Corte Interamericana de Direitos Humanos

Transcrição

Corte Interamericana de Direitos Humanos
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Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH)
XII Simulação de Organizações Internacionais
SOI 2012
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Carta de Apresentação
Natal, 29 de Julho de 2012
Queridos delegados,
É com muita satisfação que apresentamos o Guia de estudos da Corte Interamericana de
Direitos Humanos da Simulação de Organizações Internacionais – SOI, edição 2012, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tradicionalmente, desde 2004, a SOI conta nos
dias de simulação com um comitê eminentemente jurídico, a exemplo dos tribunais. Como não
poderia deixar de ser, esse ano teremos o Corte IDH, oportunidade na qual vocês, estudantes de
Direito, poderão assumir os papéis de juízes, representantes das vítimas, do Estado, membros da
Comissão IDH ou Amicus Curiae nos casos Gomes Lund e outros x Brasil (Guerrilha do Araguaia) e
Karen Atala e filhas x Chile.
A preparação de uma simulação de um órgão de tamanha importância para o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos como a Corte IDH não é das tarefas mais fáceis. Exige o
trabalho árduo de estudantes dedicados, comprometidos, inteligentes, sábios, prudentes,
dispostos, responsáveis e, sobretudo, humildes, exatamente assim, como nós. Dessa maneira,
faz-se necessário que vocês conheçam mais um pouco dessas brilhantes mentes por trás da
produção acadêmica do presente Guia de Estudo. Passemos às apresentações dos Diretores:
Primeiramente (se ela não for a primeira a ser apresentada nós corremos sérios riscos à
nossa integridade física e moral), temos Rafaela Câmara, também conhecida como Rafinha ou
mesmo Rainha, como preferir. Essa estudante do 10º período do curso de Direito da UFRN,
aficcionada por MacBruiques cor de rosa, é um dos dinossauros da SOI, tendo participado de
pelo menos 13 edições. Esse ano, infelizmente, teve que nos deixar para retornar à Senzala de
Sinhôzinho Mickey. Esperamos que sua carta de alforria seja expedida em tempo hábil para a
sua participação nos dias de simulação. Após o término de sua vida universitária, a Rainha
pretende advogar, para o desgosto/desprazer de sua família que a perguntam todo o tempo:
“Mas só advogar?”. Enfim, apesar de sua conhecida tirania, ela diz estar à disposição para
responder a qualquer questionamento dos delegados (vai pagar para ver?).
Em seguida, temos a presença de Felipe Thé, aluno de período indeterminado do curso
de Direito (parece que vai para o 8º), o qual, para a surpresa de todos, regressou mesmo ao
Brasil (apostávamos que iria ficar na França comendo croissant até o fim dos seus dias). Seu
período de ausência foi essencial para que delegássemos a ele todas as tarefas que ninguém
queria fazer por aqui, de modo que as falhas de comunicação no Skype eram propositais.
Cidadão do mundo, especialmente EUA e França, sua residência tem servido de quartel general
das reuniões, mas a saída do anjo azul de sua esquina talvez mude tudo, já que ninguém mais
acha o seu prédio. Quando questionado sobre qual carreira deseja seguir, responde
simplesmente “sei lá, advogado?” (quem sabe abrirá também o escritório com a Rainha).
Hayanne Hackradt é aquela jovem simples e calma, cujo nome e sobrenome são sempre
lidos corretamente pelos professores nas chamadas. Aiane, ops, Hayanne, é aluna do 9º período
do curso de Direito da UFRN e membro orgulhoso da Estagiadoria da República. Seu hobby
preferido é estudar, mas quando tem tempo livre, prefere... bom, ela estuda. E, quando está
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cansada, vai descansar estudando. Topou desde logo o desafio de orientar os Representantes dos
Estados, de modo que os seus delegados terão uma experiência bastante humana e proveitosa
(na chibata!). Aficcionada por tudo o que vem do Japão, seu sonho é algum dia conseguir simular
um tribunal japonês na SOI, mas não tem encontrado apoiadores já que o pré-requisito para o
comitê é de que todos os delegados e diretores, assim como ela, falem o japonês fluentemente
(vai entender...).
Angelus Maia (a.k.a Angelino) é o quarto diretor a ser apresentado. Mentor intelectual da
presente Carta de Apresentação e parceiro contratual de trabalhos acadêmicos de Hayanne,
trata-se de um jovem (???) pragmático e extremamente tranquilo (chega a irritar). Está cursando
o 9º período (mas gostaria de já ter se livrado da faculdade há anos) e adora, em sua condição de
súdito altamente influenciável por Sua Majestade Rafinha, joguinhos de Iphone e afins. Não tem
medo de colocar a mão na massa, sendo um trabalhador confiável e pontual – certamente devido
à experiência como escravo do sinhôzinho Mickey (aliás, essa Diretoria que vos fala está repleta
de subordinados dele). Por fim, se você for capaz de aguentar sua calma, Angelus pode ser um
ótimo orientador em seus estudos. Não deixem de contactá-lo. Workaholic por natureza, ele
certamente não ignorará suas ligações e mensagens durante as madrugadas de preparação para
a simulação. (Twitter: @AngelusMaia). Não hesitem!
Luana Karla é a jovem intelectualmente mais avançada deste comitê, tendo
impressionado à todos ao ser aprovada no Exame de Ordem ao mesmo tempo em que preparava
o Guia de Estudos e as peças processuais simuladas. Dotada de uma grande mente criativa,
ensejou a criação do Pacto de São José do Mipibu, que certamente será de grande valia na
política do Estado do Rio Grande do Norte. Cursa o 10º período de Direito na UFRN e seu
principal hobby é aperrear o juízo da próxima diretora a ser apresentada, tendo exercido a
diretoria-geral do comitê na vacância de Felipe Thé e da Rainha. Aparentemente não gosta de
bordas de catupiry, fazendo questão que fique bem claro para os delegados que a borda
recheada ocupa metade da pizza, de modo que se pedirem pizzas com bordas de catupiry
durante a simulação, a referida diretora certamente dificultará as suas vidas (podem acreditar)!
Por último, mas não menos importante, nos deparamos com Gabriela Régis, titular do
segundo quartel general deste Comitê (também conhecido como “a câmara de gás”) e provedora
de variadas pizzas com bordas de catupiry durante as reuniões, sendo alvo de severas críticas
oriundas da diretora referida no parágrafo anterior. Titular de uma potência vocal assustadora,
recomenda-se que os diretores e/ou delegados que estejam em uma distância menor que 10m
de sua presença utilizem equipamentos de proteção auricular. Cursa o 8º período de Direito na
FARN e, corajosamente, topou relatar o momento histórico da Guerrilha do Araguaia, ao final do
qual encontrava-se ofegante e internada no Hospital Psiquiátrico João Machado após estudar
tanta história.
Por fim, após as apresentações, resta-nos convidá-los oficialmente para a simulação da
Corte IDH e desejar-lhes bons estudos! Nossos dias de trabalho serão árduos, mas com certeza
recompensados ao final!
Até breve, À bientôt, Hasta la vista baby, See you soon!
Diretoria da Corte IDH –SOI 2012
[email protected]
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Sumário
Carta de Apresentação ................................................................................................................................... 2
Introdução ...................................................................................................................................................... 5
Sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ................................................................................. 7
1.
Histórico ................................................................................................................................................. 7
2.
Composição............................................................................................................................................. 8
2.1
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) .......................................................................... 8
2.2
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) .................................................................... 11
2.2.1
A Carta de Bogotá (1948) .................................................................................................................. 11
2.2.2
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) ....................................................... 12
2.2.3
A Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969) ..................................................................... 14
2.2.3.1
Conteúdo e Estrutura ...................................................................................................................... 15
2.2.3.2
A Interpretação .............................................................................................................................. 16
2.2.3.3
Assinatura, Ratificação, Emenda, Protocolo e Denunciação ............................................................ 17
2.2.4
A Corte IDH dentro do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos ............................ 17
2.2.5
Composição e Organização ................................................................................................................ 19
2.2.6
Natureza das Competências ............................................................................................................... 20
2.2.7
O direito de Ação Individual perante a Corte IDH .............................................................................. 21
Sobre os Casos Contenciosos a serem Simulados ........................................................................................ 22
3.
Caso A: Caso Gomes Lund e Outros vs Brasil ..................................................................................... 22
3.1
Panorama Geral do Estado Demandado ................................................................................................. 22
3.2
Descrição dos Fatos .............................................................................................................................. 27
3.3
O Processo na jurisdição interna do Estado demandado ......................................................................... 31
3.4
O Processo no âmbito do SIDH............................................................................................................. 34
3.4.1
O Processo no Âmbito na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Apresentação da Demanda
perante a Corte IDH........................................................................................................................................ 35
3.4.2
Sobre os trâmites na Corte Interamericana de Direitos Humanos......................................................... 38
3.4.3
Sobre a Sentença de Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas* ........................................ 39
4.
Caso B: Karen Atala e Filhas vs Chile ................................................................................................. 43
4.1
Panorama Geral do Estado Demandado................................................................................................. 43
4.2
Descrição dos Fatos .............................................................................................................................. 45
4.3
O Processo no âmbito do SIDH............................................................................................................. 48
4.3.1
O Processo no Âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Apresentação da Demanda
perante a Corte IDH........................................................................................................................................ 48
4.3.2
Sobre os trâmites na Corte IDH.......................................................................................................... 50
4.3.3
Sobre a Sentença de Mérito, Reparações e Custas* ............................................................................ 53
5.
Considerações Finais ............................................................................................................................ 55
6.
Referências Bibliográficas .................................................................................................................... 56
5
Introdução
Dando continuidade à tradição formada nos últimos cinco anos de ter em suas edições
pelo menos um comitê que simule um órgão de jurisdição internacional para resolução de
litígios, a Simulação de Organizações Internacionais traz esse ano a Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
Iniciativa salutar, afinal, não há podemos esquecer que a SOI trata-se de um Projeto de
estudantes do curso de direito e, apesar de não se restringir os mesmos, nada mais natural do
que trazer para a Simulação um comitê que promova discussões com viés jurídico, fugindo do
caráter diplomático e político dos comitês ditos "tradicionais" no âmbito dos Modelos das
Nações Unidas.
A presença de uma Corte desta natureza entre os comitês a serem simulados se
justifica dado o comprometimento do Projeto em trazer para o mundo acadêmico um debate
sobre os temas de maior relevância no cenário internacional da atualidade, ainda mais em
tratando-se da Corte IDH, cujas decisões podem gerar consequências diretas e perceptíveis
por todos nós, devido a forte incidência do SIDH na realidade brasileira – vide a criação da
Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), fruto de uma recomendação da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro.
Os casos que serão simulados na edição da SOI 2012 foram selecionados por terem
grande relevância para a compreensão do papel da Corte na comunidade interamericana, ao
passo em que trazem à tona discussão de temas bastante polêmicos no âmbito jurídico
internacional (a exemplo dos direitos à vida, à liberdade, à informação, à igualdade e à não
discriminação). O estudo dos casos Gomes Lund e outros x Brasil (Guerrilha do Araguaia) e
Karen Atala e Filhas x Chile, abaixo esclarecidos, possibilitarão o estudo e a compreensão do
extensivo rol de direitos elencados na Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos
através de oportunidade ímpar para pesquisar e entender os procedimentos adotados perante à
Corte (e o próprio SIDH).
Para orientar os trabalhos a serem executados nos dias da Simulação, presente Guia de
Estudos demonstrará o funcionamento do SIDH, ainda que de forma não exaustiva,
apresentando breve histórico e sua composição (CIDH e Corte IDH). Destrinchará, então, o
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funcionamento da Corte Interamericana, apresentando sua estrutura, jurisdição e composição,
a normativa aplicável e, por fim como se dá o procedimento perante à mesma.
Feita essa breve apresentação, apresentar-se-ão os casos a serem simulados, com sua
contextualização no Estado Demandado, esclarecimento sobre os fatos e demonstração dos
trâmites perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Há de se esclarecer, desde já, que as informações aqui elucidadas acerca dos casos a
serem simulados são fornecidas apenas à teor de apresentação das demandas, não podendo
nenhuma das informações fornecidas ser suscitadas pelas partes na hora das audiências como
fatos verídicos – as peças a serem utilizadas como base para ambas as audiências serão
disponibilizadas, em momento pertinente, pela Diretoria do Comitê aos participantes, sendo
este apenas um Guia de Estudos para compreensão das temáticas envolvidas.
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Sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
1. HISTÓRICO
Após a Segunda Guerra Mundial, a proteção internacional dos direitos humanos
afirma-se, com ênfase, como uma resposta da sociedade internacional às atrocidades e
desmandos cometidos em desfavor da humanidade e, por consequência, dos direitos
fundamentais.
Nesse sentido, foram elaborados sistemas de proteção, tanto em âmbito global quanto
regional, no intuito de proteger os direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos, em
caráter universal.
Nas Américas, a Organização dos Estados Americanos (doravante, OEA) foi criada
em 30 de abril de 1948, em Bogotá (Colômbia), na IX Conferência Internacional Americana,
mostrando-se como meio responsável pelas políticas de proteção aos direitos humanos no
continente, almejando garantir a paz, segurança, mínima intervenção, solução pacífica das
controvérsias e a cooperação nos campos políticos, jurídicos e econômicos.
Na mesma ocasião, os participantes da conferência assinaram a Declaração Americana
dos Direitos do Homem que é, inclusive, anterior à própria Declaração Universal dos Direitos
do Homem (adotada em dezembro de 1948).
Os 35 países da América já ratificaram a Carta da OEA e esta foi posteriormente
reformada em quatro ocasiões: no Protocolo de Buenos Aires (1967), no Protocolo de
Cartagena (1985), no Protocolo de Washington (1992) e, por fim, no Protocolo de Managua
(1993).
A Comissão Interamericana foi criada em 1959, por meio da Resolução VIII da V
Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores, celebrada no Chile, tendo sua
competência ampliada com o intento de promover os direitos previstos na Declaração
Americana e, a partir de 1961, passou a realizar visitas em lugares específicos para vistoriar o
quadro geral dos direitos humanos em determinada nação ou para investigar uma situação
peculiar. Através da resolução XXII da II Conferência Interamericana Extraordinária, no Rio
de Janeiro, em 1967, a Comissão teve sua competência ampliada, adicionando-se a
prerrogativa para receber comunicações e queixas individuais.
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Somando-se a isso, na Conferência Especializada sobre Direitos Humanos, ocorrida
em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, foi adotada a Convenção
Interamericana dos Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa
Rica. Sua vigência se deu após dez anos, em julho de 1978. Frise-se, por relevante, que a
Corte Interamericana de Direitos Humanos foi criada no referido tratado, mais precisamente
no Capítulo VIII da Parte II.
Dos 35 Estados vinculados à OEA, 25 aderiram ao Pacto de San José da Costa Rica 1,
de modo que a prevalência atual é pelo sistema da Convenção, sendo aplicável o sistema
anterior da OEA aos países que não aderiram ao Pacto.
2. COMPOSIÇÃO
2.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
A CIDH antecede o Pacto de San José da Costa Rica, como já visto, o que significa
que a mesma submete-se tanto ao regime da Carta da OEA quanto ao do Pacto. Desde o início
de suas atividades, a Comissão vem, paulatinamente, ampliando o seu rol de competências e
atribuições.
É órgão autônomo e composto por sete membros, escolhidos pela Assembleia Geral
entre os nomes presentes nas listas elaboradas pelos Governos dos Estados-Membros, com a
atribuição de representar todos os membros integrantes da OEA.
A principal função desta Comissão é promover atos que possibilitem a observância e a
defesa dos direitos humanos por parte dos Estados signatários. De fato, qualquer indivíduo
pode a ela se dirigir e efetivar suas denúncias individuais e desencadear um processo
administrativo com o objetivo de reparar direitos humanos. Sua competência abrange,
inclusive, o processamento de petições individuais ligadas a Estados que não aderiram ao
Pacto de San José da Costa Rica, visto que possui função ambivalente: também é órgão da
Convenção e da OEA.
1
São os países: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El
Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru,
República Dominicana, Suriname, Trinidade e Tobago, Uruguai e Venezuela. Informações retiradas de
<http://www.oas.org/juridico/english/Sigs/b-32.html>, acesso em 06 de abril de 2012.
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Além do recebimento, análise, investigação e processamento das petições acima
delineadas, cabe a Comissão 2:
- Observar o cumprimento geral dos direitos humanos nos Estados membros,
e quando o considera conveniente, publicar as informações especiais sobre a
situação em um estado específico;
- Realizar visitas in loco aos países para aprofundar a observação geral da
situação, e/ou para investigar uma situação particular. Geralmente, essas
visitas resultam na preparação de um relatório respectivo, que é publicado e
enviado à Assembleia Geral.
- Estimular a consciência dos direitos humanos nos países da America. Além
disso, realizar e publicar estudos sobre temas específicos como, por
exemplo, sobre: medidas para assegurar maior independência do poder
judiciário; atividades de grupos armados irregulares; a situação dos direitos
humanos dos menores, das mulheres e dos povos indígenas.
- Realizar e participar de conferencias e reuniões com diversos tipos de
representantes de governo, universitários, organizações não governamentais,
etc. para difundir e analisar temas relacionados com o sistema
interamericano de direitos humanos.
- Fazer recomendações aos Estados membros da OEA acerca da adoção de
medidas para contribuir com a promoção e garantia dos direitos humanos.
- Requerer aos Estados membros que adotem “medidas cautelares”
específicas para evitar danos graves e irreparáveis aos direitos humanos em
casos urgentes. Pode também solicitar que a Corte Interamericana requeira
“medidas provisionais” dos Governos em casos urgentes de grave perigo às
pessoas, ainda que o caso não tenha sido submetido à Corte.
- Remeter os casos à jurisdição da Corte Interamericana e atuar frente à
Corte em determinados litígios.
- Solicitar “Opiniões Consultivas” à Corte Interamericana sobre aspectos de
interpretação da Convenção Americana
Localizada em Washington, D.C. (Estados Unidos da América), a Comissão reúne-se
em períodos ordinários e extraordinários de sessões, múltiplas vezes ao ano. Ainda, a
Secretaria Executiva da Comissão cumpre suas instruções, auxiliando, de modo geral, a
preparação legal e administrativa de seus deveres.
É de se destacar que a Comissão não possui função jurisdicional, visto que esta é
reservada à Corte Interamericana de Direitos Humanos, de modo que os processos em trâmite
na Corte passam pelo crivo administrativo da Comissão.
De acordo com o art. 46 do Pacto, para que a petição seja apreciada, faz-se necessário
ter havido o prévio esgotamento da jurisdição interna do país signatário; ser apresentada
2
Rol de atribuições retirado de http://www.cidh.org/que.port.htm, acesso em 11 de março de 2012. Suas
atribuições estão descritas também no art. 41 do Pacto.
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dentro do prazo de 6 (seis) meses, a contar-se da data em que o peticionário foi intimado da
decisão definitiva em âmbito interno e que a matéria da petição não esteja pendente em outro
processo de solução internacional (ausência de litispendência ou coisa julgada internacionais).
É imperioso apontar que, quando não houver o devido processo legal na legislação
interna do Estado a que se trata, quando não houver proteção legal ao direito violado, quando
o peticionário for prejudicado no acesso aos recursos de jurisdição interna e quando houver
demora injustificada na tramitação de seus processos, as regras delineadas no parágrafo
anterior não podem impedir o acesso do interessado ao âmbito da Comissão.
Caso a CIDH reconheça a admissibilidade da petição recebida, solicitará informações
pertinentes ao Governo correspondente, que deverão ser prestadas em prazo razoável. A partir
deste momento, a Comissão pode tomar as seguintes posições, em síntese:
- Recebidas as informações ou transcorrido o prazo fixado para recebê-las,
caso constate-se que não subsistem motivos da petição, mandará arquivar o
expediente. Pode ser decretada a inadmissibilidade ou improcedência da
petição, com base em informações ou provas supervenientes;
- Recebidas as informações ou transcorrido o prazo fixado para recebê-las,
caso constate-se que subsistem os motivos expostos na petição, a CIDH
passará aos exames dos fatos alegados, com o conhecimento das partes,
podendo iniciar uma investigação, se necessário. A petição individual passa
a ser registrada como um caso.
- Colocar-se à disposição das partes na tentativa de chegar a uma solução
amistosa.
Nesse ínterim, caso a conciliação não seja alcançada, a CIDH redigirá um relatório, no
qual estarão presentes os fatos, conclusões e, possivelmente, proposições e recomendações
que julgarem adequadas para a solução do conflito. Tal relatório será encaminhado ao Estado
interessado (fase do primeiro informe), consoante art. 50 do Pacto.
Ultrapassado o prazo de três meses a partir do envio do relatório e se não forem
observadas a concretização das recomendações da Comissão, esta poderá submeter o caso à
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Poderá, ainda, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, emitir sua opinião e
conclusões sobre a questão submetida à sua consideração, fazendo as recomendações
pertinentes e fixando um prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe
competir para remediar a situação examinada. Transcorrido tal prazo, a Comissão decidirá,
pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não as medidas
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adequadas (fase do segundo informe). A Corte Interamericana poderá ser acionada após esse
momento.
Por fim, caso o Estado interessado não tenha ratificado a Convenção Interamericana,
ou seja, não está submetido a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão poderá
acionar a Assembleia Geral da OEA para que tome medidas sancionatórias contra o Estado.
2.2 A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)
Outro órgão pertencente ao sistema interamericano de direitos humanos é a Corte
Interamericana, com sede em San José, na Costa Rica. É o órgão jurisdicional do Sistema,
resolvendo os casos de violação de direitos humanos por parte dos Estados que tenham
ratificado o Pacto de San José.
Cabe reiterar, por oportuno, que a Corte IDH não pertence à OEA, mas faz parte do
sistema previsto pela Convenção. Detém competência consultiva e contenciosa, de modo que
o acesso do particular à Corte se dará tão somente através da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, exposta no subtópico anterior.
Sua composição, base legal, estrutura, jurisdição e outros temas pertinentes à Corte
serão delineados a seguir. Contudo, para a sua efetiva compreensão, necessário se faz que se
explane acerca do arcabouço normativo que cerca tal órgão jurisdicional.
Conforme anteriormente explanado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é
um dos órgãos previstos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, o célebre Pacto de
San José da Costa Rica. Apesar de ter criado de fato a Corte IDH, não seria acertado dizer que
a Convenção IDH é a origem deste Tribunal, ou pelo menos do que este se propõe a fazer:
salvaguardar os Direitos Humanos na região. Na realidade, podemos identificar a luta pela
defesa desses direitos no nosso continente em documentos bem mais antigos elaborados pelos
Estados americanos, sendo a Carta de Bogotá, de 1948, notadamente o mais antigo.
2.2.1
A Carta de Bogotá (1948)
A Carta de Bogotá foi fruto da nona reunião da União Internacional das Repúblicas
Americanas3, realizada na cidade na cidade que lhe dá nome, na Colômbia, de 30 de março a
3
Organização criada em 1889 na Conferência de Washington, para tratar de temas como guerra, paz e
segurança nas Américas.
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2 de maio de 1948. Tal documento, que entrou em vigor em 1951, responsável pela criação da
já mencionada Organização dos Estados Americanos, a OEA, continha, já naquela época,
várias normas relativas à proteção dos Direitos Humanos.
Seu preâmbulo, de início, deixa claro a justificativa de criação da Organização ao
afirmar que "(...) o verdadeiro sentido da solidariedade americana e da boa vizinhança não
podem ser concebidos sem a consolidação neste continente e em suas instituições
democráticas, de um regime de liberdade individual e de justiça social baseado no respeito
aos direitos fundamentais do homem 4 (...)", demonstrando, desde aquele momento, a
preocupação com a proteção dos Direitos Humanos refletida na sua opinião de que "a missão
histórica das Américas é de oferecer ao homem uma terra de liberdade e um meio favorável
ao pleno desenvolvimento da personalidade e de suas aspirações".
Em vias de cumprir com tais missões, podemos identificar em seu texto a reafirmação
de diversos princípios que ainda hoje regem a maioria de textos e tratados relativos aos
direitos humanos, a exemplo dos direitos fundamentais da personalidade humana sem
qualquer distinção de raça, de nacionalidade, de religião ou de sexo – previstos no art. 3.l da
Carta da OEA. A Carta se mostra também bastante precisa, mais especificamente nas letras d
e n do seu art. 3, ao afirmar que a solidariedade dos Estados americanos e seus objetivos
audaciosos, exigem deles uma organização política baseada no funcionamento efetivo da
democracia representativa" e que a "a justiça e a segurança social são os fundamentos de uma
paz durável (...) a educação das pessoas deve ser orientada sob os princípios justiça, da
liberdade e da paz", demonstrando alguns dos objetivos a serem alcançados com a integração
regional.
Por ocasião dessa conferência na cidade de Bogotá, foram criados dois outros
importantes textos nos quais podemos enxergar os objetivos hoje perseguidos pela Corte IDH,
são eles: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Carta Interamericana
de Garantias Sociais, sendo que o último nunca entrou em vigor.
2.2.2
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948)
Adotada sete meses antes da célebre Declaração Universal dos Direitos do Homem, a
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem constitui um precedente na história
4
Preâmbulo da Carta da OEA, disponível em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/carta.htm. Acesso em 02
de março de 2012.
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da proteção internacional dos Direitos Humanos. Tal texto, como visto, adotado na
Conferência de Bogotá de 1948, é fruto das profundas divergências que dividiam os Estados
da então recém-nascida OEA sobre a maneira de organizar um sistema de proteção dos
Direitos Humanos. Seu conteúdo é generoso e liberal, na medida em que consagra os
"atributos da pessoa humana" e prevê em seu preâmbulo que todos os homens nascem iguais
do ponto de vista de sua dignidade e de seus direitos, e como são dotados por natureza de
razão e consciência, devendo tratar-se de com base na fraternidade.
Sem dúvida, a maior questão doutrinária na época da adoção de tal texto foi relativa à
natureza jurídica da Declaração. Como sabemos, tal documento, assim como a Declaração
Universal, não passa de uma resolução ou soft law. Em outras palavras, elas demostram a
intenção dos Estados, mas em princípio não tem força vinculante. Então, estariam os Estados
da OEA obrigados a observar aquilo que estabelece a Declaração Americana? Essa é um
questionamento que ainda existe no meio jurídico, mas a Corte IDH, que, como veremos mais
adiante, é o órgão responsável por dirimir esse tipo de questionamento, tratou.
A Corte IDH foi acionada pelo Estado da Colômbia e em 14 de julho de 1989
publicou o parecer consultivo nº 10, no qual utiliza a Convenção de Viena sobre Tratados
para opinar que:
A expressão tratado se entende por um acordo internacional concluído por
escrito pelos estados e regido pelo Direito Internacional, que pode ser
consignado por um instrumento único ou dois ou mais instrumentos
conexos, qualquer que seja sua denominação particular (...) é claro (...) que a
Declaração não é um tratado dentro do sentido da Convenção de Viena, pois
não foi adotada como tal, e em consequência não pode ser considerada como
um tratado5.
Deve-se ressaltar que o interesse nessa questão não é de cunho apenas teórico, mas
tem implicações importantes na prática, notadamente duas. A primeira diz respeito à
obrigação jurídica, ou não, decorrente da Declaração, que no caso é a não exigibilidade do
que é dito em seu texto, o que pode ser observado, por exemplo, na decisão do caso Baby Boy
contra os Estados Unidos da América 6, no qual a Comissão estabelece sua posição de que o
5
Convenção de Viena sobre Tratados apud Parecer Corte IDH. Interpretación de la Declaración Americana
de los Derechos y Deberes del Hombre en el Marco del Artículo 64 de la Convención Americana sobre
Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-10/89 del 14 julio de 1989. Série A. No. 10. Disponível em:
www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_10_esp1.pdf . Acesso em 04 de abril de 2012.
6
- Comissão IDH, caso n° 2141 Baby Boy x Estados Unidos da América, 6 de Março de 1981, Resolução 23/81,
Relatório anual 1980-1981.
14
aborto não constitui violação à DADH tendo em vista que o Direito à Vida estabelecido em
seu artigo 1º, assim como os outros citados no texto em questão, não tem observância
obrigatória. A segunda implicação importante é sobre como se dá a coexistência de dois
instrumentos, quais sejam a Declaração e a Convenção Interamericana, sendo a última objeto
de nosso estudo posteriormente. Por hora, é importante entender como a concomitância da
aplicação desses dois textos se dá na realidade americana.
Para compreendê-la é importante ter em mente que apesar de tratarem de assuntos por
diversas vezes correlatos, os textos normativos não são iguais. O primeiro é responsável pela
criação da Comissão IDH e estabelece diversos princípios gerais, mas, como visto, não tem
força vinculante, enquanto que o segundo tem por principal objetivo a criação da Corte IDH e
cria um rol de direitos a serem observados pelos Estados contratantes, o que significa dizer
que todos os países que assinaram e ratificaram a Convenção devem observar seu texto
normativo, sob pena de serem processados e condenados no âmbito do Tribunal por ela
previsto. Dessa forma, os dois instrumentos coexistem de tal maneira que o Estado que
ratificou a Convenção resta a ela vinculado, e o Estado que não, mas que assinou a
Declaração, tem responsabilidades enquanto membro da OEA.
Sobre o assunto, a Corte IDH também se pronunciou no parecer consultivo nº 10, por
nós já tratado, quando opina "que não obstante o fato de que a Convenção é o principal
instrumento que rege as obrigações Interamericanas em matéria de direitos humanos (...) os
Estados-parte na Convenção (...) não estão liberados de suas obrigações que derivam da
Declaração - obrigações estas enquanto membros da OEA" 7
2.2.3 A Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969)
Entendida como o principal instrumento do Sistema Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos (SIPDH), a Convenção Americana dos Direitos Humanos entrou em vigor
no ano de 1969 trazendo mudanças substanciais ao mesmo. Ela é de fato um divisor de águas
na história dos Direitos Humanos no continente Americano. Nós passamos do tempo em que
tínhamos uma Declaração de intenções para o tempo de uma Convenção, como tal, de
observância obrigatória para os Estados signatários.
7
- Corte IDH, parecer consultivo, interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.
Artigo 64 da Convenção, 14 de julho de 1989, OC-10/89, série A. n° 10.
15
2.2.3.1
Conteúdo e Estrutura
A Convenção é composta de três partes: a primeira concerne às obrigações dos
Estados e os direitos abrigados; a segunda fala dos meios de proteção e a terceira trata das
disposições gerais e transitórias. O primeiro parágrafo de seu preâmbulo anuncia o objetivo da
Convenção, qual seja, "consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições
democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos
direitos humanos essenciais". 8 Esse parágrafo consegue representar, sozinho, a ideologia do
SIDH, que enxerga na democracia, um único sistema político que permite a colocação em
prática dos direitos ditos "mais nobres" do ser humano.
O artigo 1º da CADH impõe aos Estados signatários que respeitem os direitos e
liberdades nela reconhecidos e que garantam seu livre exercício sem qualquer discriminação.
O artigo 2º vai ainda mais longe e exige que o exercício dos direitos e liberdades nela
contidos devem estar expressamente previstos na legislação interna de cada Estado
contratante, lembrando ainda que os destinatários são os indivíduos. Como iremos tratar mais
adiante, diferentemente da Convenção Europeia de Direitos Humanos, a CADH não
reconhece as pessoas jurídicas como titulares desses direitos. 9
De maneira geral, a Convenção consagra essencialmente direitos civis e políticos,
sendo a maioria deles protegidos diretamente. Em alguns casos, entretanto, ela determina
somente a necessidade de uma legislação interna a respeito, como é o caso do artigo 13.5, a
respeito da proibição de propaganda em favor da guerra e do artigo 17.5, que trata da não
discriminação de crianças nascidas fora da constância de um casamento. Já com relação aos
direitos econômicos, o texto normativo limita-se a um artigo, o 26, no qual trata do que chama
de "desenvolvimento progressivo" quando anuncia que os Estados membros se engajam tanto
no plano interior como pela cooperação internacional - notadamente econômico e
tecnicamente - a tomar medidas que visem assegurar progressivamente o pleno gozo dos
direitos que decorrem das normas econômicas e sociais e daquelas relativas à educação, à
ciência e à cultura, anunciadas na Carta das Organizações dos Estados Americanos e
reformada pelo Protocolo de Buenos Aires.
A CADH faz ainda uma correlação entre os direitos e deveres quando estabelece, em
seu artigo 32, que toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade
8
9
Preâmbulo da Convenção Americana dos Direitos do Homem.
O artigo 1.2 estabelece que para os fins da Convenção "pessoa é todo ser humano". Tal previsão exclui das
pessoas jurídicas a possibilidade de se beneficiarem dos direitos e liberdades nela previstos.
16
e que "os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de
todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática."
2.2.3.2
A Interpretação
A Convenção Americana de Direitos Humanos é um Tratado e, como tal, deve ser
interpretado segundo as regras da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.
O artigo 31 do referido instrumento estabelece:
1. Um tratado deve ser interpretado de boa fé segundo o sentido comum
atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo
e finalidade.
2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto compreenderá,
além do texto, seu preâmbulo e anexos:
a) qualquer acordo relativo ao tratado e feito entre todas as partes em
conexão com a conclusão do tratado;
b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes em conexão
com a conclusão do tratado e aceito pelas outras partes como instrumento
relativo ao tratado.
3. Serão levados em consideração, juntamente com o contexto:
a) qualquer acordo posterior entre as partes relativo à interpretação do
tratado ou à aplicação de suas disposições;
b) qualquer prática seguida posteriormente na aplicação do tratado, pela qual
se estabeleça o acordo das partes relativo à sua interpretação;
c) quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional aplicáveis às
relações entre as partes.
4. Um termo será entendido em sentido especial se estiver estabelecido que
essa era a intenção das partes.
Dessa maneira, a Convenção americana deve ser interpretada conforme seu objetivo
principal, qual seja, a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, sem levar em
conta a nacionalidade.
A Corte IDH se inspira explicitamente nas jurisprudências da Corte Europeia de
Direitos Humanos, com sede na cidade de Estrasburgo, na França, e da Corte Internacional de
Justiça, em Haia, na Holanda. Em suas decisões, a Corte IDH lembra constantemente que o
que esses tipos de tratados consagram valores superiores focados na proteção do ser humano.
São dotados de mecanismos específicos de supervisão e são objeto de uma garantia coletiva.
A especificidade desse tipo de tratado justifica, em casos extremos, a não observância
de certas regras de interpretação aplicáveis ao Direito Internacional de uma maneira geral. O
eixo central do método de interpretação da Corte Interamericana consiste em aplicar
17
sistematicamente a interpretação mais favorável para o indivíduo. A Convenção é um
instrumento vivo e, como tal, sua interpretação deve se adaptar à evolução da sociedade e das
condições de vida contemporânea.
2.2.3.3
Assinatura, Ratificação, Emenda, Protocolo e Denunciação
Como dispõe o artigo 74.1 da Convenção ADH, a assinatura e ou ratificação desse
documento está facultada a todo e qualquer Estado membro da OEA. Com relação às
proposições de emendas, essas são submetidas à Assembleia Geral por iniciativa direta de um
dos países membros, da Comissão IDH ou até mesmo pela Corte IDH por intermédio do
Secretário Geral. As emendas devem reunir dois terços dos votos dos Estados-parte para
serem aprovadas. Há também a previsão no artigo 77 do referido tratado da possibilidade dos
Estados ou a Comissão submeterem à análise da OEA, por ocasião de uma Assembleia Geral,
projetos de protocolos adicionais relativos à Convenção.
Os Estados passaram a poder denunciar a Convenção a partir de cinco anos após a sua
entrada em vigor. algaliem membro resolver denunciá-la, deve fazê-lo com um aviso prévio
de no mínimo um ano, assim como previsto no artigo 78 do tratado. Vejamos:
1. Os Estados Partes poderão denunciar esta Convenção depois de expirado
um prazo de cinco anos, a partir da data da entrada em vigor da mesma e
mediante aviso prévio de um ano, notificando o Secretário-Geral da
Organização, o qual deve informar as outras Partes.
2. Tal denúncia não terá o efeito de desligar o Estado Parte interessado das
obrigações contidas nesta Convenção, no que diz respeito a qualquer ato
que, podendo constituir violação dessas obrigações, houver sido cometido
por ele anteriormente à data na qual a denúncia produzir efeito.
Importante frisar que o instrumento da denúncia não libera o denunciante de suas
obrigações convencionais no que diz respeito a fatos que a violaram previamente à data da
entrada em vigor da denúncia.
2.2.4
A Corte IDH dentro do Sistema Interamericano de Proteção aos
Direitos Humanos
Conforme já elucidado, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é
composto, além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Tal Corte é uma "instituição judiciária
18
autônoma"10 com sede na cidade de São José da Costa Rica. Segundo estabelecido no artigo
1º do seu Estatuto, esta tem por missão interpretar e aplicar a Convenção Americana de
Direitos Humanos.
As origens da Corte estão direta e intrinsecamente ligadas às da Convenção ADH. Foi
somente em 1959, por ocasião da reunião dos Estados membros da OEA em Santiago do
Chile que a resolução VII foi proposta com o objetivo de criar uma Convenção e uma Corte
para salvaguardar os Direitos Humanos na região americana. Em 1979, outra Assembleia
Geral da OEA, dessa vez na Bolívia, adotou o Estatuto da Corte, colocando-a em
funcionamento.
Durante seus primeiros anos de existência a Corte foi praticamente ignorada pela
Comissão Interamericana, que esperou sete anos para enviar a primeira petição individual
para a sua análise. Face a essa escassez de imbróglios enviados pela Comissão, a Corte em
seus primeiros anos de vida exerceu quase que somente sua competência consultiva,
contribuindo, dessa maneira, para o desenvolvimento do Direito Internacional e
Interamericano dos Direitos Humanos. Assim que a Corte passou a receber os primeiros casos
em que tinha que exercer sua competência contenciosa, ou seja, analisar casos de violações
supostamente cometidas,
os Estados-parte passaram a participar
ativamente dos
procedimentos, enviando seus representantes às audiências da Corte, a fim de proteger seus
interesses.
De maneira geral, podemos dizer que os membros aceitaram a força coercitiva das
decisões da Corte notadamente no que concerne às reparações. Esta não encontra muitos
problemas em exercer sua jurisdição quando suas decisões são no sentido de ordenar o
pagamento a pessoas que sofreram violações ou até quando indica a necessidade de mudança
na legislação interna.
A situação muda de figura, entretanto, quando as decisões dizem respeito à obrigação
dos Estados de moverem ações judiciais contra os responsáveis por violações que não foram
punidos. Nesses casos, não raro o Estado-parte alega a incapacidade de cumprir tal decisão,
não se conformando com o posicionamento da Corte IDH - seus meios de coerção judicial
limitados, a influência política e a cultura da impunidade em diversos países da região
contribuem para a explicação desse fenômeno.
10
Tal expressão foi consagrada no Estatuto da Corte adotado em 1979 pela Assembleia Geral da OEA
19
Por fim, devemos ressaltar que à exceção de Trinidade e Tobago, a Convenção nunca
foi denunciada pelos Estados que a assinaram. O Estado do Peru demonstrou sua intenção de
revogar a jurisdição que outrora aceitara em 2001, mas logo depois desistiu.
2.2.5
Composição e Organização
A Corte é composta por sete juízes eleitos a título pessoal, entre juristas com conduta
ilibada, notório saber jurídico na área de Direitos Humanos e que reúnem as condições para o
exercício dos mais altos cargos do Poder Judiciário nos países que os lançam como
candidatos. Eles devem ser originários de um Estado-membro da Convenção IDH, a Corte
IDH não pode contar com mais de um juiz da mesma nacionalidade e existem três categorias
deles: titulares, ad hoc e interinos.
Tais magistrados são eleitos pelo escrutínio da maioria absoluta dos votos dos
Estados-parte, na ocasião de uma Assembleia Geral e são retirados de uma lista de nomes
oferecidos pelos países. Na teoria, cada país pode oferecer até três nomes, mas na pratica, por
razões políticas, a maioria oferece o nome de um só candidato ou nenhum.
Após eleitos, os juízes devem estar disponíveis para servir aos trabalhos da Corte e
para tanto é exigido que eles morem no local onde suas sessões acontecem. Como é de se
esperar, durante o tempo em que exercem seus mandatos, os juízes gozam da imunidade e
privilégios diplomáticos, razão pela qual não podem ser processados ou perseguidos em razão
de qualquer voto proferido. A Corte e seus funcionários também aproveitam de benefícios
diplomáticos específicos estipulados no Acordo de Privilégios e Imunidades da Organização
dos Estados Americanos de 1949. Por fim, cabe ao Secretário da Corte, adotar as medidas
disciplinares adequadas visando a sancionar as faltas cometidas pelos funcionários do órgão,
tudo em conformidade com o Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O Presidente e o Vice-Presidente da Corte IDH são eleitos entre eles para um mandato
de dois anos, com possibilidade de uma reeleição. Cabe ao Presidente a condução dos
trabalhos do Órgão, presidindo as audiências, representando a Corte e decidindo qual o
caminho a ser seguido no que concerne à jurisdição interamericana. Uma Comissão
permanente, composta do Presidente, do Vice-Presidente e de todo e qualquer juiz de quem a
presença é tida como necessária pelo Presidente, assiste à presidência em tudo o que for
necessário para o seu efetivo funcionamento. O Secretário, referido no Estatuto da Corte IDH
20
no artigo 14 como seu "funcionário de confiança", dirige o secretariado e exerce suas funções
em sua sede.
A Corte organiza todo ano quantas sessões ordinárias julgar necessárias. O Presidente
pode, de sua própria iniciativa ou por maioria dos votos dos juízes, convocar sessões
extraordinárias. As audiências, via de regra, são públicas e acontecem na sede do órgão.
Entretanto, em circunstâncias excepcionais, a Corte pode ter audiências privadas em qualquer
lugar. Conforme o artigo 43 do Regimento Interno da Corte, os agentes, os delegados, as
vítimas, as vítimas presumidas, seus advogados e/ou advogados devem ter à disposição as
minutas de cada audiência do mais tardar dentro de quinze dias.
As deliberações são tidas a portas fechadas. Apenas os juízes, o Secretário, o
Secretário Adjunto e os funcionários do secretariado podem as assistir. As decisões,
julgamentos e comunicados devem ser pronunciados em audiência pública e notificados por
escrito às partes envolvidas. O quórum requerido para as deliberações é de cinco juízes. As
decisões são adotadas à maioria dos votos dos juízes presentes e em caso de empate, o voto do
juiz presidente é preponderante.
As línguas oficiais da Corte são as mesmas dos Estados da OEA: Inglês, francês,
português e espanhol. Entretanto, a cada ano o órgão pode decidir utilizar um língua diferente
entre estas, a qual deve ser seguida por todos os documentos por ela elaborados ou a ela
enviados11.
2.2.6
Natureza das Competências
A Corte IDH exerce essencialmente dois tipos de competência: uma competência
contenciosa que a permite de reconhecer ou não violações aos direitos convencionais pelos
Estados-membro da Convenção ADH e uma competência consultiva, que está à disposição de
todo e qualquer país membro da OEA. No presente guia, nos aprofundaremos principalmente
na primeira competência, tendo em vista que apenas esta será simulada no comitê da Corte
IDH na SOI 2012 na análise dos casos mais adiante estudados.
Em virtude do princípio da competência, a Corte IDH é soberana para dirimir as
questões controversas relativas ao exercício de sua competência, seja ela qual for. A Corte
11
Importa esclarecer que, para efeitos de Simulação, mudanças serão efetuadas no intuito de melhor adequar o
Estatuto original da Corte IDH às necessidades do Modelo.
21
Internacional de Justiça julga que tal soberania dos tribunais internacionais constitui uma
"regra geralmente aceita no direito internacional"12. Em suma, a Corte tem competência para
se declarar ou não competente em todo o caso para o qual a sua análise é demandada, seja ele
de natureza contenciosa ou consultiva.
Com relação à natureza das competências outorgadas aos órgãos de controle (leia-se
Corte IDH e Comissão IDH) pela Convenção, cumpre ainda esclarecer que a contenciosa cabe
aos dois órgãos, na medida em que os dois podem receber petições individuais, muito embora
em momentos e com funções diferentes. Já a consultiva cabe única e exclusivamente à Corte e
pode ser entendida como determinante para o Sistema Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos, na medida em que é considerada um meio de controle judiciário
alternativo, ou pelo menos complementar, à função contenciosa.
2.2.7 O direito de Ação Individual perante a Corte IDH
Nesse momento, após entendermos sobre quais a natureza das competências exercidas
pela Corte IDH, passemos então a análise da matéria que pode ser tratada pelo órgão no caso
de quando este é acionado para exercer sua competência contenciosa. Conforme o artigo 62.3
da Convenção ADH, a Corte está autorizada a conhecer de todo litígio relativo à interpretação
e à aplicação de disposições convencionais, desde que os Estados envolvidos tenham aceitado
sua jurisdição mediante a ratificação do documento. Essa disposição confere à Corte uma
competência particularmente grande e confia ao órgão de São José a autoridade máxima no
que diz respeito a salvaguarda dos direitos convencionais.
Mister destacar que como o SIDH é composto por dois órgãos, diferentemente de
outros sistemas de proteção, a exemplo do europeu, não cabe à Corte IDH analisar as
condições de admissibilidade de uma demanda. Essa função, como visto, cabe de maneira
mais proeminente à Comissão IDH, inteligência dos artigos 46 e 47 Convenção.
Deve-se esclarecer também quem são as partes que podem figurar no pólo passivo e
ativo da demanda. No caso dos processos levados à Corte, o demandado deve ser um Estado
que ratificou e, portanto, reconheceu a jurisdição do órgão.
12
CIJ, Nottebom (Liechtenstein contra Guatemala) Relatório da CIJ 111, 1953, p. 111, objeções preliminares, 18
de novembro de 1953.
22
No que diz respeito ao polo ativo da demanda trazida à análise, cabe fazer a distinção
entre capacidade para agir perante os órgãos de supervisão da Convenção e a vítima. É bem
verdade que as duas devem estar representadas no polo ativo de um litígio apresentado à
Corte, mas são pessoas diferentes. A vítima é aquela que sofreu a suposta violação. Deve ser
uma pessoa física, identificável e devidamente individualizada em uma demanda. Frise-se o já
acima explicado de que a Convenção não reconhece a capacidade postulatória das pessoas
jurídicas.
Já a qualidade para agir, ou seja, para peticionar perante os órgãos de controle, está
prevista no artigo 44 da Convenção, que estipula que
Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental
legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização,
pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas
de violação desta Convenção por um Estado Parte.
Isso significa dizer que um indivíduo na qualidade de vítima não pode peticionar
diretamente à Corte. Precisa direcioná-la à Comissão, para que apenas após a mesma a
encaminhe ou não ao órgão jurisdicional.
Sobre os Casos Contenciosos a serem Simulados
3. CASO A: GOMES LUND E OUTROS VS BRASIL
3.1 Panorama Geral do Estado Demandado
Para compreender a causa e toda a conjuntura que envolve o objeto da controvérsia do
primeiro caso a ser simulado, conhecido como "Guerrilha do Araguaia" vs Brasil, é
imprescindível que se faça uma contextualização da situação histórica do Estado Demandado
à época dos fatos.
A constituição brasileira de 1946 foi elaborada sob o governo do General Enrico
Gaspar Dutra, eleito democraticamente para o cargo, demonstrando a influência exercida
pelas forças armadas no povo brasileiro. Tal carta foi emoldurada pelos princípios liberaldemocráticos e constituída de grande influência da ala conservadora da época, cunhada pelos
ideais de separação dos poderes de Montesquieu e defensora da eleição direta e obrigatória
para os cargos do executivo e legislativo, assim como preconizavam seus artigos 36 e 7°, VII.
23
Tal Carta perdurou durante vinte conturbados anos, como preleciona de forma clara e direta
Inocêncio Martires Coelho 13:
Apesar disso tudo e de vários abalos durante o tempo em que esteve em
vigor- aqui nos referimos, especialmente, às crises que levaram ao suicídio
de Getúlio Vargas; ao impedimento do Vice-presidente João Café Filho; à
tentativa de obstar a posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira e aos
levantes militares durante o seu governo; à renuncia de Jânio Quadros, com
a subsequente ‘manobra’ para, frustrada a tentativa de impedir a posse do
Vice-Presidente João Goulart , reduzir-lhe os poderes, mediante a adoção de
uma canhestra fórmula parlamentarista, que, de tão artificial e ilegítima, por
que mudava a identidade da Constituição, logo a seguir veio a ser rejeitada
em consulta plebiscitária-, apesar disso tudo, não se pode esquecer que, sob
aquela Constituição vivemos anos de tolerância e paz.
É salutar observar no término desse período, aspectos do governo de Jânio Quadros e
a transição para o de João Goulart, uma vez que são essenciais para a concepção do contexto
do Golpe de 1964, sendo este entendimento vital para a compreensão do caso em pauta. Jânio,
em seu breve mandato de sete meses não se alinhou a um bloco dentro do contexto da Guerra
Fria e traçou como metas medidas independentes, como: o aumento do número de parceiros
comerciais, e a diminuição do déficit público e a contenção da inflação 14 - o auge de sua
insurgência foi a condecoração a Ernesto Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional
do Cruzeiro do Sul, gerando tensões entre os adeptos aos movimentos sociais e os
conservadores - na ocasião pairou o receio de um alinhamento com a esquerda comunista e
em meio à tensão, um mês e sete dias após a condecoração, o Presidente da República
renuncia o cargo.
No entanto, para acirrar os conflitos de ideologias nacionais o Vice-Presidente, João
Goulart estava, no momento da renúncia, em visita oficial à China Comunista e ao ser
nomeado para presidência, por ser principal legatário do nacionalismo getulista teve seu nome
impugnado pelos três ministros militares antes de finalmente tomar posse 15 . A oposição à
Goulart dentre os ministros de Vargas era antiga, na década de 50 era o mais impopular entre
os militares. O epítome de sua administração foi o lançamento das chamadas "Reformas de
Base." Tal documento consistia em mudanças profundas no sistema do governo, abarcando
alterações até no sistema bancário nacional, além do básico como educação, habitação e
política agrária. A reforma universitária, por exemplo, assegurava plena liberdade de ensino e
COELHO, Inocêncio Martires. Curso de Direito Constitucional – 5a edição – São Paulo: Ed. Saraiva, 2010. p.
173-174.
14 RETRATO DO BRASIL. Política Editora de Livros, Jornais e Revistas. v.3, São Paulo, 1968.
15 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
13
24
abolia a vitaliciedade da cátedra, enquanto que a urbana ultrapassava o limite da propriedade
privada, pois congelava o preço dos alugueis e sancionava quem não utilizasse o seu imóvel
por longos períodos.
Tais turbações encerram-se com o Golpe Militar de 1964, apoiado pelos setores mais
conservadores da Nação. No entanto, diferentemente de 1930 e 1945, os militares não tiveram
o fito de entregar o poder novamente aos civis após a tomada do poder e, em abril de 1964,
editaram o Ato Institucional nº 1 adotando medidas que rompiam de vez com a constituição
de 1946, dentre as quais estava a nomeação indireta de um novo presidente da república.
A partir daquele momento, os comandantes-em-chefe das forças armadas, autores do
ato institucional, poderiam suspender direitos políticos por um prazo de dez anos, assim como
anular mandatos legislativos, pelo mesmo prazo, sem revisão judicial. Havia a ideia de que o
Brasil deveria ser governado por um executivo forte, centralizador e intervencionista para
alcançar o desenvolvimento pleno, sendo a única forma de alcançar tal intento pelas mãos dos
militares, como pode ser aferido no preâmbulo do Ato Institucional n° 1:
O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa,
representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no
momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração
estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram
para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o
País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos
de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos
jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do
Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo
revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a
modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da
República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a
ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a
drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na
cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir
ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa,
resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas
relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. 16
A manutenção do Congresso Nacional em nada significou no aspecto democrático de
governo, o primeiro Presidente da República do golpe, Castello Branco, governou com
poderes excepcionais. Deu início às prisões arbitrárias e às torturas, criou órgãos de controle e
repressão, sob seu governo foi editado o Ato Institucional n°2 em 1965, que extinguiu todos
os partidos, transformando o cenário nacional em bipartidário. A Constituição de 1946 veio a
16
BRASIL. Ato Institucional nº. 1, de 09 de
<http://www6.senado.gov.br/legislacao> Acesso em: 20 fev 2012.
abril
de
1964.
Disponível
em:
25
ser substituída com a edição do AI-4, o qual convocou os membros do Congresso para votar e
promulgar a nova Constituição brasileira.
Doravante, a Constituição de 1967 trouxe à sociedade brasileira a confirmação do
processo de militarização do Estado, os Poderes Legislativo e Judiciário foram sufocados por
uma centralização do Poder no Executivo. O maior exemplo de tal fenômeno é a alteração
drástica da jurisprudência e a mudança substancial nos princípios básicos da ação judicial ao
longo da ditadura, aplicavam-se aos processos princípios como o in dubio pro condenação e o
ônus da prova ser do acusado. Confirmando a militarização em 1968 é aditado o AI-5,
demonstrando a vitória da ala mais rígida dos militares e alterando a nuance autoritária do
governo ao mesmo tempo que ratifica o caráter ditatorial do Golpe de 1964.
O AI-5 representou a disposição do cenário do Estado Brasileiro para os crimes da
ditadura, principalmente por ser o primeiro dos atos sem data para expirar 17- foi maior até
mesmo que a Constituição elaborada dentro do regime militar. Em seu preâmbulo o Ato
Institucional em questão assevera o respeito à dignidade da pessoa humana, assim como
preconiza a importância do Estado Democrático de Direito e de todo o aparato necessário para
sua manutenção. Em dissonância com preâmbulo, o artigo segundo do AI-5 permitia ao
Presidente da República decretar o recesso do Congresso Nacional e em seu recesso legislar
sobre qualquer matéria. O ato em si era inconstitucional sob a ótica da Constituição de 1967,
visto que os interventores exerciam as funções de chefes do executivo sem as limitações que a
Carta vigente os vinculava.
Aduz o preâmbulo do AI-5 fornecer toda a assistência para o Estado Democrático de
Direito, no entanto, o que se viu foi o Estado criando um aparato de órgãos de inteligência
com o intuito de repressão e vigilância. O documento de Diretriz de Segurança Interna deu
base à criação dos DOIs – Destacamentos de Operações de Informações - e do CODI Centro de Operações de Defesa Interna18 - órgãos que possibilitaram a união das três forças
armadas e foi o principal meio de repressão política do país 19.
Logo, a linha dura do governo estava amparada para combater qualquer reação da
sociedade civil ao regime militar e antigas manifestações para melhoria da educação eram
17
18
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. Sao Paulo: Companhia Das Letras, 2002. 417 p.
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. Sao Paulo: Companhia Das Letras, 2002. 506 p.
19
Cfr.: Brasil Nunca Mais, p. 73-74
26
reprimidas ao máximo, causando confisco de bens e prisões sem o remédio do habeas corpus,
utilizado no país desde o tempo de Império.
Segundo o historiador Elio Gaspari, a destruição das organizações armadas de
oposição começou em julho de 1969, através da centralização das atividades de polícia
política pelo Exército. Tais organizações vinham atuando em assaltos a bancos desde 1967 e
posteriormente, quando começaram a preparar sua desarticulação, foi registrado que se tratava
de guerrilhas inspiradas pela Revolução Cubana 20.
Conforme a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (doravante
CEMDP) “no contexto de endurecimento do regime, algumas organizações partidárias de
esquerda optaram pela luta armada como estratégia de enfrentamento do poder dos
militares” 21 . A luta armada “rachou” a esquerda em 1962. O Partido Comunista fiel à
orientação de Moscou não coadunou com o movimento, preferindo se ater à militância
sindical. Não há qualquer ensaio de relacionar o surgimento das guerrilhas com o AI-5, afinal
aquele era um fenômeno já encontrado na sociedade brasileira, contudo deve ser levado em
consideração o aumento de tal comportamento, respondendo a crescente repressão.
Dados do Projeto Brasil Nunca Mais comprovam o aumento da repressão, logo da
tentativa de resposta por parte da sociedade, quando demonstram o número de denúncias de
tortura perante os tribunais militares. Entre 1964 a 1968 a média é de 77 denúncias, enquanto
que em 1969 as denúncias chegam a 719. Para Gaspari tal número indica como a tortura
estava sistematizada na corporação militar, sendo matéria de ensino e prática rotineira de
repressão22.
Os frutos do período inaugurado pelo AI-5 fazem os militares adquirirem um novo
discurso a partir de 1974, afinal, a imagem do país estava desgastada e diversas entidades
como a Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira para o Progresso da Ciência,
Comitê Brasileiro para a Anistia, Comunidades Eclesiais de Base e a União Nacional dos
Estudantes, começavam a fazer pressão por conta de tamanho desrespeito aos direitos
humanos, fazendo debates no âmbito interno e divulgando a conjuntura brasileira no externo.
Geisel se vê obrigado, devido à pressão internacional, a iniciar o discurso da abertura lenta,
gradual e segura. A política de abertura consistia na anistia dos exilados, modificação da Lei
20
GASPARI, 2002, A Ditadura Escancarada, p. 175-178
Direito à Memória e a Verdade. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República, 2007, p. 24
22 GASPARI, 2002 A Ditadura Envergonhada, p. 17
21
27
de Segurança Nacional para posteriormente ocorrer a revogação do AI-5 em 1979 e a
elaboração de um cronograma para a reabertura23.
A redemocratização teve como cenário, no contexto mundial, as implicações da crise
do petróleo de 1973, economicamente o país estava em recessão e a população não iria
permitir tamanho controle sem a resposta financeira, como acontecia à época do milagre
econômico, em que os jornais clandestinos de contestação eram feitos na mesma garagem
onde se guardava o carro zero. Era impossível conseguir qualquer empréstimo nos bancos
internacionais e a dívida externa apenas aumentava, enquanto que o investimento público em
obras de infraestrutura e o crédito para o setor privado diminuíam24.
Nesse diapasão, a crise cominada com a insustentável relação entre povo e Estado,
João Batista Figueiredo, último presidente militar, assume o compromisso de cumprir a
agenda de reabertura democrática e de garantir a sobrevivência dos últimos anos do regime
com uma maioria no Congresso Nacional. Durante seu governo elaborou um plano de anistia
– consolidado com a Lei no 6.683/79, a Lei de Anistia, que vem a ser um dos cernes da nossa
lide – o qual objetiva libertar gradualmente os presos políticos e garantir aos poucos o retorno
dos exilados ao país. Acontece que tal plano, refletido na Lei de Anistia, deveria consistir em
perdão "amplo, geral e irrestrito" mas, não coincidentemente, beneficiava mais aqueles
"acusadores" de crimes políticos do que os "acusados", excluindo de seus benefícios
guerrilheiros de origem civil, e deixando de investigar as violações dos direitos humanos
praticadas pelos agentes dos órgãos de repressão policial militar.
Após a implantação da Anistia, Figueiredo enfrentou a derrota pelas Diretas-Já em
1983 não cabendo, diante da nova conjuntura nacional, a continuação do governo na mão dos
militares, com a indicação de outro general para as eleições de 1985. Sendo essa a primeira
eleição, em onze anos que dois civis disputaram a presidência. Dois anos depois, em 1987, é
instaurada a Assembleia Nacional Constituinte, que consolida a redemocratização do país
promulgando a nova Constituição pautada em valores e princípios liberais, voltados para a
defesa e proteção dos Direitos Humanos.
3.2 Descrição dos Fatos
23
HABERT, Nadine. A Década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo, Ática, 1992,
págs. 70 e 71.
24 SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da Vida Privada: Contrastes da Intimidade Contemporânea. São Paulo,
Companhia das letras, 1998.
28
A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de cunho marxista, inspirado na
Revolução Chinesa, que tinha o intuito de perpetrar a revolução armada no Brasil,
aparelhando um exército popular através da mobilização campesina 25. O levante tomou lugar
na região do Rio Araguaia, na confluência de quatro Estados26, onde os membros do Partido
Comunista do Brasil (PCdoB) se instalaram em 1966 e permaneceram sem ser descobertos até
1972, vivenciando dois anos de confrontos com os militares até o ano de 1974, quando
encerrou-se a convivência ali estabelecida pela sua morte ou desaparecimento.
A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos afere em seu relatório
final27 que o PCdoB teria perdido 61 de seus militantes. Foram necessárias três campanhas
para a eliminação completa da guerrilha, sendo apenas a última considerada vitoriosa. Estimase que o contingente de mais de três mil a dez mil homens tenha sido mobilizado
rotativamente para a repressão total do movimento.
Considerando a proporção de homens enviados e a impossibilidade de saber quantos
camponeses aderiram é extremamente plausível que o número de mortos seja maior que as 63
pessoas listadas na Lei 9140/95, de desaparecidos políticos, segundo dados extraídos do
relatório supracitado. A referida Lei instituiu a reparação para os familiares dos desaparecidos
além de mencionar os esvanecidos no corpo da lei. Para garantir a reparação o pedido deveria
ser feito 120 dias após a publicação do instituto ou do reconhecimento do desaparecimento
pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos 28.
Era praxe nas operações militares que os primeiros capturados fossem poupados com
vida. E logo na primeira campanha, chamada de Operação Papagaio, realizada pelo governo
no início de abril de 1972, tal protocolo fora seguido e os guerrilheiros capturados não
tiveram suas vidas ceifadas. Tal panorama muda em 1973 quando a ordem passa a ser de
eliminação e sepultamento após a identificação quando da captura, 29 a chamada Operação
Marajoara – última expedição – controlada diretamente pelo Presidente Médici30.
25
26
Ver Brasil Nunca Mais, pág. 8; GASPARI Elio. A Ditadura Escancarada, pág. 407.
Sul do Pará, sul do Maranhão, nordeste do Mato Grosso e norte de Goiás.
27
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília:
Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2007.
28
Brasil Nunca Mais, pág. 272.
29
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada, pág. 400.
30
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília:
Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2007. Comunicação do Estado de 25 de setembro
de 2007, Anexo 1. Pág. 198.
29
Esta Intervenção foi a causa determinante dos desaparecimentos e da execução da
maioria dos guerrilheiros, dentre os quais estavam Maria Lúcia Petit da Silva, uma das únicas
identificadas nas buscas por restos mortais realizadas na região durante os anos 90. O Estado
brasileiro tratou o ocorrido no Araguaia como segredo de Estado, havendo sigilo sobre todas
as ações cometidas e certa resistência na realização da operação por parte até de alguns
militares, como o Capitão Cabral Corrêa, que relata a guerrilha como "uma caçada levada a
termo por verdadeiros monstros"31. A guerrilha do Araguaia coroa uma série de atrocidades
acaçapadas pelo regime militar e dentro do governo o assunto era um tabu. A primeira vez
que o Presidente Geisel falou sobre o evento foi em 1975 para proclamar o remate do
movimento.
No intuito de não deixar marcas da operação, os militares voltaram ao Araguaia para
desenterrar os corpos e destruir a maioria das evidências – de acordo com Elio Gaspari há
relatos de que alguns teriam sido desenterrados e queimados na região da Serra das
Andorinhas e outros jogados perto dos rios da região32. Sem a cobertura incisiva da imprensa
e a falta de documentação o massacre que se deu na região do Araguaia foi esquecido pela
história do país.
Em 1979, na atmosfera da reabertura do regime, a Lei 6.683/79 (Lei de Anistia) foi
editada em agosto, e a Comissão Interamericana em seu relatório anual aduziu o seguinte:
O Governo do Brasil informou que em agosto de 1979 foi editada a Lei
6683, mediante a qual se concede anistia a todos aqueles que, no período
compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, tivessem
cometido delitos de tipo políticos ou comuns conexos com estes, assim como
delitos eleitorais. A anistia cobre também aos que tiveram seus direitos
políticos suspensos, aos servidores da administração direta ou indireta com
funções vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo
e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais,
sancionados com fundamento em atos institucionais ou complementares. É
concedida também anistia aos empregados de empresas privadas que, por
motivos de participação em greves ou em qualquer movimento de tipo
reivindicatório ou de reclamação de direitos regidos pela legislação social,
tivessem sido despedidos de seu trabalho ou destituídos de seus cargos
administrativos ou de representação sindical33.
É salutar aludir que a adoção de Leis de Anistia não ocorre de maneira uniformizada,
por nascer de contextos políticos instáveis, questionando sua legitimidade e o propósito em
31
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada, pág. 453.
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada, pág. 453
33 CIDH. Relato Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1979-1980. Capítulo IV, A.
32
30
anistiar. A análise natural, feita dentro de um Estado Democrático de Direito, é de que sejam
anistiados apenas os crimes políticos, excluindo os delitos que configuram graves violações
aos direitos humanos.
Após a edição da Lei de Anistia muitas famílias esperaram seus parentes, na esperança
de que fossem exilados políticos, aguardando seu retorno após o fim da ditadura militar 34. A
busca incansável começa nesse período, e o fato de muitos não voltarem estimulou a
investigação dos familiares, através da contratação de advogados e articulação com
autoridades para solucionar os desaparecimentos. Inevitavelmente, os fatos foram surgindo,
assim como a notícia da Guerrilha e, desta forma deu-se início à formação das equipes de
busca na região do Araguaia, sob a iniciativa e organização das próprias famílias.
A primeira busca ocorreu em 1980. As informações sobre cemitérios e valas
clandestinas eram muitas, e os depoimentos dos moradores da região levaram a locais onde
apenas indícios de que corpos haviam sido enterrados. Em 1991 se deu a segunda expedição,
com o apoio de autoridades da Câmara dos Deputados e da Comissão de Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo. As escavações realizadas no cemitério de Xambioá lograram
êxito ao achar duas ossadas. No entanto, apenas uma delas foi identificada, a de Maria Lucia
Petit da Silva.
Além das buscas particulares, o Estado também providenciou expedições ao local,
duas no ano de 1996, fazendo com que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos e a Equipe Argentina de Antropologia Forense trabalhassem em conjunto para que
fossem descobertos novos corpos, as conclusões alcançadas foram de que havia corpos nas
valas localizadas, mas em momento posterior foram retirados 35 . Sem apoio logístico e
recursos humanos a continuidade das buscas se deu em 2001. O resultado foi o mesmo da
anterior, nenhum corpo encontrado36.
Em 2003 um importante passo para entender a Guerrilha do Araguaia foi dado, a
criação da Comissão Interministerial. Em sua composição havia membros da Casa Civil, do
34
MORAIS, Tais & Silva, Eumano. Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. São Paulo: Geração
Editorial, 2005, pág.538.
35
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília:
Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2007. Comunicação do Estado de 25 de setembro
de 2007, Anexo 1. Pág. 42 e 200.
36
Relatório da EAAF de 2 de agosto de 2001.
31
Ministério da Justiça, da Secretaria Especial de Direitos Humanos e da Advocacia Geral da
União37.
A Comissão Interministerial realizou duas expedições ao Araguaia, as quais
envolviam buscas na serra das Andorinhas, contudo, nada foi encontrado. No entanto, o
maior envolvimento do Governo Federal permitiu acesso às documentações disponíveis e a
concepção de um projeto envolvendo o laboratório Genomic, objetivando criar perfis
genéticos para cada desaparecido, baseado no material fornecido pelas famílias. Outra obra
da Comissão foi o auxilio prestado a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos
Políticos em seu relatório final em 2007.38
3.3 O Processo na Jurisdição Interna do Estado Demandado
O intuito buscado pela Lei de Anistia era o de coibir qualquer ação ou investigação
penal contra os agentes do governo que participaram das atividades repressoras do Estado.
Precisamente por tal lei, se mostrou impraticável qualquer possibilidade de uma persecução
penal, restando aos familiares dos desaparecidos a lide no âmbito cível. Como única
alternativa os familiares ajuizaram uma ação na 1ª Vara Federal do Distrito Federal, em 21 de
fevereiro de 1982, peticionando pela a declaração de ausência dos desaparecidos; a
determinação do seu paradeiro e, se fosse o caso, a localização dos seus restos mortais, para
dar-lhes um enterro digno; o esclarecimento das circunstâncias do falecimento; e a entrega do
“Relatório Oficial do Ministério da Guerra” sobre as operações militares contra a Guerrilha
do Araguaia39.
A ação em questão seguiu por sete anos no primeiro grau, até a justiça brasileira
afirmar que os autores não tinham o direito subjetivo reclamado, declarando a impossibilidade
jurídica do pedido por falta de previsão no ordenamento jurídico brasileiro que amparasse a
pretensão 40 . Em recurso de apelação o Tribunal Regional Federal decidiu que a fase de
instrução deveria ser obedecida no primeiro grau da prestação jurisdicional, a União interpôs
37
Relatório da Comissão Interministerial criada pelo Decreto nº4.850 com vistas à identificação de
desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, 8 de março de 2007. Comunicação do Estado de 22 de maio de 2007,
Anexo3.
38
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília:
Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2007. Comunicação do Estado de 25 de setembro
de 2007, Anexo 1. Págs. 46 e 47.
39
Petição Inicial da Ação Ordinária para Prestação de Fato (Ação Nº 82.00.24682-5), de 21 de fevereiro de
1982. Os autores da referida ação civil alegavam a existência de um relatório oficial do Exército sobre a
Guerrilha do Araguaia, elaborado em janeiro de 1975, contendo detalhes sobre os guerrilheiros e circunstâncias
de sua morte ou detenção.
40
Decisão da 1º Vara Federal do Distrito Federal, no marco da Ação Nº 82.00.24682-5, de 27 de março de 1989.
32
inúmeros recursos, dentre eles Embargos de Declaração e Recurso Especial 41 porém,
nenhuma das interpelações foi recebida para efetiva análise.
Em 2000, dando continuidade ao processo o juízo da 1ª Vara Federal do Distrito
Federal emitiu uma decisão interlocutória determinando que o Estado apresentasse os
relatórios referentes à Guerrilha do Araguaia 42. Entretanto, em resposta à mesma o Estado
alegou ser impossível o cumprimento da decisão, pois os documentos não mais existiam.
Em 30 de junho de 2003, o mesmo juízo pronunciou sentença com resolução de
mérito, julgando procedente a ação, determinando:
a) a desclassificação de documentos relativos a todas as operações militares
realizadas contra a Guerrilha do Araguaia;
b) o prazo de 120 dias para que a União informasse sobre o lugar de
sepultura dos restos mortais dos desaparecidos, procedesse a transladar e
sepultar as ossadas no lugar indicado pelos autores da ação judicial, e
entregasse a informação necessária para obter as certidões de óbito;
c) o prazo de 120 dias para que a União apresentasse ao Judiciário toda a
informação relativa à totalidade das operações militares relacionadas com a
Guerrilha do Araguaia; e a investigação pelas Forças Armadas, no prazo de
60 dias, a fim de elaborar um quadro preciso e detalhado das operações
realizadas contra a Guerrilha do Araguaia, cujos resultados deveriam ser
remetidos ao Juiz que expediu a decisão43.
Determinou, ainda, no caso de descumprimento da sentença seria imposta multa diária
no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) 44.
Nesse diapasão o Estado deu continuidade ao processo, interpôs Apelação no Tribunal
Regional Federal, alegando que a decisão anterior foi extra petita, pois o único documento
que deveria ser informado era o “Relatório Oficial do Ministério de Guerra” e não o conjunto
de todos os documentos que fazem referência à Guerrilha do Araguaia 45. Em face da rejeição
do TRF a União interpôs Recurso Especial no STJ 46 , sendo tal recurso analisado e
41
Recurso Especial impetrado pela União contra a decisão do TRF sobre a Apelação dos autores, no marco da
Ação Nº 82.00.24682-5, de 29 de abril de 1996. tribunal”.
42
Decisão da 1º Vara Federal, de 15 de março de 2000. Comunicação dos peticionários de 5 de dezembro de
2006.
43
Ver Decisão da 1º Vara Federal, de 30 de junho de 2003, publicada em 22 de julho de 2003, sobre o mérito da
Ação Nº 82.00.24682-5.
44
Ver Decisão da 1º Vara Federal, de 30 de junho de 2003, publicada em 22 de julho de 2003, sobre o mérito da
Ação Nº 82.00.24682-5.
45
Recurso de Apelação da União, de 27 de agosto de 2003, contra a decisão da 1º Vara Federal do Distrito
Federal, de 30 de junho de 2003 no marco da Ação Nº 82.00.24682-5. Comunicação do Estado de 4 de setembro
de 2007. Além disso, o Estado argumentou que já havia aprovado uma lei (Nº 9.140/95) com vistas a buscar os
restos mortais dos desaparecidos, assim como questionou o prazo de 120 dias fixado para encontrar os restos
mortais e a multa diária devida no caso de descumprimento .
46
Recurso Especial impetrado em 8 de julho de 2005 pela União contra a decisão do TRF que rejeitou a
Apelação. Comunicação do Estado de 4 de setembro de 2007.
33
determinado pelo egrégio Tribunal, em 2006, o cumprimento da sentença da primeira
instância, bem como que a execução da decisão ocorresse no juízo que a proferiu 47.
Ações ulteriores foram ajuizadas no intento de descobrir a verdade sobre a Guerrilha.
O Ministério Público Federal propôs Ação Civil Pública, em 2005, objetivando encontrar
documentações acaçapadas sobre o caso e fazer cessar a influência dos militares na população
do Araguaia48. Os recursos da ação em tela ainda não foram julgados.
Posteriormente, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, propôs a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para analisar a recepção da Lei de
Anistia n°6683/79 ao ordenamento jurídico inaugurado pela Constituição Federal de 1988.
A ADPF no 153 pleiteava que a Suprema Corte dessa à referida lei interpretação
conforme à Constituição de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a
anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos, não se estende aos crimes
comuns ou praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime
militar (1964/1985).
Apreciada em 2010, por 7 votos a 2 o STF julgou pela improcedência da ação 49 .
Alegaram os Ministros, em suma, que não caberia ao Poder Judiciário revisar a Lei de Anistia
e sim ao Poder Legislativo que, através da Assembleia Nacional Constituinte, integrou o
instrumento à Carta Magna do país. Afirmaram também que a concessão da anistia teve
caráter bilateral50, não podendo se questionar a legitimidade ou os termos do acordo político
nos moldes da ADPF pois as eventuais mudanças da conjuntura e do pensamento da
sociedade que ensejem uma revisão da lei de anistia deverão ser realizadas por lei específica,
isto é, pelo Poder Legislativo.
Tal decisão ainda está passível de revisão por Recurso de Embargos de Declaração
opostos pelos Peticionários alegando não ter a Suprema Corte se manifestado acerca da
47
Decisão do STJ sobre o Recurso Especial impetrado pela União. Comunicação do Estado de 4 de setembro de
2007.
48
Sobre esse ponto, jornais afirmam que o Exército estaria pressionando os moradores da região do Araguaia,
testemunhas das operações contra a Guerrilha do Araguaia, realizando ações de cunho assistencialista. Fonte:
MICHAEL, Andréa. Exército monitora até hoje guias que usou na guerrilha. Folha Online, São Paulo, 25
jul. 2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u22722.shtml>. Acesso em: 02 abr.
2012
49 Acompanharam o voto do ministro relator Eros Grau, pela manutenção da lei, os ministros Cármen Lúcia,
Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Celso de Mello e o presidente do STF, Cesar Peluso. Já os
ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto entenderam que a ação da OAB era parcialmente procedente.
50
Quanto a esse argumento destaca-se a opinião da sociedade civil que apoia a procedência da ADPF ao afirmar
que tal "anistia bilateral" na realidade é um disfarce para a auto-anistia do Estado Brasileiro.
34
aplicação da referida Lei de Anistia em casos de crimes continuados, a exemplo do sequestro.
O caso foi reaberto e deve ser julgado pelo Tribunal ainda este ano, em 2012. 51
Cumpre ressaltar que ao receber o caso da Guerrilha do Araguaia, em 2001, Comissão
ao analisar a questão do não esgotamento dos recursos internos aplicou a exceção prevista no
art. 46.2.c da Convenção para a ação ordinária interposta em 1982 e declarou a petição
admissível, fundamentando que a resposta efetiva para ação ordinária no Judiciário brasileiro
era demasiadamente longa e a demora não poderia ser considerada razoável.
3.4 O Processo no âmbito do SIDH
Passados 13 anos da proposição da primeira demanda judicial na Justiça Federal
brasileira sobre a matéria e, depois de mais de duas décadas à espera de ações estatais, em 7
de agosto de 1995, os familiares dos combatentes mortos e desaparecidos durante o período
da "Guerrilha do Araguaia" representados inicialmente52 pelo Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e pelo Human Rights Watch/Americas (HWRA), doravante
denominados "Representantes", peticionaram perante à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, objetivando utilizar-se do SIDH para condenar o Estado Brasileiro pela suposta
violação dos artigos I, XXV, e XXVI da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem53 e dos artigos 4, 8, 12, 13, 25 em conjunto com o art. 1.1 da Convenção Americana
Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) 54.
Assim, após a reunião de provas (documentais e testemunhais), realização de
audiências e oitiva das partes, de modo a confirmar sua competência e colher informações
suficientes sobre o caso, em 06 de março de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos emitiu o Relatório de Admissibilidade No. 33/01, declarando admissível o caso
11.552 "Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil" perante ao SIDH, acatando
51
Com relação à Ação Civil Pública e da ADPF n° 153 o relatório em questão proferiu a admissibilidade da ação
repousando o entendimento de que as considerações específicas sobre as medidas adotadas são posteriores as
datas da expedição do relatório. A Corte em questão não possui a competência de alterar o julgamento proferido
pela justiça brasileira, em nenhuma de suas ações, seja a Ação Ordinária, a Ação Civil Pública ou a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, contudo, deve fundar sua análise na quebra de princípios instituídos
na Convenção Americana.
52
Posteriormente, uniram-se aos peticionários originais, tornando-se, assim, co-peticionários da demanda:
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, a Comissão de Familiares de e Desaparecidos Políticos do
Instituto de Estudos da Violência do Estado e a Sra. Ângela Harkavy.
53
Art. I (direito à vida, à liberdade, à segurança e a integridade pessoal); art. XXV (direito de proteção contra a
prisão arbitrária) e art. XXVI (direito a processo regular).
54 Art. 4. (direito à vida); art. 8 (garantias judiciais); art. 12 (liberdade de consciência e de religião), art. 13
(liberdade de pensamento e de expressão) e art. 25 (proteção judicial) em conjunto com o art. 1.1 (obrigação de
respeitar os direitos).
35
a possibilidade de violação pelo Estado Demandado de todos os artigos presentes na Petição
dos Representantes.
A admissibilidade de tal demanda perante o Sistema representa, além de oportunidade
única de reparação à sociedade e às famílias das vítimas, um marco processual não só pelo
seu valor histórico, mas, nas palavras da própria Comissão Interamericana de Direitos
Humanos:
Uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência
interamericana sobre as leis de anistia com relação aos desaparecimentos
forçados e à execução extrajudicial e a consequente obrigação dos Estados
de dar e conhecer a verdade à sociedade e investigar, processar e punir
graves violações de direitos humanos.55
Percebe-se que a discussão da referida demanda vai muito além daquela sobre a
responsabilização estatal e reparação referente ao desaparecimento das 70 vítimas iniciais:
envolve debate sobre questões processuais (falta de recurso efetivo); manifestação acerca da
promulgação de lei incompatível com tratados internacionais e discussão sobre os limites da
soberania; mas igualmente envolve uma Corte supra estatal consolidando seu entendimento
perante o posicionamento dos Estados que viveram períodos de Ditaduras Militares, sendo
uma chance de deixar registrado jurisprudencialmente a incompatibilidade das leis de sigilo
de informações e obstrução de documentos e das violações de direitos humanos – da liberdade
de expressão ao direito à vida – com os diversos tratados e principalmente com a Convenção
Americana.
3.4.1 O Processo no Âmbito na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e Apresentação da Demanda perante a Corte IDH
Seis anos após o peticionamento dos Representantes, depois de todo o trâmite interno
de realizações de audiência, tentativa de conciliação de interesses, de apreciação da resposta
do Estado Brasileiro, após colher provas e evidências suficientes, através do Relatório de
Admissibilidade No. 33/01, a CIDH "desestimou a alegação de não subsistência dos motivos
55
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Demanda perante a Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Caso 11.552. Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) contra a República
Federativa
do
Brasil.
26
de
março
de
2009.
Disponível
em:
http://www.cidh.oas.org/demandas/11.552%20Guerrilha%20do%20Araguaia%20Brasil%2026mar09%20PORT.
pdf. Acesso em 12 de dezembro de 2011.
36
da petição", reconheceu que foram cumpridos todos os requisitos exigidos pela Convenção
para admitir o caso perante o Sistema, declarando o caso admissível.
Em 31 de outubro de 200856 , depois de sete anos colhendo informações e após as
alegações finais de ambas as partes, a Comissão aprovou o Relatório de Mérito No. 91/08, no
qual conclui que o Estado Brasileiro foi responsável por violar os artigos I, XVII, XXV e
XXVI da Declaração Americana e Artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção em detrimento das
vítimas desaparecidas; os artigos I da Declaração Americana e os artigos 5, 13 e 2 da
Convenção em detrimento dos familiares dos desaparecidos; o Artigo XVIII da Declaração
Americana e os Artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana, em detrimento das vítimas
desaparecidas e seus familiares, em virtude da aplicação da Lei de Anistia aos casos de
desaparecimentos forçados e, também, em virtude da ineficácia das ações judiciais interpostas
no caso, destacando-se o fato de que todos os artigos foram cumulados com o art. 1.1 da
Convenção.
A CIDH recepciona o pedido dos Representantes de que o Estado Brasileiro teria
responsabilidade por violação ao art. 12 da Convenção (liberdade de consciência e religião),
fundamentando tal decisão no argumento de que a violação estaria "subsumida" nas violações
à integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos.
No mesmo Relatório 57, após elencar as supostas violações cometidas, tece diversas
recomendações que deveriam ser cumpridas pelo Demandado, quais sejam: a) a adoção de
medidas necessárias para que a Lei de Anistia não seja empecilho para investigação e sanção
de responsáveis por violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade; b) a
determinação
da
identificação
e
responsabilização
daqueles
responsáveis
pelos
desaparecimentos forçados das vítimas da Guerrilha do Araguaia mediante investigação
judicial completa, com observância ao devido processo legal, levando-se em conta que crimes
contra a humanidade são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia; c) a publicação de todos os
documentos relacionados com as operações militares, em especial contra a Guerrilha do
Araguaia; d) o fortalecimento dos esforços empreendidos, com recursos financeiros e
logísticos, para busca e sepultura das vítimas desaparecidas; e) a reparação aos familiares da
vítima, no que concerne a tratamento físico e psicológico, celebração de atos de importância
56
A relativa mora na apreciação da demanda se deu pelo fato de nesse intervalo de tempo, ao solicitar
informações e suas alegações de méritos a ambas as partes, os prazos, por requerimento destas, foram diversas
vezes prorrogados pela CIDH.
57 Cf. CIDH, Relatório No. 91/08 (mérito), 11.552, Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), Brasil,
31 de outubro de 2008
37
simbólica e garantia de não repetição dos delitos cometidos, bem como reconhecimento da
responsabilidade do Estado pelo desaparecimento e sofrimento dos familiares; f) a
implementação de programas de educação em direitos humanos dentro das Forças Armadas
Brasileiras, em todos os níveis hierárquicos; e, por fim, g) a tipificação no ordenamento
interno brasileiro do crime de desaparecimento forçado, conforme os elementos constitutivos
do mesmo nos instrumentos internacionais respectivos.
A partir da notificação do Relatório de Mérito foi outorgado ao Estado Brasileiro o
prazo de dois meses para cumprimento da maioria das recomendações. E, pela excessiva
quantidade de pedidos de prorrogação de prazo, bem como pela falta de implementação das
medidas recomendadas, a Comissão decidiu por submeter o caso à jurisdição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Vale ressaltar que no decorrer da Peça de Apresentação da Demanda, quando trata das
Considerações Fáticas, a CIDH reconhece se tratar de caso complexo, com características
peculiares devido ao contexto de regime ditatorial em que os fatos se desenrolaram e os
óbices que tal característica representa para o alcance da verdade.
Ademais, reconhece a competência da Corte IDH para conhecer do caso que, apesar
de ter se dado mais de duas décadas antes de o Estado Brasileiro ter aceitado e reconhecido a
jurisdição contenciosa da mesma. Alega a Comissão que a demanda trata de violações de
caráter continuado, que persistem com posteridade a 10 de dezembro de 1998 (data em que o
Brasil declarou se submeter à jurisdição), configurando violações específicas e autônomas que
ocorreram, portanto, depois do reconhecimento da competência do Tribunal.
A CIDH faz então resumo geral do processo, apresentando o contexto em que se
deram as violações, os argumentos do Estado Brasileiro
58
e dos Representantes, os
fundamentos de fato e os de direito que ensejaram a apresentação da Demanda à Corte.
Explica detalhadamente o esgotamento das instâncias recursais em todos os processos sobre o
caso na justiça brasileira, e todas as leis e comissões criadas com o objetivo de busca,
pesquisa e elaboração de relatórios sobre desaparecidos políticos, a exemplo da CEMDP
infelizmente fadadas ao insucesso na prática – tudo consubstanciado em extenso respaldo
probatório anexo aos autos.
58
Mister notar que em momento algum do processo o Estado Brasileiro elide sua responsabilidade pelas
violações de direitos humanos cometidas. Afirma ter tomado medidas suficientes para reparar as supostas
vítimas, apesar de não esclarecer com precisão oficial as circunstâncias em que se deram os fatos que ensejaram
a lide.
38
Pautando-se, então, na jurisprudência do próprio Sistema Interamericano e de acordo
com os fatos e provas expostos na Demanda, a CIDH reitera os pedidos realizados no
Relatório de Mérito No. 91/08, encaminhando a Demanda para Corte IDH em 26 de março de
2009, com base nos artigos 51 e 61 da Convenção.
3.4.2 Sobre os trâmites na Corte Interamericana de Direitos Humanos
Assim, quatorze anos após o peticionamento perante o Sistema Interamericano de
Proteção aos Direitos Humanos, a Comissão apresenta à Corte a Demanda No. 11.552,
solicitando que esta ordene ao Estado Brasileiro, em suma, a suspensão da denegação de
justiça e da proibição de acesso à informação, a reparação dos danos causados às vítimas e a
seus familiares, solicitando que seja providenciada uma satisfação perante a sociedade pelas
violações perpetradas e ainda, que fossem tomadas medidas para evitar acontecimentos
semelhantes no futuro.
Após o recebimento, o Estado foi notificado em 18 de maio de 2009, sendo convocado
a designar juiz ad hoc59, nos termos do art. 55 da Convenção, enquanto os Representantes
apresentavam o seu escrito de solicitações, argumentos e provas (doravante denominado
escrito de solicitações) reforçando os pedidos e argumentos alegados pela Comissão, pautados
no art. 36 do Regulamento da Corte Interamericana.
No referido escrito de solicitações, apresentado em 18 de julho de 2009, os
Representantes solicitaram à Corte que declarasse a responsabilidade, em caráter
internacional, do Estado Brasileiro pelo desaparecimento forçado das (supostas) vítimas e à
total impunidade do mesmo frente aos fatos, pela violação dos artigos 3, 4, 5, 7, 8 e 25 em
conexão com os artigos 1.1 e 2 do Pacto de San José da Costa Rica, bem como pela infração
dos artigos 1, 2, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, alegando
ter ocorrido a falta de investigação e devida diligência nos procedimentos de âmbito interno,
bem como a violação do direito à verdade e restrições indevidas ao direito de acesso à
informação.
Seguindo o procedimento, em outubro do mesmo ano, o Estado apresentou sua
Contestação, na qual além de refutar o mérito e apresentar observações sobre o escrito de
59
Para maiores esclarecimentos sobre a figura do Juiz ad hoc ver item 3.2.1, sobre a composição da Corte
Interamericana, e o papel do mesmo. Nesse caso, o Brasil designou o Sr. Roberto de Figueiredo Caldas, em
Junho do mesmo ano, que aceitou o cargo, passando a compor em caráter especial a corte para julgamento da
lide.
39
solicitações e argumentos, interpôs três exceções preliminares, alegando ser a Corte
incompetente para apreciar a demanda pelo fato de as violações terem ocorrido antes do
reconhecimento da jurisdição do Tribunal pelo Brasil, pelo não esgotamento dos recursos
internos e pela falta de interesse processual dos Representantes.
Após os Representantes e a Comissão apresentarem alegações às exceções
preliminares do Estado, o Presidente da Corte colheu depoimentos e pareceres de 26 supostas
vítimas, quatro testemunhas e cinco peritos 60 . Após manifestação das partes, convocou-se
audiência pública a realizadas nos dias 20 e 21 de maio de 2010, para ouvir os depoimentos
de: três supostas vítimas, quatro testemunhas, bem como pareceres de dois peritos e alegações
finais orais das partes sobre exceções preliminares, mérito, reparações e custas.
Posteriormente foram recebidos escritos de oito institutos na forma de amicus curiae61
e, em junho de 2010, as alegações finais escritas da Comissão, do Estado e dos
Representantes com posteriores observações sobre as mesmas.
Finalmente, depois de colhidas provas suficientes, em 24 de novembro de 2010, foi
proferida a sentença de Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas sobre o Caso
Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil.
3.4.3 Sobre a Sentença de Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e
Custas  *
Através da Sentença 62 , a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu, por
unanimidade, que o Brasil é responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas, em
decorrência dos fatos ocorridos à época da Guerrilha do Araguaia, sendo condenado pela
Cf. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil. Convocatória de Audiência Pública.
Resolução do Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 30 de março de 2010.
61 Tais escritos, de renomadas instituições como a OAB/RJ, Organizações Não Governamentais como a Justiça
Global, diversas Universidades e associações de Juízes, versavam sobre a incompatibilidade da Lei de Anistia
com o ordenamento jurídico brasileiro e as normas internacionais; o controle do acesso a informação em o poder
do Estado; as eventuais consequências da Demanda e a importância do caso para a garantia do direito à memória
e à verdade, entre outros.

*Atenta-se para o fato de que, apesar de a Demanda já ter sido julgada, para fins de simulação, será
considerada como se não o tivesse sido. Os fatos e argumentos apresentados no presente Guia de Estudos
serão levados em consideração apenas para fins acadêmicos e para contextualização da lide, em benefício dos
Participantes. Todas as peças a serem usadas nos dias da Simulação serão produzidas pelos Diretores do
Comitê, não podendo os Participantes no momento da Audiência Pública se remeterem a quaisquer peças do
mesmo caso produzidas pela Corte ou Comissão ou mesmo a fatos ou argumentos que estejam presentes
exclusivamente neste Guia de Estudos.
62
A sentença foi proferida em 24 de novembro de 2010 e está disponível em
http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_219_por.pdf. Acesso em 12 de dezembro de 2011.
60
40
violação do direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas (pelo sofrimento
ocasionado pela falta de investigação efetiva para esclarecimento dos fatos), dos direitos ao
reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade e a liberdade pessoal
(estabelecidos nos artigos 3,4, 5 e 7 da Convenção), pela violação do direito à liberdade de
pensamento e de expressão (art. 13), do direito de acesso à informação (pela negativa de dar
acesso aos arquivos em poder do Estado, afetando o direito a verdade sobre os fatos) e, ainda,
dos direitos às garantias judiciais (art. 8.1) por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária
proposta na Jurisdição interna.
Declara, ainda, a Corte IDH ser o Brasil responsável por descumprir com a obrigação
de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 2) em
relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento como consequência da interpretação
que foi dada à Lei de Anistia a respeito das violações de direitos humanos. Realizou, ainda
controle de convencionalidade ao declarar a incompatibilidade da Lei de Anistia (Lei n o
6.683/79) com as obrigações internacionais assumidas pelo Estado Brasileiro ao assinar e
ratificar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, decretando que a mesma não pode
continuar representando obstáculo para a investigação de fatos e violações, nem para sanção,
seja para esse ou outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na
Convenção, que porventura venham a ocorrer no Brasil.
Acerca das preliminares, acata parcialmente apenas uma das arguidas pelo Estado,
reconhecendo a sua incompetência temporal para julgar a execução extrajudicial da vítima
Maria Lúcia Petit da Silva 63, que teve os restos mortais identificados em 1996, dois anos antes
de ser reconhecida a competência contenciosa da Corte, ao contrário dos outros casos
apresentados pelos Representantes, que tem caráter contínuo.
Quanto às reparações, dispôs que o Estado Brasileiro deveria, entre outros:
- Conduzir, perante jurisdição ordinária, investigação penal dos fatos
relativos à Guerrilha do Araguaia a fim de esclarecê-los, determinando as
responsabilidades penais e aplicando as respectivas sanções cabíveis;
- Oferecer esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas,
identificando e entregando os restos mortais aos familiares dos mesmos,
quando for possível;
- Oferecer tratamento médico e psicológico às vítimas que requeiram;
- Realizar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a
respeito da Guerrilha do Araguaia;
63
Sentença Caso Gomes Lund e Outros vs Brasil, p. 09-10.
41
- Implementar programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos
humanos dirigido às Forças Armadas;
- Adotar as medidas necessárias para tipificar o delito de desaparecimento
forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos;
- Pagar indenização, a titulo de danos morais e materiais (determinadas no
corpo da sentença) às vítimas e seus familiares, bem como arcar com as
custas e gastos processuais;
- Publicar informações relativas a violações de direitos humanos ocorridas
durante o regime militar64;
Explica, detalhadamente, os fundamentos das reparações e suas consequências, bem
como as condições de seu cumprimento, como também os motivos que levaram a Corte a
incluir os familiares como vítimas e passíveis de indenização. É, assim, uma decisão
completa, que não deixa margens para dúvidas quanto à fundamentação.
Merece destaque o voto do juiz ad hoc, indicado pelo Estado Brasileiro, o Sr. Roberto
de Figueiredo Caldas, que reconhece a responsabilidade do Brasil, concordando de modo
geral com as conclusões colegiadas da Corte, porém, sob a perspectiva de um juiz nacional do
Estado diretamente afetado. Afirma ele ser este um debate de grandes proporções, bem como
de importância transcendental para sociedade e para o Poder Judiciário, afinal, trata-se de
caso inédito de decisão de Corte internacional contrapondo jurisprudência nacional
pacificada65.
Apesar de reconhecer a força da decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito
interno, conclui o Juiz em seu voto que não há como deixar de lado a Convenção Americana
de Direitos Humanos e todos os dispositivos internacionais que repreendem veementemente a
prática de crimes contra a humanidade. Conclui seu voto dizendo:
Finalmente é prudente lembrar que a jurisprudência, o costume e a doutrina
internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno,
tais como as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e
outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado
cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesahumanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um indivíduo
agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas
transmissões por gerações de toda a humanidade.
É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará
em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo
para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar
64
Sentença Caso Gomes Lund e Outros vs Brasil, p. 115 - 116
Refere-se à ADPF 153/2008, através da qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da
Lei de Anistia.
65
42
que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique
graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do
Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e
desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer
tempo serão punidas66. (grifos nossos)
Assim, reconhece a aplicabilidade da Sentença da Corte Interamericana no
ordenamento brasileiro, retificando todos os termos da decisão do Tribunal a serem
cumpridos pelo Brasil.
No fim da sentença, a Corte estabelece o prazo de um ano para o Estado apresentar
resposta sobre as medidas adotadas, ressaltando realizar a supervisão integral do cumprimento
da mesma, afirmando apenas encerrar o caso quando o Estado tiver cumprido integralmente o
disposto naquela.
Acontece que, apesar de a decisão da Corte Interamericana ter sido efetivamente um
marco jurisprudencial, como previsto, a posição adotada pelo Estado Brasileiro diante da
mesma, contrariando o esperado, é que tomou destaque no âmbito internacional.
Quase dois anos depois da condenação, a recusa do Brasil em cumprir as
determinações da Corte IDH traz à tona discussões e debates que vão desde a aplicabilidade
das sentenças de Cortes e Tribunais Internacionais e a falta de sanção nesse sentido, ou
mesmo a postura dos Países frente a estas. Exemplo disso foi a fala de Nelson Jobim,
Ministro da Defesa do País à época da condenação do Estado Brasileiro. Segundo ele, a
decisão da Corte "Não afeta o país (...) o STF já tem uma decisão sobre os crimes da ditadura
e, por isso, as decisões da Corte da OEA, são 'absolutamente ineficazes' (...) poderá a OEA
fazer algum tipo de advertência ao Brasil, mas ficará apenas na advertência diplomática, não
terá nenhum efeito.” 67
Após a repercussão negativa de tais afirmações vindas de um representante do Estado
Brasileiro, apesar de a postura do país ter começado a apresentar tendências à abertura ou
transição – à exemplo da instauração da Comissão da Verdade – ou mesmo a possibilidade de
reabertura de julgamento do oficial da reserva Sebastião Curió no STF 68 por recurso
66
Sentença Caso Gomes Lund e Outros vs Brasil, Voto do Juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas, p. 8-9.
Notícia disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midiasnacionais/brasil/agencia-brasil/2010/12/18/jobim-diz-que-decisao-de-corte-da-oea-sobre/?searchterm=Araguaia
Acesso em: 28 jan. 2012.
68
Notícia disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=203265&caixaBusca=N Destaca-se, para a
posição da Ministra Carmen Lúcia na referida notícia, afirmando que "tudo induz ao deferimento do pedido".
67
43
impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil à ADPF 153/2008, de modo a consolidar o
entendimento da Suprema Corte, dessa vez sobre a aplicação da Lei de Anistia em relação aos
crimes continuados, nenhuma atitude estatal foi efetivamente tomada para cumprir as
determinações da Sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Importante se faz esclarecer que, apesar de tratar-se de um Comitê de Corte, onde a
simulação está voltada para um julgamento e as manifestações prévias dos Diretores e
Orientadores devem ser dotadas de imparcialidade, é nosso dever como acadêmicos
incentivadores do estudo do Direito Internacional trazer ideias, dilemas e reflexões para serem
discutidos e pesquisados – independentemente da simulação, strictu sensu.
Não poderíamos, portanto, nos esquivar de destacar toda a discussão existente em
torno da sentença já proferida e a omissão do Estado Brasileiro perante a mesma no presente
Guia de Estudos, mesmo que seja apenas a nível de contextualização para a simulação, visto
que para a audiência, apesar de ser o mesmo caso, serão produzidas peças próprias.
4. CASO B: KAREN ATALA E FILHAS VS CHILE
4.1 Panorama Geral do Estado Demandado
O Chile assinou o Pacto de San José de Costa Rica (Convenção Interamericana de
Direitos Humanos) em 22 de novembro de 1969, tendo aceitado a competência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos aos 21 de agosto de 1990, com o depósito do
instrumento de ratificação.
Assim, o governo do Chile reconheceu como obrigatória e de pleno direito a
competência da Corte Interamericana com respeito aos casos relativos à interpretação e
aplicação da Convenção, nos termos do disposto no artigo 62.
Ao longo do país, o Poder Judiciário chileno conta com diversos tribunais (não
necessariamente órgãos colegiados), divididos em Corte Suprema, 17 Cortes de Apelação,
Tribunais de Primeira Instância e Tribunais Militares.
44
A área de atuação de cada tribunal denomina-se "território jurisdicional"69, sendo que
os juízes da primeira instância se especializam de acordo com as matérias, quais sejam, civil;
penal; trabalho; cobrança de trabalho e família, variando, inclusive em quantidade, a depender
do território jurisdicional.
O caso de Karen Atala e filhas contra o Estado do Chile (Caso n. 12.502) versa sobre
a suposta discriminação perpetrada pelo Estado ao decidir um processo de guarda em virtude
da orientação sexual da genitora. A apreciação do referido caso pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos é de suma importância para o cenário internacional especialmente pela
relevância e atualidade do tema, sendo esta a primeira oportunidade na qual a Corte se
pronunciou sobre a discriminação com base na orientação sexual, e sobre o preconceito no
exercício do poder público, em especial na resolução de conflitos de natureza familiar.
No âmbito interno o caso destaca-se, também, pela velocidade no trâmite processual.
Do início da ação de custódia, movida por López (ex-marido) contra Atala, apenas 16 meses
decorreram até o esgotamento das vias judiciais internas.
Por relevante, acerca dessa temática, ressalte-se que em 2007, a Corte Suprema do
Chile rejeitou o recurso interposto por Sandra Cecilia Pavez Pavez, professora de religião no
colégio municipal Cardenal Antonio Samoré há mais de vinte anos, a qual foi impedida de
lecionar a disciplina pela Diocese de San Bernardo, já que teria deixado de preencher o
requisito de “idoneidade” exigido para a sua habilitação docente. De acordo com o Vigário
René Aguilera Colinier (réu), a “condición de homosexualidad” de Pavez Pavez afasta a
idoneidade necessária para exercer o cargo de Professora de religião.
A Corte Suprema confirmou o decidido anteriormente, em sede de Corte de Apelação,
mantendo a revogação do certificado de idoneidade, vide teor da ementa:
VIGÁRIO PARA A EDUCAÇÃO REVOGA CERTIFICADO DE
IDONEIDADE QUE HABILITA A RECORRENTE PARA O EXERCÍCIO
DA DOCÊNCIA EM ESTABELECIMENTOS EDUCACIONAIS DA
DIOCESE DE SAN BERNARDO. - REVOGAÇÃO DE CERTIFICADO
DE IDONEIDADE PELO PÁROCO DA EDUCAÇÃO ATENDIDA A
CONDIÇÃO DE HOMOSSEXUALIDADE DA PROFESSORA DE
RELIGIÃO. - ÓRGÃOS RELIGIOSO FACULTADO PARA OUTORGAR
E REVOGAR AUTORIZAÇÃO PARA EXERCÍCIO COMO PROFESSOR
DE RELIGIÃO SEGUNDO SEUS PRINCÍPIOS RELIGIOSOS, MORAIS
69
Arica, Iquique, Antofagasta, Copiapo, La Serena, Valparaíso, Santiago, San Miguel, Rancagua, Talca, Chillán,
Concepción, Temuco, Valdivia, Puerto Montt, Coyhaique e Punta Arenas.
45
E FILOSÓFICOS. - RECORRIDO ATUOU DENTRO DE MARCO
LEGAL REGULATÓRIO E EM CUMPRIMENTO DE NORMAS QUE
LHE ENTREGAM O CONTROLE E AVALIAÇÃO PARA OUTORGA E
MANUTENÇÃO DE CERTIFICADO DE IDONEIDADE. - FACULDADE
DA IGREJA CATÓLICA PARA FIXAR DIRETRIZES PARA A
DIFUSÃO DA FÉ CATÓLICA EM RELAÇÃO AO SEU CONTEÚDO E À
IDONEIDADE DE QUEM ENSINA DOUTRINA DA IGREJA. TITULAÇÃO DE DOCENTE DE UM CREDO RELIGIOSO IMPORTA
AJUSTAR-SE ÀS NORMAS, CRENÇAS E DOGMAS DO MESMO SEM
QUE SEJA COMPETÊNCIA DOS ÓRGÃOS DO ESTADO IMISCUIR-SE
OU QUESTIONÁ-LAS. [...]70 (tradução livre)
Quase 70% (setenta por cento) da população chilena se declarou católica no censo de
2002. 71 Em recente pesquisa (2006), a agência MORI Chile concluiu que cerca de 49%
(quarenta e nove por cento) dos chilenos aceitam a homoafetividade, que deixou de ser crime
no país desde 1998.72
Com o fim do governo de Michelle Bachelet (2010), o Chile passou a ser presidido
por Sebastián Piñera, responsável pela criação de um comitê destinado à resolução do caso
Karen Atala. No entanto, a Corte Suprema do Chile, apesar da nova composição de juízes,
afirmou que não há novos acréscimos a serem feitos no processo.
No ano passado (2011) Sebastián Piñera assinou um projeto de lei que autoriza a união
civil homoafetiva, cumprindo uma promessa de campanha que beneficiaria mais de dois
milhões de pessoas no país. A iniciativa foi rejeitada pela ala conservadora (maioria
partidária), que não participou da assinatura do projeto.
O tema da homoafetividade continua sendo um tabu na sociedade chilena. No entanto,
os dois posicionamentos (de repúdio e de tutela) podem ser encontrados na jurisprudência do
país.
4.2 Descrição dos Fatos
Em 30 de janeiro de 2003, Karen Atala Riffo, juíza no Chile, foi surpreendida com
uma ação ajuizada pelo ex-marido, Ricardo Jaime López, objetivando tomar a guarda das três
70
Disponível em: Site Oficial do Poder Judiciário da República do Chile. <http://www.poderjudicial.cl/>. Acesso
em: mar. 2012.
71 Disponível em: <http://www.ine.cl/cd2002/sintesiscensal.pdf>. Acesso em: mar. 2012.
72
ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. Iguais, mas separados: os homossexuais e as forças armadas.
Disponível
em:
<http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-17/RBDC-17-139Artigo_Maria_Elizabeth_Guimaraes_Teixeira_Rocha_(Iguais_mas_separados_Os_Homossexuais_e_as_Forcas_
Armadas).pdf>. Acesso em: mar. 2012.
46
filhas (M., V. e R.; 10, 8 e 4 anos, respectivamente73). O caso obteve repercussão na mídia
local e internacional. No ano anterior, ambos haviam concordado com os termos da tutela
sobre as crianças, incluindo o direito a visitas semanais do pai (López).
Ocorre que, após o fim do casamento, Atala envolveu-se em um relacionamento
homoafetivo com Emma de Ramón, historiadora, a qual passou a conviver com as crianças na
mesma residência.
De acordo com López, a nova relação da ex-esposa prejudicaria, gravemente, o
desenvolvimento físico e psíquico das filhas. A orientação homossexual, junto ao aspecto da
coabitação (Karen e Emma), impediriam o cumprimento dos deveres de guarda, lesando o
crescimento das crianças. Para Atala, tal argumento não se sustenta, considerando que sua
atual opção sexual não a desqualificaria como mãe responsável.
A primeira decisão judicial ocorreu em 02 de maio de 2003, quando o juiz da Corte
Juvenil de Villarrica (Temuco) concedeu a custódia provisória ao pai. Na fundamentação do
magistrado:
[...] o fato da ré ter dado preferência ao seu próprio bem-estar e interesse
pessoal em detrimento do seu papel como mãe, sob condições que afetariam
o futuro desenvolvimento das menores no caso, deverá ser considerado
suficiente para concluir que o requerente apresenta argumentos mais
favoráveis no sentido do melhor interesse das crianças, no contexto de uma
sociedade heterossexual e tradicional que ganha grande importância. Assim,
considerando que existem suficientes indicações para alterar a custódia, o
pedido do suplicante deverá ser concedido [...]74
Em seguida, constatou-se que o juiz da juventude não enfrentou o mérito da questão
de forma apropriada (falta de melhores evidências), motivo pelo qual se afastou
voluntariamente, sendo a ação transferida para outro magistrado, cuja decisão, favorável a
Atala, foi proferida em 29 de outubro de 2003:
A orientação sexual da mãe não constitui impedimento para desenvolver
uma maternidade responsável... a ré não sofre de patologia psiquiátrica que a
faria inapta para desempenhar o papel de mãe... nenhuma evidência concreta
foi exibida no sentido de provar que a presença da companheira da mãe, na
casa, é prejudicial ao bem-estar das crianças... tendo analisado a evidência
apresentada, não há razão para presumir a existência de exemplos perigosos
73
A requerimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e dos Representantes, em todos os
documentos publicados foi resguardada a identidade das três filhas de Karen Atala, para sua proteção, as quais
serão identificadas aqui com as letras “M., V. e R.”
74 Resulucion Corte de Apelaciones de Temuco, 9 de mayo de 2003, apud Demanda da 12.502 da CIDH,
Caso Atala Riffo y Niñas vs Chile. Tradução Livre.
47
ou ruins para a moralidade das garotas... a corte conclui que as menores não
sofreram qualquer discriminação até hoje e o que se expressa, da parte do
requerente, é o medo de possível discriminação no futuro. No que diz
respeito a este ponto, deve ser mencionado que esta corte precisa basear sua
decisão em fatos definidos e provados no caso, e não na mera assunção de
medos.
Determinado o retorno das filhas para a mãe, em 18 de dezembro de 2003, López
recorreu da decisão judicial, levando o processo para a Corte de Apelação em Temuco, que
confirmou o juízo anterior em 30 de março de 2004. Karen havia vencido mais uma vez.
Irresignado, o Autor da ação apelou para a Corte Suprema do Chile, além de ter
instaurado um procedimento disciplinar contra os membros da Corte de Apelação, sob a
alegação de abuso judicial. Aos 31 de maio de 2004, três dos cinco juízes da Suprema Corte
chilena acataram os argumentos de López:
À parte dos efeitos que a coabitação pode ter sobre o bem-estar e sobre o
desenvolvimento psicológico e emocional das filhas, devido às respectivas
idades, a potencial confusão sobre os papéis sexuais que pode ter sido
provocada nelas, pela ausência de uma figura masculina como pai e sua
substituição por uma pessoa do sexo feminino, apresenta um risco ao
desenvolvimento integral das crianças do qual elas devem ser protegidas 75.
Os juízes dissidentes, por sua vez, ressaltaram o entendimento dos psicólogos e
assistentes sociais que participaram da instrução processual, concluindo que a opção sexual da
mãe não fere os direitos das filhas.
Diante do esgotamento das vias judiciais internas, Atala requereu à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos que a decisão da Suprema Corte do Chile fosse
revista. Sua petição foi admitida em 23 de julho de 2008, originando o Caso n. 12.502 (Karen
Atala e filhas contra o Estado do Chile). Ressaltando-se que desde meados de 2003, as
crianças vivem com o pai.
Além do processo de guarda supracitado, diante da repercussão que o caso tomou na
mídia nacional, foi iniciada uma investigação disciplinar contra a Sra. Karen Atala, sendo
realizadas visitas extraordinárias a fim de auferir a prejudicialidade das referências ao “caráter
lesbiano” de Karen feitas pelos jornais Las Ultimas Noticias e La Cuarta, bem como a suposta
utilização de elementos e pessoal da sua comarca para realizar as medidas determinadas no
processo em que era parte.
75
Sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Chile, 31 de mayo de 2004 apud informe n. 42/08 CIDH.
Disponível em: <http://www.cidh.org/annualrep/2008sp/chile12502.sp.htm#_ftn10> Acesso em 02 de fev. 2012.
48
Sobre a orientação sexual de Karen o Ministro que relator da visita concluiu que “a
peculiar relação afetiva da Sra. Atala tem transcendido o âmbito da vida privada ao constar
nas publicações jornalísticas supracitadas, o que claramente traz danos tanto para a imagem
da Sra. Atala como do Poder Judiciário”, fato que, pela sua gravidade, merece ser investigado
pelo Tribunal de Apelações. 76
4.3 O Processo no âmbito do SIDH
4.3.1 O Processo no Âmbito da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e a Apresentação da Demanda perante a Corte IDH
Com o trânsito em julgado da sentença proferida pela Corte Suprema Chilena e o
consequente exaurimento da jurisdição interna, Karen Atala, representada pela Associação
Liberdades Públicas, Clínica de Ações de Interesse Público da Universidade Diego Portales e
Fundação Ideas, recorreu ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos apresentando, no
dia 24 de novembro de 2004, denúncia contra o Estado Chileno perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
Considerando a urgência da solução do caso, tendo em vista a idade das três filhas da
demandante, a Comissão decidiu aplicar o artigo 37 (3) do seu Regulamento, enviando
comunicação às partes a fim de que estas apresentassem, desde então, informações adicionais
de mérito para instruir a demanda.
Em 19 de setembro de 2005 a Comissão, aplicando o artigo 41(1) do seu
Regulamento, combinado com o artigo 48(1)(f) da Convenção Americana de Direitos
Humanos, se colocou a disposição das partes para intervir ativamente na busca de uma
solução amistosa da lide, respeitando-se os direitos humanos reconhecidos na Convenção.
Realizadas sucessivas audiências e reuniões com as partes envolvidas 77 , e concluído o
processo de negociação visando obter um desfecho amigável para a questão, os peticionários
enviaram comunicação à CIDH solicitando a continuidade da tramitação da petição e a
aprovação do relatório de admissibilidade da demanda.
76
77
Resumo oficial da sentença
Audiências realizadas nas datas de 7 de março de 2006, 25 de outubro de 2006 e 19 de julho de 2007.
49
Sustentam os peticionários que a decisão proferida pela Corte Suprema retirou de
forma arbitrária, discriminatória e definitiva a custódia e convivência da mãe com as suas
filhas menores exclusivamente em razão de sua orientação sexual. Afirmam que tal ato,
juntamente com o tratamento dado pelo Judiciário à sua “condição de homossexualidade”
configuram violação de diversos direitos resguardados pela Convenção Americana de Direitos
Humanos, dentre os quais destacam o direito à integridade pessoal (art. 5.1), direitos às
devidas garantias judiciais (art. 8), proteção à honra e à dignidade (art. 11.1), proteção à vida
privada (art.11.2), proteção à família (arts, 17.1 e 17.4), direitos da criança (art.19), igualdade
perante a lei (art.24) e direito à proteção judicial (art. 25).
O Estado Chileno, por sua vez, pugnou pela inadmissibilidade da petição, sob o
argumento de que o ato questionado se baseou no interesse superior das crianças, pois
conforme os elementos de convicção trazidos ao julgamento, o comportamento da mãe em
optar por conviver conjugalmente com uma pessoa do mesmo sexo foi considerado
inconveniente para a formação e arriscado ao desenvolvimento das menores no atual contexto
da sociedade chilena.
Em 23 de julho de 2008, presentes os requisitos de admissibilidade insertos nos artigos
46 e 47 da Convenção, a Comissão aprovou o relatório de admissibilidade nº 42/08, dando
origem ao caso Karen Atala e filhas contra o Estado do Chile.
Importa ressaltar que, durante o trâmite do caso, foram recebidos diversos memoriais
de amicus curiae em apoio expresso ao pleito de Karen Atala dentre os quais merecem
destaque a Associação pelo Direitos Civis, a Rede Iberoamericana de Juízes, Comitê da
América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), Human Rights
Watch, Internacional Gays and Lesbian Human Rights Comission, etc.
Superada nova tentativa de conciliação, no 137º período de sessões ordinárias, a
Comissão com fulcro no artigo 50 Convenção Americana de Direitos Humanos expediu
Relatório de Mérito nº 139/09, no qual assentou que pelos fundamentos de fato e de direito
apresentados até então concluiu pela violação do direito de Karen Atala de viver livre de
discriminação (art. 24), assim como pelo desatendimento do Estado Chileno aos direitos
consagrados nos artigos 11(2), 17(1 e 4), 19, 8 e 25 da Convenção, todos combinados com o
artigo 1.1 deste mesmo instrumento.
50
Nesta oportunidade, a Comissão emitiu Recomendação ao Estado do Chile, a fim de
que este repare integralmente Karen e suas filhas pelas supracitadas violações, adote políticas
públicas, programas, diretrizes e legislação para erradicar a discriminação sexual no âmbito
do poder público e na administração da justiça, bem como apresente os recursos humanos e
financeiros utilizados para implementar tais medidas e custear a correspondente capacitação
dos funcionários.
Ato contínuo, o Estado demandado informou a intenção em cumprir as
recomendações, ressaltando a realização de cursos e seminários sobre direitos humanos e a
existência de um projeto de lei contra a discriminação sexual, bem como justificando a
impossibilidade de reparar as vítimas sem propositura de ação de indenização. Todavia, a
Comissão entendeu que tais medidas têm caráter eminentemente geral, sendo incapazes de
evitar novos casos de afronta à igualdade e liberdade sexual, destacando, também, que muitas
propostas ainda não haviam sido implementadas até o ano de 2010.
Diante de tal contexto fático, em 17 de setembro de 2010, a CIDH, submeteu o Caso
nº 12.502 (Karen Atala e filhas vs Estado do Chile) à jurisdição da Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
4.3.2 Sobre os trâmites na Corte IDH
Em sua petição, pleiteia a Comissão a responsabilização internacional do Estado do
Chile por trato discriminatório e pela interferência lesiva do poder público na vida privada e
familiar suportada por Karen e suas filhas.
Tal interferência teria se dado tanto em decorrência do processo judicial de guarda
iniciado pelo genitor das crianças e que culminou na retirada arbitrária da custódia somente
com base na orientação sexual da genitora, como também em razão do transtorno suportado
pela Sra. Karen Atala no processo disciplinar instaurado para apurar se a “peculiar relação
afetiva” da juíza teria ultrapassado o âmbito privado, prejudicando gravemente a sua imagem
e a do Judiciário.
Trata ainda a demanda da afronta ao interesse superior do menor, uma vez que sua
custódia teria sido determinada em descumprimento das obrigações do Chile em matéria de
direitos humanos.
51
Assevera que o Estado teria atentado contra diversos direitos reconhecidos pela
Convenção Americana de Direitos Humanos, quais sejam: direito à vida privada e familiar
(art. 11), direito à família (art. 17), proteção especial às crianças (art. 19), direito à igualdade e
não discriminação (art. 24) e direito às garantias judiciais e proteção judicial (arts. 8 e 25),
todos relacionados com o artigo 1.1, que impõe aos Estados signatários o dever de respeitar
todos os direitos individuais e coletivos consubstanciados naquele diploma internacional.
O objeto da demanda instaurada na Corte contra o Chile consiste na declaração
expressa daquele órgão internacional acerca da violação a todos os dispositivos convencionais
supramencionados, e, consequentemente a imposição de medidas a fim de evitar novos atos
atentatórios aos direitos abordados no caso Karen Atala e Filhas vs Chile. Solicita a Comissão
Interamericana que seja ordenada:
a)
Reparação integral dos danos materiais e extrapatrimoniais oriundos
das violações alegadas na demanda
b)
Investigação e implementação das penalidades legais correspondentes
às atuações discriminatórias e abusivas dos funcionários judiciais que
deixaram de salvaguardar o interesse superior das menores
c)
Reconhecimento público da responsabilidade internacional
publicação da sentença proferida pela Corte IDH
e
d)
Adoção de medidas de reabilitação e não reincidência, tais como
mudança de legislação, realização de políticas públicas, programas e
diretrizes de erradicação da discriminação sexual em todas as ares do poder
público, inclusive na administração da justiça.78
Recebida a petição, em 19 de outubro de 2010 o Estado e os representantes da vítima
foram notificados acerca da demanda. Em 25 de outubro de 2010 os representantes de Karen
Atala e suas filhas, em conformidade com o art. 23 do Regulamento da Corte IDH,
apresentaram petição de argumentos e provas concordando integralmente com os fatos e
pedidos expostos pela Comissão, oportunidade na qual requereram diversas medidas
reparatórias.
Neste ínterim, em março de 2011 o Estado demandado apresentou sua contestação
pugnando pela improcedência total da demanda, sob o fundamento que não houve violação
aos citados artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que a decisão da
78
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Demanda perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Caso 12.502. Karen Atala e hijas contra el Estado de Chile. 17 de
setembro de 2010. Disponível em: < http://www.cidh.oas.org/demandas/12.502SP.pdf> Acesso em 08 de
dezembro de 2011.
52
Corte Suprema Chilena somente considerou, com base nas provas carreadas aos autos, que o
genitor teria melhores condições para assegurar o bem estar das crianças. Assevera que a
orientação sexual da mãe foi considerada prejudicial, na medida em que tem efeitos concretos
no desenvolvimento saudável das suas filhas.
Nos dias 23 e 24 de agosto de 2011, durante o 92º Período Ordinário de Sessões da
Corte, na cidade de Bogotá, fora celebrada a audiência pública do caso Karen versus Chile, na
qual se procedeu com a instrução processual, colhidas as declarações das vítimas, o
depoimento das testemunhas e as opiniões dos peritos nomeados por ambas as partes.
Posteriormente, o Sr. Jaime Lopez Allendes, ex-marido de Karen Atala e genitor de
M., V. e R., juntou sucessivas petições referentes ao processo em epígrafe, pleiteando a sua
atuação dos autos como terceiro interveniente; a participação das menores no processo,
representadas pelo pai; a nulidade do procedimento perante a comissão, e improcedência total
da demanda, pelos mesmos fundamentos trazidos pelo Estado.
Através de nota emitida pela Secretaria, consignou o Tribunal que, pela sua atual idade
(12, 13 e 17 anos), as filhas do casal teriam direito de serem ouvidas no processo (Resolução
de 29 de novembro de 2011), todavia esclareceu que o Tribunal não tem competência para
atender as requisições de indivíduos ou organizações que não as vítimas da pretensa violação
convencional, bem como que o Sr. Lopéz, não admitido como terceiro interveniente, não tem
legitimidade para apresentar argumentos sobre o mérito da questão.
Em 24 de setembro de 2011, os representantes das vítimas e o Estado apresentaram
alegações finais, e a Comissão Interamericana expôs suas observações finais sobre o caso,
assim como solicitaram as provas imprescindíveis para o deslinde da questão em apreço.
Na data de 08 de fevereiro de 2012, a Secretaria da Corte Interamericana,
acompanhada da psiquiatra Maria Alicia Espinoza, se dirigiu à cidade de Santiago para
realizar diligência essencial à instrução do processo, a oitiva das menores interessadas, M. e
R., haja vista que V. não pode comparecer por motivo de força maior. Nesta ocasião
expressaram de maneira livre e independente as suas opiniões e o juízo formado sobre a
questão e os fatos, bem como o interesse na solução do caso.
Ultrapassada essa fase instrutória, com base no disposto nos artigos 46, 49 e 50 do
Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e na apreciação das provas
carreadas, foi proferida em 24 de fevereiro de 2012 sentença para o caso Karen Atala e filhas
53
contra o Estado do Chile, declarando a violação dos direitos elencados pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, bem como determinando que o Estado repare os danos
causados a Karen e suas filhas e realize medidas de prevenção à discriminação sexual.
4.3.3 Sobre a Sentença de Mérito, Reparações e Custas  *
Na data de 20 de março de 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
publicou o inteiro teor da sentença proferida em 24 de fevereiro, a qual dispôs sobre os
direitos convencionais relacionados com o trato discriminatório e a interferência arbitrária
perpetrada pelo Estado na vida privada de Karen Atala durante o processo de guarda que
resultou na retirada da custódia da mãe, basicamente em razão de sua orientação sexual.
Inicialmente, a sentença destacou que a Corte Interamericana não tem o escopo de
atuar como um tribunal de quarta instância, de modo que a demanda não versa sobre a
definição da guarda das crianças, ou colheita de provas para auferir qual dos genitores teria
mais condições de prover um ambiente familiar propício ao desenvolvimento saudável
daquelas.
O mérito da questão restringe-se, portanto, à apreciação se, ao longo do processo
transcorrido no âmbito interno, o Estado do Chile, através de suas decisões judiciais, deixou
de preservar os direitos humanos internacionalmente garantidos pelo Pacto de San José da
Costa Rica, tais como igualdade e não discriminação, liberdade, vida privada e familiar, e
garantias judiciais.
Desta feita, analisando criteriosamente os argumentos e a linguagem utilizados na
decisão da Corte Suprema Chilena, bem como na primeira custódia provisória concedida pelo
Juizado de Menores de Vila Rica, a Corte Interamericana concluiu que a orientação sexual da
mãe foi tomada como fator determinante para a concessão da guarda ao pai, o que evidencia a
diferença de trato dada à mãe em razão daquela condição.
*Atenta-se para o fato de que, apesar de a Demanda já ter sido julgada, para fins de simulação, será
considerada como se não o tivesse sido. Os fatos e argumentos apresentados no presente Guia de Estudos
serão levados em consideração apenas para fins acadêmicos e para contextualização da lide, em benefício dos
Participantes. Todas as peças a serem usadas nos dias da Simulação serão produzidas pelos Diretores do
Comitê, não podendo os Participantes no momento da Audiência Pública se remeterem a quaisquer peças do
mesmo caso produzidas pela Corte ou Comissão ou mesmo a fatos ou argumentos que estejam presentes
exclusivamente neste Guia de Estudos.
54
A sentença considerou que a simples referência ao interesse superior das crianças não
é hábil a legitimar as decisões tomadas, a menos que seja demonstrado, no caso específico
trazido à lume, que a orientação sexual e o comportamento da genitora trouxeram prejuízos
efetivos para o bem-estar e o desenvolvimento saudável de suas filhas.
Nas razões da sentença a Corte Interamericana ressaltou que estereótipos e
considerações generalizadas acerca da orientação sexual não são capazes de determinar,
peremptoriamente, que em razão do ambiente familiar excepcional criado pela relação da mãe
com sua companheira, as filhas certamente seriam objeto de isolamento e discriminação
social, ou teriam prejuízos psicológicos.
Demais disso, a Corte avaliou a ocorrência de violação aos direitos humanos em
decorrência da investigação disciplinar iniciada pela Corte de Apelações de Temuco contra a
juíza Karen Atala paralelamente ao processo de guarda, sob o fundamento que a publicidade
da peculiar relação afetiva da senhora Atala poderia prejudicar a imagem do Judiciário,
configurando abuso da magistrada.
A Corte destacou, no decisum sentencial, a obrigação geral dos Estados signatários em
respeitar e garantir “sem discriminação alguma” o pleno e livre exercício dos direitos e
garantias reconhecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos. Restou consignado na
sentença que a orientação sexual e a identidade de gênero são categorias protegidas pelo
termo “outra condição social” estabelecido no artigo 1.1 da Convenção.
Assim, analisando os argumentos utilizados pelo Estado Chileno para afastar a Sra.
Karen da convivência das filhas, em associação com as provas produzidas nos autos, a Corte
declarou o Chile responsável internacionalmente por haver infringido os seguintes direitos:
direito à igualdade e não discriminação (art.24); direito à vida privada e proteção à honra e à
dignidade(art. 11.2); proteção á família (art. 17.1); garantias judiciais (art. 8.1) e direitos das
crianças (art. 19), todos combinados com o art. 1.1 do Pacto de São José da Costa Rica
(obrigação de respeito e garantia das disposições convencionais).
Pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a própria sentença declaratória de
violação já constitui medida reparatória para a vítima, contudo, demais disso, in casu a Corte
determinou que o Estado do Chile tomasse diversas medidas, dentre as quais: arcar com
atendimento médico e psiquiátrico especializado para as vítimas que solicitarem; continuar a
implementar, dentro de um prazo razoável, programas e cursos de educação permanente e
55
formação para os funcionários públicos em nível nacional e regional, particularmente no
Judiciário; e pagar quantia em dinheiro referente a indenização por danos morais e materiais,
sem prejuízo das custas do processo.
5. Considerações Finais
Ao simular a Corte Interamericana de Direitos Humanos, seguindo a proposta da SOI,
as tarefas desempenhadas pelos participantes do comitê serão o mais fidedigno possível com a
realidade do Tribunal: os juízes, representantes e agentes exercerão suas funções de acordo
com a prática da própria Corte, agindo em respeito ao seu Estatuto.
Como já explicitado no decorrer da presente leitura, o Guia de Estudos se caracteriza
como uma apresentação do órgão jurisdicional e dos casos a serem simulados, norteando a
pesquisa dos participantes, que não devem ficar restritos a este – até porque nenhuma
referência ou menção ao mesmo poderá ser feita durante a simulação, em respeito à
verossimilhança da mesma.
As atividades realizadas serão equivalentes ao procedimento oral dos trâmites cada
uma das demandas, concentrando-se na realização de uma audiência para cada um dos casos.
Tais audiências seguirão regras próprias estabelecidas no Regulamento da Corte a ser
disponibilizado posteriormente pela Diretoria do Comitê, em momento oportuno.
Toda comunicação entre os participantes e os Diretores será realizada através do
correio eletrônico: [email protected], e todas as peças referentes aos casos serão
disponibilizadas no site do projeto, www.soi.org.br, no espaço destinado ao comitê.
Uma vez recebida a confirmação de participação na Corte IDH 2012, cada participante
receberá as peças equivalentes a ambos os casos a serem simulados, acompanhadas das
instruções necessárias à sua atuação na simulação, de acordo com a designação do papel a ser
desempenhado. O participante poderá elaborar as perguntas que considerar pertinentes sobre
os casos, a Corte, ou funcionamento da simulação, encaminhando-as para o indigitado e-mail,
sendo tais questionamentos esclarecidos pela comissão organizadora.
56
Antes da SOI, a Diretoria se disponibilizará para se reunir com os participantes,
divididos em grupos de trabalho de acordo com o papel a ser exercido na simulação, de modo
a auxiliar na construção das estratégias de litígio (no caso dos Representantes e dos Agentes),
elaboração de teses para pareceres (amicus curiae), definição de perguntas à testemunhas e
peritos (todos, inclusive os juízes), e nos demais esclarecimentos necessários para a
preparação dos participantes.
Desse modo, espera-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos esteja, mais
uma vez, presente de forma positiva na história da SOI e que as atividades sejam as mais
proveitosas possíveis, marcadas pela excelência.
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