece. Não acontece o mesmo quando
encontramos termos idênticos numa peça de teatro, como a de Macbeth. Nesse caso, as
palavras ganham corporeidade, concretude e, principalmente, intencionalidade, tornando-se,
por isso mesmo, muito mais complexas.
Por que isso é assim? Porque não estamos mais no âmbito da Ciência nem no da
Filosofia, à procura da verdade, mas estamos no âmbito do poético e, portanto, do
verossímil. Quando Aristóteles (séc IV a. C/1959) explicava o que se passava com a tragédia,
dizia-nos que estávamos diante não de palavras que fossem conceitos, mas de palavras que
eram atos, e segundo o filósofo
a ação supõe personagens que agem, é de todo modo necessário que estas
personagens existam pelo caráter e pelo pensamento (pois é segundo estas
diferenças de caráter e de pensamento que falamos da natureza dos seus
atos); daí resulta, naturalmente, serem duas as causas que decidem dos atos:
o pensamento e o caráter; e, de acordo com estas condições, o fim é
alcançado ou malogra-se (p. 11 - Poét., VI, 7).
A palavra poética permite-nos ver algo que a mera palavra, enquanto conceito, nos
oculta: a intencionalidade do agente e, portanto, o seu caráter, bem como todo o desenlace da
trama das ações, permitindo-nos perceber não só se o fim foi atingido ou não, mas a
qualidade ética das ações realizadas.
2
No original em inglês as palavras utilizadas são: "Fair isfoul, foul isfair". Das diferentes traduções em português,
optamos pela de Manuel Bandeira, não apenas porque foi a utilizada na leitura e discussão do Laboratório de
Humanidades, como também, apesar de não remeter explicitamente ao sentido mais direto das palavras "foul"
(loucura) e "fair" (sensatez), transcria de maneira poética e correta a ideia central que quisemos ressaltar na
elaboração deste ensaio, e que utilizamos inclusive no seu próprio título.
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A intuição aristotélica é extremamente rica com relação à abrangência do olhar do
leitor. Quem adentra na leitura de uma tragédia vê atos, não palavras (embora, é claro, esses
atos sejam significados por meio das palavras) e, portanto, está capacitado para ver
ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta
também da atividade), sendo o fim que se pretende alcançar o resultado de
uma certa maneira de agir, e não de uma forma de ser. Os caracteres
permitem qualificar o homem, mas é da ação que depende sua infelicidade
ou felicidade (Aristóteles, séc IV a. C/1959, p. 12 - Poét., VI, 12).
A tragédia remete-nos, por meio de palavras que são mais do que palavras, ao âmago
do homem: à sua maneira de ser e à sua maneira de agir e, por isso mesmo, dão-nos uma
dimensão moral, não no sentido de "moralizante", mas no sentido de qualidade ética da
conduta e da pessoa, e, portanto, dizem-nos mais, muito mais do que a Filosofia e a Ciência,
com relação à questão decisiva sobre quem é o homem e quem somos nós, porque "a ação,
pois, não se destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres já são representados"
(Aristóteles, séc IV a. C/1959, p. 12 - Poét., VI, 12).
Há uma tendência moderna a entender "o verossímil" como aquilo que é aceito ou
pensado pela maioria, ou seja, pensa-se que algo é verossímil porque assim nos parece
(Bettetini e Fumagalli, 2001), mas essa maneira de pensar tem as suas raízes na longa
tradição cartesiana que foi se afirmando durante a Modernidade. Contudo, quando
Aristóteles explicava o sentido de eikós (verossímil) referia-se àquilo que comumente
costumava acontecer e, porque acontecia, aceitava-se como um fato costumeiro. Não se
tratava - valha a insistência, mas parece-nos que é muito importante entender esse ponto daquilo que seria visto ou entendido pela sociedade como razoável ou possível de acontecer,
mas daquilo que habitual e normalmente costumava acontecer. O "verossímil" dizia respeito
a fatos acontecidos, costumeiros, e não a formas de pensar. Apenas para dar um exemplo
que ajude a entender o que estamos querendo dizer: de maneira geral, costuma acontecer
que os pais gostem dos seus filhos, é algo verossímil, mas poderia acontecer que, num caso
concreto, um pai concreto não gostasse de um filho em concreto. Ou seja, o "verossímil" está
ligado à ideia de "um universal provável: aquilo que acontece geralmente e sobre o qual,
portanto, os homens estão geralmente de acordo, porque passou a ser costumeiro" (Bettetini
e Fumagalli , 2001, p. 48). E é precisamente essa qualidade - o fato de que, em certas
circunstâncias, o verossímil admita exceções e inclusive admita exatamente o contrário - que
o verossímil, para Aristóteles, não se encontrava nas ciências, mas na retórica e na poética.
Assim, por isso mesmo, afirmar algo como verossímil
pode ter mais valor do que afirmar um simples fato verdadeiro: porque o
simples fato pode ser algo puramente contingente e particular, enquanto que
conhecer um fato verossímil é conhecer algo que é, em certo sentido,
universal, algo que coloca de manifesto o raciocínio de quem participa e que,
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portanto, diz-nos mais sobre o mundo do que possa fazê-lo um fato
simplesmente contingente (Bettetini & Fumagalli, 2001, p. 49).
Estamos falando, portanto, de palavras que são atos e não de meras palavras. Quando
lemos "Macbeth" não teorizamos sobre o que possam significar o "bem" e o "mal", nem sobre
a existência ou não desses conceitos, nem sobre a evolução dos mesmos na Filosofia
ocidental, mas estamos vendo, porque são ali representados, os atos praticados por Macbeth,
sua esposa, Banquo, Duncan e as bruxas, nas suas circunstâncias concretas até o desenlace
final; atos que nos apontam para o caráter de cada personagem, porque é nos seus atos e
através deles que os caracteres se manifestam, e não temos como não nos posicionar perante
eles. Nesse sentido, a obra poética, o drama trágico ou a narração literária permitem uma
abrangência maior na visão do mundo em que se desenvolvem as ações humanas. Maior
porque permitem ver não apenas os indivíduos como agentes econômicos, sociais ou
políticos, mas as pessoas naquilo que têm de mais humano, o seu mundo interior, com as
suas esperanças, paixões e temores, com aquilo que há de misterioso e extremamente
complexo, ao qual, como explica Nussbaum (1995),
é necessário aproximar-se com as faculdades da mente e os recursos da
linguagem aptos para a expressão de uma certa complexidade. Em nome da
ciência, renunciou-se ao estupor que esclarece e estimula a ciência mais
profunda. Em nome de um interesse genuíno para com o sofrimento de cada
um, acabamos adquirindo um modo de vida que não pode entender
adequadamente o sofrimento da pessoa no seu contexto social ou considerálo como o sofrimento de uma pessoa única (p. 74).
Não foram poucos os críticos que apontaram o olhar profético de Shakespeare frente à
modernidade que então recém se inaugurava. A sua história sobre Macbeth parece querer
dizer que aquilo que parece ser pode muito bem não ser na realidade, ou seja, que Bem e Mal
não é tudo igual, e que com as palavras que não são meras palavras, não vale o tanto faz.
A Qualidade das Palavras
Macbeth, Tane de Gladis, é um grande nobre de velha cepa escocesa. Diante da ameaça
traidora que paira sobre seu reino e sobre seu rei, não hesita em enfrentar, juntamente com
Banquo (outro grande nobre) o perigo e a própria morte "qual favorito do valor"
(Shakespeare, 1623/2004, p. 10). Tendo seus feitos noticiados ao rei Duncan, este lhe confere
título maior, Tane de Cawdor, recém-retirado do indigno traidor vencido.
Antes porém que a boa nova lhe seja comunicada por boca humana, Macbeth é avisado
por três criaturas estranhas, que lhes aparecem, a ele e a Banquo, numa charneca próxima de
onde se travara a derradeira batalha. Como sabemos, as três parcas não apenas predizem a
sua promoção imediata a Tane de Cawdor, como também a própria glória real, ainda que
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(terceira profecia) não transmitida a seus descendentes, já que aos de Banquo ela estaria
reservada.
As palavras proferidas pelos "agentes das trevas" (Shakespeare, 1623/2004, p.19) nas
palavras de Banquo, Ato I, cena 3, afetam sobremaneira o pobre e desavisado Macbeth, que
imediatamente começa sentir o seu efeito insidioso e inquietante. Instantes depois de
haverem desaparecido as bruxas, chegam os arautos do rei informando-lhe do seu novo
título: Tane de Cawdor. Mal tinha tido tempo de refletir nas palavras proferidas e a profecia
já começava a se cumprir.
Sabemos que as palavras, quando são mais do que meras palavras, não se limitam a um
simples som, vocábulo ou conjunto de letras e sílabas. As verdadeiras palavras - logos em
grego, verbum em latim - são como cápsulas que encerram um conteúdo denso, potente,
capaz de afetar, mobilizar, vivificar, envenenar, matar. Segundo Larrosa Bondía (2002), a
tradução que normalmente se faz da palavra grega logos pela palavra latina ratio, origem da
vernácula razão, é na verdade mais que uma tradução, uma "traição, no pior sentido da
palavra" (p. 21). Assim, ao se tomar a definição de homem de Aristóteles, zôon lógon échon, a
tradução mais fiel seria "vivente dotado de palavra" e não "animal racional", como se
costuma encontrar normalmente. Ora, tal noção manifesta de forma inconteste a importância
da palavra enquanto elemento definidor do ser humano.
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha
a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma
ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra,
que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de
palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá
na palavra e como palavra. Por isso, atividades como considerar as palavras,
criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar
palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras,
transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero
palavrório (Larrosa Bondía, 2002, p. 21).
Dizíamos que as palavras têm conteúdo denso e potente. Isto porque elas têm
qualidades. Ou seja, as palavras também são gestos, são cenas, e expressão. Todo este universo
de conteúdo e forma que cerca, informa e qualifica a palavra, e que é a mesma palavra,
determina o seu efeito e sua potência. Aqui, no drama shakespeareano a sua "qualidade" é,
fundamentalmente, "profética"; quer dizer, uma palavra proferida por alguém que
simplesmente a professa, ou seja, a transmite, a repete, tal como lhe foi dita por um Outro,
invariavelmente maior, mais poderoso, sobrenatural - literalmente, alguém acima da natureza
mutável, mortal.
Não é pouco conhecida a importância que tiveram os profetas na história da
Civilização Ocidental. Na tradição judaico-cristã, a palavra profética comunica os
sentimentos de Deus em relação aos homens, em especial ao seu povo escolhido, e prediz o
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ gallianruiz01
Gallian, D. M. C. & Ruiz, R. (2012). O Bem, o Mal - é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de
Shakespeare. Memorandum, 23, 198-209. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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futuro, conclamando assim à conversão dos corações, ao arrependimento, à contrição. Neste
contexto, a profecia pode tanto anunciar, prever, como também simplesmente advertir o
futuro, futuro este que pode ser "mudado", caso a palavra dê bons frutos nos corações e nas
ações dos homens (Cf. Lucas 3, 9).
Encontramos também Profetas em outras tradições como entre os gregos, onde as
pitonisas e as sibilas aparecem servindo aos diversos oráculos, sendo o de Delfos (o qual até
Sócrates vai consultar diante da inquietante questão sobre a sua incomparável sabedoria) o
mais famoso. E assim como os deuses, os demônios também têm seus profetas. Neste caso,
como bem fica demonstrado no drama escocês de Shakespeare, a palavra profética é
proferida não para advertir-nos e salvar-nos, mas "para perder-nos", como bem informa
Banquo na cena 3 do ato I (Shakespeare, 1623/2004, p.19).
Antes porém de consumar a sua obra, toda palavra precisa primeiro ser ouvida, ou
melhor, ser aceita. As palavras proféticas das três bruxas só surtem efeito em seus
destinatários porque se apresentam "sob a cor da verdade" (quem o diz é o próprio Macbeth,
como sabiamente considerava Banquo, a quem já citamos anteriormente). Eis a frase
completa: "E muita vez, para perder-nos, os agentes das trevas são verídicos: captam-nos
com inocentes bagatelas por afundar-nos nos piores crimes" (Shakespeare, 1623/2004, p. 19).
A própria artífice dos malefícios em forma de profecia (de palavras), Hécate, senhora
das bruxas, revela que tal sortilégio, "tão rico de artificiosa ilusão" é o que afundará o nobre
Macbeth "em confusão", ao lhe infundir "a temerária confiança" - pois esta, "quando por
demais, é a perdição dos mortais" (Shakespeare, 1623/2004, p. 74).
Eis, pois, o conteúdo, a qualidade e o poder deste tipo de palavra: revestida da "cor da
verdade", adentra o entendimento e chega ao coração, atiçando as paixões. O belo, bravo e
fiel Macbeth, virtuoso e favorito vassalo do rei, que há pouco tinha demonstrado toda sua
força e valor lutando corajosamente contra temíveis inimigos, vê seu coração sucumbir não
diante de lanças e espadas, mas diante da palavra de três tristes e repugnantes bruxas.
As palavras adentram-no com sua capa de brilho e verdade, espicaçando-lhe a cobiça e
confundindo-lhe a razão:
Esta insinuação sobrenatural não pode nem ser má, não pode ser boa. Se má,
por que certeza de sucesso, me dá neste começo de verdade? Pois sou Tane
Cawdor; E se boa, por que assim cedo à imagem pavorosa que os cabelos me
eriçam e faz meu firme coração palpitar contra as costelas, fora do que é
normal na natureza? Os temores presentes são mais fracos do que as
horríveis imaginações. Meu pensamento, onde o assassínio é ainda projeto
apenas, move de tal sorte a minha simples condição humana, que as
faculdades se me paralisam e nada existe mais senão aquilo que não existe.
(Shakespeare, 1623/2004, p. 19-20).
A palavra das bruxas, que para Banquo, homem prudente - de acordo com o próprio
Macbeth, "Nele aponta algo que é de temer: tem grande audácia; e à têmpera indomável de
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Gallian, D. M. C. & Ruiz, R. (2012). O Bem, o Mal - é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de
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su'alma alia uma prudência que encaminha o seu valor a agir com segurança." (Shakespeare,
1623/2004, p. 55) -, é algo a ser posto sob suspeita, a ser examinado ou mesmo descartado
dada a qualidade de seus emissores, para Macbeth é algo "relativo": "não pode ser má, não
pode ser boa" (p. 19-20). Este flerte com a palavra temerária é já o princípio de sua aceitação,
e a sua aceitação é já o ceder ao seu conteúdo, ao seu poder. Os primeiros sintomas logo são
sentidos: os calafrios e palpitações que indicam que algo "fora do que é normal na natureza"
(p. 19-20) tomou conta do coração e da imaginação, submetendo a inteligência e a vontade.
É verdade que, num primeiro momento, Macbeth procura resistir e lutar contra o
poder envenenador: "Se a sorte me quer rei, há de corar-me sem que eu me mexa"
(Shakespeare, 1623/2004, p. 20). Entretanto, o compartilhamento das palavras com a sua
esposa, Lady Macbeth, acabarão por dinamizá-las e potencializá-las, de forma que estas,
encontrando um terreno ainda mais fértil no coração da mulher, retornarão ao destinatário
da profecia com maior potência ainda, fazendo cederem às últimas resistências. Frente às
hesitações do atormentado marido, Lady Macbeth despeja-lhe no coração, pelos ouvidos,
argumentos suficientemente fortes para fazê-lo tomar a "firme decisão": "já sinto tensa em
todo o meu corpo cada fibra para cumprir o ato terrível. Vamos! Respirem inocência,
enganadoras, tuas feições: falsa aparência esconda no falso coração a trama hedionda" (p.32).
Instigado pelo poder sedutor das palavras proféticas, Macbeth vê alterar-se em seu
coração a medida das paixões. A ambição, paixão tão própria de corações nobres, instiga-se,
cresce e transborda, arrastando na sua correnteza os diques da razão. Como observaria
Pascal, pouco menos de um século depois de Shakespeare: "(...) pois, quando as paixões são
as senhoras, elas são vícios, e então dão à alma seu alimento, e a alma com elas se nutre e se
envenena" (Pascal, 1670/1973, p. 88 - Pensamentos, XVI, XCVIII,).
Despertadas e mobilizadas pelos sentidos e principalmente pelas palavras que chegam
ao interior através dos sentidos, as paixões alimentam nossa alma, nosso ser. Entretanto,
segundo Pascal, "é preciso servirmo-nos delas como de escravos (...) dizendo a uma: Vai, e
Volta. Sub te erit appetitus tuus ["debaixo de ti estará o teu apetite"(Gen., 4,7).]" (idem); para
que elas não se tornem senhoras e não nos envenenem, desencadeando nossa "perdição",
como bem advertia Banquo. "As paixões assim dominadas são virtudes", explica o filósofo,
para quem "a avareza, a inveja, a cólera, o próprio Deus as atribui a si; e são tanto virtudes
como a clemência, que são também paixões" (idem).
Essa mesma ideia aparece de forma condensada e lapidar no drama shakespeareano
através da boca de Macduff, que em diálogo com Malcolm, filho do rei assassinado, afirma:
"A intemperança, quando ilimitada, é tirania em nós da natureza" (Shakespeare, 1623/2004,
p. 95). E - desenvolvendo o tema, desta vez através da voz do médico chamado a socorrer a
"loucura" de Lady Macbeth - "Quando os atos violam a natureza, eles produzem desordens
também contra a natureza" (p. 109).
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Macbeth, como vimos, desde o momento em que ouviu as maléficas palavras e as
acolheu em seu coração, começa a sentir algo "fora do que é normal na natureza"
(Shakespeare, 1623/2004, p. 19). E, na medida em que a trama se desenvolve e o ato
assassino se consuma, este estado de desordem e tirania do contranatural vai crescendo e
dele se apoderando, lançando-lhe numa espiral de medo, ansiedade, melancolia. Desde
então já não consegue dormir "O sono inocente, o sono dissipador das preocupações, morte
da vida de cada dia, banho após a dura labuta, bálsamo de almas doridas, principal alimento
no banquete da grande natureza" (p. 38). E a tristeza, ao invés da alegria, é o prêmio
encontrado na consumação de seus desejos: "Tudo é futilidade: honra e renome estão
mortos; o vinho da existência esgotou-se até à borra e só lhe resta borra a esta triste adega"
(p.46).
O mesmo acontece, surpreendentemente, com aquela que depois de haver invocado os
"espíritos sinistros" e os "ministros do mal", pedindo-lhes que a dessexuassem, que a
espessassem o sangue, "prevenindo todo acesso e passagem ao remorso; de sorte que
nenhum compungitivo retorno da sensível natureza" (Shakespeare, 1623/2004, p. 26),
abalasse a sua "determinação celerada" (p. 2 6), instigando assim "o que é contrário aos
sentimentos naturais humanos " (p. 26); mesmo a esta que parece ser mais uma encarnação
do mal do que uma mulher, Lady Macbeth, os efeitos do "contranatural" se fazem presente
em sua humana natureza. No ato II, cena 2 desabafa: "Nada ganhamos, não, mas ao
contrário, tudo perdemos quando o que queríamos obtemos sem nenhum contentamento:
mais vale ser a vítima destruída do que, por a destruir, destruir com ela o gosto de viver" (p.
60).
Nem a um nem a outro, porém, o gosto amargo do crime é o suficiente para convertêlos. "O que está feito, está feito" (Shakespeare, 1623/2004, p. 60), desfere Lady Macbeth
depois de seu lamento. E Macbeth, mesmo corroído pela tristeza, faze-lhe coro, dizendo: "As
coisas começadas no mal, no mal se querem acabadas" (p. 63). A tirania do mal, uma vez
consentida, se instaura, e ainda que a consciência grite e revolte-se, a vontade se vê fraca,
incapaz e vencida, restando-lhe apenas o reconhecimento da derrota: "mas fartei-me de
horrores" (p.117), - diz Macbeth na última cena, do último ato - "o terror, já acostumado
com os meus pensamentos homicidas, não me surpreende mais" (p. 117). A paixão tornou-se
vício e a razão e a vontade estão à sua mercê.
Neste contexto, o nobre e ambicioso homem que se tornou senhor de um reino vê-se,
paradoxalmente, escravo de sua própria ambição, de suas próprias paixões. Percebendo-se
como um simples títere nas mãos do destino, aquele que almejava o mais pleno e livre
senhorio, depois de cumprir a sua sina, conforme a previsão e a intenção das parcas, deseja
apenas a morte; única e desesperada maneira de talvez reencontrar a liberdade:
Breve candeia, apaga-te! (grita Macbeth numa das passagens mais célebres
da literatura universal) que a vida é uma sombra ambulante: um pobre ator
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que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais; um conto
cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando nada (Shakespeare,
1623/2004, p. 117).
Palavra e Ética
Por que, quando lemos Macbeth, embora não tenhamos tido, nem lidado, com certezas
científicas nem filosóficas, percebemos as consequências trágicas e funestas aonde pode levar
a ambição humana? Porque é assim que geralmente acontece, e o sabemos. É verossímil. A
ambição pode ser grande e levar o homem a realizar a sua própria grandeza, mas também
pode levá-lo aos abismos da vilania, da traição e do crime. Essa é a característica do mundo
moral vislumbrado por Aristóteles. Diante do apelo por certezas absolutas, ao estilo
cartesiano, Aristóteles defendia a ideia da incerteza do provável nas ações humanas
(Montoya, 2007, p. 179). Nem todos os argumentos e raciocínios permitem-nos agir com um
rigor exato e preciso, e nem por isso deixariam de ser verdadeiros. São verdadeiros não
porque assim foi demonstrado analítica e cientificamente, mas porque é assim que, de
maneira geral, acontecem com os homens e com as ações humanas, porque são verossímeis.
Como o próprio filósofo grego afirmava:
Ao tratar, pois, de tais assuntos e partindo de tais premissas, devemos
contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais; e
ao falar de coisas que são verdadeiras apenas em sua maior parte e com base
em premissas da mesma espécie, só poderemos tirar conclusões da mesma
natureza (Aristóteles, séc. IV a. C/1973, p. 2 - EN, 1094b).
Talvez, para nossos gostos modernos, precisados de certezas absolutas, saber que não
se possa ir mais longe nesta matéria pode ser decepcionante, porém, por outro lado, não
podemos deixar de concordar com Aristóteles, pois, nas questões práticas, diante dos atos
humanos, conhecemos que sempre há um elemento de imprecisão e de incerteza (Aristóteles,
séc. IV a. C/1973, p. 14 - EN, 1112 a-1118b). Reconhecemos que é bastante verossímil que as
coisas sejam dessa forma. Na verdade, o que se passa é que Aristóteles parte de uma visão
em que o que está em jogo é o caráter da pessoa, ou seja, sua dimensão ética. E é justamente
nesta "maneira de ser" que se revela o caráter ético - como o próprio Aristóteles insiste ao
falar referindo-se à tragédia. Caráter ético que, por sua vez, não pode ser reduzido a um
conjunto de regras ou um código de condutas, como modernamente se costumou considerar.
Estamos aqui no âmbito da virtude e não do cumprimento da norma.
Para Aristóteles, a virtude diz respeito a uma disposição interior, uma qualidade que
vai sendo formada na pessoa e que a vai constituindo em uma pessoa virtuosa, ou não. Isso
significa que mais do que tentar definir o que seria "a generosidade", por exemplo,
deveríamos olhar para o enorme número de "ações generosas", que essas, sim, podem ser
vistas e representadas de forma verossímil, porque habitualmente uma pessoa generosa tem
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capacidade para perdoar, para esquecer, para ajudar, para sacrificar-se etc. A
"generosidade", como mera palavra poderia ser até definida, contudo dir-nos-ia muito
pouco sobre as múltiplas possibilidades das diferentes ações que poderiam ser praticadas
por alguém que, de fato e verdadeiramente, fosse generoso. Dito de outra maneira, se
limitarmos a ética a um conjunto de regras de conduta, a ação será imposta de fora, por
algum tipo de coação, mas se a ética for uma forma de ser e de agir, então se trataria de uma
tendência interna, caracterizada por responder, habitualmente, de uma certa maneira,
geralmente virtuosa (Montoya, 2007, p. 180).
Parece-nos que essa intuição aristotélica com relação à virtude abre uma perspectiva
interessante no debate sobre a questão ética, porque, nesse sentido, não se trataria de
"cumprir" uma norma determinada, mas viver de uma determinada maneira. A virtude,
precisamente pela sua heterogeneidade múltipla de ação, não é algo que possa ser cumprido,
mas algo que pode ser desenvolvido, afirmado, estendido para outros campos ou, pelo
contrário, pode diminuir, debilitar-se ou, inclusive, perder-se... Trata-se de uma mudança de
perspectiva: não se trata de compreender as ações como cumprimento (ou não) das normas
jurídicas, mas de expressões de um caráter, de revelações de um modo de ser, que é preciso
antes "ler" do que julgar (Montoya, 2007, p. 180).
Macbeth, peça de Willian Shakespeare em cinco atos, pode certamente ser lida como o
drama das palavras e das paixões; de como podemos fazer coisas com as palavras e,
principalmente, de como as palavras podem fazer coisas conosco. Shakespeare mostra aqui a
intrincada economia que existe entre as palavras e as paixões, revelando a "matéria" de que
somos feitos e o "modo" como operamos. Entre logos e pathos, entre palavra e paixão, somos
e nos movemos, para o Bem ou para o Mal. Cabe, pois à inteligência, à "inteligência das
palavras" como escrevia Pascal (Pascal, 1670/1973, p. 84.), discernir e decidir se,
efetivamente, é tudo igual.
Referências
Aristóteles. (1959). Arte retórica e arte poética (A. P. Carvalho, Trad.). São Paulo: Difel.
(Original do séc. IV a.C.).
Aristóteles. (1973). Ética a Nicômaco (L. V. Valandro, Trad.). São Paulo: Abril Cultural (Os
Pensadores, Vol. II). (Original do séc. IV a.C.).
Bettetini, G. & Fumagalli, A. (2001). Lo que queda de los medios: ideas para una ética de la
comunicación. Pamplona, Espanha: Eunsa.
Bíblia. (1981). Bíblia de Jerusalém (S. M. Barbosa et al., Trads.). São Paulo: Paulus.
Larrosa-Bondía, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira
de Educação, 19, 20-28.
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Montoya, J. (2007). Lo verosímil en la ética de Aristóteles: una aporía en el vocabulario
filosófico griego. Isegoría, 37, 177-184. Recuperado em 19 de abril, 2012, de
http://isegoria.revistas.csic.es/index.php/isegoria/article/view/115/115
Nussbaum, M. C. (1995.). Poetic justice: the literary imagination and public life. Boston: Beacon
Press.
Pascal, B. (2002). Pensamentos. S.l: Ngarcia. (Original publicado em 1670). Recuperado em 20
de abril, 2012, de http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/pascal.html
Shakespeare, W. (2004). Macbeth (M. Bandeira, Trad.). São Paulo: Paz e Terra (Coleção
Leituras). (Original publicado em 1623).
Notas sobre os autores
Dante Marcello Claramonte Gallian é professor de História da Medicina para o curso
médico da UNIFESP, de História e Filosofia das Ciências e Bioética para os cursos biomédico
e de enfermagem da mesma universidade. Participa como professor-orientador dos
Programas de Pós-Graduação Ensino em Ciências da Saúde do CEDESS da UNIFESP e
Saúde Coletiva do Departamento de Medicina da UNIFESP. Suas linhas de pesquisa são
História das Ciências da Saúde e da Medicina, Humanidades e educação em Ciências da
Saúde e História Oral. Contato: [email protected]
Rafael Ruiz Gonzalez é professor adjunto de História da América da Universidade
Federal de São Paulo e desenvolve o Projeto Direitos e Justiça nas Américas, aprovado pela
FAPESP. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando
principalmente nos seguintes temas: legislação indigenista, união das Coroas, jesuítas em São
Paulo e Guairá, política da coroa espanhola, catequese e Francisco de Vitoria. Contato:
[email protected]
Data de recebimento: 02/05/2012
Data de aceite: 20/08/2012
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http:/ /www .fafich.ufmg.br/memorandum/ a23/ gallianruiz01
Mussi, L. H. & Côrte, B. (2012). A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman.
Memorandum,
23,
210-227.
Recuperado
em
____
de
______________,
______,
de
http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a23/mussicorte01
A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar
Bergman
The finitude as awareness of death in The Seventh Seal by Ingmar Bergman
Luciana Helena Mussi
Beltrina Côrte
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
Resumo
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a finitude e sua contextualização histórica
através do filme O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. Discute a visão do cineasta,
especialmente a existência humana tendo como eixo condutor uma reflexão sobre
envelhecimento e morte, questões ligadas ao sentido da vida. Utilizamos a pesquisa
documental e bibliográfica, convidando autores a dialogarem com uma arte expressa por
imagens e palavras, útil e pertinente quando se estuda temas angustiantes como finitude
e envelhecimento. Bergman, a partir da sua própria perspectiva existencialista, trabalha
questões como a manipulação da fé pela Igreja, a exploração da ideia da peste como
castigo divino e a expiação dos pecados pela dor. A investigação realizada cumpre seu
objetivo, mostra que a arte que se faz através do cinema se resume na busca do
conhecimento como chave para a compreensão das inquietudes do que representa o
morrer para um Ser Finito, independente da velhice.
Palavras-Chave: envelhecimento; morte; cinema
Abstract
This paper aims at reflecting on the finitude and its historical contextualization through
the movie The Seventh Seal by Ingmar Bergman. It discusses the view of the filmmaker,
especially human existence, having as a guide axis a reflection on aging and death, issues
related to the meaning of life. We use documentary and bibliographical research, inviting
authors to dialogue with an art expressed through images and words, useful and relevant
when studying distressful topics such as finitude and aging. Bergman, from his own
existentialist perspective, works issues such as the manipulation of faith by the Church,
the exploration of the idea of plague as divine punishment and atonement for sins
through pain. The investigation fulfills its purpose, shows that the art made through the
cinema summarizes itself in the searching of knowledge as the key to understanding the
disquietude of what means the dying for a Finite Being, regardless of age.
Keywords: aging; death; cinema
Introdução
Nas últimas décadas as "velhices e envelhecimentos" vêm ocupando cada vez mais as
telas do cinema. Um envelhecimento que até então ocupava um lugar muito reservado nos
lares brasileiros passou a ser público, aproximando-nos do estranhamento do envelhecer, da
nossa própria finitude e do inexorável fim de todos nós. Estudando essas questões, este
trabalho tem como objetivo refletir sobre a finitude e sua contextualização histórica através
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Mussi, L. H. & Côrte, B. (2012). A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman.
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do filme O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. Discute a visão do cineasta, especialmente a
existência humana tendo como eixo condutor uma reflexão sobre envelhecimento e morte,
questões ligadas ao sentido da vida. Acredita-se que esta pesquisa atinge seu objetivo: tem
relevância teórica, prática e social, contribuindo com subsídios para a compreensão das
inquietudes do que representa o morrer para um Ser Finito, independente da velhice.
O Sétimo Selo, filme do cineasta sueco Ingmar Bergman, descreve a parábola do
cavaleiro medieval, Antonius Block (Max Von Sydow) que, no momento em que está
voltando para casa com seu fiel escudeiro Jons (Gunnar Björnstrand), após um grande
período de ausência, no qual estivera lutando nas cruzadas, encontra o país devastado pela
morte e pela peste. Subitamente, nesta jornada, Block é surpreendido com a visita da Morte
(Benget Ekerot), que quer levá-lo, considerando que seu tempo na Terra acabou. Uma figura
lúgubre, com seu manto negro, fala ríspida e tranquila, acaba desafiada por este cavaleiro a
um jogo de xadrez, concedendo assim, o adiamento da sua sentença, em um cenário muito
íntimo e já visto através dos murais do famoso pintor medieval sueco, Alberto Pictor
(Hessen, 1440 -1507).
Na viagem pela terra natal, retornando para casa, cavaleiro e escudeiro encontram o
ingênuo, mágico e "santo casal" de saltimbancos, Jof, Mia e o bebê; o dono da companhia de
teatro, o embusteiro Skat; Plog o ferreiro traído e sua infiel esposa Lisa; um padre entre
tantos fanáticos, ladrões e patifes como Ravel e a entristecida Karin, aquela que espera a
volta do marido, o cavaleiro Block. No fim, todos serão arrebanhados pela Morte, mas
"alguns" terão, ainda, uma chance de vida.
A cena de abertura do filme dá o tom: antes de qualquer imagem, a música sentida e
cantada em Carmina Burana de Carl Orff com "Dies Irae"1, começando solene. Segundo
Bergman (1996), Carmina Burana tem como base canções de viajantes medievais, dos anos da
peste e da guerra, quando uma multidão sem teto percorria o país, estudantes, monges,
padres e saltimbancos compondo canções que se ouviam nas festas religiosas e nas feiras.
A morte retratada na tela negra de O Sétimo Selo ocupa nossa visão e, logo, um clarão
acompanhado por um coro. Em seguida, outro clarão que vai definindo o tenebroso céu
claro-escuro. Uma águia paira no céu, como se flutuasse numa maré calma de fim de tarde. A
introdução de O Sétimo Selo aterroriza e deslumbra ao mesmo tempo, anunciando a história
que será contada.
Uma certa voz previne a todos, pobres seres mortais e finitos: "Quando o Cordeiro
abriu o sétimo selo houve um silêncio no céu por cerca de meia hora. Eu vi sete anjos diante
de Deus e a eles foram dadas sete trombetas".
No livro do Apocalipse de João, capítulo 82, o sétimo selo revela que sete anjos
prenunciarão a derrocada da humanidade.
1 Dies Irae (A Ira de Deus) foi composta na 2a metade do século XIII, é associada às missas dos mortos.
2 Web Site: http://www.estudosdabiblia.net/b09_16.htm.
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ISSN 1676-1669
http:/ / www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a23/ mussicorte01
Mussi, L. H. & Côrte, B. (2012). A finitude como consciência da morte em O Sétimo Selo de Ingmar Bergman.
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Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia
hora.
Então vi sete anjos diante de Deus e a eles foram dadas sete trombetas.
Veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar, com um incensário de ouro, e
foi-lhe dado muito incenso para oferecê-lo com as orações de todos os santos
sobre o altar de ouro que se acha diante do trono;
e da mão do anjo subiu à presença de Deus o fumo do incenso, com as
orações dos santos.
E o anjo tomou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E
houve trovões, vozes, relâmpagos e terremoto.
Então os sete anjos que tinham as sete trombetas prepararam-se para tocar.
Bergman (1996), em "Imagens", confessa, justificando a existência de O Sétimo Selo:
Naquele tempo eu vivia com uns restos estiolados de uma fé de criança, a
ideia absolutamente ingênua do que se poderia chamar uma possibilidade
de salvação para além deste mundo. Minha convicção atual começava
também a se manifestar. Segundo ela, o ser humano tem dentro de si sua
própria Santidade, que é deste mundo e não tem explicação fora dele. Daí
haver no filme esse resto de uma fé sincera, infantil, isenta de neurose,
conjugando-se com uma concepção mordaz e racional da realidade.
O "Sétimo Selo" é, definitivamente, a expressão de uma das últimas ideias e
manifestações de fé que eu herdara de meu pai e que alimentara desde a
infância.
Quando fiz o filme, as orações eram realidades em minha vida. Rezar, para
mim, era um ato absolutamente natural.
Com o filme "Através de um espelho" pus termo a essa herança. Nesse filme
mantém-se a tese de que todo conceito divino, que é obra do homem, tem
necessariamente de ser o conceito de um monstro. Um monstro com dois
rostos ou, como a personagem Karin diz: "o deus-aranha" (pp. 234-235).
Ele conta que, frequentemente, ia a igrejas com seu pai. Numa igreja em Uppland
(Suécia), em algum lugar na nave central há uma obra de Albertus Pictor. A pintura retrata a
morte: a morte jogando xadrez com um cavaleiro.
Para o cineasta, o cerne de O Sétimo Selo é o medo insano da morte, um tormento, um
sofrimento sem dimensão. Tudo relacionado à morte era horrível. Do horror e do temor da
bomba atômica, surgiu a história sobre a peste e a viagem de volta dos dois cavaleiros. E é
claro que havia toda a questão representada pela religião, como "Existe Deus? Não existe
Deus?" O Sétimo Selo não traz uma resposta para esta questão. O Deus de Bergman estava
silencioso. Apesar disto, o cavaleiro Antonius Block, clamava por conhecimento, respostas
para o enigma de uma existência não compreendida.
Desenvolvimento
Deitado nas pedras com sua espada, o mar à frente e um tabuleiro de xadrez ao seu
lado, o cavaleiro tem um olhar perdido, talvez em alguma batalha sem propósito. Seu fiel
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escudeiro, Jons, com uma faca em punho, largado nas pedras, quase morto, finalmente se
movimenta. Dois cavalos pretos no mar aguardam seus donos. Block caminha até o mar, se
banha rapidamente, Jons, tenta rezar, mas não consegue. Subitamente Block é surpreendido
com a aparição de uma figura um tanto estranha:
- Block: Quem é você?
- O Estranho: Eu sou a Morte.
- Block: Você veio me buscar?
- A Morte: Ando com você há muito tempo.
- Block: Eu sei.
- A Morte: Está preparado?
- Block: Meu corpo está, mas eu, não. (O abraço da Morte se aproxima.)
- Block: Espere.
- A Morte: Está bem, mas não posso adiar.
- Block: Você joga xadrez?
- A Morte: Como sabe?
- Block: O Cavaleiro: Eu já vi nas pinturas.
- A Morte: Posso dizer que jogo muito bem.
- Block: Se eu vencer, viverei. Se for xeque-mate, me deixará em paz. Jogue
com as pretas.
- A Morte: Muito apropriado, não acha?
Essa "Morte" retratada por Bergman é misto de palhaço e caveira. Pode-se zombar
desta figura tão ameaçadora e ao mesmo tempo tão engraçada? Quem permitiu tão estranha
aparição? Só mesmo um palhaço ou a morte chegam assim, inesperadamente, sem convite.
Fazendo-a, quase, um palhaço, Bergman sentia que exercia algum tipo de controle sobre ela e
nada melhor do que o desafio do xadrez, um jogo que exige concentração e o conhecimento
da alma de seu oponente. Neste início a Morte é desafiada, num contrato, numa negociação
firmada entre Vida e Morte e entre eles a negociação do tempo, a consciência da finitude, da
passagem dos segundos, minutos, horas (talvez)...
Assim, o cavaleiro aceita as regras do jogo, ele quer viver, prolongar o máximo que
puder sua estada. Otto Lara Resende3 citado por Figurelli (2005), ainda argumenta: "terá ele
a oportunidade de ver que, "sem a morte, a vida não teria o menor sentido" (p. 130).
Acionado o cronômetro, com o tempo correndo, Block e Jons seguem viagem. No
retorno para casa, seu fiel escudeiro Jons, canta, provocando seu senhor: "- Entre as pernas
de uma prostituta está o conforto para um homem como eu. Deus está lá em cima, ele está
tão longe, mas o seu irmão diabo encontramos por todos os lados."
Na realidade, ele se refere à peste, à morte, ao fim, que acabarão encontrando pelo
percurso; a morte eloquente, mas melancólica, que muito diz na sua mudez. Lá longe está
um Deus, calado, inacessível.
Block permanece em silêncio. Qualquer palavra falada representa perigo. Os dois
param durante o percurso, precisam de informação para chegar ao destino.
' Otto de Oliveira Lara Resende (São João Del-Rei, 1922 — Rio de Janeiro, 1992) foi jornalista e escritor brasileiro.
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"- Jons fala a um homem que encontra: Como chego à Taverna?"
Como o homem não responde, Jons tenta ver seu rosto. Surpreso, este vê que o homem
já se transformou em um corpo em decomposição. Jons monta seu cavalo, sem nada falar.
"Ela está por todos os lados, caminhamos entre corpos que agonizam, abandonados", pensa
ele.
Num país arruinado pela peste e pelo sofrimento, a Morte está necessariamente
onipresente, ela espreita soberana, cada passo, cada movimento. Uma Morte que, quase,
pode ser tocada, aquela que tem e conhece o vazio das almas que esperam. Bergman usa a
imagem significante da luta travada numa partida de xadrez para descrever sua própria
suposição pessoal sobre Deus e religião. Utilizando a peste e o flagelo, ele oferece reflexões
sobre as crenças religiosas de cada um, com a aceitação da infecção - a morte contagiosa - e
da predestinação de suas vidas, de formas variadas: dependendo de suas inclinações
espirituais e de seu relacionamento com o Deus - que eles entendem como criador,
instigador de todos os acontecimentos e salvador - e com o demônio, que deve ser derrotado
e banido (Frost-Sharratt, 2009).
Bergman (1996) conta que na realização de O Sétimo Selo ainda se sentia preso na
problemática religiosa. O filme apresenta dois conceitos que se exprimem cada um na sua
própria linguagem: de um lado um armistício relativo entre a crença religiosa, de menino, e
um rude racionalismo, de adulto. Depois a ideia de que o Homem é um ser sagrado,
retratado através do casal de saltimbancos, Jof e Mia:
Jof e Mia são, para mim, uma imagem importante, pois, mesmo excluindo a
teologia, sua natureza divina persiste. O filme também mostra uma atitude
amistosa quanto à imagem da família: é a criança que vai conseguir o
milagre. Graças a ela, a oitava bola que o malabarista atira para cima vai
ficar parada, no ar, uma fração de segundo. Em O Sétimo Selo nada é
mesquinho. (pp. 233-234)
Na visão do cineasta, cabe à criança conseguir o milagre da vida. "Nada é mesquinho
neste filme" porque todos os medos e desejos estão presentes numa constrangedora
exposição, é como se os sentimentos de Bergman estivessem à flor da pele, em carne viva, ele
se desnuda cruelmente diante das câmeras.
Neste retorno ao lar, Block e Jons passam pelos saltimbancos (Jof, Mia, o bebê e Skat).
Mais tarde todos os personagens, pecadores e não pecadores, inocentes e culpados se
encontrarão. Quem será poupado?
Mas a visão, apenas o ingênuo Jof tem. Assim acontece a aparição divina da Virgem
Maria com seu bebê. Ela usa uma coroa dourada e um manto azul com flores. Está descalça,
tem mãos pequenas e ensina um bebê a caminhar. Com lágrimas nos olhos de um pobre
saltimbanco com a imagem da santa, vemos a expressão da vida. Então, houve um silêncio
que se espalhou por toda parte, pelo céu e pela terra.
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Bergman (1996), sobre as visões divinas de seu personagem Jof, analisa os filmes O
Sétimo Selo e Fanny e Alexander, comparando os personagens centrais:
Jof é um personagem que antecede a do rapazinho de "Fanny e Alexander".
Alexander se zanga porque, apesar de ter medo deles, é obrigado a conviver
constantemente com fantasmas e demônios. Por outro lado, não pode deixar
de contar suas histórias inventadas, fazendo isso para se dar ares de
importante. Jof é ambas as coisas: um fanfarrão e um visionário. Jof e
Alexander são, por sua vez, parentes do menino Bergman. É que eu, quando
criança, vi, é certo, muitas coisas, mas em geral eu mentia. E quando as
visões não bastavam, inventava-as (p. 236).
Na longa jornada, Block e Jons seguem viagem. O sino da igreja toca. Eles param. Jons
encontra um pintor na igreja e inicia uma conversa, será o "falar alegórico" sobre a "temida".
- Jons: O que isto representa?
- Pintor: A Dança da Morte.
- Jons: E esta é a Morte?
- Pintor: Sim, ela dança com todos.
- Jons: Por que você pinta isso?
- Pintor: Para todos lembrarem que morrerão.
- Jons: Não vão olhar a pintura.
- Pintor: Claro que vão. Um crânio é mais interessante do que uma mulher
nua.
- Pintor: É incrível, mas as pessoas acham que a peste é um castigo de Deus.
E aquelas que se consideram escravas do pecado se flagelam pela glória de
Deus.
Para o assustado Jons, a pintura sugere o próprio medo das pessoas em relação à
danação. Morin (1951/1997) afirma ironicamente, referindo-se ao cristianismo, que Deus
nasce e vive da noção de morte: "A religião é determinada unicamente pela morte. Cristo
irradia em torno da morte, só existe para e pela morte, traz consigo a morte e vive da morte"
(p. 194).
O historiador Philippe Ariès (1975/1989) expõe a morte e o modo como foi vivenciada
pelo homem em cada época, a partir da sua obra História da Morte no Ocidente. Para o autor,
houve um longo período na história, no qual as mudanças no modo como a morte era
percebida ocorriam muito lentamente e eram quase imperceptíveis. A vivência da morte se
dava em família, era a chamada "morte domada". Acreditava-se no destino coletivo e
aceitava-se a ordem natural das coisas, pois a socialização não separava o homem da
natureza. Era o mundo dos vivos e dos mortos ligados por uma relação quase simbiótica e
aos mosteiros cabia o papel de interceder junto ao "além" em favor da sociedade.
É no século XV, segundo Ariès, que a morte passa a estar profundamente ligada a
"morte física, carniça e podridão, a morte macabra".
No século XIV é visível a preocupação em esculpir com realismo as feições do morto
enquanto vivo, para ser identificado como tal e perpetuada a sua memória, originando a
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procura da verossimilhança no retrato. Em meados deste século, esta tendência e a reflexão
sobre a morte, aliada ao progresso nos estudos anatômicos, conduz à representação do corpo
mirrado do morto, envolto num lençol ou nu, como cadáver em decomposição, revelando a
consciência da precariedade do corpo e da perenidade do espírito, além do gosto pelo
mórbido.
Nenhuma outra época, como a do declínio da Idade Média, se atribuiu tanto valor ao
pensamento da morte. Segundo Huizinga (1924/1985), a queixa sem fim da fragilidade da
glória terrena era cantada em várias melodias: Onde estão agora aqueles que, em dado
momento, encheram o mundo com suas vidas? Quão angustiante é a constatação da beleza
humana reduzida a decrepitude. A inevitável dança da morte com Hades (o soberano do
mundo inferior), democraticamente, arrastando homens de todas as condições e idades.
No transcorrer do século XV, dois tempos convivem paralelamente: o tempo da igreja,
regido pelo sino, pela oração, dom inseparável do homem, e o tempo laico, organizado
matematicamente pelo relógio, pelos marcadores humanos.
O século XIV, cenário de O Sétimo Selo, assinala o apogeu da crise do sistema feudal,
representada pelo trinômio "guerra, peste e fome", que juntamente com a morte, compõem
simbolicamente os "quatro cavaleiros do apocalipse" no final da Idade Média.
O homem que lutava pelas Cruzadas, na chamada guerra santa, via seu país devastado
pela peste e começava a questionar sua fé. Bergman desenvolve essa ideia apresentando
diversos elementos do sistema simbólico medieval a partir da sua própria perspectiva
existencialista: questões delicadas, como a manipulação da fé pela Igreja, a exploração da
ideia da peste como castigo divino e a expiação dos pecados pela dor que, inclusive, motivou
um movimento popular em 1348, conhecido como flagelantes - representado em uma das
cenas célebres do filme.
Numa visão crítica, Elias (1982/2001) ressalta a visão romântica da morte entendida
por Ariés na interpretação dos dados históricos, especialmente quando fala ter havido um
tempo em que a relação do ser humano com a morte era calma e revestida de serenidade.
Pontua a presença do tormento e da angústia como algo que sempre permeou a relação do
ser humano com a morte, pois está implicada na consciência da morte:
O certo é que a morte era tema mais aberto e frequente nas conversas na
Idade Média do que hoje. A literatura popular dá testemunho disso. Mortos,
ou a Morte em pessoa, aparecem em muitos poemas. Em um deles, três
vivos passam por um túmulo aberto e os mortos lhes dizem: "O que vocês
são, nós fomos. O que somos, vocês serão." Em outro, a Vida e a Morte
discutem. A Vida se queixa de que a morte está maltratando seus filhos; a
Morte ostenta seu sucesso. Em comparação com o presente, a morte naquela
época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar.
Isso não quer dizer que fosse mais pacífica. Além disso, o nível social do
medo da morte não foi constante nos muitos séculos da Idade Média, tendo
se intensificado notavelmente durante o século XIV. As cidades cresceram. A
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peste se tornou mais renitente e varria a Europa em grandes ondas.
Pregadores e frades mendicantes reforçavam tal medo. Em quadros e
escritos surgiu o motivo das danças da morte, as danças macabras. Morte
pacífica no passado? Que perspectiva histórica mais unilateral! (p. 21).
Com a angústia da morte na alma, Block se refugia na igreja diante de Cristo na cruz, o
sino toca. Block avista um "suposto" padre no confessionário e caminha em sua direção.
- Block: Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O
vazio é um espelho que reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e
sinto repugnância e medo. Pela indiferença ao próximo, fui rejeitado por ele.
Vivo num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias.
- Padre: Agora quer morrer?
- Block: Sim, eu quero.
- Padre: E pelo que espera?
- Block: Pelo conhecimento.
- Padre: Quer garantias?
- Block: Chame como quiser. É tão inconcebível tentar compreender Deus?
Por que Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como
podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com
aqueles que não querem ter fé ou não tem? Por que não posso tirá-lo de
dentro de mim? Por que Ele vive em mim de uma forma humilhante apesar
de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser
uma falsa realidade eu não consigo ficar livre? Você me ouviu?
- Padre: Sim, ouvi.
- Block: Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda
as mãos para mim, que mostre Seu rosto, que fale comigo.
- Padre: Mas Ele fica em silêncio.
- Block: Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve.
- Padre: Talvez não haja ninguém.
- Block: A vida é um horror. Ninguém consegue conviver com a morte e na
ignorância de tudo.
- Padre: As pessoas quase nunca pensam na morte. Mas um dia na vida
terão de olhar para a escuridão. Sim, um dia.
- Block: Eu entendo. Temos de imaginar como é o medo e chamar esta
imagem de Deus.
- Padre: Está nervoso.
- Block: A morte me visitou esta manhã. Jogamos xadrez. Ganhei um tempo
para resolver uma questão urgente.
- Padre: Que questão?
- Block: Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem
sentido ou ligações. Uma vida sem sentido. Não falo isto com amargura ou
reprovação como fazem as pessoas que vivem assim. Quero usar o pouco
tempo que tenho para fazer algo bom.
- Padre: Por isso jogou xadrez com a Morte?
- Block: Ela tem táticas inteligentes, mas até hoje não perdi para ninguém.
- Padre: Como vencerá a Morte no seu jogo?
- Block: Tenho uma jogada com o bispo e o cavalo que ele não conhece.
Quebrarei sua defesa. (Finalmente, "O Padre" revela sua verdadeira
identidade: "A Morte")
- A Morte: Lembrarei disto. (Block se assusta ao perceber que foi enganado)
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- Block: Você é um traidor [referindo-se à Morte] e me enganou. Mas nos
encontraremos de novo, e eu acharei uma saída.
- A Morte: Nos encontraremos e continuaremos nosso jogo.
(A Morte se retira, Block fica sozinho e pensa)
Somos velhos porque o tempo é implacável, nos transforma e não no sentido de sermos
vítimas de um passar dos anos maldito! Envelhecer é da vida, é parte e não fim. Como diz
Concone (2007) em 'Medo de envelhecer ou de parecer?', "A morte aterroriza-nos e a
passagem dos anos aproxima-nos dela. Parafraseando Marx, estamos habituados a pensar
(ou teorizar) sobre a 'morte em si', dificilmente sobre a morte 'para si'. Negar o idoso de
carne e osso seria negar a finitude" (p. 21).
O diálogo entre Block e o "suposto" Padre - Morte mostra que não há como escapar do
fim, não há saída, entretanto o conhecimento que o cavaleiro tanto implora pode, justamente,
estar neste silêncio provocativo de Deus. Provocativo porque obriga o homem a olhar para
dentro de si e buscar respostas que não estão fora, mas podem estar num processo de vida
que inclua constantes nascimentos e mortes.
Caminhamos na direção da morte, os centímetros da régua dos anos diminuem a cada
dia e nisto também reside um sopro, um desejo alucinante de vida. Mas Block não
compreende, talvez porque se sinta um eterno pecador e queira justificativas, respostas
prontas ou conhecimento do que não lhe é permitido saber, como ele mesmo diz, para um
enigma que está na alma. E se nesta alma reside Deus, quem pode saber? O Deus de Block
não está acessível.
Grün e Müller (2010), citando Jung, afirmam que a alma é uma instância curadora que
opera em nós silenciosamente, é "força movente, força vital" (p. 18). Ela assume a direção de
nossa vida quando falha o nosso eu consciente. Ela constitui uma referência para nosso
mundo religioso.
Jung (1944/1991) em sua compreensão da alma, recorre sempre a representações
mitológicas e religiosas. No capítulo Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia
em Psicologia e alquimia, volume XII das Obras Completas, o autor diz:
Assim como o olho corresponde ao sol, a alma corresponde a Deus. E, pelo
fato de nossa consciência não ser capaz de aprender a alma, é ridículo falar
acerca da mesma em tom condescendente ou depreciativo. O próprio cristão
que tem fé não conhece os caminhos secretos de Deus e deve permitir que
este decida se quer agir sobre ele a partir de fora, ou, interiormente, através
da alma (p. 23).
Antonius Block exclama: "A vida é só horror e humilhação. Ninguém pode viver em
face da morte sabendo que tudo é sem sentido".
Há muitas maneiras de lidar com o fato de que todas as vidas, incluindo a nossa e
daqueles que amamos, têm um fim. O fim da vida humana que chamamos de morte pode ser
interpretado pela ideia de uma outra vida no reino de Hades, Deus do mundo inferior e dos
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mortos, pela mitologia grega ou segundo a mitologia nórdica, no Valhalla, local onde os
guerreiros vikings eram recebidos após terem morrido, com honra, em batalha. Nós, seres
humanos, enfrentamos nossa própria finitude, tocados pelos conceitos de Inferno ou Paraíso
que vieram dos antigos, conceitos estes que viajaram através dos tempos e formam
atualmente nossa ideia de fim.
Outra possibilidade seria assumir a crença inabalável em nossa própria imortalidade,
"os outros podem morrer, eu não". A questão é: somos impotentes diante da mortalidade e
morremos em qualquer fase da nossa breve ou longa vida.
Pessini (2009) lembra que a morte sempre nos visita, mansamente, espreita pela vida,
desde cedo, talvez desde sempre. Ela se apresenta através das perdas de nossos entes
queridos, e porque não dizer de todas as transformações sofridas, mortes subjetivas de partes
de todos nós, que obriga a refletir sobre nossa finitude.
O olhar do cavaleiro, como um alter-ego de Bergman, expressa seu terrível horror a
morte, mas principalmente a inquietante certeza de que se morresse, não existiria mais, sua
total impotência diante da falta de controle sobre esse morrer, tão pouco palpável,
desconhecido, silencioso. Essa consciência da morte, do nada, o aterroriza.
Assim Bergman (1996) afirma:
Que eu, de repente, tenha tido a coragem de dar à Morte a figura de um
palhaço branco, personagem essa que conversava, jogava xadrez e não
arrastava consigo quaisquer segredos, foi o primeiro passo em minha luta
contra o horror que sentia da morte (p. 238).
Block pensa: "Esta é minha mão. Posso mexê-la. O sangue pulsa nela. O sol está alto no
céu e eu, Antonius Block jogo xadrez com a Morte". Na cena seguinte seu fiel escudeiro Jons
aparece, novamente, conversando com o Pintor.
- Jons: Eu e meu senhor acabamos de voltar. Você me entende, pintor?
- Pintor: A Cruzada?
- Jons: Exatamente. Passamos 10 anos na Terra Sagrada sendo mordidos por
cobras, mosquitos e animais selvagens, assassinados por pagãos,
envenenados pelo vinho, infestados por piolhos que nos devoravam, e a
febre que matava. Tudo pela glória de Deus. A Cruzada foi uma tolice que
só um idealista inventaria. (Eles riem às gargalhadas). E a peste foi horrível.
Sou o escudeiro Jons. Desprezo a morte, zombo de Deus, rio de mim mesmo
e sorrio para as mulheres. Meu mundo é meu, e só acredito em mim mesmo.
Ridículo para todos, até para mim mesmo, sem sentido para o Céu e
indiferente para o inferno.
Jons se rebela pelo tempo perdido nas Cruzadas, para ele uma luta inglória por um
Deus que não se revela, só oferece a morte, a desgraça e o sofrimento. Por isso ele diz que
zomba de Deus e se delicia nos prazeres da carne, é a compensação por tanta humilhação e, o
principal, por um tempo e uma vida que não retornam.
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Toda a indignação de Jons pode ser resumida trazendo as palavras de Monteiro (2006)
quando diz que "somos fadados a escolher sempre" e diante disto reside o derradeiro
confronto com nossa finitude e a morte. E acrescenta:
Somos seres de passagem. A consciência da finitude e da morte são
realidades estruturais presentes no processo de individuação ou da
constituição de si mesmo. A alma, paradoxalmente, parece ter entre suas
metas a morte e a continuidade da vida. Portanto, para a alma, a morte está
presente como fiel escudeira. (pp. 43-44)
Na sacralidade de uma procissão surge Cristo na Cruz, acompanhado por leprosos,
sacrifícios múltiplos, violência, fanatismo, e tudo em nome de Deus - o martírio dos
flagelantes. O início é marcado pela apresentação dos artistas (Jof, Mia e Skat), numa
inocente maneira de divertir o público do vilarejo. Eles dançam, cantam, brincam e tocam
instrumentos. Mas o contraste é revelado: a alegria dos artistas seguidas de dor, culpa,
desespero e fé dos torturadores: "Eles acreditam que a peste é um castigo de Deus por eles
serem pecadores". Os olhos de Jof e Mia se enchem de espanto, assim como a de todas as
pessoas que veem a procissão. A música comove, fere e ressalta a dor.
Os flagelantes passam por uma porteira carregando imagens e cruzes, sinalizando a
culpa e a penitência. Pobres seres, vestidos como monges, com roupas esfarrapadas, rezam,
gemem, gritam e sofrem ao som dos chicotes. Um padre fala ao povo:
Deus mandou Seu enviado. Silêncio! Todos padecemos com a Morte Negra.
Você aí, parado como um animal bovino e você, sentado com este ar de
auto- complacência. Sabem que pode ser o fim de todos. A morte está atrás
de vocês. Posso ver sua sombra refletindo no sol. Sua ceifeira brilha quando
a levanta sobre suas cabeças. Quem será o primeiro a morrer? Você aí,
olhando feito um tolo, sua boca emitirá seu último gemido antes do
anoitecer. E você, mulher! Que leva uma vida de abundância e luxúria. Irá
murchar e desaparecer antes do amanhecer. E você aí! Com seu nariz
inchado e sorriso de idiota. Tem mais um ano para desgraçar a terra com seu
desprezo. Todos vocês, idiotas e tolos sabem que morrerão! Hoje, amanhã,
depois de amanhã! Estão condenados! Vocês ouviram? Condenados! Senhor,
tenha piedade de nós em nossa humilhação! Não nos castigue, tenha
piedade de nós em nome de Jesus!.
A procissão segue, promovendo atrocidades e promessas de danação eterna, a
verdadeira exploração da fé e como diria Bilharinho (1999), "dos mais tristes atestados da
debilidade, desorientação e desvios humanos" (p. 23).
Entretanto, como diria o mesmo autor, convivendo com estes terríveis aspectos da vida
social, coexistem a alegria e a felicidade, encarnadas no casal de saltimbancos, atores
ambulantes que percorrem estradas e localidades distribuindo esses dons e predicados do
seu humano.
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Com isso Bergman quis mostrar que ainda existe espaço para a celebração da vida
representada por Mia, Jof e o bebê e os sofridos e inconformados viajantes, Block com seu
tabuleiro e Jons com sua justiça.
Bilharinho (1999, p. 24) complementa este quadro de opostos:
De um lado, a maldade, a tristeza, a peste, a ignorância, o fanatismo, as cores
negras, o instável modo de vida. De outro, a luminosidade, a alegria, a
felicidade, o encantamento, o mundo mágico dos puros, dos poetas e dos
artistas. A força da vida e sua continuidade (p. 24).
E na celebração da vida, a refeição é iniciada: uma cena que lembra Cristo e seus
apóstolos. No lugar do pão, os morangos; no lugar do vinho, o leite. Na celebração de Cristo,
um traidor; entre os nossos personagens a Morte. Como bem disse Bergman, nada é
mesquinho em O Sétimo Selo. Emocionado, Block chora a dor da despedida e guarda a mais
calorosa lembrança deste encontro com Jof e Mia
- Block: A fé é uma aflição dolorosa. É como amar alguém que está no escuro
e não sai quando chama. Não me esquecerei deste momento: o silêncio, a
tijela de morangos e o leite. Seus rostos na luz do entardecer. O bebê
dormindo na carroça e Jof com sua canção. Tentarei lembrar do que
dissemos e levar esta lembrança entre minhas mãos com cuidado, como se
fosse uma tijela cheia de leite. Isto será um símbolo para mim e uma grande
ajuda.
Como menciona Figurelli (2005), "este hino às pequenas alegrias do cotidiano precede
a realização de mais um lance de xadrez entre o cavaleiro e o Anjo da Morte, após a
horrorífica travessia da floresta" (p. 132).
Juntos, o grupo segue viagem, pensativos e amedrontados, cada qual rumo ao seu
próprio confronto. Param para um breve descanso, olham o horizonte. Block levanta, se
afasta e vê...a seu lado, a Morte que espreita. Ela diz a Block: "Estive esperando".
Em silêncio, ela os acompanha, mas desta vez decide assombrar o covarde fujão e
pecador, Skat, que se esconde descansando no tronco de uma árvore. De repente...
Skat: - Está cortando minha árvore? Por que está cortando minha árvore.
Poderia pelo menos ter a educação de dizer quem é?
- A Morte: Estou cortando a árvore, pois seu tempo acabou.
- Skat: Não tenho tempo para isto.
- A Morte: Não tem tempo?
- Skat: Tenho uma apresentação.
- A Morte: Foi cancelada, o ator morreu.
- Skat: Não tem um perdão especial para atores?
- A Morte: Não neste caso.
- Skat: Nenhuma alternativa? Nenhuma exceção?
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E a Morte, implacável, continua cerrando a árvore até que... um rato aparece sobre o
toco do tronco recém-cortado. Sabemos com isso que o pecador Skat está morto. Ele teve sua
punição, não houve adiamento da pena, nem concessão especial para atores. Os infiéis
merecem a morte. Ele foi o primeiro a "saber-se finito".
O grupo continua sua viagem pela floresta. Todos têm medo. Jof avisa "As árvores
estão silenciosas, porque não há vento, não há um som sequer, se pudéssemos ouvir uma
raposa, ou uma coruja, ou uma voz humana...além das nossas". A natureza tem medo. Todos
estão assustados e se entreolham. Passa uma jaula com uma jovem e suposta bruxa indo para
a execução.
Ao chegar no local, Block vai ao encontro da jovem:
- Block: Dizem que esteve com o diabo.
- Bruxa: Por que pergunta?
- Block: Tenho um motivo especial. Quero encontrá-lo. Quero perguntar a
ele sobre Deus. Ele deve conhecê-lo mais do que qualquer um.
- Bruxa: Pode vê-lo quando quiser. Faça o que eu mandar. Olhe nos meus
olhos. O que está vendo? O que vê?
- Block: Vejo muito medo nos seus olhos, nada mais. Nada mais.
Bergman na "pele" de Antonius Block discute a existência humana, questões ligadas ao
tão procurado sentido da vida, da imortalidade da alma e a existência de Deus. O angustiado
cavaleiro se aproxima da jovem, supostamente, possuída pelo demônio e insiste: "Quero
perguntar ao Diabo sobre Deus. Pelo menos ele, já que ninguém mais sabe, poderá dizer-me
alguma coisa".
Frankl (1981/2008), em seu livro Em busca de sentido, fala de uma conquista interior,
talvez a chave do enigma existencial que nosso personagem Block tanto procura:
A liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permitelhe, até o último suspiro, configurar a sua vida de modo que tenha sentido
(...) Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá
(p. 90).
Para o inconformado Block o sentido da vida está muito além dele. Como a própria
Morte já disse, respostas fáceis não virão, o sentido da existência se faz e se constrói numa
vida que também é sofrimento. Jons lamenta o destino da jovem:
- Jons: Quem cuida dela? Um anjo, o diabo, Deus, ou é apenas o vazio? O
vazio.
- Block: Não pode ser.
- Jons: Veja os olhos dela. Ela está descobrindo algo. O vazio sob a lua.
Estamos impotentes pois vemos o que ela vê e tememos o mesmo. Pobre
criança. Não posso suportar! Talvez seja o Juízo Final.
Gemidos são ouvidos: - Tem um pouco de água? Preciso de água.
Na verdade, é Raval, o padre traidor que diz que está com a peste.
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- Raval: Estou com medo de morrer! Não quero morrer! Não tem piedade de
mim? Ajudem-me. Pelo menos, falem comigo! Eu vou morrer. Eu...o que
acontecerá comigo? Pelo menos, confortem-me. Não veem que estou
morrendo? Não vão me ajudar? Quero água. Ajudem-me!
Raval grita desesperadamente e morre.
Bergman (1996) conta que esta cena lhe inspirava um misto de fascínio e medo. Atrás
de uma árvore, ao morrer, Raval enterra sua cabeça, ao mesmo tempo em que uiva de pavor.
O mestre lembra, enigmático:
Logo que Raval morre, por qualquer motivo deixei que a câmera
continuasse a filmar e, subitamente, sobre a clareira misteriosa da floresta,
comparável a um palco, cai um pálido raio de luz. O dia inteiro estava
nublado, mas justamente quando Raval morre surge uma luz como se nós a
tivéssemos preparado! (p. 238).
Raval é o segundo que pro va da experiência de "morrer".
Após o fim de Raval, Block levanta a cabeça e vê A Morte, que lhe diz: "Não vamos
terminar nosso jogo?" Ela ameaça-o constantemente.
Subitamente, Jof vê a imagem da Morte e acorda Mia. Vemos que o saltimbanco Jof é
abençoado, novamente, com o dom da visão que o alerta a seguir viagem sozinho com sua
família e não acompanhar o "grupo pecador". A Morte os persegue pela floresta.
Block e a Morte:
- A Morte: Vejo algo interessante.
- Block: O quê?
- A Morte: O xeque-mate será na próxima jogada.
- Block: É verdade.
- A Morte: A demora o deixou feliz?
- Block: Sim.
- A Morte: Fico feliz. Agora o deixarei. Mas no nosso próximo encontro você
e seus amigos terão o seu fim.
- Block: E me contará os segredos.
- A Morte: Não escondo segredo algum.
- Block: Não sabe de nada?
- A Morte com seu olhar penetrante: Não sei de nada.
O que Block talvez, ainda não saiba, é que conhecer os segredos é um dos enigmas da
Vida, as respostas não estão na Morte. O cavaleiro aceita seu fim, resignado, mas não desiste
do conhecimento, das revelações da existência.
Conclusão
Conhecimento implica risco de viver e descobrir os segredos que, muitas vezes, estão
mais próximos dos nossos olhos do que podemos supor. Mas a cegueira do homem seja do
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século XIV ou do mundo contemporâneo é total. Por que não podemos ver a morte como a
natureza vê a si mesma?
Buscando refúgio da "maldita", o grupo chega, finalmente, à casa de Block, ao destino
inevitável. Karim, a mulher dele, os recebe: - Soube pelos cavaleiros que estava voltando.
Esperei aqui, todos os outros fugiram da peste. (Ela sorri). - Não me reconhece mais? (Ele
sorri). - Você também mudou. (Karim se aproxima). - Agora vejo que é você. Em algum lugar
nos seus olhos, em algum lugar no seu rosto, escondido e assustado está o rapaz que deixei
há tantos anos. Mande os seus amigos sentarem. Preparei o café.
(Todos estão à mesa. Esta será a última refeição, a última Celebração da
Vida)
- Karim: Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca
de meia hora.
Então vi sete anjos diante de Deus e a eles foram dadas sete trombetas.
(Alguém bate à porta, Jons levanta para ver)
- Karim continua: O primeiro anjo a tocou e uma chuva de pedras, fogo e
sangue foi lançada sobre a terra e um terço da terra queimou e uma terça
parte das árvores foi queimada e toda pastagem foi queimada. O segundo
anjo tocou e parecia que uma grande montanha em chamas tivesse sido
lançada ao mar. E uma terça parte do mar virou sangue.
O terceiro anjo tocou e do céu, caiu uma grande estrela queimando como se
fosse uma labareda e esta estrela foi chamada de "Absinto".
(Todos olham a porta, a Morte chegou)
- Block: Bom dia.
- Karim: Sou Karim, esposa do cavalheiro. Seja bem-vindo à minha casa.
- Plog: Minha profissão é de ferreiro. E posso dizer que sou muito bom.
Minha esposa Lisa. Cumprimente o senhor. (Ela faz uma reverência)
- Block com as mãos sobre a cabeça: Suplico Sua prece, Senhor. Tenha
misericórdia de nós, Deus. Pois somos pequenos e assustados em nossa
ignorância.
- Jons para Block: Em sua alegada escuridão, onde devemos todos estar, não
há ninguém para ouvir suas lamentações e sofrimentos. Limpe suas lágrimas
e enxergue sua indiferença.
- Block: Deus, que está em algum lugar, deve estar, tenha piedade de nós.
- Jons: É tarde demais para ser absolvido de seus pecados eternos. Mas, neste
último momento, pelo menos sinta o triunfo de enxergar e se mover.
- A jovem governanta se ajoelha diante da morte, sorri e diz: "Chegou a
hora".
Bem longe, estão Mia, Jof e o bebê ouvindo os passarinhos cantarem. Estão
diante do mar.
- Jof: Eu os vejo, Mia, eu os vejo. Lá no céu tempestuoso. Todos eles! O
cavaleiro Block, Jons, Raval, Skat, o ferreiro Plog e Lisa, sua esposa. E a
severa Morte os convoca para dançar. Quer que todos deem as mãos para
formarem uma longa fila. A Morte vai na frente com a foice e a ampulheta
mas Skat vai atrás com sua lira. Eles vão dançando, se distanciando do sol
em uma dança solene. Dançam rumo à escuridão, por sobre a borda de um
precipício distante e a chuva cai nos seus rostos lavando as lágrimas
salgadas da face.
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Considerações Finais
Nas palavras de Bergman, O Sétimo Selo representa "o medo insano da morte". Com
base nesta incômoda afirmação, há que refletir; por que lutar contra a morte? Côrte (2005),
citando o filósofo contemporâneo francês Jean Baudrillard, alerta para uma possibilidade do
pensar inverso: "Cegamente, sonhamos em sobrepujar a morte por meio da imortalidade,
quando o tempo todo a imortalidade é o mais terrível dos destinos possíveis" (p. 255).
Nascer, viver, envelhecer e morrer. Cumpre-se o ciclo, não há como evitar, se assim
não fosse, a dor seria imensa, ver as pessoas passarem, romper através dos séculos, esta é
uma imortalidade que não nos cabe, é uma vestimenta eterna e sofrida, e que assim seja,
brindemos a nossa mortalidade!
Em Todos os Homens são Mortais, Beauvoir (1946/1983) descreve um personagem do
século XIII, o conde Fosca, que atravessa o tempo e chega até nossos dias, questionando a
ambição, o poder, a imortalidade, o prazer, o destino e a transcendência. A imortalidade do
personagem principal "equivale a uma danação pura e simples". Ele está condenado ajamais
compreender a verdade desse mundo finito: o absoluto de toda consciência efêmera. Ele se
sente punido pela imortalidade que recebe, apesar de muito tê-la desejado pela vaidade e
ambição ao poder.
Para o profundo e denso Bergman (1996), com toda sua arte, sempre há um aceno de
esperança, um vislumbre de salvação e isso é "Vida", é o estar aqui, vivendo. Disto sabemos,
já do "Além" nada sabemos.
Referências
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Nota sobre as autoras
Luciana Helena Mussi é Engenheira, Psicóloga, Mestre em Gerontologia e
Doutoranda em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Assistente-Editorial/Revisora da Revista Kairós Gerontologia e
Redatora/Colaboradora do Banco de Vídeos/Filmografia do Portal do
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Envelhecimento, do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (OLHE).
Contato: [email protected]
Beltrina Côrte é Jornalista, Doutora em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo (USP), Pesquisadora/Docente/Orientadora do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP e Editora de conteúdo do
Portal do Envelhecimento, do Observatório da Longevidade Humana e
Envelhecimento (OLHE). Contato: [email protected]
Data de recebimento: 22/05/2012
Data de aceite: 03/09/2012
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Berg, S. C. (2012). Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos epistemológicos propostos por
Jansen e Qvortrup. Memorandum, 23, 228-235. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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2
Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos
epistemológicos propostos por Jansen e Qvortrup
Teaching strategies and pedagogical tools according to epistemological models proposed
by Jansen and Qvortrup
Silvia Cabrera Berg
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar os modelos epistemológicos propostos por Bo
Jansen e Lars Qvortrup, assim como apresentar estratégias de ensino e ferramentas
pedagógicas adequadas à(s) realidade(s) de ensino de uma sociedade plural e de valores
culturais híbridos dentro de perspectivas de sociedades complexas e hiper complexas.
Palavras-chave: epistemologia, conhecimento; criação; cultura; ensino;
ferramentas pedagógicas
Abstract
This article aims at presenting the epistemological models proposed by Jansens and
Qvortrups as well as presenting teaching strategies and pedagogical tools appropriate to
the teaching reality of a plural society with hybrid cultural values within perspectives of
complex and hiper complex societies.
Keywords: epistemology; knowledge; creation; culture; teaching;
pedagogical tools
Introdução
Á crescente necessidade de se discutir as condições atuais do ensino no Brasil somamse também a crescente necessidade de questionamento e comparação de modelos para as
estratégias de ensino, assim como ferramentas pedagógicas adequadas à(s) realidade(s) de
ensino de uma sociedade plural e de valores culturais híbridos.
Este artigo tem como objetivos:
1. Apresentar e discorrer sobre as perspectivas teóricas e metodológicas propostas por
Jansen1 e Qvortrup2. A escolha pelos modelos propostos, inicialmente por Jansen que inicia
sua produção já no final da década de 70 e, mais recentemente, por Qvortrup deve-se ao fato
da autora ter participado em Copenhagen de pesquisas e elaboração de análises sobre
modelos para estratégias de ensino, subseqüentes ao lançamento do livro Skolens fremtider
(1997), sob a orientação de Torben Bo Jansen. Os modelos apresentados por Jansen e
Torben Bo Jansen, sociólogo e teórico dinamarquês, precursor dos estudos sobre as sociedades complexas no
norte da Europa.
Lars Qvortrup, Professor do Center for Interaktive Medier, Syddansk Universitet, dekan på Danmarks Pædagogiske
Universitetsskole, rektorfor Danmarks Biblioteksskole.
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Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
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Berg, S. C. (2012). Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos epistemológicos propostos por
Jansen e Qvortrup. Memorandum, 23, 228-235. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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2
Qvortrup não são modelos específicos de estratégia de ensino para áreas específicas de
conhecimento, nem são delimitados às sociedades escandinavas para as quais foram
originalmente pensados, mas sim modelos estruturais de ensino, portanto, passíveis de
utilização e aplicação em diferentes áreas de ensino, considerando-se as especificidades
inerentes a cada área e passíveis de aplicação em quaisquer sociedades plurais com valores
culturais híbridos.
2. Apresentar modelos para estratégias de ensino escandinavas, que por serem escritos
nas línguas nativas, ainda contam com pouca difusão fora dos países nórdicos, mas que por
sua adaptabilidade estrutural, poderiam ser inseridos dentro da discussão sobre o contexto
de ensino e formação de professores em outras sociedades que não tão somente as
escandinavas para as quais os modelos foram originalmente pensados.
O desafio atual representado pela complexidade
Lars Qvortrup (s.d.) em seu artigo Habilidades e competências na sociedade digital-cognitiva
defende que a complexidade é o principal desafio das teorias de conhecimento
contemporâneas, pensamento este já preconizado pelo teórico e sociólogo Torben Bo Jansen
(1982). A produção de ambos os autores por ser em sua quase totalidade em dinamarquês,
contam com pouca difusão fora dos países escandinavos.
Os modelos de sociedade cognitivos complexos propostos por Jansen trabalham
principalmente com o conceito de sociedade cognitiva, uma sociedade em que grande parte
de sua população procura a realização de valores cognitivos como o interesse por melhor
qualidade de vida, de saúde, melhores condições de ensino, preservação do meio ambiente,
realização pessoal, etc; valores individuais que contribuem para uma maior realização de
valores coletivos, contribuindo assim para o crescimento da sociedade como um todo
(Jansen, 1997a, p. 12). Para que esses valores possam ser realizados, Jansen (1997a) pressupõe
a sistematização de critérios de escolha, e a sistematização de critérios de filtragem de
informação (ante o acesso às informações a que a sociedade digital está sujeita), e a
transferência de conhecimentos antes delimitados a áreas específicas, a soluções
interdisciplinares, de modo que o crescimento individual seja um fator de crescimento
coletivo.
Qvortrup (2000) parte do conceito de sociedade cognitiva, acrescentando o conceito de
sociedade hipercognitiva, que concentra no hiper, mais do que o superlativo, a definição das
relações que se originam nas sociedades digital-cognitivas. Tais relações supõem as
múltiplas opções, e as possibilidades potenciadas do sistema a que um indivíduo é capaz de
se conectar, assim como leva em conta a arbitrariedade com que estas se dão e como se
relacionam com o mundo. A complexidade destas relações, longe de ser um fenômeno
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Berg, S. C. (2012). Estratégias de ensino e ferramentas pedagógicas segundo os modelos epistemológicos propostos por
Jansen e Qvortrup. Memorandum, 23, 228-235. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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restrito a sociedades pós-industriais, é um fenômeno global, dada o acesso às informações e a
rapidez com que estas se propagam.
Como decorrência destas relações, o conceito descritivo de cultura, que toma como
ponto de partida idéias, valores, regras e normas, que concebe o conceito de cultura como
sendo delimitado às fronteiras (sejam estas nacionais ou regionais), com a manutenção de
traços comuns, vêm sendo revisto criticamente. Este conceito não se aplica mais às
sociedades complexas, pois para estas, é necessário um conceito necessariamente dinâmico,
capaz de absorver as contradições inerentes à cultura e das relacões que se originam nas
sociedades cognitivas complexas.
Outro aspecto trabalhado por Qvortrup, é a de que a teoria da informação tem no
computador a sua forma básica de lidar com a complexidade. A alimentação básica das redes
digitais permite uma rede de organização e comunicação complexa e flexível a ponto de
corresponder à crescente complexidade social. A nível de organização de empresas, a
complexidade faz com que gestões transformem-se rapidamente a fim de ajustar-se às
estruturas horizontais (e não mais verticais) de decisões; a nível pessoal, o relacionamento
com a complexidade direciona-se à capacidade de buscar, filtrar, usar e transformar as
informações, convertendo-as, dessa maneira, em cadeias de novos conhecimentos.
Com isso, o reverso da medalha dos antigos modelos de trabalho monótonos e
repetitivos, (notadamente da sociedade industrial), cedem lugar à liberdade, mas por um
preço que pode muitas vezes parecer excessivo, uma vez que a liberdade requer constante
reconsideração do rumo a ser tomado, uma crescente pressão psicológica em busca de
mudanças e adaptações, e uma alta produção a velocidades cada vez maiores.
A constatação de que a rede de novos conhecimentos exige socialmente novas formas
organizacionais e, a nível individual, novas competências, aqui definidas como a capacidade
de criar conhecimentos, faz com que consideremos a premência de revisarmos modelos
educacionais e novas maneiras de nos utilizarmos de ferramentas pedagógicas. Requer
também que consideremos que a produção de materiais didático-pedagógicos adequados às
realidades de ensino de sociedades plurais e de valores culturais híbridos seja uma
necessidade crescente.
Cabe ressaltar que o conceito de habilidade está aqui interligado ao conhecimento
factual.
O conceito de competência, à capacidade de produzir conhecimentos e reinterpretá-los
de acordo com a crescente pressão advindas de novas informações e mudanças.
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
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A sistematização e classificação de competências segundo Qvortrup
Qvortrup (s.d.) aponta a necessidade de uma sistematização e classificação de
competências dentro das necessidades já apresentadas, e sugere o modelo teórico abaixo
descrito:
1. A competência do aprendizado, que na sociedade globalizada está em acelerado
processo de mudança, tem na capacidade de introspecção e no buscar interior, sua
característica básica, uma vez que referências à imutabilidade de normas já não são
mais suficientes para manter o ritmo e a complexidade com que as pressões externas
de acontecimentos e mudanças
surgem a
nível
mundial.
Portanto,
faz-se
necessário interpretar e transformar constantemente os próprios critérios voltados à
comunicação, observação e ação e, por consequencia, ao aprendizado. Esta é a competência
apontada por Qvortrup capaz de filtrar e direcionar as informacões, de modo que estas
possam ser transformadas em conhecimento.
2. A competência da comunicação, baseada na observação do estranhamento, que para
Qvortrup é uma condição básica para qualquer sistema psicológico ou social, que existe em
virtude da diferenciação entre o eu e o mundo externo, e que em uma sociedade hiper
complexa, caracteriza-se tanto pelo número crescente de diferentes situações
e relações externas, quanto pela capacidade de se colocar no lugar do outro, estabelecendo
relações de comunicação, agora de outra natureza, uma vez que as bordas destas relações são
flexíveis e mutáveis. A capacidade de se relacionar a isso a partir de um conhecimento, por
um lado, daquilo que é pertinente, e por outro, pelo estranhamento, constitui-se na segunda
competência básica de uma sociedade hiper complexa proposta pelo autor.
3. A competência de formulação é aqui apresentada como a capacidade
baseada na observação da observação, isto é, a capacidade de observar e apontar os
valores comuns de uma determinada sociedade ou coletividade, mas que ainda não foram
identificados como tal coletivamente. Independentemente da velocidade com que
as mudanças ocorram, socialmente, haverá sempre a estabilização de pelo menos um
horizonte de formulação ainda que temporário, e isso significa que este horizonte não
necessita pertencer a um ou outro determinado grupo, mas que pode ser pertencente à
comunidade ou sistema social de valores coletivos. Portanto, a capacidade de formulação é
essencial para identificar e respeitar essa base comum, possivelmente em processo de
mudança, ou quando um grupo ou uma organização encontra outro grupo ou organização,
cientes de que os horizontes de formulação podem ser diferentes. Esta é, por exemplo, uma
capacidade básica para a solução de conflitos, sejam estes quais forem, de freqüentes fusões a
nível inter-regional ou internacional, ou qualquer intervenção que necessite de mediações.
Esta forma de competência é uma combinação de habilidades de reflexão, habilidades de
relacionamentos e habilidades na formação de opiniões, e que constituem o perfil de hiper
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habilidades necessárias às hiper sociedades formadas ou em formação. Ao desenvolver esse
conjunto de competências o indivíduo deve possuir a competência de:
1. Aprender a aprender e de reformular constantemente o aprendido. É a competência
de constantemente saber interpretar e redefinir as próprias possibilidades de observação,
comunicação e ação, pré-requisitos para a aprendizagem.
2. Aprender e reformular o comunicativo, a habilidade de comunicação capaz de
observar o outro, pré-requisito da capacidade de colaboração social.
3. Aprender e reformular o social dentro e sobre um grupo social ou sociedade. A
competência de saber ver as relações.
Kjeld Fredens3 (citado em Tambo, 2005) acrescenta ainda uma quarta habilidade, que é
a capacidade de saber e poder se adaptar.
A sociedade em constante processo de aprendizado, mais do que uma visão do futuro,
é uma necessidade do presente. A posição defendida neste artigo vai claramente de encontro
a afirmação de que as competências só podem surgir com base em qualificações e
habilidades forjadas com sólida formação, e que o desenvolvimento em uma sociedade hiper
complexa ou a caminho de se tornar uma, exige uma transformação radical das formas de
aprendizado e ensino, dos sistemas de educação e dos modelos de pesquisa e educação para
que estes possam ser compatíveis com a sociedade e suas necessidades e exigências.
Modelos propostos por Jansen e Qvortrup para a redefinição do sistema educacional em
sociedades complexas
As novas funções exigidas das instituições de ensino, e principalmente das
universidades, que por tradições seculares, caracterizaram-se pelo armazenamento e
manutenção de informações, transformaram-se rapidamente e decisivamente nas últimas
décadas, em produtoras de conhecimento em cadeia, que necessitam de competências
desenvolvidas e direcionadas à pesquisa do mais alto nível, assim como de uma liderança
capaz de entender e incentivar essas necessidades. Não menos importante é a criação,
interligada à pesquisa e ao conhecimento, que na sistematização proposta por Qvortrup,
assume seu lugar de direito.
Frente a isso, qual o caminho, ou quais os caminhos da educação (considerada em sua
totalidade) compatíveis com as constantes mudanças a que as sociedades complexas e hiper
complexas estão sujeitas? Seria a escolha entre habilidades e competências coerentes e/ou
produtivas? Como a relação entre conhecimento e criatividade poderia ser repensada?
Abaixo a sistematização proposta por Qvortrup (s.d.):
3
Neurologista, foi pesquisador da Universidade de Aarhus, editor da revista científica Kognition & Pædagogik (
Cognição & Pedagogia).
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Jansen e Qvortrup. Memorandum, 23, 228-235. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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Forma de
Conhecimento
Estímulo
Competência
(Relevante)
Criação
Estímulo de
aprendizado
direto
Producão de
conhecimento
Producão
Cultura
Evolucão social
Habilidades
Qualificacões
Resultados
Conhecimento
Factual
Efeito
Proporcional
Capacidade de
reflexão
Metareflexão
Sistema de Educação
Geral
233
Efeito Exponencial
Salto quântico
Troca de
paradigmas
A primeira categoria é denominada por Qvortrup (s.d.) de estímulo de aprendizado direto,
ocorrentes, por exemplo, em classes de aula ou outras formas de transferências, como através
de divulgação por meios mediáticos, cujos resultados são os conhecimentos factuais e cujos
resultados são proporcionais e mensuráveis.
A segunda forma, denominada por Qvortrup (s.d.) de relevante, ligada à(s)
competência(s) é fruto de uma forma de educação que prevê o estímulo dos sistemas de
autoaprendizagem individuais ou em grupo com o propósito de produzir e repensar o
conhecimento, assim como o de reinterpretá-lo de acordo com a crescente pressão advinda
de novas informações e mudanças. Os resultados da forma relevante, embora ainda
mensuráveis, necessitam de instrumentos de avaliação diversos dos utilizados na primeira
categoria; ainda trabalham com resultados da mesma natureza ainda que potenciados.
Por produção, na terceira categoria, Qvortrup (s.d.) propõe uma forma de educação e de
trabalho inteira e completamente autônoma, a criação, (que aqui não se refere exclusivamente
a criação artística), principalmente baseada em conhecimentos profundos da primeira e
segunda categorias e na pesquisa, seja esta individual ou em grupo. Seus resultados não
podem ser medidos por instrumentos da primeira e segunda categoria, necessitando assim
de novos instrumentos de avaliação, uma vez que seus resultados são de outra natureza.
Finalmente, no quarto nível, a que Qvortrup (s.d.) se refere como evolução social, é a
alegação dos pré-requisitos para o conhecimento prévio, que se constituem em um ambiente
de conhecimento ou de uma cultura de aprendizagem que não podem ser
transferidos através da comunicação indivíduo-alvo, mas que agem como o resultado da
interação de camadas de comunicação contínua, e que estão intimamanente ligados à
sociedade, ao meio e às formas de organização de instituicões.
Jansen propõe a redefinição do sistema educacional, no sentido de formar especialistas
que tenham talento, capacidade e técnica suficientes para colher informações necessárias,
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filtrá-las, direcioná-las e aplicá-las de maneira satisfatória na solução de problemas, pois,
embora a explosão de informação seja um fenômeno global, a maneira como a informação é
retrabalhada e reformulada em conhecimento é um fenômeno local. As possibilidades de
desenvolvimento de mecanismos de filtragem e prioridade de distribuição de recursos
econômicos também são um fenômeno local, (pois dependem da capacidade e visão de quem
os lidera). A pluralidade cultural é assim um fenômeno estrutural, sujeita a diferentes
mecanismos reguladores, passíveis, portanto, de análise através de modelos estruturais.
Conclusão
Apesar da tendência de interpretar o conceito de habilidade a uma ordem social ligada
a estruturas passadas (Tambo), quando, há algumas gerações atrás, ainda não se cogitava
sobre a necessidade de formação constante e aprendizado ao longo da vida, e o de
competência como ligado à complexidade, diversidade e variabilidade atuais, tanto o
conceito de habilidade quanto o de competência, estão presentes e intimamente interligados
nos modelos de Jansen e Qvortrup, uma vez que o conceito de habilidade abrange mais do
que qualificações adquiridas individualmente, e o conceito de competência, mais do que os
padrões específicos que um indivíduo possa apresentar dentro de determinados contextos
organizacionais.
O modelo proposto por Qvortrup é inovador no sentido de integrar o conceito de
criação (e aqui visto não somente como criação artística), à produção, e aqui se ressalta, à
produção meta-reflexiva, baseada em profunda pesquisa e produção de conhecimentos, que
necessitam por sua vez, da criação de novos instrumentos de avaliação compatíveis com a
educação e trabalho a esse nível, assim como das condições necessárias que não priorizem
tão somente o imediato e o quantitativo. O objetivo deste artigo é tão somente o de
introduzir os modelos de Jansen e Qvortrup como ferramentas de análise e reflexão,
ressaltando se que a sua aplicabilidade requer um conhecimento mais profundo de ambos os
modelos. O modelo de Jansen tem sido utilizado com sucesso entre outros, em escolas
públicas e empresas de pequeno, médio e grande porte na Dinamarca. O modelo de
Qvartrup em instituições governamentais e universidades. Em todos os casos, a postura de
pensar mudanças frente aos desafios impostos pela complexidade foi determinante para que
a aplicação dos modelos obtivesse bons resultados.
Acreditamos que a aplicabilidade desses modelos no Brasil também possam surtir bons
efeitos, uma vez que os modelos não dependem de requisitos específicos de ordem física
como espaços ou materiais determinados, mas sim, que contribuam como ferramentas para
pensar e refletir, para analisar e encontrar soluções.
Memorandum 23, out/2012
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
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Jansen e Qvortrup. Memorandum, 23, 228-235. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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Referências
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Jansen, T.B. (1997b). Skolens Fremtider. København, Danmark: Forlaget Fremad.
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Qvortrup, L. (2001). Det lærende samfund, hyperkompleksitet og viden. København, Danmark:
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Qvortrup, L. (2011). Det vi ved om skoleledelse (paperback). København, Danmark: Dafolo.
Qvortrup, L. (s.d.). Kvalifikationer og kompetencer i netværks- og vidensamfundet (S. Berg, Trad.).
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Tambo, K. (2005). In Er kompetencer bedre end valifikationer? In Danmarks Journalisthøjskole.
Recuperado em 16 de janeiro, 2012, de http://www.update.dk/cfje/VidBase.nsf/
ID/UB06271351
Nota sobre a autora
Silvia Maria Pires Cabrera Berg, é atualmente chefe do Departamento de Música da
FFCLRP/USP. Compositora, regente e educadora, trabalhou na área de cognição, estratégias
de ensino e teoria do conhecimento com Torben Bo Jansen em Copenhagen. Pesquisa na área
de metodologias de ensino e no desenvolvimento de conceitos, metodologias e materiais
para o aprimoramento do conhecimento da voz referente às práticas corais, com ênfase no
conhecimento da voz infantil e infanto-juvenil, no estudo de dos processos de preparação
vocal, ensaio e performance, e na escrita vocal contemporânea e suas relações com a técnica
vocal da Early Music. Desenvolve projeto com intercâmbio científico com Pia Boysen Gentofte-Jægersborg Kirkernes Korskolen (Copenhagen - Dinamarca) e Margrete Enevold
DKDM - Det Kgl. Danske Musikkonservatorium (Copenhagen - Dinamarca). Email: [email protected]
Data de recebimento: 25/01/2012
Data de aceite: 20/08/2012
Memorandum 23, out/2012
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