Editorial Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar

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Editorial Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar
Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar.
Memorandum, 7, 1-4. Retirado em
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Editorial
Memorandum: memória e história em psicologia
Número 7
Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar
Temos a satisfação de apresentar o número 7 de Memorandum.
Em primeiro lugar, propõem-se algumas contribuições referentes à abordagem
fenomenológica em psicologia. Fenomenologia como proposta de um universo
interpretativo da "interioridade": compreender o mundo da práxis para chegar às
operações humanas que o torna possível, é o conteúdo da resenha O Universo na
consciência de Bianca Maria d'Ippolito, acerca do novo livro de Angela Ales Bello.
Já Patrizia Manganaro delineia a história do movimento fenomenológico na Bélgica
e Holanda no artigo Desenvolvimentos da fenomenologia nos Países Baixos. Com
efeito, Husserl e seus discípulos desenvolvem análises que se referem às formas
viventes - psique, corpo próprio -, à natureza material, ao espaço-tempo e às
formas culturais como ciência, Estado, comunidade, experiências religiosas, de
forma tal que vem a ligar a psicologia com as áreas da filosofia, da história, da
religião, da antropologia e das ciências sociais.
Em segundo lugar, aborda-se o tema sempre atual das distinções e relações entre
memória individual e coletiva. O artigo Memória Individual e Memória Social /
Coletiva: considerações à luz da Psicologia Social, de Solange Epelboim, propõe um
confronto das versões psicológica e sociológica do problemática.
Em terceiro lugar, entra-se no tema da história, nas diversas facetas de história das
culturas, história da psicologia e das idéias psicológicas presentes em várias
expressões culturais, tais como a literatura, a teologia, a espiritualidade, a filosofia,
a medicina, etc, em diversos contextos geográficos, tais como o Ocidente, o
Oriente, o Brasil e a América Latina.
Um primeiro grupo de artigos que aborda a história das idéias psicológicas e as
interfaces com a história cultural, a história da arte, a história da espiritualidade e a
literatura: Primeiras noções da psique: das concepções animistas às primeiras
concepções hierarquizadas em antigas civilizações, de William B. Gomes; Um
bibliotecário em sua biblioteca: Cassiodoro e os leitores ideais na Idade Média de
Giulia Crippa; Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica
aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII), de Paulo Roberto
de And rada Pacheco; Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi
Cornaro (1467-1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623) de Paulo José Carvalho da
Silva; São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração
na Época Moderna de Adalgisa Arantes Campos; Representações do conceito de
inconsciente na obra de Machado de Assis de Sávio Passafaro Peres e Marina
Massimi.
Um segundo grupo de artigos discute temas referentes à institucionalização da
psicologia científica no Brasil e na América Latina: O curso de medicina no Brasil no
século XIX - contribuições à constituição da Psicologia de Ana Maria Jacó-Vilela,
Cristiane Ferreira Esch, Daniela Albrecht Marques Coelho, Marcelo Santos Rezende;
Origem e relevância de um laboratório de psicologia no Brasil na década de 1950 de
Elizabeth de Melo Bomfim e Maria Teresa Antunes Albergaria; Comienzos de la
Memorandum, Out/2004.
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
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Mahfoud, M. e Massimi, M. (2004) Editorial: Mundo, história e cultura: sentidos a desvendar.
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profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de Córdoba y el
movimiento neoescolástico de María Andrea Piñeda.
Por fim, não podíamos deixar de dedicar um espaço à memória de Profa. Dr.a
Carolina Martuscelli Bori, cuja presença permanecerá sempre fecunda referência
para os psicólogos brasileiros, pela sua capacidade de ser educadora e construtora
da psicologia no Brasil - como ciência e como profissão -, sempre atenta ao
processo histórico e visando um horizonte amplo.
A importância para os estudos psicológicos da história das culturas e também da
história da filosofia, deve-se ao fato de que estas trazem as perguntas básicas
acerca das relações entre universo, corpo, psique e espírito. Conforme afirma
François Dosse (2004), a história documenta o fato de que em seu agir e dizer o
ser humano é portador de sentidos que as ciências humanas são convocadas a
desvendar. Por isto, instaura-se uma relação profunda entre a psicologia e as
demais ciências humanas, a filosofia e a história das culturas.
Por sua vez, o estudo das culturas, ao longo do tempo, é possibilitado pela
permanência, preservação e disponibilização de suas fontes escritas em forma de
textos, conservados em arquivos e bibliotecas. As fontes iconográficas também
constituem-se em material rico para uma historia cultural. Coloca-se neste nível a
questão do mapeamento e da preservação das fontes históricas - enquanto
recursos para o conhecimento histórico e psicológico. O que procuramos -enquanto
psicólogos - nestes documentos da antiguidade? Modalidades diversas de entender
e usar a experiência - conceito fundamental em psicologia. A literatura, por
exemplo, possui uma modalidade própria de abordar a experiência; da mesma
forma, o universo da espiritualidade e da teologia. Estas modalidades, por sua vez,
fundamentam diversas formas de cuidado psicológico e diversos tipos de recursos
terapêuticos.
As relações entre psicologia, história e cultura não dizem respeito apenas aos
conhecimentos psicológicos anteriores ao advento da psicologia científica. Inclusive
os inícios da psicologia como ciência moderna dependem de várias influências
culturais (da medicina, da filosofia, das ciências naturais) e de diversos sujeitos
culturais (médicos, filósofos, grupos religiosos, cientistas). A psicologia científica,
ela também, é um empreendimento cultural, sendo um determinado contexto
cultural responsável pelas condições de sua possibilidade.
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editores
Outubro de 2004.
Dosse, F. (2004). História e Ciências Sociais.(F. Abreu, Trad.). Bauru: EDUSC.
(Publicação original de 2004).
Memorandum, Out/2004.
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Editorial
Memorandum: memory and history in psychology
Number 7
World, history and culture: senses to be disclosed
It is a pleasure for us to present the seventh number of Memorandum.
First of all, the present number features some contributions regarding the
phenomenological approach in psychology. Phenomenology as a proposal of an
interpretative universe of "interiority": to understand the world of praxis to reach
the human operations that make it possible, is the content of the review The
Universe in the consciousness by Bianca Maria d'Ippolito, about the new book of
Angela Ales Bello. Patrizia Manganaro delineates the history of the
phenomenological movement in Belgium and the Netherlands in the article The
development of phenomenology in the Low Countries. In fact, Husserl and his
disciples develop analysis regarding the living forms- psyque, one's own body -,
material nature, space-time and cultural forms such as science, State, community,
religious experiences, in a way that links psychology with the areas of philosophy,
history, religion, anthropology and social sciences.
In second place, it is approached the always contemporary theme of the
distinctions and relationships between individual and collective memory. The article
Individual Memory and Social / Collective Memory: considerations in the light of
Social Psychology, by Solange Epelboim, proposes a confrontation between the
psychological and sociological versions of the confrontation of the psychological and
sociological versions of the issue.
In third place, we enter into the domain of history, in the many facets of the history
of cultures, history of psychology and of the psychological ideas present in diverse
cultural expressions, such as literature, theology, spirituality, philosophy, medicine,
etc, in different geographical contexts, such as the Western and Eastern worlds,
Brazil and Latin America. A first group of articles that approach the history of the
psychological ideas and the interfaces with cultural history, art history, the history
of spirituality and literature: World and psyche conceptions on the ancient
civilizations: China, India and Egypt, by William B. Gomes; A librarian in his library:
Cassiodorus and the ideal reader in the Middle Age by Giulia Crippa; Experience as
factor of knowledge in the philosophical-psychology Aristotelic-Thomist of the
Society of Jesus (16th and 17th centuries), by Paulo Roberto de Andrada Pacheco; A
single regimen for body and soul: Luigi Cornaro (1467-1566) and Leonard Lessius
(1554-1623) treatises by Paulo José Carvalho da Silva; Saint Micheal, The Souls of
Purgatory and the scales: Iconography and veneration in the Modern Epoch by
Adalgisa Arantes Campos; Representations of the concept of unconscious in the
workmanship of Machado de Assis by Sávio Passafaro Peres and Marina Massimi.
A second group of articles discusses themes that refer to the institutionalization of
scientific psychology in Brazil and Latin America: Brazilian medicine courses in the
19th century: contributions toward Psychology by Ana Maria Jacó-Vilela, Cristiane
Ferreira Esch, Daniela Albrecht Marques Coelho, Marcelo Santos Rezende; Origin
and social relevance of a laboratory of psychology in Brazil in the 1950's by
Elizabeth de Melo Bomfim and Maria Teresa Antunes Albergaria; Beginnings of
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professionalization of Psychology in Argentina, the National University of Cordoba
and neoscholasticism by María Andrea Piñeda.
At last, we dedicate a space to the memory of Professor Carolina Martuscelli Bori,
whose presence will remain, forever, as a fecund reference for the Brazilian
psychologists, due to her capacity of being an educator and builder of psychology in
Brazil - bath as a science and as a profession -, always alert to the historical
process and aiming at a vast horizon.
The importance of the history of cultures to the psychological studies and also to
the history of philosophy, is due to the fact that they bring up the basic questions
regarding the relationships between universe, body, psyque and spirit. According to
François Dosse (2004), history documents the fact that the human being, through
his acts and speeches, is a messenger of senses that the human sciences are called
to disclose. Therefore, it is established a profound relationship between psychology
and the other human sciences, philosophy and the history of cultures.
In its turn, the study of cultures, in time, is made possible by the permanence,
preservation and availability of written sources in form of texts, preserved in
archives and libraries. The iconographical sources also constitute a rich material for
cultural history. It is at this level that is posed the question regarding mapping and
preservation of historical sources - as resources for historical and psychological
knowledge. What are we - as psychologists - looking for in these ancient
documents? Diverse modalities of understanding and using experience - a founding
concept in psychology. Literature, for example, possesses a particular modality of
approaching experience; as does the universe of spirituality and theology. These
modalities, in their turn, form the basis of many forms of psychological care and
diverse types of therapeutical resources.
The relationships between psychology, history and culture do not concern only the
psychological knowledge that preceded the advent of scientific psychology. In fact,
the beginnings of psychology as a modern science depended on many cultural
influences (of medicine, of philosophy, of natural sciences) and of diverse cultural
subjects (medical doctors, philosophers, religious groups, scientists). Scientific
psychology, in itself, is a cultural entreprise, whose very possibility of being is
determined by a cultural context.
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editors
October of 2004.
Dosse, F. (2004). História e Ciências Sociais.(F. Abreu, Trad.). Bauru: EDUSC.
(Publicação original de 2004).
Memorandum, Out/2004.
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Editorial Board
Edito rs
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Marina Massimi
Universidade de São Paulo
Brasil
Ad Hoc Consultants of Memorandum 6
Ana Silvia Volpi Scott
Universidade Estadual de Campinas
Brasil
André Luís Masiero
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Brasil
Biagio D'Angelo
Pontificia Universidad Católica del Perú
Universidad Católica Sedes Sapientiae
Perú
Carlos Alberto Filgueiras
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil
Dante Gallian
Universidade Federal de São Paulo
Brasil
José Paulo Giovanetti
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Luís Miguel Carolino
Universidade de Évora
Portugal
Raquel Martins de Assis
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Roberto Sagawa
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Brasil
Advisory Board
Adalgisa Arantes Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Alcir Pécora
Universidade de Campinas
Brasil
Angela Ales Bello
Pontificia Universitas Lateranensis
Italia
Aníbal Fornari
Universidad Católica de Santa Fé
Universidade Católica de La Plata
Argentina
Anna Unali
Università La Sapienza
Italia
Antonella Romano
École des Hautes Études en Sciences Sociales
France
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Belmira Bueno
Universidade de São Paulo
Brasil
Caio Boschi
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Brasil
Celso Sá
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Brasil
Danilo Zardin
Università Cattolica Sacro Cuore
Italia
Ecléa Bosi
Universidade de São Paulo
Brasil
Francesco Botturi
Università Cattolica Sacro Cuore
Italia
Franco Buzzi
Università Cattolica del Sacro Cuore
Italia
Gilberto Safra
Universidade de São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
Helio Carpintero
Universidad Complutense
España
Hugo Klappenbach
Universidad San Luis
Argentina
Isaías Pessotti
Universidade de São Paulo
Brasil
Janice Theodoro da Silva
Universidade de São Paulo
Brasil
José Carlos Sebe B. Meihy
Universidade de São Paulo
Brasil
Luís Carlos Villalta
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Luiz Jean Lauand
Universidade de São Paulo
Brasil
Maria Armezzani
Università degli Studi di Padova
Italia
Maria do Carmo Guedes
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
Maria Efigênia Lage de Resende
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Maria Fernanda Diniz Teixeira Enes
Universidade Nova de Lisboa
Portugal
Martine Ruchat
Université de Genève
Suiss
Michel Marie Le Ven
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
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Monique Augras
Universidade Católica do Rio de Janeiro
Brasil
Olga Rofrigues de Moraes von Simson
Universidade de Campinas
Brasil
Pedro Morande
Universidad Católica de Chile
Chile
Pierre-Antoine Fabre
École des Hautes Études en Sciences Sociales
France
Regina Helena de Freitas Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Sadi Marhaba
Università degli Studi di Padova
Italia
William Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Brasil
Board of editorial consultants
Adone Agnolin
Universidade de São Paulo
Brasil
Ana Maria Jacó Vilela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Brasil
André Cavazotti
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Arno Engelmann
Universidade de São Paulo
Brasil
Bernadette Majorana
Università degli Studi di Bergamo
Itália
César Ades
Universidade de São Paulo
Brasil
Davide Bigalli
Università degli Studi di Milano
Itália
Deise Mancebo
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Brasil
Edoardo Bressan
Università degli Studi di Milano
Itália
Eugénio dos Santos
Universidade do Porto
Portugal
Giovanna Zanlonghi
Università Cattolica del Sacro Cuore
Italia
José Francisco Miguel Henriques Bairrão
Universidade de São Paulo
Brasil
Marcos Vieira da Silva
Universidade Federal de São João del Rei
Brasil
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Maria Luisa Sandoval Schmidt
Universidade de São Paulo
Brasil
Marisa Todeschan D. S. Baptista
Universidade de São Marcos
Brasil
Mitsuko Aparecida Makino Antunes
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
Nádia Rocha
Universidade Federal da Bahia
Brasil
Rachel Nunes da Cunha
Universidade de Brasília
Brasil
Raul Albino Pacheco Filho
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
Vanessa Almeida Barros
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Supported by
* LAPS - Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de
Pós Graduação em Psicologia - UFMG
* Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FaFiCH - UFMG
* Núcleo de Epistemologia e História das Ciências Miguel Rolando Covian USP/Ribeirão Preto
* Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras - USP/Ribeirão Preto
* Biblioteca Prof. Antônio Luiz Paixão - FaFiCH - UFMG
The electronic scholarly journal Memorandum is an initiative of the Research
Group "Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", linked to
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG
and to Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto/USP.
Memorandum, Out/2004.
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
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D'Ippolito, B. M. (2004). O universo na consciência. Memorandum, 7, 5-7. Retirado
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Resenha
O universo na consciência
The universe in the consciousness
Bianca Maria D'Ippolito
Università degli Studi di Salerno
Itália
Ales Bello, Angela (2003). L'universo nella coscienza: introduzione alla
fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: ETS.
Com o título "O universo na consciência: introdução à fenomenologia de Edmund
Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius" Angela Ales Bello anuncia, em seu
recente trabalho, um programa bem determinado e ousado. É conhecido que Stein
e Conrad-Martius figuram dentre as primeiras discípulas de Husserl, no Grupo de
Göttingen, mas não é óbvia a inserção delas no universo interpretativo da
"interioridade". Que se acentue o "universo" já é um passo decisivo no que se
refere ao próprio Husserl: retira de sua obra o atributo de "consciencialismo". (1)
Para Ales Bello, trata-se de mundo - ou melhor, de universo - porque Husserl
desenvolve análises que levam às formas viventes - psique, corpo próprio -, à
natureza material, ao espaço-tempo e às formas culturais como ciência, estado,
comunidade. Enfim, até o que não está incluído do nestas "formações" - o
pensamento de Deus - está presente na consciência numa modalidade própria.
O modo com que a Autora aborda o amplo e complexo corpus husserliano é
original: o que procura não é tanto lançar luzes sobre as teses do filósofo da
Moravia, quanto, em primeiro lugar, seguir os movimentos de seu pensamento. O
fio condutor, que delineia o espaço mais abrangente, refere-se à (auto)colocação
de Husserl: para a Autora "sua proposta de pesquisa está dentro e fora da cultura
ocidental" (p. 8), reconhecendo e atuando em três direções: como investigação
epistemológica sobre a configuração do saber, como ideal comunitário da pesquisa
e como "monadologia" - reconhecendo o direito da singularidade e da
intersubjetividade conjuntamente. E o termo leibniziano conduz à idéia de um
universo interior, a uma pluralidade tecida em um vínculo essencial.
Angela Ales Bello segue e ilumina os itinerários husserlianos, atenta à concepção
que o próprio Husserl tem deles e às interrogações que surgem. Husserl se refere a
Descartes e a Kant, mas "corrigindo" (o que ele acredita ser) a "negação"
cartesiana do mundo, e reformando a estética transcendental. À dúvida sobre a
existência do mundo ele contrapõe a "suspensão" da tese do mundo - que equivale
a fazer emergir o possível, a riqueza dos predicados essenciais que cada "fato"
possui.
No ato da "visão da essência" emerge o valor intencional da consciência, mas esta
não reabsorve o "teor" do objeto. Ales Bello sublinha a peculiaridade de uma
consciência que não se põe fichtianamente: "Estando implicada uma atividade do
sujeito, ela é a resposta a uma solicitação, a um apelo. (...) O dado solicita ser
compreendido, coloca uma pergunta, revela-se problemático e pretende uma
atenção à sua problemática" (p.21). Ao mesmo tempo, a desaprovação da via
cartesiana se evidencia na falta de desenvolvimento do tema "cogito" na pura
identidade vazia de conteúdo. Pelo contrário - observa Ales Bello -, para Husserl
trata-se de um campo de trabalho, imenso; então trata-se de "ajustar a ferramenta
e sondar o terreno" (p.36). E eis o trabalho de Husserl: "indagar quase
maniacamente o terreno, de novo e sempre de novo" (p.36).
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/dippolito01.htm
D'Ippolito, B. M. (2004). O universo na consciência. Memorandum, 7, 5-7. Retirado
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O que Husserl busca na escavação laboriosa, no assíduo trabalho de retirar a crosta
sedimentada, de quebrar o gelo do esquecimento que encerra o calor do sentido?
"O objetivo - explica a Autora - é compreender profundamente este mundo da
práxis para chegar às operações humanas - e divinas? - que o torna possível"
(p.37). Assim a nova "estética transcendental" manifesta, também na via kantiana,
a dupla postura de Husserl: "às vezes dentro e outras vezes fora da tradição
filosófica ocidental" (p.52). A "mania" husserliana consiste no intento de ir mais a
fundo no desnudamento das operações subjetivas - porque cada formação de
sentido contém a insídia do "fato", deve ser sempre novamente examinada nas
suas fibras intencionais.
Trata-se de um movimento amiúde tomado - erroneamente - como tentativa de
atingir uma origem realisticamente última. Oportuna é, portanto, a observação de
Ales Bello: "Na realidade, a análise da ‘vida' não deve se manter no nível 'natural';
vorwissenschaftlich e vortheoretisch não indicam um modo para remeter-se a uma
vida natural ingenuamente considerada" (Idem). O "pré" indica - poderíamos dizer
- a estrutura interna que remete, esta pertencente aos tecidos "constituídos" - cujo
"sentido" revela uma espessura a ser sempre interrogada. É a riqueza de sentido de
cada experiência que se anuncia no experiente - e cada experiente pode, como
átomo na fusão nuclear, multiplicar-se no reino do infinitésimo.
A ampliação do "campo de trabalho" sobre o eu leva - segundo Ales Bello - a uma
superação interna que Husserl apresenta na passagem intersubjetiva, na duplicação
dos atos fundamentais: "a percepção, a lembrança e a empatia. Há uma profunda
conexão entre eles e há uma quase progressiva extensão de suas afinidadesdiferenças" (p.71). O eu se espelha em um universo de duplicações: o passado, o
outro e o termo dos "fluxos mais profundos", o divino.
Na análise atenta da Autora o percurso husserliano, todavia, aparece como repleto
de enigmas. Se o caminho regressivo exige que se dinstinga "o que é dado do que
é cosntruído", como poderemos ter certeza sobre a pureza operativa? Segundo a
aguda observação de Ales Bello permanece "o risco de 'construir' mesmo na
indagação regressiva" (p.57). Novamente emerge uma tensão radical na retomada
e no confronto com a tradição ocidental. Revelando o que esta última ignorara ou
acobertara - o "pressuposto" - Husserl não propõe um único caminho, mas abre
um problema: sendo impensável a volta a um mítico passado pré-científico, tratase então de "aceitar a ineliminabilidade radical do processo de 'mecanização' "
(p.65) e "o método é, então, já uma racionalização?" (p.66). O problema colocado
pela Autora representa a inquietação própria da consciência européia nos perigosos
cimos da modernidade: o cogito, voltando-se a si mesmo, chega à vertigem de um
"profundo" inexaurível, e o fundamentum inconcussum torna-se, por sua vez,
enigma. Se nos abstivermos - no sentido fenomenológico - de reificar os "inícios"
poderemos escolher "uma dimensão 'sapiencial', enquanto conquista e reconquista
os elementos originários que estão no fundo de toda cultura". Neste caso,
apresenta-se a ardilosa questão: "Há vivências orignárias ou precategoriais
também para nós, homens da civilização ocidental avançada? Ou estamos
condenados a nos mover inteiramente em uma dimensão categorial?" (p.69). A
resposta se coaduna com a exploração: o "universo na consciência", o finito-infinito
da re-memorização, que em filosofia corresponde aos infinitos matemáticos.
No trabalho de Angela Ales Bello encontramos as discípulas de Husserl - E. Stein e
H. Conrad-Martius - em uma unidade temática. A tese é clara: também para elas
deve valer a dupla presente no título: universo - consciência. Para Stein, trata-se
de retomar e reinterpretar a correlação husserliana, reconhecendo seus momentos
"por um lado em uma natureza física absolutamente existente, por outro lado em
uma subjetividade com determinadas estruturas" (p.117). O enraizamento da
essência na substância acontece sob o signo de Tomás - e em polêmica com
Heidegger em sua concepção de Dasein "lançado" na existência (cf. p.121 ss).
Stein percorre, então, um caminho que a conduz a desenvolver de modo original a
correlação husserliana poético-noemática no sentido das grandes realidades:
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natureza, Deus, os anjos, mas também massa, comunidade, sociedade, Estado.
São endiades ideais-reais.
Mas seu mais belo trabalho é sobre a alma, entendida como um território vasto e
ao mesmo tempo profundo, tudo a ser explorado, nos seus núcleos essenciaissubstanciais: alma, corpo, espírito. Novamente - como Husserl em relação a
Descartes, assim também Stein "contra" e a favor de Husserl - "o que interessa
(...) é o contraste superfície-profundidade" (p.135). E mais uma vez, como Husserl,
Ales Bello com sutileza evidencia como é acidentado o caminho, como é "solevado"
o terreno: tudo tem a ver com o homem "este ser estranhamente discorde"
(p.138). O realismo, aqui, não tem uma função de assegurar, pacificar; pelo
contrário, evocam-se as "forças do profundo" cuja potência é ímpar com relação à
consciência.
Para Ales Bello a obras de Conrad-Martius restitui, enfim, à pesquisa
fenomenologia, a sua implícita dimensão cosmológica (cf. p.184 ss) uma vez que
re-emerge também a "natureza", com sua dignidade autônoma, real-ideal. Para
ela, "o cômpito da ontologia é a descoberta da constituição fundamental do que é
determinante para o mundo real em todas as suas configurações" (p.192).
Como deve ser lido o retorno de uma natureza "autônoma", depois do idealismo?
Para Ales Bello o seu sentido
reside na importância dada à nova física e à nova
biologia e, sendo o espírito científico, em última
análise, um espírito realista, pode-se afirmar que
é justamente a nova cientificidade das ciências
experimentais que reforçam a polêmica antiidealista de Conrad-Martius e que dá a conotação
original à sua posição (p.206).
A este ponto, o círculo se abre novamente: Conrad-Martius retoma o tema ciênciafilosofia, do qual Husserl tomara impulso: o "solevado" caminho.
Nota
(1) tradução de Miguel Mahfoud do original em italiano.
Nota sobre a autora
Bianca Maria d'Ippolito é doutora em Filosofia, professora da Faculdade de Letras e
Filosofia da Università degli Studi di Salerno, Itália. Contatos: Dipartimento di
Filosofia - UniSa , Via Ponte Don Melillo, 84084 Fisciano (Salerno) - Itália.
Data de recebimento: 23/06/2004
Data de aceite: 13/10/2004
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
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Desenvolvimentos da fenomenología
nos Países Baixos
The development of phenomenology in the Low Countries
Patrizia Manganaro
Pontificia Universitá Lateranense
Italia
Resumo
O trabalho descreve o desenvolvimento da fenomenología na Bélgica e Holanda
delineando os principáis centros de investigagao, seus importantes intelectuais
atuantes e as temáticas ali pesquisadas. No que diz respeito á Bélgica, descreve a
fundagao do Husserl-Archief em Lovaina, suas edigoes críticas da obra husserliana,
apontando diretores e especialistas responsáveis pelo trabalho. Relata a atividade
do Centre de Recherches phénoménologiques, junto á Facultes Universitaires Saint
Louis de Bruxelas. Quanto á Holanda, o ponto de partida para os estudos
fenomenológicos foram as conferencias proferidas em 1928 por Edmund Husserl
sobre a psicología fenomenológica. Além do debate entre psicología e
fenomenología - um dos grandes polos de interesse da Escola de Utrecht - a
segunda ocupa, naquela regiao, um papel de destaque em diversas áreas do saber
como, por exemplo, na pedagogía.
Palavras-chave: historia da fenomenología; psicología fenomenológica; Arquivo
Husserl; Escola de Utrecht
Abstract
The study describes the development of phenomenology in Belgium and the
Netherlands, underlining the main centers of investigation, their most prominent
intellectuals and the principal themes which were approached. Regarding Belgium,
the study describes the foundation of the Husserl-Archief in Leuven, the publication
of the critical editions of works by Husserl, pointing out the directors and specialists
responsible for the publication. It is also reported the activities of the Centre de
Recherches phénoménologiques of the Facultes Universitaires Saint Louis in
Brussels. Regarding the Netherlands, the starting point for the phenomenological
studies were the conferences given in 1928 by Edmund Husserl about
phenomenological psychology. Besides the debate between psychology and
phenomenology - one of the main poles of interest - the latter occupies, in that
región, a prominent role in many áreas of knowledge, as, for instance, pedagogy.
Keywords: history of phenomenology; Husserl Archive; phenomenological
psychology; School of Utrecht
1. O Arquivo Husserl de Lovaina e a fenomenología na Bélgica e Holanda
1.1. Devemos (1) a Léon Noel (1910), professor na Universidade de Lovaina, a
primeira resenha em francés de Investigagoes Lógicas de Husserl, na qual
manifesta apresso á crítica husserliana ao psicologismo, considerando-a um
realismo epistemológico substancialmente alinhado com as posigoes do neotomismo. Nos anos seguintes, Noel promove numerosos estudos de filosofía
fenomenológica, tendo um papel determinante na fundagao do Husserl-Archief, em
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1939 em Lovaina (cf. van Breda, 1959). A partir desta dada a Fundagao recolhe o
inteiro Nachlass husserliano: cerca de quarenta mil páginas escritas em caracteres
estenográficos e mais de dez mil datilografadas, posteriormente transcritas e
compiladas sistemáticamente por alguns assistentes de Husserl. O Arquivo possui,
além disso, a biblioteca pessoal do grande fenomenólogo, preciosa para identificar
as fontes de seu pensamento.
A Fundagao se ocupou com grande competencia e atengao da transcrigao dos
textos e de suas edigoes críticas publicadas na Husserliana - Edmund Husserl
Gesammelte Weerke. Somam numerosos volumes, editados em colaboragao com
Centros em toda a Europa: tradugoes em inglés confluem ñas Edmundo Husserl
Collected Works; a importante serie Husserl-Dokumente; e teve inicio urna nova
Colegao - Materialen - com a tarefa específica de providenciar a transcrigao dos
manuscritos de conferencias e cursos ainda nao incluidos na Husserliana. Em
proficua interagao com o Centre d'Etudes Phénoménologiques da Universidade de
Lovaina a Nova, a Fundagao publicou também significativas contribuigoes de
filosofía fenomenológica de autores como E. Fink, R. Ingarden, E. Lévinas, J.
Patocka. Os mais de cento e cinqüenta volumes que vieram á luz ilustram a
extraordinaria
vitalidade
do
método
fenomenológico.
Constante
e
progressivamente, a Fundagao torna-se um ponto de apoio para estudos altamente
especializados e ponto de encontró entre pesquisadores provenientes de todo o
mundo.
Para satisfazer os rigorosos criterios epistemológicos e metodológicos que desde o
inicio tém caracterizado o trabalho da Fundagao, seus varios diretores - H. L. van
Breda, S. IJsseling, R. Bernet - requisitaram a colaboragao de especialistas da
Alemanha, Bélgica, Holanda e Suíga. Os primeiros fenomenólogos chamados foram
os últimos assistentes de Husserl, Eugene Fink e Ludwig Landgrebe, que por alguns
meses transcreveram duas mil e oitocentas páginas dos textos do Mestre, antes de
serem expulsos devido á ocupagao nazista da Bélgica (1940). Desde entao, urna
ininterrupta cadeia de especialista continua o trabalho dessas duas eminentes
personalidades, permitindo o incremento das contribuigoes editoriais, históricoteoréticas e críticas. Depois da II Guerra Mundial, Walter e Marly Biemel sucederam
a Fink e Landgrebe como Associados do Arquivo Husserl. Com a morte de van
Breda a diregao do Arquivo passou primeiramente a Samuel IJsseling e em seguida
a Rudolph Bernet.
Com a Anschluss de 1938, Stephan Strasser vé-se forgado a fugir da Austria,
refugiando-se na Bélgica. Van Breda o hospeda no Arquivo Husserl de Lovaina: no
arco de dois anos e com a constante ajuda da esposa, Strasser conseguiu converter
para redagao ordinaria cerca de vinte mil páginas de textos estenografados, o que
foi determinante para o trabalho editorial. A partir de 1949 ele ocupa a cátedra de
Psicología Filosófica e Antropología da Universidade de Nijmegen: seu trabalho é
dedicado á psicología e as ciencias humanas, tomadas desde urna perspectiva
específicamente teorético-metafísica (cf. Strasser, 1950, 1962, 1985) (2). A
intengao principal de sua reflexao sobre a alma é a de manter unidas duas diversas
abordagens: o método fenomenológico considerado como urna moldura eidética
necessária para cada sucessiva pesquisa empírica, por um lado; e por outro, a
posigao neo-tomista que considera a fenomenología como um método de metafísica
do ser. Strasser busca de um terreno comum satisfaga as exigencias de
objetividade científica e de urna vida auténtica, plena de sentido.
Docente em Lovaina a partir de 1946, Alphonse de Waelhens representa urna das
principáis fontes da tradigao fenomenológica na Bélgica. Publicou comentarios
origináis sobre a filosofía de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty e Gadamer (cf. de
Waelhens, 1965, 1967) mas sua contribuigao mais relevante refere-se á atribuigao
de significado pela psicanálise (cf. de Waelhens, 1972) (3). Ele argumenta que a
auto-consciéncia e a experiencia do ser humano apresentam limites e que, desde
um ponto de vista antropológico, a filosofía e a ciencia estao em relagao
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hierárquica, ainda que recíproca: para chegar a urna compreensao mais lúcida da
existencia humana, urna precisa da outra. O mesmo pode-se dizer a propósito da
relagao entre filosofía e psicanálise, sendo necessária urna re-interpretagao do
inconsciente sobre base específicamente fenomenológica.
De Waelhens investigou as estruturas fundamentáis do ser humano e os
problemas-chave da psicología fenomenológica: a relagao mente-corpo, a questao
da
subjetividade,
a
linguagem,
a
historicidade-existencialidade,
a
intersubjetividade, a doenga, a saúde, o inconsciente. O ápice de sua reflexao está
contido no livro La Psychose (de 1972): urna interpretagao das interrogagoes
psicopatológicas básicas a partir das concepgoes típicas do psicanalista francés
Jacques Lacan. Já em 1967 ele fundara o Centre d'anthropologie, dirigido até 1994
por Gh. Florival e depois por M. Dupuis. Este último, além das tradugoes de alguns
textos de Ludwig Binswanger e de Edith Stein, dedicou grande parte de seu
trabalho ao estudo do pensamento de Emmanuel Lévinas, aos temas inerentes á
psicopatologia fenomenológica e á vivencia empática.
Ulterior impulso aos estudos de psicología fenomenológica foi dado por G. Thinés
(1968, 1977, 1991), trabalhando em estreita colaboragao com de Waelhens e com
0 psiquiatra J. Schotte para formular urna rigorosa crítica á postura reducionista na
antropología e na psicología. Depois da especializagao em filosofía, Thinés dedica
sua pesquisa científica á etologia, á psicología e á filosofía fenomenológica. Em
psicología, seus mestres foram A. Michotte (a quem substituí na cátedra de Lovaina
em 1956), célebre por seus estudos sobre percepgao da causalidade, e F J J .
Buytendijk (1952, 1952a), ao qual em 1961 substituí na cátedra da Universidade
de Nijmegen. Com A. Giorgi, Thinés fundou, em 1970, o Journal of
Phenomenological Psychology, publicagao que contribuiu largamente á difusao e ao
desenvolvimento da chamada third forcé da psicología nos Estados Unidos da
América (4). Todo o trabalho de Thinés consiste em demonstrar a possibilidade e a
legitimidade de urna psicología científica fundamentada na clarificagao apropriada
de seus conceitos básicos sem, todavía, cair no absurdo de urna "psicología sem
subjetividade", que negaría a central categoría do sentido.
Também a obra do belga Antoine Vergote visa estender a discussao sobre a relagao
entre fenomenología e psicanálise. Depois das graduagoes em teología e filosofía,
Vergote se especializa em psicología e psicanálise, tornando-se membro da Ecole
Freudienne de París. Segundo o seu juízo, teología e psicanálise nao sao estranhas
urna á outra, apresentando ¡números pontos de contato e temas comuns: o desejo,
a vida, a morte, a corporeidade, o pai, a relagao intersubjetiva. Na perspectiva
fenomenológica, a teología vem a ser conotada como arqueología dos dados
cristaos, investigagao essencial sobre a estrutura constitutiva do ser humano e
sobre as implicagoes culturáis dos valores cristaos; enquanto que o exame
psicanalítico do inconsciente oferece precioso material de reflexao explorando a
estrutura elementar, primitiva, do ser humano. A obra de Vergote tende a integrar
proficuamente a transcendencia horizontal com a vertical, mostrando como o ser
humano, egocéntrico, se abre a urna experiencia de Deus como Outro em relagao a
si. (Cf. Vergote 1974, 1983, 1996, 1997).
A atividade do Centro de recherches phénoménologiques - fundado em 1992 e
dirigido por R. Brisart junto á Facultes Universitaires Saint Louis de Bruxelas - é um
importante testemunho da atual vitalidade académica e institucional da
fenomenología na Bélgica, em diálogo e colaboragao com a Universidade de Rennes
1 e com o Arquivo Husserl de Paris. O Centro organiza congressos e conferencias
anuais e desde 1994 publica as Recherches husserliennes, revista que recebe
contribuigoes de respeitáveis estudiosos internacionais. A partir de 1988 Brisart
promoveu um programa de pesquisa que reconstrói o pensamento de Husserl dos
anos 1887-1901 e esclarece a relagao do grande fenomenólogo com o pensamento
austríaco (Brentano, Bolzano e Mach). Essa pesquisa programática tem despertado
grande interesse na Franga, Alemanha e países anglo-saxoes, construindo urna
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ponte entre os filósofos de tradigao analítica e o contexto mais marcadamente
continental, que viu o nascimento e incremento da fenomenología.
1.2. Respondendo a um explícito convite do filósofo e lingüista Hendrick J. Pos, em
1928 Edmundo Husserl ministrou na Holanda algumas importantes conferencias
(Amsterdammer Vortráge) sobre psicología fenomenológica (cf. Husserl,
1928/1962), vindo a influenciar alguns dentre os pesquisadores mais destacados
daquela regiao geográfica. A discussao sobre a relagao entre psicología e
fenomenología inspirou, com efeito, estudiosos belgas e holandeses nos anos
precedentes á II Guerra Mundial, justamente enquanto o panorama filosófico
europeu parecía dominado pelo neo-tomismo por um lado e pelo neo-kantismo pelo
outro.
A isso se acrescentou o específico interesse suscitado pelas pesquisas husserlianas
sobre geometría e lógica. Gragas a J. Lameere, professor na Université libre de
Bruxelles, em 1939 a recém-nascida Revue Internationale de Philosophie publicou,
em seu segundo número, A origem da geometría de Husserl juntamente a
contribuigoes de eminentes estudiosos como os já mencionados Fink e Landgrebe.
No mesmo ano, o primeiro número de Tijdschrift voor Filosofie publicava "A Draft of
a Preface to the Logical Investigations", que possibilitou a difusao, compreensao e
desenvolvimento do pensamento de Husserl desde o inicio até Idéias I. Situagao
esta muito propicia, entao, para a fundagao do Arquivo Husserl de Lovaina em
1939. A partir de 1950 o editor holandés Martinus Nijhoff publicou as obras do pai
da fenomenología na Husserliana, e a Colegao Phaenomenologica ofereceu urna
excelente panorámica das aplicagoes e do desenvolvimento ulterior dessa filosofía e
de seu método.
Mas a historia das relagoes entre a escola fenomenológica e as abordagens
filosóficas nos Países Baixos nao ficou limitada aos anos ¡mediatamente anteriores á
II Guerra Mundial. Gragas ás suas múltiplas possibilidades de aplicagáo, a filosofía
fenomenológica teve um papel significativo em diversas áreas do saber e da
pesquisa científica: ciencias humanas e/ou humanísticas como a psicología, a
antropología, a pedagogía, a lingüística, encontraram intelectualmente a
abordagem fundamental da fenomenología através de seus primeiros movimentos
oriundos da Franga. O existencialismo de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir,
Albert Camus, Gabriel Marcel, Emmanuel Lévinas e sobretudo a postura
fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, determinaram a cena filosófica na
Holanda e na Fiandra, catalisando o interesse sobre temas antropológicos e
filosóficos. Emergem, entao, os nomes de Reinout Bakker (1964, 1965), docente de
antropología filosófica na Universidade de Groningen; Cornelius A. van Peursen
(1956), professor ñas Universidades de Leiden e de Amsterda que estudou
particularmente a relagao mente-corpo confrontando-a com a egologia cartesiana e
com os desenvolvimentos da filosofía da linguagem comum de Ludwig Wittgenstein,
John Austin e Gilbert Ryle - de fato, a obra principal de van Peursen investiga o
vínculo copro-alma-espírito, inspirando-se em Merleau-Ponty, critica duramente o
solipsismo do sujeito cartesiano e exprime-se em favor de urna visao intersubjetiva
-; e, finalmente, Theo de Boer, docente de Antropología Filosófica na Universidade
de Amsterda desde 1968, conhecido por ter focalizado a questao metodológica, por
ter langado as bases para a fundamentagao de urna psicología crítica e por diversos
estudos fenomenológicos específicos (de Boer, 1980, 1989). Dezessete anos depois
da redagao desse projeto ele publicou um ensaio em que modificava inteiramente
sua perspectiva original, mais aberto ao diálogo com a psicología fenomenológica
defendida por Jan Linschoten e com a hipótese interpretativa (de Boer, 1997;
Linschoten, 1959, 1964). O estudo de Linschoten sobre William James lángara as
bases do intento programático da chamada Escola de Utrecht, e de Boer, com seu
livro de 1997, negava que a psicología fosse urna ciencia empírica, avahando seu
estatuto hermenéutico. Sua antropología filosófica é dialógica e enfatiza a
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intencionalidade do ser humano, sua unicidade, sua autenticidade; a este respeito,
a psicología fenomenológica é explicagao científica das estruturas intencionáis da
pessoa humana existencialmente situada. Obviamente, a interpretagao é sempre
parcial, incompleta, passível de erro; mas exige orientagao eficaz para as questoes
da diferenga e da unicidade, além de um olhar perspicaz sobre o que é e
permanece contingente, nao previsível, na psicología do ser humano.
2. A Escola de Utrecht
A Escola de Utrecht pode ser legitimamente considerada a original e mais proficua
contribuigao holandesa ao debate internacional sobre a fenomenología. Trata-se de
urna agregagao bastante variada de psicólogos, psiquiatras, pedagogos,
educadores, pediatras, sociólogos, criminologistas, médicos e académicos, todos
orientados fenomenologicamente. O inicio oficial da Escola deu-se em 1949, por
mérito de Martinus J. Langeveld (1958) que naquela ocasiao convidara Frederik JJ.
Buytendijk (1918, 1920) para a Universidade de Utrecht. Ao término da II Gera
Mundial o impulso intelectual estava fortemente centrado sobre a pesquisa
pedagógica: a sociedade holandesa, de fato, estava preocupada com o futuro de
seus jovens após os horrores e tragedias da guerra; assim, o humanismo e o
personalismo tornaram-se os conceitos-chave utilizados por intelectuais, sociólogos
e membros da Escola de Utrecht. Neste sentido, Henricus C. Rümke (1923, 1952,
1954, 1960, 1967)pode ser considerado o pioneiro entre eles: psiquiatra de
orientagao fenomenológica, nos anos 1928-1933 ministrou cursos e conferencias na
Universidade de Amsterda e depois consolidou a carreira académica de trinta anos
na Universidade de Utrecht (1933-1963). Inicialmente foi professor de psicología,
mas a partir de 1936 ocupou a cátedra de psiquiatría. A psiquiatría de Rümke era,
na realidade, mais próxima da literatura do que da postura rigorosamente científica
médica: utilizando a nogao de "intuigao empática" de Karl Jaspers, ele
continuamente completava a dissertagao Phaenomenologie en Klinisch
Psychiatrische Studie over het Geluksgevole ("Estudos fenomenológicos e
psiquiátricos sobre sentimento de felicidade") de 1923. Sua interpretagao da
doenga e da saúde é fortemente inspirada na antropología crista humanista, que
enfatiza a importancia da autenticidade, do sentido, da veracidade. Segundo
Rümke, a condigao que determina o estado de saúde está em estreita relagao com
a capacidade de integragao da pessoa, em urna sociedade que permanece
fortemente desagregada e desagregante; contrario ao isolamento do paciente, ele
se pronuncia a favor de sua reintegragao na vida civil e social.
A propósito da abordagem literaria da Escola de Utrecht, Jan Linschoten sublinha
que nao se trata de um mero uso sugestivo e retórico da linguagem, mas de urna
abordagem sistemática e metódica do mundo-da-vida: se urna descrigao vivaz,
vital, participada, tem a fungao de tornar próxima a realidade descrita, entao o
material literario pode ser utilizado como um verdadeiro recurso, como urna
preciosa fonte de conhecimento. Segundo Linschoten, todavía, a fenomenología
comega onde a novela, o contó e/ou o romance terminam: a clarificagao
fenomenológica é urna disciplina filosófica que estuda a esfera pré-reflexiva do
mundo-da-vida mas "psicología" é também a disciplina científica que focaliza os
fenómenos psicológicos usando métodos quantitativos, experimentáis. Como se vé,
nesta área de pesquisa a abordagem fenomenológica nunca cindiu completamente
do método empírico ou experimental.
A carreira académica do já citado psicólogo Frederik JJ. Buytendjk foi anómala: ele
nunca estudou de modo específico aquela disciplina. Completados os estudos de
medicina em 1909, dez anos mais tarde foi o promotor de algumas pesquisas sobre
comportamento e hábitos de animáis; surpreendentemente, em 1946 obteve a
cátedra de psicología teorética na Universidade de Utrecht, onde a partir de 1957
permaneceu como professo emérito. Buytendijk divergía profundamente de Rümke
quanto ao ponto de partida da reflexao: nao o doente e sua doenga, mas a pessoa
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sadia e sua condigao de saúde. Raramente ele se preocupou em fixar por escrito o
método de sua pesquisa: a única interessante discussao metodológica encontra-se
em Psychologie van der Román (traduzido para o inglés como "Psychology of the
Novel", em 1962) em que argumenta que é possível compreender somente aquilo
do qual se tem verdadeiro cuidado. Analisando reflexivamente os romances de
Dostoevskij, ele fala de "objetividade do amor" e mostra como a literatura pode
suscitar relevantes insights para o trabalho de exploragao psicológica. Em seu texto
Husserl's Phenomenology and its significance for contemporary psychology (1967)
Buytendijk ilustra como o método fenomenológico pode ser aplicado aqueles
modelos de existencia que pertencem á praxis do mundo-da-vida: este texto
oferece o fundamento para o intento programático da Escola de Utrecht, ainda que
diversos e numerosos exemplos de aplicagao do método fenomenológico á
psicología e as suas técnicas encontrem-se mais adequadamente compendiados no
livro Phenomenological psychology: the Dutch School de Joseph Kockelmans
(1987). Também o programa fenomenológico de Buytendijk requer que o
conhecimento da existencia humana seja baseado na observagao das situagoes e
dos acontecimentos da vida quotidiana, e entao nunca desligado do aspecto
específicamente empírico, além de interpretativo.
Em geral, muitos intelectuais e estudiosos consideram que os membros da Escola
de Urecht tenham sido bons psicólogos mas péssimos filósofos. Segundo Boer, eles
pretenderam fundar urna especie de fenomenologia empírica como ciencia rigorosa
mas nao tiveram éxito. É digna de nota a feroz crítica do mundo feminino e
feminista ao estudo do universo da mulher. (Buytendijk. 1951)
Willem J. Pompe (1946, 1968) foi docente de criminología na Universidade de
Nijmegen de 1923 a 1928 e na Universidade de Utrecht entre 1928 e 1968. Na sua
proposta interpretativa global, a antropología filosófica de base fenomenológica
obteve um lugar de destaque: tanto o sistema judiciário moderno - que trata o
criminoso como um ser inferior - quanto o sistema judiciário antigo - que o
considera responsável de suas agoes assim como os outros seres humanos colocam ¡numeras e complexas interrogagoes; segundo Pompe, o criminoso,
considerado como ser autónomo, deve ser inserido na ordem ética vigente na
sociedade: eis porque a reconciliagao, a recompensa, a pena, a reparagao, a
vinganga e o castigo sao temas que ele indaga minuciosamente. Entre os
criminologistas filiados á Escola de Utrecht sao dignos de mengao os nomes de G.
Th. Kempe, P.A.H. Baan, J.C. Hudig, R. Rijksen e G.P. Hoefnagels.
Quase todos os textos programáticos da Escola foram publicados em colegoes (van
den Berb & Linschoten, 1953; van den Berg, 1954) (5), reunindo importantes
artigos, ensaios e contribuigoes. Jan Hendrik van den Berg (1946, 1955, 1961,
1964, 1974) completou seu doutorado em 1946 sob orientagao de Rümke, com
urna pesquisa sobre a psicose esquizofrénica. Ele estudou na Franga e na Suíga e
em 1951 ocupou a cátedra de psicología pastoral da Universidade de Utrecht. Seus
textos, traduzidos em diversas línguas, sao urna contribuigao determinante para a
formagao intelectual da Escola. Ele propoe o programa de urna psicología
existencial ou fenomenológica como urna psicología totalmente nova, com ampias
potencialidades, e explica como ela recusa tanto o método da introspecgao quanto
a postura reificante: o primeiro porque remete á recusa de estudar o outro
estudando si mesmo; a segunda, porque exprime a postura objetivante típica da
psicología empírico-naturalista. A psicología fenomenológica ou existencial se ocupa
de urna verdadeira experiencia e de urna ¡mediata exploragao da relagao do ser
humano com o próprio mundo, fazendo referencia aos eventos ordinarios,
quotidianos, da vida. Van den Berg argumenta que o auténtico projeto de urna
psicología fenomenológica deve ser contextualizado tendo em consideragao limites
da linguagem, do mundo da cultura, dos valores, do espago e do tempo: ele, de
fato, nao visa urna abordagem universalmente válida dos fenómenos inerentes do
ser humano; sempre consciente de sues limites, ou seja, do fato que seu ponto de
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partida é sempre antropológico, finito, passível de erro e de mudanga. Nessa
perspectiva, é fútil falar de urna universal fenomenología da percepgáo, já que
seres humanos pertencentes a diversas culturas "véem" diferentemente, "falam"
diferentemente, "sentem" diferentemente, e também seus filhos perceberao e
verao o mundo sempre e somente no contexto de sua pertenga cultural, lingüística
etc.
A difusao da psiquiatría antropo-fenomenológica e da análise existencial aprofundou
questoes anteriormente deixadas á objetivagáo reificante e, seja como for, nao
oportunamente analisadas, quais a atribuigáo de sentido, a corporeidade, o tempo e
o espago vividos: os psiquiatras holandeses van den Berg, van den Hoerst e van
Hugenholtz mostraram-se particularmente atentos a esse tipo de temática (cf.
Langeveld, 1958). Van den Berg é conhecido sobretudo pelo desenvolvimento e
aplicagao da abordagem histórico-fenomenológica, que ele denomina metabletical
method. Trata-se de um método que aborda seu objeto de pesquisa nao de modo
diacrónico - como desenvolvimento dinámico - mas sincrónicamente, ou seja,
desde a interior constituigáo de relagoes significativas em diversos acontecimentos
da vida no mesmo período de tempo; e mostra como o sentido da própria
identidade seja constantemente fragmentado, dividido e determinado por aquilo
que provém do exterior. Van den Berg (1989) continuou a realizar estudos
fenomenológicos também no campo da criminología.
O declínio da Escola de Utrecht foi provocado de fora, com a publicagáo do ensaio
de Adriaan D. de Groot intitulado Methodology (1961) de postura empíricoanalítica. O autor tomava distancias da orientagáo fenomenológica, julgando-a nao
científica e excessivamente centrada sobre o sujeito: á fenomenología vinha
designado um papel menor, secundario, com relagáo á fase empírica da pesquisa,
considerada mais concreta, eficaz, "real". A influencia desse texto levou ao
afastamento das posigoes humanistas ñas chamadas ciencias do espirito e abriu as
portas á crescente influencia do behaviorismo americano na Holanda. A isto se
acrescente que a postura fenomenológica sofreu ataques das teorías críticas
marxistas oriundas da Alemanha e do pós-estruturalismo francés. A psicología foi
perdendo seus fundamentos fenomenológicos na Holanda; mas nao pode dizer o
mesmo para outras disciplinas como a pedagogía e a filosofía da educagáo: a Escola
de Utrecht continuou a aplicar o método fenomenológico ñas ciencias pedagógicas,
e permaneceu particularmente sensível aos temas da subjetividade e da
intersubjetividade, á questáo da relagáo entre linguagem, experiencia e
comportamento, e á dimensáo textual dos escritos fenomenológicos, conservando o
impulso auténticamente humanista também ñas ciencias que se ocupam da saúde
do individuo.
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Notas
(1) Tradugao de Miguel Mahfoud do original em italiano.
(2) A obra Het zielbegrip in de metaphysische en in de empirische psychologie de
Strasser (1950) tem tradugao em língua inglesa de 1957: The Soul in Metaphysical
and Empirical Psychologiy. Pittsburgh: Duquesne University Press. Sua obra
Fenomenologie en empirische menskunde. Bijdrage tot een nieuw ideaal van
wetenschappelijkheid de 1962 tem tradugao em língua inglesa de 1963:
Phenomenology and the Human Sciences, Pittsburgh: Duquesne University Press.
(3) Sua obra La psychose (de Waelhens, 1972) tem tradugao em língua inglesa de
1978: Schizophrenia: a philosophical reflection on Lacan's structuralist
interpretation (W. ver Eecke, Trad., Introd., Notes and Bibliog.). Pittsburgh:
Duquesne University Press.
(4) Urna historia daquela Fundagao pode ser consultada no arigo de A. Giorgi "The
origins of the Journal of Phenomenological Psychology and some difficulties in
introducing phenomenology into scientific psychology", publicado no Journal of
Phenomenological Psychology n.29, volume 2, de 1998.
(5) O livro "Persoon en werelld. Bijdragen tot de phaenomenologische psychologie"
editado por van den Berg & Linschoten em 1953 tem tradugao para a língua inglesa
no mesmo ano com o título "Person and World: contributions to a Phenomenological
Psychology" da mesma editora Erven J. Bijleveld da cidade de Utrecht.
Nota sobre a autora
Patrizia Manganaro é doutora em filosofía, professora de filosofía da linguagem na
Pontificia
Universirtá
Lateranense,
Roma,
Italia.
Contato:
[email protected]
Data de recebimento: 26/08/2004
Data de aceite: 13/10/2004
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Memoria individual e memoria social / coletiva:
consideracóes á luz da psicología social
Individual Memory and Social / Collective Memory: considerations in the
light of Social Psychology
Solange Epelboim
Universidade Estácio de Sá
Universidade Católica de Petrópolis
Brasil
Resumo
O artigo visa reunir comentarios sobre a memoria, de modo a contemplar
discussoes que se desenrolam nesta esfera. Embora diferentes caracterizagoes
sejam indicadas em debates específicos, supoe-se que estes fatores contrastantes
apenas reeditem antigás dicotomías. Deste modo, serao apresentadas a seguir
consideragoes acerca da memoria enquanto processo básico individual e, depois,
enquanto processo de construgao social.
Esta distingao parece apontar para
necessidade de se retomar o debate sobre memoria episódica e memoria
autobiográfica ou cotidiana. Acredita-se que, no que tange á Psicología Social, a
questao ora tratada também implique em que sejam estabelecidas diferengas entre
as vertentes psicológica e sociológica. O artigo, ao apresentar urna postura mais
inclusiva na reflexao sobre posigoes contrastantes, ao enfatizar encontros e
diálogos entre diferentes propostas, defende que nao há, necessariamente, apenas
urna perspectiva correta, mas diferentes formas de se compreender um mesmo
problema.
Palavras-Chave: memoria individual; memoria social; memoria coletiva.
Abstract
This article brings together commentaries concerning memory. Although different
characterizations emerge in specific debates, these contrasting factors replay oíd
dichotomies. This article will present considerations concerning memory as seen
from the point of view of it being a basic, individual process and a process of social
construction. This distinction points to the necessity of taking up the debate
concerning episodic memory and autobiographical or daily memory. In terms of
Social Psychology, it is believed that the above mentioned question also requires
that differences between the psychological and sociological perspectives within
Social Psychology be established. Since this article defends the adoption of greater
integration whilst analyzing contrasting positions, and this can be done by building
up a dialogue between the different proposals, it intends to confirm that there is
not, necessarily, a single correct perspective, but, rather, different forms of
searching foran understanding of the same problem.
Keywords: individual memory; social memory; collective memory.
Introducao
O artigo pretende examinar distingoes que podem ser estabelecidas entre a
memoria individual, compreendida enquanto processo psicológico básico, e a
memoria social / coletiva, entendida enquanto processo de construgao grupal.
Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a referida análise nao tem a pretensao
de fornecer informagoes exaustivas acerca de tema tao extenso e complexo. Deste
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modo, optou-se pela apresentagao de comentarios, ainda que introdutórios, a fim
de contribuir para o desenvolvimento de futuras investigagoes.
Com intuito de proporcionar maior compreensao acerca do exame de processos
mnemónicos, foram inicialmente expostos comentarios sobre a memoria episódica
e a memoria cotidiana. Em um segundo momento, foram apresentadas
consideragao acerca das orientagoes psicológica e sociológica em Psicología Social.
Por fim, foram examinadas as formas de compreensao da memoria, as quais
concedem destaque, respectivamente, a fatores individuáis e coletivos. Cabe
explicar que a escolha deste percurso, no que tange ao estudo da memoria,
permite a inclusao de antigás questoes preponderantes na Psicología. Deste modo,
supoe-se que a distingao entre métodos experimentáis de laboratorio e métodos
ecológicos, permita a recuperagao tanto de discussoes sobre procedimentos
metodológicos, discussoes desenvolvidas no campo da Psicología, como também,
no que se refere á área específica da Psicología Social, do debate entre o caráter
básico ou aplicado da mesma. Ainda no que tange á esfera da Psicología Social,
acredita-se que a condigao ácima mencionada tenha oferecido subsidios para o
gradativo delineamento das orientagoes psicológica e sociológica. Supoe-se que a
configuragao destes dominios particulares esteja contribuindo para a compreensao
de processos psicológicos, quer vinculados á esfera individual, quer coletiva,
através de posigoes extremas e confutantes. Assim, pretende-se estimular a
aproximagao entre estes posicionamentos, aproximagao que assuma compromisso
com o respeito e a manutengao das diferengas, e nao com o esgotar das mesmas.
Conforme mencionaram Neufeld e Stein (2001), houve a tentativa de se entender a
memoria, enquanto processo individual, a partir de diferentes perspectivas teóricas.
Entre tais posigoes, poder-se-ia citar os modelos espacial, baseado na Teoria dos
Esquemas, dos dois processos de recuperagao, da especificidade de codificagao, de
reconhecimento e do trago difuso. Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a
memoria individual foi entendida através do modelo espacial. Davidoff (2001), ao
conceder destaque ao modelo espacial, afirmou que sistemas de memoria
envolveriam tres procedimentos: reter e codificar, armazenar e recuperar. A
retengao implicaria em que todo conteúdo percebido, antes de ser armazenado,
devesse primeiro passar pelo processo de codificagao, onde as informagoes seriam
preparadas para a estocagem. Durante esse processo poderia haver a tradugao dos
conteúdos de urna forma para outra, isto é, em imagens, sons ou idéias que
tivessem significado. Após a codificagao da experiencia, a mesma poderia ser
armazenada. Entretanto, a autora advertiu que a memoria nao seria equivalente a
um chip de computador onde os itens de informagao seriam empuñados
automáticamente, á espera do momento em que fossem requisitados. Ao contrario,
o depósito parecía revelar um sistema complexo e dinámico que mudava com a
experiencia. Por fim, a recuperagao compreenderia a busca e resgate de
informagoes estocadas.
Ainda no que tange ao armazenamento, Davidoff (2001) comentou que tres tipos
de estruturas possibilitariam tal fungao - a memoria sensorial, de curto prazo e de
longo prazo. Deste modo, quando a informagao chegasse aos órgaos dos sentidos,
a mesma seria retida momentáneamente. Os conteúdos retidos pela memoria
sensorial seriam como imagens persistentes e, em geral, desapareceriam em
menos de um segundo, a nao ser que fossem transferidos ¡mediatamente para um
segundo sistema de memoria, a memoria de curto prazo. Esta seria caracterizada
como o centro da consciéncia, como capaz de conter tudo aquilo que sabemos pensamentos, informagoes, experiencias, entre outros fatores. O depósito da
memoria de curto prazo abrigaría urna quantidade de dados por tempo limitado
(mais ou menos 15 minutos), o qual poderia ser ampliado através da repetigao.
Além da fungao de armazenamento, a memoria de curto prazo desempenharia
fungoes como um executivo central, inserindo e recuperando conteúdos de um
terceiro sistema mais ou menos permanente, a memoria de longo prazo. Para a
informagao passar do depósito da memoria de curto prazo para a memoria de longo
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prazo nao bastariam repetigoes, pois seria necessário um tratamento mais profundo,
o qual envolvesse maior atengao, reflexao quanto aos significados e
aproveitamento dos itens que já se encontravam na memoria de longo prazo, por
parte de quem memorizasse. Embora o processamento profundo fosse urna forma
de recuperar algo da memoria, a repetigao simples e desatenta poderia ser
suficiente para transferir informagoes para o depósito de longo prazo. Embora seja
possível classificar a memoria através destas tres estruturas, é oportuno salientar a
conexao entre as mesmas.
De acordó com Gardner (1996), Ebbinghaus proporcionou avangos á Psicología ao
investigar principios da memoria a partir do uso de sílabas sem sentido. Entretanto,
Gardner (1996) apontou que o destaque a processos individuáis de memoria e a
materiais sem conteúdo significativo trouxe também serias limitagoes ao referido
campo. Esta crítica pode ser melhor compreendida ao situarmos a mesma nos
debates entre memoria episódica e memoria diaria, isto é, entre investigagoes que
concedem relevo a pesquisas experimentáis realizadas em situagoes artificiáis de
laboratorio, e procedimentos nao experimentáis que visam ao exame de
experiencias de memoria localizadas em contextos reais de vida. A referida
discussao será representada no presente artigo através da exposigao das idéias
defendidas por Banaji e Crowder (1989), acerca da falencia do conceito de memoria
cotidiana, e das reagoes manifestadas por diferentes pesquisadores frente a tal
afirmagao (Aanstoos, 1991; Banaji & Crowder, 1991; Bruce, 1991; Ceci &
Bronfenbrenner, 1991; Conway, 1991; Gruneberg, Morris & Sykes, 1991; Klatzky,
1991; Morton, 1991; Roediger, 1991 e Tulving, 1991).
Apesar da gradativa inclusao de questoes referentes ao contexto, as discussoes
estabelecidas ao longo dos artigos nao parecem ter contemplado a compreensao da
memoria enquanto processo de construgao coletiva. Acredita-se que seja possível o
entrelagamento entre as oposigoes ora propostas, o que nao significa a anulagao de
heterogeneidades, urna vez que a referida articulagao visa á instauragao de diálogo
intra e interpessoal, intra e intergrupal.
Consideracoes acerca da Memoria Episódica e da Memoria Cotidiana
Com base ñas discussoes elaboradas no campo da Psicología, Banaji e Crowder
(1989) estabeleceram diferengas entre o estudo da memoria a partir da perspectiva
laboratorial e da perspectiva ecológica. Deste modo, os autores caracterizaram o
primeiro enfoque como mais relacionado com procedimentos experimentáis
(voltados para observagao de validade interna e externa de teorías), e com a
descoberta de conclusoes passíveis de generalizagao. A abordagem ecológica, por
sua vez, foi apontada como capaz de compreender contextos naturais em suas
pesquisas e como atenta á aplicabilidade dos resultados alcangados. Entretanto, os
autores apresentaram críticas frente a perspectiva ecológica, urna vez que
concederam destaque á generalizagao dos resultados de pesquisa; discordaram da
aplicagao da terminología autobiográfica, pois os participantes de investigagoes
experimentáis também recorreriam as suas historias pessoais para completarem as
tarefas propostas; comentaram a nao exposigao de procedimentos e resultados
inéditos, entre outros fatores. Embora os autores nao tenham identificado o
procedimento experimental como único modelo científico a ser seguido, os mesmos
indicaram tal recurso como sendo o mais adequado para realizagao de
investigagoes, urna vez que garantiría controle das variáveis extrínsecas e
generalizagao de resultados. Por fim, Banaji e Crowder (1989) comentaram que a
oposigao entre memoria episódica e memoria cotidiana nao revelava urna nova
discussao na esfera da Psicología Social, pois parecía retomar a crise que marcou
esta área na década de 70, ou seja, o debate entre o caráter básico ou aplicado
desta disciplina.
Conway (1991) considerou as críticas elaboradas por Banaji e Crowder (1989)
exageradas e propós que avangos acerca do estudo da memoria humana devessem
buscar a integragao e nao exclusao de distintas tradigoes de pesquisa. Conway
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(1991), entao, defendeu que as investigagoes relativas á memoria episódica e
cotidiana, embora diferentes, fossem respeitadas enquanto esforgos válidos e
significativos para promogao de conhecimento. Quanto á crítica frente á
denominagao memoria cotidiana ou autobiográfica, o autor afirmou que, enquanto
esta envolvía a análise de eventos com sentido para os participantes da pesquisa,
assim como conhecimento previo e expectativas destes, a memoria episódica
delimitava a área de exame de questoes sem sentido a serem memorizadas pelos
sujeitos, exame realizado em situagoes artificiáis de laboratorio que visavam ao
controle de variáveis extrínsecas e á possibilidade de generalizagao dos resultados
encontrados. O autor salientou que a principal distingao entre tais
empreendimentos consistía, respectivamente, na inclusao ou exclusao de
conhecimento previo e sentido pessoal, por parte do individuo investigado, no que
tange á tarefa de memorizagao.
Conway (1991) ainda respondeu as acusagoes de nao realizagao de pesquisas
relevantes e de obtengao de conclusoes consensuáis por pesquisadores da memoria
autobiográfica. Quanto ao último ponto, argumentou que trabalhos sobre
recenticidade também revelavam a falta de concordancia entre investigadores da
memoria episódica, pois enquanto alguns afirmavam que materiais recentemente
percebidos eram lembrados mais fácilmente que fatores apresentados há mais
tempo (efeito de recenticidade), outros aboliram tal preceito em fungao da nao
ocorréncia do mesmo, quando houve introdugao de outra atividade entre o
momento de exposigao e memorizagao. No que se refere á elaboragao de projetos
importantes, o autor destacou pesquisas acerca dos efeitos de longo prazo da
recenticidade; do papel da recenticidade na conscientizagao e organizagao dos
homens no plano temporal e espacial; da confirmagao dos resultados laboratoriais
sobre a relagao inversa estabelecida entre intervalo de tempo de retengao da
informagao e a recuperagao da mesma; da nao comprovagao da dificuldade de
recuperagao mnemónica nos cinco primeiros anos de vida (amnesia infantil); da
lembranga de memorias autobiográficas importantes por parte de pessoas mais
velhas, o que nao confirmou a teoría da retengao; de consideragoes que revelaram
que dos 6 aos 40 anos a capacidade de retengao se mostrava estável e nao em
gradativo declínio. Por fim, Conway (1991) esclareceu que pesquisadores da
memoria cotidiana avaliavam contribuigoes e limitagoes das consideragoes sobre
memoria episódica, o que demonstraría a possibilidade de se estabelecer diálogo e
respeito entre defensores de posigoes diferentes. Morton (1991) também concordou
com esta aproximagao, afirmando que construgoes teóricas pertinentes poderiam
ser oriundas de situagoes artificiáis de laboratorio, como de situagoes reais de vida.
Entretanto, propós que o criterio de generalizagao dos dados fosse cuidadosamente
analisado, a fim de verificar se este procedimento alcangaria contextos que nao os
envolvidos na esfera laboratorial.
Ceci e Bronfenbrenner (1991) refutaram as acusagoes feitas frente á memoria
cotidiana mediante quatro justificativas. Em um primeiro momento discordaram da
equivalencia proposta entre o funcionamento mental humano e processos químicos,
pois entendiam o ser humano como ativo, agente, capaz nao somente de se
adaptar ao contexto, mas de criá-lo e transformá-lo. Logo, defenderam que
investigagoes em situagoes reais nao consistiriam na reaplicagao de pesquisas
laboratoriais em ambientes nao artificiáis, mas em alternativas que visariam á
complementagao ou mudanga das mesmas. Em um segundo momento, negaram a
concepgao estreita que definía empreendimentos científicos como procedimentos
experimentáis controlados realizados em laboratorios. Em urna terceira etapa,
argumentaram que novas descobertas foram encontradas em dois estudos de
campo por eles conduzidos anteriormente.
Com relagao aos estudos, Ceci e Bronfenbrenner (1991) descreveram investigagao
na qual changas eram convidadas a assar um bolo ou recarregar a batería de urna
motocicleta durante trinta minutos. Entretanto, durante este período, as mesmas
poderiam brincar com videogame. As criangas foram divididas em tres grupos, de
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modo que um conjunto era observado em laboratorio, o outro na própria casa do
participante, e o último grupo em urna cozinha existente em urna universidade,
sendo que a freqüéncia e forma das changas checarem o tempo em um relógio
eram analisadas. Os resultados revelaram que, em situagoes de laboratorio, tal
freqüéncia era 30% maior que em casa. Notaram ainda que em casa os
participantes olhavam mais para o relógio durante os dez minutos iniciáis, procura
que entao era reduzida até os cinco minutos fináis, quando também ocorria
aumento de freqüéncia. As conclusoes apontaram para a criagao de um relógio
interno, ou seja, as changas verificavam nos dez minutos iniciáis se conseguiam
estimar o tempo subjetivamente com exatidao, de modo a checarem suas
estimativas e o tempo real marcado pelo relógio. Ao ajustaren) os dois relógios,
demonstravam maior disponibilidade para execugao de urna segunda tarefa,
disponibilidade que era restringida nos cinco minutos fináis, quando exibiam
procedimentos mais conscientes e freqüentes de controle de tempo.
No que tange ao segundo estudo, os referidos autores desenvolveram urna
pesquisa em situagao nao experimental, onde repetiram as tarefas propostas, mas
os relógios fornecidos eram mais adiantados ou atrasados que a mensuragao real
do tempo. Mais urna vez as criangas demonstraram ajuste ao tempo sugerido.
Deste modo, Ceci e Bronfenbrenner (1991) defenderam a importancia de estudos
experimentáis e nao experimentáis, advertindo inclusive que tais esforgos nao
deveriam ser confinados em oposigoes como grande ou pequeño poder de
generalizagao, dominios uniformes ou contextos diferenciados, pesquisa explicativa
ou exploratoria, procedimento controlado ou nao, e metodología científica ou nao.
Por fim, os autores questionaram a busca de invaháncia como sinónimo de rigor
científico e concederam énfase ao desenrolar de estudos referentes á memoria
autobiográfica e também á episódica.
Retomando a proposta apresentada por Banaji e Crowder (1989), cabe mencionar
que Klatzky (1991) concordou com a distingao estabelecida entre as análises de
memoria episódica e da memoria comum, em fungao da existencia de diferentes
niveis de controle aplicados as variaveis extrínsecas. A autora afirmou ainda que o
exame da memoria autobiográfica, ao incluir dados que nao poderiam ser
encontrados em situagoes artificiáis de laboratorio, se mostrava significativo. Com o
propósito de oferecer maior clarificagao conceitual, Klatzky (1991) rejeitou a
definigao da memoria comum enquanto pesquisa aplicada contendo material
significativo, realizada apenas fora do laboratorio e com quaisquer pessoas. Isto
porque, comentou que trabalhos acerca da memoria episódica também revelavam
aplicagoes, uso de material com sentido e participagao de amostra nao composta
por estudantes de graduagao. Deste modo, explicou que análises em laboratorio
poderiam investigar questoes cotidianas envolvidas na capacidade mnemónica.
Assim, forneceu urna definigao que contemplava a consideragao de fenómenos
relevantes á vida diaria; o uso de materiais que exibiam sentido previo para os
sujeitos; utilizagao de materiais oferecidos pelas historias pessoais dos integrantes
da amostra; local familiar á amostra para realizagao da pesquisa; e participagao de
quaisquer individuos nos trabalhos. Quanto ao nivel de controle das variaveis
extrínsecas, Klatzky (1991) argumentou que, em determinadas análises, a
emergencia de novas conclusoes em situagoes nao experimentáis compensou o
menor grau de controle. Entretanto, advertiu que este comentario nao buscava
conceder énfase á pesquisa em contextos reais em detrimento do exame em
laboratorio, mas visava ao questionamento sobre pontos de maior aproximagao e
afastamento entre tais empreendimentos.
Bruce (1991) discordou das críticas negativas, elaboradas por Banaji e Crowder
(1989), acerca da memoria comum, as quais se pautavam em nao cientificidade,
nao generalizagao dos resultados, entre outros pontos já mencionados. Porém, o
autor recorreu a novos argumentos para defender tal campo de investigagao,
argumentos que foram expostos através do contraste entre explicagoes sobre os
mecanismos e sobre o funcionamento da memoria. Enquanto a memoria episódica
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estaría mais próxima do primeiro plano, a memoria autobiográfica, ao contemplar
situagoes reais de vida, idiossincrasias e variabilidade, implicaría na abordagem
funcional.
Neisser (1991), por sua vez, justificou sua contraposigao ao artigo de Banaji e
Crowder (1989) a partir da exposigao de quatro trabalhos que ofereceram
conclusoes inéditas, conclusoes elaboradas em investigagoes acerca da memoria
comum. Deste modo, concedeu destaque as investigagoes acerca da lembranga de
características pessoais valorizadas no presente pelos individuos, e a manutengao
ou modificagao destes fatores ao longo do tempo. Caso houvesse manutengao, a
lembranga da característica no passado viria em fungao de sua percepgao no
momento atual. No caso de mudanga, a lembranga do fator no passado viria antes
da indicagao da característica no presente, o que possibilitaria urna maior
compreensao quanto ao contraste entre estabilidade e transformagao da questao. O
segundo trabalho comentado foi relativo á memoria de changas pequeñas sobre a
rotina familiar e episodios específicos, lembranga que era narrada com maior
riqueza de detalhes em fungao do desenvolvimento e orientagao dos pais quanto ao
uso social da memoria. A análise do esquecimento, após longo período de
apresentagao do material a ser retido, foi também apontada. Deste modo, foram
observados sujeitos que estudaram espanhol havia muito tempo. As conclusoes
indicaram que, decorridos aproximadamente cinco anos da exposigao do material a
ser percebido, a proporgao de esquecimento caía automáticamente, de forma a
garantir urna performance estável ao longo de mais ou menos vinte e cinco anos. O
trabalho acerca de flashbulb memories foi citado, sendo que estas nao seriam
estudadas fácilmente sob condigoes artificiáis de laboratorio, já que tais lembrangas
eram referentes a episodios marcantes, e revelavam forte carga emocional, longo
período de retengao e recuperagao vivida, mas repleta de dados incorretos. Neisser
(1991), entao, comentou que tanto a abordagem ecológica, como a tradicional,
poderiam proporcionar avangos ao campo da memoria.
Bahrick (1991) deu continuidade á defesa da abordagem ecológica, afirmando que
existiriam questoes que fugiriam ao rigoroso enquadramento experimental, mas
poderiam ser acolhidas por métodos nao experimentáis de investigagao. Entretanto,
o autor advertiu que tal condigao nao implicaria na prevaléncia de urna proposta
sobre a outra, mas demonstrava a possibilidade de avangos na área da memoria
humana a partir de diferentes enfoques. Aanstoos (1991) corroborou tal
posicionamento ao salientar que, apesar dos problemas relativos á validade,
generalizagao, objetividade e confiabilidade de procedimentos e resultados, a
abordagem ecológica representaría um rico campo de discussao na Psicología, urna
vez que revelaría o esforgo de compreender questoes mais próximas do real e,
consequentemente, menos restritas a condigoes artificiáis.
Neste sentido, Gruneberg, Morris e Sykes (1991) identificaram o artigo publicado
por Banaji e Crowder (1989) como um prejuízo aos esforgos teóricos e práticos
existentes na área. Isto porque, o referido artigo propunha a cisao entre
investigagoes experimentáis e nao experimentáis, de modo a desconsiderar a
conexao que parece mover a ciencia - a articulagao entre questoes do mundo real e
do mundo artificial e especializado do laboratorio. Gruneberg, Morris e Sykes
(1991) discordaram também da caracterizagao das análises sobre memoria
autobiográfica como pesquisas aplicadas, como da acusagao de falta de
contribuigoes relevantes. Frente ao primeiro ponto, argumentaram que tanto
metodologías experimentáis, como nao experimentáis, poderiam visar á aplicagao
prática de seus resultados. Com relagao á segunda crítica, mencionaram a
importancia de pesquisas sobre metamemória, sobre a influencia de conhecimentos
no processo de memoria e sobre problemas práticos de memoria.
Embora parega haver urna unánime contraposigao frente aos comentarios
apresentados por Banaji e Crowder (1989), Roediger (1991) advertiu que análises
críticas mais prudentes deveriam incluir observagoes acerca de severos ataques
frente as pesquisas experimentáis sobre memoria. Deste modo, Roediger (1991)
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classificou as críticas á abordagem ecológica como respostas aos ataques
anteriormente langados contra investigagoes sobre a memoria episódica, ataques
que afirmaram que estudos de laboratorio eram artificiáis, triviais, incapazes de
lidar com problemas significativos e de generalizar seus resultados em situagoes
reais. Tais ataques propuseram a emergencia de pesquisas ecológicas sobre a
memoria autobiográfica e o abandono de métodos experimentáis. Roediger (1991)
nao caracterizou a resposta de Banaji e Crowder (1989) como radical, mas como
revelando a defesa de validade e generalizagao das conclusoes. Logo, citou que,
embora os autores mencionados tenham indicado que o ideal era estudar questoes
em situagoes reais e encontrar resultados válidos e generalizáveis, os mesmos
observaram que, em razao da dificuldade de se realizar investigagoes que
contemplassem estas condigoes, seria preferível abrir mao do primeiro fator.
Quanto aos artigos ácima comentados, Roediger (1991) indicou a inadequagao de
pontos assinalados por Gruneberg, Morris e Sykes (1991) - quanto ao ataque á
pesquisa aplicada; por Ceci e Bronfenbrenner (1991) - quanto á restrigao á
participagao de qualquer pessoa na composigao de amostras e á equivalencia entre
ciencia e método experimental; e por Conway (1991) - quanto a nao inclusao de
material com sentido ou de conhecimento previo ñas pesquisas sobre memoria
episódica. Por fim, Roediger (1991) ressaltou a pertinencia de serem desenvolvidas
análises experimentáis e nao experimentáis acerca da memoria, análises que sejam
percebidas enquanto esforgos para obtengao de novos conhecimentos, os quais
contenham avangos, embora possam por igual conter alguma limitagao.
Tulving (1991) também fez referencia as acusagoes extremadas, as quais
afirmaram que cem anos de pesquisa experimental nao trouxeram qualquer
contribuigao ao estudo da memoria, acusagoes que ainda insinuaram que os
responsáveis por tais empreendimentos nao eram criativos, competentes ou
preocupados com questoes sociais relevantes. De acordó com Tulving (1991),
confrontos exagerados seriam inadequados, quer fossem expostos em defesa de
procedimentos experimentáis ou ecológicos, pois diferentes perspectivas nao
deveriam ser classificadas como mutuamente exclusivas, mas como esforgos
complementares que buscariam oferecer subsidios a futuras investigagoes.
A título de esclarecimento, Banaji e Crowder (1991) responderam aos ataques
frente ao artigo por eles anteriormente publicado (Banaji e Crowder, 1989),
novamente citando que pesquisas científicas ideáis deveriam envolver contextos
reais e generalizagao de resultados. Entretanto, se houvesse necessidade de
sacrificar urna das condigoes, a primeira deveria ser abandonada. Embora
defendessem tal posigao, nao desconsideravam a importancia de pesquisas
aplicadas e desenvolvidas em situagoes naturais.
No que tange a essas observagoes, como também aos comentarios apresentados
por Tulving (1991) e Roediger (1991), concorda-se com a adogao de posturas mais
moderadas, capazes de revelar o compromisso com o diálogo entre diferentes
interlocutores. Este compromisso nao deve ser encarado como um pacto ingenuo
ou superficial de tolerancia á diversidade, mas como intenso e complexo exercício
de reflexao sobre possíveis encontros e desencontros entre propostas que visam ao
alcance de um objetivo maior - a construgao de conhecimentos cada vez mais
consistentes e coerentes sobre o ser humano. O convite ao diálogo proposto pela
autora deste projeto nao compreende apenas as discussoes entre procedimentos
experimentáis e nao experimentáis, memoria episódica e memoria autobiográfica,
mas também entre as vertentes psicológica e sociológica desenvolvidas em
Psicología Social, e, mais específicamente, entre a compreensao da memoria
enquanto processo psicológico individual e enquanto construgao social / coletiva. A
autora propoe um exame que contemple contribuigoes e limitagoes de posigoes
antagónicas, mas que conceda énfase principalmente aos campos de intersecgao
entre estas posigoes, a fim de que divergencias sejam promotoras de diálogo e nao
de monólogo, de encontró e nao de confronto, de respeito e nao de
desconsideragao, enfim, de criatividade e nao de repetigao de argumentos.
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Consideracoes acerca das vertentes psicológica e sociológica
Conforme anteriormente mencionado, o presente artigo visa conceder énfase a
aspectos individuáis, sociais e coletivos da memoria, ou seja, contemplar a
condigao social / coletiva, mas sem negligenciar ou minimizar a condigao individual.
Percebe-se, entao, o compromisso com a articulagao entre estas dimensoes e com
o respeito para com a especificidade das mesmas. Esta ressalva revela nossa
discordancia frente á apresentagao de condigoes diferentes como sendo
necessariamente contrarias e implicando na atribuigao de juízos de valor, como:
certas ou erradas, melhores ou piores, entre outras categorizagoes. Tal dicotomía
pode ser introduzida ingenua e incorretamente quer na discussao a respeito da
memoria, quer, em ámbito mais específico, no próprio campo da Psicología Social.
Supoe-se, inclusive, que a distingao entre memoria individual e social / coletiva
tenha recebido maior destaque a partir da configuragao das orientagoes psicológica
e sociológica, delineamento comentado por Farr (1998). Tal diferenciagao se torna
mais nítida ao examinarmos as contribuigoes oferecidas, respectivamente, por
Krüger (1986) e por Sá (1996).
Krüger (1986), ao investigar o delineamento do campo ora abordado, concedeu
énfase a alguns aspectos. Assim, citou o individualismo, definindo-o como a
orientagao preferencialmente adotada pelos psicólogos sociais na escolha de seus
objetos de pesquisa, isto é, na eleigao do estudo do comportamento social e dos
processos cognitivos e afetivos enquanto influenciam e/ou sao influenciados pela
presenga real, imaginada ou memorizada de outras pessoas. O experimentalismo
também consistiu em um aspecto destacado, urna vez que experimentos teriam
sido desenvolvidos de forma freqüente, o que nao comprometeria a realizagao de
estudos de campo ou outros modos de se realizar pesquisas. Outro fator pode ser
representado através da microteorizagao, já que este contexto nao envolvería
teorías abrangentes. Krüger (1986) explicou tal aspecto como sendo conseqüéncia
da falta de consenso entre os pesquisadores no que tange á concepgao de homem
adotada; da significativa dispersao das temáticas focalizadas; da nao continuidade
dos programas de pesquisa e, até, do prematuro abandono de programas
promissores. A nogáo de etnocentrismo contribuiu para caracterizagao deste campo
de investigagáo, compreendendo-se este termo como voltado para a orientagao
sobretudo norte-americana registrada neste ámbito. Tal contexto foi apresentado
também como urna disciplina científica pragmática, ou que guardava compromisso
com o utilitarismo, pois era direcionada ao atendimento de expectativas sociais. O
cognitivismo foi ainda destacado como um fator capaz de facilitar o entendimento
do campo em questáo, já que a influencia deste movimento vinha ganhando
considerável relevo neste ámbito de investigagáo. Por fim, Krüger (1986) ressaltou
o a-historicismo, definindo este aspecto como sendo o negligenciar da perspectiva
histórica, mencionando a importancia de se enfatizar a inclusáo de tal dimensáo
social, histórica e cultural. Concorda-se com sua ressalva, isto é, que aspectos
socioculturais, considerados em sua evolugáo temporal, devam ser levados em
conta ao se analisar as condutas humanas.
Por sua vez Sá (1996), ao caracterizar a Psicología Social em sua vertente
sociológica, conferiu destaque a aspectos contrarios aqueles supracitados. Deste
modo, o individualismo seria combatido através do compromisso ainda mais social
desta vertente, o que pode ser melhor percebido através da introdugáo de dois
novos níveis de explicagáo, ou seja, além dos já considerados níveis intra e
interpessoal, a adogáo dos níveis posicional e ideológico. Este pode ser
compreendido como o conjunto de crengas e representagoes existentes que serviría
para organizagáo da sociedade, enquanto aquele foi definido como capaz de revelar
as diferentes posigoes sociais ocupadas pelos sujeitos que estabeleciam relagoes.
No que tange á contraposigáo ao experimentalismo, salientou-se a utilizagáo de
metodologías mais diversificadas, cabendo fazer a ressalva de que nao se exclui
neste contexto o uso do próprio método experimental. Quanto á amplitude das
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teorías elaboradas, percebe-se urna tendencia á macroteorizagao. O etnocentrismo,
assim como o a-historicismo, foram substituidos pela importancia concedida a
fatores históricos e culturáis no desenvolvimento de fenómenos psicossociais. No
que se refere ao utilitarismo, percebe-se a exacerbagao deste aspecto quando a
orientagao sociológica estabeleceu o compromisso de tornar a Psicología Social
aínda mais social. Por fim, quanto ao cognitivismo, descartou-se a nogao de
cognigao social, concedendo-se prioridade ao conceito de representagao social.
Acredita-se que as orientagóes ácima assinaladas nao devam ser apresentadas
como mutuamente exclusivas, nem mesmo como ocupando a posigao de "portavoz" único e verdadeiro da Psicología Social. Isto porque, supóe-se que a
diversidade existente, quer na esfera conceitual, metodológica ou de aplicagao, seja
a principal mola propulsora de adequadas discussoes e produtivos avangos na
esfera ora tratada. Esta posigao revela um convite ao intercambio entre tais
orientagóes, o que nao significa a superficial uniao destas vertentes através do
apagar as ricas diferengas existentes. Assim, cabe registrar que o presente estudo
concebe a memoria social enquanto capaz de reunir aspectos coletivos e aspectos
individuáis, urna vez que a memoria envolve recursos da ordem cognitiva,
emocional e comportamental, localizados em sujeitos inseridos em contextos
sociais. Após a exposigao destes breves comentarios sobre as vertentes psicológica
e sociológica em Psicología Social, faz-se necessário abordar a compreensao da
memoria enquanto processo básico individual e enquanto construgao social /
coletiva.
Consideracoes acerca da memoria individual e da memoria social / coletiva
No que se refere as oposigoes ácima incluidas, mais específicamente, á memoria
social / coletiva, Halbwachs (1990) propós o exame do homem enquanto sujeito
inserido na trama da vida coletiva, exame este que nao pretendía reduzir o
individual ao coletivo. Assim, afirmou a existencia da memoria individual, mas
destacou que a mesma se inscreveria em quadros sociais. Blondel (1966) mostrou
concordancia em seu posicionamento, assinalando que o passado apresentaria
continuidade, consistencia e objetividade nao em fungao da memoria individual,
mas sim devido á intervengao de fatores sociais. Estes fatores possibilitariam ao
sujeito inscrever sua experiencia em quadros coletivos de memoria, onde
compartí I ha ria com membros de seu grupo os acontecimentos vividos. Blondel
(1966) esclareceu ainda que, para Halbwachs, a memoria nao consistiría em
reprodugao do passado, envolvendo sim reconstrugao do mesmo a partir de
experiencias coletivas. Sá (1979) também comentou tal aspecto construtivo,
expondo que a memoria humana nao era tao fiel á conservagao do passado, fato
que podia ser fácilmente verificado através de fragmentos inventados e inseridos
em historias de vida, com o intuito de garantir, as mesmas, coeréncia e
continuidade.
Deste modo, observa-se que Halbwachs (1990) se contrapós á concepgao de
memoria individual e intacta proposta por Bergson, pois afirmou que lembrar nao
consistiría em reviver, mas refazer, reconstruir, com imagens e idéias de hoje, as
experiencias do passado. Logo, a memoria nao seria sonho, mas trabalho.
Tampouco a memoria seria individual, pois seria coletiva. A memoria do sujeito
dependería do seu relacionamento com a familia, classe social, escola, enfim, dos
grupos de referencia e pertencimento do individuo em questao. A lembranga,
enquanto conservagao total do passado, tornava-se impossível na medida em que
um adulto nao poderia manter intacto o sistema de representagoes, hábitos e
relagoes sociais da sua infancia. Isto porque, qualquer mudanga do ambiente
atingiría a qualidade íntima da memoria, amarrando entao a memoria da pessoa á
memoria do grupo e, esta última, á esfera maior da tradigao, que representaría a
memoria coletiva de cada sociedade. Como disse Halbwachs (1990, p. 26): "Nossas
lembrangas permanecen) coletivas, e elas nos sao lembradas pelos outros, mesmo
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que se tratando de acontecimentos nos quais só estivemos envolvidos, e com
objetos que só nos vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sos".
Segundo Penna (2001), Bergson se destacou ao propor dois tipos de memoria memoria hábito e memoria souvenir. A primeira consistiría na memoria composta
por esquemas de comportamento, dos quais o corpo se valeria, muitas vezes,
automáticamente. Tais esquemas seriam adquiridos pelo esforgo da atengáo,
repetigáo de gestos ou palavras, enfim, pelas exigencias da socializagao. Já a
memoria pura, ao se atualizar na imagem-lembranga, traria á consciéncia um
momento único, singular, irreversível da vida, o que revelaría seu caráter nao
mecánico, mas evocativo.
Ainda no que tange á énfase conferida ao aspecto social, Bosi (1979) comentou que
Bartlett também estabeleceu a articulagao entre o processo de memoria e o
contexto social, sobretudo ao utilizar o conceito de convencionalizacao. Este
conceito afirmava que materiais (imagens e idéias) recebidos por um determinado
grupo ganhariam formas de expressao condizentes com as convengoes verbais já
existentes no mencionado conjunto. O processo de convencionaiizacao poderia
envolver assimilagáo (simples incorporagáo de materiais culturáis recebidos),
simplificagáo (desconsideragáo de fatores estranhos aos presentes na prática social),
retengáo parcial com énfase no detalhe (manter um ponto nao importante no
contexto de origem, conferindo ao mesmo relevancia) ou, por fim, a criagáo de
novas formas simbólicas (resultantes das interagoes desenvolvidas no conjunto
receptor). Tais procedimentos revelavam o trabalho de construgáo social da
memoria, urna vez que esquemas de narragáo e interpretagáo existentes nos
grupos implicariam na elaboragao de versoes históricas proprias frente ao conteudo
recebido. Bartlett (1995) explicitou melhor tal posicionamento ao afirmar que a
convencionaiizacao revelaría a influencia do passado sobre o presente. Embora
Bartlett tenha indicado este forte componente social, o mesmo se diferenciou de
Halbwachs ao propor a vinculagáo entre fatores da personalidade e o modo do
sujeito recordar, e ao salientar que suas investigagoes eram referentes aos
processos de memoria no grupo e nao do grupo.
De acordó com Johnston (2001), seria possível identificar tres momentos de
releitura das contribuigoes oferecidas por Bartlett. A autora definiu o primeiro
período como relacionado á publicagáo do livro Remembering em 1932, etapa em
que foi concedida énfase a investigagoes empíricas. A segunda fase, época da
revolugáo cognitiva, foi assinalada a partir do destaque conferido ao conceito de
esquema, o qual revelava a nao compreensáo do processo de memoria através do
registro e recuperagáo de tragos. Assim, a organizagáo da memoria era marcada
por atitudes, interesses, crengas, valores, sentimentos, enfim, por experiencias
pessoais que garantiam caráter dinámico á memoria. Lembrar era equivalente a
reconstituir o material a ser evocado, podendo ocorrer omissáo, acréscimo,
transformagáo, transposigáo, elaboragao, condensagáo, entre outros mecanismos
que explicitariam a condigáo construtiva, e nao simplesmente reprodutiva, da
memoria. Segundo o modelo de Johnston (2001), o último período implicaria na
concepgáo social da memoria, isto é, na influencia de aspectos socioculturais na
reconstrugáo da memoria. Tal etapa seria desenvolvida contemporáneamente e
permitiría a aproximagáo entre o trabalho de Bartlett e de outros pesquisadores, o
que para Johnston (2001) contribuiría para elaboragao inadequada de releituras
sobre o autor ora discutido.
Retomando as contribuigoes oferecidas por Halbwachs (1990), cabe mencionar que
para este autor o sujeito apresentaria dois tipos de memoria, sendo urna individual
e a outra, coletiva. Entretanto, mais urna vez ressaltou que aquela poderia se
apoiar nesta, pois o individuo, ao evocar seu passado, estabeleceria relagoes com
as lembrangas de outros membros de seu grupo social. Dando prosseguimento a
estas categorizagoes, o autor sugeriu a diferenciagáo entre urna memoria interna,
pessoal, denominada autobiográfica e urna memoria externa, social, intitulada
histórica. A memoria histórica nao era equivalente á memoria coletiva, pois
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enquanto a primeira demarcava rígidas linhas de separagao temporal, buscando o
alcance de um caráter único, universal, através da énfase conferida as diferengas, a
segunda contava com limites temporais incertos, revelando variadas memorias
possíveis e destacando as semelhangas existentes entre as experiencias individuáis
e aquelas referentes aos membros que compartilhavam quadros sociais.
Jedlowski (1997), ao discutir a temática da memoria coletiva, resumiu as idéias de
Halbwachs em tres pontos, sendo eles: a concepgao da memoria individual
enquanto inscrita em quadros de referencia social, podendo-se destacar ai o papel
da linguagem; a nogao de construgao e selegao do passado, tanto em processos
individuáis, como também coletivos de memoria; a compreensao da memoria
coletiva enquanto fungao da identidade dos grupos sociais, urna vez que aquela
serviría para integragao e continuidade destes, para o surgimento de sentimentos
de pertencimento nos componentes dos mesmos, bem com para a reconstrugao do
passado segundo interesses particulares destes conjuntos.
No que tange á definigao do conceito memoria coletiva, Jedlowski (1997) apontou a
vinculagao deste á necessidade das sociedades conservarem suas respectivas
herangas culturáis e transmiti-las a outras geragoes. Tal transmissao revelaría a
aproximagao entre o tema ora investigado e processos comunicacionais, urna vez
que existiriam produtores, transmissores e receptores de memoria. Acredita-se que
esta questao introduza outro ponto de reflexao: as relagoes de poder existentes. O
autor mencionou, ainda, que conflitos e negociagoes ocorriam em sociedades
contemporáneas devido ás relagoes de poder e ao fato daquelas serem compostas
por diferentes grupos.
Por fim, Jedlowski (1997) apresentou definigoes distintas para os conceitos de
memoria comum, social e coletiva. Deste modo, esta foi classificada como sendo
elaborada coletivamente, isto é, resultando de interagoes sociais e processos
comunicacionais, os quais elegiam determinados aspectos do passado de acordó
com as identidades e interesses dos componentes dos grupos em questao. A
memoria social foi entendida como fluida e disponível para qualquer individuo
pertencente ao grupo social. Por sua vez, a memoria comum foi caracterizada como
lembranga que a pessoa teria de si, sem que houvesse elaboragáo, discussáo ou
práticas coletivas. Assim, o autor afirmou que a memoria nao envolvería apenas
representagoes do passado, mas, sobretudo, práticas que permitiriam a vinculagao
entre presente e passado. O momento anterior organizaría o atual através de
herangas culturáis transmitidas ao longo de geragoes. Entretanto, o presente
selecionaria dados herdados, de modo a reconstruir constantemente o que já
passou.
Aproveitando a classificagao ácima exposta e as discussoes em torno do conceito de
memoria, faz-se necessário apresentar a definigao de memoria social proposta por
Sá (2001). Neste sentido, a memoria social envolvería memoria individual, nao
contraria ao aspecto coletivo, urna vez que a ele estaría relacionada, sendo o caso
da memoria autobiográfica; memoria coletiva (haveria concordancia com a
compreensao de Jedlowski); memoria comum, que seria compartilhada por grupo
de pessoas, nao havendo elaboragáo coletiva, vista por exemplo na memoria
geracional; memoria pública, na qual aspectos do passado estariam virtualmente
disponíveis a qualquer individuo, como no caso da memoria documental; memoria
histórica - fontes históricas reunidas em memorias coletivas de grupos
históricamente demarcados, por exemplo, memoria étnica, nacional e comunitaria;
e memoria prática - práticas, rituais e normas implícitas estariam envolvidas, sendo
exemplificada pela memoria institucional.
Com base nesta última categorizagao, questiona-se a possibilidade de arrumagao
de tais classes de forma mais inclusiva. Isto é, seria adequado propor urna
memoria social que englobasse tres esferas, sendo estas respectivamente:
individual, coletiva e comum? Caso a resposta seja afirmativa, acredita-se que
estas esferas poderiam ser apresentadas através de círculos concéntricos, de modo
que a parte mais periférica comportaría a memoria comum, a parte intermediaria a
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memoria coletiva e, por fim, a parte central englobaría a memoria individual. Neste
sentido, haveria urna esfera mais ampia que envolvería dados compartilhados por
membros de conjuntos sociais, dados estes que nao iriam requerer elaboragao
coletiva. Em urna esfera mais próxima ao centro, encontrar-se-iam conteúdos
construidos coletivamente, sobretudo através de práticas verbais (discursivas) e
nao verbais. No que tange ao último aspecto, supoe-se que seria pertinente incluir
nesta esfera intermediaria - círculo referente á memoria coletiva - a memoria
prática anteriormente apontada por Sá (2001). Ainda nesta esfera, poder-se-ia
pensar na inclusao de aspectos públicos (memoria pública) e históricos (memoria
histórica), urna vez que tais dimensoes parecem envolver elaboragao coletiva e o
destaque a condigoes específicas. Embora Halbwachs (1990) tenha estabelecido
diferengas entre memoria coletiva (compreendida em seu aspecto dinámico) e
memoria histórica (entendida enquanto demarcada por condigoes espagotemporais), concorda-se com a posigao defendida por Silva (2002) quanto á
aproximagao entre memoria e historia. Silva (2002) afirmou que o entrelagamento
entre memoria coletiva e memoria histórica revelaría a tentativa daquela alcangar
condigao de veracidade, característica atribuida sobretudo á perspectiva histórica. A
citada autora concedeu destaque á rememoragao (definida como processo
individual) e á comemoragao (apresentada como atividade coletiva) ao analisar a
vinculagao entre memoria e historia, vinculagao que permitiría melhor conexao
entre as dimensoes temporais referentes ao passado, presente e futuro. A énfase
conferida á rememoragao e á comemoragao parece revelar a importancia da
memoria prática, esfera também investigada por Connerton (1993), o qual
examinou cerimónias comemorativas e práticas corporais visando ao entendimento
dos processos de transmissao e conservagao de conteúdos do passado através de
performances rituais. Silva (2002) salientou que, neste entrelagamento entre
memoria e historia, deveria haver constante compromisso com a reflexao, a fim de
que a historia fosse examinada enquanto memoria criticada e nao simplesmente
oficializada. Por fim, cabe mais urna vez afirmar que tal convite ao entrelagamento
pode e deve perpassar nao somente o campo referente á memoria e á historia, mas
também as outras discussoes apontadas no presente artigo.
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Notas sobre a autora
Solange Epelboim psicóloga e doutoranda em Psicología Social na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. É professora na Universidade Estácio de Sá (Unesa) e na
Universidade Católica de Petropolis (UCP). Contato: Avenida Presidente Vargas, 590
/ 1812 - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Brasil cep 20071-000 - e-mail:
[email protected]
Data de recebimento: 04/04/2004
Data de aceite: 24/10/2004
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concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em /
/ , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.ritm
Primeiras noyóes da psique: das conceptees
animistas ás primeiras concepcoes hierarquizadas em
antigás civilizacóes
First notions of the psyche: from animistic conceptions to the first
hierarchical conceptions in ancient civilizations
William B. Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo
Neste estudo, argumento que a historia do pensamento psicológico deve
contemplar, como ponto de partida, consideragoes evolucionarías e antropológicas
sobre a consciéncia humana. O artigo está dividido em tres partes. A primeira traz
as evidencias empíricas e os campos teóricos que se ocupam do estudo da evolugao
humana. A segunda examina a definigao de tres termos básicos e fundamentáis
para o estudo do pensamento humano: consciéncia, psique e animismo. A terceira
compara crengas de antigás civilizagoes sobre concepgoes do universo e da psique.
A conclusao argumenta que a escolha da antiga filosofía grega como ponto de
partida nao despreza as contribuigoes de outras civilizagoes. O pensamento grego
foi, em grande parte, urna síntese cuidadosa e criativa do conhecimento existente
até entao. Contudo, as interligagoes entre universo, corpo e psique, como
entendidas pelas antigás civilizagoes, trazem as perguntas básicas e a lógica que
deve orientar o estudo inicial dos fenómenos psicológicos.
Palavras-chave: animismo; consciéncia; historia da psicología; civilizagoes antigás
Abstract
In this paper, I argüe that the history of human thought should include, as a
departure point, the evolutionary and anthropological considerations about human
consciousness. The article is divided into three parts. First, I present the empirical
evidences and the theoretical fields involved in human evolution. Second, I examine
the definitions of the three fundamental terms for the study of thought:
consciousness, psyche, animism. Third, I contrast different beliefs about the
universe and the psyche from ancient civilizations. To conclude, I say that the usual
choice for initiating the study of human thought with the Greek philosophy certainly
includes the contributions from the ancient civilizations. Greek thought began as a
careful and creative synthesis of existing knowledge. However, links between
universe, human and psyche, as seen by ancient civilizations, bring up the basic
questions and the logic, which should guide the initial considerations on the study
of the psychological phenomena.
Keywords: animism; consciousness; history of psychology; ancient civilizations.
O estudo da historia do pensamento psicológico vem se consagrando,
internacionalmente, como urna forma sólida e segura de introdugao ao estudo da
psicología contemporánea. O conceito de pensamento psicológico abrange todas as
manifestagoes humanas que tem como centro a geragao de sentido. O pensamento
humano manifestou-se ñas mitologías e nos rituais, justificando os estranhos
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fenómenos da natureza e dos diferentes destinos dos deuses e dos individuos. As
mitologías prescreviam éticas, trazendo como recompensa o sucesso na térra, e
algum tipo de vida depois da morte.
Mas o sentido humano é crítico, nao se conformando com justificativas atreladas
em crengas no sobrenatural. Era preciso buscar no natural a sua própria ordem e
explicagáo. O interesse pela observagáo, pela objetividade, e pela medida surgem
como projeto para desvendar a origem do cosmos. A preocupagáo com a
objetividade foi urna importante manifestagáo da racionalidade humana.
A racionalidade nao é tudo para o sentido e suas produgoes. As agoes humanas sao
misteriosas e imprevisíveis, e parecem decorrer de urna relagao nem sempre clara
entre a forga da paixao e o discernimento do intelecto. As justificativas para a
conturbada relagao entre paixao (Eros) e intelecto (Psique) variavam conforme as
crengas dos povos. Quem pode antever o juízo de alguém? Cada humano traz o seu
próprio entendimento das coisas e, por conseguinte, tudo cai no relativo, no
pessoal e no subjetivo.
Dos confrontos entre mitos, racionalidade e subjetividade surgiram teorías que, a
cada tempo, definiram e explicaram a natureza humana. As teorías prescreviam
éticas e sugeriam formas para o proceder correto e justo. O termo concepgao
ontológica é usado neste texto para se referir ás substancias apontadas por crengas
de diferentes civilizagoes como constituintes da capacidade humana de
autoconsciéncia, e das relagoes da autoconsciéncia com o corpo e com o cosmos.
A fundagao científica da psicología nos fináis do século XIX tomou como principio a
suspensao das discussoes metafísicas. Nao havia um projeto inicial para a
construgao de urna teoria geral de psicología. A idéia era circunscrever fenómenos
psicológicos e estudá-los em laboratorio, de acordó com as práticas vigentes: indo
do simples para o complexo ou do elementar para o superior. A posigao nao era
unánime. Varios entendimentos sobre objeto e método foram propostos por
diferentes pesquisadores, fortemente influenciados pelas crengas e interesses de
seus países ou culturas.
O estudo científico da psicología é fundamental e deve sustentar as agoes
profissionais do psicólogo. No entanto, nao se pode negligenciar o estudo das
crengas que envolvem as agoes humanas e o modo de refletir sobre essas agoes.
Ao contrario do que pensavam os primeiros psicólogos cientistas, o estudo de
mudangas no pensamento filosófico e ñas discussoes metafísicas sobre a natureza
humana é parte importante do conhecimento psicológico. Enquanto crengas, elas
constituem o social e o pessoal, estando presentes em cada situagáo em que o
psicólogo for chamado a intervir. As crengas gerais sao táo importantes quanto as
crengas pessoais do psicólogo. As últimas, por sua vez, devem estar sob
permanente suspeita. O trabalho do psicólogo é especialmente complexo por exigir,
sobretudo, competencia científica e sensibilidade sociocultural. A importancia do
conhecimento psicológico está em sua posigao privilegiada de interagir com todos
os saberes, sejam eles físicos ou biológicos, sociológicos ou antropológicos.
Por onde iniciar o estudo para táo exigente carreira? A resposta é simples. Inicia-se
pela historia do pensamento psicológico. A historia antiga traz as raízes de nossas
crengas. Em contraste, o pensamento filosófico moderno nos fornece as matrizes
que sustentam as bases de nossas teorías. Há controversia se esse estudo deve
comegar pelos gregos, pelos chineses, pelos hindus ou pelos egipcios. Alguns até
defendem que seja iniciado pela mitología dos povos amerindios. Na proposta deste
texto, o inicio deve ser anterior a qualquer civilizagáo e partir dos primeiros
indicadores das origens da consciéncia humana. Desta forma, o presente texto está
dividido em tres partes. A primeira dedica-se á identificagáo das primeiras
manifestagoes da consciéncia (autoconsciéncia). A segunda examina a definigáo de
tres termos básicos e fundamentáis para o inicio do estudo do pensamento
humano: consciéncia, psique e animismo. A terceira e última passa em revista
algumas crengas de civilizagoes antigás sobre concepgoes do universo e da psique.
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Consciéncia e evolugao
A historia das idéias em psicología tem como ponto de partida o contexto que deu
origem ao aparecimento da consciéncia na especie humana (homo sapiens
sapiens). Entende-se por consciéncia a intuigao ¡mediata que os humanos possuem
dos seus estados físicos e mentáis, e dos seus atos. Pergunta-se, entao: como
surgiu a consciéncia e quais foram os indicadores desta capacidade que atingiu o
auge de sua sofisticagao no homo sapiens sapiens? A pergunta introduz um
problema de ordem histórica. Subsidios para a explicagao evolucionarla da
consciéncia procedem de evidencias paleontológicas, arqueológicas, primatológicas,
antropológicas, neuropsicológicas, e moleculares. Nos últimos anos, avangos no
estudo dos fundamentos neuroquímicos da consciéncia (Churchland, 1995;
Edelman, 1989) e no mapeamento da seqüéncia nuclear do genoma humano
(Keller, 2002) tém contribuindo grandemente para a compreensao do processo
evolucionarlo humano. A apresentagao das primeiras manifestagoes da consciéncia
na humanidade requer a antecipagao de conceitos e métodos que permitiram o
levantamento de evidencias sobre o humano pré-histórico. A revisao será breve e
introdutória, mas suficiente para os fins propostos. Os comentarios que seguem
basearam-se nos tres primeiros capítulos do livro Historia da etnoiogia de J. Poirier
(1981).
Muitos escritores e viajantes da antiguidade dedicaram-se á preparagao de textos e
á classificagao de documentos sobre práticas e costumes dos mais diferentes povos.
No entanto, tais documentos e textos só comegaram a ser estudados e
interpretados na Renascenga. Na Idade Media, a hegemonía do cristianismo
desestimulou a curiosidade por mundos extra-europeus e incentivou a depreciagao
de outros povos, como aconteceu tao duramente com os negros. Havia um esforgo
para manter a humanidade da forma que ela era reconhecida e aceita, isto é, em
limites bem estabelecidos e determinados. Urna excegao foi o testemunho de Marco
Polo [1254-1324], um mercador e aventureiro veneziano, sobre urna viagem que
fez provavelmente entre 1271 e 1295 ao Oriente Medio, permanecendo entre os
Khans mongóis (na regiao da atual China) por 17 anos. Marco Polo ditou suas
memorias de viagens para um escritor que as publicou em 1477. As historias
apresentadas foram recebidas, na época, como fábulas engenhosas e audaciosas, e
nao como relatos de fatos reais.
A abertura para o conhecimento do que até entao era considerado estranho,
exótico e diferente pela velha Europa veio com a Renascenga. As grandes viagens
marítimas trouxeram documentos e produtos de térras e povos desconhecidos. Os
europeus tornaram-se ávidos por noticias e historias das térras e dos povos recémdescobertos, interessando-se pelas práticas e costumes das sociedades oceánicas,
australianas e amerindias. Foi urna época em que se reuniram muitos documentos
de interesse etnográfico, com europeus visitando sociedades estranhas e recebendo
visitas de membros de tais sociedades que eram apresentados em paradas e festas
de coroagao. O impacto destes contatos foi grande. Alterou conceitos vigentes e
desenvolveu novos conceitos. Alguns defendiam que os povos recém-conhecidos
nao eram dignos de ser considerados seres humanos, por serem malditos e
abandonados por Deus. Outros defendiam a valorizagao das sociedades exóticas,
como mostrou enfáticamente a teoria do Bom Selvagem, proposta na Franga no
século XVIII.
Reflexoes sobre o conhecimento das sociedades estranhas e exóticas comegaram
no século XVII, através do estudo dos relatos de viagens e dos paralelos culturáis,
tendo como referencia as culturas grega, romana e judaica. No entanto, persistía a
atitude depreciativa aos povos recém-conhecidos. No século XVIII apareceram as
interpretagoes antropológicas por meio dos estudos de filósofos e de naturalistas.
Foi na segunda metade do século XIX que se comegou a falar em ciencias humanas
(Dilthey, 1880/1983). Conduto, pode-se argumentar que o termo ciencia do
homem comegou a ser usado no século XVIII, tendo como referencia o livro
Tratado da Natureza Humana do filósofo David Hume [1711-1776], publicado em
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concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em /
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1739. De qualquer modo, estudos sobre povos pré-históricos, escritos de maneira
aberta, livres de preconceitos filosóficos e religiosos, apareceram somente no
sáculo XIX. Setores da velha Europa haviam alcangado a maturidade necessária
para, enfim, compreender a diversidade das atividades humanas em diferentes
tempos e lugares.
Especulagoes sobre teorias da evolugao sao anteriores ao sáculo XIX. No entanto, o
marco revolucionario desta teoria foi a publicagao do livro The Origin of Species em
1859 por Charles Darwin [1809-1882]. O avango do biólogo foi favorecido pela
publicagao de Principies of Geology em 1830-33, por Charles Lyell [1797-1875].
Neste livro, Lyell mostrou que tudo que está sobre a superficie da Terra é produzido
por processos físicos, químicos e biológicos, em longos períodos geológicos. Tais
processos agem sempre da mesma maneira e com a mesma intensidade, sendo
possível estimar o tempo das mudangas geológicas. Em outras palavras, as leis que
governam os processos geológicos nao se modificaram no decorrer da historia da
Terra. Essas idéias foram defendidas, primeiro, em 1785 por James Hutton e depois
transformadas em livro em 1795, com o título de Theory of Earth. Hutton mostrou
como o solo é formado pela agao dos elementos que alteram a cor, a textura, e a
composigao das rochas, e como as carnadas de sedimentos sao acumuladas. A
idade da Terra, estimada em 6.000 anos pela tradigao bíblica, estava sendo
contestada.
Estudiosos da evolugao (Bradshaw, 1997; Salzano, 1995) presumem que o sistema
solar que faz parte da Via Láctea deve ter surgido há aproximadamente 4,5 bilhoes
de anos, e a vida há 3,5 bilhoes de anos. Na cadeia evolutiva, o Homo sapiens é
um mamífero pertencente á ordem dos primatas. A diversificagao dos primatas
ocorreu em torno de 50 a 60 milhoes de anos atrás. Na mesma época, ocorria a
diversificagao de muitos grupos de plantas e de animáis. Os primatas se
alimentavam de animáis e plantas de maneira seletiva. As refeigoes eram
realizadas no crepúsculo e durante a noite. Em virtude desses hábitos, houve
nestes animáis urna evolugao de padroes básicos de comportamento, envolvendo
olfato e alto grau de coordenagao manual-visual.
Os humanos distinguem-se dos outros animáis por características anatómicas e
comportamentais. Na anatomía, os humanos diferenciam-se pela postura bípede,
cerebro grande, e aspectos reprodutivos específicos. No comportamento, eles se
distinguem pela linguagem, pela destreza visual-manual, pelo uso do fogo, pela
manufatura e uso de instrumentos, pela organizagao social a partir de familias
nucleares, e pelo cuidado prolongado com a prole (Salzano, 1995).
Há evidencias de que todos os humanos descendem de um único ancestral (CavalliSforza, 2003). O Homo sapiens sapiens deve ter surgido em torno de 200.000 anos
atrás na África e migrado para outras partes da Terra há cerca de 100.000 anos. A
migragao da África para outras partes da Terra deixou tragos nos povos modernos
ao redor do mundo (Bradshaw, 1997). Do mesmo modo, todas as línguas parecem
proceder de urna única língua. Genes e linguagens co-evoluíram em linhas
similares, conforme principios de diversificagao e diferenciagao.
Formas arcaicas do Homo sapiens viveram na África aproximadamente 700.000
atrás, e na Europa há 500.000 anos. Durante um período de aproximadamente
100.000 anos houve urna sobreposigao do Homo Sapiens e dos remanescentes do
Homo erectus. O mesmo ocorreu entre os Homo neanderthalensis e os
anatómicamente modernos Homo sapiens sapiens, por um período que vai de
100.000 a 35.000 anos atrás. Coincidentemente, arqueólogos reconhecem a
presenga de senso estético em vestigios artesanais humanos a partir 35.000 anos
atrás. Naquela época, final do período pré-histórico, o Homo sapiens sapiens vivia
em pequeñas comunidades agrícolas, confeccionava cerámica, enterrava seus
mortos com oferendas, e se expressava artísticamente em gravuras, esculturas e
ornamentos. Por tras destas realizagoes estava o aparecimento da consciéncia, a
mais elevada diferenciagao do Homo sapiens sapiens (Leroi-Gourhan, 1990).
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Consciéncia, Psique e Animismo
A manifestagao da consciéncia está associada ao desenvolvimento da habilidade
humana para resolver problemas novos e manipular diferentes conceitos
simultáneamente. Os humanos agiam em grupos. Mudangas de táticas, quando
necessárias, dependiam de avaliagao entre os pares para proposigao de novas
estrategias de agao. Na relagao com os pares era necessario fazer inferencias sobre
desejos, intengoes, e crengas; implicando em autoconsciéncia dos próprios desejos,
intengoes e crengas. A consciéncia, por sua vez, é inexoravelmente relacionada com
a memoria em suas diferentes modalidades: 1) memoria para identificagao de
objetos que organizados e agrupados constituem os eventos e as experiencias,
incluindo o ambiente circundante; 2) memoria para eventos e experiencias; 3)
memoria para o trabalho intelectivo propriamente, abrangendo pensamento,
raciocinio e imaginagao (Bradshaw, 1997).
Psicólogos evolucionários (Por exemplo, Bradshaw, 1997) procuram, em estudos
comparatistas, rastrear a continuidade evolutiva entre animáis humanos e nao
humanos, incluindo aspectos da consciéncia e da memoria. Em contraste, etnólogos
e antropólogos preocupam-se com as diferengas entre animáis humanos e nao
humanos, em particular com o processo de formagao da cultura. Por cultura
entende-se o compartilhamento de crengas, hábitos, artes, instrumentos e
organizagao social. A cultura constituí um conhecimento explícito e implícito,
transmitido de geragao a geragao, podendo experimentar momentos de progresso,
estabilidade e declínio. A este propósito Edmund Leach (1976, p. 35) resumiu a
visao antropológica de humano em Claude Lévi-Strauss, do seguinte modo:
O homem é um animal, um membro da especie
Homo sapiens, sendo párente próximo dos
grandes primatas e mais distante de outros
seres vivos presentes e passados. Mas o homem,
nos afirmamos, é um ser humano, e ao dizer
isso se quer dizer, evidentemente, que ele é
diferente e de alguma maneira um outro e nao
'simplesmente um animal'.
A localizagao das características distintivas do humano moderno no plano
evolucionário é, também, a localizagao dos aspectos que vao ocupar a atengao do
campo de estudo que receberá, posteriormente, o nome de Psicología. Entre esses
aspectos destaca-se a manifestagao da consciéncia como a capacidade para
intuigao ¡mediata, para revisar o passado e para se voltar ao futuro. A consciéncia é
a capacidade genérica e universal dos humanos de geragao de sentido para eventos
e experiencias cotidianos, preenchendo vazios e faltas. Foi a condigao de ser
consciente e de poder dirigir a consciéncia para ela mesma que permitiu aos
humanos, o desenvolvimento da reflexao, este ímpeto á procura de sentido para si,
para o outro, e para o mundo circundante. Hearnshaw (1987), um historiador
británico de Psicología, disse que quando os humanos comegaram a se expressar
artísticamente e a sepultar seus mortos com oferendas, eles estavam reafirmando
o sentido dos limites entre vida e morte, e celebrando a própria sobrevivencia.
A condigao humana de constituir sentido emergiu no desenvolvimento de crengas
entre os antigos. Essas crengas eram expressas em magias, rituais e mitos. Elas
surgiram da observagao cuidadosa, paciente e continuada do comportamento de
outros seres humanos, dos animáis, e da natureza. Os antigos podem ter se
perguntado, por exemplo, qual a diferenga entre humanos, animáis e plantas; qual
a diferenga entre sua tribo e outras tribos; e qual a diferenga entre cada um deles e
os outros. Eles aprenderam, muito cedo, que estavam envoltos em urna rede de
relagoes complexas e diante de fatos sobre os quais nao tinham controle.
As respostas para explicar ou lidar com as questoes apontadas apareceram
gradativamente em explicagoes mágicas e, mais adiante, religiosas. As origens das
crengas tragam o caminho da vida inteligente. Em sentido ampio, as crengas
antigás ilustram a criagao de sentidos gerais que estabelecem limites conceituais e
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concepcoes Jerarquizadas em antigás civilizacoes. Memorándum, 7, 32-46. Retirado em /
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práticos: o que comer, quando comer, que plantas e animáis podem servir de
alimentos, por que preservar o territorio da tribo, por que ir para luta com outras
tribos, e por que nosso povo tem um destino e urna missao especial. Do respeito
aos limites dependía a ordem da vida social e a garantía da sobrevivencia.
A magia (Séjourné, 1957) traz a primeira forma de relagáo do humano com seu
próprio corpo, com os outros seres humanos e com as forgas onipotentes da
natureza. Na magia, os humanos procuravam assimilar as forgas da natureza ou se
fazer semelhantes a elas. O ritual mágico era mediado por um feiticeiro, aquele
capaz de viver os fenómenos naturais, assemelhando-se a eles. O feiticeiro invoca a
chuva imitando-a, o mesmo ocorre com a imitagáo do menino que sumiu na
floresta, e com as dores do corpo. O sucesso da mágica estava na capacidade de
imitar com perfeigao. Havendo falha, a justificativa estava na imperfeigao do ato de
imitar. As crengas mágicas revelam a presenga da vida inteligente e as relagoes
contextuáis que apoiavam tais crengas e comportamentos. Os atos mágicos
(Séjourné, 1957) indicam a falta de realidade do pensamento, a incapacidade de
síntese, e a ausencia de um centro de referencia. A magia foi urna maneira de lidar
com o múltiplo por meio de fragmentos, caracterizando-se como um modo de agir
através de atos parcelados.
A religiao apresentou-se como um avango extraordinario na vida inteligente e
trouxe o principio de unidade capaz de lidar com emanagoes de todos, a
interligagao de partes que perfazem urna ordem, por exemplo, o cosmos invisível
(Séjourné, 1957). É quando surgem as concepgoes de urna alma cósmica que dá
ordem á natureza, e da alma individual que, de alguma forma, está também
presente em animáis e plantas. O humano emerge como centro de si mesmo,
disposto a interferir no curso dos acontecimentos e na própria natureza. A unidade
que se obtém na religiao independe de sua condigao politeísta ou monoteísta.
Associados ás crengas religiosas, surgiram os rituais e os mitos. Os rituais sao
sistemas de atos simbólicos regulados por regras próprias. O mito é urna narrativa
simbólica de origem desconhecida, pertencente á memoria coletiva de um povo, e
que relata eventos ligados ás crengas religiosas. As narrativas míticas podem
envolver deuses, heróis, animáis e plantas. Os rituais estao relacionados aos totens
que sao objetos simbólicos (planta ou animal), separados para lembrar ancestrais
mortos ou para preservar tradigoes familiares ou tribais. A linguagem do ritual é a
mesma linguagem do mito. Os rituais pré-históricos envolviam sacrificios humanos
e de animáis. Por exemplo, Laurette Séjourné, urna antropóloga especializada no
estudo do pensamento e religiao do México pré-colombiano, publicado pela primeira
vez em 1957, conta que na religiao asteca o homem nao tinha outro fim sobre a
Terra que nao fosse alimentar o Sol com o seu próprio sangue. Sem sangue o Sol
se esgotaria e chegaria a seu fim. Aos astecas restava o dilema: matar seres
humanos ou esperar pelo iminente fim do mundo. No exemplo, emerge claramente
a construgao do mito e a sua relagao com o ritual de sacrificios humanos, em
altares especialmente preparados para este fim.
O estudo das culturas primitivas foi fortemente influenciado por Edward Burnett
Tylor [1832-1917] um etnólogo británico que descreveu as origens do pensamento
religioso, em um livro publicado originalmente em 1871-1873, com o título de
Primitive Culture (Tylor, 1958). Para Tylor (Tylor, 1958, vol I), nossos ancestrais
eram movidos por curiosidades, intrigados com as próprias experiencias dos sonhos
e visoes, e dispostos a encontrar urna explicagáo satisfatória para a morte. Eles,
entáo, articularam idéias sobre principios animistas e almas fantasmas, estendendo
tais idéias para a alma individual, daí para toda a humanidade e daí para o mundo
nao natural. Assim, as primeiras explicagoes foram por meio de crengas que
ficaram conhecidas como mitos.
Tylor (1958) tomou o mito como base para explicar as origens da religiao. Para ele,
os mitos interpretavam os fenómenos da natureza com interpolagoes alegóricas, de
acordó com o olhar dos povos antigos. É autor da teoria do animismo, na qual ele
explica a origem do conceito de alma. O termo animismo é definido como a crenga
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em alma ou espirito como entidade distinta e separada da materia. Poirier (1981)
resumiu a teoria do animismo em quatro proposigoes: 1) o conceito de alma nasce
da experiencia do sonó e da morte; 2) os conteúdos dos sonhos com suas cenas e
dramas induziram a idéia de que durante o sonó o ser humano pode agir, deslocarse, continuar uma vida inaparente, mas real, e ser uma sombra dele mesmo, sendo
esta sombra a alma; 3) a alma está presente em todos os seres vivos como um
espirito vital; e 4) a alma dos mortos pode agir sobre os vivos. A relagao entre
sonó, sonho e morte levou á dedugao de que os seres sao constituidos de um corpo
visível e de um espirito invisível. A alma é móvel, está presente nos animáis e até
nos seres inanimados, e é a vida universal que anima a natureza. De resto, a alma
dos antepassados, dos sacerdotes, dos chefes e dos heróis tem autoridade
permanente e pode agir sobre os vivos para protegé-los ou prejudicá-los. Em suma,
a alma que anima a natureza pode reencarnar-se em animáis humanos, em
animáis nao humanos, e em objetos.
As crengas sobre almas e espíritos foram se tornando complexas. Em sua reflexao
sobre o sentido do mundo e das coisas, o ser humano foi diferenciando os espíritos
e elaborando uma realidade de muitos deuses, com fungoes específicas: deuses do
mar, do céu, da agua, da colheita, da fertilidade, da guerra, do amor e assim por
diante. Foi o que veio a se chamar de politeísmo. O monoteísmo, seguindo a teoria
de Tylor, representaría uma etapa posterior e mais abstrata e estaría baseada em
nogoes do bem e do mal.
Os conceitos de animismo e de alma atravessaram sáculos e continuam presentes,
com muita forga, nos dias de hoje. O animismo, em termos gerais, é a doutrina de
que os organismos vivos sao animados por uma alma, ou seja, a alma é o principio
de vida orgánica e da vida psíquica. O conceito se refere a crengas cruas e
ingenuas, ñas quais se confundem imagens, sentimentos e realidade. As relagoes
de causalidade se apóiam em idéias falsas, e as práticas mostram uma confianga
absoluta no sobrenatural. O pensamento religioso para Tylor (1958) é uma forma
de animismo, variando em grau de sofisticagao. No entanto, a magia foi um
desenvolvimento importante da inteligencia humana, procurando explicar as
relagoes entre o homem e a natureza, alias, a mesma preocupagao da ciencia
moderna.
Nesta mesma linha de argumentagao, encontra-se Wilhelm Wundt [1832-1920].
Para ele, o conhecimento da natureza nao devia se basear em pressuposigoes
apriorísticas, mas no relato psicológico do desenvolvimento humano. Este é o
argumento dos seus estudos em Vólkerpsychologie (Wundt, 1912/1916) quando ele
trata da historia da evolugao da psicología do género humano em quatro estágios:
o homem primitivo, a idade totémica, a idade dos heróis e deuses, e o
desenvolvimento da humanidade. A argumentagao é consistente com a virada
conceitual provocada pelos evolucionistas, em contraste com a visao judaico crista
da degenerescencia da humanidade. A humanidade seria, para Wundt, o ponto de
chegada, a meta de aperfeigoamento. O interesse de Wundt era apontar para as
primeiras manifestagoes da vida inteligente no totemismo, ñas idéias da alma, da
vida depois da morte, até alcangar o desenvolvimento da personalidade e da
reflexao evidenciadas ñas idéias de heróis e de deuses. Para Wundt, a idéia da alma
originou-se no medo instintivo do morto, o medo de que alguma forga do morto
pudesse vir a fazer mal e atacar os vivos. Esta alma deixava o corpo por ocasiao da
morte na forma de uma cobra, de um verme, de um pássaro ou de rato. Por
conseguinte, estes foram os primeiros animáis totémicos. Os totens foram entao
estendidos a outros animáis, a plantas e a objetos inanimados de acordó com o
significado atribuido ao animal ou objeto. O animismo, para Wundt, estava
associado a um outro conceito de alma, a alma como fólego vital que deixava o
corpo no momento da morte.
Obviamente, as posigoes de Tylor quanto á origem do pensamento religioso e de
Wundt quanto á evolugao do pensamento psicológico, foram criticadas. Durkheim
(1912/1995) foi um crítico de Tylor, entendendo que a religiosidade, um fenómeno
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duradouro e consistente, nao poderla ter se originado em urna ilusao. Para ele, o
fato religioso era um fato social, nao redutível á verdade empírica. Spiro (1984)
alegou que as explicagoes de Tylor desconsideraran! as implicagoes sociais e
emocionáis da religiao. Bloom (1992), seguindo a perspectiva do criticismo
religioso, defendeu a condigao irredutível da experiencia religiosa. Neste sentido, a
religiao seria urna experiencia transcendente e sui generis. Por sua vez, Mead
(1916) criticou Wundt sob o argumento de que suas posigoes estavam
desatualizadas e de que nao poderiam ser levadas em consideragao quando
tratando de temas antropológicos. Ressalvou, contudo, que as idéias psicológicas
apresentadas eram interessantes e sugestivas. Gundlach e Robinson (1992)
avaliaram as posigoes de Wundt como urna síntese da teoria social da Europa
Continental. Para os autores, a evolugao cultural em quatro etapas, como referida
ácima, nao passava de reminiscencias obvias das informagoes darwinistas, e das
teorías dialéticas defendidas no sáculo XIX por filósofos como J. G. Fichte [17621814], G. W. F. Hegel [1770-1831] e K. Marx [1818-1883]. No entanto, o papel
importante de Wundt está no reconhecimento da condigao humana como geradora
de mudanga, criagao e desenvolvimento da humanidade, em urna visao voluntarista
e romántica.
De qual quer modo é impossível negar as evidencias históricas de que árvores e
plantas foram reverenciadas como totens por serem belas e úteis, e as evidencias
arqueológicas da ocorréncia de rituais como o culto das ossadas. O estudo destes
materiais mostra que os paleantropídeos veneravam as mandíbulas de raposa no
fundo das tocas, e de que os neanderthalenses, os últimos paleantropídeos,
sepultavam seus mortos (Leroi-Gourhan, 1990). O conceito de animismo de Tylor e
a preocupagáo de Wundt com a evolugao da consciéncia sao importantes por trazer
a idéia da unidade psíquica nos seres humanos e por procurar entender a geragáo
de sentido na relagáo direta com a experiencia. Os autores fornecem ainda urna
perspectiva secular para o problema.
O termo animismo procede do latim anima que quer dizer respiragáo ou alma. Por
sua vez, o conceito de alma é básico para a compreensao histórica das teorías
psicológicas. Apesar da grande variagao em concepgoes de alma, é possível
restringir a abrangéncia do termo para tres definigoes básicas: 1) alma como sopro
(respiragáo), 2) alma como fogo (calor vital que se apaga com a morte), e 3) alma
como sombra, duplo, ou simulacro - que pode sair á noite, como ocorre nos
sonhos; que pode aparecer aos vivos, como ocorre depois da morte; e que pode
reencarnar-se em outros seres. O conceito de alma será redefinido continuada e
simultáneamente na sucessao de idéias psicológicas. Afinal, o termo psique
significa alma, isto é, respiragáo, principio de vida, mente e cerebro.
Concepgoes ontológicas do universo e da psique
A génese das idéias psicológicas e seus contextos constituintes tem sempre como
ponto de partida urna visao do universo e do ser. Trata-se dos principios
ontológicos fundamentáis. O que era a natureza fundamental da realidade ou ser
para as civilizagoes antigás? Certamente, essas visoes poderiam ser tantas quantas
eram as civilizagoes. Algumas civilizagoes ganharam notoriedade pela sua
proeminéncia histórica e pela influencia que até hoje exercem em nossa maneira de
ser e pensar. O conceito ontológico de ser humano será revisto em tres civilizagoes:
a chinesa, a indiana, e a egipcia. Essas civilizagoes trazem comporeensoes bem
articuladas e hierarquizadas sobre a relagao entre cosmos, alma e corpo. As
consideragoes que serao expostas estao baseadas na investigagao exaustiva e
inédita de Paulo Roberto F. Mosca intitulada Epistemología Genética e
Conhecimento Médico, a primeira tese de doutorado do Programa de PósGraduagao em Psicología da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendida
em 1999.
Seria fascinante se fosse possível iniciar a exposigao pela civilizagao mesopotámica.
Há evidencias de que este povo já existia por volta de 12.000 anos a.C. e de ter
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criado a escrita entre 4.000 e 3.000 anos a.C. No entanto, as teorías
mesopotámicas sobre o mundo e sobre o humano nao foram preservadas. Sabe-se,
contudo, que era urna cultura fortemente marcada pela magia e pela religiosidade
(Mosca, 1999).
China Antiga
A origem dos chineses é pouco conhecida. Há evidencias arqueológicas de
civilizagoes que existiram na regiao hoje ocupada pelos chineses com datagao de
5000 a.C. No entanto, o pensamento chinés, no que se refere ao taoísmo
(caminho) comega a ser conhecida nos sáculos V e IV a.C. (Mosca, 1999) A
cosmología chinesa é centrada em urna visao dinámica e mutante do universo. As
propriedades fundamentáis do universo sao explicadas através das varias nogoes
do taoísmo. A explicagao do mundo é dada através dos conceitos de Wuji (Sem
Cumeeira), Tao (caminho), Taiji (Cumeeira Suprema), Yang (a grande luz), e Yin (a
grande sombra). O Wuji (Sem Cummeeira) está além do pensamento e assim nao
se tem como falar sobre ele. O Tao traz a relagáo entre mestre e aluno. Taiji
(Cumeeira Suprema) é o principio natural do movimento perpetuo (nascimento,
progresso, decadencia, aniquilagáo) e controla as forgas e movimentos constituidos
por Yang e Yin. A dupla é mediada por um principio único do Tao, sendo que um
deles nao pode existir sem a presenga do outro. Há entre eles um controle mutuo.
Yang expressa a atividade {wei), o ser (yeu) o movimento, {tong) e o principio
metafísico (//'). Em contraste, Yin expressa a nao atividade {wu wei), o nao ser
{wu), a quiesséncia {tsung), e o éter físico {k'u). Ainda, Yang está associado a
calor, luz e masculinidade; e Yin a nuvens, chuvas, e feminilidade.
Os principios construtivos do ser humano, na ontologia chinesa sao descritos em
urna ordem hierárquica incluindo: jing (esséncia seminal etérea), hing (corpo
físico), k'i (sopro vital), p'o (alma racional ligada a materialidade), hun (alma
racional cognitiva), e shen (alma superior, mais permanente que hun, e onde tche
designa a vontade). A relagao entre os níveis fica mais fácil de entender quando se
diz que corpo físico {hing) é animado pelo sopro vital {k'i) e constituido por urna
esséncia {jing). Junto ao corpo tem-se urna alma terrena {p'o) que está ao lado de
urna alma celeste {Hun ou Huen). Na China Antiga havia urna supervalorizagao das
almas mais permanentes sobre as modalidades corporais efémeras. Neste sentido,
os seres vivos sao explicados pelo k'i que é o sopro vital e está presente nos
vegetáis, nos animáis e nos humanos; e pelo j/ng que se desdobra em Xeou jing e
em Chang jing. O Xeou jing é a sensibilidade e está presente nos animáis e nos
humanos; e o Chang jing é a racionalidade. Há urna analogía entre os principios
construtivos do ser humano e o corpo, sendo indicada as seguintes
correspondencias: hun-f\gado, p'o-pulmao, shen-coragao, siang-nns (fecundagao),
tcfte-vesícula (vontade). Essas proposigoes orientaram as nogoes religiosas,
psicológicas e médicas da Antiga China.
india Antiga
Há evidencias arqueológicas de que urna civilizagao hindú, indiana ou harappiana já
existia, no subcontinente asiático, por volta de 2500 a.C, alcangando seu apogeu
por volta de 2000 a.C, e desaparecendo por volta de 1750 a.C. A seguir, a regiao
indiana foi ocupada pelos arianos que vieram provavelmente de Bactria e do norte
do Irán. Os arianos rig-védicos estenderam seus dominios pelos vales do rio Indus
(cerca de 1500 a.C.) e do rio Ganges (cerca de 900 a.C). Os arianos incorporam
técnicas usadas pelos harappianos, trabalharam na fundagao de cidades, e
desenvolveram o sánscrito, urna língua indo-européia na qual foi escrita a literatura
clássica da civilizagao indiana. Ainda hoje o sánscrito é língua da cultura e das
relagoes diplomáticas da india e das regioes que sofreram sua influencia (atuais
Afganistao, Japao, Indochina e Indonesia). A expansao da civilizagao indiana
experimentou grande movimentagao comercial com o Oriente Medio e com a
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Mesopatamia, entre 700 e 300 a.C. Foi neste período que apareceu o budismo
(Mosca, 1999).
A ciencia indiana é pouco conhecida no ocidente. O que sempre interessou muito na
cultura indiana foi a sua filosofía. Entre as muitas tradigoes do pensamento indiano,
a vertente sámkhya foi a que parece ter exercido maior influencia sobre os
principios ou elementos de ciencia (Mosca, 1999). Os apontamentos que seguem
sobre a ciencia hindú tratarao de conceitos referentes ao sámkhya e ao budismo. O
yoga, outra influencia hinduísta muito conhecida no ocidente, tem como referencia
o tratado Yoga-sutras de um autor chamado Patañjali, mas que viveu muito depois
do período que está sendo aqui considerado (séc. II a.C). O tratado deve ter
aparecido em torno do sáculo II d.C.
De acordó com o sámkhya, o Absoluto manifesta-se em tres grandes símbolos: o
Grande Alentó, o Incognoscível, e a Grande Mae. O Grande Alentó é a nogáo
central. Trata-se de um movimento abstrato eterno, de urna Realidade Única. O
alentó é como a respiragáo, um movimento que está sempre indo e vindo. De
acordó, com a tradigáo, o aparecimento e desaparecimento do Universo expressam,
respectivamente, a expiragao e inspiragao do Grande Alentó. O Incognoscível é o
que respira um pensamento, sendo este pensamento o Universo. Por fim, A Grande
Mae é o Corpo do Universo Imóvel, isto é o espago. A consciéncia individual tem
como fonte e origem o Grande Alentó.
O conceito de ser humano, na tradigao sámkhya, é concebido em planos que
correspondem a um certo corpo ou revestimento (Mosca, 1999). A descrigao que
segué tenta expressar, em sua forma, o desdobrar destes planos e a linha de
contigüidade existente entre eles: o primeiro plano é o corpo físico que é o
Annamaya Kosha, o revestimento de alimento; ao qual se agrega o Pránamaya
Kosha que é o revestimento do fluido vital; ao qual se agrega o Mánomaya Kosha
que é o revestimento da mente com as emogoes e os pensamentos materiais, ao
qual se agrega o Vijnanamaya Kosha que é o revestimento do conhecimento, a
porgao superior dos pensamentos, o "eu" reencarnante; ao qual se agrega, o
Anandamaya Kosha que é o revestimento do éxtase, correspondendo a alma
espiritual, ás vezes referida como buddhi, termo do qual se deriva buddha que quer
dizer liberdade.
O budismo é urna religiáo e urna filosofía que embora tendo aspectos próximos ao
hinduismo destacou-se com características próprias. O primeiro buddha foi
Siddharta Gautama, nascido provavelmente em meados do sáculo VI a.C. Gautama
era um nobre da tribo dos sáquias. Aos 29 anos, preocupado com a fatalidade do
envelhecimento, do adoecimento, e da mortalidade, ele renunciou aos bens
materiais, ao conforto dos palacios, á convivencia da mulher e do filho, e saiu em
busca da verdade. Em suas andangas, primeiro encontrou dois mestres com os
quais aprendeu a alcangar estados místicos de elevada consciéncia. Nao
completamente satisfeito, continuou com as suas andangas e encontrou os
ascéticos com os quais ele viveu seis anos de austeridade, praticando flagelagáo do
corpo através de penitencias e jejuns. Sentido-se fraco e doente, Gautama deixou
os ascéticos e seguiu o seu próprio caminho para a iluminagáo, através da
meditagáo.
Siddharta Gautama fundou o budismo, urna filosofía e religiáo que se interessa
profundamente pelo estudo da mente, usando como método a meditagáo. Ao
contrario de outras religioes nao tem um deus de adoragáo. O ponto central do
pensamento budista é o sofrimento que é gerado pelas reencarnagoes sucessivas e
suas sementes kármicas. A iluminagáo tem como objetivo superar o sofrimento e
romper com o ciclo da reencarnagáo. O budismo tem sua síntese doutrinária em
quatro verdades: a vida é plena de sofrimento, a origem do sofrimento é a idéia
acerca da existencia de um "eu", a cessagáo do sofrimento ocorre com a eliminagáo
da idéia do "eu", a obtengáo dessa cessagáo se dá pela prática do óctuplo caminho.
O nobre óctuplo caminho consiste em 1) compreensáo correta, 2) pensamento
correto, 3) fala correta, 4) agáo correta, 5) meio de vida correto, 6) esforgo correto,
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7) atengao correta, e 8) concentragao correta. As verdades budistas foram
analisadas por Mosca, baseando-se para tanto no Samyutta-Nikaya, que quer dizer
colegao (nikaya) de discursos (suttas). Com relagao a segunda verdade disse Mosca
(1999, p. 250):
O Samyutta-Nikaya 2:1,2 aponta que o "surgir"
por meio de causas é a seguinte: as construgoes
mentáis sao condicionadas pela ignorancia (a
dualidade), a consciéncia é condicionada pelas
construgoes, o nome e a forma sao condicionados
pela consciéncia, as seis esferas sensoriais sao
condicionadas pelo nome e pela forma, o contato é
condicionado pelas seis esferas sensoriais, a
sensagao é condicionada pelo contato, o desejo é
condicionado
pela
sensagao,
o apego é
condicionado pelo desejo, a existencia é
condicionada pelo apego, o nascimento é
condicionado pela existencia, e condicionados pelo
nascimento a velhice, a morte, o sofrimento, a
dor, o desespero e os lamentos vém á existencia,
esta é a origem dos males.
Com relagao á quarta verdade, a análise de Mosca apontou o seguinte:
A interrupgao das construgoes resulta da
interrupgao da ignorancia, a interrupgao da
consciéncia
resulta
da
interrupgao
das
construgoes, a interrupgao do nome e da forma
resulta da interrupgao da consciéncia, etc.; assim
se produzem os males.
Os elementos da cadeia de causagao condicionada sao analisados pelo SamyuttaNikaya 2:2-4 do seguinte modo (Mosca, 1999): a geragao de qualquer coisa,
consiste em tres especies de existencia (dos prazeres sensuais, da forma e do sem
forma), em quatro tipos de apego (aos prazeres sensuais, a urna mesma opiniao, a
regras e ritos, a idéia do "eu"), em seis tipos de desejos (o das formas materiais, o
das coisas ouvidas, o das percebidas pelo olhar, o ligado ao olfato, ao gosto, ao
tato, e á mente), em seis sensagoes (as que nascem em contato com o olho, com a
orelha, o nariz, a língua, o corpo e a mente), em seis tipos de contato (contatos
com o olho, etc.), em seis esferas sensoriais (as esferas do olho etc.), em nome
(ou seja a sensagao, a percepgao, o esforgo, o contato, a atengao) e em forma
(derivada dos quatro elementos - térra, agua, ar, e fogo), em seis especies de
consciéncia (pelo o olho, etc.) em tres especies de construgoes (pelo corpo, pela
palavra, pelo pensamento) e em relagao a ignorancia das quatro nobres Verdades.
Mosca enfatiza que o budismo é a mais psicológica de todas as religioes. No
oriente, o budismo exerce forte influencia na vida espiritual, social e cultura desde
o sáculo VI a.C. A partir do sáculo XX o budismo comegou a fazer adeptos também
no ocidente.
Egito Antigo
O Egito juntamente com a Mesopotánia já na Idade Neolítica (ou da Pedra Polida)
fundaram cidades e Estados organizados. A historia geral descreve o Egito Antigo
em diversos períodos políticos que abrangem desde o inicio das dinastías em 3100
a.C. á decadencia e dominio estrangeiro em 332 a.C. (Roñan, 1987). O apogeu das
artes plásticas, das composigoes religiosas e dos grandes sabios ocorreu no Antigo
Imperio, entre 2686 e 2160 a.C. Foram deste período as descobertas que fundaram
a matemática, a astronomía e a medicina. Os papiros origináis deste período
desapareceram, mas desenvolvimentos posteriores no Medio Imperio (2040 a
1786, a.C.) e no Novo Imperio (1567 a 1085 a.C.) supoem grandes elaboragoes
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anteriores. Mesmo os papiros médicos do Novo Imperio eram copias ou adaptagoes
de documentos que remontam ao Antigo Imperio (Mosca, 1999).
Os antigos egipcios conceberam uma ontologia complexa constituida por varios
principios e corpos (Mosca, 1999). Os seres humanos eram formados por um corpo
físico (kha), um corpo etéreo (£>a) que seria o alentó vital ligado ao coragáo, uma
alma ligada aos desejos (ka), uma alma mental inferior (akh), uma alma superior
ou intuitiva (sah), uma inteligencia espiritual (khw ou ku), e um espirito (atm). O
corpo físico era descrito como possuidor de uma decadencia inerente, sendo a parte
que era mumificada e enterrada no túmulo. O corpo etéreo seria uma alma que
permanecía na vizinhanga do corpo do morto na cámara fúnebre ou voava livre. A
alma mental inferior era um corpo astral, também designado de duplo, que tinha
independencia do corpo físico. Possuía características e personalidade própria. As
oferendas aos mortos tinham como objetivo alimentar essa alma inferior para que
ela pudesse ser purificada e nao ficasse por ai atrapalhando a vida dos humanos na
térra. A alma inferior era algo intermediario entre os deuses e os homens, podendo
significar brilho e também o morto que retorna. A alma superior ou intuitiva era o
corpo incorruptível que ia da tumba aos céus, era o corpo glorificado do ego. Ela
era descrita como possuindo uma forma brilhante, luminosa e intangível ao corpo
físico. Por viver com os deuses, a alma superior nao poderia ficar aprisionada ao
túmulo, para evitar essa catástrofe teria que recitar fórmulas mágicas. Por fim, o
espirito era o filho de Ptah que fazia o sacrificio da individualizagao para viver. Na
religiao egípicia, Ptah era o deus criador de todas as coisas.
Relacoes entre explicacoes animísticas e positivas ñas culturas antigás
O primeiro ponto a ser destacado na comparagao é a inter-relagao das substancias
que compoem o universo e a psique. Na ontologia chinesa aparece com clareza a
visao tripartida de alma: 1) fólego vital enquanto vida, presente ñas plantas, nos
animáis e nos humanos; 2) sensibilidade, presente nos animáis e nos humanos; e
3) a racionalidade presente nos humanos. O segundo ponto refere-se ás
interligagoes das explicagóes etéreas ou anímicas com as explicagóes positivas, isto
é, conceitos baseados em um estudo empírico da realidade corporal. A distingáo
dessas relagóes é complexa, em parte pela escassez de documentos que possam
servir de evidencia e também pela grande variedade de vertentes ontológicas em
cada grande civilizagáo. Os chineses antigos nao estavam convencidos de que
conhecimentos anatómicos e fisiológicos fossem indispensáveis para a compreensáo
da estrutura do corpo humano. A prioridade voltava-se para as almas permanentes
(shen, a alma superior) e nao para a alma efémera (corpo). A mesma hierarquia
valorativa de almas existia para os humanos desta cultura. Para eles, o homem
superior, por possuir uma estrutura interna elevada, nao se deixa contaminar pela
varióla e nao é atacado pelos tóxicos, o mesmo nao ocorrendo com o homem vil. O
importante, para os chineses, era o desenvolvimento da capacidade para observar
e intervir nos varios níveis da alma, colocados ácima do corpo.
Os Indianos pouco conheciam de anatomía, fisiología, patología e terapéutica. Por
exemplo, a medicina védica, uma das vertentes ontológicas indianas, associava a
doenga a negligencias em relagáo aos rituais e as regras de vida. Os egipcios
sabiam que o homem nao podia viver sem alimento ou sem ar, que os excrementos
eram ligados ao aporte de alimentos, e que havia substancias dentro do corpo que
preservavam a vida do corpo. Mas já se constata uma forte racionalidade e um
certo conhecimento anatómico fisiológico. Nos procedimentos de mumificagáo,
juntava-se o conhecimento positivo das partes do corpo que precisavam ser
removidas para evitar a putrefagáo, com o conhecimento nao positivo de que era
preciso acalmar o morto, prendendo e alimentando seu corpo vital. Na atualidade,
reconhece-se que o pensamento indiano exerceu influencia na lógica ocidental,
apontando para certas inadequagoes e mostrando que certas distingoes nao sao táo
determinadas e inevitáveis como parecem ser. Por exemplo, o Tratado Filosófico
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Hindú (Upanisads) traz urna das primeiras formulagoes sobre monismo radical, isto
é, a unidade essencial entre corpo e espirito.
O argumento central deste texto é a construgao do sentido como característica
básica e enunciadora da inteligencia humana. Por sentido entende-se a
compreensao ¡mediata e necessária que se requer ao humano diante do curso da
vida. O sentido é a interpretagao das informagoes obtidas pelas sensagoes ou pelas
elaboragoes imaginativas e que serve de base para agao ou resposta. Mas o sentido
é, também, a interpretagao da natureza da qual este humano é parte, e do mundo
em que vive. As evidencias das primeiras manifestagoes de sentido ou de
inteligencia sao escassas e fragmentadas. A documentagao arqueológica
encontrada refere-se ao instrumental técnico, ao habitat, e as atividades religiosas
e estéticas. O interesse de urna abordagem científica ao problema é saber como se
chegou ao primeiro hominídeo, aquele que aparece dotado de urna consciéncia do
próprio existir. Para aqueles que se orientam pela tradigao judaico crista, por
exemplo, o problema já está resolvido há muito tempo, tornando-se desnecessário
procurar o elo da cadeia antropídea. Pois, pela graga de Deus, fez-se o primeiro
homem, plenamente amadurecido. Por outro lado, aqueles que procuram urna
compreensao secular defrontam-se com a hipotética teoria do animismo, ou seja a
imaginagao criadora enquanto atividade da consciéncia, buscando sentido para a
relagao entre a vida e a morte. Por esta teoria, o conceito de alma invisível e
¡mortal é urna criagao do sentido humano. De qualquer modo, a idéia de urna alma
independente e separada do corpo, mas reunindo características intelectivas e/ou
divinas tornou-se base para a explicagao do conhecimento, da racionalidade, e, por
conseguinte, do comportamento, ocupando a posigao central em muitas teorías ao
longo dos sáculos.
As concepgoes de psique e de mundo das civilagoes que precederam aos gregos,
como a China, a India e o Egito servem de ilustragao para dois importantes pontos:
a explicagao para a relagao entre o cosmo, o corpo, e a psique; e a conjungao de
principios ontológicos (o que é a realidade) com principios axiológicos (o que é o
bem e o belo), principalmente a ética no sentido de moral ou costume.
Nota-se ñas teorías, em um primeiro plano de comparagao, um esforgo para
explicar as relagoes entre o cosmos e os seres vivos: os chineses pelo sopro vital
(k'i), os indianos pelo Grande alentó e o Incognoscícel, e os egípicios pelo corpo
etéreo, o alentó vital. Em um segundo plano, as teorías procuram diferenciar a
sensibilidade e também a forga para o movimento, dando-lhe um status de
materialidade: os chineses com a sensibilidade (xeou jing), os indianos com as
emogoes e os pensamentos materiais, e os egipcios com a alma ligada aos desejos.
Em um terceiro plano, as teorías trazem o problema da racionalidade, os chineses
contrapondo conhecimento e vontade, representados respectivamente pela a alma
racional cognitiva e pela alma mental superior; os indianos no contraste entre o
conhecimento e o eu reencarnante, e os egipcios no contraste entre a alma mental
inferior (o corpo astral ou duplo) e a alma mental superior ou intuitiva. No último
plano está a diferenga entre a alma perecível e a alma imperecível, no caso dos
chineses era a alma terrena versus a alma celeste; no caso dos indianos era a
experiencia libertadora da éxtase, a alma espiritual; e para os egipcios era a alma
mental superior que iria da tumba aos céus.
As questoes ontoaxiológicas decorrem das pressuposigoes ontológicas como base
prescritiva (ética) em educagao e saúde. Por exemplo, os egipcios diferenciavam
claramente urna alma mental inferior que era independente do corpo físico mas
permanecía ao lado do corpo, podendo sair atrapalhando e criando problemas para
os vivos. A esta alma, eram dedicadas as oferendas para que ela se purificasse e
permanecesse tranquila em seu próprio lugar, sem sair para incomodar os demais.
Já a alma mental superior requería um certo cuidado em vida para que ela
retornasse aos deuses, de onde havia vindo. Esse cuidado se fazia por meio da
recitagao de fórmulas mágicas. Quais as implicagoes práticas dessa ontoaxiologia?
O cuidado com as sepultaras e as oferendas, no caso da alma racional inferior; e a
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recitagáo de fórmulas mágicas no caso da alma mental superior. No caso do
budismo, a relagáo ontoaxiológica é muito clara e apresenta, em sua estrutura,
semelhangas com teorías psicoterapéuticas contemporáneas. Basta considerar as
características ontológicas das quatro vertentes e comparar com a prática budista.
As civilizagoes antigás, apesar das distancias geográficas e das condigoes
rudimentares de transporte entre elas, desenvolviam intensas atividades comerciáis
entre si. A China por volta de 1500 anos a.C. já mantinha comercio com o ocidente,
tendo a india como parte da rota de viagem. Há também evidencias de relagoes
entre Egito e Mesopotámia desde 1100 anos a.C, conforme evidencias no campo
da astronomía, comprovadas no uso do gnomon, ponteiro que marca a altura do sol
pela direagáo da sombra, e dos polos para marcar hora, dia, e ano.
Entre os sáculos VII e V a.C. ressurgia de quatrocentos anos de obscurantismo a
civilizagáo grega. A base desta civilizagáo era a polis, a Cidade-Estado, a
comunidade limitada e autónoma. O modelo havia sido inspirado ñas civilizagoes
orientáis e consolidava-se politicamente em sua forma de governo democrático
(Roñan, 1987). Tinha inicio o grande momento da Grecia antiga, caracterizado por
intensa atividade comercial com outros povos e grande florescimento ñas ciencias e
ñas artes. Era urna época em que para se estudar se empreendia muitas viagens
com o objetivo de conhecer as diferentes culturas, os grandes centros de
conhecimento, e, sobretudo, os mestres egipcios, persas, chineses, e indianos.
Neste período, surgiram eminentes sabios gregos que foram denominados de físicos
por Aristóteles e de filósofos pela tradigao. Por algum tempo, estes sabios foram
chamados de primeiros filósofos. Tal entendimento nao é mais aceito por se
reconhecer a contribuigao anterior de grandes pensadores de outras culturas mais
antigás. Assim, quando os manuais de historia da psicología retornam aos gregos
como ponto de partida, certamente nao estao desprezando as civilizagoes
anteriores. Contudo, coube aos gregos a construgao da grande síntese e da
ampliagao deste conhecimento previo, mesmo que privilegiando algumas diregoes
em detrimento de outras. Na síntese grega ampliada e enriquecida assentou-se o
alicerce do conhecimento ocidental contemporáneo, entre eles, a psicología.
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Nota sobre o autor
William B. Gomes é psicólogo, Doutor em Higher Education (Southern Illinois University
Carbondale, EUA), professor no Instituto de Psicología da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Contato: Instituto de Psicología - UFRGS, Rúa Ramiro Barcelos
2600/113, CEP 90035-003, Porto Alegre - RS, Brasil. E-mail: [email protected]
Data de recebimento: 31/07/2004
Data de aceite: 20/10/2004
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Um bibliotecario em sua biblioteca: Cassiodoro e os
leitores ideáis na Idade Media
A librarian in his library: Cassiodorus and
the ideal reader in the Middle Age
Giulia Crippa
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Resumo
Urna proposta de releitura do De Institutione Divinarum Litterarum, "manual" para
organizagao de urna biblioteca, obra de Cassiodoro. Autor longamente avahado na
ótica do desenvolvimento da espiritualidade crista, referencia obrigatória na historia
das bibliotecas, sempre é mostrado como exemplo de antiguidade tardia, caso
¡solado e sem influencias maiores na Idade Media. Na perspectiva de urna historia
da leitura e dos públicos leitores, urna revisao crítica torna-se necessária: a
preocupagao com a fungao dos livros e com níveis diferenciados de leitores e de
leituras, reconhecida em Gregorio Magno e em Isidoro de Sevilha, já estava
presente em Cassiodoro. Por outro lado, a imagem da biblioteca beneditina e de
seus monges copistas é recalcada no modelo da atividade desenvolvida em
Vivarium, muito mais do proposto pela Regra. A atividade ligada aos livros,
atribuida aos monges beneditinos, é tardia em relagao á fundagao da ordem, e
sofre influencia profunda da escola de Cassiodoro.
Palavras-chave: Cassiodoro, bibliotecas, historia da leitura
Abstract
New reading of the De Institutione Divinarum Litterarum, a "didactical writing" for
library organization, by Cassiodorus, considered for a long time, in the perspective
of the spiritual Christian development, mandatory reference in the history of
libraries, and an example of Late Antiquity thinker, an isolated case with no large
influence during the Middle Ages. In the perspective of the history of reading and of
the readers, a critical reading becomes necessary, due to the concern about the
function of books and of different reading levéis, recognized by Gregorius Magnus
and Isidor of Seville, were already presents in Cassiodorus. A certain picture of
Benedictine libraries and of their writing monks reveáis a model generated in
Vivarium, much more than what was contained in the Rule. Activities related to
books attributed to Benedictine monks take place later than the foundation of the
order, and reveáis a profound influence of Cassiodorus' school.
Keywords: Cassiodorus, libraries, history of reading
Introdugao
Nos últimos anos muitas páginas tém sido escritas sobre o ato da leitura. Os
historiadores e os historiadores da literatura, derrubadas as fronteiras tradicionais
de seus campos de estudos, vém dedicando pesquisas voltadas ao entendimento
desse ato, com abordagens diversas: dos enfoques mais literário-estéticos, que revisitam as obras através de seus públicos, estratificados ao longo dos sáculos, aos
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estudos de cunho mais antropológico, que procuram descobrir ritos individuáis e
coletivos da leitura, até as fronteiras de urna demografia da distribuigao dos livros e
dos leitores.
Conhecimento histórico, para ter um sentido hoje, teve e tem que refletir sobre si
próprio, para se dotar de significado, para procurar ferramentas de exegese e
crítica á realidade. E é exatamente nessa busca de urna identidade, que se quer
intelectual, que surge a necessidade de se pensar o próprio conhecimento em sua
vertente histórica, como nos propomos aqui, através da abordagem de urna época
e de urna visao do mundo em evidente estado de mudanga, entre Antiguidade e
Idade Media. Nessa passagem, imperceptível no sentir cotidiano, é possível
destrinchar herangas e novos horizontes, que ainda se confundiam e interagiam
entre elas, transformando-se: o resgate da reflexao intelectual de outros
momentos, de outras épocas, torna-se necessária para refletir sobre o papel e o
desempenho daquela parte de populagao que procura, como caminho, o uso da
textualidade escrita como instrumento estruturante de sua própria existencia, trago
que permite identificar aquelas figuras que, no decorrer do tempo se tornam o
conjunto intelectual reconhecido daquele espago e tempo. Localizamos um
momento e um espago privilegiados: o ocidente de tradigao romana. Trata-se de
urna área em que o registro histórico se constituí, em um primeiro momento, no
reconhecimento do valor da prática da escrita como constitutiva de um conjunto de
documentos portadores de memorias que, feitas as distingoes de método e crítica
da exegese documentaría, estruturam a memoria de poderes existentes e de suas
vertentes. Dentro dos estudos voltados á leitura e aos leitores, voltados ao
entendimento da distribuigao e funcionalidade dos varios registros textuais, tanto
verbais como ¡cónicos, ainda há um ampio espago para a releitura de "teóricos" do
conhecimento e de sua organizagao, ao mesmo tempo personagens atuantes
dentro da efetiva estruturagao da divisao e classificagao do registro de suporte
desse conhecimento. Pretendemos, nesse trabalho, analisar urna fonte escrita:
trata-se do tratado de Flávio Magno Aurelio Cassiodoro (s/d, tomus 70, p.11061150) De Institutione Divinarum Litterarum, escrito no VI século d.C, como
"manual de instrugao"da biblioteca de Vivarium.
Varias sao, hoje, as razoes de se voltar a essa fonte e discuti-la: em primeiro lugar,
a farta bibliografía que trata da historia das bibliotecas, quando se ocupa da Idade
Media, cita ostensivamente este tratado. Todavía, a referencia, obrigatória, limitase a sinalizar a iniciativa de Cassiodoro de preservar e perpetuar a tradigao
clássica, por meio das tradugoes, ao lado da transcrigao dos manuscritos cristaos.
Livros de divulgagao, como o recente best seller de Matthew Batties (2003) revelam
como essa fonte primaria seja, na verdade ou desconhecida ou citagao de citagao.
Batties, por exemplo, mostra um grau de desconhecimento notável desse autor (cf.
ídem, pp. 64-65) e, todavía, seu livro alcanga um público relativamente ampio de
leitores interessados no assunto histórico sobre livros e bibliotecas, contribuindo,
assim, á divulgagao anacrónica da relagao livros/leitores.
Ensaios como o de Pierre Riché, muito mais corretos do ponto de vista da
interpretagao histórica e das referencias, em sua busca de urna panorámica ampia
da Idade Media, todavía, reduzem a importancia que esse autor teve na
estruturagao das carnadas de leitores ao longo de dez sáculos (Riché, 2000;
Basbanes, 1999). Para entender plenamente o peso que esse tratado teve, tanto na
concepgáo de biblioteca, mas, principalmente, na concepgáo da leitura e do leitor, é
necessário conhecermos algo sobre o autor e sobre as reflexoes dos principáis
pensadores de sua época em relagao á textualidade escrita, suas fungoes e seu
público.
A obra de Cassiodoro e suas influencias
Flávio Magno Aurelio Cassiodoro, romano de origem siria, nasceu na Calabria por
volta de 485 e morreu por volta de 580. Em um primeiro momento, foi conselheiro
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do rei Teodorico. Depois da reconquista bizantina da Italia, passou do lado dos
vencedores e se mudou para Constantinopla. Em 555 voltou para suas térras, em
Vivarium, onde edificou um mosteiro dedicado a Santo Martinho, que se tornou
centro de estudos com a finalidade de adquirir um conhecimento mais aprofundado
da Biblia, utilizando, para isso, sem limitagao, as contribuigoes da cultura paga e da
escola clássica. Em Vivarium, Cassiodoro criou o modelo de urna comunidade
monástica, em que os estudos bíblicos apoiavam-se na base de urna harmoniosa
colaboragao de caráter espiritual e manual, e onde urna dignidade especial era dada
aos escribas. Eles enriqueciam com o trabalho de suas maos a preciosa biblioteca,
coragao do mosteiro, que conhecemos melhor de qualquer outra em época anterior
aos carolíngios, pelas Institutiones. Em Vivarium, Cassiodoro e seus colaboradores,
além de resgatar para a latinidade medieval obras gregas, através da tradugao,
criaram novas obras latinas cristas. As Institutiones introduzem urna época em suas
primeiras linhas: Cassiodoro, durante o pontificado de Agapito, imaginou a criagao
de urna "faculdade teológica" romana: urna instituigao que teria a tarefa de
contrastar o predominio das humanae litterae na instrugao superior. Pedagogía
tradicional e estudo da Biblia, reflexao espiritual e preocupagoes filológicas (ou
mesmo simplesmente gramaticais: a última obra de Cassiodoro [s/d, Patrologiae
Latinae, tomus 70, pp. 1239-1270], composta quando o autor tinha mais de
noventa anos, é um pequeño manual, o De Orthographia) sao as diretrizes ao longo
das quais se moldam as atividades de Vivarium, um mosteiro que, de fato, antecipa
a estrutura organizativa e a fungao cultural que as instituigoes monásticas
assumirao de modo mais acentuado ao longo dos sáculos seguintes.
Após sua morte, a maioria dos livros foi, provavelmente, destinada á biblioteca do
Latrao e, em épocas diferentes, foram levados á Franga e á Inglaterra, para serem
copiados. Em particular, durante a época da evangelizagao da Inglaterra, há
referencias, em autores notáveis como Beda, as viagens dos abades ingleses para
Roma, com a finalidade de se abastecer de livros, muitos dos quais eram obras de
gramática (1). O conhecimento dessa Arte era necessário ao entendimento da
Vulgata, em latim, língua que, nessas térras, nao pertencia aos novos monges
convertidos. Os monges enviados por Gregorio Magno, que evangelizam a
Inglaterra, levaram consigo livros, e o anglo-saxao Bento Biscop, que na juventude
fora para Roma, cria as bibliotecas de Wearmouth e de Jarrow, com base nos
manuscritos que levara consigo na volta de sua viagem. Gragas á biblioteca de
Jarrow, Beda o venerável tornou-se um dos maiores letrados da Alta Idade Media.
É no contato com os livros clássicos, profanos e sagrados, que adquiriu um estilo
claro e pode utilizar o latim em suas obras históricas, científicas e escriturísticas.
Beda formou Egberto, arcebispo de York em 734, ano de nascimento de Alcuíno,
que mais tarde dirigiu a mesma escola, deixando urna especie de catálogo de todos
os livros que possuía. Em 781 Alcuíno encontrou Carlos Magno em Parma,
constituindo um sodalício cultural entre os mais importantes da Idade Media, que
possibilitou a reorganizagao e a reunificagao da informagao escrita naquela que é
comumente chamada "Renascenga Carolíngia".
Pela especificidade dos interesses de Cassiodoro, considera-se que muitas das
obras levadas para a Inglaterra da biblioteca do Latrao eram, originariamente,
parte da biblioteca de Vivarium.
Dos dois livros que compoem as De Institutione Divinarum Litterarum - manifestó
cultural e, ao mesmo tempo, diario de trabalho compilado por Cassiodoro em
beneficio dos próprios monges - aquele destinado a urna maior difusao na Idade
Media é o segundo, que contém um compendio essencial das artes liberáis redigido
na base de fontes destinadas a se tornarem cada vez menos acessíveis. Mas, para
o leitor moderno, resulta sem dúvida mais fascinante o primeiro livro da obra, no
qual Cassiodoro oferece urna resenha dos livros conservados em Vivarium, tendo o
cuidado de assinalar aqueles provenientes de seu fundo pessoal e aqueles em
grego, dispostos em urna prateleira específica. As Institutiones, obra de amplidao
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notável, clara e, portante-, fácil de ser analisada e comentada, por muito tempo nao
foi considerada marcante para a Idade Media, pois nao teve peso relevante na
tradigao espiritual monástica. O plano de estudos de Cassiodoro, aparentemente,
permaneceu urna especie de programa especulativo, sobre o qual nunca se refletiu
e do qual nunca se tirou inspiragao, a nao ser em época bem mais tardia, sem
dúvida pela influencia de Alcuíno que, nao por acaso, realizou sua formagao como
abade de York.
Seguindo esse raciocinio, se a influencia espiritual de Cassiodoro é praticamente
nula, em termos de projeto cultural sua figura é bem mais relevante, merecendo,
assim, algumas reflexoes a mais do que o costumeiro.
A palavra escrita no cristianismo
A Igreja, ao longo de sua constituigao, se articula na base da palavra escrita.
Podemos verificar como, a partir do sáculo II há muitas exortagoes á leitura, mas
que desde o sáculo III isso é cada vez mais freqüente: por exemplo, véem-se
imposigoes da leitura das Escrituras ñas casas, para as familias, no almogo e no
jantar, antes de dormir e ao acordar. Isso nao parece funcionar muito: taedium
verbi divini é urna reclamagao conhecida por Orígenes (cf. Harnack, 1912, p. 69.).
As mulheres preferem ler coisas mais leves (quem sabe, o romance popular sobre
um homem que, por um feitigo, se transforma em um asno de ouro?). Joao
Crisóstomo se desespera, quando pergunta "Quais de voces léem um livro cristao
em casa?", e "voces tém dados em casa, mas nenhum livro" (citado por Harnack,
1912, p. 85). (2). Considerando alguns aspectos do mercado de livros no Imperio
(cf. Kleberg, 1992 e Fedeli, 1998), os representantes da Igreja, que conhecem a
realidade do seu tempo, nao teriam a ingenuidade de convidar á leitura sem um
mínimo de acesso possível ao material escrito. Parece que entre o II e o III sáculo
da era Crista um rolo de papiro padrao, vinte folhas, nao custava muito: a palavra
de Deus, entao, era relativamente acessível. Certo, mas o número de alfabetizados
era muito menor em relagao aos dias de hoje. Na verdade, o número de leitores
nao coincide necessariamente com o numero de pessoas alfabetizadas. Nos
primeiros tempos da Cristandade havia um incentivo muito grande á aproximagao
com a palavra escrita. Além disso, Igreja se organizou para divulgar, oralmente,
seus ensinamentos, que, todavía, se fundamentavam em escritos (e nao somente o
Velho e Novo Testamento, mas as vidas dos mártires e dos santos eram urna
produgao amplamente presente). Para facilitar o acesso ao conteúdo textual
escrito, existia a figura dos leitores, mas também a translagao para a pregagao, os
cantos e a iconografía. A partir do dado fundamental de que os cristaos sao o "Povo
do Livro", ou seja, de algo escrito, pode-se observar a deslocagao da leitura stricto
sensu para outras formas de textualidade. Alias, isso se torna indispensável, pois
também entre aqueles que deveriam deter o conhecimento, assiste-se, após os
primeiros sáculos da era crista, a urna cada vez maior incapacidade de elaborar
questoes abstratas.
Cesário de Arles, bispo de 503 a 543, chega a ser comparado ao bispo Cipriano pela
promogao de textos escritos. Ele sabe que já está pregando em um deserto: sua
tarefa é incentivar á leitura das Escrituras em familia, em voz alta, para todos, o
que parece indicar urna certa resistencia: nao se exorta a fazer o que é feito
corriqueiramente. Joao Crisóstomo, em um passo, imagina um reclamante, Ihe
dizendo: "Eu sou um homem de negocios; nao é minha ocupagao ler a Biblia [...]
isso é coisa para quem renunciou ao mundo e se devotou a urna vida soltaría no
topo da montanha". Também há respostas tipo "Nao somos monges" (citado por
Harnack, 1912, p. 118.). A degradagao do paradigma cultural e das estruturas nao
sao novidades, mas qual é a solugao? Gramáticos, pedagogos, enfim, aqueles que
se encontram seriamente preocupados com o declínio das estruturas culturáis do
Imperio tardío, procuram urna saída. E pouco importa se cristaos ou pagaos: a
consciéncia é que nao se pode perder aquele conhecimento, porque em algum
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momento, algo nele funcionou em estabelecer as regras de um sistema. É um
momento de compendios: se os estudantes, clérigos ou leigos pouco importa, nao
léem os clássicos, entao que os clássicos cheguem a eles de outra forma, pois
também o poder da escrita no mundo cristao é composto de retóricas, de herangas
filosóficas, tornando-se um organismo vivo e capaz de transmitir seu conteúdo.
Como diz Cesário de Arles (1939-1940, p. 60), "Visto que os ignorantes e os
simples nao podem elevar-se á altura dos letrados, que os letrados condescendam
a abaixar-se até sua ignorancia".
O conhecimento, entendido como textualidade escrita, se retira, principalmente
para os mosteiros. Com uma Regra, a de Sao Bento, que estabelece obrigagoes em
relagao á leitura. É, aqui, necessária uma comparagao entre o livro como fator de
cultura, em Sao Bento e em Cassiodoro, para entendermos plenamente o peso das
Institutiones, peso que se apresenta como uma poderosa correnteza subterránea,
em relagao á fungao atribuida aos livros e ao papel do leitor.
Nos mosteiros beneditinos a lectio é limitada á Regra, aos livros litúrgicos, á Biblia
- em particular aos Salmos - e poucos outros textos religiosos. Havia monges
analfabetos e incultos, e tudo induz a crer que nos mosteiros beneditinos do século
VI havia poucos livros, únicamente de natureza religiosa e cuja característica
principal era a simplicidade. A cultura gramatical e retórica tradicionais, já
recusadas pelo santo fundador, eram ausentes da vivencia das mais antigás
comunidades beneditinas.
Na comunidade fundada por Cassiodoro, o mosteiro era, principalmente, uma
escola, na qual se ensinavam tanto as ciencias sagradas como as profanas,
embasadas em uma concepgao totalmente livresca e filológica da cultura. No
prefacio das Institutiones encontra-se a seguinte afirmagao:
por isso, se isso agradar, precisamos preservar a
ordem das leituras, [...] meditar, nos códices
emendados, sobre a autoridade divina através do
exercício, [...] para que os defeitos dos livros nao
aumentem por causa das inteligencias grosseiras.
(Institutiones, Praefatio em Hugo de Sao Vitor,
2001, p.86).
No texto das Institutiones, além da rica mensagem cultural percebe-se a presenga
de elementos novos e destoantes com a impostagao geral do discurso. Por
exemplo, quando Cassiodoro é forgado a justificar a ignorancia dos irmaos
analfabetos ou incultos, ou quando deve fornecer uma interpretagao alegórica da
escrita (como no capítulo XXX, de antiquariis et commemoratione ortographiae, p.
1145, em que se le (3): "Aquilo que é de Deus de outra maneira se vé publicar,
coisa que é lícita. Assim dito mais figurativamente, do onipotente compus na
operagao"). Todavía, a proposta de Cassiodoro nao é voltada aos incultos, nao
busca qualquer leitor: volta-se, principalmente, para uma élite de poucos cultos
ainda capazes de entendé-lo. Da escrita ele dá uma interpretagao puramente
instrumental, em fungao da divulgagao da mensagem crista e da cultura
tradicional: em uma palavra, antiga.
A preocupado da Primeira Idade Media com os leitores
A cultura de Cassiodoro é totalmente imersa na antiga tradigao retórica, e nao
admite intrusao de elementos estranhos no plano da didática, das técnicas e dos
instrumentos. Cultura do escrito em que a funcionalidade do instrumento gráfico é
avahada somente em sua relagao com o "legendi iter". Para o autor, a letra
corresponde ao elemento base da escrita e da língua: "Littera est pars mínima vocis
articulatae" ("A letra é a parte menor da articulagáo da voz"), retomando, nesse
sentido, a definigáo clássica do gramático Probo, para o qual "Littera est elementum
vocis articulatae". Em contraste, um autor como Virgilio de Toulouse já mostra uma
visao alegórica da letra, para além do significado verbal implícito em cada signo
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gráfico, oferecendo urna simbólica crista que se revela ausente em autores como
Prisciano e o próprio Cassiodoro:
Litera mihi videtur humanae condicionis esse
similis: sicut enim homo plasto et afflatu et
quodam caelesti igne consista, ita et litera suo
corpore hoc est figura, arte ac dicione, velut
quísdam compaginibus arctubusque suffuncta est
animam habens in sensu, spiridonem in superiore
contemplatione. (Virgili Grammatici, 1886, p.8).
(4)
O contraste entre essas definigoes mostra as pressoes ideológicas opostas sobre a
escola e a retórica no sáculo VI, revelando incertezas e confusoes. A "vitória" da
espiritualidade crista leva, a partir desse pressuposto ao estado de isolamento e á
sensagao de "antiguidade" da concepgao didática e cultural de Cassiodoro.
Pouca importancia, nesse sentido, realmente aparenta ter o autor no
desenvolvimento filosófico da espiritualidade medieval. Porém, aos poucos, a
proposta de biblioteca elaborada por Cassiododro acaba sendo adotada pela própria
ordem beneditina, que substituí gradativamente os preceitos mais simples de
escrita e de leitura de sua Regra, a partir do uso que se vé necessitada a fazer de
materiais originarios de Vivarium.
Na realidade da organizagao cultural crista dos primeiros sáculos, o livro encontra
seu espago justamente na experiencia monástica, através das práticas ascéticas
individuáis ou comunitarias. O trabalho de transcrigao ou a posse de um
manuscrito, para o monge era um sustento e, as vezes, urna mercadoria. Nos
"praecepta" de Pacómio se fala em códices conservados em um espago obtido na
parede, onde se guardam também diversos objetos de uso doméstico. Responsável
para os "códices" resulta ser aquele que, conforme as "Vitae Patrum", era o "pai
da comunidade". Na "Regula Magistri" os livros eram confiados a um dos irmaos,
que guardava os "ferramenta monasterii" e varias "arcae", cada urna preenchida
por objetos de artesanato, domésticos e culturáis, reunidos em um único cómodo.
Entre os ascetas e ñas primeiras comunidades monásticas circulavam livros ou
textos muito escassos. A transcrigao dos livros era vista como trabalho interno á
economía do mosteiro e a distribuigao e a retirada dos livros cabiam a um membro
da comunidade.
Vivarium revela urna diversidade organizacional inconciliável com aquela das
primeiras comunidades: havia, de fato, um scriptorium e um adequado sistema de
conservagao dos livros. Os códices eram preparados em "quaterniones" ou
"seniones", com a anexagao dos fascículos. A tipología de cada manuscrito variava
em fungao do texto e do uso para o qual os próprios códices se destinavam.
Utilizavam-se escritas de módulo diferenciado para códices de qualidade textual e
técnica particular. Em alguns casos era disponível urna serie de instrumentos
auxiliares de leitura e consulta, e era possível encontrar tanto as obras de um autor
único quanto os escritos de varios autores: estes eram reunidos em um volume
único ou em poucos tomos, para serem consultados com facilidade maior. Também
a encadernagao era considerada como muito importante. O cuidado "crítico"
dedicado ao texto era praticado através da colagao com os antigos e executado
com a ajuda da voz de um leitor. A devolugao do texto era regulamentada por
normas exatas. A incompetencia dos scriptores deixava, as vezes, erros no texto
que comprometiam a compreensao e, portanto, era necessária urna Decora
Correctio, que também dizia respeito á estética do livro. As corregoes eram
realizadas de maneira que a escrita do revisor nao se diferenciasse daquela
profissional. A biblioteca de Vivarium era constituida por Armaría numerados, onde
os códices, de conteúdo sacro, profano, latino ou grego, eram guardados.
Cassiodoro, em seu texto, separa seus livros pessoais dos da biblioteca do
mosteiro. Havia Escrituras Sagradas, Atas conciliares, escritos de historia, tratados
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de gramática, manuais escolares e nao faltavam textos de aritmética, geometria,
música e astronomía. Os sistemas e técnicas de produgao do manuscrito
reproduziam aqueles praticados ñas escolas cristas tardo-antigas.
Urna distancia cada vez maior dos fiéis em relagao aos textos escritos é visível ñas
estrategias para a evangelizagao de Gregorio, entre o final do VI século e o
comego do VIL Que a instrugao do clero e do povo tinha mudado desde os tempos
de Agostinho e Ambrosio, é evidente, pelo próprio estilo do autor, consciente de
encontrar leitores ou ouvintes com capacidades de concentragao e abstragao
limitadas. Gregorio é, sem dúvida, um grande divulgador da concepgao alegórica
crista do livro, um pensador em que se encontram os conhecimentos literarios que
o tornam um dos maiores exegetas da Biblia. Em um passo de suas Homilías sobre
Ezequiel, teoriza a diferenga entre a aprendizagem através da escrita e através da
audigao, ou seja: entre a cultura dos analfabetos e dos letrados, grupo, este,
herdeiro sim da concepgao cultural de Cassiodoro, que em sua introdugao á obra
define as finalidades de sua obra em relagao aos leitores "possíveis":
Sabendo como cresce, com grande impulso, o
estudo das letras profanas, de tal modo que
grande parte dos homens eré poder, através dele,
alcangar a prudencia da carne, fui invadido de
urna grandíssima dor ao constatar a ausencia de
mestres públicos para as Sagradas Escrituras
enquanto pululam as celebridades dos autores
profanos. Procurei entao, junto com o beatíssimo
Papa Agapito, que a cidade de Roma recebesse
professores de urna escola crista onde as almas
pudessem receber a salvagao eterna e a língua
dos fiéis se embelezasse pela eloqüéncia
puríssima e casta, assim como outrora houve por
muito tempo na cidade de Alexandria, e também
recentemente na cidade de Nísibe dos sirios, por
parte dos hebreus. As guerras, porém, e as
turbulentas
batalhas
extraordinarias,
que
ocorreram ñas regioes da Italia, fizeram com que
meus desejos nao pudessem se realizar, pois as
coisas da paz nao tém lugar em tempos agitados.
A caridade divina obrigou-me, pois, por este
motivo, a escrever estes livros para voces, para
que fizessem as vezes de um mestre de iniciagao.
Através deles, assim considero, a ordem das
Escritas Divinas e o conhecimento breve das
letras seculares revela-se como obra divina.
Talvez menos claros, pois neles se encontra nao
urna eloqüéncia afetada, mas urna narragao
necessária. Sem dúvida, é conhecida a grande
vantagem de se ter coisas escritas, pois através
dos livros se aprende, lá onde a saúde da alma,
assim como a erudigao secular se ensina que
(deles) se originam. Nesses confio nao a própria
doutrina, mas as sentencias dos antigos, que é
lícito que os descendentes louvem e que
prediquem aquilo que é ilustre. [...] Por isso,
amados irmaos, aproximemo-nos sem vacilar das
Sagradas Escrituras pelas exposigoes dos santos
padres, como por urna escada de visao. Que
meregamos,
aproveitados
pelos
seus
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ensinamentos,
chegar
efetivamente
á
contemplagao do Senhor. Esta talvez seja a
escada de Jaco pela qual os anjos subiam e
desciam, e feliz será aquela alma a quem Deus
conceder formar-se na intimidade deste caminho;
mais feliz ainda será aquele que nele souber
indagar pela inteligencia da vida, aquele que,
sabendo despojar-se dos pensamentos humanos,
souber
revestir-se
do
discurso
divino.
(Institutiones, Praefatio em Hugo de Sao Vitor
2001, p. 102).
No IV sáculo a Igreja divulga sua mensagem através dos instrumentos elaborados
na sociedade paga, em primeiro lugar o livro e a escrita. Cassiodoro representa a
encruzilhada que separa esse modelo cultural do método de divulgagao
propriamente medieval embasado em um nivel duplo de cultura e dotado de
técnicas de comunicagao adequadas, capazes de garantir o contato com todo e
qualquer estrato social, pois ele embasa o projeto erudito cristao que permite a
elaboragao dos níveis diferenciados para a difusao da evangelizagao ortodoxa da
Igreja crista.
É nesse sentido que vale a pena observar a reflexao de autores que atingem seus
conhecimentos nos moldes de Cassiodoro, com atengao particular em Gregorio
Magno e Isidoro de Sevilha.
Gregorio, homem extremamente culto, é herdeiro da mesma tradigao retórica e
escolástica de Cassiodoro, e ambos nao desejam renunciar a ela. Gregorio mostra
isso em suas obras de exegese, freqüentemente muito complexas. Como
Cassiodoro, reserva essa produgao para um número restrito de eruditos leigos e
eclesiásticos. Também, como Cassiodoro, estimula a transmissao de uma cultura
funcional e de um patrimonio destinado aos iletrados, através da pregagao. Nesse
sentido, ambos sao teóricos profundamente convencidos da necessidade de uma
lógica cultural dupla, portanto de uma produgao cultural diferenciada em dois
níveis, mediados por um grupo "técnico" de comunicagao: os pregadores. É a eles
que Gregorio dirige seus Diálogos, obra popular por excelencia, nos quais o
discurso mímico-cénico, em forma de discurso direto, prevalece sobre aquele
analítico. Essa obra procura, portanto, leitores menos eruditos. Essa concepgao de
diversificar os níveis de leitura, através de uma variedade de meios de difusao,
encontra-se em forma esquemática didática na obra de Isidoro de Sevilha (Isidori
Hispalensi Episcopi, 1911), que propoe explícitamente uma divisao da produgao dos
livros em tres categorias: os excerpta - os comentarios - e a produgao gramatical
escolar; as homilias, ou seja, os textos destinados á pregagao; as obras literarias,
científicas e filosóficas, redigidas sem motivagoes práticas ¡mediatas de tipo escolar
ou litúrgico. (5) As últimas duas categorias apresentam a diferenga de recepgao de
público maior, tanto em Isidoro, como em Gregorio, e na base das obras mais
eruditas coloca-se, idealmente, a organizagao do conhecimento e dos livros
fundamentada na estrutura das Institutiones e realizada em Vivarium.
Essa preocupagao encontra-se ñas Variae, textos de Cassiodoro (s/d, Patrologiae
Latinae, vol. 69) em que discute assuntos de natureza diversa. Como exemplo,
leia-se a seguinte citagao, relativa aos estilos a serem utilizados:
Como título desses livros, para designar o caráter
e os assuntos e sintetizar em uma palavra o
conteúdo, escolhi o de Variae, pois foi forgado a
nao usar um único estilo, precisando me
enderegar a pessoas diversas. Diversamente, de
fato, deve-se falar para pessoas preenchidas por
muitas leituras, ou para pessoas de cultura
mediocre, ou para quem é totalmente alheio as
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letras, querendo persuadi-lo, tanto que, as vezes,
é urna forma de pericia literaria evitar aquilo que
os doutos gostam. Nao á toa, de fato, a sabia
Antiguidade separou tres géneros de eloqüéncia:
a humilde, que para seu próprio caráter de
linguagem comum parece se arrastar no chao, o
medio, que nao se eleva á grandiosidade nem
decai no desleixo, mas se mantém dentro dos
próprios limites, entre um e outro extremos,
dotado, porém, duma sua graga, e um terceiro
género, que, pela altura dos conceitos e das
formas se eleva aos cumes mais excelentes do
dissertar; certamente, para que toda variedade
de pessoas pudesse dispor de urna linguagem
própria, e essa, mesmo surgindo de um único
peito, corresse, todavía, por caminhos diversos,
pois nao pode ser chamado de eloqüente aquele
que nao esteja armado dessa tríplice virtude,
pronto para enfrentar vigorosamente as situagoes
que se apresentam. (ídem, Líber I, p. 500).
Na obra Cura Pastoralis de Gregorio, escrita para educar o clero, aconselha aos
pregadores urna adaptagao de seus estilos ao público, mesmo que isso implique
deixar de lado os requintes literarios, elemento que revela, inclusive, o declínio do
nivel cultural medio do clero. Gregorio parte do pressuposto que os clérigos, em
sua época, eram menos preparados daqueles para os quais Agostinho escreveu.
Mesmo que seu trabalho seja voltado para os membros mais instruidos de sua
diocese, ele deixa claro que nao espera que eles entendam idéias abstratas, nem
que consigam traduzi-las em atos praticos.
A existencia de urna enorme massa de analfabetos cristaos abre caminhos de
leitura diferenciados, mas que se fundamentam em um conhecimento minimamente
"técnico" por parte dos monges. Já observamos que se realiza urna operagao de
transferencia do material originario de Vivarium para a Inglaterra exatamente a
partir do pontificado de Gregorio, fornecendo material para os níveis de leitura
diferenciados em áreas mais ampias de difusao do cristianismo. Essa base textual
se traduz em meios que nao sao somente oráis, mas também visuais e figurativos,
meios considerados idóneos para a comunicagao de conceitos ideológicos ao
"vulgus" inculto ou semiculto, privo de meios de leitura. Ñas concepgóes de
Gregorio, tanto teóricas quanto concretas, encontramos, portanto, a evolugao
plenamente medieval da estruturagao do conhecimento de Cassiodoro em sua
proposta de organizagao e selegao dos livros: o sonho de Cassiodoro é antigo, na
medida em que ainda mantém a esperanga de aproximar a populagao as letras,
através da manutengao da língua e da textualidade. Esse legado nao encontra as
condigóes necessárias para se realizar, pela desestruturagao cultural da época e
pela redugao drástica da própria produgao de livros, resultado da redugao
progressiva da circulagao dos materiais, encaminhando para a busca de alternativas
para a educagao e a informagao. A maioria dos "leitores" é alcangada pelas técnicas
fundadas no discurso figurativo e nao mais analítico-discursivo, mas é na
organizagao da escada do conhecimento de Cassiodoro que se fundamenta, cinco
sáculos depois, o projeto de leitura da primeira escolástica, de maneira bastante
evidente em um autor como Hugo de Sao Vitor que, em seu Didascalicon, (6)
pensado como livro pedagógico e manual de leitura para os estudantes da Escola,
além de recorrer a citagoes diretas de Cassiodoro, revela a persistencia de seu
legado na constituigao de urna "biblioteca ideal" que se sustenta ao longo da Idade
Media, pois a encontramos florescer, no ámbito das cidades fervilhantes de novos
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comercios, novas catedrais e muitos estudantes, a disposigao de um número mais
ampio de leitores.
Primeira tentativa de sistematizagao da literatura patrística (á qual o próprio
Cassiodoro deu urna contribuigao notável, com a composigao de um imponente
Comentario aos Salmos), os capítulos iniciáis das Institugóes sao um livro feito por
livros, mas também atravessado por urna galería de personagens dedicados á
escrita e á tradugao delineados com poucos e claros tratos. Há, em primeiro lugar,
o pequeño grupo dos monges mais cultos - Bellator, Epifánio e Muciano -, aos quais
sao confiadas as tradugoes dos textos gregos ou a redagao de comentarios bíblicos
ad hoc. Seguem autores canónicos da literatura religiosa, com o elenco das obras
consideradas essenciais na escalada para o conhecimento divino. Mas é quando nos
deparamos com o retrato de Eusébio, monge cegó capaz de consultar sem
nenhuma dificuldade os livros e os autores guardados "na biblioteca de sua
memoria" que chegamos a entender que nao se deve mais ter medo da erudigao
enfadonha de urna Idade das Trevas pouco atraente, porque é aqui que a historia
nos deixa espago para apreciarmos as fontes primarias do enredo do Nome da
Rosa, mas, principalmente, as raízes intelectuais de Umberto Eco.
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Notas
(1) As referencias a algumas das viagens de Bento Biscop encontram-se na Vidas
dos abades de Wearmouth e Jarrow de Beda, editadas por D.H.Farmer (1965) ñas
pp. 188, 190, 192, 196 e 198.
(2) Joao Crisostomo, Homilía in Johannis, 32, citado in Harnack, A. (1912), p. 85.
(3) "(...) quod factum Domini aliquo modo videntur imitan, qui legem suam (licet
figuraliter sit dictum) omnipotentis digiti operatione conscrípsit".
(4) "A letra me parece ser próxima á condigao humana: de fato, tanto o homem é
feito de lama, respiro e de um certo fogo celeste quanto a letra é a figura deste seu
corpo, na arte e na dicgao, por assim dizer, com certas conjungoes e articulagoes se
realiza, tendo a alma na frase, o espirito na contemplagao superior".
(5) Etymologiarum sive oríginum libri XX. (1911) VI, viii, 1-2.
(6) O Livro IV do Didascalicon pode ser comparado, em sua estrutura, com os
capítulos I a XV das Institutiones.
Nota sobre a autora
Giulia Crippa é professora do Curso de Ciencias da Informagao e da Documentagao,
Departamento de Física e Matemática, Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras,
Universidade de Sao Paulo - Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Contato:
[email protected]
Data de recebimento: 17/08/2004
Data de aceite: 11/10/2004
Memorándum 7, out/2004
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Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
58
Experiência como fator de conhecimento na psicologiafilosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus
(séculos XVI-XVII)
Experience as factor of knowledge in the philosophical-psychology AristotelicThomist of the Society of Jesus (16 t h and 17 th centuries)
Paulo Roberto de Andrada Pacheco
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
Analisando um tipo específico de correspondência epistolar jesuítica - as Litterae Indipetae -,
evidenciou-se um dinamismo de elaboração da experiência, revelador de um modus vivendi
baseado no que comumente vem designado sob o nome de psicologia-filosófica aristotélicotomista. É a este vivido descrito nas cartas e a este modo de viver específico (com suas
devidas implicações fundamentais) que se dedica este artigo, buscando responder a uma
pergunta: em que medida a experiência (tal como era entendida no âmbito histórico-culturalinstitucional próprio da Companhia de Jesus nos séculos XVI e XVII) é fator de conhecimento?
E conhecimento de quê? Mostrou-se uma concepção de experiência que parte do pressuposto
de que o homem é uma unidade (corpo e alma, razão e fé, sensação e intelecção) e de que,
vivendo ordenado (em si mesmo e no mundo que o circunda), realiza-se o seu ser por
analogia ao Ser Divino.
Palavras-chave: experiência, Companhia de Jesus, Litterae Indipetae
Abstract
By the analysis of a specific type of Jesuitical correspondence - the Litterae Indipetae -, a
dynamism of the experience's elaboration was outstanding, revealing a modus vivendi (way of
living) based in Aristotelic-Thomist philosophical-psychology, name under which has been
usually appointed this praxis. This article is dedicated to this lived experience described in the
letters and to this specific modus vivendi (with its due basic implications), searching to answer
this question: how the experience (such as was understood in the proper historical-culturalinstitutional scope of the Society of Jesus in the 16th and 17th centuries) is a factor of
knowledge? And knowledge of what? The conception of experience that was revealed considers
man as unit (body and soul, reason and faith, sense and intellect) and that, living in an orderly
way (in itself and in the world that surrounds it), he fulfils its being, in analogy to the Holy
Being.
Keywords: experience, Society of Jesus, Litterae Indipetae
I) Introdução
É possível que a experiência seja um fator de conhecimento? (*) Se sim, em que
circunstância? A que objeto se debruçaria? Sobre que fundamentos se sustentaria? Qual a
epistemologia de fundo? Evidentemente, todas estas são questões, não obstante sua
importância, por demais genéricas para merecerem um estudo. No entanto, se se fazem
alguns recortes, será possível vislumbrar alguma perspectiva de pesquisa quiçá profícua:
como, portanto, a história ou a filosofia podem favorecer à psicologia um olhar mais adequado
sobre o tema da experiência? Eis que se delineiam alguns limites. Porém, é preciso especificar
ainda mais: período histórico, horizonte cultural e institucional, documentos, ponto de partida.
E, sobretudo, deixar claro que não se trata tanto de uma opção por um saber em detrimento
de outro: não se trata de apostar na história em detrimento da psicologia. Tampouco, trata-se
de optar por determinada meta de compreensão simplesmente por curiosidade, exotismo, ou
porque se pretende um psicologismo interpretativo. O pesquisador parte sempre do presente,
afirma o historiador francês Michel de Certeau (2002) (1). Nesse sentido, o pesquisador é
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
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Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
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sempre um sujeito localizado historicamente no presente, que lança uma pergunta, num
espaço-tempo muito bem delimitado, a um interlocutor com traços bastante particulares.
No caso deste artigo, o termo de compreensão são os homens dos séculos XVI e XVII
(especificamente os europeus e, ainda mais especificamente, os jesuítas, responsáveis pela
construção, transmissão e preservação da cultura brasileira nos níveis antropológico-filosóficos
ou teológicos), a fim de descobrir sua concepção de experiência. O objeto ou as fontes
documentais primeiras, por sua vez, são as assim chamadas Litterae Indipetae: cartas nas
quais jovens jesuítas dos séculos XVI e XVII solicitavam ao Padre Geral da Companhia de
Jesus o envio em missão nas "Índias" (2). Atualmente, estas cartas encontram-se conservadas
no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Pode-se dizer que são fontes que
interessam, na medida em que contêm exemplos das modalidades de elaboração da
experiência pessoal no que respeita ao processo eletivo a que eram educados os jesuítas; além
de dados sobre o indipetente (como idade, escolaridade, atividade que exercia na Ordem etc.);
bem como conteúdos edificantes próprios do gênero de documento que são. O objetivo geral é
evidenciar as categorias filosóficas, teológicas e (se assim se pode dizer) "psicológicas" que
sustentam - nas cartas - um vivido particular, a encarnação de determinadas normas e
teorias. Estas categorias poderiam emergir da análise dos topoi cultural e institucionalmente
determinantes do protocolo formal de redação daquelas cartas. Como método optou-se,
necessariamente, pela história, já que a alteridade em questão está afastada no tempo. No
entanto, a voz se alça de um lugar peculiar - a psicologia -, e assim instaura um "fazer
singular", sem pretensões de "sistematização totalizante". Esta é uma historiografia (portanto,
um fazer que implica dois termos a "história" propriamente dita e a "escrita" de/sobre a
história) que considera a "pluralidade" a que chama atenção Certeau (2002) (3).
Na esteira da discussão acerca do real e do discurso sobre o real (4) a que se dedica Certeau
(2002) e, com ele, seus discípulos (5), inscreve-se - quiçá pretensiosamente! - também este
artigo, que mais que um "psicologismo" que sobrevaloriza a subjetividade, ou um
"historicismo" filo-estruturalista ou - por que não? - um "racionalismo" totalitário, é a
tentativa de dar voz ao "outro" afastado no tempo, ao "morto", àquele "fantasma da
historiografia": "objeto que ela busca, que ela honra e que ela sepulta. Um trabalho de
separação se efetua com respeito a esta inquietante e fascinante proximidade" (p. 14). Assim
sendo, este "discurso sobre o real", esta "escrita da história", este "fazer história" singular é
mais a transcrição, o relato, de um diálogo que foi se constituindo no dinamismo
aparentemente paradoxal da estraneidade à intimidade e vice-versa.
É justamente no âmbito do saber sistematizado em torno do que comumente se chama
"psicologia filosófica" aristotélico-tomista, bem como dos estudos dos diferentes gêneros de
documentos produzidos neste âmbito (manuais de filosofia, tratados de espiritualidade, cartas
etc.) e das pesquisas abrangendo esse saber que se assenta este texto.
Premissa
A julgar simplesmente pelo uso repetido da palavra já desde séculos - como se vê, por
exemplo, no trecho extraído de um hino composto por São Bernardo de Claraval, no século
XIII -, a experientia já passa a ser fator de interesse bastante significativo:
Jesu, dulcis memoria / Dans vera cordis gaudia
Sed super mel et omnia / Eius dulcis presentia. (...)
Nec lingua valet dicere / Nec littera exprimere
Expertus potest credere / Quid sit Jesum diligere.
Se se pensa, então, a discussão que começa a tomar corpo nos séculos XVI e XVII experientia x experimentum -, vê-se configurado um cenário cada vez mais significativo.
Considerar, finalmente, essa mesma categoria no contexto institucional específico da
Companhia de Jesus, ter-se-á algumas razões a mais para apontar a experiência como
premissa de trabalho.
Tal como é empregado entre os jesuítas, o termo experiência deve ser entendido a partir de
um complexo feixe de influências: além da assumida posição filosófica aristotélico-tomista, é
preciso dizer que parece existir também uma influência agostiniana. E, para além do aspecto
puramente filosófico, quando se fala de experiência na Companhia de Jesus, se está tratando
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com uma categoria que também pertence ao universo da regulação tanto espiritual e corporal
quanto jurídica e institucional.
Dizer que expertus potest credere, como o diz São Bernardo para declarar que o conhecimento
do amor de Jesus não se dá através de lingua ou littera; ou dizer que experientia docet, como
repete algumas vezes o Doutor Angélico; ou ainda probatur autem eius veritas tum ipsa
experientia, como aparece na obra do jesuíta português Manuel de Góis, responsável pela
composição da maior parte dos manuais de filosofia do Curso Conimbricense do Colégio das
Artes de Coimbra; enfim, dizer experientia nesse âmbito histórico-cultural e institucionalmente
definido pode ser bem compreendido ao ler o que outro padre jesuíta, Alexandre de Gusmão
(1629-1724) escreveu no prólogo de sua obra Eleyçam entre o bem e o mal eterno:
Se fosse consideravel hum homem tão simples ou tão
ignorante, que duvidasse, se o fogo queymava, y a agua
esfriava, este tal, com nenhuma outra razão se poderia
desenganar melhor, que com a experiência, pondo huma
mão no fogo e outra na agua. Logo se desenganaria, e veria
por experiência, que o fogo queymava e a agua esfriava.
Pois has de saber, que destes homens ha muytos neste
mundo, e sempre os houve. Não fallo dos Atheistas, os
Epicureos, que da outra vida nada curão; fallo dos christãos,
que sabendo, e confessando que ha Ceo para bons e Inferno
para maos, vivem como se ignorassem, que o fogo do
Inferno queymava e a agua do Ceo refugiava. Estes tais, de
ordinario se não desenganam nesta vida, até que na outra
fazem a experiencia, que o Santo Job diz se costuma fazer
no Inferno, que he passar da agua de neve para o calor do
fogo. Então com seu mal eterno experimentão, quanto
queyma aquelle fogo, e quanto esfria aquella agua. O que
importa logo, he fazer nesta vida a experiência que o Espírito
Santo nos manda fazer, pelo Ecclesiastico (Gusmão, 1720).
Experientia é pois modo de conhecer, que não se dá simplesmente per modum cogitandi ou
somente per modum operandi. A experiência, assim dada a entender, deve ser compreendida
como o conhecimento que se adquire após o operari e todas as potências de alma aí
envolvidas e o precedente (e/ou consecutivo) cogitare com suas devidas implicações anímicas.
Sabendo-se que o "agir" do homem (conforme essa antropologia filosófica específica sobre a
qual nos debruçamos: fundamentalmente aristotélico-tomista) - seu operar, seu proceder - só
se dá na medida em que seja "para conseguir a coisa desejada intencionada" (Aquino, 1947,
p. 166), vê-se uma importante diferença para o que se possa descrever como ação
contemporaneamente: não se trata do simples movimento verificado apenas externamente um "comportamento" -, mas da conjugação de uma série longa de fatores, tais como a
intencionalidade, que só nasce se se considera a vontade e o intelecto, os apetites e as
faculdades da alma sensitiva (tanto externas quanto internas). Sabendo-se também que o
"cogitar" humano - seu modo de pensar, de inteligir - envolve toda uma gama de faculdades
anímicas influenciando umas às outras... percebe-se que a visão de homem aqui envolvida,
quando se fala de experientia é, digamos assim, uma visão totalizante: não há solução de
continuidade entre uma e outra operação, trata-se de um contínuo, onde per experientia
implica o homem total - todos os seus cinco gêneros de potências da alma, suas três almas
distintas e seus quatro modos de viver diferentes, e suas devidas implicações (6).
O corpus documental
A fim de sistematizar em grupos as fontes utilizadas e visualizar e organizar os diferentes
dados que cada uma delas poderia fornecer, elas foram divididas, inicialmente, em três
grupos: 1) documentos do universo filosófico e retórico de formação dos Jesuítas; 2) fontes
referentes à ordenação e formação da vida espiritual (7) na Companhia de Jesus e 3)
documentos descritivos da ordenação e formação da vida institucional. A cada um desses
grupos corresponde um aspecto fundante do modus vivendi dos jesuítas, aspectos (ou pólos
de análise) que serão aqui definidos, respectivamente, como scholicorum (por designar o
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Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
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fundo teorético presente na filosofia e na retórica seiscentistas), ratio spiritualis (a regra
espiritual) e ratio intitutorum (a regra institucional).
No primeiro grupo estão o Comentário à Ética a Nicômaco de Aristóteles (8), escrito pelo padre
Manuel de Góis, e publicado em 1593, e algumas importantes obras de referência em retórica
utilizadas pelos jesuítas (principalmente Cícero e Quintiliano). Ao segundo grupo pertencem o
texto dos Exercícios Espirituais (9) (o texto dos Exercícios nas suas três versões - o texto
Autógrafo, de perto dos anos de 1544; o Versio Prima, escrito em latim, de cerca de 1530; e a
Vulgata, de cerca de 1547 - em versão sinóptica, comentado por Claude Viard (10), o Diário
de Moções Interiores (11) (escrito por Inácio entre 1544 e 1545, e publicado apenas em 1934)
e o Relato (12) de Inácio (ditado por Inácio ao Padre Luiz Gonçalves da Câmara entre os anos
de 1553 e 1555). E, finalmente, foram agrupadas ao terceiro conjunto de fontes as
Constituições (13) (a versão francesa, traduzida do texto de 1556, acrescentada do Exame
Geral - um preâmbulo das Constituições - e das Declarações - que nada mais são que
comentários ao texto das Constituições), os chamados Documentos de Fundação (14) (uma
seleção realizada por Pierre-Antoine Fabre e Maurice Giuliani, que consta dos seguintes
documentos: o relatório 1539. Durante três meses. A maneira como se instituiu a Companhia,
o Atestado concernente à decisão de fazer voto de obediência, o relatório Determinações da
Companhia, a transcrição do Voto de Inácio, o relatório Forma e Oblação da Companhia, e o
texto da Summa em versão sinóptica com os dois documentos pontificais de aprovação da
Companhia de Jesus, Regimini Militantis, de 1540 e Exposcit Debitum, de 1550) e algumas das
Cartas de Inácio.
Além desses três grupos de documentos, acrescentam-se alguns textos de espiritualidade (15)
a que tinham acesso os jesuítas do período referente ao generalato do Padre Cláudio Aquaviva
(16). Esses textos exprimem os três aspectos fundamentais que, uma vez encarnados num
modus vivendi, puderam ser novamente formulados num texto escrito e tornado prescrição de
um modelo descritivo lisível. Prescrição de um modus vivendi que toma corpo no período do
referido generalato e que vai se estabelecendo, paulatinamente, ao longo dos anos que se
seguem: tipo de espiritualidade que começa a tomar uma forma propriamente jesuítica.
Portanto, uma prescrição dirigida aos próprios jesuítas. Exemplos desses "modelos descritivos"
são alguns diários espirituais produzidos na época (como o de Francisco de Borja e outros
(17)). As Indipetae, nesse sentido, também podem ser consideradas exemplos disso.
Tem-se portanto o processo de análise assim desenhado: de um lado aqueles pólos
compreensivos, de outro as Indipetae e, entre eles, os textos de espiritualidade. As Indipetae,
como fonte documental pouco estruturada do ponto de vista dos aspectos de análise até aqui
descritos, não podem ser interpretadas de maneira imediata. São, sim, documentos marcados
por aquele aparelho pedagógico de ordenação do homem, mas para identificar os fundamentos
desse aparelho é necessário um revelador, algo que torne presente a coisa, que represente,
que transpareça essa estrutura subterrânea. Certo, há, nas Indipetae, uma elaboração da
experiência, no entanto, não se trata de uma elaboração sistemática, evidente em si mesma.
O grau de elaboração - se se pode dizer assim - presente nos textos de espiritualidade, é de
uma profundidade tal que permite, se colocado entre um e outro dos tipos de documentos, vir
á tona aquela estrutura profunda. Como são documentos que se propõem ao leitor como
prescrição de uma espiritualidade com traços jesuíticos, revelam com maior clareza os
fundamentos do aparelho pedagógico de ordenação do homem que o sustenta. Esses textos
são uma espécie de espelho translúcido: ao mesmo tempo em que revelam a estrutura
subterrânea das Indipetae, desvelam a si mesmos, ao espelharem aqueles três pólos de
análise supracitados.
I I ) A categoria experiência tal como é usada...
Nas Indipetae, lemos, por exemplo, em carta enviada em 02 de maio de 1583, pelo Irmão
Coadjutor Seraphin Bonaventura Coçar:
Pero en semejante caso experimento (...) que ades hora me
da devero Dios Nuestro Señor un desseo fervoroso, que
como luz del cielo deshaze en mi alma aquellas tinieblas y
razones, dexandome muy consolado, y con tal alegria, que
me parece bastante para arrostrar a qualquiera dificultad y
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trabajo que por entonces se me podria ofrecer, y de hecho se
me haze todo suave (18).
Joan Sotalell, de Gandía, no dia 20 de maio de 1603, escreve também: "Tengo experimentado
que muchas vezes, quando alguna tentacion, o otra cosa alguna me aflige, el medio para
vencella, es pensar (...) yr a las Indias (...), y siento despues grande consuelo y facilidad en
haser lo que antes me parecia muy pesado" (19). Ou Gabriel Mayo que, um ano depois
(10/03/1604), escreve dizendo que "juntamente al desseo (...) experimento facilidad
grandissima para todos los trabajos de corazon, que me paracer en comparacion de aquellos,
muy pequeños" (20). Também Juan Bravo diz
experimentar muy a la clara que este desseo que me ha
dado Nuestro Señor hasta agora ha sido como una lima con
la qual gran parte de mys imperfecçiones han desaparecido,
y melhorandose my vida notablemente fruto que es
argumento claro de que es raiz divina la de donde mana
(21).
A categoria experiência, nesses trechos, é colocada ao lado de expressões tais como "Dios
Nuestro Señor", "alma", "consolado", "trabajos", "tentaciones", "desseo". Como é possível uma
experiência de Deus? Como é possível conhecer desejos, tentações ou a si mesmo e sua alma
a partir da experiência? Como o trabalho e a realidade cotidiana e objetiva pode ser lugar de
uma experiência?
É preciso, pois, compreender bem como era entendida esta categoria no âmbito cultural e
institucional específicos com o qual se está lidando aqui: trata-se de descrever a gramática de
uso do termo, o campo semântico no qual está imerso.
... No âmbito do scholicorum
Como a filosofia seiscentista de forma geral, mas especialmente a que se desenvolveu em
torno do ponto de vista escolástico retomado no período, abordava a questão da experiência?
É bem verdade que o período histórico com o qual lidamos é determinado por uma transição
importante - entre uma realidade social que construía seus conhecimentos retoricamente (22)
e uma outra que passou a construir cientificamente o conhecimento (23) - onde justamente o
debate não só filosófico, mas também científico, quanto ao que respeitava à experiência
marcava claramente posições muito distintas (24): experientia X experimentum. Não obstante
esta importante transição e as diversas implicações a ela inerentes, interessa mais
agudamente aquele modelo construído em torno da manutenção de um pensamento
propriamente escolástico.
Exatamente por se estar tratando de um período e de uma realidade institucional e cultural
que construíram muito de seu conhecimento retoricamente, e sobretudo pelo fato mesmo de a
retórica ser disciplina importante no sistema pedagógico jesuítico, se torna necessário assumir,
aqui, algumas questões significativas deste âmbito.
É sabido como Cícero e Quintiliano eram os principais autores estudados quando o assunto era
retórica: nihil mutare sine ratione, dizia Cipriano Soares em seu manual de retórica - De arte
rethorica - defendendo a razoabilidade no uso de suas obras, ainda que pagãs (Zanlonghi,
2003). E, finalmente, sabe-se também que a retórica, nesse contexto neo-escolástico, era o
aprendizado da capacidade argumentativa.
E, tal como foi assumida pelos jesuítas - segundo a filosofia aristotélico-tomista -, a retórica
era estudada de forma que se respeitava uma compreensão da pessoa como unidade,
irredutível a uma só dimensão - forma ou substância. Dessa forma, vê-se um projeto retórico
que não valorizava somente o intelecto em detrimento da paixão ou a racionalidade em
detrimento da emotividade. Trata-se de uma antropologia de fundo que compreende o homem
como razão encarnada, onde não há solução de continuidade entre matéria e substância e que
traz consigo algumas importantes implicações.
Conforme o modelo aristotélico-tomista da topografia da alma (Bergamo, 1994), quatro são os
chamados sentidos internos: fantasia, cogitativa, memória e senso comum. À cada um cabe
um papel: o senso comum produz a primeira unificação das informações sensíveis, a fantasia
inicia o processo de unificação espaço-temporal, a memória armazena e ordena essas
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informações em imagens, e a cogitativa é responsável pela primeira intelecção dos elementos
não sensíveis (cf. Zanlonghi, 2003).
De importante destaque é o papel da cogitativa - ratio particularis - que, além de inteligir os
elementos não sensíveis (res non sensatas, como vícios e virtudes), sintetiza as informações
sensíveis recolhidas pelos sentidos internos e armazenadas pela memória: é portanto o ponto
alto da organização da atividade sensitivo-imaginativa. Apesar de ser de âmbito pré-racional, a
cogitativa já está ordenada ao Fim Último, na medida em que faz um primeiro
reconhecimento, no sensível, do Universal (25).
Uma importante relação a se compreender é a que existe, nesse projeto retórico, entre
memória e prudência: cabe à retórica, como técnica, dar aos elementos recolhidos uma
unidade e uma dignidade final, o que só é possível se se compreende que a memória, na
medida em que armazena e ordena em loci determinados uma série de phantasmata (o
mesmo vale para a representação de elementos invisíveis), e sendo parte da prudência (assim
como a escolástica herdou de Cícero), é também um habitus moral que se aperfeiçoa com
determinados exercícios de retórica; e que também a prudência, na mesma medida em que
tem a memória como uma de suas partes, tem também necessidade de imagens para se
exercitar. Conseqüentemente, 1) a prudência se serve da memória como ponto de
sustentação, 2) a memória só pode operar com imagens sensíveis e 3) o uso das imagines
agentes e, particularmente, das imagens que surpreendem os sentidos acaba sendo vantajoso
para o aperfeiçoa mento da prudência (26).
É bem verdade que a Renascença é marcada por uma mudança radical na concepção de
memória que fora desenvolvida durante a Idade Média (27). Com a Renascença, a memória
sofre um processo de laicização, na mesma medida em que começa a ser lida sob a luz do
neo-platonismo renascentista (28). No entanto, vale lembrar que, graças à Segunda
Escolástica, a Companhia de Jesus manteve a memória como parte da prudência, como virtude
do homem moral e do orador.
Outro aspecto a se considerar no ponto de vista filosófico quanto ao que respeita à categoria
experiência, é o papel da filosofia agostiniana na definição desta categoria.
Para Santo Agostinho (354-430) fé e razão não têm, entre si, fronteiras ou limites de
separação: a razão ajuda o homem a alcançar a fé e a esclarecer seus conteúdos, da mesma
forma que a fé orienta e ilumina a razão; os conteúdos da revelação cristã e as verdades
acessíveis ao pensamento racional caminham juntos. Sua obra é profundamente enraizada na
filosofia de Platão, especialmente nos textos do neo-platônico Plotino, de quem assume, por
exemplo o conceito de alma (29).
Uma de suas mais importantes obras é o De Trinitate, texto onde procura sistematizar a
filosofia e a teologia cristãs. Esta obra, divulgada entre os anos 400 e 416, em 15 livros, é um
tratado não só sobre a Santíssima Trindade, mas sobre o próprio homem, já que ele é uma
analogia - imagem e semelhança - da própria Trindade.
No início do primeiro livro do De Trinitate, Agostinho já lança mão da categoria experiência:
com a ajuda de Nosso Deus e Senhor e conforme nossa
capacidade, empreenderemos a tarefa que nos pedem, e
assim demonstraremos que a Trindade é um só e verdadeiro
Deus, e quão retamente se diz, se crê e se entende que o
Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma só e mesma
substância ou essência. Assim não poderão afirmar, por
assim dizer, que enganamos os adversários com nossas
pretensões. Mas que se convençam pela própria experiência
de que existe aquele sumo Bem, só visível às mentes puras.
E se eles não podem compreender, é porque o limitado olhar
da inteligência humana não é capaz de se fixar nessa luz
sublime, se não for alimentado pela justiça fortalecida pela fé
(Agostinho, 1994, p. 27).
No entanto, é preciso entender bem o que ele quer dizer quando faz uso dessa categoria,
sobretudo se se considera o uso freqüente de expressões do tipo "há de entender, com a ajuda
do Senhor" (Idem, p. 60), "a alma, segundo penso, deve humilhar-se, para que possa brilhar,
iluminada pela graça de Cristo" (p. 82), "fatos em que o Senhor Deus nos anuncia sua ação"
(p. 131), "Deus nos envia sinais adequados ao nosso caráter de peregrinos" (p. 147), "Deus é
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a verdade!" (p. 263) ou ainda "torna-se necessário crer antes de compreender" (p. 270). Em
todas estas expressões, bem como em outras tantas, começa-se a compreender como é
possível, em Agostinho, que no conhecimento esteja implicada a fé, que já é uma adesão
amorosa: credendo diligere, ele diz.
Mas quem ama o que desconhece? Pode-se conhecer algo e
não o amar; pergunto, porém, se é possível amar algo que
se ignora, porque se isso for possível, ninguém é capaz de
amar a Deus antes de o conhecer. E o que é conhecer a
Deus, senão o contemplar e perceber com firmeza, com os
olhos da mente? Ele não é um corpo para que possamos
divisá-lo e percebê-lo com os olhos corporais (p. 267).
Mente conspicere (traduzido por "olhos do espírito" no texto) e firmeque percipere (firme
percepção) estão juntas na mesma expressão. O que causa impressão é notar o uso de uma
categoria que, a rigor, se conjuga às experiências sensíveis de maneira geral - percipere -, no
âmbito de uma certa "atenção do espírito". Sobretudo quando se sabe que percipere, para
Agostinho, significa muitas vezes o conhecimento experimental de Deus. No entanto, o que
esclarece toda possível contradição é entender que esse conhecimento experimental, como se
viu nos excertos elencados acima, é dado por uma sabedoria sobrenatural, pela graça da fé,
enfim. Certa enim fides, utcumque inchoat cognotionem:
De fato, é efeito próprio da fé formar em nós uma imagem
de Deus, no melhor conceito possível. Confere ele uma
existência mental às coisas propostas à nossa adesão
pessoal. (...) Mas, [Agostinho] conhecia muito bem os limites
impostos pela nossa condição terrestre à busca racional de
Deus. E os limites da experiência mística correspondentes
aos limites da exploração teológica (p. 624).
Para Agostinho, o conhecimento das verdades eternas se obtém por meio da iluminação
divina: "a iluminação agostiniana é uma luz especial, incorpórea, que nos torna visíveis e
compreensíveis as 'verdades eternas'. Luz essa mediante a qual Deus irradia na mente
humana essas verdades absolutas e imutáveis" (p. 637).
Em toda essa discussão o que interessa sobremaneira é perceber a relação entre
conhecimento sensível e graça da fé, que, como se verá a seguir, não é estranha à concepção
retomada pela pedagogia inaciana, mesmo quando se está simplesmente no âmbito da
Filosofia Moral, como é o caso do Manual Co ni mb ricense.
Como o termo experiência aparece nesta obra amplamente divulgada nos séculos XVI e XVII
tanto na Europa quanto no Brasil?
Por exemplo na segunda disputa - Acerca do Fim -, Góis (1593) se perguntando se Bem e Fim
são iguais, diz que uma coisa só pode ser igual a outra sob dois aspectos: formalmente (ou
seja, quando a razão formal de ambas as coisas é idêntica), ou por reciprocidade de
fundamento (quando tanto em ato quanto em potências as coisas são iguais). A partir daí,
busca responder à pergunta que abriu a disputa, afirmando que: 1) Bem e Fim não são, do
ponto de vista formal, idênticos; 2) assim como Bem e Fim não são tampouco idênticos quanto
á reciprocidade do fundamento com relação a Deus, quando se tratarem de ações divinas
internas; 3) e, finalmente, Bem e Fim, em ato, com relação às criaturas, também não são
idênticos quanto a reciprocidade de fundamentos, no entanto, o são, de algum modo, se se
consideram segundo a potência. E para provar a segunda parte da asserção, recorrendo à
experiência, afirma:
A segunda parte da mesma asserção consta do facto de
aquilo que pode tornar-se bem e conveniente com respeito a
alguém, embora a princípio, com relação a ele, não seja bem
em acto e conveniente, pode, por sua natureza, ser por ele
apetecido e ter razão de fim com respeito a ele. E ao
contrário, aquilo que pode ser experimentado [quid potest ab
aliquo experi] por alguém e alcançar a natureza de fim em
relação a alguém, pode ser-lhe bem e conveniente ou ao
menos ser apreendido como tal (p. 93).
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
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É interessante notar como, aqui, a categoria experiência é utilizada no âmbito de compreensão
do que seja o Bem e o Fim, objetos teleológicos daquele felicem vitae statum a que se dedica
a obra de Góis (1593). Demonstrando que, além da abordagem intelectual da temática
proposta (30), é possível, com rigor e verdade, compreender diferenças entre as duas
categorias, com o uso da experiência; que, neste caso, não tem que ver com experimentum,
mas com a reação afetiva e efetiva do "homem como consciência encarnada" (Zanlonghi,
2003, p. 63) diante de uma determinada realidade a ser investigada.
Em seguida, na quarta disputatio, quando discorre acerca dos "três princípios dos actos
humanos: vontade, intelecto e apetite sensitivo", argumentando a partir de obras de Santo
Agostinho, São Damasceno, Santo Anselmo e Santo Tomás, Góis (1593) pergunta se a
vontade move as outras potências da alma humana e responde assim:
Prova-se esta verdade quer pela experiência própria
[probatur autem eius veritas tum ipsa experientia], visto que
contemplamos, lemos, movemo-nos de um lugar e fazemos
outras obrigações do género quando queremos; quer pela
razão, porque é do fim que parte o princípio de moção de
qualquer potência ativa, visto que todo o agente opera por
causa do fim e do bem em comum que tem a razão de fim, é
o objeto da vontade. Donde se conclui que a vontade move
todas as outras potências para o exercício dos seus atos (p.
147).
Nas quaestionenes que se seguem a essa, e especialmente naquelas em que a categoria
experiência aparece, é notável como praticamente sempre ela virá unida ao conceito de
"vontade" (com apenas duas exceções). Ainda no artigo apresentado acima - Io artigo da 3a
questão -, o autor ajuda a compreender o porquê dessa conjunção:
A acção com que a vontade move formalmente as outras
potências é transeunte, visto que não permanece na própria
vontade. Com efeito, não se distingue realmente da acção
das outras potências. Além disso, este mesmo concurso da
vontade umas vezes é algo espiritual, visto a vontade
concorrer com a potência imaterial como com o intelecto;
outras vezes, material, se, por exemplo, concorre com
potência inerente a órgão corpóreo, como com a imaginação
(p. 149).
E exatamente por agir no "órgão corpóreo" e no "espiritual" ao mesmo tempo ou
separadamente, que a vontade é uma potência que pode ser tanto conhecida do ponto de vista
estritamente intelectual, como do ponto de vista da experiência.
Assim, por exemplo, quando se pergunta como é possível à vontade mover os sentidos
internos, usando a distinção aristotélica entre poder despótico e político, e argumentando a
partir da compreensão tomista da obra do Estagirita, explica que não obstante para Santo
Tomás apenas a cogitativa (potência da alma sensitiva, elencada na lista dos sentidos
internos) obedecer à razão e à vontade, sendo regida portanto por poder despótico,
a nós, porém, parece-nos que devemos afirmar que não
existe nenhum sentido interno que obedeça sempre à
vontade. Com efeito, o sentido comum apreende
necessariamente o objecto sem mudar a apreensão do
sentido externo e, de um modo geral, todos os sentidos
internos (sem dúvida, quanto a isso parece ser idêntica a
razão de todos). Algumas vezes apreendem o objecto tão
tenazmente que a vontade, de nenhum modo ou dificilmente,
domina a concepção deles, como ensina a experiência
cotidiana [uti docet quotidiana experientia] (p. 151).
E explica que esta "tenacidade de concepções" se deve a muitas causas, entre elas enumera:
1) pela presença real do objeto que se introduz pelos sentidos externos; 2) pela instigação dos
"demônios internos"; 3) pela disposição (affectione) do órgão interno (os melancólicos, por
exemplo, por terem temperamento frio e seco, persistem muito mais tempo na apreensão de
uma mesma coisa, porque o órgão está mais disposto a isso); 4) pelo afeto do apetite
Memorandum 7, out/2004
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sensitivo, "visto se saber que o sentido interno se fixa mais nas cousas para que o apetite é
levado com maior ímpeto" (p. 151).
Em seguida, Góis (1593) se pergunta como a vontade move os apetites sensitivos. E, logo de
início, explica que a vontade move os apetites com poder político. E se baseia em autores tais
como Aristóteles, São Damasceno, São Gregório Nisseno e Santo Tomás. Mas, a argumentação
final cabe à experiência:
... que o apetite seja movido pela vontade demonstra-o a
experiência [quod appetitus a voluntate moveatur, patet
experientia], visto que muitas vezes provocamos ou
reprimimos os movimentos dele, segundo o nosso arbítrio.
(...) Que tal sujeição não é despótica, aparece claramente no
facto de a cada passo o apetite ser levado para o bem
sensível contra o juízo da razão e o afecto da vontade 3 1 .
(...) Esta repugnância nasce do facto de o apetite sensitivo
seguir a apreensão do sentido interino, a qual é de tal modo
eficaz que não pode ser coibida pela razão nem pela vontade.
Ou ainda porque a moção do apetite sensitivo depende da
disposição [dispositione] do órgão (por isso, os que têm
temperamento cálido se irritam fàcilmente), a qual
disposição [dispositio] ou modificação [sive affectio] não se
suborna ao poder (p. 153).
Todavia, o autor lembra que tanto Aristóteles como Santo Tomás afirmam que seja possível ao
apetite ser movido pela vontade, dado que, pela ordem e hierarquia de moventes e movidos,
superior move inferior, especialmente sabendo-se que nada é objeto de apetição se não for
antes objeto de intelecção: "a vontade só move o apetite, imediatamente e por certa
redundância, quando no sentido interno já existe notícia do mesmo objeto, de maneira que,
sem nova intenção ou aplicação da notícia, o apetite seja mais incitado por causa da inclinação
da vontade" (p. 155).
O artigo 4o dessa mesma quaestione se dedica a compreender como a vontade pode mover os
membros externos. E, apela para a experiência, logo no início do artigo: "Como se prova pela
experiência [ut experimento compertum est], a vontade move os membros externos, com que
se exerce o movimento arbitrário, com poder servil e sem qualquer oposição, a não ser que
sejam impedidos por alguma doença" (p. 155). Porém, ele ainda se pergunta se, na verdade,
não seriam os membros externos movidos antes pelos apetites sensitivos. E diz que não,
apelando de novo para a experiência: "o contrário disto ensina a experiência nos santos
mártires [docet experientia in sanctis martyribus], que ofereciam os membros a tormentos
acerbíssimos" (p. 155). Aqui, no entanto, é importante entender que a vontade só pode mover
os membros através de alguma potência média, que, neste caso, serão os apetites: "pede a
harmonia e a ordem dos moventes que o supremo não mova o extremo senão com a
intervenção do médio" (p. 155). Esclarece finalmente que pode acontecer de os membros
serem movidos não pela vontade (mesmo que indeliberada), mas diretamente pelos apetites,
como acontece nos movimentos súbitos, entretanto esses não podem ser considerados
movimentos humanos, mas "do homem".
Na quarta quaestione dessa mesma disputa sobre os princípios dos atos humanos, Góis (1593)
pergunta se o apetite é capaz de mover a vontade. Faz, então, três afirmações, baseando-se
em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino: 1) é inegável que o apetite mova a vontade de
alguma maneira, como se confirma "também pela experiência [confirmatur quoque
experientia]. Ninguém existe, com efeito, que não experimente [qui non experiatur] o
movimento do apetite ou da ira ou da dor ou da alegria, inclinar a vontade para si" (p. 159);
2) porém o apetite não move a vontade com poder despótico, como a harmonia e a ordem dos
moventes o indica; 3) mas a move por intermédio da notícia intelectiva que propõe acerca de
determinado objeto que deve ser aceito ou rejeitado, já que a vontade, seguindo a decisão do
intelecto, pode querer ou repudiar o mesmo que o apetite, ou o apetite pode mover a vontade
por meio da notícia do sentido interno, na medida em que as imagens dos sentidos
determinam o intelecto para a contemplação de uma coisa ou de outra.
Até este ponto da obra, praticamente todas as vezes em que se fez uso da experiência como
método de conhecimento, ela estava de algum modo vinculada à categoria "vontade". Nos dois
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outros momentos da obra em que a experiência aparece será, uma vez vinculada às "paixões"
e outra às "virtudes morais". Vejamos.
Do debate filosófico, de maneira geral, o que se conclui é que experiência é algo que ajuda o
homem a conhecer a verdade. Seja do ponto de vista retórico (na medida em que a retórica
conduz o homem pelas sendas dos sentidos internos, identificando, organizando, adaptando,
armazendo e ordenando e explicitando segundo sua dignidade os elementos colhidos na
realidade), seja do ponto de vista dialético (na medida em que, como dinâmica dialógica que
é, se volta adequadamente ao fundo mesmo da realidade), a experiência é sempre entendida,
grosso modo, como um aspecto do indivíduo que pode conduzi-lo mais adequadamente à
Verdade, ou, nos termos da casuística, ao Bem Último.
... Na ratio spiritualis jesuítica
Como a espiritualidade seiscentista encarava a questão da experiência? E, mais
especificamente, como uma espiritualidade com normas muito peculiares - a dos jesuítas compreendia a relação entre experiência e vida espiritual?
No início deste artigo, a fim de apresentar a premissa deste trabalho, citou-se um trecho de
um hino composto no século XIII, por Bernardo de Claraval, monge beneditino - Jesu, dulcis
memoria / Dans vera cordis gaudia / Sed super mel et omnia / Eius dulcis presentia. /(...) Nec
lingua valet dicere / Nec littera exprimere / Expertus potest credere / Quid sit Jesum diligere.
Esclarece-se, inicialmente, o que pode parecer um anacronismo: como comparar o hino
medieval com a então emergente questão renascentista do valor da experiência? Certeau
(1982) nos chama a atenção para o fato de que a Renascença é marcada pela retomada da
fórmula teológica medieval (32) segundo a qual o relacionamento com Cristo se dá na
materialidade da Eucaristia e da Igreja. Ele afirma que, fora dessa objetividade material,
corria-se o risco de uma "mystiquerie". Em poucas palavras: a fé era mais do que a língua
podia dizer ou as letras expressarem: somente expertus potest credere. Percebe-se aí que a
experiência é fundamental nesse relacionamento com o corpo real (Eucaristia) e místico
(Igreja) de Jesus Cristo na terra (33). Tem-se, portanto, um primeiro aspecto relevante: a
relação experiência/espiritualidade, que aparece num debate teológico renascentista e que
busca recuperar a carnalidade objetiva da experiência mística.
Entra em jogo, nessa concepção de experiência, o binômio visível/invisível (e, por que não?,
do audível/inaudível, palpável/impalpável etc.), que Certeau (1982) explica como sendo o
lugar do nascimento de uma nova concepção de "mística" (34).
Visível e invisível, fato em si e sentido do fato, experiência e fé, corpo e alma, finito e infinito,
acidental e fundamental: a mística renascentista com uma definição escolástica, especialmente
a dos jesuítas, retoma (ou mantém) a experiência do sagrado como algo do nível dos sentidos,
mais que de uma formulação teórica, teológica ou filosófica. Além de acrescentar algo novo: a
prática, que tem como representante mais significativo, no caso da então nascente Companhia
de Jesus, os Exercícios Espirituais. É nítido também o fato de que não há solução de
continuidade (35) entre um e outro aspectos do relacionamento com o Mistério.
Os Exercícios Espirituais, além disso, demonstram como se dá o conhecimento da realidade:
através do transcender a dimensão das operações discursivas e do recorrer à arte da memória
e da imaginação (36). O exercitante é convidado a, fazendo uso da memória, construir uma
ponte entre o abstrato de uma afirmação e sua imagem concreta na alma. Essa imagem existe
na medida em que quem faz os Exercícios, aprende a usar a imaginação. Aqui, se pode
apresentar a preocupação de Inácio com a "aplicação dos sentidos" (37). Para ele, a
consistência última da realidade é apreendida pelos sentidos - ver, tocar, ouvir, degustar,
sentir o cheiro (38) -, e não por um exercício de abstração metafísica - lingua ou littera.
Outros muitos exemplos dessa "experiência sensível", nos Exercícios Espirituais, podem ser
dados: desde a insistência com o pedido de sentir com Cristo sua alegria ou padecimento (39),
até os muitos exemplos de uso da aplicação dos sentidos, nos quais Inácio sempre insiste na
necessidade de, em seguida, "refletir em si mesmo e tirar proveito" (EE. 124. Loyola, 1991, p.
116), passando inclusive pelos exames e verificações de emenda propostas, por exemplo, logo
no início do livro (40).
Todavia, é somente no EE. 176 que aparecerá, pela primeira vez, o termo experiência. Tratase da parte dos Exercícios Espirituais denominada "Três Tempos para Fazer Boa Eleição", e
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Inácio, demonstrando como os conhecimentos filosóficos acerca da alma são aqui aplicados
como experiência, afirma: "Deus nosso Senhor move e atrai a vontade de tal forma que, sem
duvidar nem poder duvidar, a alma fiel segue o que lhe é indicado" (EE. 175. Idem, p. 142). E,
em seguida, explicando quando se há de fazer uma boa eleição, enumera como segundo
momento propício aquele no qual "se recebe suficiente luz e conhecimento pela experiência
das consolações e desolações, e pela experiência do discernimento dos espíritos" (EE. 176.
Idem, p. 142). Mais à frente, nas "Regras para Sentir e Reconhecer de Alguma Maneira as
Diversas Moções que se Produzem na Alma, as Boas para as Receber as Más para as Rejeitar",
Inácio explicará o que é consolação e desolação, e dirá:
Existem três causas principais pelas quais nós nos
encontramos desolados. A primeira é porque somos mornos,
preguiçosos ou negligentes nos nossos exercícios espirituais;
de forma que é por causa de nossas faltas que a consolação
se afasta de nós. A segunda, para nos fazer experimentar
quanto valemos e até onde avançamos no serviço e louvor
do Senhor sem o salário das consolações e grandes graças. A
terceira, para nos dar verdadeiro saber e conhecimento - de
modo a sentir interiormente - do que não depende de nós
fazer nascer ou conservar uma grande devoção, um amor
intenso, lágrimas, nem nenhuma outra consolação espiritual,
mas que tudo é bom e graça de Deus nosso Senhor (EE. 322.
Idem, p. 226).
Um pouco mais à frente, nas "Regras Visando Mesmo Efeito com um Maior Discernimento dos
Espíritos", Inácio explica:
Quando o inimigo da natureza humana tiver sido sentido e
reconhecido tanto por sua cauda de serpente quanto pelo fim
maldoso em direção ao qual impulsiona, é proveitoso, para
aquele que foi tentado por ele, olhar em seguida o
desenvolvimento dos pensamentos bons que ele lhe
apresentou e seu começo, e como, pouco a pouco, ele tentou
fazer descer da suavidade e alegria espiritual onde estava,
até chegar a sua intenção depravada. Assim, por esta
experiência conhecida, e anotada, se guardará no futuro de
suas enganações habituais (EE. 334. Idem, p. 234).
No trecho do EE. 176 citado acima, Inácio fala de "experiência de desolação" e "experiência de
discernimento dos espíritos", e com a ajuda dos dois trechos seguintes se pode melhor
compreender o que é a categoria experiência dentro desta perspectiva, a partir destas duas
experiências particulares: não se trata apenas de uma sensação ou sentimento abstrato (de
consolação ou desolação), mas também de uma certa sensibilidade específica (um
reconhecimento que se dá pela visão), que juntas dão ao homem uma ciência que lhe permitir
evitar as "enganações habituais" do "inimigo da natureza humana".
Outro aspecto importante a se considerar quanto ao texto dos Exercícios Espirituais, é o uso
que Inácio faz - já mencionado acima - de categorias próprias da psicologia filosófica
aristotélico-tomista. Um exemplo bastante significativo é o do EE. 50, quando o autor lança
mão das potências da alma sensitiva e da alma racional, especialmente da memória, da
inteligência e da vontade, para ajudar o exercitante nos passos a que se propõe. Ele diz:
O primeiro ponto será aplicar a memória sobre o primeiro
pecado que foi aquele dos anjos; em seguida, exercer a
inteligência sobre este mesmo pecado percorrendo o tema,
depois a vontade; querendo lembrar e compreender tudo
isso para experimentar bastante vergonha e confusão. Fazer
a comparação entre o pecado dos anjos e os meus tão
grandes pecados (EE. 50. p. 80).
Aqui, as três faculdades da alma correspondem, para Inácio, aos três níveis constitutivos do
homem: animal, racional e imagem de Deus. Neste ponto fica claro o papel que o fundador
atribui a cada uma das potências:
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A memória é a faculdade que o exercitante opera quando
deixa retornar nele mesmo aquilo que lhe foi apresentado
como matéria para sua meditação ou sua contemplação.
Tendo-o encontrado, ele lhe dá toda a atenção. A inteligência
lhe permite percorrer o tema, fazendo sobretudo
comparações entre aquilo que vivem os personagens
contemplados ou considerados e aquilo que ele mesmo vive,
entre aquilo que eles fazem e aquilo que ele faz ou quer
fazer. A vontade é uma faculdade afetiva. Ele se deixa tocar
pelo tema rememorado e aprofundado. É, portanto, a
capacidade de ser afetado e, por outro lado, de sentir e
responder com amor. Nesse sentido, pode-se traduzir, hoje,
este termo por 'coração'. Mas a vontade aponta também
para a capacidade de decidir, de querer: aqui, de tomar a
decisão de aplicar a memória ou de fazer trabalhar a
inteligência (Loyola, 1991, nota do tradutor, pp. 81-83).
O outro documento da ratio spiritualis jesuítica analisado é o texto do Diário de Moções
Interiores, de Inácio. Sabe-se que o Diário, é o resultado do trabalho pessoal de "eleição sobre
a pobreza", que o fundador fez enquanto preparava o texto das Constituições. Para esta
eleição, Inácio se utilizou, entre outras coisas, de uma pequena folha de papel dobrada onde
anotou uma série de argumentos contra e a favor quanto ao que concerne ao voto de pobreza
(Loyola, 1991) (41). No verso da última página, onde se lê Os inconvenientes em não ter
nenhuma renda são as vantagens em ter parcial ou totalmente", encontra-se no terceiro
argumento a seguinte observação: "com rendas, eles não experimentarão tantos movimentos
interiores e problemas que os levem a uma preocupação desordenada procurando dinheiro (p.
322).
No entanto, o aspecto mais revelador deste maço de folhas autógrafas a que se deu o nome de
Diário, é justamente o fato de que se tratam de notas advindas de uma elaboração da
experiência pessoal. Assim, a própria linguagem utilizada no texto se torna objeto de atenção.
Não é, pois, de se estranhar que os trechos que se seguem às vezes sejam impessoais, ou se
caracterizem por uma simples descrição de um estado emocional, ou de uma consideração
feita, ou de um sentimento provado etc. Por exemplo, no dia 4 de fevereiro de 1544, uma
segunda-feira, Inácio escrevia: "Mesma coisa [referindo-se ao que havia escrito no dia
anterior: "abundância de devoção na missa, lágrimas, grande confiança em Nossa Senhora"],
e também outros sentimentos" (p. 327), sendo que quando ele faz uso do termo
"sentimentos", não só aqui mas ao longo de todo o Diário, não está prescindindo de uma
compreensão intelectual: sentir, em espanhol, é indissociável do intelecto, do afeto e da
sensibilidade envolvidos. E isso se pode comprovar, por exemplo, quando escreve, alguns dias
mais tarde que "depois do despertar, eu não parava de render graças a Deus nosso Senhor
muito intensamente, com inteligência e lágrimas, por um tão grande bem e uma tão grande
luz recebida, que não podem ser expressas" (pp. 331-332). Ou mesmo quando faz uso de
jogos de palavras tais como "inteligência espiritual", "sentindo o Filho muito propício para
interceder", "vendo os santos de uma tal maneira que não se pode escrever" (p. 333), ou "tão
grandes inteligências que não se pode escrever" (p. 334), ou ainda "esse sentimento ou essa
visão", "sentindo muitas inteligências importantes, saborosas e muito espirituais" (p. 335) e,
para não estender por demais esta lista, mesmo quando relata que "um conhecimento me veio
de que um tal pensamento era também de Deus" (p. 337), ou que provou "certo sentimento
ou visão pelo entendimento" (p. 342) etc.
Encontram-se também referências explícitas à experiência, como é o caso desta nota feita no
dia 21 de fevereiro de 1544, na qual Inácio relata que durante a missa daquela segunda-feira
conhecia, sentia ou via, Dominus scit, que falar ao Pai, ver
que ele era uma Pessoa da Santíssima trindade, me levava a
amá-lo inteiramente, tanto quanto as outras Pessoas
estavam nele essencialmente. Experimentava a mesma coisa
durante a oração ao Filho, a mesma coisa durante a oração
ao Espírito Santo, gozando indiferentemente de uma ou
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outra Pessoa durante o tempo em que sentia as consolações,
as relacionando a todas as três (pp. 340-341).
Além de todos estes exemplos, é preciso ao menos apontar as inúmeras referências (anotadas
nas margens das folhas, por mão de Inácio) às visões, lágrimas e loquela (= palavra, em
latim; mas, que no caso das anotações de Inácio, se refere à escuta de uma voz interior ou
exterior que lhe significa um momento, lhe ajudando num discernimento qualquer).
Com respeito ao Relato de Inácio, Marin (1999), que denomina o texto de "autobiofonia",
explica que se trata de um documento no qual Inácio é dado ao leitor como um "imitável, um
modelo". Este texto permite "reviver a vida do fundador, repetir a vida do fundador" (p. 146),
que é mais do que uma série de eventos, mas o tecido dos eventos ("tudo o que se passou em
sua alma até o dia de hoje") dirigidos pelo Senhor "desde a sua conversão" (p. 147):
Mas se o próprio de um modelo é de ser imitável, portanto
reiterável e repetível, como repetir uma vida dirigida e
formada pelo Senhor? Como repetir as intervenções divinas
que (...) constituem a vida do fundador, o legendum singular
desta vida? Como fazer da leitura do relato desta vida, um
modo de repetição desta vida mesmo depois de seu
verdadeiro nascimento até o momento onde ela termina?
(...) Trata-se, em uma palavra, de escrever 'o relato' no
corpo segundo uma modalidade encarnada de sua leitura, ou
(...) descobrir a maneira na qual cada companheiro leitor se
apropria
singularmente, segundo sua vocação, da
experiência do fundador (p. 147).
Ler o Relato, portanto, tem, segundo Marin (1999), dignidade sacramental, na medida que
pode ser descrito como uma espécie de comunhão eucarística, na medida em que o texto se
torna corpo em quem lê: é a experiência pessoal de Inácio que é dada como paradigma de
identificação e incorporação (dois termos que não nos são mais estranhos), ou, nos termos
próprios da gramática de uso jesuítica, simplesmente imitação. O paradoxo apontado pela
pergunta de Marin (1999) - o de ser a vida de Inácio dada à imitação apesar de ter sido uma
vida formada e dirigida por Deus - se desfaz na interseção entre Graça Divina e Vontade
Humana, que nessa visão de homem é tão presente: a experiência da Graça Divina na vida de
Inácio (42), faz dele um modelo, um imitável, um texto vivo para seus companheiros, que, no
entanto, têm a liberdade de colocar em operação sua Vontade pessoal para encarnar em suas
vidas (ou não) essa "experiência-modelo".
Desse debate, finalmente, pode-se concluir que experiência é o contraponto de uma mística do
abstrato, onde a experiência de relação com Deus se dá apenas na parte nobre da alma
humana - alma racional. Mais uma vez, vemos a afirmação da imprenscindibilidade dos
sentidos, da experiência sensível. A espiritualidade jesuítica, aqui manifesta especialmente
pelo seu texto normativo, reafirma que o conhecimento dedutivo não basta para se chegar a
um pleno conhecimento da realidade, ou seja, não basta para chegar a tocar o Sentido, o
Bem, a Verdade, o Fim presente, como consistência última, na realidade: é preciso a
experiência imediata, é preciso o conhecimento direto proporcionado pelos sentidos e pela
consciência de si mesmo, é preciso a experiência das coisas percebidas, que são conhecidas na
medida em que as vivemos, as tocamos, ouvimos, experimentamos... "sentir y gustar de las
cosas internamente" (García-Mateo, 1998, pp. 478-479).
... Na ratio intitutorum jesuítica
Interessa nesse tópico, responder às seguintes questões: qual o conceito de experiência que
aparece na norma de um corpo institucional religioso - o da Companhia de Jesus? Que papel
desempenha a experiência no processo de identificação/definição do indivíduo com esse corpo
institucional?
Inicialmente, deve-se apontar o uso comum, nos primeiros documentos da Companhia de
Jesus, da expressão "nossa maneira habitual", para designar como os primeiros jesuítas agiam
em questões muito particulares. Por exemplo, no documento 1539. Durante três meses, A
maneira como se instituiu a Companhia, o redator anota que a maneira habitual usada para
discutir sobre as questões da fundação era: "refletir e meditar sobre elas durante o dia e as
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aprofundar em nossas orações" (Loyola, 1991, p. 278). Bem como no Atestado concernente à
decisão de fazer voto de obediência: "depois de ter rezado a Deus e pesado maduramente a
coisa (...), decidi de pleno grado" (p. 282) etc.
A pergunta que se pode fazer a partir daí é: como um indivíduo pode chegar a assumir para si,
a se colocar em primeira pessoa nessa "nossa maneira habitual"? Ou: que dinâmica permite a
identificação de um indivíduo à essa modus operandi particular?
Lê-se nas Determinações da Companhia algo que responde a esta pergunta: "Aqueles que
estão para ser admitidos devem, antes de serem experimentados durante o ano de provação,
passar três meses em exercícios espirituais, em peregrinação e a serviço dos pobres nos
hospitais, ou em outra coisa" (p. 285). Aprende-se a ser jesuíta "experimentando" o que seja
ser um jesuíta. E o que é ser um jesuíta? Passar por exercícios espirituais, fazer peregrinação,
trabalhar a serviço de pobres: o que é isso? É a vida de Inácio: uma experiência-modelo que,
aqui, deixa de ser a descrição de uma experiência espiritual, para se tornar a prescrição
explícita de um modelo de imitação. É por isso que na Summa os primeiros escrevem: "que
ninguém seja recebido nesta Companhia antes que seja, inicialmente, longa e cuidadosamente
experimentado, e quando se tiver constatado que é prudente no Cristo e se distingue por sua
doutrina ou pela santidade de sua vida" (p. 306).
Quanto ao texto das Constitui ções, importa, primeiro, que fique claro que mais que um texto
normativo strictu sensu, elas são, para os jesuítas, a descrição de um caráter particular, bem
definido e com traços muito específicos. É bem verdade que é pelo motivo mesmo de ser
descritivo, que o texto tem uma virtude prescritiva, na medida em que ao descrever como "é",
tangencia o como "deve ser" o jesuíta. É esta característica do documento que permite
compreender porque é indicado que sejam lidas e meditadas com freqüência, até o ponto de
serem sabidas de cor (43).
Neste documento aparecem, com freqüência termos diferentes para designar a categoria
analisada neste capítulo: experiência (que, no texto francês, aparece como expérience, quando
designa substantivo ou éprouver, para designar um verbo), "provação" (que aparece no texto
francês como probation) ou "prova" (épreuve, em francês).
Assim, encontramos, por exemplo no "Exame" (uma espécie de prólogo ao texto jurídico) das
Constituições, após explicar a pertinência dos "seis meses de experiências e provas", a
seguinte observação:
Isso para que, de uma e outra partes, aja-se com a maior
clareza e conhecimento em nosso Senhor e que, mais sua
constância tenha sido experimentada, mais sejam estáveis e
firmes no serviço divino e na sua primeira vocação, para a
glória e honra de sua divina Majestade (p. 400).
Em seguida, nos parágrafos 64 a 83 do mesmo "Exame" descrevem-se minuciosamente cada
uma das experiências que se farão ao longo do período anterior à entrada em casa ou colégio
da Companhia de Jesus (trata-se do período denominado "primeiro ano de provação"):
Além disso, antes de entrar na casa ou colégio, ou depois de
ter entrado, seis experiências principais são exigidas, sem
contar muitas outras sobre as quais se falará mais adiante.
Essas experiências poderão ser avançadas, retardadas ou
adaptadas e, em certos casos, modificadas por outras com a
autorização do superior, segundo a pessoa, os tempos, os
lugares e as circunstâncias (p. 409).
São estas experiências: fazer exercícios espirituais durante mais ou menos um mês (§ 65),
servir em hospitais ou em um hospital durante um outro mês (§ 66), fazer peregrinação
durante um outro mês (§ 67), se aplicar em serviços baixos e humildes (§ 68), expor
publicamente a doutrina cristã para crianças ou pessoas ignorantes (§ 69) e pregar e confessar
em igrejas indicadas (§ 70). Nos parágrafos que se seguem, procura-se explicar como cada
uma delas ajuda a atestar o candidato e ao final diz: "se esses atestados quanto às
experiências faltam, deve-se procurar a razão com muito cuidado, com o objetivo de saber a
verdade sobre tudo, afim de que se possa melhor prover a tudo, onde convém" (p. 411). Isso
porque, nas experiências de provação, o candidato se expõe, se revela, e é, portanto,
essencial o papel das testemunhas: o candidato está sempre sob os olhos de uma testemunha.
Memorandum 7, out/2004
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Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
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Ao final, cabe ao candidato produzir, diante de seus superiores, o atestado de suas
experiências, por isso o comentário do § 79, acima transcrito.
Já no texto das Constituições propriamente dito, na Primeira Parte - que trata de "A admissão
á provação" - quando fala daqueles que serão recebidos, se diz:
Para falar de uma maneira geral daqueles que se deverá
receber, pode-se dizer que mais alguém tenha recebido de
Deus nosso Senhor dons naturais e infundidos para ajudar a
Companhia naquilo que ela busca, seu divino serviço, e mais
tenha feito a experiência desses dons, mais será apto a ser
recebido na Companhia (p. 433).
Serão recebidos na Companhia aqueles que são experimentados naqueles dons que ajudam a
Companhia, ou sejam, que distinguem a sua ação da ação das demais Ordens. De novo
experiência pode ser colocada lado a lado com o termo "identificação" ou "imitação". Como se
confirma no Capítulo I I I , desta Primeira Parte - denominado "A dispensa daqueles que foram
admitidos e não deram satisfação" - onde se enumeram as justificativas para a dispensa de
um membro da Companhia: entre elas se diz que será dispensado quem for "contrário ao bem
da Companhia", ou seja, "se a experiência mostrar que este é de fato inútil e mais próprio a
embaraçar a Companhia que a ajudar" (p. 448).
Na Quarta Parte - "A formação nas letras e nos outros meios de ajudar o próximo daqueles
que são guardados no seio da Companhia" - das Constituições, mais especificamente no
Capítulo I I I , que trata dos "Estudantes que se deve colocar nos Colégios", por sua vez, lê-se o
seguinte:
No entanto, só serão admitidos como estudantes aprovados
aqueles que foram experimentados nas casas ou nos colégios
e que, depois de dois anos de experiências e de provação,
uma vez feitos os votos e a promessa de entrar na
Companhia, são recebidos para nela viver e nela morrer para
a glória de Deus nosso Senhor (p. 477).
Ou então, o que se lê na Quinta Parte - "O que concerne à admissão ou incorporação na
Companhia" - quando logo no Capítulo I ("A admissão. Quem a faz e em que momento"), se
diz:
Aqueles que foram suficientemente colocados à prova na
Companhia e durante bastante tempo para saber, de parte a
parte, se convém que eles permaneçam para um maior
serviço e uma maior glória de Deus nosso Senhor, devem ser
admitidos não mais em provação como antes, mas de uma
maneira mais intrínseca, enquanto membros de um mesmo
corpo, o da Companhia. É o caso principalmente daqueles
que são admitidos para serem professos ou coadjutores
formados (p. 515).
Pela leitura de todos estes excertos fica clara a identidade experiência/ provação. O jesuíta é
chamado a viver um período de provas, ao final do qual o indivíduo é definitivamente
reconhecido ou não como pertencente ao um corpo institucional. A experiência aqui pode ser
definida, pois, como uma série de atividades que garante 1) a identificação do indivíduo com a
instituição e 2) a reprodução/manutenção dessa mesma instituição (Fabre, 2000). Importante
destacar, portanto, o papel da experiência assim compreendida com o processo de
individualização x individualismo (usando termos hodiernos): quem obedece a essa regra
integra um corpo institucional e se torna um homem que vive de uma forma que, se descrita,
permite-nos conhecer o jesuíta.
... Nos textos de espiritualidade
On peut par deux voies savoir les choses de la vie
[mystique] future, c'est à savoir par la foi et par
l'expérience. La foi est la voie commune que Dieu a
établie pour cela à cause que les choses de Dieu et de
la vie future ne nous sont connues que par ouï-dire et
parla prédication des apôtres. L'expérience est pour
Memorandum 7, out/2004
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peu de personnes. Les apôtres de Jésus-Christ étaient
de ce nombre. Aussi disaient-il: Quod vidimus, quod
audivimus, quod manus nostrae contrectaverunt de
verbo vitae annuntiamus vobis; et ailleurs: Quod
scimus loquimur, quod vidimus testamur.
Jean-Joseph Surin (1660)
Science Expérimentale des choses de l'autre vie
Assim inicia sua obra - Science expérimentale des choses de l'autre vie -, o padre jesuíta
francês Jean-Joseph Surin (1600-1665), que ganhou celebridade dentro e fora da Companhia
de Jesus graças a suas virtudes e talentos como diretor espiritual. Quarenta e cinco anos
depois da morte do P.e Cláudio Aquaviva, vê-se (com esta e outras tantas obras espirituais)
muito mais estabelecida sobre bases seguras uma espiritualidade com feições propriamente
jesuíticas.
É bem verdade que, no trecho citado, Surin deixa claro que a experiência é uma forma de
conhecimento das coisas futuras (ou místicas) para poucos, como os apóstolos que - note-se viram, ouviram e tocaram o "verbo vitae". Mas isso não significa que somente eles puderam
fazer uma experiência sensível do Verbo Encarnado ou das coisas futuras ou místicas (para
usar os termos que ele usa). Neste ponto, Surin é bastante claro: "os apóstolos de Jesus Cristo
eram deste número", porém, mais à frente no texto inicial da obra, ele se diz parte deste
número também e afirma ter a "mesma intenção" dos apóstolos: "que essas coisas que
conhecemos (...), e na qual a providência de Deus nos engajou, sejam empregadas neste
discurso para tornar firme a fé na qual a profissão da religião católica nos engajou, e para nos
tornar melhores cristãos" (Surin, 1990, p. 128).
Eis o ponto capital: o texto-testemunho de Surin - que relata os sofrimentos porque passou e
as graças que recebeu no período que se seguiu à sua intervenção junto a um caso de
possessão demoníaca de algumas irmãs Ursulinas - ganha estatuto de veracidade porque é
uma experiência feita que se comunica com a finalidade de tornar firme a fé de quem leia:
annuntiamus vobis, loquimur e testamur que os Demônios existem (44), mas que há um
"Deus, tal como a Igreja acredita e anuncia" (Idem, p. 343) e um "Deus que é vingador dos
crimes" (p. 347), e também que "uma vontade boa é toda poderosa, e que contra ela o
Inferno é como que um quase-nada que, sem ela, se torna um gigante sem tamanho" (p.
377), mas sobretudo que "a providência de Deus foi singular nesta possessão, dando todas as
ocasiões e provas suficientes de que eram demônios, e que Deus e a Igreja dominam sobre
eles" (p. 414).
Como, nos textos de espiritualidade jesuítica, a questão da experiência se apresenta? Como,
no tempo, foi se estabelecendo esta espiritualidade e, sobretudo, como ela se estabelece, no
âmbito discutido até aqui, a partir do assumir-se, numa síntese encarnada, todo um horizonte
formativo com as características bastante peculiares descritas?
Por exemplo, na carta enviada no dia 29 de setembro de 1583 pelo P.e Aquaviva à toda a
Companhia de Jesus - Lettera del Nostro Padre Generale (...) Sopra la Rinovatione dello spirito
etc. - se pode ler, depois que ele exorta os padres e irmãos a "metter la mano all'opera", sua
justificativa para este trabalho:
sappiamo con l'esperienza, che le arti non s'imparano, se non
facendo; & pure occupandosi intorno à materia di fuori, non
trovano resistenza: perche ne all'architetto le pietre, ne à gli
altri artefici impediscono le materie i suoi disegni; ma la
nostra filosofia che consiste nel moderar gli affetti interni,
truova molto maggior ripugnanza, & mutatione; poi che se
bene nel quadrare, la pietra fa alcuna difficoltà, quadrata
però non torna alla prima roizessa; ma gli affetti nostri ben
spesso si mutano, come per isperienza proviamo (pp. 2324).
Aquaviva (1583), aqui, insiste no fato de que se renovará o espírito não somente pela graça de
Deus, mas pela prática constante dessa renovação. Constante porque, "como por experiência
provamos", os afetos não são como nossas características externas que, quando modificadas
não voltam atrás, mas "muito freqüentemente se alteram". Experiência é, pois, não somente
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conhecimento adquirido pela prática, mas um saber indutivo acerca de si mesmos, a que eram
educados os jesuítas.
Na carta seguinte - Lettera del Nostro Padre Generale (...) Dello studio della perfettione, &
carità fraterna -, Aquaviva (1586) explicando o que é este "estudo da perfeição e caridade
fraterna", ou seja, o forçar-se a fazer a vontade do "nosso pai e senhor" (p. 08), tornará a
obediência às Constituições e aos Superiores "cada dia mais doce" (p. 08) e, especialmente,
"far-nos-á com a experiência saborear e, com uma luz maravilhosa, que não é de lume
natural, conhecer claramente, que esta é uma doutrina do céu" (p. 08). Regra espiritual e
regra institucional são, aqui, corroboradas pelo conhecimento filosófico das potências da alma
("se nossa vontade não é espoliada de todo amor e afeição particular não poderá buscar a
Deus", como escreve mais à frente na mesma carta); e a interseção se dá exatamente no
apelo à experiência.
Também Fazio (1594) faz uso dessa categoria - dentro do mesmo espaço de discussão usado
por Aquaviva (1586) - para demonstrar o quão necessário é se aplicar no exercício da
"Mortificação santa" das faculdades da alma e, sobretudo, das paixões desordenadas e
também no exercício da obediência. Segundo ele, a mortificação e a obediência fazem com que
nos deixemos guiar, finalmente, pela vontade de Deus e não pela nossa, que, "por sua
natureza é cega" e, dessa forma guiados, não corremos o risco de incorrer no erro "que o
Senhor mesmo predisse dizendo: Si coeco coecus ducatum prestet, ambo in foveam cadunt"
(p. 49).
Sanchez (1594/1607), fazendo uso de questões próprias da Filosofia Moral, acaba por
prescrever a obediência como ajuda para a manutenção da prudência, que, sabidamente, é a
virtude dos experimentados. Assim escreve ele, no Capítulo IV, Livro V - que trata da
"obediência que é devida aos superiores" - de seu Le Royaume de Dieu et le vray chemin pour
y parvenir:
Apres qu'un homme aura prins des estudes & exercices
suffisans en sa vacation & estat, il a necessité d'une
prudence & discretion, par laquelle il se regle, & conduise,
car d'autre maniere, les vertus se convertiroient en vices. Et
pource que la prudence, est celle-là, qui met le frain &
ordonne toutes vertus, parfoy elle est appellée vertu des
anciens, qui d'ordinaire s'obtient fort tard, & avec grande
experience (à raison de quoy les jeunes superieurs, font tant
de folies, & injures mal a propos) pourtant il est três-evident
qu'il faut prendre l'obeissance pour bride & guide, qui
supplee à la prudence (p. 560).
Um a um, todos os padres espirituais apresentados vão se servindo da experiência para
prescrever exercícios que auxiliem no engajamento à "religião católica" e no se tornarem
"melhores cristãos": Villanueva (1608), depois de dizer que a oração mental é mais oração que
a vocal, lembra, por exemplo, que no entanto se acrescentam as palavras à oração mental
quando a alma "se sente caída" (p. 7,1) e coloca que "este aviso (...), cada dia nos é ensinado
pela experiência, que vendo caído o nosso espírito na oração, com a voz exterior o reaviva" (p.
7,2); e segue com suas considerações sobre as potências da alma humana. À frente, na
mesma obra, Villanueva (1608), falando acerca da especulação e da contemplação, como
formas de oração de entendimento, retoma conteúdos próprios dos Exercícios Espirituais de
Santo Inácio de Loyola: aplicação dos sentidos, composição de lugar, uso da memória, etc.
Rodriguez (1609/1834) também, no Ejercicio de perfeccion y virtudes cristianas (45), apela
para a experiência com o fim de comprovar como são importantes os votos para a ordenação
pessoal e institucional. Assim como Nieremberg (1631/1657, 1640/1957), o qual também faz
uso desta categoria para mostrar como a vontade precisa ser bem conduzida pelos preceitos
da moral (46), ou pela ordem institucional (47). De tal forma que, nestes textos, pode-se
encontrar o teórico, o institucional e o espiritual tornados prescrição não porque sejam
documentos normativos, mas porque fazem lisível a descrição de um modus operandi e de um
modus cogitandi encarnados numa experiência de caráter necessariamente jesuítico.
"Necessariamente" porque se trata de um caráter fundado sobre aquele tripé formativo muito
peculiar desta ordem religiosa.
Memorandum 7, out/2004
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Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
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III) Conclusão
No início deste artigo, se perguntave como era possível que termos tão diversos e, sobretudo,
tão distantes do horizonte cognoscitivo da experiência pudessem ser usados, numa mesma
frase, juntos: Deus, a alma, as paixões da alma, os sentimentos etc. Tendo seguido este
percurso, a questão parece esclarecer-se.
Escrever que se faz a experiência de que Deus dá um "desejo fervoroso" que, como luz do céu,
desfaz as trevas e as falsas razões da alma; ou que se experimenta que, na medida em que os
desejos são considerados a partir das falsas razões, parecem vir do demônio, como o afirma
Seraphin Bonaventura Coçar (48), é descrever o resultado de um trabalho de discernimento
dos espíritos, ou seja, o trabalho do juízo a fim de bem localizar de quem partiu o desejo,
quem o concedeu; é também comprovar o trabalho de elaboração pessoal acerca da
experiência de "sentir um incendido desejo". De fato, em sua carta, Seraphin procura deixar
claro ao Padre Geral o quão seriamente trabalhou para conhecer a origem desse desejo e
sobretudo o quão certo é de que quem o dá é "Dios Nuestro Señor", já que tem experimentado
uma atenção maior na "observância das regras", depois de se ter encomendado a Deus, nas
orações. Vê-se que, a experiência, neste caso, está intimamente ligada a um conhecimento de
si mesmo e de Deus, bem como de virtudes morais, indissociavelmente: se o desejo é um
desejo honesto, útil e agradável, é um movimento em direção ao sumo Bem; mas não basta a
confirmação teórica, é preciso uma experiência sensível de sua honestidade, utilidade e
bondade: "un desseo fervoroso, que como luz del cielo deshaze en mi alma aquellas tinieblas y
razones, dexandome muy consolado, y con tal alegria, que me parece arrostrar a qualquiera
dificultad y trabajo".
Joan Sotalell experimenta paciência grande diante das tentações, pelo simples pensar "yr a las
Indias" (49), além de experimentar consolação e facilidade para fazer o que antes era difícil.
No texto que escreve, o jovem jesuíta relata, como os demais indipetentes, o trabalho de
discernimento dos espíritos a que se dedicou - oferecimentos, obediências, abnegações,
exercícios espirituais, mortificações -, bem como procura demonstrar e comprovar como
conhece bem a si mesmo, seus limites, suas virtudes, as graças recebidas. Tudo utilizado
como argumento a favor e prova da origem divina de um tal desejo. Além disso, Sotalell
explicita seu desejo de fazer sua a vontade de Deus: "davame grande molestia el ver que no
podia ser luego, pero conformeme con la voluntad de Dios Nuestro Señor que fuesse quando el
quiziesse"; como, por exemplo, Aquaviva (1586) lembrava em sua carta dirigida à Companhia
de Jesus: "ne trova il servo di Dio altro riposo, ò altro contento, che U far la volontà di colui, la
cui volontà è sola regola d'ogni rettitudine" (p. 7).
A experiência de facilidade para os "trabajos de corazon" a que se refere Gabriel Mayo (50) em
sua Indipeta, unida à certeza de sua falta de habilidades que justifiquem o pedido, não se
contradizem, porque: "no nace este desseo que tengo de ver en mi algo delo que han de tener
los Predicadores", mas "nace de la sola immensa bondad de Dios, que en mi lo despierta y me
tira sin ýo mereçello ni pretendello". Porém, a comprovação maior é que, junto com o desejo
de ira para o Japão para trabalhar na conversão das almas, sente também um "desseo de dar
la vida por amor del Señor". Como pode ser possível que um Bem honesto, útil e agradável dê
origem a um desejo de morte? Se e somente se esse desejo é o desejo do Amor de Deus, o
desejo do Sumo Bem, da realização da vida a que foi chamado no seio da Companhia de
Jesus.
Também Juan Bravo comprova, a partir da experiência, a origem divina do seu desejo, quando
apresenta as justificativa nascidas da elaboração pessoal: o desejo corrige suas imperfeições e
lhe permite viver firme nas "cosas de Instituto". E, finalmente, diz: "No creo que rayz de
donde brotan tales ramas puede ser o malas, o antojadiza" (51). Em outra carta sua (52),
Juan Bravo relata o desejo de dizer à voz tudo o que o Senhor lhe fez conhecer e sentir:
desejou estar "a los pies de Vuestra Paternidad para que con la lengua propria diera al Padre
que my Dios me ha dado una notiçia de my coraçon y de lo que en el pasa". Que coisas são
essas que Deus lhe faz experimentar? Sempre são confirmações da origem divina do desejo
que sente de ir ao Japão, confirmações, inclusive, que lhe dão a segurança de escrever não
uma ou duas vezes, mas várias vezes, sempre para refrescar a memória do Padre Geral de
seus desejos e, especialmente, do seu trabalho de discernimento e da certeza a que chegou.
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Experiência: instrumento cognoscitivo? Ponte para aceder a Deus? Critério de
identificação/imitação final? Sim, tudo isso, mas num continuum feito carne, num dinamismo
particular. A aparente fragmentação da análise desenvolvida ao longo deste texto se desfaz na
leitura das cartas Indipetae que não permitem uma compreensão de tipo filo-estruturalistafrancesa. Finalmente, é preciso dizer, há uma unidade interna não só a essas fontes, mas à
própria Companhia de Jesus: é essa unidade mesma - retórico-filosófico-espiritual-institucional
- que permite, na leitura dos documentos identificar uma dinâmica, uma vitalidade, que
evidencia um homem e sua experiência de si mesmo, de Deus e do mundo indissociáveis. Uma
tal compreensão do homem, enfim, faz o psicólogo se perguntar: quem é o homem para mim?
E, quem sabe, aprender com quem, de "morto" que era, se tornou uma voz encarnada.
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Notas
* Este artigo é fruto das pesquisas desenvolvidas na tese de doutoramento financiada pela
CAPES, na FFCLRP/USP. Agradeço, especialmente, as frutuosas colaborações dos professores
Alcir Pécora, Pierre-Antoine Fabre e Marina Massimi.
(1) "...toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico,
político e cultural. Implica um meio de elaboração circunscrito por determinações próprias:
uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados etc.
Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade.
É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de
interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam"
(Certeau, 2002, pp. 66-67).
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
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(2) Termo com o qual, genericamente, eram designados os territórios de missão, no âmbito
cultural e institucional estudados.
(3) "Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma
sistematização totalizante, e considerar como essencial ao problema a necessidade de uma
discussão proporcionada a uma pluralidade de procedimentos científicos, de funções sociais e
de convicções fundamentais" (Certeau, 2002, p. 32).
(4) Certeau (2002) afirma: "A historiografia (quer dizer 'história' e 'escrita') traz inscrito no
próprio nome o paradoxo - e quase oximoron - do relacionamento de dois termos
antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de articulá-los e, onde este laço não é
pensável, fazer como se os articulasse. Da relação que o discurso mantém com o real, do qual
trata, nasceu este livro. Que aliança é esta entre escrita e a história? Ela já era fundamental
na concepção judaico-cristã das Escrituras. Daí o papel representado por essa arqueologia
religiosa na elaboração moderna da historiografia, que transformou os termos e mesmo o tipo
de relação passada, para lhe dar aspecto de fabricação e não mais de leitura ou de
interpreta ção. Desse ponto de vista, o reexame da operatividade historiográfica desemboca,
por um lado, num problema político (os procedimentos próprios ao 'fazer história') e, por outro
lado, na questão do sujeito (do corpo e da palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da
ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita 'científica'." (p. 11).
(5) Trata-se do grupo de pesquisa com o qual tive a oportunidade de trabalhar na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, durante estágio de pesquisa no exterior,
realizado no ano 2003/2004. Lembro de modo particular de Pierre-Antoine Fabre, Antonella
Romano e Luce Giard, além daqueles que, por intermédio desses últimos, vêm se debruçando
sobre o "fazer história" dentro do mesmo horizonte de preocupação de Michel de Certeau.
(6) Aquino é quem assim divide: cinco categorias de potências (vegetativas, sensitivas,
apetitivas, motora e intelectivas), três almas (vegetativa, sensitiva e racional) e quatro modos
de viver (vegetativo, sensitivo, motivo e intelectivo). Cf. Aquino, 1991, pp. 159-194 (q.
LXXVIII). E ele diz ainda: "ao teólogo pertence indagar, especialmente, só das potências
intelectivas e apetitivas, susceptíveis de virtude. Mas, como o conhecimento dessas potências
depende de certo modo das outras, por isso a nossa consideração sobre as potências da alma,
em especial, será tripartida. Pois, primeiro, devem-se considerar cousas que servem de
preâmbulo ao intelecto. Segundo, as potências intelectivas. Terceiro, as potências apetitivas"
(pp. 159-160).
(7) Falar de espiritualidade nos séculos XVI e XVII, especialmente falar da Devotio moderna
20, sem dúvida é considerar fatores tais como a retórica, a ética, a política, a teologia etc.
Hansen, no prefácio à obra de Pécora (1994) - Teatro do Sacramento - define a Devotio
moderna como "metafísica neo-escolástica da Luz difusa" que funda a "história como história
sacra" (Pécora, 1994, p. 16), como lugar da epifania da "Luz". Segundo ele, espiritualidade,
experiência religiosa, mística e fé, são re-elaborações ou retomadas de conceitos tomistas,
apenas revestidos de roupagens modernas; o que significa uma devoção em nada
desvinculada da realidade 21. Porém, é Guibert (1953) quem melhor nos define o que seja
espiritualidade, quando explica o que significa uma "espiritualidade inaciana": segundo ele, o
termo designa tanto a vida interior pessoal de um homem, como a maneira como esse homem
exerce certas práticas genericamente entendidas como espirituais, ou mesmo uma doutrina
espiritual presente em escritos desse mesmo homem. No entanto, quando se trata da
"espiritualidade" de uma ordem religiosa, por exemplo, na maioria das vezes "cette spiritualité
du groupe aura pour point de départ la spiritualité d'un homme, d'un fondateur ou d'un maître,
telle qu'elle ressort de sa vie, de ses enseignements et de sa parole, de ses écrits, de tel écrit
considéré comme normatif par la tradition vivante du groupe" (p. XVIII). Por isso, pela
expressão "espiritualidade inaciana", se quer designar esse conjunto de características próprias
da experiência pessoal de Inácio, presente em determinados documentos - que serão aqui
analisados - que funda um modo próprio de um grupo, no caso a Companhia de Jesus.
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
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(8) Quando se fala de Conimbricenses ou de Curso Conimbricense, está se referindo ao
conjunto de textos publicados entre 1592 e 1606 com o título genérico de Comentários do
Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus. Discute-se freqüentemente a que autores se
deve atribuir a responsabilidade da redação dos volumes: sabe-se que a maior parte dos
títulos é de autoria do P.e Manuel de Góis; cabendo aos P.es Sebastião Couto e Baltazar
Álvares a redação de dois dos seus oito volumes. De forma que as obras do P.e Pedro da
Fonseca, especialmente o Comentário à Metafísica de Aristóteles, não podem ser consideradas
como parte de sua estrutura. Observando-se o conjunto da obra, é interessante notar que
excetuando o pequeno volume sobre a Ética a Nicômaco e o volume dedicado à lógica
aristotélica, todo o Curso gira em torno do domínio disciplinar próprio da física (filosofia
natural). De maneira geral, pode-se dizer que os comentários estão estruturados em torno do
texto aristotélico, sendo que a parte mais significativa é a dedicada às quaestionenes: onde é
possível ver um desenvolvimento dos temas propostos pela obra aristotélica, mas sem se fixar
á "letra do texto". Martins (1996) comenta mesmo que "mais do que no comentário
propriamente dito (...), é aqui que podemos encontrar as posições doutrinais mais importantes
dos Conimbricenses" (p. 489). Especificamente quanto a esse pequeno volume dedicado ao
comentário da Ética a Nicômaco, pode-se dizer que não se ocupa de todo o texto aristotélico,
mas apenas de "algumas das melhores questões que foram tratadas dispersamente por
Aristóteles nos livros da Moral a Nicómaco" (Góis, 1593, p. 59). De fato, este tratado está
organizado em torno de nove Disputationes que abordam, sumariamente, apenas alguns dos
temas da obra de Aristóteles: as três primeiras giram em torno das noções centrais de Bem,
Fim e Felicidade. A quarta se ocupa dos Princípios dos atos humanos, ou seja, da Vontade, do
Intelecto e do Apetite Sensitivo. A quinta analisa, genericamente, a questão da bondade e da
malícia dos atos humanos. A sexta trata das Paixões e a sétima das Virtudes em geral. A
oitava e a nona Disputationes dividem a análise de algumas virtudes em particular: a
Prudência, a Justiça, a Temperança e a Fortaleza.
(9) Quantos aos Exercícios Espirituais, são - à primeira vista - uma série de notas práticas, de
métodos de exame de consciência, de oração, de deliberação ou eleição, de planos de
meditação e de contemplação, divididos em partes que indicam quatro semanas, além de
regras etc.; é um conjunto de instruções diversas destinadas a dirigir o cumprimento de um
certo número de exercícios interiores sistematicamente ordenados, de forma que se trata de
um livro não para ser lido, mas para ser vivido; mas, sobretudo, trata-se de uma obra
destinada a quem guia o exercitante (Guibert, 1953). Quanto à compreensão de como este
texto nasceu, qual o seu objetivo e portanto seu lugar na vida de espiritualidade da Companhia
de Jesus, é o próprio Inácio quem narra - no seu Relato - como os Exercícios foram escritos:
não de uma só vez, "mas, na medida em que observava algumas coisas na sua alma e as
achava úteis, e lhe parecia que poderiam ser também úteis aos outros; então as punha por
escrito" (Loyola, 1991, p. 1072). De forma que o texto dos Exercícios Espirituais é o resultado
de uma experiência pessoal, marcada por acontecimentos que são sinais da presença e da
ação de Deus, descrita de maneira a ser útil para que outros homens fossem capazes de trilhar
um caminho de experiência de encontro com Deus. O objetivo da obra é suscitar e sustentar
uma experiência de eleição da vontade de Deus - "sempre conhecer e cumprir sua divina
vontade" (Loyola, 1991, p. 693) 28 1 -; uma "escola de oração" (p. 529), para usar a
expressão de Guibert (1953). Podemos também dizer que os Exercícios são mesmo o ponto de
partida fecundo, no sentido de "princípio de orientação e de desenvolvimento de toda esta
espiritualidade nascida da experiência de Santo Inácio" (idem, p. 537). E finalmente, segundo
O'Malley (1999), "não se pode compreender os jesuítas sem fazer referência" aos Exercícios
Espirituais (p. 9).
(10) Esta versão apareceu em língua francesa no ano de 1991, sob a iniciativa de um grupo de
padres jesuítas - Jean-Noël Aletti, Adrien Demoustier, Jean-Claude Dhôtel, Gervais Dumeige,
François Évain, Édouard Gueydan, Antoine Lauras, Luc Pareydt e Claude Viard -, dirigidos pelo
P.e Maurice Giuliani, sj, com a colaboração de Pierre-Antoine Fabre (da EHESS) e de Luce
Giard (do CNRS). Trata-se da obra Loyola, Ignace de (1991). Écrits (M. Giuliani, pres. et dir).
Paris: Desclée de Brouwer/Bellarmin (Collection Christus, 76, Textes).
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
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Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
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(11) A respeito do Diário de Inácio, podemos dizer que o que temos publicado atualmente é
apenas um pequeno fragmento do "grande maço de manuscritos" nos quais Inácio "escrevia
cada dia o que se passava em sua alma" (Loyola, 1991, p. 1072), especialmente com respeito
á escrita das Constituições. Esse fragmento equivale a dois cadernos inteiramente escritos pela
mão de Inácio: o primeiro vai de 02 de fevereiro a 12 de março de 1544, e o segundo se
refere aos dias de 13 de março de 1544 à 27 de fevereiro de 1545. Esses manuscritos só
foram publicados pela primeira vez em 1934. O Diário, por ser a descrição do que se "passava
na alma" de Inácio, descreve a dinâmica da vida mística do fundador.
(12) Finalmente, quanto ao que concerne ao Relato, o que mais nos interessa é seu caráter
"testamentário" (Cf. Loyola, 1991, p. 1011), que ajuda a entender como a experiência
espiritual de Inácio constituiu-se fundamento da Companhia de Jesus. No Relato, a vida de
Inácio é mais que uma seqüência de acontecimentos: é uma vida marcada, constituída e
formada pela graça de Deus (Marin, 1999); a vida de Inácio se torna, pois, uma "experiênciamodelo", de forma que ler seu relato significa "reviver a vida do fundador, repetir a vida do
fundador como fundador, quer dizer refundar o corpo, reinstituir o instituto que ele fundou a
partir de sua conversão" (idem, p. 147), ou seja, finalmente, é imitar Inácio.
(13) A gênese das Constituições se confude com o nascimento da Companhia de Jesus. Não é
inaugural (no sentido de que só aparece como necessidade cerca de cinco anos depois dos
votos em Montmartre), mas é fundante da Ordem (na medida em que organiza, define, legisla
em nome de uma unidade). Em junho de 1539, os primeiros companheiros de Inácio
deliberam o que dá origem à Summa, um conjunto de decisões que fornecerão ao Papa Paulo
III o essencial para a edição da bula Regimini Militantis que, em 1540, reconhece a nova
Ordem religiosa. Da deliberação de 1539 à versão final das Constituições são passados 19
anos, nos quais o texto é revisado, enriquecido, retomado. A esse período correspondem os
Generalatos de Inácio, Laínez e Borgia e o Pontificado de Paulo III e Júlio I I I . Cada um desses
personagens contribuiu de alguma forma com a gênese do texto definitivo, de forma que falar
de um autor é sempre uma questão problemática; especialmente quando sabemos também
que é a Polanco - secretário dos três primeiros Padres Gerais - que se deve a maior parte do
trabalho jurídico. No entanto, é preciso ter claro que, para além das inúmeras contribuições ao
texto das Constituições, o ponto de unidade é a experiência pessoal de Inácio (Guibert, 1953).
Fabre (1991) lembra que ainda no texto "B" (a última versão, que foi editada em 1558), Inácio
teve a oportunidade de deixar várias notas marginais, atestando assim seu trabalho de
fundador (Fabre, 1991). Leite (1938) também diz que as Constituições são "a melhor fonte
para se conhecer o pensamento explícito e direto de Inácio". Através desse texto fundador,
conhece-se, pois, mais que um sistema jurídico, um texto que tem a característica de
constituir a Companhia de Jesus, na medida em que compõe, dá a essência, descreve,
estabelece um modo de agir que é o espelho da vida de Inácio e de seus primeiros
companheiros.
(14) Apesar de escritos em períodos distintos, os documentos, quando lidos no conjunto,
revelam uma cadeia contínua de progressiva legitimidade da Ordem: sua instituição, a eleição
do Prepósito, a Summa - texto oficial do "Instituto" - que deverá ser aprovada, mais tarde,
pelo Papa Paulo III e, posteriormente, confirmada por Júlio I I I . A produção desses documentos
nada mais é que uma "articulação coletiva do ato fundador, como vínculo, no gesto de uma
escritura comum" (Loyola, 1991, p. 269), onde o ponto de unidade do grupo que começa a se
dispersar é o próprio Inácio, que aceita se tornar Geral: é justamente porque eles se
dispersarão pelas missões "que a união em um Corpo deve ser considerada" (idem, p. 270),
daí a necessidade de um selo unitivo - a obediência (que vimos ser uma das questões
debatidas no primeiro encontro fundador, entre metade de março e 24 de junho de 1539, em
Roma).
(15) Entre os textos editados no período, selecionamos apenas alguns obedecendo
basicamente a três critérios: 1) autores e obras mais lidas nos colégios e casas da Companhia
de Jesus, conforme o inventário de Gilmont (1961) e o esboço histórico da espiritualidade
jesuítica feita por Guibert (1953); 2) disponibilidade de obras nos arquivos pesquisados
Memorandum 7, out/2004
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Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
82
(basicamente BCS, mas também BCE, BNF e BCR); 3) e, finalmente, aquelas obras, entre as
recolhidas, que melhor sintetizassem o conteúdo daqueles três pólos de análise anteriormente
descritos - filosófico/teorizado, regrado-espiritual e regrado-institucional. Optamos, então,
pelos seguintes textos: uma carta do P.e Aquaviva (1543-1615), de 29 de setembro de 1583,
na qual o Padre Geral propõe a "renovação do espírito aos Padres e Irmãos da Companhia" e
uma outra carta, do dia 19 de maio de 1586, sobre o "estudo da perfeição e da caridade
fraterna"; ambas têm um caráter refundador importante, na medida em que julgam o
momento histórico vivido e propõem os novos passos a serem dados. Um texto de Giulio Fazio
- Trattato utilissimo della mortificatione delle nostre passioni, & affetti disordinati - de 1594,
pela sua importância do ponto de vista da síntese entre conteúdo filosófico aristotélico-tomista
e experiência espiritual. Outro texto do mesmo ano, do espanhol Pedro Sanchez - Libro del
Reyno de Dios y del camino por donde se alcanza -, do qual encontramos uma tradução
francesa de 1607. Dada a significação da obra do ponto de vista da descrição do verdadeiro
filho da Companhia de Jesus, demonstrando o valor da obediência como "caminho" para se
alcançar o Reino. O Libro de oracion mental, de Melchior de Villanueva, editado em 1608, por
ser uma síntese bastante completa do uso de conceitos próprios da psicologia filosófica
aristotélico-tomista no âmbito da espiritualidade. O Ejercicio de perfeccion y virtudes
cristianas, de Alonso Rodrigues (1533-1617), publicado pela primeira vez em 1609 e que
conheceu inúmeras traduções e edições ao longo da história da Companhia de Jesus.
Finalmente, como representante de uma espiritualidade completa - um todo orgânico - que
amadureceu no tempo, escolhemos algumas obras de Juan Eusebio Nieremberg (1595-1658):
o seu De Artes Voluntatis, de 1631 (tivemos acesso a uma tradução francesa de 1657) e o
Vida divina y camino real de grande atajo para la perfeccion, de 1633. Esses oito textos são
uma síntese daquilo que descrevemos a partir dos três pólos representativos do pensamento e
da ação jesuíticos, na medida em que, imersos num ambiente filosófico, pedagógico, espiritual
e institucional específicos, se preocupam em estruturar aquilo que se configurará um corpus de
espiritualidade com características próprias. Trata-se, nesse caso, de uma genealogia positiva:
são textos que só podem ter nascido de um ambiente sustentado minimamente por aquele
tripé.
(16) É nesse período, com já vimos, que começa a tomar corpo a realização prática do
programa pedagógico (Guerra, 2003) traçado pelas Constituições; é aprovado o Diretório dos
Exercícios Espirituais em 1599, o que permite um trabalho aprofundado e sério sobre o texto
inaciano; são publicadas inúmeras cartas de Aquaviva (sobre a oração, sobre a renovação do
espírito, sobre o estudo da perfeição e outras tantas destinadas a particulares); são editados
os primeiros tratados espirituais e instruções sobre oração, aproveitamento espiritual etc.
(Lamalle, 2004); os debates nas Congregações Gerais e seus decretos sobre tempo dedicado à
oração, noviciado etc. Todos exemplos de uma profícua preocupação com o estabelecimento
de uma Espiritualidade "verdadeira, sólida e eficaz" (Guibert, 1953, p. XXV), com traços
propriamente jesuíticos.
(17) A julgar pelas indicações oferecidas pelo Diretório dos Exercícios Espirituais: nas "notas
transmitidas oralmente", §8 da II parte, diz-se que "se pode aconselhar àquele que se exercita
de anotar por escrito seus pensamentos e suas moções" (Loyola, 1991, p. 265, tradução
nossa), obedecendo à tradição iniciada por Inácio e certamente conhecida através do seu
Relato.
(18) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 4 (grifo nosso).
(19) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 338 (grifo nosso).
(20) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 379 (grifo nosso).
(21) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329 (grifo nosso).
(22) Segundo Mendiola (2003), essas sociedades são aquelas que se constituíram do século V
a.C. ao século XVII d.C. Podemos descrever assim essa realidade retórica: a cognição estava
Memorandum 7, out/2004
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Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
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construída sobre a oralidade/escritura, de forma que a leitura da realidade era sempre
analógico-metafórica; estando baseada na oralidade/escritura, é uma realidade onde importa a
interação entre as pessoas, ou seja, exige comunicação e sociabilidade; ainda por estar
baseada na oralidade/escritura, era necessário que se normatizasse o falar, tornando-se o
processo de aprendizado um processo moralizante e marcadamente cristão. É uma realidade,
por fim, teleologicamente orientada.
(23) Para essa assim chamada realidade científica, Mendiola (2003) enumera as seguintes
características: se desenvolveu a partir do século XVII e chega aos nossos dias; o processo
cognitivo é baseado na depuração da escrita pelas técnicas de impressão, o que faz da leitura
da realidade, uma leitura literal-referencial; sendo baseada na escrita/impressão como meio
de comunicação, elimina a necessidade de interação e valoriza o discurso analítico e
representacional (a palavra suplanta a coisa) e permite a comparação entre textos e opiniões
diferenciadas, tornando-se, portanto, uma dinâmica individual e técnico-cognitiva. É uma
realidade, por fim, cognitivamente orientada.
(24) Schmitt, em artigo de 1969, discutindo a questão da diferença entre experientia e
experimentum em obras de Zabarella e Galileu, diz que "uma das tendências que mais
claramente marcam a tendência do século XVII é uma ênfase crescente na experiência" (p. 80,
tradução nossa). Uma ênfase que, segundo ele, se encontra tanto no que respeitava à
produção filosófica (por exemplo, em Gassendi e Locke), quanto ao que respeitava à produção
científica (por exemplo, as obras de Francis Bacon e Newton).
(25) Assim, já é possível distinguir um aspecto importante da antropologia que se constrói a
partir dessa concepção da alma: os sentidos não são passivos, na medida em que concorrem
ativamente no processo intelectivo. Podemos começar a completar a questão, lembrando: o
intelecto age a partir das phantasmata. Se se compreende a unidade intelecto/sensibilidade,
que está por trás dessa compreensão, não há contradição: "sensibilidade e intelecto interagem
até o ponto que a virtus cogitativa apresenta uma estreita afinidade com o espírito; assiste-se
a uma espiritualização da sensibilidade" (Zanlonghi, 2003, p. 69, tradução nossa). Essa
"espiritualização" permite a unidade entre razão e sensibilidade: o homem, enquanto razão
encarnada que é, necessita dos sentidos para conhecer; sejam os sentidos externos (que
recolhem as impressões), sejam os sentidos internos que formam imagens, depositadas e
ordenadas na memória, que cumpre o papel de custodiar as impressões unidas aos juízos do
intelecto.
(26) Sobre essa passagem cf. Zanlonghi (2003), quando ela afirma: "Todavia, para
compreender de que modo a retórica age neste nexo, é preciso refletir sobre a conexão entre
prudência e retórica. Muitas, na verdade, são as tangentes e um mesmo estatuto gnosiológico:
nem ciência, nem opinião, produzem conhecimento, mas não demonstração, como a retórica
desenvolve raciocínios que movem a partir de premissas prováveis e constróem uma
razoabilidade orientada para o concreto, assim a prudência é a virtude que, em estreito
contato com as paixões, discerne o bem do mal e orienta a escolha do bem concreto. Ambas
orientadas para a ação, radicadas nos afetos, mas dirigidas para sua própria normalização,
dividem o destino comum de agir naquela zona intermediária entre sentido e intelecto (...).
Mesmo a prudência utiliza a cogitativa na sua aplicação na vida cotidiana, recebendo como
matéria do raciocínio a variedade das ações possíveis ou a variedade dos aspectos e dos
pontos de vista de uma mesma ação. A prudência precisa, para produzir o seu consilium, ver
claramente a experiência. De onde tirará o socorro senão pescando da memória, da
imaginação e da cogitativa as species que a retórica fundirá em imagens?" (pp. 75-76).
(27) A chamada arte da memória foi, segundo a tradição ciceroniana, "descoberta" por
Simónides de Céos, alguns séculos antes da era cristã. Após entender o papel da visão e da
ordem no processo memorativo, criam-se regras para facilitar o desenvolvimento do que passa
a ser chamado "memória artificial". Mais tarde, Cícero (1966) enquadra a memória entre as
disciplinas da Retórica (que, segundo ele, são cinco: inventio, dispositio, elocutio, memoria e
pronuntiatio); e Quintiliano descreve o processo. Platão compreende a memória como sinal da
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divindade e da imortalidade da alma. Aristóteles também trata da memória e a relaciona à
formação do conhecimento, apontando o importante papel da imaginação. Cada um desses
pensadores da antigüidade, se tornará, na Idade Média e na Renascença, referência para um
passo na compreensão dessa arte. Segundo Yates (1975), na antigüidade clássica é elaborado
um "modelo arquitetural da memória", onde as coisas (para elas a memoria rerum) e as
palavras (para elas a memoria verborum) a serem lembradas são ordenadas num espaço
(locus ou topos), a partir de imagens (imaginibus ou phantasmata). É na Idade Média, no
entanto, que a arte da memória passa a ter uma importante "intenção religiosa": há uma
preocupação por se lembrar das coisas da salvação e da danação da alma, dos artigos da fé,
da estrada para o céu (virtudes) e para o inferno (vícios). Essa preocupação com as virtudes e
os vícios, faz com que os escolásticos retomem a obra aristotélica, especialmente a Ética à
Nicômaco, que enquadra a memória como parte da prudência: "a memória pode ser um
habitus moral quando a utilizamos para lembrar das coisas passadas em vista de uma conduta
prudente no presente e de um olhar prudente para o futuro" (p. 74, tradução nossa). A
"memória artificial" é uma memória aperfeiçoada pela arte: eis o papel da Prudência.
(28) Com o advento da impressão, a memória perde seu lugar, porque não é mais necessário
saber par coeur as lições aprendidas. Assim, a "arte da memória" torna-se um jogo curioso, ou
um artifício mágico: "Tem-se a impressão que no século XVI a arte da memória começa a
declinar. O livro impresso destrói os velhos hábitos da memória" (Yates, 1975, p. 143,
tradução nossa). Os principais representantes dessa nova áurea ocultista que aparece em
torno à arte da memória são as correntes neo-platônicas renascentistas, especialmente de Pico
de la Mirandola e Marcilo Ficino. Também Giordano Bruno envereda pelas sendas da memória
e desenvolve o conceito a paritr de uma concepção mágica.
(29) Para Agostinho, o homem é uma alma que faz uso de um corpo. Até naqueles
conhecimentos adquiridos pelos sentidos, a alma se mantém em atividade e ultrapassa o
corpo. Os sentidos só mostram o imediato e o particular, enquanto que a alma é capaz de
tocar o universal e atingir a compreensão pura, porque a alma se confunde com o próprio
Deus.
(30) Em disputas e questões anteriores, o autor já havia descrito o que os filósofos e o Filósofo
entendem por Bem (aquilo a que tudo apetece; e sendo que o bem é aquilo que é honesto, útil
e/ou agradável/deleitável, o Sumo Bem será aquilo que é, ao mesmo tempo, honesto, útil e
agradável/deleitável, ou seja, o Amor de Deus) e por Fim (aquilo a que potencialmente toda a
criatura se dirige, ou age em direção a, e em havendo, portanto, uma finalidade para toda a
ação do homem).
(31) Rm 7,23.
(32) Também Bergamo (1994) aponta a fascinação pelo mundo da interioridade e pela
estrutura da alma, presente especialmente no século XVII, na França, e retomado da tradição
medieval. Segundo ele, a questão da estrutura da alma tem suas raízes em um problema
bastante discutido por autores de séculos anteriores: "Em particular, a aparição, com o
desenvolvimento da escolástica no século XIII, de uma antropologia fortemente estruturada
que, modelando-se sobre a filosofia aristotélica, comportava uma classificação rigorosa das
faculdades da alma, e uam análise minuciosa de seu funcionamento, abriu a via para uma
longa série de transposições, até o ponto que conhecimentos maduros sobre o terreno de
discussão filosófico poderiam, a qualquer momento, ser transplantados e aplicados no campo
da literatura espiritual. Há, em suma, toda uma história da representação da estrutura da
alma, que não somente se articula no interior de uma história da espiritualidade, mas ainda
cruza a história das relações da espiritualidade com seu contexto, e em particular com o
discurso filosófico" (Bergamo, 1994, pp. 32-33, tradução nossa).
(33) Certeau (1982) explica que esta fórmula teológica mantida nos séculos XVI e XVII é no
entanto ligeiramente modificada, quando então acontece o temido risco da "mystiquerie". O
risco, segundo Certeau é que a crescente individualização das práticas e o aparecimento cada
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vez maior das experiências privadas, isto é, o progressivo desvincular-se da instituição,
produzisse esta "mystiquerie": "Torna-se 'místico' aquilo que se destaca da instituição" (p.
116, tradução nossa). Por isso a necessidade de se retomar, com clareza maior, a certeza de
que a Igreja é o sinal do corpo de Cristo. Esta idéia faz trazer a experiência mística para o
campo da instituição visível.
(34) Ele, de fato, diz: "O campo religioso se reorganiza também em função da oposição entre
o visível e o invisível, de tal maneira que as experiências 'escondidas', que cedo foram
reunidas sob o nome de 'mística', adquiriram uma pertinência que não tinham" (Certeau,
1982, p. 120, tradução nossa). Ou ainda: "Esta (...) modificação implica uma reestruturação
das relações entre o fato e o sentido. Se torna mais difícil pensar que os fatos chamam o
sentido - um sentido que seria levado à lisibilidade pelas coisas mesmas -, quanto mais era
necessário gerar primeiro uma 'razão' por textos, e depois fatos (uma 'experiência' e'/ou um
corpo) para esta razão (sintoma: 'produzir' passado do sentido de 'manifestar' para o de
'criar')" (p. 121, tradução nossa).
(35) Massimi (1999) afirma, falando da experiência religiosa dos jesuítas: "não há solução de
continuidade entre a experiência psicológica e a experiência religiosa, já que ambas são
inerentes ao eu do homem. Nem pode haver autonomia entre a esfera psíquica e a esfera
espiritual, assim como hoje nós 'modernos' concebemos" (p. 51). Segundo a tradição da
filosofia aristotélico-tomista, conhece-se o fundamental pelo acidental: "conhecemos a alma
por seus efeitos, ou seja, por suas funções psicológicas, ou faculdades que se evidenciam no
plano dos fenômenos" (p. 53).
(36) García-Mateo (2000) dá uma descrição detalhada do uso que Inácio fazia das categorias
de seu ambiente cultural de forma justa e razoável. Assim, por exemplo no EE. 53, Inácio
escreve: "Imaginando Cristo nosso Senhor diante de mim e colocado na cruz, fazer um
colóquio: como, de Criador, ele veio a se fazer homem, passar da vida eterna à morte
temporal, e assim morrer por meus pecados. Da mesma maneira, olhara para mim: o que eu
fiz por Cristo, o que eu faço por Cristo, o que devo fazer por Cristo. Depois, vendo-o nesse
estado, suspenso na cruz, percorrer o que se me oferecerá" (EE. 53, p. 84, tradução e grifos
nossos). Percebe-se daí que o uso da imaginação tem que ver com o que, mais a frente
explicaremos melhor, será chamado "composição de lugar" e "aplicação dos sentidos".
(37) A aplicação dos sentidos na composição de lugar, por exemplo, aparece pela primeira vez,
dentro do texto dos Exercícios Espirituais, no EE. 47: "Aqui é preciso remarcar que na
contemplação ou meditação do que é visível, como por exemplo a contemplação de Cristo
nosso Senhor, o que é visível, a composição será ver com a vista da imaginação o lugar
material onde se encontra a coisa que eu quero contemplar. (...) Na contemplação do que é
invisível, como é aqui a dos pecados, a composição será ver com a vista da imaginação e
considerar minha alma aprisionada nesse corpo corruptível e todo o composto humano neste
vale, como que exilado entre animais privados de razão. Eu digo: todo o composto da alma e
do corpo" (EE. 47. Loyola, 1991, pp. 78-80, tradução nossa). E voltará a aparecer outras
muitas vezes. Como comentário a esse EE. 47, aparece, na obra sinótica a seguinte nota: "A
composição de lugar é uma preparação que tem necessidade da imaginação. Explicando-a
aqui, Inácio mostra que a imaginação é uma faculdade a ser colocada em ação: fazer um
trabalho que não consiste simplesmente em colocar juntas idéias e palavras, mas os
elementos de um quadro. O exercitante torna preciso assim o lugar evangélico no qual ele vai
se situar durante o exercício" (p. 79, nota do tradutor, tradução nossa). Outros exemplos de
aplicação dos sentidos podem ser encontrados em EE. 53, EE. 66-70, EE. 122-125, EE. 159,
EE. 194, EE. 202, EE. 220.
(38) Alguns exemplos retirados dos Exercícios Espirituais: "Verei com os olhos da imaginação"
(EE. 122, p. 116, tradução e grifo nossos). "Pelo sentido da audição escutarei" (EE. 123, p.
116, tradução e grifo nossos). "Pelo sentido do olfato e do gosto, hei de sentir e saborear a
suavidade e a doçura infinitas da divindade, da alma, de suas virtudes e de tudo o mais" (EE.
124, p. 116, tradução e grifo nossos). "Exercitarei o sentido do tato, abraçando, por exemplo,
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e beijando os lugares que estas pessoas tocaram com os pés, ou se detiveram" (EE. 125, p.
116, tradução e grifo nossos). Jesu, dulcis memoria: a "doçura infinita da divindade" deve ser
experimentada pelos sentidos. Bem como, toda experiência do sagrado passa pelos sentidos.
(39) Cf., por exemplo, EE. 48, EE. 55, EE. 63, EE. 65, EE. 104, EE. 203.
(40) Nos EE. 29 e 30, por exemplo, logo no Exame Particular, Inácio propõe que se compare,
depois que se tenha analisado os gráficos cotidianos e semanais, a evolução de um dia para o
outro e de uma semana para a outra, a fim de verificar se houve emenda do pecado a que o
exercitante se dispôs a emendar.
(41) Esse pequeno documento que, dobrado, comporta quatro páginas, foi classificado entre
os manuscritos do AHSI com os números 38 e 39, de forma que temos as páginas 38f, 38v,
39f e 39v.
(42) Apenas a título de exemplo, citamos uma passagem do Relato, quando Inácio relata sua
ida para Alcalá: "uma coisa o embaraçava muito, era que quando ele começava a aprender de
cor, como era necessário nos inícios da gramática, lhe vinham novas inteligências de coisas
espirituais e novos gostos; e isso de tal maneira que ele não podia aprender de cor e não
podia as afastar, ainda que lutasse muito contra elas" (Loyola, 1991, p. 1046, § 54).
(43) Nas "Regras Gerais Tiradas das Constituições" se diz que foi a Divina Providência que
permitiu que a Companhia de Jesus existisse e, portanto, mais que qualquer constituição
exterior é a Ela que se deve recorrer sempre. No entanto, continua, foi a mesma Providência
Divina que "pede a cooperação de suas criaturas" e o Papa que "assim ordenou", que
mostraram o quão necessário era "escrever Constituições que ajudem a melhor avançar,
conformes ao Instituto da Companhia, na via do serviço divino que começamos a seguir"
(Loyola, 1991, p. 608, tradução nossa). No parágrafo seguinte diz: "Assim, e bem mais ainda,
é necessário que todos aqueles que entram na Companhia e vivem nela sejam convencidos em
nosso Senhor e desejos de guardar integralmente todas as constituições, as regras e a
maneira de viver da Companhia e que com sua divina graça se esforcem, de todo seu coração
e de todas as suas forças, por as observar perfeitamente" (p. 609, tradução nossa).
(44) No Capítulo I da Primeira Parte do texto Surin (1990) mostra as "provas de que existe
verdadeiramente demônios", a partir das "pistas que deixaram em sua saída dos corpos das
pessoas possuídas" (pp. 131-149).
(45) É bem verdade que não se trata de uso explícito, como nos demais exemplos, no entanto,
Rodriguez (1609/1834) recorre a exemplos de santos, apóstolos e mártires para mostrar, por
exemplo, como é verdade que os votos não tiram a liberdade, pelo contrário a aperfeiçoam,
como é o caso deste trecho: "não se tira a liberdade pelos votos, antes se aperfeiçoa mais
(...); porque o que fazem os votos é afirmar e fitar nossa vontade no bem (...); como em
Deus, e nos bem aventurados que não podem pecar (...) e os apóstolos que foram
confirmados em graça e não podiam pecar mortalmente, não por isso perderam a liberdade,
antes com isso se aperfeiçoou; porque se afirmou e fixou mas o bem para que foi criada" (p.
100, tradução nossa).
(46) Nieremberg (1631/1657), no decorrer do seu De arte voluntatis, se auxilia de conceitos
vindos da psicologia filosófica aristotélico-tomista com a clara finalidade de demostrar como as
potência da alma racional têm necessidade dos preceitos morais para se bem ordenarem.
Assim, não poucas vezes, fará uso de termos e expressões que implicam um conhecimento por
experiência: "a felicidade é um certo silêncio" (p. 118, tradução nossa), "as ações honestas e
legítimas, as afeições sãs, as boas obras" (p. 158, tradução nossa), "nós nos privamos
voluntariamente dessas duas tão excelentes vantagens" (p. 320, tradução nossa), "lhe
represente duro e penível" (p. 377, tradução nossa), "quem ama a paz e deseja adquirir
repouso" (p. 475, tradução nossa) etc.
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Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World Wide
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(47) Na obra seguinte, Nieremberg (1640/1957) segue as veredas da regra institucional sob a
qual se encontra determinado para mostrar também, pela experiência, como este é um
caminho facilitado para chegar a uma "vida divina".
(48) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 4.
(49) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 338.
(50) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 379.
(51) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329.
(52) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 404.
Nota sobre autor
Paulo Roberto de Andrada Pacheco é psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas
Gerais e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto; desenvolvendo pesquisa na área de concentração
de
História
das
Idéias
Psicológicas
na
Cultura
Luso-Brasileira.
Contato:
[email protected].
Data de recebimento: 20/08/2004
Data de aceite: 20/10/2004
Memorandum 7, out/2004
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1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do
World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm
Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de
Luigi Cornaro (1467-1566) e Leonard Lessius Sj
(1554-1623)
A single régimen for body and soul: Luigi Cornaro (1467-1566) and
Leonard Lessius (1554-1623) treatises
Paulo José Carvalho da Silva
Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
Brasil
Resumo
Fontes variadas dos sáculos XVI e XVII combinavam diferentes tradigoes de saber a
fim de sistematizar modos de conservar a saúde do corpo e da alma. Pode-se
destacar o Dois tratados de regime de vida para a conservagao da saúde do corpo e
da alma até a extrema velhice, publicado em 1613 pelo teólogo jesuíta da
Universidade de Louvain Léonard Lessius, a partir do Trattato della vita sobria do
veneziano Luigi Cornaro, de 1558. Conclui-se que o regime proposto por Lessius
prescreve urna disposigao de comportamento, adquirida por meio da vontade e do
hábito, que promete o melhor desempenho das fungoes corpóreas e anímicas
necessárias, enquanto meios concretos, para que o individuo possa ter urna vida,
ao mesmo tempo, saudável, virtuosa e satisfatória. O que estaría baseado em urna
refinada convergencia de saberes médicos, da filosofía da alma e da ética
aristotélicas e da espiritualidade inaciana.
Palavras-chave: regime de vida; psicología aristotélica; medicina; espiritualidade
jesuíta; sáculos XVI e XVII.
Abstract
Varied sources of trie sixteenth and seventeenth centuries mix different knowledge
traditions to develop ways of preserving body and soul's health. A significative
example it the Dois tratados de regime de vida para a conservagao da saúde do
corpo e da alma até a extrema velhice, published in 1613 by the Jesuit Theology
professor of the university of Louvain Léonard Lessius from his translation of the
Trattato della vita sobria, 1558, by the Venetian Luigi Cornaro. These systematic
advices teach how to behave looking for a better performance of the functions of
body and soul, which are necessary for a healthy, virtuous and satisfactory life.
They are based on a refined combination of medical régimen tradition, Aristotelian
philosophy of the soul and Ethics, and Ignatian spirituality.
Keywords: régimen; Aristotelian psychology; medicine; Jesuit spirituality;
sixteenth and seventeenth centuries.
Convergencia de saberes e ars vivendi
A elaboragao de saberes sobre o bem viver no inicio da Idade Moderna deu-se
através de conflitos e conciliagoes de diferentes tradigoes do pensamento, o que
resultou em diferentes modos de adesao, refutagao e síntese de saberes, cuja
difusao estendeu-se ao longo dos sáculos XVI e XVII. Em particular, o aristotelismo
renascentista foi urna das abordagens filosóficas que mais embasou propostas de
regime de vida neste período. Contudo, mesmo que tenha havido um grande
interesse por Aristóteles nos mais diversos contextos de pensamento, durante o
período que se estende entre o final do século XIV e a metade do século XVII, há
poucas pesquisas atuais sobre o assunto (1). De modo específico, apesar de sua
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considerável difusao, nao há ainda estudos que abordam os múltiplos regimes de
vida fundamentados na filosofía aristotélica da alma e na tradigao médica das
dietas produzidos nos sáculos XVI e XVII.
Por sua vez, sabe-se que os jesuítas foram responsáveis pela defesa e renovagao
do aristotelismo neste período. Exemplo disto é o programa de estudos sobre a
definigao de alma e de vida desenvolvido ñas escolas da antiga Companhia de
Jesús. A partir de leituras do De anima e do Parva Naturalia, complementadas pelo
estudo dos livros da Ética de Aristóteles, para os jesuítas do fim do sáculo XVI e
inicio do sáculo XVII, salvo algumas nuances, a alma é o principio de vida, una e
individual, constituida de tres partes funcionáis coordenadas: a alma vegetativa
(responsável pelo crescimento, nutrigao e geragao de todos os seres vivos); a
sensitiva (sede dos sentidos, paixoes, imaginagao, memoria e locomogao dos
animáis e seres humanos) e a racional, exclusiva dos humanos, (a qual pertence á
razao e á vontade). O que estaría sistematizado em comentarios escolásticos,
sobretudo nos tratados do coimbrao Manuel Góis, datados do final do sáculo XVI,
conhecidos como tratados conimbricenses (2).
Estes tratados jesuíticos sobre a alma podem ser considerados urna resposta a dois
ampios projetos: estabelecer os principios de urna ciencia da vida, e neste sentido,
o estudo da alma nao funcionava apenas como os prolegómenos da filosofía moral
e da teología, mas era a base para o estudo de todos os seres vivos, e demonstrar,
através de argumentos racionáis, a imaterialidade e a imortalidade da alma
humana (3).
Como se sabe, era imprescindível fixar a concepgao de alma num contexto de
debate travado contra posigóes que rivalizavam com o aristotelismo cristao dos
jesuítas. Havia os galenistas que davam maior relevo á materia do que a corrente
tomista, bem como a polémica visao de Pietro Pomponazzi (1462-1525),
filósofo aristotélico da Universidade de Pádua, segundo o qual nem conforme
Aristóteles, nem conforme a razao, a alma seria ¡mortal, contrariando com esta
afirmagao o quinto Concilio Laterano, de 1513, ou ainda outros paduanos
partidarios do pensamento de Averrois (Ibn Rushd) (1126-1198), que defendiam a
existencia de um intelecto ativo comum a todos os seres racionáis, a partir da
leitura do filósofo, médico e juiz andaluz, maior comentador de Aristóteles em
língua árabe (4).
Em escritos direcionados á atividade pastoral ou á vida cotidiana, os jesuítas das
primeiras geragoes sistematizaram diversificados procedimentos de caráter
bastante metódico, funcional e coerente com as idéias apresentadas nos tratados
teóricos publicados pela Companhia no mesmo período. Para além dos debates
académicos, alguns jesuítas exploraram, de maneira particular e em diferentes
contextos, conseqüéncias desta concepgao de alma com tres partes funcionáis,
inclusive, sistematizando modos de harmonizá-las, por meio do ordenamento de
seus acidentes e na melhor aplicagao de suas faculdades. Sao diferentes práticas
que se fundamentam em urna refletida conciliagao de saberes sobre a natureza
humana que inclui a espiritualidade inaciana, a psicología e a ética aristotélicas e
até mesmo a tradigao médica.
Pode-se destacar o Dois tratados de regime de vida para a conservagáo da saúde
do corpo e da alma até a extrema velhice, publicado em 1613, pelo teólogo e
professor da Universidade de Louvain Leonard Lessius (1554-1623) e reeditado em
varias línguas ao longo de tres séculos, que prescreve justamente conselhos para a
conservagáo da integridade das fungoes somáticas e anímicas (5). Propoe-se,
portanto, urna análise deste manual de medicina do corpo e da alma com o objetivo
de explicitar a convergencia de saberes médicos e da filosofía da alma aristotélica,
o que pode contribuir para a compreensao da organizagao do conhecimento sobre o
bem estar humano no inicio da Idade Moderna.
Elogio da vida sobria
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O Dois tratados de regime de vida para a conservagao da saúde do corpo e da alma
até a extrema velhice é composto de um tratado complementar á obra do
veneziano Luigi Cornaro, Trattato de la vita sobria, cuja primeira edigao data de
1558.
Cornaro (1467-1566) escreveu tal manual de saúde entre os 85 e 95 anos para
relatar que, após urna vida de excessos que arruinara sua saúde, descobrira as
virtudes dos regimes alimentares. O autor retoma os lugares comuns sobre os
efeitos da temperanga, renovando a tradigao, ao multiplicar os conselhos e insistir,
através de um relato em primeira pessoa, ñas delicias e prazeres que a sobriedade
e a moderagao podem proporcionar.
Trata-se, na realidade, de urna longa tradigao. A escola hipocrática produziu, no
final do sáculo V a.C, um tratado sobre o Regime de vida, que estabelece os
postulados fundamentáis dos cuidados com a alimentagao, atividades físicas,
sexualidade, idade e lugar de residencia. Claudio Galeno (129-199) sintetizou idéias
hipocráticas, aristotélicas e de outras tradigoes helenísticas, em seu tratado de
Higiene, que defende a idéia da saúde como um equilibrio perfeito interno e com o
meio externo. Além das regras monásticas da alta Idade Media e dos textos de
origem árabe, como o Canon de Avicena, os regimina sanitatis medievais mais
conhecidos, embora nao sejam os únicos, sao os versos didáticos atribuidos á
Escola de Salerno, sáculo XI, o Régimen sanitatis salernitanum, e o livro de saúde
de Aldebrando de Siena publicado no sáculo XIII.
Na Italia do inicio da modernidade, varios médicos difundiram modos de conservar
a saúde. Pode-se destacar, nesta empreitada, o médico e professor da Universidade
de Pádua Michele Savonarola (1384-1469). Seu pequeño manual de longo título, o
Libreto délo Excellentissimo physico Maistro Michele Savonarola: De tutte le cose
che se mangiano comunamente: quale sonó contraríe e quale al proposito: i como
si apparecchiano: i di quelle se beveno per Italia : e de sei cose non naturale : i le
rególe per conservare la sanita deli corpi umani, sistematiza os principios
considerados necessários para a conservagao da boa saúde por muitos anos,
retomando nogoes hipocrático-galénicas e adaptando-as a sua realidade local e
atual.
Conforme esta tradigao hipocrático-galénica reiterada no Renascimento, a
combinagao harmoniosa, quantitativa e qualitativa, entre os líquidos corporais
chamados de quatro humores (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra ou
melancolía) é urna condigao para a saúde. Para que isto se mantenha é necessário
o equilibrio entre a entrada de alimentos e o gasto com os esforgos corporais. O
objetivo do regime é regular este equilibrio de modo a garantir urna boa proporgao
entre calor e umidade (6).
Por sua vez, o veneziano Cornaro apresenta seus conselhos afirmando que há tres
grandes males introduzidos na Italia pelos maus costumes: a adulagao das cortes,
a maneira de viver conforme a opiniao e doutrina de Lutero e as indignidades. Seu
tratado exorta a urna maneira de viver considerada mais honesta, católica e digna
através da busca da justa medida e da sobriedade no viver, que se inicia pelo
regime alimentar. Assim, propoe urna medicina de si mesmo que abrange a
conservagao do corpo em saúde e o predispoe a colaborar com os exercícios de
devogao que visam á salvagao da alma (7).
O Trattato della vita sobria aparenta-se ao género dos tratados de civilidade
difundidos na Italia de sua época. Da racionalidade de corte, Cornaro parece
guardar a énfase na razao e no prazer que comportam o senso de medida e o
controle de si. Entretanto, restringe-se aos aspectos médicos e á conveniencia do
bom regime: seu livro expoe os passos a serem tomados por aquele que deseja
conservar, por longos anos, a boa saúde, entendida como parte inalienável da idéia
de dignidade, que pressupoe virtudes políticas e intelectuais como a prudencia e a
discrigao (8).
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm
Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 91
1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do
World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm
Siraisi (1997) lembra que nos Quinhentos e Seiscentos italianos, o público para
este tipo de manual de saúde nao se restringía aos médicos, mas abrangia também
as cortes e a intelectualidade urbana, em especial os idosos destas classes. A
proliferagao dos manuais de higiene e sobretudo das dietas está relacionada
certamente ao aumento na sofisticagao das refeigoes e dos rituais comensais das
prósperas classes altas e o interesse, marcante do humanismo, nos escritos
clássicos sobre este tema.
No Trattato de Cornaro, gosto e conveniencia sao apresentados em oposigao, para,
com o relato da experiencia, posteriormente, comprovar serem, pelo contrario,
conciliáveis na prática do regime. O que prenuncia o espago que o campo do desejo
ocupa enquanto operador do modo de vida temperante na versao de Lessius.
Tal como outros escritos do período, o autor expoe sua experiencia como exemplo,
inclusive relatando como venceu suas próprias dificuldades em realizar o regime
prescrito pelos médicos. Parece com isso querer convencer o leitor do caráter
concreto de seus conselhos e da verossimilhanga de seus resultados, atraindo a
confianga do leitor para o seu conceito público de homem idoso, pleno de saúde e
sabedoria. Mesmo havendo recebido a regra segundo a qual se deve comer os
alimentos e beber o vinho convenientes e em pequeña quantidade, Cornaro relata
que seguia seu próprio gosto. Mas após resolver seguir a temperanga e a razao,
vendo que nao há nenhuma pena nisso e que se trata de um dever, afirma:
Após haver decidido ser continente e razoável,
vendo que nao se trata de algo difícil, pelo
contrario, um dever do homem, dispus-me de tal
maneira a seguir este modo de vida, que jamáis
caí na desordem em coisa alguma; e fazendo-o,
em pouco tempo, percebi que esta vida me
agradava e que em menos de um ano (o que
poderá parecer inacreditável para alguns) cureime de cada urna de minhas enfermidades
(Cornaro, 1616, p. 7, trad. nossa).
Apoiando-se na tradigao dos quatro elementos e das quatro qualidades, bem como
no sistema de correspondencias entre as ordens do macrocosmo da natureza e do
microcosmo do corpo humano, Cornaro repropoe a conservagao de urna certa regra
no comer e no beber que proporcionaria beneficios no dominio individual e em
organizagoes maiores como a familia, a cidade ou o reino.
Tais consideragoes sustentam a conclusao de que a vida regrada é o fundamento e
o meio mais certo de urna vida saudável e longa, além de ser a verdadeira e única
medicina para muitos males. Nota-se que, embora Cornaro proponha um método
para prolongagao da vida, ele nao recorre aos saberes alquímicos, astrológicos ou
mágicos que tradicionalmente visavam tal fim, conservando-se estritamente dentro
do género dos regimes e com isto atribuindo urna eficiencia ainda maior á dieta
sobria (9).
Trata-se, porém, de urna certa medida a ser encontrada e nao urna regra geral predeterminada. Cornaro professa um acento na individualidade, pouco comum até
entao. É a própria pessoa que pode conhecer através da sua experiencia quais sao
os alimentos e bebidas mais ou menos convenientes, pois somente esta conhece as
condigoes de sua natureza e suas propriedades ocultas:
Na verdade, o homem nao pode ser médico
perfeito de outrem além de si mesmo; e a razao é
porque cada um é que pode, com diversa
experiencia,
conhecer
sua
compleigao
perfeitamente e as suas propriedades mais
ocultas; e o que tal vinho, tal alimento provoca no
seu estómago. (...) Nao havendo, portanto,
melhor médico do que si mesmo, nem melhor
Memorándum 7, out/2004
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1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do
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medicina do que a vida ordenada (Cornaro, 1616,
p. 16, trad. nossa).
Vigarello (Cornaro, 1558/1991) sustenta que esta observagao íntima, e o
conseqüente saber intransferível e necessário sobre as disposigoes particulares, nao
existiam nos régimen sanitatis medievais. Sendo Cornaro pioneiro ou nao, nota-se
que esta medicina de si mesmo parece ter se tornado um ideal dos sáculos XVI e
XVII. Ela comparece, por exemplo, como objetivo de urna obra de Levinio Lemnio
publicada em Veneza nos anos de 1561 e 1564. O médico holandés fornece os
meios pelos quais o leitor possa investigar a si mesmo e medicar-se, finalidade
explicitada no título: Delta complessione del corpo humano Librí III da quali a
ciascuno sará agevole di conoscere perfettamente la qualitá del corpo suo, e i
movimenti dell'animo e II modo di conservan del tutto sani. Tal finalidade
comparece ainda no encerramento do discurso sobre como se manter bem na
velhice, de André du Laurens: Discours de la conservation de la vue, des maladies
melancholiques, des catarrhes, & de la vieillesse, de 1630. Nele, o médico de Henri
IV e professor de Montpellier afirma que é necessário que cada um aprenda a
conhecer o "seu natural" e aquilo que Ihe cai bem ou mal tornando-se senhor e
médico de si mesmo.
Exame e julgamento da própria natureza e exame e ordenagao do próprio desejo
equivalem-se no ponto de partida para a escolha da vida sobria no tratado de
Cornaro. O que é bastante compreensível em um texto que visa demonstrar os
efeitos de urna maneira de viver tradicionalmente concebida como hábito virtuoso
(10).
Os contra-argumentos aos lugares comuns evocados pelo autor e que poderiam
constituir-se em impedimentos á prática de seus conselhos sao todos eles voltados
para o dominio da vontade. Por exemplo, em resposta á opiniao de que é melhor
viver pouco, mas de acordó com o próprio apetite, do que muito, retendo e
forgando a natureza, ele vai dizer que os grandes livros da doutrina foram escritos
por homens maduros, que atingiram um estado em que o prazer da boca nao conta
tanto.
Ele insiste também em dar o próprio exemplo no sentido de provar que é possível
ter urna vida prazerosa em idade avangada, guardando a sobriedade. Afirma que
muito se deleita com conversagoes, leituras, viagens, etc., em suma, a vida que
leva é agradável e alegre: vida viva e nao morta.
A importancia da escolha da vida sobria dentre as experiencias possíveis do corpo e
da alma é enfatizada ao longo de seu livro em seu caráter de facilidade, prazer e
utilidade:
Esta é aquela sobriedade divina, grata a Deus,
amiga da natureza, filha da razao, irma da
virtude, companheira do viver de modo
temperante, modesta, gentil, contente com
pouco, regulada e distinta em suas operagoes
(Cornaro, 1616, p. 23, trad. nossa).
A sobriedade purga os sentidos, torna o corpo ágil, o entendimento vivo, a
memoria boa, os movimentos flexíveis e as agoes facéis. As potencias conservam
urna grande harmonía. Além de tudo, permite urna maior capacidade de seguir a
vida espiritual. Enfim, a própria sobriedade constitui-se em urna medicina da
disposigao da alma e do corpo:
Ó santíssima e inocentíssima Sobriedade, único
refresco da natureza, mae benigna da vida
humana: verdadeira medicina do ánimo bem
como do nosso corpo; quanto devem os homens
louvar-te e agradecer-te os teus corteses dons?
(Cornaro, 1616, p. 33, trad. nossa).
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1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do
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Temperarla: entre medicina e teología
Nao obstante a proibigáo das Constituigoes e regras do fundador Inácio de Loyola
de se ensinar medicina ñas escolas jesuítas, eles prestaram servigos médicos
durante as epidemias que assolaram a Europa no sáculo XVI e ñas missoes no
Oriente e na América, organizaram saberes e práticas sobre o corpo e seus males,
divulgaram meios de manter a saúde e apropriaram-se de conceitos e
procedimentos da arte médica para dirigir a vida no interior da Companhia (11).
Em particular, o comentario de Lessius ao Trattato della vita sobria segué os
mesmos principios e baseia-se nos mesmos pressupostos médicos e éticos de
Cornaro, porém apresenta os argumentos de maneira mais sistematizada, mais
explicativa e enriquecida de detalhes e exemplos. As comodidades apresentadas
por Cornaro sao modeladas e desenvolvidas por Lessius em urna exposigáo que as
divide ñas que concernem principalmente ao corpo e, logo em seguida, ñas que
dizem respeito mais á conservagáo da alma. Seu tratado é estruturado em tres
etapas. Primeiro, explica-se o que se entende por sobriedade no viver; em um
segundo momento, define-se por que via e meio se pode ordenar urna justa
medida; e enfim aborda-se quais sao os frutos e comodidades que déla se obtém.
Lessius justifica seu interesse pela medicina em geral e específicamente pelo
tratado de Cornaro, nao somente a partir da experiencia pessoal de cura de seus
males com o regime, mas através do argumento que o autoriza enquanto teólogo a
enveredar-se no campo da medicina. Trata-se do que considera ser um ponto em
comum entre as duas disciplinas: a temperanga como virtude de justa medida
operante tanto na ordem da alma como na ordem do corpo:
Mas esta materia nao deve ser considerada
distante da minha vocagao, a da Teología, e nao a
da Medicina. Pois, ainda que eu nao tenha
dedicado tempo ao estudo da medicina, esta
empresa nao é em nada afastada do objetivo de
um teólogo, sendo este o discurso da
Temperanga, que é urna virtude muito bela, e do
que ela consiste, de suas extremidades, da
medida de seu objeto, como se deve procurar
esta medida, e, por conclusao, quais os frutos que
déla se pode colher. (Lessius, 1623, pp. 527-8,
tradugao nossa).
A sobriedade no viver demarca urna regra no beber, no comer e em outros
excessos, de maneira que o homem beba ou coma de modo a nutrir o corpo e nao
perturbar a alma: "á medida que a constituigao natural o requer, sem impedir as
fungoes da alma. Isto chamaremos de regime de vida, vida regrada e temperante."
(Lessius, 1623, pp. 530, trad. nossa).
Nos monasterios, havia, desde muito, urna ordem estabelecida de distribuigao
parcimoniosa de alimentos e bebidas a todos os religiosos, o que determinava a
frugalidade necessária das refeigoes. Seguindo a doutrina aristotélico-tomista, as
indicagoes de Inácio de Loyola a propósito do respeito ao individuo e as orientagoes
previamente expendidas por Cornaro, Lessius adverte nao ser adequada urna regra
geral sem considerar as diferengas nos corpos, sobretudo no tamanho, na idade e
na compleigao dos mesmos. O que nao significa relegar a medida á própria
vontade, pois as paixoes podem levar á confusao entre necessidade e volúpia.
Portanto, nao sendo evidente, torna-se imprescindível descrever por quais meios se
pode buscara medida.
Urna maneira de verificar o limite do corpo é estar atento justamente as alteragoes
das disposigoes da alma. Deve-se medir o ánimo e a aptidáo para atividades tais
como a oragáo, meditagáo ou estudos das letras. Se estas se encontram
prejudicadas, certamente houve excesso no beber e no comer. Este, ao
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sobrecarregar a parte vegetativa da alma, impede o exercício de faculdades
superiores, como os sentidos, a imaginagao, a intelecgao e a memoria (12).
Lessius, porém, parece partir do principio de que nao basta conhecer as vantagens
da justa medida; colocá-la em prática pressupoe o dominio dos próprios apetites e
das faculdades da alma. A sétima regra, por exemplo, discorre sobre a dificuldade
na observancia de urna justa medida porque o apetite é, freqüentemente, incitado
pela imaginagao dos alimentos como prazerosos e agradáveis. Neste caso é preciso
corrigir a imaginagao, representando o alimento como abjeto, para temperar o
apetite excessivo com urna dose de repulsa. Bem como é oportuno nao se expor
aos perfumes ou á visao dos alimentos porque a presenga do objeto dispersa a
potencia e torna mais difícil a abstengao. Recomenda-se representar os alimentos
nao como agradáveis á visao, ao olfato e ao paladar, mas "mal cheirosos, sujos,
infectos e detestáveis como logo se tornarao" (Lessius, 1623, pp. 564-5, tradugao
nossa). Assim como se deve (conforme determinava Hipócrates no décimo quinto
aforismo) adaptar ao invernó e ao verao o uso dos alimentos, temperando frió e
calor, é também oportuno temperar o querer, através do controle da presenga real
ou representada dos objetos, para se atingir a sobriedade no viver (13).
Segundo o autor, sao grandes as comodidades que a sobriedade traz á alma e ao
corpo. Ela protegería o homem de quase todas as doengas, prevenindo e curando
ao temperar os humores e conservar sua boa proporgao qualitativa e quantitativa.
Além disso, a sobriedade tornaría o corpo leve, ágil, robusto e disposto em todos os
seus movimentos. Retirando pela dieta a abundancia de humores, o peso se vai, a
preguiga o deixa, e os condutores dos espíritos ficam livres e abertos. Esta mesma
dieta promovería urna boa digestao, engendraría um sangue louvável e déla
procedería urna quantidade de espíritos purificados, os quais tornam o corpo
vigoroso e disposto (14).
Lessius argumenta que a sobriedade também traz o mesmo número de
comodidades á alma. Em primeiro lugar, ela conserva os sentidos exteriores em
integridade e vigor. Ademáis, ela diminuí e suaviza grandemente as paixoes que
inquietam a alma, principalmente as da cólera e da melancolía, temperando toda
impetuosidade desordenada. O que, por si só, justificaría urna grande estima pela
sobriedade:
Pois é algo vergonhoso nao poder dominar a
cólera e estar sujeito á melancolía, as importunas
solicitagoes da fantasía e se deixar levar por um
cegó apetite da boca e da sensualidade (Lessius,
1623, p. 616, trad. nossa).
As paixoes desregradas seriam reagoes nao apenas desonestas e contrarias á
virtude, como também inimigas da saúde e improprias para pessoas honrosas. A
sobriedade remediaría fácilmente todos estes males por urna diminuigao ou
corregao dos humores que sao urna de suas causas. A relagao causal entre
humores e paixoes é explicada pelo autor através da evidencia de que aqueles que
estao repletos de humores biliosos sao coléricos e impacientes e que os
melancólicos sao tristes e medrosos. Ou ainda, se a melancolía esquenta-se no
cerebro, ela engendra a frenesia e a mania; se o humor é ácido e colado aos
tecidos do estómago, ele causa um apetite insaciável de comer; se o corpo está
repleto de sangue ardente, ele incita á sensualidade exagerada.
Lessius explica que os humores dominantes também definiriam o campo das
fantasías e dos sonhos que seguem as paixoes da alma. Ele aponta que o excesso
de um humor perverte a natural constituigao da fantasía e da apreensao. A bile, por
exemplo, que é muito amarga e grandemente contraria á natureza, faz com que a
fantasía apreenda os discursos e agoes dos outros como coisa que Ihe é contraria,
inimiga e injuriosa, e, como se trata de um humor ardente e impetuoso, ele faz
com que a apreensao seja impaciente e veemente e faz o homem perseguir a
vinganga. O humor melancólico, por sua vez, é pesado, frió, seco, mole, ácido, de
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cor negra e muito prejudicial ao coragao. Ele faz com que a fantasía apreenda todas
as coisas como Ihe sendo contrarias e inimigas, tristes e tenebrosas, mas por sua
frieza e seu entorpecimento levaría ao medo e á fuga. Já a pituita ou fleuma é fría e
úmida, o que converte a apreensao em algo prosternado, sem vigor, nem alegría.
Da mesma maneira que a bile torna os homens coléricos e turbulentos, audaciosos
e desagradáveis, a pituita faria com que nada Ihes contente, tornando-os
maledicentes e implicantes.
A dieta é um soberano remedio para a maior parte destes incómodos. Inácio de
Loyola, nos Exercícios Espirituais, já havia acatado a idéia de que a alimentagao
influencia os estados da alma. Segundo Lessius, por seu meio, os maus humores
diminuem, e, pouco a pouco, a natureza os consomé e os expulsa. Após a
intemperie do corpo se corrigir, o sangue purifica-se e tempera-se, sem nenhuma
mistura de cruezas, sem humores supérfluos. Tanto que se vé normalmente quanto
as pessoas sobrias sao aprazíveis, afáveis, corteses, alegres, acessíveis e
moderadas em todas as suas agóes.
As explicagóes de Lessius ratificam a idéia de que o suco de urna natureza benigna
torna benignos os afetos e costumes e o suco maligno torna os afetos e costumes
malignos e furiosos. O que nao significa que ele concorde com a idéia de que a
alma reduza-se ao temperamento do corpo. Lessius parece pressupor muito mais
do que urna coincidencia, urna interagao entre os dominios dos afetos e dos
humores.
Ele afirma que as paixoes também exercem urna alteragao nos próprios humores
por efeito de correspondencia. Pode-se constatar quando, por exemplo, a
imaginagao é retida longamente em urna injuria e, por causa disto, a emogao da ira
cresce e aquece os espíritos e o humor da bile por urna certa simpatía. O humor
biliar, estando aquecido, faz com que a fantasía apreenda as coisas com mais forga
e veeméncia e que qualquer injuria parega ainda muito maior do que é. O que
desencadeia um ciclo vicioso. A tristeza também pode oprimir o coragao por meio
de alguma simpatía e impedir sua livre fungao. Daí procede que o humor
melancólico queima-se e seus vapores nao podem ser dissipados. Tornando-se
ainda mais maligno, aumenta a tristeza, freqüentemente causa desespero e leva a
resolugóes desagradáveis.
Disto se depreende que para controlar a paixao da ira é aconselhável temperar o
fluxo de bile, da mesma forma que para manté-lo temperado é indicado distrair o
pensamento das injurias recebidas. De igual maneira, controla-se a paixao da
tristeza agindo sobre o fluxo melancólico e tempera-se a melancolía dissipando-se
as lembrangas de acontecimentos tristes (15). O que nao estaría em desacordó com
a distingao fixada pelo coimbrao Manuel Góis, no seu comentario ao Parva
Naturalia, de 1593, segundo a qual tais perturbagóes teriam duas causas: urna
formal; o impulso da alma, e outra material, a alteragao orgánica dos espíritos
vitáis.
Lessius nao pretende, com este tratado, elaborar nenhuma teoria especulativa
acerca da natureza da alma. A intersecgao entre medicina e teología explorada pelo
jesuíta restringe-se ao campo das fungóes atribuidas ao corpo e á alma e visa á
definigao do método de urna agao possível sobre estas fungóes. Por se tratar de
urna defesa de urna dieta sobria, é compreensível que realce os processos
desencadeados pela causa material dos movimentos das fungóes vegetativa e
sensitiva da alma. Usando a terminología aristotélica, pode-se dizer que se trata
dos acidentes, e nao da natureza substancial da alma, o que experimentaría
modificagóes na aplicagao do seu método de conservagao da saúde (16).
De qualquer modo, reduzir a alma ao temperamento do corpo seria incompatível,
nao somente com a psicología aristotélico-tomista, como também com as máximas
teologais, sobretudo com o pressuposto católico contra-reformado, bem ao gosto
jesuítico, de urna predisposigao natural virtualmente boa que se encontra em
estado de corrupgao, por causa do pecado original, mas que pode ser superado, por
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agao da graga e do uso correto do livre arbitrio. Isto através da aquisigao de um
hábito virtuoso, efetivado no exercício prolongado das boas obras, o que Lessius
propoe com o exercício da sobriedade, valendo-se também de argumentos do saber
médico, como a descrigao dos processos fisiológicos envolvidos.
A terceira comodidade que a sobriedade promoveria no campo anímico é a
conservagao da memoria, ao impedir o resfriamento do cerebro, causado pelo
excesso de humores desta qualidade. A quarta vantagem da sobriedade seria o
vigor do entendimento para pensar, raciocinar, inventar, julgar e urna especial
disposigao para receber as iluminagoes divinas. De onde procede que aqueles que
aderem á sobriedade sejam vigilantes, circunspetos, de bom conselho, possuam um
julgamento sadio e sejam excelentes ñas ciencias a que se dedicam, além de obter
um prazer indescritível ao dedicar-se á oragao, á meditagao e á contemplagao. Em
suma, o exercício das virtudes provenientes da fé é facilitado quando se segué um
regime sobrio de vida. O que se explica pelo fato de que a fé seria o intrínseco
primeiro e principal fundamento, por meio do qual todas as outras virtudes sao
sustentadas, e a temperanga seria o extrínseco e segundo fundamento, que afasta
os impedimentos á fé, ao liberar as fungoes da potencia intelectiva, tornando o
exercício das virtudes mais fácil e deleitável:
Pois todo o progresso espiritual depende do
intelecto e da fé que nele reside. Nao podemos
amar um bem e usufruí-lo, nem odiar algum mal,
e reiterar o odio por ele, se nao formos impelidos
e movidos pelo mesmo intelecto (...) Pois a
vontade se conforma fácilmente ao julgamento do
intelecto, quando este Ihe propoe algo (Lessius,
1623, p. 633, trad. nossa).
A sobriedade, pelo fato de ter o poder de suprimir os obstáculos que impedem as
livres agoes do entendimento, configura-se como segundo fundamento da
sabedoria e do progresso espiritual. Pois as coisas que causam o impedimento da
contemplagao sao a excessiva umidade do cerebro, a abundancia de vapores e
fumagas, a obstrugao dos seus condutores, a grande quantidade de sangue, o furor
dos espíritos provenientes do sangue e da bile, os vapores biliosos, ou a melancolía
adusta (queimada) que ganham o cerebro. Todos estes impedimentos poderiam ser
prevenidos, se nao remediados, com a ajuda da sobriedade. Ela ofereceria os meios
de se ter um "sangue bem temperado, e, conseqüentemente, os espíritos bem
purificados e um cerebro livre de humores supérfluos." (Lessius, 1630, p.640, trad.
nossa).
A quinta comodidade é que a sobriedade diminuiría a violencia da sensualidade e
forneceria urna soberana tranqüilidade ao corpo e á alma. Ela retrairia a causa
material, a causa impulsiva e a causa excitante envolvidas na atividade sexual. Pela
materia, entende-se a abundancia de esperma (criado pelo excesso de alimento, o
que é urna explicagao aristotélica); por causa impulsiva, o espirito animal que serve
á expulsao e por causa excitante, a imaginagao dos prazeres sexuais.
Enfim, para Lessius, a sobriedade é a verdadeira medicina do corpo e da alma,
enquanto disposigao de comportamento adquirida por meio da vontade e do hábito
que, a partir da ordenagao de causas materiais e formáis, promete o melhor
desempenho das fungoes corpóreas e anímicas necessárias, enquanto meios
concretos, para que o individuo possa ter urna vida, ao mesmo tempo, saudável,
virtuosa e satisfatória.
O regime de Lessius pressupoe a integragao das tres fungoes coordenadas da alma
aristotélica. É a alma vegetativa que está no centro de suas prescrigoes por ser
aquela que agiria diretamente nos processos da digestao. Mas, á medida que os
afetos também estao implicados na prática da sobriedade, a chamada alma
sensitiva é colocada em agao. Finalmente, por ser a temperanga um hábito racional
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é a razao que dirige todo o processo de conservagao da saúde do corpo e
integridade da alma.
Trata-se de um repertorio sistemático de conselhos práticos que, em harmonía com
a concepgao de alma defendida nos debates académicos por expoentes da
Companhia de Jesús e sem transgredir a proibigao inaciana de envolvimento com a
medicina, dialoga e contribuí com a tradigao dos regimes do corpo em plena
modernizagao. Ao ampliar e difundir o elogio á temperanga do Trattato delta vita
sobria, Lessius endossa nogoes e procedimentos da medicina preventiva, na qual se
inserem as dietas, sem, com isto, tornar-se médico e deixar de ser um teólogo, e
propoe um só regime para o corpo e a alma.
Referencias bibliográficas
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contraríe e quale al proposito: i como si apparecchiano: i di quelle se beveno
per Italia : e de sei cose non naturale : i le rególe per conservare la sanita
deli corpi umani. Son dubij notabilissimi nuovamente stampato. Venetia:
Bernardino Benalio.
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Zupanov, I. (2002). Drugs, health, bodies and souls in the tropics: medical
experiments in Sixteenth-century Portuguese India. The Iridian Economic
and a Social history Review. 39 (1), 1-43.
Notas
(1) Sobre a circulagao de escritos aristotélicos neste período ver F.E. Granz,
(1984). A bibliography ofAristotle editions: 1501-1600.
(2) Vide M. Gois (1593). Commentarii Conimbricensis Societatis Jesu, in Libros
Aristotelis qui Parva Naturalia appellantur; M. Gois (1583). Disputas do curso sobre
os livros da Moral da Ética a Nicomaco, de Aristóteles em que se contém alguns dos
principáis capítulos da Moral, e M. Gois (1602). Commentarii Conimbricensis
Societatis Jesu, in tres libros de Anima. Fundada por Inácio de Loyola, juntamente
com urna dezena de condiscípulos da Espanha, Franga e Savoia, que se diplomaram
pela Universidade de Paris, a Companhia de Jesús foi oficialmente reconhecida por
Paulo III em 1540. Em menos de um sáculo de existencia, eles implantaram na
maior parte da Europa, e mesmo fora déla, urna rede de estabelecimentos de
ensino, entre colegios e universidades, assim como observatorios astronómicos,
gabinetes de curiosidade, bibliotecas e casas de edigao, nos quais as ligoes de
Aristóteles ganharam múltiplos usos. C. H. Lohr (1995) discute as especificidades
do aristotelismo professado pela antiga Companhia de Jesús. Vide ainda C. B.
Schmitt (1992). Aristote et la Renaissance. M. Massimi tem dirigido diversas
pesquisas sobre as vertentes da chamada psicología jesuítica e sua influencia na
historia das idéias psicológicas no Brasil, vide, entre outros, M. Massimi e P.J.C.
Silva (Org.). (2001). Os olhos véem pelo coracao. Conhecimentos psicológicos das
paixoes na cultura luso-brasileira dos sáculos XVI e XVII.
(3) Para urna exposigao detalhada sobre os debates realizados pelos jesuítas,
interno e externamente á Companhia, sobre a definigao de alma e vida, suas
potencias, divisóes e unidade, ver D. Des Chene (2000). Life's form. Late
Aristotelian conceptions of the soul.
(4) L. Giard (1986 e 1993) articula os aspectos conceptuáis ao caráter institucional
destas querelas, examinando, com isto, a insergao dos jesuítas ñas discussóes
universitarias do período. Ver ainda A. Simmons, Jesuit Aristotelian Education: The
anima Commentaries. Em J. O'Malley (Org.). (1999). The Jesuits. Cultures,
Sciences, and the Arts, 1540-1773 (pp. 522-537).
(5) Léonard Lessius nasceu em Brecht, próximo a Anvers em 1554 e entrou no
noviciado em 1572. Lecionou filosofía durante sete anos em Douai e de 1585 a
1600, teología em Louvain, onde morreu em 1623. Seu Hygiasticon sev vera ratio
valetudinis bonae et vitae una cum sensuum, iudicii, et memoriae integritate ad
extremam senectutem conservandae teve varias tradugoes em francés, inglés,
holandés, italiano, polonés e castelhano entre os séculos XVII, XVIII e XIX. Este
estudo foi baseado na comparagao de urna edigao latina (1613) e de urna edigao
francesa de época (1623), além de duas edigoes do texto de Cornaro (1616) e
(1558/1991).
(6) G. Vigarello, em sua introdugao á edigao moderna do livro de Cornaro
(1558/1991), De la sobriété. Conseils pour vivre longtemps, o sitúa em urna
posigao inédita entre tradigao e modernidade, sobretudo no seu caráter metódico
acerca do procedimento concreto da sobriedade e a conservagao do corpo, em
comparagao aos textos medievais. Para um panorama geral e exame das diferentes
tradigoes de regimes de saúde na Antiguidade e na Idade Media, ver P. G. Sotres
(1995). Les régimes de santé. Em M. D. Grmek (Org.). Histoire de la pensée
medícale en Occident. Antiquité et Moyen Age (Vol. I, pp. 257-281). Ver ainda N.
Siraisi (1997). Time, body, food: The Parameters of Health. Em N. Siraisi, The
Clock and the Mirror. Girolamo Cardano and Renaissance Medicine (pp. 70-90).
Memorándum 7, out/2004
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Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 100
1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do
World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm
(7) De urna parte, a divulgagao de regimes na Italia pode integrar urna campanha
contra a crítica protestante á normativa dietética da Igreja romana. Vide M.
Montanari (2003). A fome e a abundancia: historia da alimentacao na Europa. Por
outro lado, conforme N. Siraisi (1997), o próprio hipocratismo renascentista
pressupoe urna conexao entre a mistura de calor e umidade no corpo e o
funcionamento das faculdades e potencias da alma. Conseqüentemente, um melhor
regime pode melhorar as condigoes da alma como do corpo. Por exemplo, menos
comida e mais exercícios fariam pessoas "lentas" mais saudáveis e mais prudentes
ou perceptivas. Pessoas já dotadas pela natureza com almas perceptivas poderiam
tornar-se ainda melhores com o correto regime; elas deveriam comer peixe ao
invés de carne, evitar esforgos violentos e reduzir sua massa corporal.
(8) Os modelos deste género de livros de civilidade sao O livro do Cortesáo (1528)
de Baldassare Castiglione e o Galateo dos Costumes (1558) de Giovanni della Casa,
aos quais A. Pécora (2001) aplica sua Máquina dos géneros (pp. 69-77 e pp. 7990).
(9) Sobre os saberes e práticas alquímicas vide A. M. Alfonso-Goldfarb (1987). Da
Alquimia a química. Um estudo sobre a passagem do pensamento mágico-vitalista
ao mecanismo.
(10) A sobriedade está baseada na temperanga, isto é, na virtude do justo meio
entre duas qualidades moráis, ideal difundido na cultura grega, sistematizado nos
tratados da ética de Aristóteles e reelaborado por Sao Tomás. O que concorda com
o ideal de equilibrio entre as qualidades físicas dos elementos, que serve de base
para a medicina hipocrático-galénica, ainda em prática nos sáculos XVI e XVII.
Concordancia que Lessius também revisita em chave de leitura católica contrareformada.
(11) Sobre a agao jesuíta ñas epidemias do século XVI, ver A. L. Martin (1996).
Plague? Jesuit accounts of the epidemic disease in the 16th Century. Sobre as
missoes médicas ver o exemplo dos trabalhos jesuítas na india, no mesmo século,
como médicos, organizadores e médicos de almas, em I. Zupanov (2002). Drugs,
health, bodies and souls in the tropics: Medical experiments in Sixteenth-century
Portuguese India. The Indian Economic and a Social history Review. 39, (1), 1-43.
Ver também M. Massimi (2000). La teoría dei temperamenti nei cataloghi dei
gesuiti in missioni in Brasile nei secoli XVI e XVII. Physis, 37 (1), 137-149, que
analisa o uso da categoría medicinal de complexio na selegao dos missionários
jesuítas.
(12) Lessius logo explica que o impedimento se deve á quantidade de vapores
enviados ao cerebro. Porque estes provém sobretudo dos alimentos que o
estómago recebeu, indica-se a sobriedade que corrige pouco a pouco este mau
hábito e leva a urna mediocridade na quantidade e na qualidade, o que poupa a
cabega dos tais vapores. O médico francés André du Laurens (1630) prescreve o
método de levantar-se da mesa ainda com fome como meio de chegar á
conveniente medida no comer e beber e também adverte para os efeitos maléficos
dos excessos alimentares na alma, explicando-os através da alteragao no calor
natural.
(13) Vide Hipócrates (1994), aforismo número 15, p. 440, trad. nossa: "No invernó
e na primavera, o ventre fica naturalmente mais quente, e o sonó mais longo; é
necessário, portanto, nestas estagoes, alimentar-se mais, já que, o calor ¡nato
estando mais abundante, necessita-se de maior quantidade de alimento, como
testemunham os jovens e os atletas."
(14) Por espirito entende-se, neste caso, a versao para spiritus, tradugao latina de
pneuma. Na fisiología galénica o pneuma é algo como um sopro; um elemento nem
físico, nem transcendente. É o pneuma que mediaría a agao da alma sobre
processos somáticos, interagindo com os diferentes tipos de humores: o pneuma
psychicon, produzido no cerebro, rege as atividades mentáis; o pneuma zotichon,
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
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Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467- 101
1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorándum, 7, 88-101. Retirado em / / , do
World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.ritm
gerado no coragao, age em órgaos e fungoes vitáis; e o pneuma physicon,
produzido no fígado, participa da nutrigao.
(15) A propósito das doengas melancólicas e da maneira de curá-las, A. du Laurens
(1630) também afirma que este mal pode ser gerado tanto pelo humor natural que
a causa como por síntoma ou acídente da imaginagao ou razao perturbada. Ele
lembra que nem todos os que sao de compleigao melancólica sao importunados
pela paixao da melancolía e que existem diferentes tipos do mal conforme as
diversas misturas cujo humor predominante é o melancólico. De qualquer forma,
para Laurens e para Lessius, a imaginagao pode seguir tanto a disposigao do corpo
quanto a maneira de viver e sao os instrumentos da alma que sao afetados pelos
excessos nao sua esséncia.
(16) Por substancia, designa-se aquilo que o ser é em si mesmo, o que pode ser
simples (Deus), ou composto (os demais seres). Acídente é o que decorre da
materia de que os entes sao compostos e aquilo que, embora pertenga
necessariamente a um ser, nao permite identificá-lo como sendo este e nao outro.
A análise destas duas categorías fazia parte das diferentes leituras de Aristóteles
empreendidas pelos jesuítas, como, por exemplo, o De communibus omnium rerum
naturalium principiis et affectionibus, de 1576, concebido por Benito Pereira do
Collegio Romano, ou as Disputationes metaphysicae de Francisco Suarez, professor
do Collegio Romano e posteriormente das universidades de Alcalá, Salamanca e
Coimbra. Vide C. H. Lohr (1995). Les jésuites et l'aristotélisme du XVIe siécle. Em
L. Giard (Org.). Les jésuites a la Renaissance. Systéme éducatif et production du
savoir (pp. 79-91).
Nota sobre o autor
Paulo José Carvalho da Silva é psicólogo, mestre em Historia da Ciencia pela PUCSP e doutor em Psicología pela USP, faz parte do corpo docente do Programa de
estudos pós-graduados em Historia da Ciencia da PUC-SP e leciona Historia da
Ciencia na Universidade Ibirapuera em Sao Paulo, Brasil. Contato:
[email protected]
Data de recebimento: 29/07/2004
Data de aceite: 17/10/2004
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm
Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 102
na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm
São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças:
iconografia e veneração na Época Moderna
Saint Michael, the Souls of Purgatory and the scales: iconography and
veneration in the Modern Epoch
Adalgisa Arantes Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Resumo
O estudo parte de fontes apócrifas, canônicas, visuais e devocionais a respeito da
trajetória histórica da iconografia e do culto ao Arcanjo Miguel e às Almas do
Purgatório. Retoma a contribuição bibliográfica de Flávio Gonçalves, Emile Mâle,
Michel e Gaby Vovelle, dentre outros estudiosos. Particular ênfase é dada ao
barroco luso-brasileiro, especialmente ao acervo produzido pelas irmandades leigas
nas Minas Gerais. A representação do Arcanjo evolui de formas integradas ao Juízo
Final até a sua individualização em soldado vistoso e delicado no Barroco e Rococó,
assumindo, então, forma de escultura autônoma nos altares. O culto às almas
atinge o espaço público através da portada em pedra sabão na Capela de São
Miguel e Almas de Ouro Preto. Finalmente, o estudo enfoca a racionalização em
curso no oitocentos, que levaria a simplificação escatológica dessa invocação.
Palavras-chave: escatologia; catolicismo devocional; irmandades; barroco; rococó
Abstract
The study begins by looking at apochryphal, canonical, visual and devotional
sources dealing with the historical and iconographic trajectory of the cults of the
Archangel Michael and of the Souls of Purgatory. The contributions to this theme by
Flávio Gonçalves, Emile Mâle and Michel and Gaby Vovelle, among other scholars,
are re-examined. Particular emphasis is placed on Luso-Brazilian baroque style,
especially the works produced by the lay brotherhoods in Minas Gerais. The
representation of the Archangel evolves from forms associated with the Final
Judgement to his portrayal, in the baroque and rococo styles, as a striking and
delicate soldier who assumes the form of an autonomous alter sculpture. The cult of
the Souls is displayed in public by way of the soapstone façade of the Chapel of
Saint Michael and the Souls in Ouro Preto. In concluding, the study focuses on the
rationalization in course during the nineteenth century which led to a scatological
simplification of this devotion.
Keywords: scatology; devotional catholicism; brotherhoods; Baroque; Rococo
1. Antecedentes do culto em Portugal
A devoção a São Miguel Arcanjo (1) suscitou a produção de objetos diversificados:
imagens, pinturas, moedas e medalhas, selos ou mesmo a representação integrada
às cenas do Juízo Final, existentes nas portadas do Românico, paredes e abóbadas
do Gótico e Maneirismo (Male, 1947). Fontes escritas confirmam a amplitude da
crença; no Purgatório, de Dante Alighieri, as almas recorrem à intercessão de São
Miguel (PURG. XIII, 49-51); nos Livros de Horas, literatura piedosa de grande
circulação até a época Moderna, o Arcanjo luta contra o demônio, salvando os
justos para a imortalidade (2). A Ibéria não se esquiva a esse pendor devocional,
finalizando encenações do teatro religioso, como o Auto da Ave Maria (de Antônio
Memorandum 7, out/2004
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Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 103
na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm
Prestes), com mensagens edificantes proferidas por São Miguel (Martins, 1969,
vol.2, p.10).
Em Coimbra, o Museu Machado de Castro conserva três esculturas em pedra, do
século XV, duas delas mesclam bem características medievais e renascentistas. Das
portadas medievais herdaram a presença de almas nas balanças. A instituição
possui ainda o retábulo de São Miguel, proveniente de Santa Clara (convento
velho), do escultor João de Ruão (1537) (Cf. Borges, 1980, p.51). Nessa
composição arquitetural, compartimentada em seis nichos distribuídos em dois
registros, São Miguel é representado na parte superior, com a tradicional balança
com almas. Naquele altar de Santa Clara, o Arcanjo perdeu as balanças, que,
seguindo o gosto da época, também teriam almas. O culto a São Miguel foi recuado
entre os portugueses, assumindo destaque a partir de D. João III que, por lhe ter
tido especial devoção, alcançou do papa, Adriano VI, autorização para que fossem
celebrados os ofícios de S. Miguel, na Capela Real (1522) (cf. Albuquerque, 1995).
Intitulado o Piedoso, o rei obteve a titularidade das Ordens Militares, cuja união à
Coroa foi adquirida da Cúria Romana que lhe rendeu o cargo de Mestre da Ordem
de Cristo. A devoção e o fato de ter sido o primeiro monarca titular da Ordem,
explica a presença do arcanjo no escudo.
A Capela de São Miguel, integrada aos prédios que compõem o conjunto da
Universidade de Coimbra, possui soberba portada manuelina, bem como decoração
interna bastante erudita, datada dos séculos XVII e XVIII, fato que ratifica a
presença particular desse culto no âmbito das elites governantes (3).
Em Portalegre, na Igreja da Sé, pode-se observar no retábulo, sob invocação da
Virgem do Carmo, a representação de São Miguel em um dos quatorze painéis de
feição maneirista, pintados por Luís de Morales, em 1616 (Serrão, 1987).
Concluindo este rol sumário de obras lusitanas anteriores ao Barroco, menciona-se
o retábulo de São Miguel no templo de Santo Antão, em Évora, feito por Jerônimo
Corte Real na segunda metade do quinhentos (Gonçalves, 1959). Face ao presente
acervo, observamos a veneração a São Miguel, a propósito bastante recuada entre
os portugueses, onde teve excelente contextualização histórica, para então se
alastrar no ultramar, inclusive sob os auspícios do Concílio Tridentino (1545/1563).
Motivado pela tradição e também pela reforma religiosa, o culto a São Miguel atinge
a cidade e o campo, atraindo os governantes, o clero regular, secular e os leigos
(4). Durante o seiscentos e setecentos, transforma-se em um culto dotado de
bases sociológicas ampliadas. Domina por completo as manifestações mais
populares, compartilhando, muitas vezes o mesmo altar com outra invocação,
notadamente das Almas do Purgatório, das quais é considerado o principal
defensor. Em Portugal, a representação do Arcanjo tornara-se freqüente nos
painéis existentes nos monumentos denominados alminhas. A exposição alusiva ao
culto às Almas do Purgatório (1993), organizada pelo Museu de Etnografia de Póvoa
do Varzim (Fig.I), divulgou através de imagens, telas e retábulos de feição bastante
popular a amplitude dessa devoção (5).
No Porto, a representação de São Miguel encontra-se no convento de Santa Clara,
nos Congregados, em São Pedro dos Clérigos e no forro da Casa do Cabido da Sé,
onde o pintor Pachini (1737) reservou-lhe o painel central, pois é considerado o
patrono daquele Cabido. Ladeando a Sé, tem-se a fonte entalhada por Nicolau
Nasoni (1736), através da qual a representação dupla em relevo e escultura de
Miguel atinge o espaço público, tal é a vitalidade da devoção entre os lusitanos.
Lisboa também possui acervo representativo: o templo dedicado a São Miguel em
Alfama, a imagem luxuosa com capacete, estandarte e asas de prata do Museu da
Sé; numa versão mais popular, o Miguel com almas nas balanças e na peanha da
igreja de Santa Madalena (6); esculturas e os azulejos do Museu de Madre de Deus,
duas imagens expostas no Museu de Arte Antiga, a excepcional pintura de autoria
de André Gonçalves (1685 - fi-1762) na tribuna de altar lateral de Menino de Deus
(7), dentre outras.
O presente arrolamento expande aquele iniciado por Flávio Gonçalves e então,
reunidos, fornecem um conjunto expressivo de objetos devocionais dedicados a São
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
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Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 104
na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm
Miguel no âmbito das manifestações culturais do colonizador (Gonçalves, 1959,
1963).
Salienta-se a presença da devoção na Espanha Andaluza e na Galícia, divulgada na
América, onde, a propósito, existem bons exemplos apelativos da proteção do
Arcanjo.
A partir da constatação da representatividade do acervo inventariado, tentamos
estabelecer tipos iconográficos que nos ajudariam a compreender os modelos
desenvolvidos nas Minas Gerais. Existem iconografias com duração prolongada,
outras bastante particularizadas no tempo e espaço, sem continuidade no Barroco
luso-brasileiro.
2. Iconografia do Arcanjo e fontes doutrinárias
São raras as referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja
passagens elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is
28, 17; Jó 3 1 , 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais
importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o demônio
(Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica, geralmente de feição
Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó.
Segundo a narrativa sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por
Miguel, perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar
nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3). Dentro
dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras bastante
recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande repetição
(MALE, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para as trevas, a cor de
satã seria negra (8).
Na arte medieval, o demônio foi representado sob forma hedionda e
essencialmente animal. GRABAR (1994) observou notável popularidade nessa
representação. Através dos avanços da racionalização, o artista do Renascimento
nem sempre o representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços
humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas
representações, com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio
antropomórfico e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível
encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma híbrida
entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas Altas do Mato
Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill, 2001).
No século XII, o santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade
estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse atributo
possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco ibero-americano.
Em muitos casos, essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra
passagem bíblica que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Referese ao significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis ut Deus,
Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em escudos da gramática
Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut Deus ou então, simplesmente as
iniciais.
O Românico e o Gótico difundiram as balanças (9), escatológicas por excelência,
freqüentes também nas representações renascentistas, maneiristas e barrocas.
Naquelas cenas alusivas ao Juízo Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas (Fig.
II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o demônio,
sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à esquerda, lado que
significa na linguagem religiosa a degradação (Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as
balanças, difundidas pelo sul da França, foram introduzidas durante o século XI
como resultado da conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel
de juiz post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa
interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não foi
dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas e estas circularam
abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino (1545-1563).
Memorandum 7, out/2004
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Dos textos não incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de Henoque (cerca
de 170), no qual se estabelece a relação entre o final dos tempos e São Miguel,
aceito como o principal dos arcanjos, o mediador entre Deus e os homens, o
misericordioso e magnânimo, o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As
poucas passagens escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a
dimensão escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não
bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 2 1 ; Dn 12, 1; Ap 20, 13, Ex 23, 20-21).
Na Visão de Paulo (anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no
momento do ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus
recebera a missão de conduziraquelas almas ao Paraíso (10). Por amor a Miguel, a
São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às almas um dia e uma noite de
refrigério, de suspensão das penas expiatórias, do sábado ao domingo, dia da
ressurreição (11). Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente
ao Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal
bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de inspiração
para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras edificantes proferidas
por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim sendo, o Apocalipse de Paulo,
dotado de linguagem bastante compreensível e de pormenores realistas, teve
sucesso extraordinário no sentimento religioso, como também na construção de
imagens relativas ao além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos.
Inúmeras concepções religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem
perfeita para simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações"
(Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera adequada
para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua balança justa, e
conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12). Apesar disso, a introdução da
balança nas representações referentes a Miguel só ocorreu a partir do século XI.
Acontece justamente quando se encontram em ascensão os diversos testemunhos
em favor de uma expiação temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros
acrescidos pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência
apostólica da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no
século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas, góticas,
renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo Final, a mentalidade
religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio a crença no Juízo particular
concomitante à morte. GRABAR destacou o descompasso da escultura monumental
medieval em relação ao pensamento teológico, demonstrando que ela muitas vezes
preocupava-se mais com o preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da
aparência, do que propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994,
363). O Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com
balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de soldado (Fig:
X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais alusivo à consumação
dos tempos, mas ao juízo individual.
A iconografia de Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo
(13). Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas
desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a
representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas paroquiais de
Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco, São João del Rei, Santa
Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará (Fig:V e VI). São ausentes
nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14). Somente em imagens
datáveis das primeiras décadas do século XVIII, portanto de fatura portuguesa ou
bem integrada à tradição ibérica, houve recorrência à representação das Almas do
Purgatório. A mesma consideração se aplica às obras do Rococó em Portugal,
notadamente às eruditas, inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 - fi-1642). A
posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e leves, balanças
vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de Reni influenciou bastante
o Barroco internacional.
Memorandum 7, out/2004
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Durante a restauração da imagem de São Miguel de Cachoeira do Brumado (distrito
de Mariana), realizada em 1993, o CECOR-UFMG localizou pequenos furos para a
fixação de pinos nos pratinhos daquelas balanças, entalhados em madeira. Este
caso explica a perda de almas que, por serem entalhadas à parte, ficavam mais
expostas às lesões. Esclarece também a presença desse atributo em meados do
setecentos nas Gerais.
Na arte escultórica das Minas Gerais, a representação de almas nas balanças teve
duração mais limitada que aquela verificada na pintura, prataria e talha em geral.
Neste caso, já não mais conotam um forte sentido escatológico, servindo,
sobretudo, como símbolo da Irmandade de São Miguel e Almas. Constitui um
simples decalque estético, resíduo ilustrativo de mudanças operadas no sentimento
religioso e na espiritualidade daquela época.
O imaginário cristão medieval reconheceu a existência de almas errantes, que
tiveram penitências mal cumpridas e estariam penando aqui e acolá, suplicando por
preces (15). O catolicismo pós-tridentino se esforçou para desbastar certos
aspectos da religiosidade popular, dentre eles encerrando as almas em processo de
purificação em uma única topografia do além, isto é, o Purgatório. As almas
continuavam a suscitar a sociabilidade, a piedade cristã, só que através de canais
formalizados. Não deviam se expor ostensivamente aos homens, causando-lhes
temores e embaraços. Nas Minas, a cultura lusitana bem como as tradições
populares chegam de uma forma fragmentada, em virtude das condições
específicas da colonização, acarretando o enfraquecimento precoce da "onipresença
dos mortos e sua coabitação com os viventes" (Vovelle, 1987, p. 199 ss).
Por mais que se tentasse transplantar para o Novo Mundo as instituições, costumes
e crenças próprias de sua cultura, o colonizador contava então com a grandeza do
território, os poucos núcleos urbanos, a diversidades das culturas e a ausência de
tradição cristã autóctone. Do ponto de vista europeu, um verdadeiro caos, uma
conspiração contra a preservação do imaginário católico e também dos valores da
religiosidade popular de matriz medieval.
Por sua vez, o território das Gerais foi desbravado apenas em fins do seiscentos,
com o estabelecimento das primeiras vilas em 1711. Portanto, entre a ocupação
litorânea do Brasil e o povoamento da Capitania, houve um hiato de quase 200
anos (Ramos, 2001). Nela foram os próprios leigos que, assentando-se socialmente
erigiram as irmandades (Boschi, 1986). Deste modo, percebe-se uma mutação
significativa na mentalidade religiosa de origem, no sentido de dificultar a coesão, a
solidariedade e o enraizamento das tradições.
Enquanto a Capitania das Minas se mantinha esquiva à edificação das alminhas, na
Ibéria elas se alastravam pelo meio urbano e rural do seiscentos e do setecentos.
Não bastasse a ausência daqueles oratórios com a invocação das almas, a própria
representação daquelas criaturas desapareceu precocemente; primeiro das
balanças, depois dos frontais de altares e de outros objetos de culto. Trata-se de
um motivo em extinção nas artes figurativas, ainda que a devoção persistisse, sem
o entusiasmo verificado no mundo ibérico. As Almas Santas eram veneradas,
contudo sem a vontade expressa de objetivar, através de obras visuais, esse culto
em particular. Por outro lado, não podemos afirmar que a devoção já se
encontrasse profundamente interiorizada, a ponto de não precisar se manifestar no
domínio concreto, pois os testamentos mineiros não atestam apreço expressivo às
benditas do Purgatório, a não ser nas primeiras décadas.
Um modelo iconográfico que obteve relativo sucesso nas obras refinadas, imitado
algumas vezes naquelas de confecção popular, representou São Miguel com gládio.
Em substituição à popular lança, o gládio inspirava-se na aparição do Arcanjo ao
papa Gregório em 815, ocasião em que o teria desembainhado banhado em sangue
(Vorágine, 1990, p. 622). Essa vertente apresenta a dupla gládio e escudo podendo
prescindir da presença do demônio em favor de base em forma de monte, pois
Miguel preferira sempre aparecer aos homens sobre montanhas (cf. Reau, 1996;
Attwater, 1991).
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Conforme a Visão de Paulo, os anjos brilham como sol, têm o nome de Deus
inscrito no peito, trazem a palma - símbolo da vitória contra o mal, e a cruz,
símbolo maior para o cristão (Erbetta, 1981, 362). Na obra La leyenda Dorada
(1260), São Miguel é relacionado não só com o Juízo Final, mas particularmente
com a figura de Cristo, que exercerá o papel de juiz (Vorágine, 1990, I I , 621).
Como o segundo mais importante nessa cena, o Arcanjo se apresentará diante do
último tribunal portando a cruz, os cravos, a lança e a coroa de espinhos (16).
Desde o Renascimento e o Maneirismo, a produção visual explorou bastante o liame
estabelecido entre Miguel, a Paixão de Cristo e a consumação dos tempos. Na tábua
quinhentista, anônima, do Museu de Arte Antiga de Lisboa, alusiva ao Julgamento
das Almas, Miguel traz a espada e uma longa haste, ambas com arremates
cruciformes. Na gravura maneirista de Jérôme de Wierx (Fig. VII) existente na
Biblioteca Nacional de Paris, de fins do quinhentos, Miguel é representado ao
centro, com o destaque que merece em face dos demais arcanjos, trazendo aos pés
um demônio animalesco, a palma à esquerda e a cruz abandeirada, à direita. Na
pintura de Santo Antão, em Évora, Corte Real o representa com a palma da vitória
e com o braço direito para o alto, encimado pela inscrição Quis ut Deus. E no
coroamento encontra-se um painel circular; nele estão justapostos o Pai e o Filho
crucificado (17).
A palma foi atributo de pouca difusão no barroco, enquanto a cruz assumiu
relevância enorme no conjunto das obras da época Moderna (18). Despojada ou
ornamentada, ela ocupou ostensivamente a paisagem, morros, encruzilhadas,
pontes e adros, destacando-se também como atributo iconográfico dos mais
concorridos. Pietro de Cortona (1596 - fi"1665) registrou essa aliança iconográfica,
que unifica o culto à Paixão, aos anjos e ao Arcanjo Miguel. Nela, figuras angélicas
de delicados gestos apresentam os martírios de Cristo, enquanto, no centro da
composição, Miguel - com manto revolto, asas amplas e penacho exuberante sustenta graciosamente o Santo Lenho. No catolicismo barroco, essa iconografia
desenvolveu-se particularmente, transformando-se em um programa, concorrendo
com as versões tradicionais, inspiradas nos modelos fornecidos por Gárgano, Mont
Saint Michel e portadas medievais. Entretanto, São Miguel conservou sua feição
escatológica. Com a cruz (abandeirada ou não) continuou a aludir à consumação
dos tempos, só que de um modo abrandado (19).
O atributo cruz, no entanto, não diz respeito apenas a uma projeção futura. Das
inúmeras aparições do Arcanjo consta uma, assaz interessante, que suscitou
expressiva produção artística. Segundo a tradição religiosa, São Francisco (1182
fi-1226) jejuava e orava em louvor a São Miguel no Monte Alverne, em setembro.
Neste mês inscrevem-se duas festas: a celebração do Arcanjo Miguel e a Exaltação
da Cruz. Na ocasião, Francisco meditava sobre a Paixão de Cristo e, por amor, quis
compartilhar as dores do Calvário, recebendo os estigmas da Paixão. Segundo o
padre Antônio Vieira e a literatura piedosa coeva, o anjo que imprimiu as chagas
em São Francisco fora Miguel (Vieira, 1646/1945). Por essa razão os franciscanos
veneram São Miguel e fizeram questão de criar, no século XII, uma iconografia
precisa para a cena da imposição dos estigmas.
No barroco luso-brasileiro, os terceiros franciscanos, cientes da tradição
iconográfica da ordem, repetem-na nos altares de seus templos e nas imagens que
saíam às ruas nos andores das "Chagas" e do "Amor Divino" por ocasião da
procissão de Quarta-feira de Cinzas (Campos, 2001). Com a iconografia citada,
sobressai o medalhão existente na portada magistral de São Francisco de Assis, de
Vila Rica (Cf. Trindade, 1951).
Tratamos aqui das variantes iconográficas básicas próprias da devoção ao Arcanjo
Miguel, o que não descarta, porém, a existência de outras possíveis combinações.
Observamos, entretanto, que o modelo em ascensão já nas primeiras décadas do
setecentos mineiro, diga-se de concepção bastante culta, exalta a veneração à
Paixão de Cristo.
3. A Devoção a São Miguel e Almas no âmbito da Capitania de Minas Gerais
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Em Os leigos e o poder, há relação com trinta e cinco irmandades sob a invocação
de São Miguel e Almas existentes na Capitania das Minas, montante que as coloca
em terceiro lugar, em termos de invocação institucionalizada, sobrepujada
primeiramente pelas irmandades do Rosário dos Pretos e, em segundo, pelas do
Santíssimo Sacramento (Boschi, 1986, 187-188). Não se trata de particularidade
das Gerais, visto que também em Portugal e na França da época Moderna houve
classificação semelhante das devoções, o que atesta, no plano da religiosidade, a
popularidade atingida por esse culto (20).
A devoção, recuada como vimos, foi reavivada com o Concílio Tridentino,
juntamente com os coros angélicos e Almas do Purgatório. No barroco lusobrasileiro foi ratificada pelas Constituiçoens Primeiras:
(...) encomendamos muito que tratem desta devoção das Confrarias; e de
servirem, e venerarem nellas aos Santos, principalmente á do Santíssimo, e do
nome de Jesus (esta não se desenvolve), á de N. Senhora, e das Almas do
Purgatório... porque estas Confrarias he bem as haja em todas as Igrejas (LX-869).
Levantamos cerca de 60 localidades mineiras que possuíram irmandades de São
Miguel e Almas ou então apenas a devoção, atestada pela existência de obras
artísticas, capelas ou denominação de sítios. Neste caso, são lugares em que o
culto não chegou a ser institucionalizado. O nosso estudo considera tanto a
existência legal da irmandade, como a presença de imagens em nichos e museus,
os retábulos com emblemas das almas sob a invocação do Glorioso Arcanjo.
A devoção a Miguel Arcanjo acompanhou a rota de ocupação do território das Minas
(21). Geralmente as igrejas que foram elevadas à sede de paróquia no primeiro
quartel do setecentos tinham as irmandades do Rosário dos Pretos, das Almas e
necessariamente do Santíssimo Sacramento. Por sua vez, na região de colonização
mais recente como, por exemplo, a Comarca do Serro do Frio, a devoção não
provocou o mesmo fervor, resultando em diminuto acervo (22).
A antigüidade e a relevância do culto às Almas são confirmadas pelo lugar
destacado de seu altar, sempre na proximidade do arco-cruzeiro, o primeiro do lado
da Epístola, fronteiro a outro sob invocação de Nossa Senhora (23). Nas localidades
que se conservaram indiferentes às novas devoções do oitocentos e do novecentos,
é possível constatar, ainda, a presença do altar e respectivo Arcanjo exatamente na
concepção original. Há casos em que a invocação deixa o altar primígeno,
distanciando-se da vizinhança da capela-mor, em favor de devoções mais atraentes
- Senhor dos Passos, Nossa Senhora das Dores, Coração de Jesus... ou, então, é
obrigado a dividir a tribuna com outro santo. Ironicamente, transforma-se em
inquilino no próprio altar. Face a esse processo, dia a dia em aceleração, o Arcanjo
foi perdendo devotos. Suas imagens, das requintadas às populares,
progressivamente vêm sendo deslocadas para museus e coleções particulares. A
devoção suscitou enorme acervo cultural que atrai a atenção dos comerciantes do
setor, vigilantes ao lento arrefecimento do culto. Com isso, tem-se a dispersão
gradativa dos bens culturais alusivos ao culto a São Miguel e Almas, que dificulta a
realização de um mapeamento mais completo.
Na Capitania, as irmandades de São Miguel foram, mormente constituídas por
brancos, embora no plano individual a veneração não fosse restrita. Observamos
documentalmente que, na maioria das vilas, na ausência das Misericórdias, as
irmandades do Glorioso Arcanjo alugavam seu esquife (tumba) a preços módicos ou
até mesmo faziam o funeral daqueles que não tinham recursos para isso (24).
Supomos que tal particularidade tenha sido a razão da veneração declarada dos
negros e pardos e daqueles que eram pobres em geral (25). Reau estabelece uma
conexão entre o culto a Miguel e a tumba da boa morte (talvez inspirado
remotamente na barca egípcia), motivo pelo qual o Arcanjo foi cultuado não só em
altares, templos e oratórios, mas também em cemitérios.
Por sua vez o período áureo das confrarias de São Miguel e Almas coincidiu no
plano político com o longo governo de D. João V (1707 - 1i i l750), qualificado pelo
Sumo Pontífice de fidelíssimo e pela historiografia de "o rei barroco" (Bebiano,
1987; D'Araújo, 1989). Declarada foi a sua inclinação para a religião, as artes em
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geral e especialmente em favor das Almas do Purgatório. Portanto, a propagação
das irmandades das Almas além de contar com o estímulo das autoridades
eclesiásticas, baseava-se na compreensão pessoal do rei. Era um ir e vir de
influências mútuas, enfim uma devoção compartilhada. Entende-se assim por que o
culto às Almas do Purgatório sensibiliza a Capitania, mormente durante o governo
joanino, sobretudo antes da longa doença que acometeu daquele protetor pródigo.
4. Os altares de São Miguel e Almas
No decorrer do dezoito e princípios do dezenove mineiros, os altares de São Miguel,
bem como das irmandades em geral, subordinavam-se aos modelos internacionais,
ainda que em ritmos diferenciados. Temos assim os retábulos do tipo NacionalPortuguês (1700-1730), D. João V ou Joanino (1730-1760) e o "Rococó" (17601840) sendo que a transição constituiu um processo lento, resultando soluções
mescladas e tardias (26).
Durante todo o período citado, houve elaboração de altares de São Miguel e Almas,
mas eles foram mais freqüentes nas primeiras décadas do setecentos. Contudo,
reconhecemos a existência de um conjunto expressivo de altares do Joanino tardio
(1745-1760) e do Rococó, geralmente decorrentes da substituição da talha
primitiva. Assim sendo, verificamos que a devoção não declina abruptamente, ao
contrário, resiste bem, atingindo com tranqüilidade o próprio oitocentos. Todavia,
em discreta retirada para favorecer invocações em propagação: Paixão de Cristo e
temas correlatos, Nossa Senhora da Boa Morte, São Francisco de Assis, Sagrados
Corações...
As irmandades de maior poder aquisitivo, conseguiam acompanhar as novidades
artísticas, alteravam, via de regra, os retábulos originais ou pelo menos as mesas
de altares que, modernizadas, diferenciam-se do conjunto escultórico respectivo. As
modificações aconteciam ao sabor do momento, sem obedecer a um programa
teológico ou iconográfico. É comum encontrar a mesa Rococó (ou mesmo sem estilo
definido) em retábulo do nacional-português ou joanino.
Face às inovações estilísticas, mesas de altares perderam seus emblemas
distintivos - balança e/ou alminhas, conseqüência da depuração do fundo
escatológico da iconografia original. O acervo ficou alterado em seu contexto
cultural, o qual suprimiu a maioria das balanças com almas, atributos recorrentes
nos primórdios da colonização, quando eram fortes as marcas de origem.
Observamos a difusão de balanças sem almas em frontais de mesa de altares, em
meio às modificações introduzidas, a partir de 1745, na talha joanina (27). Desde
então, e no Rococó em particular, tornam-se flagrantes como atributos as balanças
vazias, a cruz ou a ausência total de símbolos religiosos. As obras com a
representação de balança vazia superam numericamente aquelas dotadas de
alminhas, porque são mais recentes, pois correspondem ao redirecionamento da
mentalidade religiosa no sentido de uma racionalização. As criaturas do além vão
se retirando do mundo da representação, para serem veneradas sob uma forma
mais interiorizada e até arrefecida, doravante sem a mediação da imagem.
Verificamos o domínio recuado de uma iconografia mais solidária com a sorte das
benditas do purgatório, mais direta e espontânea, tal como encontramos em
Monsenhor Horta (antigo São Caetano), Cachoeira do Campo, Furquim, Itaverava,
Vila Rica (Conceição do Antônio Dias) e São João del Rei (28). (Fig:V e VI).
Em meados do XVIII mineiro, as transformações no âmbito da talha joanina
restringem seus elementos simbólicos em proveito do conjunto estético - enxuto,
estrutural, grandioso. Essa tendência em despojar a decoração do seu significado
religioso e desbastar os caprichos ornamentais, atinge o gosto das irmandades, e
notadamente os altares de almas feitos nesse período. Com essa concepção, dois
altares sobressaem pela monumentalidade, requinte e despojamento ornamental,
em relação aos modelos pretéritos - o da matriz de Catas Altas (Fig: IX) e o da Sé
de Mariana, ambos lado Epístola, ladeando o arco cruzeiro. Eles obedecem a um
pensamento prévio, não foram feitos para depois assimilarem invocacões em nichos
ou se modificarem paulatinamente, como é o caso do altar de Miguel da matriz do
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Pilar ouropretana, que atingiu esta iconografia a partir de intervenções em datas
diferentes.
As duas irmandades das Almas, a de Catas Altas (29) e a de Mariana (30) já se
encontravam constituídas em 1713 (31). Há descompasso entre a iconografia do
Arcanjo de Catas Altas, de concepção tradicional e de fatura elaborada - demônio
animalesco, balança com almas, estandarte com inscrição (Quis ut Deus) - e o altar
no qual se insere, bem mais simplificado, embora refinado (Coelho & Hill, 2001). Os
atributos da imagem são literalmente escatológicos. Enquanto este conteúdo é
abrandado, ou mais espiritualizado, na ornamentação do retábulo, encimado pelo
grande arranjo escultórico, no qual se tem a alegoria da Fé (uma jovem de olhos
vendados trazendo uma cruz à direita), na tribuna destaca-se o Senhor Bom Jesus
de Matosinhos, circundado por uma massa escultórica de raios luminosos; logo
abaixo no nicho uma imagem de Nossa Senhora das Dores, no espaço
convencionalmente destinado ao sacrário (32).
Trata-se de altar de fatura erudita, na forma e no conteúdo simbolizado, distante
daquelas mensagens diretas fornecidas pelas almas que, para suscitar a devoção,
mostravam as penas que padeciam. A fé é a virtude mais nobre, indispensável à
graça e à salvação eterna (Jó 8, 24). É cega, porque aquele que crê "não esquecerá
que os olhos hão de estar sempre vendados para o ma, fechados ao mundo que
despreza a lei de Deus" (33). Na cultura barroca, a cruz materializa sempre a
expulsão das trevas, proteção divina, aversão à idolatria e, sobretudo, a meditação
sobre a morte, entendida como portal para a eternidade dos justos. O Senhor do
Bom Jesus e sua mãe evocam a memória o drama do Calvário, tão relevado no
catolicismo barroco. O destaque reservado ao Cristo, em prejuízo do próprio
padroeiro, representa o acatamento à pastoral tridentina, pois sua imagem deve
preceder a todas outras (34). O catolicismo pós tridentino venera tanto a Paixão,
que santos oragos descem dos tronos, com modéstia, em direção ao sacrário do
próprio altar. De um modo geral, dia a dia vão desaparecendo aqueles sinais
evocativos de orações para as Almas do Purgatório, embora a mentalidade continue
voltada para a salvação eterna.
No altar da Sé de Mariana, certamente concluído em 1748, estão presentes o
Senhor Bom Jesus, das Dores, Madalena, São João, numa reconstituição do que
teria ocorrido no Monte Calvário. Essa tribuna é vedada por um relevo escultórico
excepcional, incomum nas Minas. Nela foram entalhados os emblemas
representativos da Paixão do Senhor: a jarra, as mãos de Pilatos, o martelo e a
cruz com a legenda SPQR - Senatus populusque romanus, iconografia comum aos
cruzeiros da Capitania. Na tampa do sacrário tem-se a representação do cordeiro
envolto numa estrutura raionada brilhante, para significar que ele, Cristo a vítima
expiatória, é a verdadeira luz do mundo (Jó 8, 12). No frontal do altar figura a
balança vazia, doravante sem as benditas almas do purgatório. A imagem de São
Miguel tem peanha lisa, levemente ondulada, balança vazia e, infelizmente, perdeu
o outro atributo que seria a cruz. Ao invés do apelo tradicional às almas, da
presença destacada de São Miguel no trono (tribuna), evoca-se a salvação através
dos méritos da Paixão de Cristo.
A obra mais recuada dessa versão iconográfica, localizada em altar de São Miguel,
é aquele da Matriz do Pilar (Vila Rica). Ali, a irmandade de São Miguel procedeu à
fatura de novo retábulo em 1733, o qual apresenta tribuna espaçosa que, no
transcorrer dos anos, foi recebendo figuras da Paixão: em 1736 colocaram o
Crucificado, em 1747 Nossa Senhora das Dores, depois a Madalena e o São João
(35). Um Calvário alcançado às custas do improviso, seguindo a pulsação do gosto
religioso.
O exemplo mais acabado da aliança iconográfica, Paixão e Arcanjo das Almas, ainda
que improvisado no transcurso de meio século, encontra-se no templo de São
Miguel, Santíssimos Corações e Senhor Bom Jesus de Matosinhos - três invocações
em um só monumento - situado no antigo Passa-dez (Cabeças), em VilaRica.
Trata-se da única obra monumental com iconografia das almas na Colônia. É uma
representação tardia (a do purgatório), mais sincronizada com a mentalidade da
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primeira metade do século XVIII. Momento alto da criação local, sintetiza, e
simultaneamente renova, representações dispersas e em franca extinção,
imortalizando-as através daquela portada, datada do último quartel do setecentos
(36). Uma grande obra que materializa e documenta, através da talha em pedra
sabão, o culto às almas (Campos, 1998).
Na singular portada da Capela de São Miguel ouropretana há representação das
almas no fogo do purgatório (37). Encimando a composição, há nicho ocupado por
São Miguel, com escudo e balanças desprovidas de almas. Através de análise
estilística, atribui-se o conjunto da portada a Antônio Francisco Lisboa e sua oficina,
que executaram obra provavelmente enquanto trabalhavam no frontispício de São
Francisco, também em Vila Rica. Apesar do tema representado e de certa
frontalidade do Arcanjo, a portada das Cabeças é posterior a 1778, ano em que se
lavrava e carregava pedra para aquele frontispício.
Em 1771, José Simões Borges (morador em Congonhas do Campo) legalizava a
doação de um terreno ao ermitão Manoel de Jesus Fortes para a edificação da
capela no Passa-dez (Vila Rica) (38). A invocação original era Santíssimos Corações
e São Miguel e Almas, comumente registrada nos documentos entre 1761-1792,
período de construção e ornamentação (incompleta) do templo (39). Contudo, é
interessante observar que a decoração interna do templo foi progressivamente
inclinando-se à devoção da Paixão, com a aquisição de imagens do Senhor do
Sepulcro, Senhor do Bom Jesus, das Dores, São João Evangelista. Talha de
confecção tardia, de um Rococó transitando para o clássico. Não bastasse, os
irmãos encomendaram uma via-crucis (interna) para a sacristia, envolvendo painéis
de Manoel da Costa Ataíde, relevos com mesas de altares e imagem do Senhor dos
Passos. A Capela transformou-se em templo de peregrinação, com estalagem para
os devotos (40). Aos poucos, o templo dos Santíssimos Corações e São Miguel e
Almas assemelhou-se ao santuário de Congonhas, com a diferença de que, em Vila
Rica, os Passos da Paixão são internos e naquele são ao ar livre, segundo a tradição
ibérica (Massara, 1988).
Há documento de 1867 em que os devotos do Senhor Bom Jesus instituem novo
compromisso: doravante "eles pretendem fazer reviver a antiga Irmandade de São
Miguel e Almas, erecta na dita capela", cuja veneração, constatamos, foi tão
preterida a favor daquela do Senhor do Bom Jesus, a ponto do Glorioso Arcanjo ser
convertido em inquilino em seu próprio templo (41). Tudo pela Paixão de Cristo, a
maior devoção do setecentos mineiro!
É interessante registrar que o santuário de Congonhas, feito às custas das esmolas
levantadas pelo ermitão Feliciano Mendes, funcionava como paradigma devocional
durante a segunda metade do setecentos. A partir de então, seguindo a motivação
portuguesa, o culto se impõe nas Gerais, preferindo-se os lugares altos e a
topografia irregular. Curiosamente, a construção e ornamentação de São Miguel e
Almas do bairro das Cabeças é contemporânea à fatura da via sacra escultórica de
Congonhas, cujas imagens foram confeccionadas entre 1796-1799. O templo
ouropretano, coincidentemente, localiza-se no topo de um sítio íngreme, embora
não o suficiente para comportar a presença de um escadório. Apresenta, no
entanto, condições adequadas para essa fusão de devoções, ou melhor, o domínio
do culto à Paixão. Dessa forma, o templo vilarriquenho amadurece um processo
iniciado nos próprios altares de São Miguel e Almas presentes nas igrejas matrizes.
O purgatório do Aleijadinho, tal como o de Dante, situa-se em uma montanha,
obtida através da suave ondulação da sobreporta. Nele, homens e mulheres, com
feições tranqüilas, purificam-se sem externalizar aflição ou sofrimento.
Diferentemente das representações costumeiras, o escultor descobre bastante o
peito de algumas almas, destacando ao centro uma figura masculina, representada
de corpo inteiro e nu, o que é raridade na iconografia existente na Capitania.
Nessa concepção, há intenção de diferenciar rigorosamente os tipos humanos
(masculino/feminino) ainda que não se distingam plenamente os tipos sociais, estes
mais freqüentes na iconografia portuguesa. Ainda assim, o Aleijadinho representou,
excepcionalmente, um frade (com o tonsura), como também a visão frontal de uma
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mulher com cabelos longos e soltos, seios expostos, denunciando a profissão e.ou
o pecado da luxúria. No purgatório de Vila Rica e nas demais representações das
Minas, não ocorrem sinais distintivos - coroa, tiara, mitra etc. Domina uma
iconografia avessa às hierarquias tradicionais, afinada assim com a realidade
colonial, particularmente a mineira, onde as condições específicas da colonização
contribuíram para a diluição precoce do modelo baseado em uma sociedade
estamental. Por sua vez, as almas não são dotadas da feição genericamente infantil
que caracteriza, via de regra, as obras populares. Aleijadinho as representou
adultas e, outrossim, com fisionomia particular, individualização, aliás, também
afirmada na pintura do cômodo lado epístola na matriz de São João del Rei (Fig.
VIII).
Mais uma vez constatamos que nas Minas, o cuidado de adquirir bens temporais
ocupava os homens não prevalecendo a visão infernalizada do purgatório (42).
Diante justamente desta particularidade, é coerente apresentar uma visão mais
complacente, conformada aos homens daquele tempo!
Encimando o purgatório em um nicho, registro separado e superior, São Miguel de
elaborada confecção, não perde a imponência, ao contrário dos Miguéis da talha
portuguesa, que descem até as chamas e inclinam-se muito, para, com as próprias
mãos, retirar dali as benditas. Essa convivência íntima de graus distintos de
santidade não ocorre na portada de Vila Rica, onde se materializa a nítida
separação entre as formas de existência no além, mais ou menos santificadas.
Reconhecemos que não constitui uma obra de fatura ingênua (composição
compacta, ausência de movimento, desproporção). Foi elaborada quando a
racionalização do pensamento tendia a apartar não só o mundo dos vivos daquele
dos mortos, bem como a estratificar rigorosamente o além dos eleitos. Assim, a
visão do purgatório não é infernalizada, mas também não conta com a participação,
em seu seio, da companhia direta dos intercessores, segundo o gosto de matriz
medieval. Eles se afastam progressivamente para o alto, para o imperscrutável!
A imagem de São Miguel, entalhada na pedra com certa frontalidade, porta balança
vazia de almas e escudo que se espraia, à moda de João Gomes Batista, seguindo
aquela forma divulgada nos rolos (filactério) dos profetas de Congonhas, o atributo
- o escudo - estranho à arte da comarca de Vila Rica, mais freqüente nos acervos
das comarcas do Rio das Mortes e Rio das Velhas.
5. A iconografia do Arcanjo Miguel nas Minas Gerais
Na arte colonial mineira Miguel foi representado de diversas maneiras. Em obras
cuja datação é mais recuada, traz uma bota pesada e austera. Em fins do primeiro
quartel do setecentos, o rude calçado vai dando lugar a uma sandália vazada
apenas nos dedos, com arremate trabalhado nas bordas, à maneira de Jérôme de
Wierx, demonstrando-se, assim, a intenção ornamental. No geral, as imagens
datáveis da primeira metade do século exibem as pernas bem recobertas por um
calçado fechado. A partir de então, desenvolve-se uma versão graciosa: a sandália
de tiras trançadas à moda Guido Reni, colocando à mostra os pés e as pernas do
Arcanjo. Desse modo, nas imagens do Rococó há preferência pela leveza, elegância
e sensualidade. São formas mais adequadas à vida urbana do que ao mundo rural.
Essa trajetória, igualmente verificada no acervo europeu, evidencia a passagem de
um modelo severo (Barroco) a outro mais arejado (Rococó). O academismo
oitocentista trataria de recuperar a austeridade, retornando às sandálias levemente
vazadas. A bota foi usual nos lugares de ocupação mais antiga, nos primeiros
núcleos de povoamento, decorrentes do desbravamento dos bandeirantes. Nas
versões mais populares continuou compacta. Denuncia o contato direto com o meio
natural. Contudo, não é específica da Capitania, e não foi colocada para expressar
as dificuldades enfrentadas diante do mundo natural. Por sua vez, a sandália
parcialmente vazada (nos pés) é coetânea com as povoações mais recentes, às
vezes decorrentes de um remanejamento interno das populações, quando já se tem
estabelecido o perfil urbano da Capitania. O calçado de São Miguel fornece,
portanto, indicações para a datação do acervo cultural e sobre a modernização
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superficial da peça, caso tenha sido "maquiada" conforme o gosto Rococó. Convém
salientar que, em geral, por obedecerem à tradição, nas obras mais rústicas, houve
a tendência a prolongar o uso da bota completamente fechada.
Outro atributo importante para a iconografia de Miguel é o demônio Freqüente nas
peças do primeiro terço do setecentos, desaparece rapidamente, para voltar à cena
com o academismo oitocentista. Nas concepções eruditas, é representado à
maneira antropomórfica; nas populares, apresenta forma assaz variável, mas
sempre tendendo para o animalesco. A vertente erudita foi a maior responsável
pela retirada do demônio da peanha das imagens, em favor do monte ou das
nuvens. Conforme a tradição religiosa, São Miguel manifestou-se aos homens em
solo montanhoso - Itália, França, Inglaterra... (Attwater, 1991; Reau, 1996).
Segundo a doutrina, Miguel tem uma missão escatológica, pois estará ao lado do
Senhor no Juízo Final, quando então trará arvorada a Santa Cruz. Os atributos
monte ou nuvens, que dominam a iconografia nas Gerais, aparecem durante as
primeiras décadas do setecentos, disputando, tanto nas obras de confecção mais
elaborada quanto naquelas ingênuas, com a representação do demônio. O popular
segue na esteira do erudito, imitando-o, divulgando-o e até degradando-o (Grabar,
1994, p. 396 ss). Em fins do primeiro terço do setecentos, o monte ou as nuvens,
às vezes indistinguíveis, se impõem definitivamente nas peanhas das imagens
eruditas. Embora haja imagens sobre nuvens ou montes, portando as botas
aludidas, a sandália mais austera ou plenamente vazada ajusta-se melhor ao novo
tipo iconográfico, desprovido de satã; mudança esta também com preferência pelas
composições graciosas e leves.
Na iconografia das Minas, a lança encontra-se presente desde tempos recuados. Às
vezes com sentido funcional - submeter o demônio - outras, meramente para
compor a imagem. Durante o primeiro quartel do setecentos mineiro, houve uma
tendência, inclusive já explorada anteriormente na arte medieval, a dar a forma
crucífera ao arremate da lança, a qual serve de suporte para uma bandeirola. Com
o tempo, esta lança cruciforme transforma-se em uma cruz bastante leve, mais
adequada para as peanhas compostas de nuvens ou montanha. Com isso
destacamos que muitas imagens carentes de atributos (à mão direita),
necessariamente não teriam a lança, sobretudo se a peanha é formada por
montanha ou nuvens. Portanto, a partir da terceira década do século XVIII, a
representação do Arcanjo passa a contar, de maneira progressiva, com a cruz, que
pode estar substituindo a lança ou gládio. Verificamos que composições do período
Rococó compartilham da afeição à Paixão de Cristo, generalizada nessa época na
religiosidade da Capitania, relevando o atributo cruz, ao invés da lança e do gládio.
A introdução da cruz nas imagens atinge a maior popularidade nas manifestações
do Rococó.
O gládio e o escudo, identificados no acervo proveniente da comarca do Rio das
Velhas e na do Rio das Mortes, são atributos mais raros, atingem o Rococó, mas de
maneira bastante particularizada.
Sem dúvida, o atributo mais costumeiro e duradouro, que não deixa esmaecer na
memória a face escatológica de São Miguel, é a balança, existente em todo o
período contemplado (sempre à mão esquerda). Ela acompanha a lança, o gládio, a
cruz, enfim é compatível com todos os atributos. Do Barroco ao Rococó, as
balançinhas constituem o atributo mais recorrente. No entanto, modifica-se no
transcorrer do setecentos mineiro: nos modelos mais recuados pode conter a
representação de almas, enquanto nas obras de meados do século e
particularmente do Rococó é rara tal presença. É como se essas criaturas fossem
rapidamente retiradas do mundo visível (artístico e religioso) e, então, alocadas
definitivamente lá, no purgatório!
No escoar do setecentos mineiro, as imagens alusivas a São Miguel perderam a
austeridade, tanto no que diz respeito à contenção do movimento na talha quanto
na policromia. As feições assumem a expressão doce, angélica, meio afeminada. Os
capacetes tornam-se delicados, sofisticados, cada vez mais distantes da rígida
forma inicial. A composição obedece à construção em diagonais, possibilitando a
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movimentação das massas, revelada em volumoso e revolto manto e vestimenta
pouco militar, dotada de suave galanteria!
Minas Gerais deixou vasto acervo iconográfico alusivo a São Miguel, dia a dia em
processo de descontextualização. Inicialmente, bastante marcado pela influência
ibérica, porém, precocemente criou opções próprias, voltadas para a depuração
escatológica, - supressão das almas -, e notadamente para o culto à Paixão. Na
última grande obra em homenagem a Miguel, isto é, a pintura da nave da igreja
paroquial de Arcângelo de Joaquim José da Natividade (XIX), ele ajoelha-se diante
da Santíssima Trindade, despojando-se do gládio e da cruz abandeirada. Trata-se
de uma nova época, mais afirmativa da vida terrena e despreocupada em relação
ao além!
SIGLAS
ACC:
Arquivo da Casa dos Contos de Ouro Preto
ACMBH:
Arquivo da Cúria Metropolitana de Belo Horizonte
AHMI:
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (Ouro Preto)
AEAM:
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana
APM:
Arquivo Público Mineiro (Belo Horizonte)
APNSC:
Arquivo Paroquial de N. Sra. da Conceição (Ouro Preto)
APNSP:
Arquivo Paroquial de N. Sra. do Pilar (Ouro Preto)
APSAT
Arquivo Paroquial de Santo Antônio (Tiradentes)
CECOR:
Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis
(Belo Horizonte)
IEPHA
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico
IFAC:
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da UFOP (Ouro Preto)
IPHAN:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (escritório de
Belo Horizonte)
IBMI:
Inventário de Bens Móveis e Integrados feito pelo IPHAN
IEPHA/MG:
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais
MMC: Museu Machado de Castro, Coimbra
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Notas
(1) A difusão do culto a São Miguel relaciona-se às suas aparições, das quais
destacam-se as de 492 sobre o Monte Gárgano, em Siponto (Itália), a de 710 em
Avranches (França) e aquela feita ao papa Gregório no mausoléu de Adriano, em
815 Nesses sítios foram construídas capelas, centros de peregrinação que
propagaram o culto (Cf. Vorágine, 1990; Reau, 1996).
(2) "Très Riches Heures du Duc de Berry" e "Heures de Rohan". Cf. Martins, 1969,
vol. 2, pp. 244-246.
(3) A Capela de São Miguel "foi uma das extensões manuelinas aos paços antigos",
segundo risco de Marcos Pires, falecido em 1521 [Cf. Dias & Gonçalves, 1990, pp.
49-61.
(4) O culto a São Miguel foi uma tradição entre as ordens de São Francisco de Assis
e os Mínimos de São Francisco de Paula (Cf. Male, 1984, ps. 418 e 422). Já na
própria Idade Média, tanto na França quanto na Inglaterra, sua efígie era colocada
em medalhinhas que os devotos carregavam ao pescoço (Cf. Bloch, 1993, pp. 106
e201).
(5) O acervo exibido pela exposição teve alcance regional. Através dela observamos
uma nítida distinção entre a confecção desse barroco mais provinciano e aquele
presente nos grandes centros (Lisboa, Coimbra, Porto), de inclinação erudita (no
tocante aos altares: maiores, com fingimento de mármore, uso de painéis na
tribuna, à moda italiana, em detrimento do trabalho escultórico, tratamento
refinado...).
(6) Na Capela de São Tiago (Coimbra), encontramos imagem de São Miguel com
iconografia idêntica.
(7) André Gonçalves tem enorme importância na arte portuguesa do setecentos
(Cf. Machado, 1995).
(8) O Arcanjo teria aparecido em Gárgano em 490, 492, 493 e 1656 cf. Pestana,
1997.
(9) Notre Dame (Chartres), Saint-Etienne (Bourges), catedral d'Autum, Santa Fé
(Conques), Notre Dame (Paris), Saint-Trophine (Arles) (Cf. Male, 1947).
(10) "Anche nell' offertorio alle messe dei defunti compito di Michele è condurre le
anime in paradiso" (Cf. Erbetta, 1981, p. 364).
(11) idem, p. 378. Trata-se de obra traduzida durante a Idade Média em inúmeras
línguas, que teve influência sobre a literatura alusiva ao além em geral e ao
purgatório em particular, pois concebe a existência de dois infernos, o inferior para
os que pecaram mortalmente (I Cor 6, 9-10), e o superior - futuro purgatório (Cf.
Erbetta, 1981, vol. 3, pp. 376-378).
(12) O oratoriano Manoel BERNARDES recorre à passagem de Isaías (Is 28, 17), às
balanças como símbolos da eqüidade da justiça divina: "Farey juizo por pezos, e
justiça por medida. Por esta razão se pinta já por antigo uso da Igreja o Archanjo
S. Miguel com balanças na mão, a quem pertence por especial officio appresentar
as almas no Tribunal Divino, e os pezos destas balanças sem dúvida são o amor..."
(Cf. Bernardes, 1946, vol. 1, p. 229).
(13) Há obras alusivas ao Juízo Final no México, Peru e Bolívia, datadas dos séculos
XVIII e XIX, nas quais o Arcanjo Miguel é representado com balanças dotadas de
almas, segundo a moda gótica, só que doravante, ao invés da túnica, porta a
armadura de soldado (Cf. Sebastián, s.d., pp. 232 e 263).
(14) Recorremos ao IBMI do IPHAN e ao arquivo fotográfico do CECOR/UFMG, o
qual já restaurou inúmeras peças com a temática em questão, complementando
aquelas informações com levantamentos de campo.
(15) Segundo São Patrício, algumas almas passavam seu purgatório em um
determinado lugar da terra [Cf. Vorágine. 1990, vol. 2, pp. 704-717), cit. p. 709).
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
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Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 118
na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web:
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(16) "El es el abanderado de Cristo en el ejército de los Santos Ángeles Y él será
quien en cuanto el Señor le dé la orden, matará valientemente al Anticristo en la
cima del monte Olivete, y quien dará la voz para que los muertos resuciten, y quien
el día del juicio presentará ante el tribunal la Cruz, los cravos, la lanza, y la corona
de espinas" (Vorágine, 1990, vol. 2, p. 621).
(17) São Miguel com o atributo cruz coberta com guião (bandeirola) é freqüente na
iconografia portuguesa. Flávio Gonçalves faz menção ao "Juízo Final" da Sé de
Portalegre e da igreja paroquial de São Lourenço, na mesma cidade: "S. Miguel
está também de pé sobre as nuvens, de asas abertas, o manto a cair-lhe dos
ombros. Empunha na mão direita o habitual guião com a cruz vermelha. Em baixo,
no lume, debatem-se os corpos dos condenados, incluindo vários frades. Das
nuvens, dois anjos acercam-se e livram as almas" (Vorágine, 1990, vol. 2, p. 23).
(18) Bardi divulga uma imagem mineira, de coleção particular, absolutamente
excepcional e popular, que representa São Miguel submetendo o demônio com a
lança, trazendo à esquerda um enorme galho de coqueiro (palma) invertido, que
vai da cabeça do Arcanjo às pernas de satã [Cf. BARDI, Pietro Maria. (1981).
História da Arte Brasileira].
(19) Manoel Bernardes (1946, p. 150) vaticinou: "A todos capitanearâ o Principe S.
Miguel, trazendo em seus braços arvorado aquelle proprio madeyro da Cruz, em
que o Filho de Deos pendurou, com seus sagrados membros, a salvação do mundo"
(20) Em estudo voltado para uma micro-região portuguesa, envolvendo 32
freguesias, constata-se a seguinte classificação: 24 irmandades do Santíssimo, 23
do Rosário, 21 das Almas do Purgatório (Pereira, 1973). A mesma ordenação foi
encontrada para o caso francês: "Il y a presque partout des autels et des chapelles
des Ames du Purgatoire, mais leur succès est inégal suivant les lieux" (Vovelle,
1978, p.160).
(21) Cf. rota dos primitivos colonizadores. Em Trindade, 1928, pp. 15-36.
(22) Acreditamos que a tese "A Terceira devoção do setecentos mineiro; o culto a
São Miguel e Almas". São Paulo: História USP, 1994, tenha colaborado para a
introdução de rico acervo dessa iconografia na exposição Bienal 500 (cf. Oliveira,
2000).
(23) Observamos a presente disposição em Cachoeira do Brumado, Camargos,
Catas Altas do Mato Dentro, Dores do Turvo, Furquim, Mariana, Monsenhor Horta,
Ouro Branco, Ouro Preto (Matriz de Antônio Dias), Padre Viegas, Prados, Santa Rita
Durão, Tiradentes etc.
(24) Até 1739 São Miguel e Almas do Pilar (Vila Rica) possuía um esquife para anjo,
um de "pano rico" para os próprios confrades, outro de "pano pobre" destinado ao
serviço caridoso, quando "empresta" definitivamente as tumbas à Misericórdia, com
a condição deles retornarem à matriz nos dias de funeral dos irmãos (cf. AEPNSP,
Termos da irmandade de São Miguel e Almas 1712-1818: lançamentos de
05/10/1713 relativo ao enterro de pobres, de 29/10/1739 sobre as condições do
empréstimo dos esquifes). A partir daí não constaram as referidas tumbas nos
inventários de alfaias da irmandade.
(25) Raramente essas irmandades se abriram aos negros e mulatos, mas
encontramos exceções; as Almas da Sé de Mariana, especialmente no ano de 1778
(Cf. AEAM, Missas, Oficios na Cathedral... 1751 - 1791, fl. 105), e a de Santa Rita
Durão (AEAM, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas de Santa Rita
Durão, 1765, cap. 18).
(26) Cf. as variações dessa tipologia básica: Oliveira, (1984/5); Cf. altares de
almas Vovelle & Vovelle, 1969.
(27) Nos anos 40 a talha joanina sofre simplificação que reduz os "excessos
ornamentais" e favorece a "estrutura arquitetônica e monumental dos retábulos"
(Oliveira, 1984/5, p. 20).
(28) A maioria do acervo referido é de transição do nacional para o joanino, e se
situa entre 1725-1730: o altar de Cachoeira do Campo, com graciosa alma feminina
no arremate do retábulo, já existia em 1725. (Cf. Martins, 1974, v. 2, p. 37). Da
mesma época, o altar de Miguel na Matriz de São Caetano, cujo livro de
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compromisso é de 1722 (AHMI), possui imagem de Miguel, sem dúvida feita pelo
mesmo escultor daquela de Furquim, tal a semelhança entre ambas. O retábulo da
matriz de São João del Rei é joanino, transitando para o Rococó.
(29) A irmandade de São Miguel de Catas Altas é mais antiga que a de Nossa
Senhora da Conceição (padroeira), isto é, anterior a 1713 com compromisso
aprovado em 1716, motivo pelo qual vivia disputando por precedência nas
procissões e enterros (Cf. AEAM, Livro de Visitas e fábrica da matriz de Catas Altas
do Mato Dentro, 1727-1831, f. 26).
(30) Petição alusiva à Vila do Ribeirão do Carmo (Mariana - 1713), afirma a
existência coeva das irmandades do Santíssimo, Nossa Senhora da Conceição e
"Almas Santas", a qual naquele tempo já esmolava às segundas-feiras e celebrava
oo Finados (Cf. Trindade, 1945, pp. 139-141).
(31) A imagem do Arcanjo geralmente exigia reparos nas partes sensíveis - mãos,
dedos, asas, penacho - recebendo nova encarnação, mas não era comum às
irmandades disporem da imagem de seu padroeiro. Os devotos são conservadores
em relação às suas imagens de culto, que, carregadas nos anos, também o são na
sacralidade. O mesmo não se aplica aos altares, constantemente renovados. Catas
Altas teve duas imagens: uma pequena e antiga novamente estofada em 1748,
quando recebeu ares novos por Manoel Rabelo, já desaparecida e a atual, atribuída
a Francisco Vieira Servas. Outro exemplo é Arcanjo da Matriz do Pilar (Vila Rica),
feita em 1714 e encarnada pela segunda vez em 1733, quando da fatura do
segundo altar. Vj. lançamento de 03-05-1714: "Por ouro que se pagou de feitio do
Anjo S. Miguel..." 65/oitavas e meia - fl. 126v; no tocante ao segundo estofamento
cf. o termo de 6-3-1733 fl. 76, AEPNSP, Termos da Irmandade de São Miguel e
Almas da Matriz do Pilar -1712-1838, enumeração irregular).
(32) O altar de Catas Altas é grandioso, ultrapassando a cimalha real, motivo de
disputa no Juízo eclesiástico movida pelo Santíssimo Sacramento (Cf. Bazin, 1983,
v. 2, pp. 54-59). Seu risco e confecção (1744-1750) se devem a Francisco Antônio
Lisboa, quase homônimo de Aleijadinho, cuja obra foi avaliada pelo mestre
entalhador Francisco Xavier de Brito. (Cf. Martins, 1974, v. 2, pp. 25, 100, 130,
151, 379 e 388).
(33) No lavabo da sacristia de São Francisco em Vila Rica encontra-se outra bela
alegoria da fé, agora através da representação de um monge vendado (Cf. Röwer,
1943).
(34) "Manda o Sagrado Concilio Tridentino q. nas Igrejas se ponhão as Imagens de
Christo Senhor Nosso, de sua Sagrada Cruz, da Virgem Maria Nossa Senhora, e dos
outros santos..." (XX-696); "E no que toca á preferencia dos lugares, que entre si
devem ter nos altares, declaramos q, sempre as Imagens de Christo nosso Senhor
devem preceder a todas, e estar no melhor lugar; e logo as de Virgem Nossa
Senhora, e depois de S. Pedro Principe dos Apostolos: e que a do Patrão, e Titular
da Igreja terá o primeiro e melhor lugar, quando no mesmo Altar não estiverem
Imagens de Christo Nosso Senhor, ou da Virgem..." (XX-699; sobre a cruz cf.
também XXI-702-703 em Constituiçoens Primeiras ....).
(35) O segundo altar (o primeiro era de 1712) foi ajustado com o mestre
entalhador Manoel de Brito em termo de 10-08-1733, dourado em 1741 (termo de
8 de maio); o Cristo foi esculpido por Antônio Rodrigues Quaresma (fl. 128); a da
Virgem "com diadema e espadinha de prata" data de 1747-1748 (fl. 132) (AEPNSP,
Livro de termos da irmandade de São Miguel e Almas da matriz do Pilar 1712-1838,
enumeração irregular). Atualmente o altar tem apenas o Crucificado na tribuna e o
São Miguel encimando o sacrário.
(36) Agradecemos a Jeaneth Xavier de Araújo a transcrição de APM, Receitas e
despesas da Capela das Almas - 1778-1813, DF 2137, outrora transcrito pelo
IPHAN, aproveitado por Bazin, 1983, pp. 86-87. Martins, v . 1 , pp. 307-348.
(37) Portada atribuída a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, feita no último
quartel do XVIII. Contudo, o livro de Receitas não faz menção a pagamento ao
Aleijadinho.
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(38) A Capela dos Santíssimos Corações e São Miguel e Almas do Alto das Cabeças
pertencente à freguesia do Pilar é decorrente de doação, com a exigência de
fundação de missa (Cf. AEPNSP, "Patrimonio da Capela do Smo. Corassam de
Jesus, São Miguel do Alto das Cabeças (...) da Matriz do Oiro Preto". 1766 (...).
(39) Manuel de Jesus Fortes fez a ermida primitiva e, em 1772, pediu licença para
esmolar reedificar a ermida em Capela; há petição de 17/8/1789, suplicando
licença para se continuar a esmolar por mais três anos, "para o fim de se finalisar
aquela obra. E findo ela, se aplicar o que se tirar para o sufrágio das Almas do
Purgatório". Os devotos afirmam "como é obra feita de esmolas, a não tem ainda
de todo concluída (...) a querem concluir de todo o necessário, paramentando-a e
ornando-a com a devida decência de todo o preciso" (Cf. Revista do APM, XXVI
(1975): 224-225, doc. 190, 189 e 190).
(40) Dentro do patrimônio da capela incluem-se casas fronteiras, coladas umas as
outras "em correnteza", cuja construção provável deve ser a primeira metade do
oitocentos. Em 1789, os devotos já denominavam o templo de "Santíssimos
Corações de Jesus, Maria, José, Senhor de Matozinhos, São Miguel e Almas".
(41) O Compromisso de 1867 (AEPNSP) foi aprovado com a seguinte ressalva "mas
ficando-se esta Irmandade com o titulo unicamente do Senhor Bom Jesus de
Mattosinhos da Capela das Cabeças do Ouro Preto, e não de S. Miguel e Almas,
para evitar-se confusões e equivocos", ao nosso ver para não se confundi-la com
aquela existente no recinto paroquial do Pilar, desde 1712 (IPHAN, "Registro do
Compromisso da Irmandade de S. Miguel e Almas, erecta na Capella do Senhor
Bom Jesus de Mattozinhos de Ouro Preto" (transc. do Registro de Provisões e
Títulos da Câmara Municipal, 1846-95, n° 119 - pasta Capela de São Miguel e
Almas, Ouro Preto).
(42) Não encontramos aquela demonização vista para o caso europeu (cf.
Delumeau, 1981).
Anexo Imagens:
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Figura I: Exposição sobre Culto às Almas realizada em Póvoa do Varzim, Portugal.
Fotografia: Adalgisa Arantes Campos.
Figura I I : O Juízo Final Weyden Rogier van Der
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Figura I I I : O Juízo Final Weyden Rogier van Der.
Detalhe São Miguel e almas.
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Figura IV: Catedral de Notre-Dame; Paris. Portada ocidental
Fotografia: Achim Bednorz IN: L'arte gotica. Milano: Konemann, 2000 p.311
Figura V: Matriz do Pilar São João Del Rei (São Miguel e almas)
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Fotografia: Rangel Cerceau
Figura VI: Matriz do Pilar São João Del Rei. Detalhe São Miguel e Almas
Fotografia: Rangel Cerceau
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Figura VII: Biblioteca Nacional de Paris, Jérôme Wierx.
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Figura VIII: São João del Rei, forro do cômodo lado epístola, Matriz do pilar
Fotografia: Adalgisa Arantes Campos
Figura IX: Planta da Matriz de Catas Altas
Cláudio Magalhães- IPHAN
Alves, C.M. (1993/6). Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas:
notas à margem de um projeto de restauração. Barroco, 17 : 221-225.
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Campos, A. A. (2004). São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia e veneração 127
na Época Moderna. Memorandum, 7, 102-127. Retirado em / / , do World Wide Web:
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Figura X: Prado, altar de São Miguel e Almas, Io lado Epístola.
Fotografia: Adalgisa Arantes Campos
Data de recebimento: 19/08/2004
Data de aceite: 06/10/2004
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Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 128
Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web:
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Representares do conceito de inconsciente na obra
de Machado de Assis
Representations of the concept of unconscious in the workmanship of
Machado de Assis
Sávio Passafaro Peres
Marina Massimi
Universidade de Sao Paulo
Brasil
Resumo
Este ensaio procura reconhecer e avahar as idéias psicológicas que circularam no
Brasil no final do sáculo XIX, em sua representagáo na obra machadiana, tomada
como documento histórico e como veículo transmissor de idéias. Para isso, foram
examinadas as ocorréncias do conceito de inconsciente na obra de Machado de
Assis em tres diferentes ámbitos. Primeiro, na terminología empregada pelo autor.
Segundo, nos discursos expositivos dos narradores machadianos. Terceiro, na
descrigáo dos estados subjetivos das personagens. Depois de feitas as análises, as
idéias e nogoes encontradas foram confrontadas com algumas das principáis
formulagoes acerca do conceito de inconsciente em outros autores de sua época.
Palavras-chave: historia da psicología; inconsciente; literatura.
Abstract
This essay intends to recognize and to evalúate the psychological ideas that
circulated in Brazil during the 19th century and the way they are represented in the
workmanship of Machado de Assis, faced as historical document, and a transmitting
vehicle of ideas. For this, the occurrences of the concept of unconscious had been
examined in the workmanship of Machado de Assis in three different scopes. First,
in the terminology used by author. Second, in the expositive speeches of the
Machadian narrators. Third, in the description of the subjective states of the
personages. After this, we examined the occurrences of the concept of unconscious
in the workmanship of Machado de Assis, related with some of the referring
conceptions of unconscious in the work of other authors of his time.
Keywords: history of psychology; unconscious; literature.
Introducao
Machado de Assis é considerado pelos críticos um dos maiores escritores
brasileiros. De bergo humilde, mulato, nascido no Rio de Janeiro no ano 1839,
Machado conquistou, pouco a pouco, esta posigao gragas a sua genialidade e
talento. Escreveu durante toda sua vida urna vasta obra, composta dos mais
diversos géneros literarios: crónicas, críticas, teatro, poesia, mas é principalmente
nos contos e romances que encontramos suas melhores criagóes. É a partir de
1880, com a publicagao de Memorias postumas de Brás Cubas (1), que dá inicio ao
período que os críticos denominam sua segunda fase de produgáo literaria, em
virtude de um enorme salto qualitativo de suas obras, que já nao se prendiam aos
padróes das diversas escolas literarias, como o romantismo urbanizado do século
XIX, o naturalismo, o realismo.
Existe urna enorme quantidade de estudos sobre a ficgao machadiana, sendo esta
examinada sob os mais diferentes ángulos: biográfico, filosófico, psicológico,
sociológico, estético, histórico. Ainda assim, sua obra pode oferecer-nos muito para
urna pesquisa na área da historia das idéias psicológicas se a interrogarmos de
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Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 129
Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web:
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forma adequada, com o auxilio das fontes secundarias. Todavía, é sempre
necessário cautela se nao quisermos "forgar" a obra a responder aquilo que
queremos ou que julgamos que ela deva responder, falacia muito comum entre os
críticos.
Investigar na obra de Machado de Assis as idéias psicológicas ai presentes acarreta
diversos problemas metodológicos, que, no entanto, se tratados de forma
adequada, podem ser superados. Urna das questoes a que devemos estar atentos
refere-se á linguagem utilizada pelo autor. Se Machado descreveu em ¡números
contos a interioridade de suas personagens, utilizou, para isso, urna terminología
característica. Ora, se considerarmos a historia da psicología e das idéias
psicológicas, podemos observar que cada sistema psicológico usa um jargao
próprio, onde o sentido e o significado de cada expressao nao existe por si só; o
termo existe em relagao a outros termos, presentes dentro de um contexto maior,
ou de urna estrutura que Ihe confere significado. O conceito de "inconsciente", por
exemplo, só existe em relagao ao conceito de "consciéncia".
No sentido ampio do termo, "inconsciente" seria nada mais que um adjetivo, que
indica que um objeto de origem psíquica nao faz parte da consciéncia. No entanto,
qualificar de "inconsciente" pensamentos, impulsos, desejos, emogóes, interesses e
outros elementos da vida psíquica nao é algo tao simples como á primeira vista
pode parecer. Afinal, o que dá garantía de existencia das nossas emogoes e
conteúdos interiores, é o fato de que podemos experimentá-las. Mas como se pode
chegar á conclusao que existem conteúdos subjetivos com os quais o individuo nao
pode, por definigao, ter acesso ¡mediato? A melhor resposta seria: da mesma forma
que os cientistas, para explicarem a deformagao na órbita de Saturno, foram
forgados a inferir a existencia de Plutao, antes mesmo de observá-lo. Isto é,
podemos afirmar que supor a existencia de conteúdos inconscientes é urna
inferencia necessária para que varios fenómenos possam ser explicados.
No séc. XIX, segundo aponta Ellenberger (1970/1991), a idéia de inconsciente,
como urna regiao psíquica com conteúdos inconscientes, foi introduzida para se
resolver a problemática da memoria. Pois onde ficam nossas lembrangas quando
nao estao presentes na consciéncia? A resposta mais atraente seria considerar
estas memorias como temporariamente inconscientes, podendo estas emergir
novamente á consciéncia.
A questao da relagao entre inconsciente e memoria se destaca em dois contos de
Machado, presentes no livro Varias Historias (1896) que serao explorados mais
adiante: "Um homem célebre" e "O cónego ou metafísica do estilo" publicados pela
primeira vez, respectivamente, em 1888 e 1885 (2). Este último contó apresenta
especial importancia, pois será utilizado para se fazer urna articulagao com tres das
quatro principáis concepgoes da atividade inconsciente presentes ao final do séc.
XIX.
O contó é urna narrativa sobre um cónego que está sentado, escrevendo um
sermao. A principio, sua escrita flui naturalmente, mas, de repente, surge na
cabega do protagonista urna dúvida quanto ao adjetivo a ser usado. Aqui o narrador
convida o leitor a subir até da personagem, e apresenta ao leitor urna estapafúrdia
teoria "psico-léxico-lógica" na qual as palavras tém sexo. O estilo seria o
casamento délas e, ainda, os substantivos nascem em um lado do cerebro, ao
passo que os adjetivos nascem do outro. O contó prossegue com o narrador
mostrando a busca do adjetivo pelo substantivo na cabega do padre. O substantivo
encontra varias "damas" em seu caminho, mas recusa a todas, pois está
predestinado a um único adjetivo.
O cónego, sem tomar conhecimento dos seus processos inconscientes, sente-se
com a inspiragao "travada". E, por nao conseguir encontrar o adjetivo adequado,
resolve se levantar, vai até a janela, passando a se ocupar de outros afazeres. Nem
se lembra mais da busca pelo adjetivo. Contudo, apesar da atividade consciente
ocupada com estes pequeños afazeres, o seu inconsciente está em plena atividade.
Nesta passagem, portanto, encontra-se nao somente a idéia de um inconsciente
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Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 130
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tópico - isto é, como urna regiao psíquica passiva onde se armazenam as
memorias, regiao esta subordinada á consciéncia - mas também a idéia de um
inconsciente funcional, dinámico, isto é, de caráter ativo, que possui atividades
relativamente independentes do próprio pensamento consciente. Vejamos:
"Enquanto o cónego cuida de cousas estranhas, eles (o adjetivo e o substantivo:
n.d.r) prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba ou suspeite nada."
(p.274, V.14).
Logo após, o narrador torna explícita a nogao de inconsciente, convidando o leitor a
acompanhar, no inconsciente do cónego, a busca do substantivo pelo adjetivo:
Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da
consciéncia para a inconsciencia, onde se faz a
elaboragao confusa das idéias, onde as
reminiscencias dormem ou cochilam. Aqui pula a
vida sem formas, os germens e os detritos, os
rudimentos e os sedimentos; é o desvao ¡menso
do espirito. (1896/1961, V.14, p.275).
A descrigao deste inconsciente prossegue, revelando-se como um lugar obscuro,
efervescente, onde estao guardadas as memorias remotas, as emogóes e "idéias
grávidas de outras idéias". É a fonte geradora da linguagem, a partir da qual se
articulam as idéias conscientes.
O ensaio de Ivo Barbieri O cónego ou a invengao da linguagem (1998) aponta o
fato de que o bruxo do Cosme Velho encontrou forte inspiragáo para descrigao do
inconsciente na obra do filósofo alemáo, Édouard von Hartmann (1842-1906):
Philosophie de l'inconscient, publicado pela primeira vez em 1877, livro este que
pode ser encontrado no restante do acervo da biblioteca pessoal de Machado de
Assis. Neste livro, um dos capítulos é dedicado a explanagóes sobre o estilo literario
e a atividade criativa. Sobre este assunto, Hartmann, citado por Ivo Barbieri
(1998), afirma que a invengao e a realizagáo do belo deriva de processos
inconscientes, cujo resultado se traduz na consciéncia através do sentimento do
belo. E esse sentimento é a materia bruta, pela qual o artista, por meio da reflexáo,
irá construir sua obra; mas, a cada momento, o inconsciente deve fazer certas
intervengóes. Ainda, segundo o mesmo autor, o processo inconsciente, que é o
principio de toda criagao, escapa completamente ao "olhar da consciéncia".
Neste contó de Machado, a descrigao do "desvao do espirito" nao se restringe a
aspectos relativos ao processo criativo, sendo que outras qualidades podem ser
evidenciadas. De fato, ao final do século dezenove, segundo aponta o historiador
Ellenberger (1970/1991), a questao do inconsciente era abordada sob diversos
pontos de vista. Para mostrar um quadro completo, podemos dizer que no ano de
1900 havia quatro diferentes aspectos de sua atividade: conservativo, dissolutivo,
criativo e mitopoético. Destas quatro concepgóes, tres aparecem presentes nesse
contó, com excegao da fungao dissolutiva. Vejamos as principáis concepgóes e suas
relagóes com este contó e outros.
As funcoes do inconsciente
A fungao conservativa era identificada com a memoria, o registro de um grande
número de recordagoes; também de recordagoes de percepgóes que a mente
consciente que ficavam armazenadas e das quais a personalidade consciente nao
sabia absolutamente nada. Tais fenómenos eram observados, por exemplo, em
casos clínicos de pacientes que, durante estados febris, falavam urna língua que
haviam aprendido quando changas e que depois haviam esquecido. Além disso, o
hipnotismo forneceu ¡números casos de "hipermnésia". Um argumento muito
debatido ao fim do séc. XIX, tanto na filosofía quanto na psicología, era se no
individuo havia recordagoes inconscientes de tudo o que havia encontrado na vida.
A presenga desta fungao conservativa do inconsciente pode ser muitas vezes
encontrada em "O cónego ou metafísica do estilo", em passagens como: "Ficai ai,
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perfis meio apagados de paspalhoes que fizeram rir ao cónego, e que ele
inteiramente esqueceu." (p.277). Ou ainda:
Cá estao as vozes remotas da primeira missa; cá
estao as cantigas da roga que ele ouvia cantar as
pretas, em casa; farrapos de sensagóes esvaídas,
aqui um medo, ali um gosto, acola um fastio de
cousas que vieram cada urna por sua vez, e que
agora jazem na grande unidade impalpável e
obscura, (p.276).
Outro contó em que temos referencia á fungao conservativa é "Um homem
célebre". Trata-se do drama de um compositor de polcas, Pestaña, que apesar dos
sucessos destas, mantém-se frustrado. Isto porque deseja fazer obras em formas
clássicas, como sonatas, ao estilo de um Beethoven ou um Mozart. Contudo, apesar
de constantes tentativas, nunca consegue compor nada deste género. Em urna das
passagens da narrativa, Machado refere-se ao inconsciente como o lugar de onde
provem a inspiragao:
Ás vezes, como que ia surgir das profundezas do
inconsciente urna aurora de idéia; ele corria ao
piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons,
mas era em vao; a idéia esvaía-se. Outras vezes,
sentado ao piano, deixava os dedos correrem, á
ventura, a ver se as fantasías brotavam deles,
como dos de Mozart; mas nada, nada, a
inspiragao nao vinha, a imaginagao deixava-se
estar dormindo. Se acaso urna idéia aparecía,
definida e bela, era eco apenas de alguma pega
alheia, que a memoria repetía, e que ele supunha
inventar. Entao, irritado, erguia-se, jurava
abandonar a arte, ir plantar café ou puxar
carroga; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez,
com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.
(Assis, 1961, V.14, p.72).
Restava a Pestaña apenas compor polcas. Certo dia, entretanto, Pestaña comegou a
compor urna sonata, que Ihe pareceu belíssima. Sua mulher, porém, que estava por
perto a escutar, percebeu, para o seu desconsoló, que aquela obra nao era dele,
mas sim de Chopin. Isto é, a música nao era fruto de sua inspiragao, mas sim de
sua memoria. Segundo o ensaio de Augusto Meyer (1965) sobre a psicología da
criagao artística em Machado: Silvio e Silvia, o que o ocorre, no caso de Pestaña, é
que a música foi "trasladada inconscientemente".
A fungao críativa do inconsciente já era sublinhada desde o tempo do romantismo.
Segundo esta concepgao, o ato de criagao tem origem no inconsciente. Esta idéia
aparece em E. Hartmann, sendo posteriormente desenvolvida, segundo Ellenberger
(1970/1991), por eminentes psiquiatras, como Francis Galton (1822-1911), e de
um modo mais psicológico por Theodore Flournoy (1954-1921). A presenga desta
fungao criativa do inconsciente em "O Cónego ou metafísica do estilo" é evidente,
como já foi exposto anteriormente.
A fungao mitopoetica (termo cunhado pelo psiquiatra Frederick Myers (1841-1901))
era urna "regiao media", subliminar, de onde se desenvolvía continuamente urna
estranha produgao de fantasía interior. Um grande explorador desta faculdade foi
Flournoy, que pesquisou, sob a perspectiva psicológica, um famoso médium de sua
época. Em sua concepgao, o inconsciente se ocupa continuamente de criar mitos e
fantasías, que muitas vezes permanecem completamente inconscientes,
manifestando-se com maior freqüéncia nos sonhos. Algumas vezes, no entanto,
estas fantasías se manifestam mesmo no estado de vigilia, através de diferentes
formas: delirio, do sonambolismo, hipnose, mitomania, transes, possessóes.
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Segundo alguns outros psiquiatras da época, estas fantasías poderiam ter
expressoes somáticas, residindo nesta classe de fenómenos a etiología da histeria.
Na descrigáo do inconsciente por Machado de Assis em "O cónego ou metafísica do
estilo" esta fungao parece ser sugerida na seguinte passagem:
Platao traz os óculos de um escrivao da cámara
eclesiástica; mandarins de todas as classes
distribuem moedas etruscas e chilenas, livros
ingleses e rosas pálidas; tao pálidas, que nao
parecem as mesmas que a mae do cónego
plantou quando ele era changa. (Assis, 1961,
V.14, p.275).
A fungao dissolutiva do inconsciente compreendia duas classes de fenómenos. A
primeira era composta daqueles fenómenos psíquicos que antes eram conscientes,
mas que, com o tempo, se tornaram automáticos (como se verifica nos hábitos
adquiridos). A segunda era composta de alguns fragmentos cindidos da
personalidade que interfeririam no processo normal. Esta hipótese encontrou forte
argumentagao no fato de se conseguir, através de sugestao hipnótica, gerar no
individuo comportamentos específicos, mesmo depois de despertó do sonó
hipnótico, sendo que estes comportamentos eram induzidos sem que o individuo
tivesse consciéncia da real razao de seu ato. Estes fenómenos levaram Janet
(1859-1947) e outros eminentes psiquiatras do final do séc. XIX á conclusao de que
varios disturbios tinham origens psíquicas, devido á forga destes fragmentos
cindidos que permaneciam inconscientes. Assim, muitos psicólogos da época
consideravam a histeria como urna especie de possessao da consciéncia por esta
parte cindida da personalidade.
A existencia de urna parte cindida da personalidade que permanece oculta leva-nos
á hipótese da existencia de "desejos inconscientes". Em relagao ao desejo,
entretanto, o problema se torna mais complexo que em relagao á memoria, pois
tratamos aqui de um elemento da psique que impele o individuo ao
comportamento. Mas, afinal, como um desejo pode ser inconsciente, se ele
necessita do comportamento para a sua satisfagao? Se um desejo é inconsciente e
se, por definigao, só se pode chegar a ele de forma indireta, quais sao os sinais, os
indicios, ou os fenómenos que garantiriam a sua existencia? Pois afirmar a
existencia de um desejo só faz sentido na medida em que seja possível encontrar
ao menos urna manifestagao do mesmo. Mas se o fim de um desejo é o
comportamento, como poderia chegar a tal fim sem passar pela consciéncia?
Poderíamos complicar ainda mais: e por que motivo haveria um desejo de se
esconder? E como isso poderia ser observado na literatura?
Buscaremos desenvolver estas questóes usando como ponto de partida a obra de
um contemporáneo de Machado, Os irmaos Karamazov (1866/2001), de
Dostoievski. O intuito de introduzir a questao por meio desta obra é de se
apresentar um panorama mais rico das idéias psicológicas no séc. XIX no ámbito da
literatura, nao se restringindo somente ao ámbito das teorías da psicología
científica.
O romance gira em torno da familia Karamazov, composta por Fiódor Pávlovitch,
homem vulgar, bufáo e imoral, e seus tres filhos: Alieksiéi, um asceta; Ivan, tipo
mais comedido e controlado; e Dimítri, homem impetuoso, que por urna serie de
razóes odeia seu pai. A tensáo entre Fiódor e Dimítri aumenta ainda mais devido ao
fato de ambos apaixonarem-se por urna mesma mulher, o que leva Dimítri a
ameagar seu pai de morte. Enquanto isso, Fiódor, para conquistar a moga, comega
a consumir seu patrimonio, dando a ela presentes caros e prometendo-lhe djnheiro:
se a uniáo fosse concretizada, seria o fim da heranga para os filhos. É nesse
contexto que um dos agregados da casa, Smerdiakov, possível filho bastardo de
Fiódor, comega a sugerir a Ivan que irá assassinar seu pai, pois todos pensariam
que o assassino seria o filho mais velho, Dimítri. No entanto, Ivan nao chega
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formular em pensamento a intengao do agregado; o que Ihe ocorre - além de
profundas insónias e tormentos mentáis - é apenas um sentimento inexplicavel de
asco e odio a Smerdiakov. A presenga de Ivan na casa de seu pai seria de grande
importancia para que fosse evitado um possível assassinato de seu pai. Todavía
Ivan resolve viajar, afastando-se da situagao. O agregado, que senté grande
simpatía por Ivan, entende a viajem como um sinal de aprovagao, pois, dentre
outras coisas, Ivan é um intelectual cético que defende a supremacía da vontade
pessoal frente aos valores moráis, sendo dele a famosa frase: "Se Deus nao existe,
tudo é possível". Durante sua viagem, seu pai morre assassinado. Quando Ivan
regressa, enlouquece algum tempo depois de saber da noticia, mas a loucura chega
ao auge quando fica sabendo que o verdadeiro assassino é Smerdiakov. Tudo leva
a crer que o fator responsável por sua insanidade é a culpa. O livro parece sugerir
que a culpa existe porque, inconscientemente, ele queria a morte do pai,
afastando-se de casa e deixando o campo aberto para o assassinato.
Provavelmente até soubesse inconscientemente das intengoes de Smerdiakov
(afinal por que tanta raiva dele?). Tudo indica que Ivan nao formula seu desejo de
modo explícito a fim de se proteger da dor moral da culpa pelo seu desejo
parricida, gerado pelo interesse (na heranga). Porém, o confuto inconsciente se
manifesta na insónia e no sentimento de odio profundo ao agregado (possível
projegao de odio e asco ao próprio desejo parricida).
Se no romance de Dostoievski o desejo inconsciente é apenas sugerido, em "Urna
senhora", de Machado de Assis, o desejo inconsciente é evidente. Neste contó,
presente em Historias sem Data (1884) a protagonista, D. Camila, nao formula
para si o desejo de que sua própria filha nao se case:
Um dia, poucos meses depois, apontou no
horizonte o primeiro namorado. D. Camila
pensara vagamente nessa calamidade, sem
encará-la, sem aparelhar-se para a defesa.
Quando menos esperava, achou um pretendente
á porta. Interrogou a filha; descobriu-lhe um
alvorogo indefinível, a inclinagao dos vinte anos, e
ficou prostrada. Casá-la era o menos, mas, se os
seres sao como as aguas da Escritura, que nao
voltam mais, é porque atrás deles vém outros,
como atrás das aguas outras aguas; e, para
definir essas ondas sucessivas é que os homens
inventaram este nome de netos. D. Camila viu
iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo.
Está claro que nao formulou a resolugao, como
nao formulara a idéia do perigo. A alma entendese a si mesma; urna sensagao vale um raciocinio.
As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais
íntimo do seu ser, de onde nao as extraiu para
nao ser obrigada a encará-las. (1961, V.13.
p.171).
Mesmo com D. Camila nao formulando em nivel consciente o seu desejo, este, por
outros meios, atinge seu comportamento. O meio pelo qual o desejo se realizará
será através do sentimento de desagrado que D. Camila tem em relagao aos
namorados de sua filha, vendo-lhes apenas defeitos, e, assim, criando empecilhos
ao casamento da mesma. Vale também notar que D. Camila procurou atrasar ao
máximo o amadurecimento da filha, tratando-a como changa e vestindo-a como
menina até o momento em que nao Ihe foi mais possível. Em D. Camila, como no
caso de Ivan Karamazov, o desejo permanece inconsciente, livrando-a, deste
modo, de urna dor moral, pois tomar consciéncia do ato de "atrasar" a vida da
própria filha nao poderia passar sem o peso da culpa. Todavía, se em Ivan a
motivagao é o dinheiro, em D. Camila a motivagao é a vaidade. Interessante notar
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as idéias de Matías Aires (3), autor que, segundo Alfredo Bosi, seria urna das fontes
para se construir urna "genealogía do olhar machadiano" (1999) Numa perspectiva
histórico-psicológica, Massimi observa que
Há outros aspectos do pensamento do autor
(Matias Aires: n.d.r) acerca de vaidade que o
aproximam de Freud. O primeiro é a hipótese da
existencia de censura: no prólogo vimos que o
autor aceña á possibilidade de que sensagao e
paixoes com conotagoes éticas negativa, fugiam
da lembranga e do conhecimento do sujeito que
as experimenta. O segundo aspecto é a afirmagao
de que a vaidade é urna paixao 'escondida' (em
termos freudianos "inconsciente"): ela "se
esconde de tal sorte, que a si mesma se oculta, e
ignora; ainda as agoes mais pias nascem muitas
vezes de huma vaidade mystica, que quem a tem,
nao conhece nem distingue." (Massimi, 1984,
p.107).
Fato notável: Matias Aires em 1752 já supunha a existencia de urna censura
inconsciente. E talvez censura seja o nome mais adequado para o que ocorre neste
contó, pois o desejo pressupunha urna conotagao ética negativa.
Nem sempre, porém, é a "dor moral" o único fator que faz com que o desejo
permanega inconsciente - temos que somar a esta a "inconveniencia". Em alguns
contos de Machado, o desejo pode até ser formulado, mas a psique arranja meios
de suspendé-lo, de distorcé-lo e de afastá-lo da consciéncia. É o caso de "Uns
bragos", (1986/1961).
Em "Uns bragos" temos o problema do desejo de urna mulher casada, de vinte e
sete anos, D. Severina, por um rapazinho de quinze anos, Inácio, que se hospeda
em sua casa para ajudar seu marido nos servigos do escritorio.
O que nos interessa neste contó é o fato do narrador descrever detalhadamente
todas as etapas de desenvolvimento do desejo em D. Severina. Mesmo depois do
desejo já estar instalado, a própria personagem nao se dá conta de sua existencia.
O narrador vai mostrando ao leitor varios sinais que indicam a presenga do desejo,
até que este, finalmente, penetre na consciéncia da personagem. Este contó
apresenta urna grande riqueza na descrigao dos processos psíquicos. O narrador
mostra com pormenores o desenrolar do desejo, que ora se esconde, ora se
disfarga, mas que, entretanto, dirige o comportamento da mulher no sentido de sua
satisfagao.
Primeiramente é o menino, Inácio, que se apaixona pela mulher. Todavía este só a
encontra praticamente tres vezes ao día, no café da manha, no almogo e no jantar.
Inácio, em virtude da paixao, comega a se distrair constantemente, esquecer das
coisas e devanear. O tempo passa e a paixao de Inácio nao diminuí. Inácio,
entretanto, tenta ao máximo disfargar sua paixao. Mas, certo dia, D. Severina
suspeita de Inácio:
Tudo parecía dizer á moga que era verdade; mas
essa verdade, desfeita a impressao do assombro,
trouxe urna complicagao moral, que só conheceu
pelos efeitos, nao achando meio de discernir o
que era. Nao podia entender-se nem equilibrarse, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador
(seu marido: n.d.r), ele que mandasse embora o
fedelho. Mas que era tudo? Aqui estaco:
realmente, nao havia mais que suposigao,
coincidencia e possivelmente ilusao. Nao, nao,
ilusao nao era. E logo recolhia os indicios vagos,
as atitudes do mocinho, o acanhamento, as
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distragóes, para rejeitar a idéia de estar
engañada. Daí a pouco (capciosa natureza!)
refletindo
que
seria
mau
acusá-lo
sem
fundamento, admitiu que se iludisse, para o único
fim de observá-lo melhor e averiguar bem a
realidade das coisas, (p.54).
Após alguns dias, D. Severina confirma sua hipótese e resolve nao contar nada a
seu marido, para evitar desgosto a ambos. O narrador entao vai mostrando como
D. Severina vai fugindo ao seu desejo pelo mocinho: "(...) já se persuadía bem que
ele era urna changa, e assentou de o tratar secamente até ali, ou ainda mais."
(p.55). Mas, no entanto, o narrador vai revelando em D. Severina, através dos
comportamentos, de pequeños gestos, o verdadeiro sentimento da mulher:
Inácio comegou a sentir que ela fugia com os
olhos, ou falava áspero, como o próprio Borges.
De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía
brando e até meigo, muito meigo; assim como o
olhar, geralmente esquivo, tanto errava por
outras partes, que, para descansar, vinha pousar
na cabega dele; mas tudo isso era curto, (p.55).
Com o transcorrer do tempo, D. Severina passa a tratar Inácio mais
carinhosamente, dando conselhos: nao beber agua fria depois de café quente, etc.
Ao mesmo tempo: "A agitagao de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse
acalmar-se nem entender-se." (p.56). Aqui o narrador parece sugerir um fenómeno
parecido com o presente em "Missa do Galo", publicado pela primeira vez 1893, em
que o protagonista senté, através de "sensagóes", o desejo de sua tia por ele, e o
dele por ela. Entretanto, nao o formula em nivel consciente, como "pensamento".
"Nunca poderei entender a conversagao que tive com urna senhora, há muitos
anos, contava eu dezessete, ela trinta." (Assis, 1899/1961, V.15, p.91). E ainda:
Há impressoes desta noite que me parecem
truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalhome. Urna das que ainda tenho frescas é que, em
certa ocasiao, ela, que apenas era simpática, ficou
linda, ficou lindíssima. (p.99).
Podemos dizer que é o mesmo caso o de D. Severina, que senté, mas nao sabe, no
plano consciente, de desejo por Inácio.
Finalmente D. Severina saberá de seu desejo. Isso ocorre através de urna especie
de "possessao". Certa vez, D. Severina sente-se atordoada: "Parecía fora do
natural, inquieta, quase maluca."(p.55), fazendo atos sem propósito, vai á janela e
confirma que seu marido foi embora, senta-se na cadeira e lembra que Inácio
comerá pouco, e resolve ("capciosa natureza") ir observá-lo para ver se nao estava
doente. Aqui, o narrador parece deixar claro que nao foi este o real motivo que faz
D. Severina ir ao encontró de Inácio.
Inácio está dormindo na rede quando D. Severina vem sorrateiramente observá-lo,
porém ao observá-lo, o desejo aparece em nivel consciente. D. Severina comega
urna luta interior com seu desejo por Inácio; sua arma contra este desejo consiste
em considerá-lo urna crianga:
E mirou-o lentamente, fartou-se de vé-lo, com a
cabega inclinada, o brago caído; mas, ao mesmo
tempo que o achava crianga, achava-o bonito,
muito mais bonito que acordado, e urna dessas
idéias corrigia ou corrompía a outra. (p.61).
De repente, D. Severina comega a andar e beija a boca de Inácio. Logo em
seguida, ela recua, envergonhada do ato, nao acreditando em sua atitude. Apesar
do beijo, Inácio nao acorda, está sonhando justamente que a própria D. Severina
está Ihe beijando. O contó finaliza com Inácio sendo mandado embora de sua casa,
sem que ele saiba o porqué.
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Há muitas idéias psicológicas presentes no contó, porém o que mais se destaca sao
malabarismos do desejo nao admitido, que, por meios ardilosos, levam a
personagem a efetuar comportamentos no sentido de sua satisfagao.
Conclusao
A nogao de urna atividade inconsciente se manifesta na ficgao machadiana em
diferentes níveis e sob diversos aspectos. Através da análise de alguns contos,
encontramos passagens em que a atividade consciente nao corresponde á
totalidade psíquica, sendo aquela apenas urna parte desta. Em virtude disso,
podemos concluir, no que diz respeito as modalidades com que Machado descreve
os estados subjetivos de suas personagens, que por tras de varias intengóes
conscientes, existem finalidades ocultas, inconscientes, como é o caso dos contos
"Urna senhora" e "Uns bragos". De fato, Machado constantemente apresenta
personagens dotadas de urna consciéncia conflituosa, confusa, pouco transparente
a si mesma. Algumas vezes, mesmo a atividade da memoria, de recordar-se, é
submetida a filtros ou barreiras como podemos observar em "Missa do Galo".
Em outro nivel, Machado faz referencia á concepgao de um inconsciente vinculado á
inspiragao musical, como é o caso de "Um homem célebre", "Cantiga de esponsais"
e literaria em "O cónego ou metafísica do estilo".
Podemos afirmar, portanto, que o conceito de inconsciente ou de forgas
inconscientes que movem o individuo foi disseminado em solo brasileiro através da
literatura, antes mesmo do surgimento da própria Psicanálise.
Referencias bibliográficas
Aires, M. (1752). Reflexao sobre a vaidade dos homens. Officina de Francisco Luís
Ameno: Lisboa.
Assis, M. (1961). Obras completas. Sao Paulo: Editora Brasileira. 32 volumes
Barbieri, I. (1998). O cónego ou a invengao da linguagem. Tempo Brasileiro, 133134, 23-34.
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Notas
(1) Os nomes dos livros estao grafados em itálico, já o nome dos contos estao
entre aspas.
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Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representares do conceito de insconsciente na obra de 137
Machado de Assis. Memorándum, 7, 128-137. Retirado em / / , do World Wide Web:
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(2) Machado de Assis, durante a vida, publicou cerca de duzentos e dez contos em
revistas, jomáis e livros. Muitos dos contos presentes em seus livros foram
anteriormente divulgados em revistas e jomáis. Assim sendo, a ordem cronológica
da produgao dos contos nao corresponde com exatidao á ordem de publicagao de
seus livros de contos.
(3) Matias Aires foi um importante pensador brasileiro do séc. XVIII, influenciado
pelo pensamento racionalista, La Rochefoucauld, Pascal e outros, escreveu obras
dos mais variados géneros. Porém destaca-se dentre estas obras "Reflexoes Sobre
a Vaidade dos Homens", obra em que o autor procura entender o ser humano,
partindo do conceito central da vaidade. Interessante notar que modo semelhante
de pensamento é encontrado em Pascal, outra forte influencia do pensamento de
Machado, segundo apontam muitos críticos.
Nota sobre os autores
Sávio Passafaro Peres é formado em Psicología pela Faculdade de Filosofía Ciencias
e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Área de
pesquisa: historia das idéias psicológicas e realizou esta pesquisa como bolsista da
FAPESP. Contato: [email protected].
Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicología e
Educagao na Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo,
Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Especialista na área de Historia das Idéias
Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Avenida Bandeirantes, 3900 14040-901 - Ribeirao Preto (SP) / Brasil. E-mail: [email protected].
Data de recebimento: 09/02/2004
Data de aceite: 29/09/2004
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Jacó-Vilela, A. M.; Esch, C.F.; Coelho, D.A.M. & Rezende, M.S. (2004). Os estudos médicos no
Brasil no século XIX: contribuigoes á Psicología. Memorándum, 7, 138-150. Retirado
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Os estudos médicos no Brasil no século XIX:
contribuicóes á Psicología
Brazilian medicine courses in the 19th century: contributions toward
Psychology
Ana Maria Jacó-Vilela
Cristiane Ferreira Esch
Daniela Albrecht Marques Coelho
Marcelo Santos Rezende
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Brasil
Resumo
O texto visa apresentar a historia dos estudos médicos no Brasil por se entender,
em consonancia com varios historiadores da psicología, a relevancia do saber
médico para a constituigao da Psicología no Brasil. Neste sentido, acompanha-se o
exercício da profissao médica desde a colonia, a criagao das primeiras Faculdades
de Medicina e sua produgao de teses médicas. Observe-se que estas representam
parte relevante das primeiras produgoes teóricas brasileiras e tém sido pesquisadas
por investigadores de origens diversas objetivando a construgao da historia de suas
disciplinas, entre elas a psicología. Daí decorre a importancia da orientagao do
ensino médico, principalmente no tocante á psiquiatría e á medicina social,
conforme se apresenta nessas teses. Dá-se especial relevo as teorías psicológicas
mais utilizadas entao porque estas serao fundamentáis para a constituigao do saber
psicológico.
Palavras-chave: ensino médico; teses médicas; Psicología no Brasil.
Abstract
The work aims at presenting the history of the medical studies in Brazil due to the
relevance of these studies for the constitution of Psychology in Brazil. In this
direction, the exercise of the medical profession is accompanied, since colonial
times, by the creation of the first Faculties of Medicine and its production of medical
theses. It is observed that these theses represent excellent part of the first
Brazilian theoretical productions, which have been searched by researchers of
diverse origins aiming at the construction of the history of their respective
disciplines. This is also the case regarding Psychology. According to this theses, this
is the reason why the orientation of the medical education is so important,
especially social medicine and psychiatry. It is also given special attention to the
psychological theories used most frequently at that time because they are
fundamental importance to the constitution of the psychological knowledge.
Keywords: medical course; medical theses; Psychology in Brazil.
Introducao
O interesse pela compreensao da historia da medicina no Brasil surgiu ao nos
depararmos com a importancia dos cursos de medicina para o desenvolvimento da
psicología no país. Faz parte do imaginario dos historiadores da psicología no Brasil
a relevancia das teses para doutor em medicina, dispositivo utilizado desde a
criagao das Faculdades de Medicina até 1930 para titular os médicos. Isto porque
estas teses se constituem nos primeiros livros académicos do Brasil, já que tém
tiragem variável, dependendo do interesse e da capacidade financeira de seu autor,
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e versam sobre urna grande variedade de temas: os médicos sao os grandes
cientistas do século XIX, abarcam em seus conhecimentos muito daquilo que hoje
vemos em outras áreas, como Ciencias Sociais, Meio Ambiente, Educagao,
Psicología, Educagao Física, além de Biología e outros temas correlatos á área
médica.
Assim, a origem deste trabalho é o interesse pelas referidas teses, objeto de
investigagao específica em que procedemos á identificagao e análise daquelas
relativas á Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, procurando verificar, nelas, a
presenga da temática psicológica. Os resultados desta investigagao, bem como da
com o periódico Brazil-Médico estao sendo apresentados em diversos textos a partir
das análises efetuadas.
Aqui, objetiva-se apresentar específicamente um pouco da historia da constituigao
dos cursos de medicina no país, clarificando-se o campo da psiquiatría e sua
distingao dos demais campos médicos. Relevo especial é dado as principáis teorías
psicológicas entao aceitas, pois é nesta base que a psicología irá se constituir como
um saber específico sobre a subjetividade, em contraposigao ao saber neoescolástico sobre a alma que imperava até entao.
Ressalte-se que o propósito maior deste texto é servir de auxilio a outros
pesquisadores do tema, pois o interesse pela contribuigao médica á constituigao da
psicología torna necessária urna compreensao, pequeña que seja, sobre a formagao
médica. Assim nos preocupamos principalmente em apresentar de forma coerente a
historia desta formagao no Brasil e o aparecimento, nela, dos saberes psicológicos,
recorrendo para isto principalmente a estudiosos que já se dedicaram a esta
temática. Ou seja, nao pretendemos utilizar aqui o recurso a fontes primarias
porque nosso objetivo nao é a formagao em medicina em si, mas um de seus
resultados, as teses. Estas, todavía, nao sao objeto de análise neste texto.
O contexto
Até meados do século XVIII as cidades brasileiras encontravam-se abandonadas
por Portugal (Costa, 1979). A ocupagao do territorio era realizada por iniciativa
particular dos colonos. Quando Portugal desenvolveu um novo tipo de interesse,
devido á descoberta do ouro, passou a exercer um controle mais rigoroso sobre a
colonia, intensificando a extorsao económica. Além disso, a disputa que havia entre
Igreja, Governo e Cámara (1) (senhores rurais e grandes negociantes) gerava a
impressao de ausencia de um poder único e de existencia de urna lei obscura.
Paralelamente a isto, episodios de sabotagem económica e de rebeldía política tanto de intelectuais, como na Inconfidencia Mineira (1789), quanto de carnadas
populares, como na Conjuragao Baiana (1798) - multiplicavam-se. As infragoes dos
colonos passaram a ser punidas com truculencia e arbitrariedade. Entretanto, esta
estrategia punitiva terminou por esgotar suas possibilidades de agao sem modificar
o perfil insurreto da populagao. O século XIX recebeu a desordem urbana
praticamente intocada. Esta conclusao pode ser comprovada pela presenga de
diversas revoltas populares, como a Revolugao Pernambucana (1817), a Sabinada
(1834), a Balaiada (1838) e a Cabanagem (1835) (Fausto, 1994) (2).
Além dos problemas das insurreigoes populares, as cidades estavam subjugadas a
urna especie de absolutismo patriarcal. O monopolio das familias rurais ocorria
através das cámaras municipais, e por isso tinham urna forte influencia na
organizagao político-social da colonia. A familia colonial nao formava cidadaos livres
e autónomos, como é o nosso modelo de individuo moderno. Ao invés disso,
formava parentes e "apadrinhados", todos dependentes das decisóes do patriarca.
No seu apego á tradigao, a familia colonial mantinha-se em um estado de inercia
que impedia o estabelecimento da ideología liberal, cujos preceitos estabeleciam,
como sua base, um sujeito senhor do seu livre-arbítrio, autónomo, igual aos demais
e livre para estabelecer contrato no mercado de trabalho.
Ao desembarcar no Brasil em 1808 com a corte portuguesa, D. Joao VI pretende
estabelecer instituigóes centralizadoras (Shwarcz,1995) que pudessem, de alguma
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forma, restabelecer a ordem e ao mesmo tempo "civilizar", ou seja, europeizar a
sociedade.
Data dessa época a instalagao dos primeiros estabelecimentos de caráter cultural,
como a Imprensa Regia (até entao nao havia, no Brasil, imprensa autorizada por
Portugal), o Real Horto e o Museu Real. Vinculados aos modelos metropolitanos, os
primeiros centros de saber enxergavam o Brasil ora como espelho, ora como
extensao da corte portuguesa. D. Joao VI, logo após a mudanga da corte para o
Brasil, centralizou o poder na colonia, promovendo o inicio da criagao de um Estado
nacional e do desenvolvimento urbano, pelo menos na capital, Rio de Janeiro.
Como os integrantes da nobreza portuguesa poderiam viver num país que nao tinha
os hábitos de consumo, lazer, higiene e moradia que havia na Europa? O comercio
internacional, as instituigóes culturáis e de ensino superior surgiram como
instancias modernizadoras e civilizadoras da provinciana sociedade brasileira.
Dentro desse contexto civilizatório foram criadas, em 1808, as Cadeiras de Cirurgia
e Anatomía que, em 1832, deram origem as Faculdades de Medicina da Bahia e do
Rio de Janeiro. Nesta época, o Brasil, agora país independente (3), adquiría maior
facilidade de contato com o restante da Europa, o que propiciava a penetragao de
idéias correntes no Velho Mundo, especialmente na Franga. Assim, apresentaremos
a seguir urna breve descrigao do processo de institucionalizagao da medicina no
Brasil, seguindo alguns estudiosos escolhidos por sua dedicagao ao tema, a fim de
melhor compreendermos o contexto académico em que nosso objeto de estudo se
situava.
A Institucionalizagao da Medicina no Brasil
Antecedentes
No período que se estende do século XVI ao inicio do século XIX, os profissionais
habilitados, portadores de "licenga", de diploma ou "carta" para exercer a Medicina
no Brasil, foram os físicos e os cirurgioes. Sofreram, contudo, a concorréncia dos
nao habilitados, isto é, dos "práticos", designados por urna vasta sinomínia curandeiros, curadores, entendidos, curiosos, entre os quais se incluíam os pajes,
os boticarios e barbeiros, além dos jesuítas (Santos Filho, 1991; Maia, 1996).
Os físicos, ou médicos propriamente ditos, foram principalmente os licenciados pela
Universidade de Coimbra.
Os cirurgioes da época, por sua vez, podem ser classificados em varias categorías.
A grande maioria dos residentes no país nos sáculos XVI e XVII constitui-se dos
"cirurgioes barbeiros", que se habilitaram como aprendizes ou ajudantes de
mestres, foram examinados e receberam "carta" (Santos Filho, 1991). Além dos
atos cirúrgicos comuns á época, sangravam, sarjavam, aplicavam ventosas e
sanguessugas, extraíam dentes, barbeavam e cortavam o cábelo, estas duas
últimas práticas restritas ao "barbeiro" do século XVII em diante. Trata-se pois de
urna medicina hipocrática, onde se estudam os humores, pratica-se a sangría.
Entretanto, seus fundamentos na religiao impedem que avance nos processos
experimentáis e empíricos (de vivissegao, por exemplo) que já faziam parte e muito
haviam contribuido para o avango da medicina européia (Rossi, 1998).
Outra categoría é a dos "cirurgioes aprovados", que seguiam um curso teóricoprático em hospitais, se submetiam a exame e obtinham "carta" que Ihes outorgava
o direito de exercerem todos os tipos de cirurgia e, mesmo, a própria medicina,
onde nao houvesse físicos. Apareceram no Brasil a partir do século XVII e dividiram
a clientela com estes últimos. Finalmente, outros, os "cirurgioes diplomados",
formados por escolas européias que nao as ibéricas, também aqui viveram no
século XVIII. Entretanto, foram minoría (Santos Filho, 1991; Salles, 1971).
Da criagao dos primeiros cursos as Faculdades de Medicina
O ensino oficial de medicina teve inicio logo após a chegada de D. Joao VI ao Brasil,
através da criagao da Escola de Cirurgia da Bahia e da Escola Anatómica, Cirúrgica
e Médica do Rio de Janeiro, em 1808 (Santos Filho, 1991). Ambas funcionaram no
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Hospital Real Militar das respectivas cidades. Em 1813 (4) a Escola do Rio de
Janeiro transformou-se na Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, tendo o
mesmo acontecido, dois anos depois, com a Escola da Bahia.
O curso durava cinco anos; terminados os exames do quarto ano, os alunos que o
desejassem recebiam a "Carta de cirurgia". Os que completavam o quinto ano, por
sua vez, ficavam habilitados a exercer a Cirurgia e recebiam "licenga para curar de
Medicina". Entretanto, ainda na década de 20 do século XIX era intenso o clamor
em prol da reforma das Academias Médico-Cirúrgicas do Rio de Janeiro e Bahia,
apontadas como deficientes e anacrónicas. (5)
Em 1829 é fundada a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (6). Chamada, em
1830, a dar parecer sobre os planos de reorganizagao do ensino médico, tem seu
anteprojeto aprovado com pequeñas alteragoes pela Comissao de Saúde Pública da
Cámara, e promulgado como lei em 1832. A partir deste momento, estavam
criadas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Até a confecgao de
um regimentó, foram adotados os estatutos da Faculdade de Paris (7). Instituíramse tres cursos: o de Medicina, o de Farmacia e o de Partos, e as faculdades
passaram a conceder os títulos de "doutor em Medicina", "farmacéutico" e
"parteira". Como nosso objetivo refere-se as teses da Faculdade de Medicina,
vamos nos deter aqui as exigencias para a obtengao do título de "doutor em
Medicina". (8)
Os candidatos a este título deveriam sustentar, em público, urna tese, escrita no
idioma nacional ou em latim, e impressa á própria custa. A tese compreendia urna
"dissertagao" e a enumeragao de "proposigoes" que se traduziam, muitas vezes, na
transcrigao ipsis verbis de aforismos de Hipócrates.
O curso médico, pela nova regulamentagao, deveria ter a duragao de seis anos,
sendo composto por quatorze materias divididas em tres segóes: ciencias
acessórias, ciencias cirúrgicas e ciencias médicas. De acordó com Santos Filho
(1991), as reformas que se processaram no regime monárquico e as seguintes, no
período republicano, visaram, em esséncia, adaptar o ensino ao progresso técnicocientífico que se verificava na Medicina.
As aulas nunca foram regulares, dada a ausencia constante de varios lentes. O
ensino médico sofria ainda com a precariedade do material escolar, com a falta de
instrumentos, de drogas, de vasilhames, e até de cadáveres para as dissecagóes
anatómicas. A precariedade de espago físico é urna constante em todo este período.
A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro só veio a ter sua sede própria em 1918,
quando foi inaugurada a Faculdade Nacional de Medicina da Praia Vermelha (9).
A orientagao doutrinária do ensino médico
No século XIX afirma-se a influencia francesa no ensino da Medicina no Brasil, ao
passo que, nos sáculos anteriores, prevaleceu, ou antes, imperou a Medicina
ibérica. No século XIX, a influencia gaulesa estendeu-se nao somente á Medicina,
como as demais ciencias, á literatura, aos costumes, ao comercio. Teorías e
conhecimentos oriundos de outros países europeus, como da Alemanha e da
Inglaterra, também foram adotados no Brasil por muitos profissionais quando já ia
bem avangado o século XIX, embora tivessem presenga menor que a francesa.
Desse modo, importava-se e aplicava-se a teoria, a orientagao, os métodos clínicos,
a técnica cirúrgica e a terapéutica (10).
Os profissionais desta fase, denominada por Santos Filho (1991) como précientífica, sao os doutores em Medicina formados, na maioria, pelas Faculdades do
Rio de Janeiro e da Bahia. Substituíram os "físicos" dos tres primeiros sáculos.
Obrigados á auto-suficiencia, forgados a entender e a praticar todas as
especialidades, todos os ramos da Medicina, constituíram o que se convencionou
chamar de "médicos-de-família" (11), ou seja, aquele que medicava os membros
de urna familia, do recém-nascido ao anciao, de ambos os sexos, atendendo-os ora
como clínico, ora como cirurgiao, e ainda como parteiro. Era, além do mais, o
conselheiro, consultado e ouvido ñas dificuldades e nos problemas domésticos.
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A Medicina continua teórica e essencialmente clínica, vale-se da observagao ao pé
do leito do enfermo, baseia-se nos síntomas e em sinais visíveis e suspeitados, os
quais, depois de comparados e somados, determinam a natureza da doenga.
Inexistiam os meios auxiliares de diagnóstico e, portanto, a casuística - o registro
dos casos - era um fator importante para determinar o diagnóstico. A patología
repousava na sintomatologia, enquanto a origem, as causas - por desconhecidas,
ignoradas, ou ainda, por mal avahadas - eram atribuidas, como no passado, as
condigoes climáticas, aos desregramentos alimentares e sexuais, a estados
emotivos, a "germes", vapores e humores indeterminados, genéricos, já que a
teoría microbiana só surge ao final do século XIX.
Entretanto, a medicina no Brasil também comega a assumir o novo paradigma
científico e, como tal, além de criar instituigoes como as já citadas, necessita de
seus meios de divulgagao. Surgem os periódicos médicos, dos quais dois se
destacam por sua duragao, tornando-se um importante veículo de pesquisa,
intervengao e divulgagao de idéias. Sao eles a "Gazeta Medica da Bahia", primeiro
periódico médico brasileiro, criado em 1866, e o "Brazil Medico", do Rio de Janeiro,
criado em 1887.
A "Gazeta Medica da Bahia" surgiu a partir de um grupo de médicos, (12) nao
pertencentes ao quadro de lentes da Faculdade da Bahia, que se reuniam, a partir
de 1865, em sessoes científicas, com discussoes sobre Anatomía Patológica,
alicergadas em dados fornecidos pelo microscopio. Esses médicos, com as suas
cuidadosas observagoes e seus estudos clínicos, iniciam urna nova era na Medicina
brasileira. Sao eles os predecessores e, mesmo, os arautos da Medicina
experimental no país. Foram denominados "tropicalistas", ou, em terminología
atual, parasitologistas (Santos Filho, 1991). A Gazeta Medica da Bahia, pelo seu
conteúdo, pode ser apontada como um verdadeiro tratado de Medicina Tropical
brasileira (Schwarcz, 1995).
O Brazil Medico, ao contrario da Gazeta Medica da Bahia, nasceu vinculado á
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Para Schwarcz (1995), o periódico
adquirirá um perfil próprio a partir de fináis do século XIX com o fortalecimento da
área de higiene pública, quando terá um papel vital no combate as epidemias e na
divulgagao das campanhas de saneamento e no apoio a urna "medicina tropical" (p.
223). Em nossa pesquisa sobre este periódico observamos que assume de forma
explícita um caráter didático, de formagao dos médicos, através de artigos sobre
estudos de caso, além de indicar literatura atualizada, apresentar resumos de obras
recém-langadas na Europa e estimular, via divulgagao, a participagao em eventos
científicos. Em todos estes casos, a partir dos anos de 1912 surge a mengao
explícita a livros, eventos, estudos psicológicos (13).
Medicina Social
De acordó com alguns estudiosos que trabalharam com as teses defendidas ñas
Faculdades de Medicina, muitas délas discorrem sobre temas sociais, de modo que
podem ser consideradas como pertencentes á Medicina Social. Segundo Antunes
(1998), "tratam de questoes relacionadas á higiene e áquilo que hoje consideramos
como fatores psicossociais" (p. 30).
Machado (1978) também as sitúa na esfera da Medicina Social, afirmando que esta
se empenhava na busca de urna normalizagao da sociedade com vistas a urna
formagao sadia. Era preciso que a sociedade fosse organizada e livre de desvíos. O
que causava "desordem" deveria ser eliminado ou devidamente controlado através
de projetos profiláticos e reparadores. Nota também que, ñas teses,
freqüentemente há urna elaboragao de propostas para varias organizagoes sociais,
com a finalidade de higienizá-las: urna preocupagao com hospitais, cemitérios,
bordéis e, de maneira especial, com a escola e a própria instituigao familiar.
Assim, por exemplo, verificamos que a campanha pela amamentagao materna gera
afirmativas como a de Duque, em sua tese "Hygiene da Changa, do nascimento a
queda do cordao umbilical" (1864, pp. 23-24): "... o /e/te é, pois,
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incontestavelmente aquelle que a natureza destinou ao recém-nascido, e o
substitui-lo seria ir de encontró ao voto desta, e diminuir a humanidade".
Nessas propostas médicas observa-se também urna certa produgao de idéias
moralizantes expressas através de formas de controle de comportamento, sempre
com a justificativa de visar urna vida mais saudável. Ubatuba, por exemplo, em sua
tese de 1845 (p.22): "Algumas consideragóes sobre a educacao physica", dirige-se
diretamente ao que deve ser o comportamento adequado da mulher: "vesti-vos,
alimentae-vos regradamente e compenetrae-vos d'esta verdade que sois esposas,
mais, e que sois mais a alma de vossas familias do que das sociedades".
É importante notar também que até o século XVIII o ensino na colonia portuguesa,
limitado as escolas elementares, era controlado pelos jesuítas. Em meados do
século XVIII os jesuítas sao perseguidos em Portugal - e conseqüentemente no
Brasil - através das sangoes de Marqués de Pombal (14). Com a proibigao do
trabalho educacional dos jesuítas, o clima intelectual brasiieiro fica mais rarefeito,
só movimentado pela entrada, embora pequeña e restrita, de ideologías liberáis
originadas no contexto da Revolugao Francesa e da Independencia dos Estados
Unidos.
No século XIX, contudo, a intelectualidade brasileira se encontra em meio a um fluir
de idéias que ofereciam a possibilidade da construgao de novos discursos
filosóficos, extremamente ecléticos, no dizer de Alberti (1999). Notadamente a
partir da chegada dos pensamentos evolucionista, materialista e, principalmente,
do positivismo ao Brasil (este já no último quartel do século XIX), Alberti observa,
ñas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, urna crescente objetivagao
da alma, tirando-a das maos de Deus e gradativamente colocando-a sob o controle
rigoroso da ciencia.
Neste contexto, julgamos fundamental o exame das idéias em desenvolvimento na
Europa, especialmente na Franga, que influenciaram significativamente a
consolidagao do campo médico brasiieiro.
Principáis teorias européias influentes no ensino médico brasiieiro
A consolidagao da psiquiatría enquanto especialidade médica no Brasil acompanhou
o desenvolvimento desta disciplina no cenário europeu. Assim como na Europa, o
nascimento da psiquiatría aqui está estritamente vinculado ao nascimento do asilo
enquanto instituigao psiquiátrica, de modo que a inauguragao do Hospicio Pedro I I ,
no Rio de Janeiro, em 1852, é muito freqüentemente considerada o marco inicial do
exercício da atividade psiquiátrica entre nos. A construgao do Hospicio, inserida no
emergente projeto de urbanizagao e ordenagao da cidade, simbolizou, entre outras
coisas, urna tentativa do nascente Imperio brasiieiro em mostrar-se em
consonancia com a modernidade européia.
Neste momento, as faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia — que,
como dito, foram criadas em 1832, sucedendo aos antigos colegios médicocirúrgicos — possuíam urna cátedra de Medicina Legal (Russo, 1993). Logo em
seguida foi criada a cadeira de Higiene, urna das principáis áreas de pesquisa,
sobretudo no Rio de Janeiro. Somente em 1881, numa nova reforma do ensino
médico (decreto 3024), foi criada a cadeira de Clínica Psiquiátrica e Molestias
Mentáis, que, no caso da Faculdade do Rio de Janeiro, foi interinamente ocupada
pelo também catedrático de Medicina Legal á época, Dr. Nuno de Andrade, diretor
médico do hospicio. Conforme Venancio (2003), somente em 1887 a nova cátedra
e a diregao do Hospicio serao ocupadas por aquele que é considerado o primeiro
psiquiatra brasiieiro, Joao Carlos Teixeira Brandao (1854-1921). Observamos, pois,
que a Psiquiatría se constituí no Brasil por um lado no mesmo movimento do que
ocorrera na Franga - a partir da existencia do hospicio e do trabalho com pessoas
internadas e classificadas como doentes mentáis (e nao mais os loucos a serem
considerados como "diferentes" ñas rúas da cidade ou colocados ñas naus dos
desvairados). Por outro lado, ela se constituí a partir da Medicina Legal, ou seja, as
questoes da inimputabilidade e da periculosidade do réu ou criminoso sao questoes
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prementes á época e fazem com que a investigagao dos atributos do individuo seja
uma questao relevante na intersegao da Medicina com o Direito, o que vai justificar,
por exemplo, a relevancia da teoria da degenerescencia, como veremos abaixo.
Esta e outras idéias em desenvolvimento na Europa, e ainda mais especialmente na
Franga, influenciaram significativamente a consolidagao do campo médico
brasileiro, de modo que grande parte das teses elaboradas pelos alunos da
Faculdade de Medicina para sua conclusao de curso é muito freqüentemente
considerada uma mera reprodugao ou compilagao de autores franceses, dentre os
quais se situam, por exemplo, Pinel, Esquirol, Morel, Ribot, tese com a qual nao
concordamos por partilharmos do principio da "tradugao" tao bem exposto por
Schwarz (1992) (vide nota 10).
Philippe Pinel (1745-1826) foi o primeiro autor a estudar a loucura de forma
empírica, contrapondo-se as concepgoes teológicas e metafísicas desenvolvidas até
entao, as quais, vendo os loucos como vítimas de possessoes demoníacas ou de
outros fenómenos sobrenaturais, nao os encaravam como doentes e, portanto,
como pertencentes á esfera médica. (15) Representante do espirito iluminista de
sua época, Pinel defendía como principios básicos de orientagao de um médico na
busca da verdade os mesmos seguidos pelas outras ciencias naturais para este fim
(Teixeira, 1997). Assim sendo, preconizava que os médicos partissem do estudo
dos síntomas apresentados para, a partir daí, se chegar a um quadro clínico mais
geral, o que constituiría o método a ser utilizado na investigagao e análise das
doengas mentáis. Segundo Teixeira (1997) as nogóes introduzidas por Pinel
consolidaram novos conceitos operatorios:
(1) uma semiología psiquiátrica, a partir do olhar
do alienista que convive, observa e descreve
minuciosamente o comportamento dos doentes;
(2) uma nosografía, com a conhecida divisao
pineliana em quatro grandes classes, a saber: a
mania, a melancolía, a demencia e o idiotismo;
(3) uma abordagem clínica, que parte dos
síntomas para chegar aos quadros clínicos; e (4)
uma terapéutica específica da loucura, voltada
para o tratamento das causas corporais e,
principalmente, das chamadas causas moráis, isto
é, das paixóes descontroladas, ardentes ou
pervertidas que estariam na base da insanidade
(P- 46).
O tratamento moral, proposto por Pinel como terapéutica específica para a loucura,
defendía a regularizagao e conseqüente disciplinarizagao dos hábitos dos internos, o
que se traduzia, por exemplo, no estabelecimento de horarios para todas as
atividades, na definigao de uma rotina precisa para os trabalhos, na administragao
dos momentos de recreio, enfim, no controle de tudo aquilo que contribuísse para
uma rigorosa ordenagao do seu quotidiano. Além disso, a restrigao aos jogos que
exaltassem as paixóes e o reconhecimento e sujeigao á autoridade do médico,
também eram tidos como elementos fundamentáis abarcados nesta proposta
terapéutica (Castel, 1978).
Na concepgao de loucura desenvolvida por Pinel estava presente a idéia de
perturbagao do entendimento, uma disfungao do intelecto ou faculdade de pensar,
onde o delirio figuraría como um síntoma necessário para o diagnóstico da doenga
mental. Jean-Etienne Dominique Esquirol (1772-1840), complementando Pinel,
amplia a sua nogao de loucura quando a descreve também como uma "aberragao
profunda dos sentimentos moráis" (Castel, 1978, p. 270), e, assim, reafirma a
importancia do asilo enquanto o único local apropriado para o tratamento moral dos
alienados. A partir de Esquirol, o afastamento social do louco passa a ser
considerado terapéutico por si só, e o hospicio passa a ser visto definitivamente
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como um instrumento necessário para a intervengao médica na loucura, do qual,
portanto, o alienista nao poderla prescindir.
A Teoria da Degenerescencia, desenvolvida por Bénédict-Augustin Morel (18091873), foi urna das grandes influencias no meio médico brasileiro da segunda
metade do século XIX e inicios do XX, principalmente por sua relevancia para a
Medicina Legal, como exposto ácima. Defende a idéia da transmissao de urna
predisposigao do organismo á degenerescencia, que pode ser identificada pela
ocorréncia de tragos físicos e moráis característicos aos degenerados. Leonel
Gomes Velho, em sua tese "Do degenerado e sua capacidade civil", de 1905,
apresenta as idéias de Morel e de alguns de seus seguidores, procurando
inicialmente apontar as diferentes definigoes de "degenerado" e de como este se
encontra presente em todos os recantos da vida - nao existem só os degenerados
debéis, pouco aptos para as lutas pela existencia, mas também os superiores,
aqueles individuos
origináis, bizarros e excéntricos que, apesar de
serem triunfantes na vida e até ocuparem
elevadas posigoes sociais, sao tao anormais sob o
ponto de vista cerebral quanto os idiotas. Devido
a este fato, os debéis, por serem impotentes, sao
menos
prejudiciais á
sociedade que
os
degenerados superiores (s/esp).
Assim, a degenerescencia nao estaría ligada somente á alienagao mental, mas á
idéia de desvio de modo geral.
As causas da degeneragao sao pensadas como podendo ser tanto físicas quanto
moráis. Como possíveis causas físicas sao apontadas a insalubridade dos climas, a
má higiene e a insuficiencia das moradias e da nutrigao, sendo atribuida especial
importancia ao meio enquanto produtor de condigoes propicias á instalagao de
processos degenerativos. Como causas moráis, por outro lado, figuram a
ignorancia, a avareza, a sede de prazeres, a prostituigao, os fanatismos, entre
muitas outras (Serpa Jr., 1998, p.18). No entanto, também sao apontadas com
freqüéncia lesoes físicas, moráis e intelectuais como sendo conseqüéncias do
processo de degeneragao, o que demonstra o caráter paradoxal deste processo,
onde causa e efeito sao muitas vezes confundidos, num processo de
retroalimentagao.
Urna das formas encontradas pela medicina para intervengao neste processo foi a
higiene, mencionada por Morel como possibilidade de tratamento para a
degenerescencia. A higiene moral empenhava-se na moralizagao dos hábitos e
costumes do degenerado, a partir da disseminagao de urna leí moral que, sendo
universal, seria o principal fator de uniao da especie humana. Á higiene física nao é
atribuida menor importancia, pois se proclamava urna interdependencia do físico e
do moral, já que somente em um organismo saudável a moral poderia desenvolverse adequadamente.
É interessante notar que a problematizagao acerca das relagoes entre o físico e o
moral é bastante representativa das discussoes em voga neste momento. Como já
vimos, com a chegada dos modelos científicos em vigor na Europa, como o
positivismo, e o progressivo abandono do "discurso da alma", pela entrada em cena
do discurso biologizante, a definigao de urna localizagao física das fungoes psíquicas
- ou seja, do que no momento anterior era entendido como "atributos da alma" passa a ser o objetivo primordial perseguido pelos médicos de entao. Este é um
momento que Keide e Jacó-Vilela (1999) denominam como um processo crescente
de fisiologizagao da alma.
As idéias psicológicas em desenvolvimento na Franga e na Alemanha, traduzidas,
respectivamente, ñas figuras de Ribot e Wundt, também exerceram influencia na
produgao académica de nossos médicos.
Wilhelm Wundt (1832-1920), fundador do Laboratorio de Psicología em Leipzig em
1879 é reconhecido, de urna maneira geral, como o fundador da Psicología
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científica, embora este rótulo muitas vezes deixe ocultas as condigoes de
possibilidade para este papel criadas por trabalhos anteriores, como os de Muller e
de Fechner, bem como enfatiza a vertente experimental de seu trabalho,
desdenhando sua "psicologia dos povos". Esta será a face de seu trabalho que
chega ao Brasil e propiciará, já nos principios do século XX, a montagem de
laboratorios.
Na Franga, por sua vez, a Sociedade de Psicologia Fisiológica, fundada em 1885,
em Paris, sob a lideranga de Theodule Ribot (1839-1916), surge por sua vez em
contraposigao á vertente filosófica anteriormente predominante designada como
"esplritualismo" (16) e pretendía contribuir para urna autonomizagao da psicologia,
afastando-a da filosofía e possibilitando, a partir de um maior comprometimento
com a fisiología, que obtivesse um estatuto científico.
Assim, ressalvadas as diferengas entre os dois autores ácima, observa-se que
apresentavam em comum a compreensao de que a psicologia fisiológica deveria
basear-se em fatos concretos, evitando quaisquer especulagoes de cunho filosófico
que a aproximassem de urna metafísica, pois somente desta forma poderia ser, de
fato, enquadrada no conjunto das ciencias. Com este intuito, buscava-se
estabelecer urna correspondencia entre os fenómenos psicológicos e fisiológicos,
afirmando-se, com base nos novos conhecimentos acerca do sistema nervoso, que
eram de urna mesma natureza, fundamentando-se assim orgánicamente a
atividade psíquica. Ribot, contudo, terá maior presenga entre os médicos brasileiros
pois sua psicologia era mais centrada na observagao da patología, que nao via
como negagao ou oposigao ao funcionamento normal, mas como degradagao deste.
Seus estudos dirigidos para a patología mental tém grande importancia para esta
vertente da psicologia experimental européia, contribuindo para o fortalecimento de
urna abordagem clínica por parte de seus teóricos. Partia-se do principio de que, a
nao ser por urna variagao quantitativa, os fenómenos patológicos sao idénticos aos
normáis, o que significa, em outras palavras, que a patología poderia viabilizar
estudos sobre as condigoes de normalidade, já que seria equivalente a estas em
urna outra escala. Assis, em sua tese "Das emogoes", de 1892, após dizer que a
psicologia experimental talvez explique a insensibilidade afetiva, principalmente
pela análise das formas de "ataque", de alteragoes da personalidade, diz que
O objeto, portanto, da psychologia physiologica é
descrever os phenomenos do mundo mental e
investigar as leis que os regem. (...) na sciencia
mental, o psycho-physiologico nada tem a ver
com a alma e com as suas faculdades, substancia
ou causas metaphysicas (s/esp).
Esta valorizagao da psicopatologia foi um dos elementos fundamentáis na definigao
de um caráter eminentemente intervencionista da psicologia fisiológica, caráter este
que a distinguirá de outras vertentes da psicologia experimental - como a própria
psicologia alema - e que a tornará especialmente interessante para a realidade
brasileira. A perspectiva intervencionista oferecida por este modelo será, portanto,
mais freqüentemente adotada pelos intelectuais brasileiros, que, na busca
constante de solugoes para os problemas da cidade, estarao sempre propondo fazer
uso de técnicas de intervengao (Jacó-Vilela, 2000).
Considerares Fináis
O processo de institucionalizagao do ensino médico no país foi instrumento
relevante para o caráter científico e moderno da medicina praticada no Brasil. Um
de seus fatores mais relevantes, a compreensao sobre o estatuto da alma, releva
urna continua mudanga da relagao alma versus corpo, a fisiologizagao de antigos
atributos da alma possibilitando aos médicos urna maior autoridade para
assumirem urna regulagao das condutas humanas e conseqüentemente dos
fenómenos sociais relativos á saúde, saneamento, habitagao e outros. Afinal,
ninguém melhor que médicos - que, é importante ressaltar, atuavam em acordó
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com os interesses do Estado - para organizar urna sociedade composta de pessoas
cujas condutas, sentimentos e motivagoes sao regidos por processos fisiológicos.
Considerava-se a conduta anti-higiénica dos habitantes como subversiva e um
empecilho fundamental á saúde e á organizagao da cidade. As técnicas higiénicas
da Medicina Social concretizaram-se por dispositivos de persuasao que procuravam
mostrar as vantagens (diminuigao da mortalidade dos filhos, mais saúde, e vida
mais longa) de urna submissao as suas ordens. Santos, por exemplo, em sua tese
de 1857 intitulada Que régimen será mais conveniente para a creagáo dos expostos
da Santa Casa de Misericordia, atientas nossas circunstancias especiaes: a criacao
em comum dentro do Hospicio, ou a privada em casas particulares? diz:
Se a cifra dos meninos engeitados, e educados á
custa da sociedade, cresceu tao prodigiosamente,
há trinta annos, nao é porque de anno a anno
haja um numero maior de meninos expostos e
engeitados; é porque morrem muito menos,
gragas as applicagoes felizes da hygiene publica á
educagao das changas (Santos, 1857, p. 24).
Ou seja, os médicos recorrern aos saberes psicológicos para exercerem sua fungao,
quer aqueles saberes oriundos da tradigao brasileira quer, principalmente, os novos
conhecimentos científicos em desenvolvimento na Europa.
A sociedade brasileira no século XIX atravessou urna profunda transformagao
económica e social desde a chegada da familia real no comego do século. Nesse
contexto, a medicina foi chamada para contribuir na solugao de diversos problemas,
incluindo-se ai a preocupagao com fenómenos que poderíamos chamar de
"psicológicos". Assim, é possível dizer que o século XIX foi para a Psicología o
momento fundamental que preparou as condigóes para sua constituigao e posterior
autonomizagao como saber independente.
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459702003000300005&lng = pt&nrm = iso.
Notas
(1) Nao poderiam ser eleitos membros das Cámaras pessoas mecánicas,
mercadores, filhos do reino, judeus, soldados nem degredados, e sim nobres
somente, naturais da térra e descendentes dos conquistadores, segundo diversos
alvarás e cartas regias que vao de 1643 a 1747.(Garda, 1975, citado por Costa,
1979, p. 40).
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(2) Revolugao Pernambucana: revolta de cunho liberal que conseguiu congregar em
torno de um ideal de emancipagáo política e republicanismo, populares,
intelectuais, militares e religiosos.
Sabinada: movimento promovido por fazendeiros e militares baianos descontentes
com as medidas impostas pela Regencia. Nao incluía a defesa de interesses
populares como a libertagáo de escravos e outros.
Cabanagem: movimento liderado por fazendeiros e comerciantes paraenses, gerado
pelo inconformismo contra medidas impostas pelo poder central. Teve ampia
participagáo da populagáo pobre, conhecida como cabanos.
Balaiada: revolta liderada por escravos e sertanejos pobres que viviam no
Maranháo. Receberam apoio de liberáis, pessoas ricas e de prestigio social,
descontentes com o poder central.
(3) A fundagáo do Instituto Histórico e Geográfico em 1838, já no período imperial
e de forma associada financeira e intelectualmente ao monarca, surgiu da
necessidade de se criar urna historia e inventar urna memoria para a nagáo recémfundada.
(4) Projeto elaborado por Manuel Luís Alvares de Carvalho, "diretor dos estudos de
Medicina e Cirurgia da Corte e do Estado do Brasil", físico-mor do Reino, e aprovado
pelo decreto Io de abril de 1813. O curso durava cinco anos, estando as disciplinas
distribuidas da seguinte maneira: Primeiro ano - Anatomía Geral; Química
farmacéutica e nogoes de farmacia; Segundo ano - Anatomía (repetigáo) e
Fisiología; Terceiro ano: Higiene, etiología, patología e terapéutica; Quarto ano:
Instrugoes cirúrgicas e operagoes, Arte obstétrica, teoría e prática; Quinto ano:
Medicina (exercícios práticos ñas enfermarías) e Arte obstétrica (repetigao).
Posteriormente, determinou-se que os alunos da Academia do Rio de Janeiro
tivessem aulas de Botánica, Patología cirúrgica e de materia médica e farmacéutica.
(5) Alguns projetos de reforma do ensino médico foram apresentados na década de
20 até culminar no projeto aprovado, em 1832, que cria as Faculdades. Para
maiores detalhes, ver Santos Filho (1991, p. 87-88).
(6) Em 1835 é transformada em Academia Imperial de Medicina, que hoje é a
Academia Nacional de Medicina (Maia, 1996).
(7) Este detalhe é revelador da influencia francesa á época.
(8) A organizagáo do curso era a seguinte: Primeiro ano: Física médica; Botánica
médica e principios elementares de zoología. Segundo ano: Química médica e
principios elementares de Mineralogía; Anatomía geral e descritiva. Terceiro ano:
Anatomía; Fisiología. Quarto ano: Patología externa; Patología interna; Farmacia,
Materia médica, especialmente brasileira, Terapéutica e arte de formular. Quinto
ano: Anatomía topográfica, Medicina operatoria e aparelhos; Partos, molestias de
mulheres pejadas e paridas e de meninos recém-nascidos. Sexto ano: Higiene e
Historia da Medicina; Medicina Legal. E ainda: Clínica externa e Anatomía
patológica respectiva, a todos os estudantes do segundo ao sexto anos; e Clínica
interna e Anatomía patológica respectiva aos do quinto e sexto anos.
(9) No Rio de Janeiro, a primeira sede do curso, em 1808, foi o Hospital Real
Militar; em 1813, com a ampliagáo do ensino, as aulas passaram a ocupar também
a Santa Casa de Misericordia. Em 1856 a Faculdade muda-se para o predio onde
funcionava o Recolhimento das Órfás, mantido pela Santa Casa. Permanece neste
local até a aquisigáo de sede própria, em 1918, quando é inaugurada a "nova
Faculdade Nacional de Medicina", localizada na Praia Vermelha. Em 1973, a
Faculdade muda-se novamente, agora para a Cidade Universitaria da liria do
Fundáo, local onde permanece até hoje.
(10) Entretanto, é oportuno lembrar, com Schwarz (1992), que esta importagáo
implica nova leitura do que foi importado (Conferir capítulo As idéias fora do lugar).
(11) Consideramos oportuna a comparagáo com os atuais "médicos de familia",
categoría criada no Brasil após o excesso de privilegios á especializagáo e que é
compreendida como "assimilagáo" do modelo cubano, desconhecendo-se a
experiencia brasileira previa neste modelo.
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(12) Formado pelo escocés John Paterson, o alemao nascido em Portugal Oto
Wucherer, e o portugués Silva Lima (Santos Filho, 1991).
(13) Embora nao pretendamos detalhar aqui nossas investigagoes com as fontes
primarias, consideramos importante salientar que, em nossa pesquisa sobre este
periódico, os artigos foram divididos em 11 categorías, quais sejam: Alcoolismo/
Drogas; Sexualidade; Clima/ Topología; Psicología; Higiene; Infancia/ Juventude;
Saneamento; Servigos e Assisténcia; Ocorréncias Psíquicas/ Psiquismo; Instituigoes
e Doengas. Em nossa análise destas, por sua vez, temos confirmado o caráter
eminentemente didático que o Brazil-Médico assume.
(14) Fortemente influenciado pelo Iluminismo, Pombal - ministro de Estado de D.
José I - se insere no quadro do despotismo esclarecido, em que os monarcas, sem
abandonar o poder absolutista, adotam algumas práticas e principios liberáis. As
ordens religiosas, donas de um grande patrimonio de bens, faziam constantes
interferencias em assuntos do Estado. Pombal, marcado pelo anticlericalismo típico
do Iluminismo, promoveu a expulsao dos jesuítas de Portugal e de seus dominios
em 1759.
(15) Até entao os loucos viviam pelas rúas ou eram objeto de internamento nos
hospitais gerais, ao cuidado das irmas de caridade, ou seja, a loucura nao era
objeto de interesse da ciencia.
(16) Esta vertente teve como principáis representantes Pierre-Paul Royer-Collard,
Victor Cousin e Théodore Jouffroy.
Nota sobre os autores
Ana María Jacó-Vilela é pesquisadora do Núcleo Clio-Psyché de Estudos e pesquisas
em Historia da Psicología do Programa de Pós-Graduagao em Psicología Social da
UERJ e desenvolve atualmente pesquisa sobre a contribuigao de católicos e médicos
á constituigao da Psicología no Brasil. Contato: [email protected]
Cristiane Ferreira Esch, Daniela Albrecht Marques Coelho e Marcelo Santos Rezende
foram bolsistas de Iniciagao Científica (CNPq e Faperj) da referida pesquisa,
atualmente psicólogos formados. Contato: [email protected]
Data de recebimento: 16/08/2004
Data de aceite: 20/10/2004
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Origem e relevancia de um laboratorio de psicología
no Brasil na década de 1950
Origin and social relevance of a laboratory of psychology in Brazil in the
1950's
Elizabeth de Meló Bomfim
Maria Teresa Antunes Albergaría
Universidade Federal de Sao Joao del-Rei
Brasil
Resumo
0 artigo ancora-se ñas investigagoes sobre as condigoes de surgimento e a
relevancia de um laboratorio de psicología da década de 1950 em urna instituigao
confessional situada no interior do Estado de Minas Gerais. Trata-se da antiga
Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei que, em
1955, adquiriu, da Italia, modernos equipamentos nos moldes dos existentes na
Europa pretendendo introduzir melhorias no ensino ministrado nos cursos.
Desdobrando suas atividades, o laboratorio tornou-se o instrumento utilizado pelos
salesianos para a geragao de um Instituto de Psicología e Pedagogía, de um curso
de Orientagao Educacional e de um ativo servigo de orientagao educacional e
profissional.
Palavras-chave: historia da psicología no Brasil; historia dos laboratorios de
psicología; historia dos salesianos no Brasil.
Abstract
This article investigates the relevance of a laboratory of psychology and the
conditions under which they were created in the 1950's in a religious institution in a
country town in the state of Minas Gerais. The institution was the former Dom
Bosco College of Philosophy, Sciences and Letters of Sao Joao del-Rei, which, in
1955, acquired, from Italy, some modern equipment similar to the ones used in
Europe at the time, in an attempt at improving the courses that were taught there.
Unfolding its activities, the laboratory became the instrument the Salesian
brotherhood used to créate an Institute of Psychology and Pedagogy and a Course
in Vocational Guidance as well as a group which specialized in educational and
professional orientation.
Keywords: history of psychology in Brazil; history of the Psychology laboratories;
history of the Salesian brotherhood in Brazil.
Introducao
Em meados do sáculo XX, os salesianos, membros da terceira maior congregagao
católica do mundo cujo patrono é Francisco de Sales, realizaram a importagao de
um moderno laboratorio de psicología para a, entao recente e hoje já extinta,
Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei.
Objetivando desenvolver conhecimentos e pesquisas em psicología semelhantes,
principalmente, aqueles desenvolvidos nos laboratorios de psicología europeus,
adquiriram aparelhos, testes e equipamentos nos moldes dos existentes no
Instituto de Psicología de Milao, no Instituto Superior de Pedagogía de Turim, no
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Instituto Jean Jacques Rousseau, no Instituto de Psicología de Louvain e no
Instituto Católico de Paris.
A aquisigao do laboratorio reorientou o conteúdo programático do curso de
pedagogía existente, fortalecendo as temáticas de pesquisa e prática pertinentes á
psicología. Com o desenrolar das atividades do laboratorio, foi possível a fundagao
de um instituto de psicología e pedagogía, a criagao de um curso de Orientagao
Educacional e o desenvolvimento de um ativo servigo de orientagao educacional e
profissional.
Neste trabalho, parte integrante de um projeto maior, nossa intengao foi a de
debrugarmo-nos sobre as series documentáis pertencentes ao acervo desse antigo
Laboratorio de Psicología da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de
Sao Joao del-Rei para a análise da origem e da constituigao do referido laboratorio.
Como responsáveis pelo projeto de levantamento, análise e disponibilizagao desse
acervo, respaldamo-nos, neste artigo, na perspectiva metodológica da historia
documental (Carvalho, 1976). Assim, relacionamos a constituigao do laboratorio
com sua origem histórica e com seus desdobramentos na década de 1950, a partir
da documentagao existente.
O atual projeto de levantamento, análise e disponibilizagao do acervo, no qual
estamos envolvidas, visa restaurar e higienizar as documentagoes existentes e
elaborar, num catálogo, o registro do material, tendo em vista a sua
disponibilizagao para consultas e pesquisas. Urna futura informatizagao do acervo
possibilitará que os dados estejam disponíveis em redes computadorizadas
oferecendo, assim, urna ampia divulgagao da documentagao que nao seja
confidencial. Pretende-se, também, criar um centro de documentagao e historia da
psicología que funcionará como urna unidade de apoio documental para o
desenvolvimento de estudos e pesquisas em psicología, reunindo informagoes e
documentos relevantes na área. Objetivando ser um órgao de atengao as
necessidades de estudiosos e pesquisadores de psicología e áreas afins, o centro de
documentagao e historia da psicología poderá estabelecer lagos de cooperagao e
intercambio ativos com instituigoes congéneres, nacionais e estrangeiras, no
sentido de promover campanhas em prol dos centros de documentagao de
psicología, fazer convergir os acervos da área porventura desativados ou com
pequeña utilizagao e incentivar publicagoes em historia da psicología no Brasil.
As origens do laboratorio
A congregagao dos salesianos foi fundada pelo italiano Joao Melchior Bosco (18151888), que recebeu, após ser consagrado sacerdote católico, conforme o costume
italiano, o nome de Dom Bosco.
Dom Bosco era um padre muito afeigoado á leitura e á educagao e consta que
aproveitava todo o tempo disponível para a realizagao de seus estudos. Estudava
enquanto levava o rebanho ao pasto, durante as refeigoes e antes de dormir.
Aprendeu as línguas francesa e hebraica e estudou as obras de Cornélio Nepos (9924 a.C), Cicero (106-43 a.C), Salústio (86-35 a.C), Tito Lívio (59 a.C-17 d.C),
Tácito (59-119 d.C), Ovidio (43 a.C.-18 d.C), Virgilio (70 -19 a.C.) e Horacio
Flacco (65-8 a.C). Leu, também, as obras do beneditino Dom Calmet (16721757), do historiador judeu Flávio Josefo (37-101 d.C), os volumes sobre a defesa
ao cristianismo de Denis-Luc Frayssinous (1765-1841), o dominicano Iácopo
Passavanti (1300-1357), o teólogo jesuíta Cornelius Lapide (1567-1637), além de
Jaime Luciano Balmes (1810-1848) e Domenico Cavalca (1270-1342). Gostava de
recitar trechos das obras de Dante, Petrarca, Tasso, Parini e Monti, numa evidente
manifestagao de sua boa memoria. Estudou no seminario de Chieri, cidade próxima
de Turim, e, após ter-se consagrado sacerdote, em 1841, ingressou no Convento
Eclesiástico de Turim, dando inicio á sua obra sacerdotal.
Os oratorios festivos, urna de suas contribuigoes, eram reunioes com criangas e
jovens desamparados que, aos domingos e dias festivos, se agregavam para
atividades de lazer e de aprendizagem da fé crista. Era o inicio do sistema
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preventivo - melhor prevenir do que remediar -, que seria adotado ñas atividades
educativas dos salesianos apoiadas em tres pilares: razao, amor e religiao.
Ao fundar a congregagao, Dom Bosco insistiu que os seus sacerdotes estudassem.
A partir da reforma educacional italiana de 13 de novembro de 1854, quando foi
promulgada a Lei Casati - considerada laica e instituida num momento de
hostilidade em relagao á influencia da Igreja Católica -, empenhou-se para que
seus sacerdotes, sem perda de tempo, possuíssem os títulos e láureas legáis e
evitassem, assim, o fechamento das instituigoes escolares por falta de professores.
Era seu desejo que seus padres se apresentassem para os exames de licenga
normal, urna especie de curso de magisterio superior existente na Italia, ou que se
inscrevessem nos cursos das Faculdades de Filosofía, Ciencias, Letras e Matemática
da Regia Universidade de Turim.
Em 1872, os salesianos passaram a contar com a colaboragao feminina, a partir dos
trabalhos das jovens Maria Verzotti, Francesca Riccardi e Luigina Carpanera,
integrantes do Oratorio das Filhas de Maria Auxiliadora de Turim. Era o inicio da
obra da congregagao católica Filhas de Maria Auxiliadora.
A preocupagao de Dom Bosco com o aperfeigoamento educacional de seus
sacerdotes era grande e, antes de sua morte, manifestou o desejo de enviá-los
para as universidades romanas. Contudo, isso só ocorreria, em 1890, após sua
morte, quando seus sucessores, Pe. Miguel Rúa, Pe. Paulo Albera e Pe. Pedro
Ricaldone, encarregaram-se da continuidade de sua obra que, entao, já alcangara
varios países do mundo.
No Brasil, após a designagao, por Dom Bosco, do Padre Lasagna como inspetor
para o Brasil e o Uruguai, em 1881, foram criados varios colegios. Entre eles,
figuram o Colegio Santa Rosa, em Niterói (1885), o Liceu Coragao de Jesús, em Sao
Paulo (1885) e o Liceu de Artes e Oficios, em Campiñas (1897). Em 1900 foi criado
o Liceu Salesiano do Salvador (1). E, novos colegios foram acrescidos como os de
Sao Paulo, Santa Catarina e no Espirito Santo.(2).
Na Italia, a partir da década de 1930, os salesianos promoveram mudangas na
orientagao relativa aos títulos académicos, em fungao dos novos métodos e
recursos técnicos existentes, privilegiando, também, a formagao em cursos de
pedagogía. Neste sentido:
... notamos dois grandes passos:
Io As insistencias para que se dé a máxima
atengao e importancia á consecugao dos títulos
académicos, até mesmos os relacionados com
Artes, Profissoes e Agricultura. As estatísticas em
1939 fizeram ver que mais de 900.000
trabajadores (operarios - artífices - agricultores)
passaram pelas Escolas Profissionais Salesianas
nos 87 anos de existencia. Era necessário estar á
altura do progresso, com novos métodos e
recursos da técnica.
2o O Conselheiro Escolar Geral a firmar a
orientagao de enviar os salesianos a freqüentar os
cursos universitarios ñas universidades de maior
renome, principalmente pedagógico (Faculdade
Dom Bosco, s/d, p. 5-6).
Em 1940, conseguem a aprovagao do Ateneu Eclesiástico Salesiano, em Turim,
onde eram ministrados os cursos de Filosofía, Teología e Direito Canónico. Do
investimento nos cursos de pedagogía, resultou, em 1941, a fundagao do Instituto
Superior de Pedagogía, que objetivava difundir os principios da pedagogía crista, as
propostas psicológicas e formativas de Francisco de Sales e o sistema pedagógico
de Dom Bosco. O Instituto Superior de Pedagogía cresceu e, aos poucos, foram
criados os institutos de Psicología Experimental, de Biología, de Física e Química, de
Antropología e Etnografía e de Ciencias Sociais, gerando, na Italia de 1956, o
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Instituto Superior de Ciencias Pedagógicas. Com um modelo de ensino superior
estruturado, urgia incrementá-lo nos varios países que dispunham dos servigos
salesianos.
No Brasil, e mais específicamente em Sao Joao del-Rei, os salesianos haviam
criado, em 1940, o Colegio Sao Joao, urna instituigao escolar destinada ao
aspirantado sacerdotal. Para sua fundagao, foi designado o padre Francisco
Gongalves, que havia cursado o Colegio Sao Miguel em Lavrinhas (Sao Paulo) e
desenvolvido seus estudos teológicos em Sao Paulo. Sua morte prematura, em
1947, gerou sua substituigao pelo Padre José Vieira de Vasconcellos que, entre
outras fungoes, ocuparía, posteriormente, o cargo de presidente do Conselho
Federal de Educagao.
O Colegio Sao Joao possibilitou as condigoes de fundagao, em 1948, do Instituto de
Filosofía e Pedagogía, urna instituigao educacional destinada á formagao, a nivel
superior, dos jovens aspirantes ao sacerdocio. O Instituto de Filosofía e Pedagogía
foi um passo para a abertura, em nivel superior, de cursos destinados aos leigos da
regiao. Assim, em 1954, nascia a Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e
Letras de Sao Joao del-Rei.
A Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei
manteve, inicialmente, os cursos de Filosofía, Letras e Pedagogía e era
contemporánea da Faculdade Salesiana de Lorena (Sao Paulo), fundada em 1952, e
da Faculdade Auxilium, mantida pelas irmas da congregagao Filhas de Maria
Auxiliadora. Tinha na Faculdade de Lorena seu modelo mais próximo. Como os
salesianos de Lorena haviam solicitado a Giacomo Lorenzini, entao diretor do
Instituto de Pedagogía do Ateneu Salesiano em Turim, a compra de um laboratorio
de psicología, semelhante iniciativa foi tomada pelos padres de Sao Joao del-Rei tao
logo se teve a noticia da permissao para a efetivagao da Faculdade Dom Bosco de
Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei. Antes mesmo da sua inauguragao,
os salesianos iniciaram, através da inspetoria situada no Rio de Janeiro, entao
capital federal, urna serie de correspondencias com o diretor do Instituto de
Pedagogía do Ateneu Salesiano, em Turim, Giacomo Lorenzini, para a aquisigao do
laboratorio de psicología (Bomfim e Albergaría, prelo A).
O laboratorio de psicología de Sao Joao del-Rei nao consta como um dos pioneiros
laboratorios de psicología do país, conforme estudo realizado por Massimi (1990).
Também nao foi o primeiro de Minas Gerais. Campos (1992) lembra que:
Em agosto de 1929, Antipoff assumiu a cadeira de
Psicología e criou o laboratorio de Psicología da
Escola de Aperfeigoamento, primeira instituigao
dedicada
específicamente
á
pesquisa
em
Psicología em Minas. Varios programas de
pesquisa foram desenvolvidos pelo Laboratorio no
decorrer da década de 30 (p. 33).
Contudo, sua importancia pauta-se na sua constituigao e na relevancia social dos
trabalhos ali realizados.
A montagem e os custos do laboratorio
Embora o responsável pela aquisigao do laboratorio tenha sido Giacomo Lorenzini,
foi considerável a participagao de profissionais como Agostinho Gemelli (18781959), Albert Michotte (1881-1965), Walther Moede (1888-1958) e Vicent Cimatti
(1879-1965), que contribuíram, quer com o envió dos aparelhos, quer
apresentando seus inventos, ou mesmo sugerindo outras aquisigoes.
Os aparelhos foram, em grande parte, construidos sob encomenda e eram
semelhantes aos usados nos laboratorios europeus; entre os quais, os de Genebra,
Turim, Louvain, Liége, Berlim, Paris, Madrid, Valencia e Roma. Copiavam os
modelos dos existentes nos:
(...) Istituto di Psicología di Milano (Gemelli),
Istituto Superiore di Pedagogía di Tormo
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(Lorenzini-Biglietti),
Instituí
Jean
Jacques
Rousseau (Piéron-Piaget), Instituí du Psychologie
de Louvain (Michotte-Fanville) Instituí Caíholique
de París (Naville), além de Lausanne (Carrrard),
Bruxelles (Christians) Liége (Pasquasy) Berlim
(Moede), Petersburgo (Netchaieff), Budapest
(Mnemómetro
de
Ranchbourg),
Valenga
(Tacodómetro de Mira) e Basiléia (Relógios de
Jacquet).
As firmas que mais trabalharam na construgao
dos aparelhos sao: LASM (Laborafori Apparecchi
Scieníifici Medid), dirigido por Ceresa em Torino,
IMR (Instituto Missionário Rebaudengo) em
Tormo, DUFOUR em Paris, Isíiíuío Sacro Cuore di
Milano e o Jacquet de Basiléia (Instituto de
Psicología e Pedagogía, 1964, p. 47-48).
A análise das correspondencias entre os salesianos brasileiros e Giacomo Lorenzini
revela que, em 1954, havia sido enviada a quantia de 10.000 dólares,
correspondente a 6.210.000 liras italianas para a aquisigao do laboratorio (Bomfim
e Albergaría, prelo B).
Figura 1: Um aparelho - audiómetro
No ano da expedigao dos aparelhos, grande parte da verba, mais específicamente
4.890.644 liras esterlinas, já havia sido gasta, conforme é possível verificar na
correspondencia datada de 11 de abril de 1955 e enviada por Giacomo Lorenzini.
Restava, ainda, a quantia de 1.319. 356 liras esterlinas que seria destinada á
aquisigao de tres aparelhos cuja construgao nao havia terminado.
A análise da documentagao do laboratorio permite mapear em tres eixos a
composigao e os custos do laboratorio:
. o primeiro eixo é constituido pelos aparelhos, testes e demais
equipamentos;
. o segundo eixo traduz o material bibliográfico, mais específicamente os
livros, as revistas e a aquisigao de material musical;
. o terceiro e último eixo mostra as despesas realizadas com embalagens,
transporte e demais taxas para a viabilizagao da importagao dos equipamentos.
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Especificando os itens de cada um desses eixos, verifica-se que, no primeiro eixo,
relativo aos aparelhos, testes e demais equipamentos para a instalagao do
laboratorio, é possível relacionar cada item com os seus respectivos valores
expressos em liras esterlinas da época. Verifica-se, também, que nesse eixo estao
relacionados os movéis, os dispositivos elétricos necessários ao funcionamento dos
aparelhos, assim como um microscopio, que foi destinado ao estudo de biología
educacional. Veja a relagao no Quadro I.
Quadro I: Relagao dos equipamentos, testes e aparelhos por valores em
liras esterlinas
Ambidestrimetro ou falso torno
Amplificador, microfone e altofalante
Aparelho de Bedini completo
Aparelho de controle de queda
Aparelho de ilusao de Muller Lyer
Aparelho de Richter
Aparelho desmontável de Moede
Aparelho para fixagao de gráficos
Audiómetro completo
Base de microfone
Bloco de Wiggly
Caixa de Decroly
Caixa de derivagao
Caixa de la colorida
Camera microfotográfica
Campímetro de Landelt
Cardiógrafo de Jacquet
Cinco interruptores para eletroquimógrafo
Cinestesiómetro
Compasso antropométrico
Contador de erros L. A S. M.
Cronoscopio gráfico
Dezoito pranchas para daltonismo
Dinamógrafo
Dois alto-falantes
Dois cronoscopio
Dois Morse
Dois Sinais eletromagnéticos
Dois Suportes
Duas cápsulas de Marey
Duas pranchas otométricas
Duplo taquistoscópio
Eletrocronoscópio
Eletrogravímetro
Eletroquimógrafo
Encaixes de Friedrich-Delys
Ergógrafo com registro automático
Esfignomamómetro
Espirómetro modelo Pini
Estesiómetro de Michotte
Estesiómetro P. A S.
Fabricagao de tres movéis para livros
45.000
82.500
7.000
43.000
2.400
33.000
26.000
24.000
295.000
6.800
3.800
33.000
1.150
2.200
15.000
56.800
17.250
13.000
34.000
7.700
24.000
55.000
12.000
34.500
25.000
29.000
12.000
41.000
1.400
41.000
500
26.000
62.000
58.000
155.000
29.000
98.000
6.000
44.200
48.500
16.000
653.219
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Folhas para o campímetro
Fotoestesiometro
Gravador de fita (magnetófono)
Máquina datilografica Olivetti
Máquina datilografica Olivetti portátil
Máquina de rotagao a motor
Mecanismos de Fritz-Heider
Metrónomo com contato elétrico
Microscopio com acessórios e sua
preparagao do microscopio
Mil folhas de respostas para o teste
Bloco de Wiggly
Mil folhas de respostas para o teste
Caixa Decroly
Mnemometro de Ranschurg
Módulos para atengao
Móvel para o quadro elétrico
Ototipo
Ototipo luminoso com base e completo
Plastoscópio
Pneumográfo
Pneumográfo torácico
Polidinamómetro
Prancha otometrica cor sobre cartao
Prancha otometrica para astigmatismo
Projetor epidiascópio com cavalete
Projetor Yus com duas lámpadas
Quadro elétrico
Reprodutorde microfilme Didascalie
Rodelas de Piorkowsky
Seis dispositivos para conexao e seis
dispositivos para suporte
Serie de pesos para ilusao
Sinuosidade de Bonnardel
Souriciére de Moede
Suporte universal
Tapping
Taquistoscópio completo
Taquitoscópio de Netchaieff
Teste de Arthus completo
Teste de Baumgarten-Tramer
Teste de Heuyer e Braille completo
Teste do disco de Léon Walther
Testes de Piéron e Toulouse
Tremómetro completo
Vinte rolos de papel para quimógrafo,
nove m. de tubo para prolongamento e
cinqüenta cm. de borracha p/ cápsulas
de Marey
1.500
150.000
254.800
38.000
38.000
92.000
29.000
14.500
351.000
5.000
5.000
43.000
18.000
18.000
1.300
60.000
6.000
7.000
9.500
33.200
250
250
147.300
6.000
180.000
8.000
5.200
11.280
1.300
25.000
9.000
25.000
5.000
60.000
38.000
16.000
18.000
20.000
20.000
47.000
22.000
6.100
Os aparelhos, testes e equipamentos permitiam a realizagao de medidas
biométricas, sensoriais, de aptidóes específicas, de personalidade e de interesses.
Conforme o relatório de atividades do Instituto de Psicología e Pedagogía - IPP
(1964), alguns aparelhos destinavam-se ao uso geral, como é o caso do quadro
elétrico, do gravador de fita, do amplificador, do microscopio e do projetor. Outros
serviam como registradores e medidores, como o eletroquimógrafo, o suporte
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universal, as cápsulas de Marey, os sinais eletromagnéticos e os pneumógrafos.
Para os exames visuais, eram destinados o ototipo, o campímetro de Landelt, o
plastoscopio (também denominado estereometro de Michotte) e o fotoestesiómetro.
Para a medida dos outros sentidos, eram usados o audiómetro (audigao), o
eletrogravímetro (sensibilidade bárica), o estesiómetro (percepgao tátil) e o
dinamómetro de Zimmermann (esforgo e trabalho realizado). Os estudos sobre a
percepgao demandavam o uso dos aparelhos de Muller e Lyer (ilusóes óticas), da
máquina de rotagao a motor (percepgao de movimentos e cores), do taquistoscópio
(rapidez de percepgao de imagens) e dos encaixes de Friedrich-Delys (percepgao de
formas). O tapping, o teste de Heuyer e Braille, o disco de Léon Walther, o
tremómetro e as rodelas de Piorkowsky eram usados para os estudos de
psicomotricidade. Para a análise da habilidade manual e da aprendizagem, eram
utilizados o Souriciére de Moede, o cinestesiómetro, o falso torno, o bloco de Wiggly
e a sinuosidade de Bonnardel. Para a medida de habilidade mecánica, eram usados
os mecanismos de Fritz-Heider, a caixa de Decroly, os puzzles de BaumgartenTramer e o aparelho de Richter. Para as medidas biométricas, eram usados o
espirómetro de Pini, o compasso antropométrico, o esfignomanómetro e o
polidinamómetro. Finalmente, os testes de Bedini e de Toulouse e Pierón serviam
para a medida de atengao.
Interessante observar que, na montagem do laboratorio, os aparelhos, testes e
equipamentos ficavam próximos dos materiais bibliográficos, compondo, num
mesmo local, um ambiente para a leitura e para a realizagao de medidas e
avaliagóes experimentáis. Assim, ao lado dos aparelhos, testes e equipamentos,
ficavam os livros e revistas da biblioteca especial, conforme mostra a Figura 2.
Figura 2: Os livros no laboratorio
No segundo eixo da montagem do laboratorio, investigamos o conteúdo do material
bibliográfico da biblioteca especial e demais impressos. Para a aquisigao desse
material, foi significativa a participagao de Ralfy Mendes de Oliveira, sacerdote
salesiano brasileiro que, na ocasiao, realizava seu curso de especializagao na Italia.
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Coube a ele a selegao dos livros espanhóis e franceses, além e principalmente
devido ao seu particular interesse, de um livro de música e do material musical.
Com o material impresso de caráter catequetico e musical foi despendida a quantia
de 32.130 liras esterlinas. Com a compra de livros na Espanha e na Franga, foram
gastas 70.000 liras esterlinas. As demais despesas foram realizadas com as
assinaturas de revistas e a compra de livros adquiridos na Italia.
A relagao total dos livros para a biblioteca especial do laboratorio foi composta por
cinqüenta títulos. A listagem da autoría dos livros com os seus respectivos títulos
encontra-se no Quadro I I .
Quadro I I : Autoria por títulos dos livroi
Autoría
Títulos dos livros
ARISTÓTELES
Metafísica (libro XII)
BAUDIN
Corso di psicología
BIOT e GALLIMARD
Guida medica delle vocazioni sacerdotali e
religiose
Manuale di psichiatria pastorale
BOGLIOLO
La tesi di laurea
BOGLIOLO
Aspetti del platonismo tomista
BOUTONIER
Les dessins des enfants
BUYSE
La experimentación en pedagogía
CLAPARÉDE
Comment diagnostiquer les aptitudes chez
les écoliers
COLLIN
Précis d 'une psychologie de 1 'enfant
CO RALLO
Educazione e liberta
CO RALLO
La pedagogía della liberta
COUSINET
La vie sociale des enfants
CRAECKER
Les enfants intellectuellement doués
CHIEREGHIN
Música, divina armonía
La psicología dell'etá evolutiva
GESELL
[I fanciullo daí cinque ai dieci anni
Restaurazione della persona umana
JEAN LE PRESBYTRE
Tu che diventi uomo
KÓHLER
Les problemes neuropsychiatriques et
médico-pédagogiques de l'enfant
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LACRO IX
L adolescence scolaire
LAMANNA
-ilosofia e pedagogía
LENOBLE
Quand vous aurez quinz'ans
LEY e WAUTHIER
Études de psychologie instinctive et
affective
LORENZINI
Psicopatologia e educazione
MAISONNEUVE
Psychologie sociale
Principi di vita sociale
MONSABRE
Esposizione del domma cattolico - 18 vol.
NORA
Psicología junioristica
NOSENGO
L'adolescente e Dio
PALADINI
La storia della scuola nell'antichitá
PICHOT
Les tests mentaux
POROT
Manuel alphabétique de psychiatrie
RORSCHACH
Psychodiagnostic
ROUART
Psychopathologie de la puberté et de
l'adolescence
Educhiamo i meno dotati
SEGNALI
Come insegno le quattro operazioni
SERTILLANGES
Le probléme du mal: la solution
TOULEMONDE
Les inquiets
L'enseignement de la géographie
UNESCO
La préparation du personnel enseignant
VIDONI
Le attitudini deN'uomo
VIGLIETTI
Orientamento professionale
FALORNI
Lo studio psicológico dell intelligenza e
della motricitá
Reattivi mentali per Tésame psicológico
del fanciullo
LALAUME
Pratique de psychotechnique apliquee á
'industrie
Méthodologie psychotechnique
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Pela relagao dos livros, observa-se que as temáticas psicológicas, pedagógicas e
psiquiátricas perfaziam o total de 41 títulos, seguidas da temática em filosofía com
cinco títulos, religiao com quatro títulos e, finalmente, um título em harmonía
musical.
Dentre as obras que vieram para o laboratorio, foi possível localizar na atual
biblioteca do campus Dom Bosco da Universidade Federal de Sao Joao del-Rei,
herdeira da biblioteca da extinta Faculdade Dom Bosco, somente as de Sertillanges
(1951), Falorni (1952), Buyse (1937), Piéron (1951), Piéron, Pichot, Faverge e
Stoetzel (1952), Rouart (1954), Claparéde (1924) e Lamanna (1954).
A investigagao sobre o terceiro eixo, referente as despesas bancarias, transporte e
embalagens, levou-nos a um mapeamento em tres agrupamentos. No primeiro
agrupamento, referente aos gastos com transporte, verificou-se a existencia de
despesas com o material proveniente de Milao (500 liras esterlinas), com a
expedigao para o Brasil (314.250 liras esterlinas) e com a taxa marítima (300.000
liras esterlinas). No segundo agrupamento, foram computados os investimentos
realizados com as embalagens. Foram despesas realizadas com o material para
embalagens (3.800 liras esterlinas), com a construgao de seis caixas de embalagem
(4.500 liras esterlinas) e com o pagamento dos operarios para a realizagao da
tarefa (8.000 liras esterlinas). Finalmente, no terceiro agrupamento, computaramse as taxas e despesas bancarias realizadas com Banca Nazionale del Lavoro (2.500
liras esterlinas) e com a expedigao de documentos (1.690 liras esterlinas). No total,
foram gastas 635.240 liras esterlinas com o transporte, as embalagens e as taxas.
A relevancia do laboratorio na década de 1950
Acondicionado em salas do segundo andar da Faculdade Dom Bosco de Filosofía,
Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei, o laboratorio ocupou, básicamente, tres salas
que se intercomunicavam e urna sala maior - destinada a aulas, demonstragoes
experimentáis ou filmes. Foi, inicialmente, coordenado por Ralfy Mendes de Oliveira
e os equipamentos eram utilizados ñas demonstragoes didáticas e nos estudos
relativos as análises da visao, audigao, tempo de reagao motora e de reagoes
fisiológicas.
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Figura 3: Teste no laboratorio
Em 1957, Ralfy Mendes de Oliveira criou o Servigo de Orientagao Educacional e
Profissional (SOEP), que agregou o trabalho, inicialmente voluntario, de Maria do
Carmo Carvalho Mazzoni, Antonia Benedito, Niva Dámaso de Oliveira, Helia Ribeiro
de Sá, Maria Lygia Rodrigues Leao e Antonina Gomes da Silva.
Em 1958, em outro desdobramento das atividades do laboratorio, foi criado o
Instituto de Psicología e Pedagogía (IPP). Entre seus objetivos, caberia ao IPP zelar
pela coordenagao das disciplinas de psicología ministradas nos diferentes cursos da
Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras, pelo incentivo e
desenvolvimento de pesquisas e pela promogao da especializagao da equipe
técnica. Entre suas atividades comunitarias, o IPP manteve o Centro de Estudos
Pedagógicos (CEP), criou o Servigo de Orientagao Educacional e Profissional
(SOEP), o Centro de Pesquisas e os Círculos de Pais. O Centro de Estudos
Pedagógicos (CEP) promovía reunioes com o professorado primario e secundario
local objetivando a realizagao de debates e conferencias e um evento científico
anual denominado Semana de Estudos Pedagógicos, que propiciou um ativo
intercambio com expressivos profissionais brasileiros da área.
Entre 1959 e 1962, funcionou o curso de Orientagao Educacional criado por Luis
Zver e José Maria Telles, a partir de suas participagoes no I Simposio de Orientagao
Educacional, ocorrido em Sao Paulo, em 1957.
Embora as pesquisas realizadas na década de 1950 nao tenham sido localizadas, foi
possível verificar, pela mengáo em textos do laboratorio, a existencia de um
levantamento de aptidáo musical nos seminaristas salesianos realizado por Ralfy
Mendes de Oliveira, em 1957, urna pesquisa relativa ao sentimento de felicidade
entre changas de um grupo escolar conduzida por Maria do Carmo Mazzoni e
Antonia Benedito, em 1958, urna análise da situagáo emotiva de menores
abandonados desenvolvida por Helia Ribeiro de Sá e Maria Lygia Leao, em 1958, e
urna pesquisa sobre a relagao entre nivel mental e rendimento escolar realizada por
Antonina Gomes e Niva Dámaso de Oliveira, em 1958.
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Em 1959, Geraldo Servo, que havia retornado da Europa no ano anterior, substituiu
Ralfy Mendes de Oliveira na coordenagao do laboratorio. Imediatamente,
incrementou as atividades do, ainda incipiente, Servigo de Orientagao Educacional e
Profissional (SOEP) realizando, no referido ano, trabalhos de orientagao
profissional, de orientagao vital e atendimentos clínicos.
Nos prontuarios de orientagao profissional, sao freqüentes as fichas
antropométricas, contendo dados somáticos (dimensao craniana, peso,
envergadura, altura total e do tronco), dados biométricos (capacidade pulmonar,
pressao arterial e pulsagoes), informagoes de dinamometria (tragao e compressao
das maos) e índices cefálicos, vitáis e de robustez. Aparecem, também, as fichas
médicas e biográficas, os resultados de exames de daltonismo e da aprendizagem
de coordenagao visual-motora, assim como dos testes de Wiggly, Otis e Souriciére
de Moede.
Para os trabalhos de orientagao vital, eram utilizados o sociométrico, a entrevista,
as respostas ao catálogo de livros e ao questionário de personalidade de Brown e os
resultados dos testes de Otis, Gex, Raven, Wiggly, Gastón Berger, WISA ou
Wechsler, Weil, DAT, Thurstone, Rorschach e Piéron. Para o atendimento clínico,
além dos dados coletados para orientagao vital, eram usados os testes Family Tree,
Goodnough, Minhas Maos e Rosenzweig, acrescidos, quando necessário, da
entrevista com os pais.
Consideracoes fináis
O laboratorio de psicología, nomeado também como gabinete de psicología e como
laboratorio de psicología experimental, nao foi um espago restrito ao
desenvolvimento de experimentos ou medidas neurofisiológicas. Desde sua
aquisigao, esteve atravessado pela concepgao educacional dos salesianos que
associava á formagao académica a formagao artística, mais específicamente a
musical, e priorizava a perspectiva religiosa e o atendimento á comunidade.
As pesquisas passaram a ter articulagao com os trabalhos comunitarios
desenvolvidos na cidade e na regiao circunvizinha, principalmente nos oratorios
festivos, nos círculos de pais e ñas escolas.
Sob a coordenagao de Geraldo Servo, as atividades relacionadas á psicología
experimental foram cedendo lugar as atividades pertinentes á psicología aplicada.
Cresceram, nos anos subseqüentes, as práticas do dinámico Servigo de Orientagao
Educacional e Profissional (SOEP) em detrimento das atividades de pesquisa,
modificando, assim, os objetivos origináis do laboratorio de psicología. O SOEP, ñas
décadas subseqüentes, passaria a ocupar o papel de destaque, colaborando com as
industrias e demais organizagoes do trabalho e desenvolvendo servigos de
orientagao profissional, selegao e treinamento de pessoal. Cresceram, também, no
SOEP, os atendimentos clínicos e educacionais.
Os aparelhos, pesados e fixos, foram rápidamente substituidos pelos testes, de fácil
locomogao e de aplicagao coletiva. E, sem uso, foram tornando-se obsoletos.
Contudo, permanecem as lembrangas, sempre presentes ñas memorias dos saojoanenes, de um importante e histórico laboratorio de psicología.
Referencias bibliográficas
Bomfim, E. M. e Albergaría, M. T. (prelo A). Contribuigoes para a historia da
psicología a partir do acervo do antigo laboratorio de psicología da Faculdade
Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei: a década de
1950. Boletim CDPHA, Belo Horizonte.
Bomfim, E. M. e Albergaría, M. T. (prelo B). Resgatando dados para a historia da
psicología em Minas Gerais na década de 1950. Cadernos de Psicología, Belo
Horizonte.
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Campos, R. H. F. (1992). Notas para a historia das idéias psicológicas em Minas
Gerais. Em Conselho Regional de Psicología - 4°.Regiao. Psicología: possíveis
olhares, outros fazeres. (pp. 11-63) Belo Horizonte: Autor.
Carvalho, Delgado (1976). Historia documental moderna e contemporánea. Rio de
Janeiro: Record.
Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras de Sao Joao del-Rei (s/d). Há
seis anos. Anais da Faculdade Dom Bosco de Filosofía, Ciencias e Letras. Sao
Joao del-Rei, mímeo. Autor.
Instituto de Psicología e Pedagogía - IPP (1964). Relatório - Cinco anos de
atividades (1960-1964). Sao Joao del-Rei, mímeo. Autor.
Massimi, M. (1990). Historia da psicología brasileira. Sao Paulo: EPU.
Notas
(1) Ver: http://www.salesiano-ba.com.br/salenew4/osalesiano_histo.html.
(2) Sobre a vida e a obra de Dom Bosco e sobre os salesianos no Brasil ver
também: Azzi, R. (1982). Os salesianos no Brasil. Sao Paulo: Ed. Salesiana Dom
Bosco; Bosco, T. (1993). Dom Bosco:uma biografía nova. Sao Paulo: Ed. Salesiana
Dom Bosco.
Nota sobre as autoras
Elizabeth de Meló Bomfim, psicóloga e doutora em educagao, é pesquisadora
visitante, com bolsa da Fundagao de Amparo á Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(FAPEMIG), na Universidade Federal de Sao Joao del-Rei (UFSJ). Contatos: Rúa
Turibaté, 50/201 - Sion - Belo Horizonte/MG - CEP 30315-410 - Brasil, e-mail:
[email protected]. Fone: (55) (31) 32819759.
María Teresa Antunes Albergaría, psicóloga e mestra em educagao, é professora na
Universidade Federal de Sao Joao del-Rei (UFSJ). Contatos: UFSJ - Campus Dom
Bosco - Praga Dom Helvecio, 74 - Sao Joao del-Rei/MG - CEP 36301-160 - Brasil.
e-mail: [email protected]. Fone: (55) (32) 3379-2885 ou 3372-8552.
Data de recebimento: 24/07/2004
Data de aceite: 08/10/2004
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Comienzos de la profesionalización de la psicología,
la Universidad Nacional de Córdoba y el movimiento
neoescolástico
Beginings of profesionalization of Psychology in Argentina,
the National University of Cordoba and neoscholasticism
María Andrea Piñeda
Universidad Nacional de San Luis
Argentina
Resumen
Este es un estudio sobre los antecedentes e inicios de la carrera de psicología en la
Universidad Nacional de Córdoba y el impacto del neoescolasticismo en la misma.
Se divide en tres períodos. Primero, desde la creación de la Facultad de Filosofía y
Humanidades donde que se dictaron los primeros cursos de Psicología desde 1937.
Segundo, 1956-1958, cuando tuvo lugar el primer plan de estudios de la carrera de
psicología: Profesorado de Psicología y Pedagogía. Tercero, 1958-1966, primeros
años de la Licenciatura en Psicología. Se analizan planes de estudios y programas
de los cursos entre 1937 y 1966, tomando como indicadores tres factores: docentes
vinculados a la psicología influidos por el neoescolasticismo; textos de autores
neoescolásticos en circulación, y autores neoescolásticos propuestos como
contenido en los programas de los cursos. En los dos primeros períodos el influjo
del neoescolasticismo ha resultado significativo, pero tiende a desaparecer a partir
del tercero.
Palabras clave: profesinalizacion de la psicología; universidades; educación;
titulación.
Abstract
This is a study about the antecedents and beginnings of the first undergraduate
program of Psychology at the National University of Córdoba and the impact of
neoscholasticism in it. It is divided into three periods. First, starting from the
creation of the Faculty of Philosophy and Humanities where the first courses of
Psychology were held since 1937. Second, from 1956-1958, period during which
the first program of Psychology and Pedagogy took place. Third, 1958-1966: the
first years of the career in Psychology. Programs of Studies and programs of
courses between 1937 and 1966 are analyzed taking into account three factors:
teachers connected to neoscholasticism; neoscholastic textbooks of psychology
read at the career, and neoscholastic authors studied during courses. In the first
two periods, a significant impact of the neoscholasticism was registered in the field
of psychology, which was lost in the third period.
Keywords: professionalization of psychology; universities; education; professional
licensing.
Introducción
Este trabajo pretende rastrear los antecedentes y los inicios de la carrera de
psicología en la Universidad Nacional de Córdoba (1), y determinar la influencia que
el movimiento neoescolástico, o "Escuela de Lovaina" (Piñeda, 2002) tuvo en el
campo de la psicología de esta institución, durante el período pre-profesional y en
los inicios del proceso de profesionalización.
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Para la adecuada comprensión del problema que se propone, se hace necesario
enmarcar el mismo en un contexto que debe tener en cuenta por lo menos tres
factores. En primer lugar, una caracterización general de la historia de la psicología
argentina entre las décadas del 30 y del 50. En segundo lugar, el neoescolasticismo
como movimiento mundial y su impacto en nuestro país. Y por último,
consideraciones respecto de la historia de la carrera de psicología de la Universidad
Nacional de Córdoba.
Numerosas investigaciones historiográficas han dado cuenta de la psicología
argentina de esta época. En este sentido, para una visión general de este complejo
tema, resultan dignos de mención los desarrollos de Gentile (2003), Rossi (1994;
2001) y Rovaletti (1997). Por su parte, Klappenbach (2004; En prensa), ha
realizado una periodización de la psicología argentina que a los fines de nuestro
estudio, resulta muy útil para la comprensión de lo que él llama el "segundo" y
"tercer período": 1918-1940, y 1940-1960, respectivamente. En el segundo período
-que García de Onrubia había descripto como de "vacío de la psicología" (Bortnik,
1992); Papini y Cortada de "retroceso y decadencia de los modelos experimentales"
(Papini, 1976; 1978; Cortada, 1978)- Klappenbach analiza que más bien parece
haber predominado una psicología filosófica en el marco de una reacción
antipositivista o superadora del positivismo. La misma, propició la influencia de
diversas corrientes filosóficas espiritualistas al campo psicológico, como la
fenomenología, el existencialismo y también el neoescolasticismo (Klappenbach,
1999; 2002). Durante el tercer período, caracterizado por sus tensiones entre una
psicología filosófica y una psicología aplicada (Klappenbach, 2001; 2002 a ; En
prensa), es donde se produce, a partir del impulso del Primer Congreso Argentino
de Psicología de 1954 (Gentile, 1997) -fuertemente avalado por el Estado Nacional,
y profundamente identificado con sus políticas-, la creciente profesionalización de
la psicología argentina (Klappenbach, 1995). Varios estudios han profundizado
sobre la creación de las primeras carreras de psicología instauradas en
universidades del ámbito estatal (Gentile, 1989; Klappenbach, 1995 a ; Klappenbach
et. al., 1995; Dagfal 1997; 1997 a ; 1998; Piñeda, 2003) como privado (Piñeda,
2004; 2004 a ), a cuyo campo el presente estudio pretende hacer su contribución.
En segundo término, entrecruzándose con los problemas de la historiografía de la
psicología argentina antes descriptos, se hace necesario considerar el desarrollo
histórico del movimiento neoescolástico. El mismo se enmarca dentro de una
reacción antipositivista, que busca la solución en una propuesta de renovación de la
filosofía de principios escolásticos -principalmente tomista y suarista- mediante la
integración de la misma con corrientes filosóficas modernas, y fundamentalmente,
con los problemas y desarrollos de la ciencia moderna, entre ellas y de un modo
estelar, la psicología. Desde esta perspectiva, el neoescolasticismo aboga por una
visión integral del hombre considerando esencialmente su dimensión de ser libre y
trascendente, desde la cual pretende fundamentar una psicología científica que
tenga en cuenta en el abordaje de su objeto formal, la totalidad humana, sin
reduccionismos ni determinismos.
Este movimiento, que reconoce sus primeros antecedentes en Europa a mediados
del siglo XIX, se institucionalizó hacia 1880 con el explícito aval del Papa León XIII,
contando entre sus principales líderes al Cardenal Mercier desde la Universidad de
Lovaina (Bélgica). Dicha institución no sólo resulta de importancia para la
consideración de una filosofía neoescolástica, sino también para una psicología
científica enmarcada en estos principios. Más allá de Bélgica, el movimiento tuvo
gran impacto entre otros países, en Italia, Francia, España, Alemania, Canadá,
Estados Unidos, y también en América del Sur (Misiak, 1954; Piñeda, 2002). Los
primeros indicios de recepción en Argentina, datan de fines de 1890, justamente en
la ciudad de Córdoba, en la figura de José María Liqueno (Caturelli, 2001, p. 649650). Sin embargo, su mayor difusión encontró terreno propicio en la década del
veinte y treinta en torno a los Cursos de Cultura Católica (Zuretti, 1975), y fuera
del ámbito estrictamente católico, en el mismo Colegio Novecentista liderado por
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Coriolano Alberini (Pró, 1960, p. 83; 1980). El neoescolasticismo, parece haber
penetrado en el discurso psicológico argentino, fundamentalmente entre 1935 y
1960 (Piñeda, 2004c; 2004d), como hemos referido, período preprofesional: apto
para la recepción de corrientes espiritualistas, e inicios de la profesionalización, en
que se registran ciertas tensiones entre la antropología filosófica y la psicología
aplicada.
En tercer término, referiremos que la Universidad de Córdoba -que había sido la
primera institución educativa de su naturaleza en Argentina-, estuvo a lo largo de
su historia fuertemente vinculada al catolicismo. Fundada por los jesuitas, tras su
expulsión, quedó en manos primero de franciscanos y más tarde del clero secular,
para pasar a ser laica recién a finales del siglo XIX.
La Facultad de Filosofía había sido la más antigua del país, funcionando
ininterrumpidamente desde sus orígenes en la Facultad de Artes, en 1614, hasta
que alrededor de 1890, por el avance del positivismo y la profesionalización se vió
condenada a la parálisis, y la filosofía pasó a enseñarse en la Facultad de Derecho.
Fue a partir del impulso de católicos que trabajaban dentro de la UNC, que se
sentaron las bases para la reinstauración de la antigua Facultad, en 1922, con la
creación del Seminario de Filosofía en la Facultad de Derecho, y en 1933, con la
constitución del Instituto de Filosofía que desde el comienzo tuvo estructura de
Facultad con potestad para entregar grados (Caturelli, 1971, p.27).
En el seno de la Facultad de Filosofía y Humanidades, en 1958, se creó la
Licenciatura en Psicología. Anteriormente, en 1956 se había creado en la misma
Facultad, el Profesorado en Psicología y Pedagogía dependiente de la Escuela de
Psicología y Pedagogía, siendo considerada antecedente directo de la futura
licenciatura. No obstante, al menos desde 1937, ya se dictaban cursos de Psicología
en aquella Facultad.
En este marco, hemos rastreado documentos con el objetivo de identificar a las
figuras más destacadas del neoescolasticismo cordobés que influyeran en el campo
psicológico de esta comunidad universitaria, así como la recepción y el impacto que
este movimiento tuviera en la universidad cordobesa en los distintos períodos
señalados.
En base a fuentes documentales, hemos realizado el siguiente análisis: a) de los
programas de cursos de filosofía y psicología dictados entre 1937 y 1957; b) de los
planes de estudio del antiguo profesorado y de la licenciatura que se creó
posteriormente; c) del contenido y bibliografía de los programas de los cursos
dictados en dichos planes de estudio.
A partir de dicho análisis, intentamos identificar por un lado, los docentes que
sustentando una postura neoescolástica habrían sido parte de este movimiento; y
por otro, la circulación que puedan haber tenido algunos libros de texto de
psicología de autores neoescolásticos.
Asimismo, compararemos longitudinalmente, el impacto que la "Escuela de
Lovaina" causara en el campo psicológico de la UNC, estableciendo posibles
rupturas y continuidades en tres momentos históricos diferentes: el de gestación de
la Facultad, dominado por un ambiente fuertemente tomista; el de la creación del
Profesorado de Psicología y Pedagogía, y el de los inicios de la carrera de psicología
propiamente dicha.
El Neoescolasticismo y la organización de la Facultad de Filosofía. Los
primeros cursos de Psicología
La creación de la Facultad de Filosofía, en donde en la segunda mitad del siglo XX
se organizaría la carrera de psicología, estuvo muy vinculada desde su cuna al
movimiento neoescolástico -y más específicamente a la renovación tomista- que,
como se mencionó, comenzó a tener lugar en la UNC desde finales del siglo XIX. En
efecto, docentes influenciados por este movimiento, también vinculados al
Seminario de Córdoba, al Colegio de Montserrat y al Instituto de Filosofía Santo
Tomás de Aquino que publicaba la Revista Arx, gestaron un clima intelectual que se
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institucionalizó en la UNC a partir de 1933, con la creación del Instituto de Filosofía,
que después de 1940 se convirtió en la Facultad de Filosofía y Humanidades
(Caturelli, 1971, p.190).
Tomando los aportes de Alberto Caturelli (1971), quien ha estudiado extensamente
la historia de la Universidad Nacional de Córdoba, mencionaremos entre los
impulsores del neoescolasticismo en esta universidad, a Nemesio González (1866 1929), cuya tesis doctoral sobre La Escuela Positivista (1890) constituyó una de las
primeras críticas argentinas al positivismo, junto a José María Liqueno (1877 1926), uno de los más importantes impulsores del neotomismo en Córdoba; Mons.
Audino Rodríguez y Olmos (1888 - 1965), apologista del Tomismo; Luis Martínez
Villada (1886 - 1959), Profesor de Filosofía en la Facultad de Derecho y creador de
la Revista Arx, y Sofanor Novillo Corvalán (1881 - 1965). Este último fue docente
en la Facultad de Filosofía y Derecho de la universidad cordobesa, creando en dicha
Facultad el Seminario de Filosofía. Llegó a ser Rector de la UNC, y fue en su
gestión, desde 1932, cuando se comienza a proyectar la organización el Instituto de
Filosofía que sentaría las bases para la Facultad. La comisión encomendada por el
Rector para este cometido, había estado constituida por Enrique Martínez Paz, Raúl
Orgaz, Luis Martínez Villada, Nimio Anquín, y Emilio Gouiran, quien fuera su primer
Director. Cuando en 1940, se amplía el Instituto de Filosofía incorporando en su
estructura el Instituto de Historia, pasa a llamarse "de Filosofía y Humanidades",
ingresando una figura de relieve internacional como Rodolfo Mondolfo, ajeno al
movimiento que venimos estudiando (Caturelli, 1971, p.179 - 190).
Es de destacar que la mencionada Revista Arx que editaba el Instituto Santo Tomás
de Aquino, nucleaba en torno a Martínez Villada a talentos más jóvenes que esa
primera generación de tomistas, como Manuel Río, Rodolfo Martínez Espinosa,
Nimio Anquín, Alberto García Vieyra y Guido Soaje Ramos. Este último, sería el
fundador de la Semana Tomista (Caturelli, 1971, p. 188), y se desempeñaría como
docente en los primeros años de la carrera de psicología de la Universidad Nacional
de Cuyo (Piñeda, 2003).
De todas las figuras antes mencionadas, dos estarían directamente vinculados a la
psicología cordobesa: José María Liqueno y Emilio Gouiran.
José María Liqueno, cuyos desarrollos se inscriben principalmente en el campo de la
psicología metafísica, consideraba que esta rama de la filosofía era complementaria
a la psicología empírica. La segunda sería la base de la primera y a su vez, ambas
contribuirían al estudio del hombre total, sin parcializaciones. En cuanto a la
psicología empírica se refiere, Liqueno principalmente tomaba los aportes del
italiano Agostino Gemelli y realizaba un esfuerzo por integrar diversas teorías de
otros autores modernos como Wundt, Pièron, Grasset o James, y polemizaba con
José Ingenieros sobre las propiedades y facultades del alma (Caturelli, 1971,
p.183).
Emilio Gouiran (1909 - 1955), fue el primer Director del Instituto de Filosofía. Dictó
al menos en 1937 un curso de Psicología. Si bien dentro de una línea tradicional de
pensamiento, se ha visto muy influenciado por Blondel, Pascal, Maine de Birán,
Lavelle y Jaspers (Caturelli, 1971, p. 203).
Por otra parte, Caturelli (1971) destaca otras tres figuras vinculadas
específicamente al tomismo, que por su desempeño como docentes e
investigadores han contribuido al campo de la psicología en la Universidad Nacional
de Córdoba en este primer período.
El primero, Mons. Filemón Castellano, cuya labor estuvo dedicada a la Filosofía de
la Religión y la Psicología, donde se dedicó, sobre todo, a la caracterología, tema
sobre el cual dictó varios cursos en la Facultad (ver Anexo C, tabla n° 1).
La segunda figura de importancia para el neoescolasticismo y la psicología en este
primer período de la Facultad de Filosofía es el Padre Héctor Luis Torti, cuyo manual
de Psicología (Torti, s/f) muestra una integración de todos los temas clásicos y su
concepción espiritualista del hombre con las exigencias de la psicología moderna,
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evidenciando -sobre todo en temas de la personalidad- fuerte influencia de
Spranger y Adler.
En tercer lugar, hacemos referencia al Dr. Ramón Brandán (1891 - 1968) médico y
filósofo que practicaba una medicina psicosomática de base religiosa.
A partir de todos estos autores, es posible visualizar la recepción del
neoescolasticismo en la temprana psicología cordobesa. Aún más, por otro lado, el
impacto de este movimiento en este terreno puede verificarse de modo significativo
en el período anterior a la creación de la carrera de Psicologíay Pedagogía, al
menos desde 1937, a través del análisis sociobibliométrico (2) e la siguiente
documentación existente en el Archivo de la Facultad de Filosofía: listado de 16
conferencias de 1937, y 24 programas de cursos sobre temas psicológicos que la
Facultad de Filosofía y Humanidades dictaba entre 1937 y 1957 (ver Anexo C, tabla
n° 1).
Dicho impacto es registrado en primer lugar, en profesores en cuyos cursos se
abunda en contenidos y citas relativas a este movimiento, pareciendo adherir
doctrinariamente al mismo. Tales son los casos de los Profesores Filemón
Castellano, Alfredo Fragueiro, Hilario González, Emilio Gouirán, Carlos Laguinge (3),
Raúl Alberto Piérola, Francisco Torres, y Carlos A. Tagle.
En segundo lugar, verificamos el impacto de la Escuela de Lovaina, en la circulación
de textos de autores neoescolásticos citados en la bibliografía de los cursos (ver
Anexo C, tabla n° 2). En 6 materias, se registran referencias a 26 obras, una de
ellas, citada dos veces, con lo cual el número de referencias a obras y autores
neoescolásticos asciende a 27.
Así, el autor más citado es Etienne Gilson: 6 veces; siguiéndole con 3 citas,
Agostino Gemelli; compartiendo el tercer lugar con 2 citas: Tomás de Aquino,
Manuel Barbado, Regis Jolivet, José Laburu, Joseph Lindworsky y E. Peillaube. En
cuarto lugar, con solo una cita: O. Derisi, G. Dwelshauvers, A. Ennis, J. Fröbes, J.
Nuttin e I. Quiles.
De las 26 obras de estos autores, cabe destacar que 9 eran netamente filosóficas,
no directamente relacionadas a la psicología, aunque con relación al problema del
hombre, el resto todas eran textos directamente relacionados con la psicología: 4
de antropología filosófica y 14 de psicología científica.
Y por último, como tercer elemento de análisis considerado para establecer el
impacto del neoescolasticismo en la Facultad, mencionamos los autores
neoescolásticos que explícitamente eran propuestos como contenido de los
programas en cuestión.
En el conjunto de estas 6 materias, sin duda, el autor más estudiado entre aquéllos
de interés para el neoescolasticismo, es Tomás de Aquino, propuesto como
contenido 8 veces. Síguele Francisco Suárez, 2 veces propuesto; y por último, con
una cita: Agostino Gemelli, Jacques Maritain y Desiré Mercier (ver Anexo C, tabla n°
3).
Así, profesores influenciados por el neoescolasticismo, autores neoescolásticos, y
textos de neoescolásticos que circulaban en la Facultad, serían indicios claros de
una significativa recepción del neoescolasticismo en la temprana psicología en la
universidad cordobesa, al menos en las dos décadas inmediatamente anteriores a
la creación de la carrera de psicología y pedagogía.
La carrera de Psicología y Pedagogía
Sin dejar de tener en cuenta los cursos, seminarios y conferencias centrados en
temas psicológicos que la Facultad dictaba al menos desde 1937, podemos
considerar como antecedente directo de la carrera de psicología en la universidad
de Córdoba, la creación de la carrera de Psicología y Pedagogía que se constituyera
a partir de 1956, que daría cuenta de una progresiva maduración del campo
psicológico y a su vez, irían abonando el terreno a la profesionalización del mismo.
En 1956 se creó la carrera de Psicología y Pedagogía, en el seno de la Facultad de
Filosofía y Letras, dado que sus autoridades (4) consideraban que la madurez
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alcanzada por los estudios psicológicos ameritaba su inserción en el cuadro de los
estudios universitarios.
Según consta en la Resolución de la Facultad que autoriza su creación (Resol.
N°40/56), su organización había sido impulsada desde los centros de estudiantes,
miembros de organizaciones de egresados, y profesores de psicología y otras
disciplinas afines a las humanidades de la universidad, cuyos estudios preliminares
habrían tomado como modelo para la organización de la nueva carrera, las
existentes en diversas universidades extranjeras, y otras Facultades de Filosofía y
Letras del país.
Para su constitución, se había aprovechado la existencia de la Escuela de Pedagogía
de la que dependía la carrera del mismo nombre, la cual -tras la incorporación de
materias estrictamente psicológicas destinadas a completar la formación prevista -,
debieron transformarse en Escuela de Psicología y Pedagogía, y Carrera de
Psicología y Pedagogía, respectivamente.
Así, el título que otorgaba esta carrera era el de Profesor en Psicología y Pedagogía.
Con todo, respecto al perfil del egresado, merecen hacerse algunas
consideraciones, ya que de la lectura de los considerandos que fundamentaban la
resolución de creación de la carrera, se podrían colegir dos discursos paralelos aunque no necesariamente contradictorios-, cuyas tensiones se verían plasmadas
en el plan de estudios.
En primer lugar, se advertía la necesidad de formar profesionales altamente
habilitados para atender a problemas que se suscitaran en los diversos órdenes de
la actividad comunitaria. En ese sentido, se privilegiaban tres áreas de interés: la
industria, la atención de anormales e inadaptados, y la educación. Por tanto, se
manifestaba la intención de formar especialistas capaces de aplicar conocimientos
psicológicos al campo de la industria, la medicina y la educación.
Para lograr este cometido, el alumno cursaría durante los dos últimos años de su
carrera, seminarios de investigación "en los respectivos gabinetes del Instituto de
Psicología". Estos seminarios estarían destinados a que el alumno, mediante
"estudios y prácticas intensivas" pudiera "dominar un repertorio de conocimientos
técnicos y prácticos" (Resol. N° 40/56 p.2) indispensables para el ejercicio
profesional, y se especializara en alguna de estas áreas.
En síntesis, con la creación de la carrera de psicología y pedagogía, se buscaba la
formación de profesionales cuyo quehacer estaría orientado a la psicotecnia.
A partir de esta fundamentación, en segundo lugar, se observa en los posteriores
considerandos de la resolución cierto cambio de discurso. Así, se advertía la
necesidad de que junto al cursado de materias psicológicas se incorporaran
"materias propiamente filosóficas y de carácter formativo en el sentido de otorgar
al estudiante un amplio horizonte espiritual". Esto tenía el objetivo de "impedir [...]
que en la Facultad prospere el espíritu de estrecha especialización, de modo que
nuestros egresados en Psicología no sean meros técnicos del alma ciegos al
fenómeno humano len su totalidad" (Resol. N° 40/56, p.2). Se debía asegurar a los
estudios psicológicos "el carácter teórico y desinteresado que corresponde a los que
se efectúan en esta Casa de Estudios, de modo que el pragmatismo y la tecnología
subyacentes en el ejercicio empírico de la Psicología no agrieten la solidez de las
investigaciones humanísticas, sino que, por el contrario, las complementen y
enriquezcan según los imperativos de una sana integración espiritual, propiciadas
por las corrientes de pensamiento más hondas de nuestro tiempo" (Resol. N° 40/56
p.2).
Desde este punto de vista, entendemos que se pensaba para la psicología un lugar
singular, tanto desde el punto de vista epistemológico, como desde el punto de
vista organizativo de la Facultad en que se insertaría este nuevo campo.
Así, se concebía que la psicología "encontraba su fundamento en la filosofía", y por
otro lado, que en su aplicación práctica derivaba en la pedagogía. Por todo esto, la
creación de la carrera de psicología y pedagogía encontraba su lugar en la Facultad
de Filosofía, sobre todo proyectándose hacia la práctica educativa. Por lo cual, se
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abría el nuevo campo científico en el seno de la Escuela de Pedagogía que se
transformaba para darle lugar a la disciplina teórica, y por tanto preeminente, que
alimentaría la práctica de que era objeto dicha Escuela.
El perfil de egresado que se explicitaba tras estos considerandos, consistía en aquél
"especialmente abierto [por la aproximación de estas tres grandes disciplinas] a la
comprensión de los problemas humanos y profesionalmente apto para el ejercicio
de la docencia y de la investigación" (Resol. N° 40/56 p.2).
Sin embargo, aún cuando se anunciaba un perfil claramente profesional orientado a
dar respuestas a problemas de diversas esferas de la vida humana, el título
otorgado era el de Profesor con lo cual cabe plantearse hasta qué punto el plan de
estudios satisfacía ese perfil profesional.
^^^^^^^^^^^^
Como podrá advertirse del análisis del plan de estudios (5) (ver Anexo, Tabla N°1)
diseñado para la carrera, de las 23 materias previstas a lo largo de cinco años, solo
5 estarían orientadas a la formación técnica. En efecto, dos materias estarían más
vinculadas a la aplicación de la psicología a los problemas del campo médico:
Psicoterapia, y Teoría y Técnica del Psicoanálisis (6), y tres materias serían en
general aplicables al campo del trabajo, la industria y la educación: Orientación
Profesional I y I I , y Psicotecnia, a lo que se le sumaban las diez horas semanales de
Seminario y Práctica Psicológica que se cursaban en quinto año. Como se puede
apreciar, sobre todo si comparamos este plan de estudios con los primeros de otras
universidades (Piñeda, 2003, 2004a), no había demasiados espacios curriculares
específicos para la formación en los campos de aplicación que al principio se
enunciaban.
Estas inconsistencias que se evidencian en el discurso, y que se verían plasmadas
en el plan de estudios, estarían dando cuenta de ciertas tensiones propias de la
apertura de un campo de saber y la conformación de un grupo de especialistas a
partir del terreno de otros existentes.
Así, por un lado, divisamos la comunidad de filósofos: prestigiosa y dominante en la
Facultad, cuya visión de la psicología se inclinaría más hacia la antropología
filosófica que hacia la psicotecnia. Junto con ésta y subsidiaria de ella, la comunidad
de pedagogos. Ambas comunidades, hasta el momento, eran las portadoras del
saber psicológico universitario. Por otro lado, se visualiza la naciente comunidad de
especialistas en temas psicológicos, que aún ni siquiera podían ser denominados
psicólogos.
Por otra parte, otras consideraciones resultan de interés respecto de la comunidad
filosófica. Tomando como fundamento los resultados alcanzados del análisis
sociobibliométrico de los cursos, seminarios y conferencias del período 1937 1956, debemos tener en cuenta que en el plantel docente del campo de la filosofía
que componía la Facultad, existía como antecedente una fuerte presencia del
movimiento neoescolástico. Este punto de vista es consistente con el análisis
efectuado de los miembros del Primer Congreso Nacional de Filosofía (Mendoza,
1949), donde la UNC fue una de las instituciones que más miembros vinculados al
neoescolasticismo había aportado (Piñeda, 2003a). Desde este punto de vista,
podemos sumar argumentos contundentes para explicar la resistencia que la
comunidad de filósofos oponía a la graduación de especialistas en temas
psicológicos con un perfil "técnico en cuestiones del alma", pues, la resistencia a
toda tendencia reduccionista y determinista ha sido característica del
neoescolasticismo y ha constituido sus objetivos fundantes como movimiento (7)
(Piñeda, 2002).
Así, las contradicciones que se visualizaban en el acto de creación de la nueva
carrera, tal vez podrían estar mostrando que el mismo proyecto educativo en ese
momento todavía no estaba del todo claro, porque en el fondo, no se había
superado la discusión respecto a lo que debía ser la psicología y el psicólogo. Este
problema sería común a otras universidades, y -por ejemplo- ya se habría
advertido dos años antes en el congreso de psicología, y un año antes en la
creación de la carrera de psicología de Rosario (Gentile, 1989; 1997; 2003), donde
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se intentaba una superación de las insalvables diferencias discursivas respecto a lo
que era la psicología, focalizando en la figura del psicólogo como un profesional y
como un técnico, y en la utilidad de la psicología en tanto disciplina de aplicación.
No obstante, como puede advertirse en el acto de creación de la carrera de
Psicología y Pedagogía en Córdoba, este perfil en algunos lugares aparentemente
excento de conflictos, en el caso que estamos analizando, no escapaba a la
discusión y a los desacuerdos epistemológicos.
Más bien, habrían hecho falta al menos dos años de transición para que el proyecto
educativo se esclareciera, y las tensiones entre estos dos perfiles: el docente y el
profesional, se resolvieran en la creación de la Licenciatura en Psicología, dando
lugar al nacimiento definitivo de un nuevo grupo de especialistas que si bien
conservarían vínculos con su cuna filosófica por cuatro décadas más -hasta la
constitución de la Facultad de Psicología-, se abrirían paso al campo científico con
independencia.
Cabe señalar, finalmente, que hasta que se graduaran los primeros Licenciados en
Psicología, la Universidad Nacional de Córdoba dio varios Profesores en Psicología y
Pedagogía que pudieron optar por el grado de Licenciado, rindiendo ciertas
equivalencias con el nuevo plan de estudios. Tal es el caso de algunos de los
profesores que después de 1959 constituyeron sus cátedras en la Universidad
Católica de Córdoba (8) (Piñeda, 2004a).
La Licenciatura en Psicología
La carrera de psicología se organizó en la Universidad Nacional de Córdoba en
1958, en el seno de la Facultad de Filosofía y Humanidades. El primer plan de
estudios que se aprobó exigía para la obtención del título de Licenciado en
Psicología, la aprobación de 20 cursos, la asistencia al laboratorio de psicología
durante por lo menos 6 semestres con un crédito horario de 6 horas semanales o
tiempo equivalente, siendo dicho desempeño calificado numéricamente. También
era obligatoria la aprobación de 2 materias filosóficas: Introducción a la Filosofía y
Antropología Filosófica, y la aprobación de materias electivas de índole filosófica,
histórica, antropológica y de cultura general. Además, los alumnos debían mostrar
conocimiento de algún idioma moderno. Dada la flexibilidad del plan de estudios,
los docentes del Departamento de Psicología eran los encargados de guiar a los
alumnos en la integración de sus opciones.
Al aprobar los primeros 12 cursos semestrales de materias psicológicas, el idioma
extranjero y 3 semestres de actuación en el Laboratorio de Psicología, se otorgaba
el Certificado de Asistente en Psicología como instancia intermedia al de Licenciado
(9).
Para la obtención del título de Doctor en Psicología, el Licenciado debía preparar
una tesis final y actuar como adscripto a una de las secciones del Instituto de
Psicología durante por lo menos 2 años, realizando en ese tiempo, trabajos de
investigación bajo la dirección de algún docente a elección del alumno.
Por otra parte, la formación de los psicólogos seguiría nutriéndose con cursillos,
seminarios y materias electivas que ofrecía la Facultad, en su mayoría dictadas por
el plantel de docentes de Filosofía y de Pedagogía (ver Anexo C, Tabla N° 4).
Resulta interesante volver a aplicar el método sociobibliométrico para el análisis de
los contenidos y bibliografía de los espacios curriculares obligatorios y electivos del
plan de estudios de la Licenciatura, según los programas encontrados que datan de
1958 a 1966, considerando los mismos tres factores antes utilizados: profesores
bajo influencia del neoescolasticismo; textos neoescolásticos en circulación, y
autores propuestos como contenido en este período.
De este análisis, se evidencia que la circulación del discurso neoescolástico, se vería
notablemente disminuido después d e 1
9
5
8
.
Así, de los 20 cursos obligatorios (ver Anexo C, Tabla N°5), registrando los
programas entre 1958 y 1966, sólo en 3 cursos se pueden encontrar referencias a
autores neoescolásticos. En primer lugar, en Psicología General (Programas de
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1958 y 1966), dictado por el Profesor Raúl Alberto Piérola (10) con una proporción
de 3 referencias sobre un total de 78. Los autores referenciados son Gemelli &
Zunini (1954); Dwelshauvers (1939), y Jolivet (s/f). En segundo lugar, en
Orientación y Selección Profesional (Programas de 1965 y 1966), a cargo de la
Profesora Hermenegilda Fogliatto (11), con 1 referencia sobre 16, y al año
siguiente: 1 cita sobre 6 1 , siendo en ambos casos Gemelli (1959) el autor
referenciado. En tercer lugar en Psicología Pedagógica (1964), cuya Profesora era
Blanca Rodríguez: sobre 47 referencias, 1 es a Gemelli (1960).
Por otra parte, de los cursos electivos que se debía tomar, uno de los mismos debía
ser de carácter filosófico. De todos los ofrecidos entre 1958 y 1966 (ver Anexo C,
Tabla N° 4), los dos únicos en los que hemos encontrado referencias a autores
neoescolásticos son el curso de Filosofía de la Ciencia, dictado por el Dr. Andrés
Raggio, efectuando una referencia a Michotte (1954); y el curso de Ética, dictado
por Carlos A. Tagle en 1959, 1962 y 1963. En este último, en los tres años, sobre
un total de 42 referencias, 10 son a autores de interés para los neoescolásticos: 3 a
Mercier (s/f) (12), 2 a Tomás de Aquino (1936), 1 a Derisi (1941), 1 a Maritain
(1930), 1 a Balmés (s/f), 1 a Quiles (1942), y 1 a Gilson (s/f).
Por la proporción de citas y estructuración de contenidos de los programas,
creemos que solo en el caso del Profesor Tagle se justifica hablar de cierta
influencia neoescolástica en su formación y en su pensamiento. En el resto de los
casos, si bien puede tratarse de docentes católicos, como Hermenegilda Fogliatto
(13), creemos que las citas se deben en mayor medida al impacto que las obras
referenciadas habían causado en Argentina, por lo cual, su circulación seguía
asegurada en la sexta década del siglo XX (Piñeda, 2004c). Como se habrá
apreciado, desde esta perspectiva, el autor más significativo había sido Agostino
Gemelli. De sus 4 obras psicológicas traducidas al castellano, todas de gran impacto
en Argentina, tres de ellas continuaban siendo referenciadas (14).
Por otra parte, es de mencionar que, en general, tanto en los cursos obligatorios
como electivos, se observan referencias a autores que sin ser neoescolásticos
armonizan con una visión aristotélica o aristotélico-escolástica de hombre y
facultades mentales: como Franz Brentano y Charles Spearman. Sin embargo, lo
que predomina en la bibliografía propuesta a los alumnos es literatura de corte
fenomenológico - existencialista, y también psicoanalista.
Así, advertimos que tras la creación de la Licenciatura en Psicología, estas son las
tendencias que hegemonizaban el escenario intelectual de la UNC, a la vez que
perdía protagonismo el neoescolasticismo.
Para un estudio posterior resultaría de interés el análisis de campos comunes de
problemas entre el neoescolasticismo y el psicoanálisis, que aún cuando en primera
instancia pueden parecer incompatibles, tendrían ciertos puntos de coincidencia,
como que, cada uno desde su punto de vista, intentaría restablecer la unidad del
hombre en la psicología buscando integrar la unidad psicosomática, y ambos
critican las psicologías positivistas (Quiles, 1952, p.70).
Conclusiones
El movimiento neoescolástico habría ejercido considerable influencia en la
comunidad académica de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad
Nacional de Córdoba que fuera cuna de la carrera de psicología. Esta influencia, que
habría sido predominante en los años en que se gestara la Facultad de Filosofía,
tendría un significativo impacto en el campo psicológico al menos entre 1937 y
1956. Posteriormente, con la creación de la Licenciatura en Psicología, el
neoescolasticismo perdería inserción en la misma.
Esta discontinuidad del influjo neoescolástico que había sido significativo en la
etapa pre-profesional: entre 1937 y 1956, podría explicarse al menos por dos
factores.
En primer lugar, porque el neoescolasticismo en la Argentina ha estado
predominantemente más vinculado a la filosofía que a la psicología científica. Con lo
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cual, en la UNC, los docentes de orientación neoescolástica que enseñaron en esta
universidad en el primer y segundo período, y que pertenecían a la Facultad de
Filosofía, y trabajaban tanto en el Instituto de Filosofía como en el de
Humanidades, fundamentalmente podían hacer su aporte a la formación de los
nuevos egresados desde el terreno de la Antropología Filosófica, y no tanto en el de
la Psicología Científica. En este nuevo campo, se daría lugar a nuevos docentes.
Este hecho, habría dado lugar a cierta desvinculación progresiva entre psicología y
filosofía, resultante en una mayor tecnificación de la carrera, contrariamente a lo
proyectado en el Profesorado de Psicología y Pedagogía, y a su vez, habría
permitido la entrada a nuevos discursos en boga tanto en Europa como en América,
y en Argentina en general.
El segundo factor que explicaría el decaimiento del neoescolasticismo en la UNC, es
que en 1959, se creó la Universidad Católica de Córdoba. Según hemos podido
constatar (www.uccor.edu.ar/-reseña histórica; Piñeda, 2004b), la creación de la
misma se habría impulsado por profesionales de la UNC. Varios de los egresados en
el Profesorado de Psicología y Pedagogía, y de la posterior Licenciatura de esta
universidad, habrían sido profesores de la carrera de psicología de la universidad
privada (ver Anexo, tabla n° 6). Asimismo, docentes de filosofía que nunca fueron
profesores en Psicología ni en una ni en otra universidad, pero que sin embargo,
fueron muy importantes para la recepción e influjo del neoescolasticismo en el
clima intelectual de la universidad estatal, pasaron a ser docentes en la universidad
privada (15) (Universidad Católica de Córdoba, 2003). Si bien la creación de la
universidad privada se debe a intereses de los católicos y excede la languidez del
neoescolasticismo en la universidad publica, es de considerar que la primera
concentró gran cantidad de docentes católicos, muchos de los cuales
probablemente ya no enseñarían en la universidad estatal, perdiendo su inserción
en ella.
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dictado por Francisco Torres.
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dictado por Francisco Torres.
Facultad de Filosofía y Humanidades (1946). Programa del Curso de Psicología,
dictado por Francisco Torres.
Facultad de Filosofía y Humanidades (1953). Programa del Curso de Psicología
Racional, dictado por Hilario González.
Facultad de Filosofía y Humanidades (1954). Programa del Curso de Psicología
Racional, dictado por Hilario González.
Facultad de Filosofía y Humanidades (1954 a ). Programa del Curso de Psicología I,
dictado por Carlos Laguinge.
Facultad de Filosofía y Humanidades (1956). Programa del Curso de Psicología II
(Caracterología), dictado por Filemón Castellano.
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Orientación Profesional I, dictado por Carlos Laguinge.
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Notas
(1) Se agradece a las autoridades, personal administrativo y de archivo de la
Facultad de Psicología y de la Facultad de Filosofía de la Universidad Nacional de
Córdoba, por su gentil y desinteresada colaboración en el aporte de documentación,
que posibilitaron esta investigación.
(2) El método sociobibliométrico, es una herramienta utilizada en el campo de la
historiografía, y desarrollado muy especialmente por el grupo de la Universidad de
Valencia. Mediante la cuantificación de referencias a autores, obras, referencias,
etc., en un texto dado, y el análisis cualitativo de esos datos, pretende poner de
relieve las comunidades científicas, instituciones, programas de investigación,
objetos de estudio, metodologías, etc. es decir, las diversas dimensiones de la
ciencia, entendida como organización social (Tortosa, Mayor, Carpintero, 1990,
p.35).
(3) Fue Miembro Activo del Primer Congreso Argentino de Psicología, Tucumán,
1954, y presentó el trabajo: "Psicotecnia del Paracaidismo".
(4) La Resolución de creación de la carrera estaba refrendada por el Profesor Víctor
Massuh, Delegado Interventor de la Facultad de Filosofía y Humanidades, y por
Evelina Ana Recalde, Secretaria.
(5) En este período 1956 - 1958, no hemos hallado los programas de las materias
consignadas en el Plan de Estudios del Profesorado en Psicología y Pedagogía, por
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10 que no nos ha resultado posible un análisis semejante al que hiciéramos en el
apartado anterior.
(6) El curso de Teoría y Técnica de Psicoanálisis estaba pensado dentro del plan de
estudios para cuarto año de la carrera. Si bien no se han encontrado programas
que atestigüen la fecha, docente y modalidad de su dictado, se han registrado
actuaciones que autorizan la iniciación de este curso a partir de 1959 (Bonzani, A.,
11 de febrero de 2004, correspondencia con la Jefa de Archivo de la Facultad de
Filosofía y Humanidades de la Universidad Nacional de Córdoba). Este dato cobra
interés, en el contexto que se le atribuye a José Bléger, haber dictado el primer
curso de Psicoanálisis en una universidad argentina, en la Facultad de Filosofía,
Letras y Ciencias de la Educación de la Universidad del Litoral, Rosario, 1959. El
curso de Bléger, como él mismo lo describió en su clase inaugural (Bleger, 1962),
se trataba sólo de psicoanálisis teórico. Pero, con el objetivo de enriquecer la
formación de los psicólogos, esa teoría debía ser "operante" en el "oficio del
psicólogo". Bléger consideraba imposible formar en las aulas universitarias para la
práctica psicoanalítica. Como se recordará, miembro de la APA, delegaba en el
Instituto de Psicoanálisis la autoridad para formar psicoanalistas.
(7) Para ilustrar hasta qué punto el neoescolasticismo se oponía a la figura del
psicólogo como un técnico, baste recordar en esos años los tres discursos de Pío XII
dirigidos a los psicólogos recordando la importancia de considerar al hombre en su
totalidad sin reduccionismos ni determinismos. En la primera (Pío XII, 1953/1967)
declara que la personalidad en su conjunto es objeto de estudio de la psicología, y
que en el estudio de la misma, no se debe perder de vista la unidad del hombre.
Esta idea es reiterada en el segundo discurso al que hacemos referencia (Pío XII,
1958), considerando los aspectos morales y religiosos, a la vez que psicológicos,
inherentes a la personalidad -entendida como unidad psicosomática del hombre, en
cuanto determinada y gobernada por el alma. Estas dos esferas: la moral y la
psicológica, fundamentan dos puntos de vista diversos pero complementarios, que
el psicólogo no puede pasar por alto en virtud de la unidad psicosomática que
entraña la personalidad. En el tercer discurso (Pío XII, 1958 a ), exhorta a los
miembros del Congreso de Neuro-psicofarmacología reunidos en Roma, por el
Collegium Internationale Neuro-Psycho Pharmacologicum, a sujetarse su promisorio
ejercicio profesional a un código deontológico, es decir, a normas morales objetivas
que resguarden la dignidad humana. Es decir, en la práctica que exige la
modificación del comportamiento y la cura de enfermedades físicas y mentales,
respetar al ser humano como sujeto libre y responsable de sus actos, capaz de
mantenerse fiel a su conciencia y a Dios. En general, en estos tres discursos se
recalcaba a los psicólogos clínicos y psicoterapeutas, a los psicólogos aplicados y a
los psiquiatras y neuropsicólogos, que aún desde su especialidad no perdieran de
vista la totalidad del hombre.
(8) Hacemos mención alos Licenciados en Psicología y Pedagogía: Arrascaeta María
Susana; Miotti Miguel Ángel, y Arlette Fernández Juana (Universidad Católica de
Córdoba, 2003).
(9) En esta resolución no se expresan cuáles eran las incumbencias de este
Asistente.
(10) Piérola, dictaba la cátedra de Psicología en la Universidad Nacional de
Tucumán, aparentemente en la Fac. de Medicina.
(11) Hermenegilda Fogliatto es Philosophical Doctor. Ex - Profesora Titular de las
Cátedras de Orientación Vocacional y Metodología de la Investigación, UNC. Ex Investigador Principal de CONICET.
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(12) Tres veces citado en diversos capítulos.
(13) Hermenegilda Fogliatto participa activamente del Movimiento de Seglares
Claretianos como coordinadora de grupos (Fogliatto, 2003).
(14) La cuarta a la que nos referimos es Nuevos Métodos y Horizontes de la
Psicología Experimental, siendo el original de 1910, fue traducida al castellano en
1927, editada por Subirí.
(15) Por ejemplo Nimio Anquín y Alberto Caturelli.
Nota sobre a autora
María Andrea Piñeda: Licenciada en Psicología, docente e investigadora de la
Universidad Nacional de San Luis, Argentina. Miembro del PI: "Conformación de la
psicología como profesión regulada en Argentina. Estudio comparativo con la
conformación de la psicología como profesión regulada en la Unión Europea.".
Becaria de Ciencia y Técnica de la UNSL. Contacto: Ejército de los Andes 950,
Edificio Plácido Horas (4 o Bloque), 2o piso, Box 7 1 - CP 5700 - San Luis. E-mail:
[email protected]
Anexo A
Carrera de Psicología y Pedagogía. Escuela de Psicología y Pedagogía.
Facultad de Filosofía y Humanidades. Universidad Nacional de Córdoba.
Primer Plan de estudios de la Carrera de Psicología y Pedagogía. Año 1956.
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Primer Año:
Introducción a la Filosofía
Psicología I
Pedagogía
Historia de la Cultura I
Neurofisiología
Segundo Año:
Historia de la Cultura II
Psicología de la Infancia y de la Adolescencia
Historia de la Educación
Psicología II
Psicoterapia
Orientación Profesional I
Prueba de suficiencia en Idioma: Francés o Italiano
Tercer Año:
Didáctica General
Psicotecnia
Orientación Profesional II
Psicología Pedagógica
Psicopatología General
Cuarto Año:
Ética
Sociopsicología
Teoría y Técnica del Psicoanálisis
Legislación Escolar Argentina y Comparada
Prueba de suficiencia en idioma: Inglés o Alemán
Quinto Año:
Filosofía de la Educación
Antropología Filosófica
Seminario y Práctica Psicológica (10 horas semanales)
Título:
Profesor en Psicología y Pedagogía: aprobación de
todo el plan de estudios.
Doctor en Psicología y Pedagogía: Dos años de
egresado del profesorado y presentación de Tesis
Doctoral sobre un tema original de la Especialidad elegida.
Fuente:
Resolución N° 40. Facultad de Filosofía y Humanidades. 23 de abril de 1956.
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Anexo B
Licenciatura en Psicología. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad
Nacional de Córdoba. Primer Plan de Estudios de la Carrera de Psicología. Año
1958.
Sección Psicología General
1) Psicología General
2) Caracterología
3) Psicología de la Personalidad
B- Sección Metodología
Psicometría
Psicoestadística
Psicología Diferencial
Orientación y Selección Profesional
C- Sección Psicofisiología
1) Sistema Nervioso o Neurofisiología
2) Psicofisiología
D- Sección Psicología Clínica
1) Psicopatología General
2) Psicoterapia
3) Psicoanálisis
E- Sección Psicología Evolutiva
1) Psicología de la Niñez
2) Psicología de la Adolescencia
3) Psicología Pedagógica
F- Sección Psicología Social
1) Psicología Social
2) Sociología
3) Psicología Industrial
G- Materias Filosóficas Obligatorias
1) Introducción a la Filosofía
2) Antropología Filosófica
H- Cursos Electivos
1) Filosóficos
2) Históricos
3) Antropológicos
4) Cultura General
Laboratorio de Psicología
J- Examen de Idioma Moderno
K- Examen final para la obtención de título de Licenciado
L-Adscripción y trabajo de investigación en el Instituto de Psicología y
Tesis Doctoral para la obtención del título de Doctor en Psicología.
1)
2)
3)
4)
Fuente:
Dirección General de Publicidad de la Universidad Nacional de Córdoba (1959)
Ordenanza de creación de la Carrera de Psicología aprobada por el H. Consejo
Superior el 29 de diciembre de 1958. Planes de Estudios.
Horas Plácido (1961) La Enseñanza de la Psicología en la Universidad Argentina y
otros comentarios. Anales del Instituto de Investigaciones Psicopedagógicas. 1959
-1961. (T.VI).
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Anexo C
Tabla N° 1: Profesores de la Facultad de Filosofía y Humanidades de la
Universidad Nacional de Córdoba vinculados al neoescolasticismo. 1937 1957.
Profesor
Castellano, Filemón
Fragueiro, Alfredo
González, Hilario
Gouiran, Emilio
Laguinge, Carlos
Piérola, Raúl Alberto
Torres, Francisco
Tagle, Carlos Alberto
Curso
Año
Psicología del carácter
1937
(serie de 4
conferencias)
1956
Psicología II
Historia de la filosofía
1937
Psicología Racional
1953
Psicología (2 o curso)
1954
Curso de Psicología
1937
Psicología I
1954
Psicotecnia y
1956
Orientación Profesional I
Psicología General
1957
Psicología
1942,
1944, 1946
1956,
- Ética
1957, 1958
Fuente:
Facultad de Filosofía y Humanidades. Programas de los Cursos de Filosofía y
Psicología: 1937 - 1957, sobre un total de 23 profesores cuyos programas de cursos
(24) y conferencias (16) fueron encontrados.
Tabla N° 2: Circulación de libros de texto de psicología y temas afines, de
autores escolásticos y neoescolásticos, en los cursos dictados por la Facultad
de Filosofía y Letras. UNC: 1937 - 1957.
Autor del
texto
Texto de Psicología y
temas afines
Aquinatis, -(1935). Summa Contra
Sancti
Gentiles. De. Marietti.
Thomas
-(s/f).
In
Aristótelis.
Comentarium. Librum de
anima.
Barbado, -(1943). Introducción a la
Manuel
Psicología
Experimental.
Madrid: s/datos Ed.
-(1946).
Estudios
de
Psicología
Experimental.
Madrid: s/ datos Ed.
Cursos en
los que
se citó
-Psicología
Racional, 1953.
-Psicología
Racional, 1953.
-Psicología I,
1954
N°
Total
de
citas
citas autor
a la
obra
2
1
1
1
2
1
-Psicología I,
1954
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 184
Córdoba
y
el
movimiento
neoescolástico.
Memorandum,
7,
165-188.
Retirado
em
/
/
,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
i-i
i-i
i-i
i—i
i-i
2
3
La Plata: UNLP.
-(s(f).
Traité
de -Psicología I,
Psychologie. S/datos Ed.
1954
-Psicología,
1946.
-Psicología I,
1946.
-Psicología I,
1954.
-Psicología
General, 1957.
1
-Psicología I,
1954
-Psicología
Racional, 1953.
-Psicología
Racional, 1953.
6
i—i
i—i
-Psicología
Racional, 1953.
i—i
i—i
2
2
i—i
2
i—i
i—i
2
i—i
-Introducción a
la Filosofía,
1957.
-Introducción a
la Filosofía,
1957.
-Psicología
General, 1957.
Jolivet,
-(s/f). Psychologie. Paris: -Psicología
Regis
Lyon.
General, 1957.
-(s/f). Psicología. S/datos -Psicología
Ed.
General, 1957.
Laburu,
-(1940). Psicología Médica. -Psicología I I ,
José A.
Ed. Mosca.
1956.
-(1941). Anormalidades del
carácter. Ed. De Seuil.
-Psicología I I ,
1956.
Lindworsk -(s/f).
Psicología -Psicología I,
Experimental. S/ datos Ed. 1954.
y,J.
-(1950). El poder de la
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-Aristóteles (s/f). Tratado
del
Alma.
Traducción
castellana
(s/
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editorial).
-(1950).
Tratado
de
Psicología
Empírica
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Expe rimen tal. Madrid: s/
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-(En
col.
Zunini,
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(1950). Introducción a la
Psicología. Barcelona; s/
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-Orientaciones
de
la
Psicología
Experimental.
Barcelona: s/ datos Ed.
-(1947). Lo spirito della
Filosofía Mediévale. Brescia.
-(1950).
El
Realismo
Metódico. Madrid: Ed. Rialp.
-(s/f).
Le
Tommisme.
Descleé de Brower.
-(s/f). El ser y la esencia.
S/ datos Ed.
-(s/f). Dios y la Filosofía.
S/ datos Ed.
-(1955). La Psychologie
descriptive selon Franz
Brentano. Paris: P.U.F.
i—i
Gilson,
Etienne
i—i
Gemelli,
Agostino
i—i
Fröebes,
Joseph
-(1950). La Persona. Su -Psicología
esencia, su vida, su mundo. Racional, 1953.
i—i
Derisi,
Octavio
Nicolás
Dwelshau
vers,
Georges
Ennis,
Antonio
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 185
Córdoba
y
el
movimiento
neoescolástico.
Memorandum,
7,
165-188.
Retirado
em
/
/
,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
i-i
i-i
i—i
6 materias
26 obras
-Psicología I I ,
1956.
-Psicología
Racional, 1953.
2
i—i
Totales
-Psicología
Racional, 1953
i—i
-Psicología I I ,
1956.
-Psicología I I ,
1956.
i—i
voluntad. Bilbao: s/datos
Ed.
Nuttin,
-(1953).
Psicanalisi
e
Joseph
Personalitá. Italia: Edizioni
Poaline.
Peillaube, -(1935).
Caractere
et
E.
Personalité. París: (s/datos
ed.).
-(1953).
Carácter
y
Personalidad. Librería Sta.
Catalina.
Quiles,
-Tomás de Aquino (s/f).
Ismael
Tratado de la unidad del
entendimiento contra los
Averroístas.
Argentina:
Espasa-Calpe. Traducción
castellana.
27
27
c/
c/
obra aut
Fuente:
Facultad de Filosofía y Humanidades. Programas de los Cursos de Filosofía y
Psicología: 1937 - 1957. [Análisis sociobibliométrico de la bibliografía de los programas
de los cursos de Filosofía y Psicología de la Facultad de Filosofía y Humanidades de la
UNC, sobre un total de 24 programas encontrados en el Archivo de la Facultad].
Tabla N° 3: Autores de interés para el neoescolasticismo incluidos en los
contenidos de los programas de los cursos de Filosofía y Psicología de la Fac.
de Filosofía y Humanidades.
Autor
i—i
Suárez,
Francisco
i-i
Mercier
Santo
Tomás
i-i
Gemelli
Maritain
N°
Programas en los que Cont
se estudia
curso
Psicología, 1954.
Historia de la Filosofía,
1937.
Psicología, 1954.
Historia de la Filosofía,
8
1937.
Psicología, 1942.
Psicología, 1944.
Psicología, 1945.
Psicología Racional, 1953
Ética, 1956.
Ética, 1957.
Ética, 1956.
2
Ética, 1957.
Fuente:
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 186
Córdoba
y
el
movimiento
neoescolástico.
Memorandum,
7,
165-188.
Retirado
em
/
/
,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Facultad de Filosofía y Humanidades. Programas de los Cursos de Filosofía y Psicología:
1937 - 1957.
Tabla N°4: Cursos Electivos, Cursillos y Seminarios dictados por la Facultad de
Filosofía (1958 - 1965), que podían ser tomados por los alumnos de
psicología y de otras carreras.
Curso electivo / Cursillo/
Seminario
Didáctica General
Filosofía de las Ciencias
Seminario de Métodos y
técnicas de Investigación
Social
Seminario de Sociología de
la educación
Cursillo de Antropología
Filosófica
Historia de la Educación
Psicología Pedagógiga
Pedagogía
Etica
Estética: Psicología de la
belleza y el arte
Estética
Año
1959/60
1959
1964/1965
1959/1961/62/6
3/64
1963
1958/61/62/63
1960
1958/60/61/62
1959/62/63
1958/59/60
1961/62/63/64/
65
Psicología 1964/65
Seminario de
Pedagógica
Seminario de Psicoterapia
1965
Lingüística General (curso y 1958/59/60/61/
seminario)
63/64/65
Cursillo de Didáctica
1965
Sociología
1958/61/62
Tabla N° 5: Circulación de autores y textos neoescolásticos en cursos
electivos y seminarios de carácter filosóficos y psicológicos (1958 - 1965),
según programas analizados.
Materia
Introducción a la
Filosofía
Año
Profesor
1958 - Prof.
Titular:
1964
Adelmo
Montenegro
Ref.
autores
neoescolás
ticos
Autor
N
—
—
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 187
Córdoba
y
el
movimiento
neoescolástico.
Memorandum,
7,
165-188.
Retirado
em
/
/
,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Antropología Filosófica
1958
1959
1960
1961
1962
1963
Ética
1959,
1960,
1962,
1963
Prof. Vázquez
Prof. Raggio
Prof. Carpio
Prof.
M.
A.
Virasoro
s/datos
Prof.
A.
Weissman
Prof.
Titular -S.
Carlos Tagle
Tomás
-Mercier
-
Maritain
Balmés
-Derisi
-Quiles
-Gilson
Psicología Pedagógica
1960
1964
Electivo: Filosofía de la
Ciencia.
Electivo: Estética.
Psicología de la belleza y
el arte.
Electivo: Psicología del
Arte
Electivo: Estética.
Escuelas y tendencias
estéticas y psicología del
arte
Electivo: La Antropología
Filosófica de Francisco
Romero
Electivo: Métodos y
Técnicas de la
Investigación Social
Seminario de Psicología
Pedagógica. La Dislexia
Infantil
Seminario de
Psicoterapia
1958
1959
1960
1963
Prof. Piérola
S/ datos
Dr. en Filosofía, Michott
Andrés
R. e
Raggio.
Raúl
Alberto
Piérola.
2
3
1
1
1
1
1
1
Raúl
Alberto
Piérola
S/ datos
Adelmo
Montenegro
R.
1964 - Dr. Prof. Adolfo
1965
Critto
1964
Lic.
Blanca
Rodríguez
1965
Dr.
Paulino
Moscovich
Tabla N° 6: Egresados de la UNC que fueron docentes de la Carrera de
Psicología de la UCC entre 1958 y 1965.
Egresado
Título
Psicología
Arrascaeta
María Lic.
Pedagogía
Susana
Carranza Reynoso Lic. Filosofía
y
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Piñeda, M.A. (2004). Comienzos de la profesionalización de la psicología, la Universidad Nacional de 188
Córdoba
y
el
movimiento
neoescolástico.
Memorandum,
7,
165-188.
Retirado
em
/
/
,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Ernesto
Risler Susana Leila
Surdo
Hércules
Eduardo
Mocchiutti
Juan
Narciso
Miotti Miguel Ángel
Lic. Psicología
Lic. Psicología
Lic.
y
Dr.
en
Psicología
Lic. en Psicología y
Pedagogía
Osvaldo Lic. Psicología
Hepp
Teodoro
Arlette
Fernández
Juana
Carrozi Silvia
Rodríguez Pardina
Oscar
Lic.
Pedagogía
Psicopedagogía
Médica
Médico Cirujano
y
Data de recebimento: 08/06/2004
Data de aceite: 20/10/2004
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pineda01.htm
Guedes, M.C. (2004). Memoravel Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195.
Retirado
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,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm
189
Nota
Memoravel Carolina Martuscelli Bori (1924-2004)
María do Carmo Guedes
Pontificia Universidade Católcia de Sao Paulo
Brasil
Memoravel Etim.lat: memorabilis,e
"digno de ser dito, digno de memoria".
Ninguém melhor que Carolina Bori para receber esse nome.
Oitenta anos, dos quais mais de cinqüenta batalhando pela psicología e a educagao
(formou-se em Pedagogía pela USP em 1947) e pelo menos quarenta pela ciencia
brasileira (para citar apenas o período a partir do qual se dedicou decididamente á
SBPC), Doutora Carolina é lembrada por colegas das muitas instituigoes pelas quais
passou como "urna das personalidades reconhecidamente mais expressivas da
psicología e da ciencia brasileiras" (Carvalho, Matos, Tassara, Rocha e Silva, Souza e
Machado) (1):
Admirável colega, participagao inteligente e desassombrada
em momentos críticos da vida nacional.
Aziz Nacib Ab'Saber, Instituto de Estudos Avangados, USP
Incansável [na luta] pelo desenvolvimento e reconhecimento
da importancia da ciencia para nossa sociedade.
Osear Sala, Instituto de Física, USP
dentista que defende de maneira firme e despretensiosa
os seus pontos de vista; que age com simplicidade e moderacao
até mesmo ñas discussoes mais inflamadas; que se dedica com afinco
a expansao da Ciencia em nosso país, principalmente entre os jovens.
Maria Isaura Pereira de Queiroz, Antropóloga, FFLCH, USP
Um notável exemplo de competencia dialógica, caracterizada por urna
disponibilidade para receber o outro, um esforgo para entrar e
compreender [seu] campo, urna atengao para escutar [seu] discurso,
um cuidado para nao desviar [seu] processo e, finalmente,
urna capacidade de questionar e orientar o trabalho do outro.
Alberto Villani, Instituto de Física, USP
Encarna admiravelmente o papel de intelectual humanista,
cuja atividade é inseparável de urna visao ética de mundo.
Gilberto Velho, Museu Nacional da UFRJ
Carolina Martuscelli Bori nasceu em Sao Paulo. Formou-se professora na Escola Normal
"da Praga" e em Pedagogía pela FFCL da USP, em 1947. É desse tempo que a conhece
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm
Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195.
Retirado
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do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm
190
o Professor Azis Ab'Saber: "Desde cedo sobressaiu-se, por seus dotes intelectuais,
culturáis e físicos", disse ele no velorio do dia 6 de outubro. Já um dos porteiros (2) do
predio onde viveu os últimos "acho que quase vinte anos", diz déla que "era muito
gentil com a gente, nunca deixou de dizer um bom dia, um boa noite, porque ela
trabalhava muito, só chegava de noite, mas nunca deixou de cumprimentar quando
chegava e quando saía. Era demais educada". E á minha pergunta sobre o que
acontecía quando eu deixava lá alguma coisa para ser entregue a ela, disse: "Tinha
bastante gente que fazia isso, deixavam trabalho, acho que pra ela ler. Ás vezes ela
descia buscar, ás vezes a gente levava pra ela." - "Por que, é um sistema do predio?"
- "Nao, nada disso, é porque a gente gostava déla." Insistí: "E também porque ela já
era idosa..." - "Nao, nao era táo velha assim, ela trabalhava muito, ela até viajava a
trabalho." Para Vera, que trabalhava com ela no Nupes há muitos anos, Professora
Carolina "era um modelo para nos: vinha todos os dias, sempre no horario, sempre
impecável; e vinha de ónibus!; chegava e já abria a correspondencia, respondía a
todos, a tudo, mesmo o que a gente achava sem importancia". E Nicinha, que com ela
trabalhou na SBPC, Professora Carolina "deixa um vazio que nunca será preenchido;
ela nao podia vir muito, mas vinha e sempre aquela pessoa gentil, que sabia da gente,
apoiava, ajudava."
Para a Professora Titular do Departamento de Psicología
Experimental da USP, Maria Amelia Matos, ex-aluna, depois colega de Departamento,
possivelmente sua amiga mais próxima, Carolina. E o Professor Enio Candotti, atual
Presidente da SBPC, completa: Carolina Bori [era] referencia obrigatória pelo seu rigor
ético e principios sólidos (Folha de Sao Paulo, 8/10/04).
Dizer que Carolina Bori "batalhou" significa lembrar nao só de seu incansável empenho
pessoal, público e privado, mas também de muita indignagáo, muita braveza, muito
estudo e muitíssimas reunioes, das quais participava atentamente, antes de, sempre
ponderada, comedida, emitir sua opiniáo - "conhecimento meditado", segundo
Ab'Saber (1998).
Em 1995, ao organizar urna das muitas homenagens que recebeu quando de sua
expulsória (como ela se referia á aposentadoria compulsoria - sistema segundo o qual
a USP automáticamente elimina do quadro de ativos um dos seus quando do
septuagésimo aniversario), tivemos oportunidade de entrevistar funcionarios de varias
instituigoes. Nao era um projeto especial para ouvir apenas funcionarios, mas nos
queríamos informagoes que ás vezes só eles poderiam dar.
Na SBPC, a mais abrangente sociedade científica do país, a pergunta foi feita á equipe
de secretarias: "o que - na opiniáo de secretarias que trabalharam com tantas
diretorias - podia ser citado como projeto da Professora Carolina e no qual ela tivesse
se empenhado de modo muito especial?". Depois de se entreolharem, mas quase
¡mediatamente, urna primeira resposta, unánime: o projeto das Regionais. Na
verdade, apenas mais um projeto comprometido com a importancia da ciencia
brasileira no desenvolvimento do país e com a difusáo do conhecimento científico,
objetivos principáis de urna vida pública, marcada pela defesa firme de principios e
idéias.
Na defesa desses objetivos, Carolina Bori foi responsável, com a colaboragáo de muitos
e urna firme mas sempre discreta coordenagáo, pela criagáo e/ou desenvolvimento de
muitas das principáis associagoes científicas locáis e nacionais na Psicología. Colaborou
sempre, competente e dedicadamente, e sem nenhuma vantagem pessoal, com
diretorias e conselhos científicos dos mais importantes órgáos e associagoes nacionais
em ciencia, educagáo, universidade e fomento á pesquisa, em muitas das quais
exerceu os mais importantes cargos, eventualmente mais de urna vez. Mas também, e
com o mesmo empenho, de pequeños grupos, ás vezes muito pouco abrangentes.
Criou e chefiou unidades académicas em mais de urna instituigáo. Colaborou com a
criagáo e participou de conselhos editoriais de importantes periódicos em ciencia e
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm
Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195.
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do
World
Wide
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http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm
191
psicología no país e no exterior e era Presidente da SBPC quando da criagao de um
periódico sobre ciencia para crianga.
Carolina Bori criou e manteve-se, até o final, á frente de projetos importantes, como:
a formagao de professores (ao falecer era ainda urna ativa diretora do Conselho
Científico do Nupes, trabalhando há dois anos num projeto sobre a questao do negro
na universidade, projeto que teve como urna de varias atividades um curso para
professoras que enfrentam o episodio de discriminagao em sala de aula); a formagao
do psicólogo e a disseminagao do conhecimento científico (na Reuniao Anual da
Anpepp em maio de 2004, entre varios fóruns escolheu participar, e de fato participou
ativamente, do fórum sobre relagao graduagao/pós-graduagao). E em entrevista em
julho de 2004 (3), dizia:
[Falar] sobre o que está por vir? Va/ depender do que se fizer agora.
O futuro da Psicología depende dos que estao
trabalhando [em] e lecionando psicología hoje.
A esperanca está em fazer e nao em querer e esperar.
II
Le fruit est aveugle.
C'est l'arbre qui voi (4).
Rene Char
"Com enorme capacidade de trabalho, Carolina Bori enfrentava múltiplas tarefas, que
desempenhava sempre com igual zelo e denodo", disse déla o Professor Ab'Saber, com
quem trabalhou por muitos anos na SBPC e no IBECC. E continua: "Sempre me
impressionou o fato de, a despeito de toda sua dedicagao á SBPC, nunca ter
abandonado o Instituto de Psicología, suas aulas, seus alunos, seu laboratorio de
Psicología Experimental, a pós-graduagao, além de participar do IBECC." (Magalhaes,
1998)
Era assim que Doutora Carolina trabalhava. Muito e bem. E dava conta porque sabia
administrar, dirigir, coordenar. Dava conta porque, além de competente, era solidaria
com suas equipes, tinha em alto grau o que Pessotti (1998) chamou de "lealdade
institucional", e fazia de qualquer trabalho um projeto político.
Trabalhando na formagao e aperfeigoamento de pessoal para atividade científica e de
docencia (em todos os níveis), criou e ajudou a criar incontáveis grupos, disciplinares e
interdisciplinares. E sabia, como só ela, imprimir nesses grupos o que Tunes e Simao
(1998) chamaram de "um caráter coletivo", mostrando, com seu próprio exemplo, a
possibilidade de diálogo dentro da Psicología e entre diferentes áreas de conhecimento.
Ñas diretorias de que participou, soube sempre buscar apoios, descentralizando poder,
expandindo fronteiras. Fez isso admiravelmente, e depoimentos preciosos o atestam,
de colegas, de ex-alunos, de técnicos e de funcionarios administrativos (Matos, 1998).
Fez isso em instituigoes de ensino, de pesquisa e fomento á pesquisa, bem como ñas
diversas unidades académicas que teve oportunidade de chefiar e associagoes,
nacionais e internacionais, cujas diretorias integrou. E o fazia como um servigo
público, no mais alto sentido do termo, á Educagao, á Ciencia, á Psicología.
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm
Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195.
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World
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192
III
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestigios.
Carlos Drumond de Andrade
Mas, ácima de tudo, Carolina Bori era urna Professora. E porque era urna grande
Professora, deixa discípulos.
De seus projetos, aquele com maior número de adeptos talvez seja o que vé na
pesquisa científica feita com rigor o meio por excelencia de fazer Psicología, projeto
que gerou a maior parte de importantes pesquisadores da área no país, e ñas mais
diferentes perspectivas teóricas. Vale dizer, nao me refiro apenas á Psicología
Experimental e á Análise do Comportamento, embora este seja seu projeto de maior
repercussao internacional e que tem hoje, no Brasil, um seleto e muito produtivo
grupo. No final de agosto deste ano, em Campiñas, participou da Reuniao Anual da
ABPMC e do IV Congress of the International Association of Behavior Analysis, onde
proferiu palestra para urna platéia de mais de 200 pesquisadores, grande parte
formada por estudantes de graduagao e pós-graduagao, cujos trabalhos, expostos ao
longo do Congresso, mostram a exuberancia da área no país. Em 2001, ao receber da
ABA o Award for the International Disseminatoion of Behavior Analysis, Carolina Bori
dizia, com sua modestia (ela diria objetividade) de sempre:
É preciso manter presente que tal empreendimento
[o crescimento da Análise do Comportamento no Brasil]
envolveu um grande conjunto de pessoas:
alunos, professores, grupos de pesquisa e profissionais.
O desenvolvimento da Análise do Comportamento no Brasil
é o resultado de seu trabalho coletivo. (grifo meu)
Na defesa da ciencia e da pesquisa científica, seus discípulos se espalham por todas as
áreas do conhecimento e a grande maioria das universidades brasileiras. Sua atuagao
foi marcante, como Presidente da SBPC entre 1986 e 1989, período da reconstrugao da
democracia no país, quando soube defender bravamente tanto a presenga de cientistas
nos conselhos e comissoes de governo quanto a autonomía da Sociedade (Ennio
Candotti, 1989).
Como pesquisadora do Instituto Butanta [quero]
destacar o valor de sua atuagao em pro! dos dezessete Institutos de
Pesquisa das Secretarias do Estado de Sao Paulo.
Alba Aparecida de Campos Lavras, Instituto Butanta, USP
Fica, assim, a esperanga de que
O exemplo de toda urna vida dedicada a pesquisa e ao ensino
superior talvez contribua para urna mudanca de atitude e urna
compreensao do papel da ciencia como propulsora do progresso social.
Francisco Mauro Salzano, Instituto de Biociéncias, UFRGS
Na encruzilhada de futuro incerto em que todos nos encontramos mundo, país, universidade -, que se multiplique seu exemplo. Como espelho.
Como historia viva, aquela que permanece registrada para sempre.
Marcello G. Tassara, Escola de Comunicagao e Artes, USP
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm
Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195.
Retirado
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World
Wide
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http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm
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No que se refere á difusao do conhecimento científico, foi urna "sementé que
germinou" (Pacheco Filho, 1989). Seus principáis discípulos compreendem, além de
colegas e estudantes universitarios, ainda um sem número de técnicos e funcionarios
de diversas instituigoes e diferentes órgaos de governo com os quais ou em favor dos
quais trabalhou.
Urna manifestagao do apoio que [Carolina Bori] recebia a suas solicitagoes
foi a pronta aceitagao ao convite que formulou a dentistas de diferentes áreas
para comporem o Conselho do 'Projeto Estagao Ciencia'.
Vera Soares, Centro de Cooperagao de Atividades Especiáis, USP
No incentivo á pesquisa, trabalhou na viabilizagao de políticas adequadas á pesquisa
na psicología, ñas ciencias humanas, na ciencia em geral. Vestigios de seu trabalho
nesta área sao fácilmente identificáveis no que se refere aos orientandos que levou a
defesa em diversas instituigoes, num total que já alcangava cem (entre mestrandos e
doutorandos) quando de sua "aposentadora" em 1994. Como orientadora, nunca dizia
o que devia ser feito. Seus comentarios a nossos textos podiam resumir-se a pequeñas
interrogagoes sobre termos [imprecisos, claro], ou urna ou outra palavra ou frase curta
á margem, com sua letra característicamente gentil. Mas diziam respeito sempre ao
que tinha sido feito e nao áquilo que poderíamos ou deveríamos ter feito. Como disse
Villani (1998), com quem trabalhou no Instituto de Física: "de um lado estimulava o
prazer de elaborar o trabalho e, de outro, sublinhava nossa responsabilidade quanto á
produgao de novos conhecimentos".
E o que falar de tantos "nao-orientandos" que ela atendeu e do atendimento que nunca
deixou de prestar a todo o pessoal com quem trabalhou, aos ex-orientandos, a colegas
de seus orientandos, e até a amigos e familiares de toda essa gente? A todos sempre
acolhia: para urna indicagao bibliográfica, para empréstimo de material, para discutir
urna idéia, para ajudar num projeto, para repartir informagoes, e até apenas para
ouvir. Será que nao aprendemos todos, com ela, a importancia do acolher (etim. lat.
vulg. accolligere = reunir, juntar)?
Mas há ainda suas palavras, em aulas e bancas de qualificagao e defesa de
dissertagoes e teses e em palestras, conferencias, simposios, debates que alcangaram
diretamente tanto colegas quanto um sem número de estudantes, de graduagao e de
pós-graduagao e na maior parte das instituigoes de ensino superior brasileiras, bem
como de jovens e nao tao jovens professores, nessas e em outras instituigoes, as mais
diversas. Nao duvido que haja muita gente que diria ter muito aprendido com ela, em
oportunidades muito curtas ou mesmo únicas.
Vou sempre me lembrar da Professora Carolina como urna grande amiga e
incentivadora do nosso grupo [de Pesquisa em Historia da Psicología],
com a visao ampia e generosa que ela sempre teve em relagao a ciencia.
Regina Helena de Freitas Campos (UFMG)
Fazendo minha tese na Antropología Social, freqüentei alguns seminarios
e partícipe'! de grupo de estudos no Nupes. Um día, perguntando sobre
minha pesquisa, Professora Carolina passou urna tarde me ouvindo
e sugerindo leituras. E me impressionava também a independencia déla:
dei carona algumas vezes para sair da USP, mas nunca me deixou ir
além da Faria Lima: "Aquí eu já tenho condugao".
Eliana de Oliveira, Pesquisadora no NEINB
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm
Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195.
Retirado
em
/
/
,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm
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Mantidos sempre seus principios, Carolina Bori nao recusava apoio á formagáo de
grupos de pesquisa. Nao recusava assessoria a colegiados. Nao recusava convite de
estudantes. Nao recusava dar pareceres a pesquisas. E exerceu muitos cargos
académicos. E, em todas as tarefas, o contato direto ia além daquele com colegas ou
alunos, era também com técnicos e funcionarios administrativos. E isso gerava ainda
um tipo a mais de atendimento, conseqüéncia de seu enorme respeito as pessoas e de
sua incrível ética.
Finalmente, cabe lembrar que sabia, como ninguém, incentivar pesquisadores "de
primeira viagem". Tivemos oportunidade de vé-la questionando as pesquisas expostas
na Reuniáo Anual da SBP em 2003, em Belo Horizonte. Á saída da sala, um
depoimento espontáneo de um bolsista de Iniciagáo Científica de urna universidade do
interior do Paraná, que se apresentava em público pela primeira vez:
Fiquei impressionado. Para todos os projetos apresentados ELA tinha
urna pergunta "de verdade" e um comentario que incentivava a gente.
Depois dessa experiencia, vou continuar a pesquisa, sem dúvida.
(o grifo nao é meu)
Parafraseando Susan Polis Schutz,
quando se tem urna Mestra qui poursuit dans la vie
ses propres objectifs
et nous laisse y prendre part,
on a beaucoup de chance... (5)
Obrigada, Carolina Bori, por ter sido tal Professora.
Notas
(1) Para maior fluidez do texto, as referencias sao ás vezes indicadas apenas pelos
seus autores. Sao todas tiradas de seus depoimentos publicados em Psicología USP, 9
(1), de 1998, organizado por Maria Amelia Matos.
(2) Entrevistado em 18/10/04 "para um trabalho sobre a Professora Carolina", o
Porteiro nos disse seu nome e completou: "Mas nao precisa por, o importante é que
tenho certeza que estou falando por todos."
(3) "Conversando com Carolina Bori". Entrevista gravada em DVD para a ABPMC
fwww.youruba.com.br').
(4) "O fruto é cegó/ é a árvore que vé." Este verso já foi usado na correspondencia em
que convidávamos colaboradores e ex-alunos da Professora Carolina a participar da
Exposigáo interativa que, em sua homenagem, realizamos com apoio da FATG em
1995, durante a Reuniao anual da SPRP.
(5) "que persegue na vida/ seus próprios objetivos/ e nos deixa deles participar/ temse muita sorte...".
Siglas utilizadas
ABA - Association of Behavior Analysis
ABPMC - Associagáo Brasileira de Medicina e Terapia Comportamental
ANPEPP - Associagáo Nacional de Pesquisa e Pós-Graduagáo em Psicología
CENAFOR - Centro de Aperfeigoamento á Formagao
FATG - Fundagáo Aniela e Tadeusz Ginsberg
FFCL - Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras
IBECC - Instituto Brasileiro de Educagáo, Cultura e Ciencia da Unesco
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm
Guedes, M.C. (2004). Memorável Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). Memorándum, 7, 189-195.
Retirado
em
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,
do
World
Wide
Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.ritm
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NEINB - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro, USP
NUPES - Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior, USP
PUC-SP - Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo
SBP - Sociedade Brasileira de Psicología
SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciencia
SPRP - Sociedade de Psicología de Ribeirao Preto
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
USP - Universidade de Sao Paulo
Nota sobre a autora
María do
Pontificia
junto ao
Contato:
Carmo Guedes é formada em filosofía e doutora em psicología, professora na
Universidade Católica de Sao Paulo e dirige o Núcleo de Historia da Psicología
Programa de Pós-graduagao em Psicología Social da mesma instituigao.
[email protected]
Data de recebimento: 20/10/2004
Data de aceite: 24/10/2004
Memorándum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/guedes01.htm

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