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DESCENDÊNCIA E CONTROVÉRSIA: AS EMOÇÕES COMO OBJETO INTERDISCIPLINAR Gisele Toassa - Faculdade de Educação, UFG - [email protected] Apoio: CNPQ 1 Introdução Emoção: palavra que atravessa tanto a linguagem coloquial quanto as teorias científicas e filosóficas, vem se impregnando de acepções nem sempre fundamentadas em pesquisas mais amplas. No confuso contexto das doutrinas científicas do início do século XX, o “Teaching about emotions. Historical-psychological studies” (Utchenie ob Emotsijakh. Istoriko-psikhologicheskoe Issledovanie), de L.S. Vigotski, endossou idéia de Bentley: emoções eram apenas título de um capítulo dos livros de psicologia, muito discutidas e pouco compreendidas. A partir do texto vigotskiano, expor-se-ão alguns problemas histórico-conceituais que habitam esse campo de estudos interdisciplinares, aqui revisitado por meio do “What is emotion? History, measures and meanings” (2007), de Jerome Kagan. Tal exposição é norteada por importante objetivo da psicologia histórico-cultural das emoções: sua compreensão como objeto interdisciplinar das ciências biológicas e humanas. PALAVRAS-CHAVE: psicologia histórico-cultural, Lev Semenovich Vigotski, Jerome Kagan, emoções. 1 – Problemática, objetivos e metodologia Palavras/locuções significantes de emoções existem em todas as línguas. Permanente desafio de compreensão dos homens por eles mesmos, caro às ciências humanas e biológicas, além da filosofia, as emoções vêm sendo objeto de múltiplas abordagens (Engelmann, 1978). 1 Trabalho extraído da tese de doutorado da autora, intitulada: “Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural”, defendida no Instituto de Psicologia, USP, São Paulo. 2 Entretanto, Engelmann (id., p.15) e Vigotski (1933/2004, p.54) assinalam a vagueza e inadequação do conceito de emoção. Ainda são raras as iniciativas interdisciplinares que logram defini-lo. Permanece certa incomunicabilidade entre diversas áreas do conhecimento: um exemplo é “Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos” (Damásio, 2004), que, a despeito de seu valor na difusão de pesquisas recentes sobre a relação mente-corpo, deixa de lado a psicologia do desenvolvimento, recorrendo ao darwinismo social para explicar a filogênese das emoções humanas 2 . Em oposição a enfoques como esse, o presente trabalho defende que a psicologia histórico-cultural transcenda fenômenos psíquicos nebulosos e gastos em sua aparência, compreendendo-os em suas múltiplas determinações – o que implica numa interdisciplinaridade orientada pela obra de Vigotski. Buscando manter tal horizonte em perspectiva, este texto relata parte de uma pesquisa de doutorado que teve os seguintes objetivos específicos (entre outros): 1) compreender as idéias de Vigotski para o futuro (do pretérito) dos estudos sobre as emoções; 2) relacionar tais idéias à pesquisa interdisciplinar contemporânea na referida temática. Estudou-se o “Utchenie ob Emotsijakh” em duas traduções (Vigotski, 1999, 2004), processo complementado pela leitura de autores citados por Vigotski (caso de Charles Darwin e William James) na referida obra. Tratar de pesquisa contemporânea demandou diversos levantamentos bibliográficos, um dos quais foi empreendido na base 3 de dados PubMed, em outubro de 2008 . Pesquisaram-se, ainda, livros e artigos no 2 Sem convidar para sua reflexão os estudos ontogenéticos, Damásio (2004, p.41) chega, por exemplo, a classificar os comportamentos lúdicos humanos entre as pulsões e motivações, ao lado da fome, da sede e dos comportamentos sexuais, em franco desacordo com as contribuições da psicologia do desenvolvimento. Cite-se, por exemplo, as importantes contribuições da “Psicologia do jogo” de D.B. Elkonin (Toassa, 2009). Neste trabalho, utilizamos a expressão o darwinismo social como perspectiva que busca priorizar as explicações acerca da origem e natureza das emoções humanas na finalidade adaptativa das mesmas, simplificando a sua diversidade ao equiparar a sociedade com a noção darwiniana de ambiente. 3 O PubMed é uma base de dados mantida pelo U.S. National Library of Medicine e pelo U.S. National Institutes of Health, especializada em publicações de ciências médicas e biológicas. Um olhar geral sobre essas pesquisas mostrou-nos alguns temas recorrentes: a busca por definir os papéis deste ou daquele sistema/região encefálico(a) nos processos emocionais, definir e aplicar modelos experimentais 3 Scientific Electronic Library Online Brazil (SciELO), tendo como palavra-chave a expressão “sistema límbico” – busca que indicou três artigos de interesse para a pesquisa de doutorado. Esses levantamentos funcionaram como uma breve varredura no assunto, posteriormente combinada com livros mais amplos de revisão de literatura (caso de Kagan, LeDoux e Damásio). O trabalho de Kagan é o único a ser debatido neste texto. 2 – Vigotski e o futuro (do pretérito) na psicologia das emoções O “Teaching about emotions” é um manuscrito inacabado, redigido aproximadamente entre 1931 e 1933 (última versão datada de 1933). Recebeu vários títulos e teve partes publicadas no Voprosy Psikhologii (1968) e Voprosy Filosofii (1970). Na sua primeira e única parte, o “Teaching...” sintetiza as críticas vigotskianas ao legado da teoria periférica das emoções (identificada como “velha psicologia”), a partir do relato de experimentos com animais e análises clínicas de pacientes com lesões cerebrais locais (que ele denominou de “nova psicologia”), defendendo que tal disputa científica era uma reedição não apenas da antiga querela entre Descartes e Espinosa, mas também da guerra travada entre materialismo e idealismo no plano filosófico. Foi concomitante à popularidade da teoria periférica na Rússia, onde a psicologia para testes de medicamentos, descrever as manifestações emocionais desta ou daquela síndrome neurológica ou psicopatológica, propor métodos de tratamento psicoterápico, lançar hipóteses criminológicas, discutir interações grupais. Os autores são tantos que nos é difícil até mesmo listar, quanto mais definir, os achados mais relevantes. Realizamos, ainda, em 07/11/2007, um breve levantamento em duas bases de dados internacionais especializadas em ciências biológicas (a CABI e a Zoological Record, disponíveis no site da USP: http://www.usp.br/sibi), encontrando nelas artigos relativos à psicologia comparada, a partir das palavras-chave “emotion” e “feeling” sem limite de data. Foram freqüentes as referências a pesquisas veterinárias, dirigidas a temas práticos de acondicionamento e tratamento dos animais, ao seu bem-estar, saúde mental, felicidade, prazer, stress e sofrimento animal (e os indicadores desses fenômenos), estudos sobre os efeitos das expressões faciais e de fármacos, além de modelos sobre a interação cognição-emoção na filogênese. Obtiveram-se referências a 9.067 artigos com o termo “emotion” no título ou resumo, 7.846 deles reportando pesquisas (principalmente clínicas) realizadas com humanos; 2.961 com o termo logo no seu título. Traduções do descritor para línguas como francês, espanhol e italiano não alterou significativamente o perfil das buscas realizadas. 4 reactológica considerava-a “materialista” (Vigotski, 1933/2004, p.247). Através do “Teaching...”, Vigotski leva a cabo um primeiro objetivo: refutar esta teoria, negar seu suposto materialismo e expor seu dualismo, integrando filosofia, fisiologia, neurologia e psicologia clínica na resolução dos problemas então existentes no âmbito das emoções. Assim sendo, o “Teaching about emotions” marca-se pela interdisciplinaridade: há comentários extensos sobre a fisiologia das emoções, a psicologia comparada de humanos e animais, além do modelo filosófico nelas aplicado. Já se buscava, na época, uma análise evolucionária do comportamento emocional, cujo pontapé inicial fora dado por ninguém mais, ninguém menos, que Charles Darwin, com a publicação de “The expression of the emotions in man and animals” (1872/1934). Nesse contexto, para Vigotski, o capítulo referente à reação emocional dos animais e à sua evolução era o item que a psicologia desenvolvera com maiores detalhes (Vigotski, 1932/1999a, pp.8182). Dois trabalhos basilares para a história da psicologia e, também, para nossa discussão, foram os de William James e Carl Lange: doze anos após Darwin, James, americano com passagens pela medicina, filosofia e psicologia, publica um artigo intitulado “What is an emotion?” no Mind (1884, vol. IX, pp.188-205). De forma completamente independente, o anatomista e fisiologista dinamarquês Lange lança, em 1885, o livro “Emotions”, com idéias essencialmente iguais às de James. Tal concepção passou a ser denominada de teoria James-Lange, ou teoria periférica das emoções. A intimidade de Vigotski com o debate fisiológico pode ter se fundamentado nos estudos de medicina que ele realizava, embora jamais tivesse obtido o diploma de médico (baseado em A.A. Leontiev, 2005). No “Teaching about emotions” (1933), de modo similar à “Psicologia Pedagógica”, é especialmente clara a raiz instintiva das emoções nos instintos mais primitivos, mais elementares, as emoções inferiores. Num texto sobre o primeiro ano de vida: Los impulsos afectivos son el acompañante permanente de cada etapa nueva en el desarrollo del niño, desde la inferior hasta la más superior. Cabe decir que el afecto inicia el proceso del desarrollo psíquico del niño, la formación de su personalidad y se cierra ese proceso, culminando así todo el desarrollo de la personalidad. No es casual, por tanto, que las funciones afectivas estén en relación directa tanto con 5 los centros subcorticales más antiguos, que son los primeros en desarrollar y se encuentran en la base del cerebro, como con las formaciones cerebrales más nuevas y específicamente humanas (lobos frontales) que son los últimos en configurarse. En este hecho halla la expresión anatómica aquella circunstancia que el afecto es el alfa y el omega, el primero y último eslabón, el prólogo y el epílogo de todo el desarrollo psíquico. (Vigotski, 1996, p.299) 4 Vigotski, que então estudava um lugar para a psicopatologia clínica em sua obra, aponta: a psicopatologia da vida afetiva também servia à negação da teoria periférica. Os trabalhos de S. Wilson (in Vigotski, 1933/2004, pp.45-47), por exemplo, indicavam em alguns pacientes uma ausência de paralelismo entre elementos mentais e somáticos das emoções. Outros, de H. Head 5 , com lesões no tálamo óptico, apresentavam uma hipersensibilidade emocional unilateral do lado afetado, enquanto um terceiro grupo, mesmo com a musculatura facial paralisada, relatava continuar sentindo toda espécie de sentimento. Esses estudos provavam a utilidade na associação de métodos objetivos e subjetivos na constituição de sua psicologia (id., p.41). Provava-se também que as sensações periféricas de emoções, exceto em condições muito especiais, não se identificavam com as vivências emocionais, levando Vigotski a concluir que as sensações são apenas parte das nossas vivências. Cremos que a especificidade vigotskiana está em atribuir origem social e lingüística à classificação das emoções (Vigotski 1930/1991g, pp.86-87). A descoberta do papel do tálamo causava mudanças cruciais. Levava a pensar que o desencadeamento das emoções implicava-se numa série de relações neuropsicológicas, colocando em xeque a exclusividade que se atribuía à evolução da espécie na determinação dos processos emocionais. Era de se supor a existência de mais causas que interagiam com a evolução biológica do organismo humano. Com isso, as emoções inseriam-se entre os processos mentais superiores e não entre os reflexos da espécie, como preconizava James. Aspectos que Vigotski considerava essenciais, como a determinidade, estrutura e dinâmica das emoções quase não eram problematizadas: O autor, com o termo afeto, denomina um “simples impulso sem qualidade especificamente emocional”. 5 Não foram encontradas referências no Google a H. Head e S. Wilson. Nenhuma das edições do “Utchenie...” oferece dados sobre tais autores. 4 6 Freud e Lewin eram dos poucos autores que buscavam preencher esta lacuna (Vigotski, 1932/1999a). Urgia a necessidade de um monismo, pois a teoria James-Lange permanecia dualista; suas idéias sobre a relação corpo-mente eram incompatíveis com as novas descobertas em fisiologia e neurologia clínica. James reivindicava descendência intelectual para com a teoria da seleção natural, no que foi criticado por Vigotski, muito atento não à superfície da teoria periférica – fundada na interpretação de dados experimentais, essa quintessência da ciência moderna – mas sim às suas similaridades profundas para com o pensamento cartesiano. Vincular James a Descartes e propor a superação deste bloco dualista pelo monismo espinosano, doutrina psicofísica que viria a se constituir na principal orientação filosófica para uma nova teoria das emoções, era a estratégia adotada pelo bielo-russo (1933/2004, p.8). Ele propunha-se a concretizá-la na segunda parte do “Utchenie ob Emotsiajakh”, que, infelizmente, para parafrasear Marx (1859/1999, p.53), não foi legada sequer à crítica roedora dos ratos. O caminho vigotskiano para a superação do fosso então existente entre humano e animal (uma vez que James tratava as emoções como mecanismos, processos explicáveis a partir de nossa história evolucionária), segundo cremos, vincula-se à concepção do autor sobre as relações de continuidade e ruptura entre eles, em que a formação cultural supera as reservas hereditárias da vida psíquica num processo de teseantítese-síntese. As mudanças que constituem os eixos natural e cultural do desenvolvimento são um processo único de formação biológico-social da personalidade da criança. (Vigotski, 1931/1995, p.36). Diante deste debate, como ficaria o futuro da psicologia das emoções? Com Vigotski, selecionamos uma idéia central: o futuro da psicologia das emoções concentra-se na resposta ao problema da divisão entre psicologia explanatória e descritiva ou fenomenológica, dirigindo-se ao desenho de um quadro único das múltiplas manifestações da vida emocional humana, vivenciais e comportamentais, e de seus processos de determinação. O bielo-russo defendia a criação de uma psicologia geral, cujos conceitos contemplassem o que seria próprio do humano. Trabalhava-se no contexto de luta da 7 intelectualidade socialista contra o ranço teológico de uma União Soviética semifeudal, e ainda sob inspiração do materialismo militante de Lênin. Aí devemos compreender a interpretação de Vigotski, para quem a teoria James-Lange recaía numa visão mecanicista: a evolução das espécies, expressa na mecânica do corpo no mundo, explicava o problema da causalidade das emoções, descoladas da personalidade e da história, reduzindo-se a um mecanismo animal sem sentido próprio nem vida subjetiva: mas não há vivência das emoções, há só percepções de mudanças na periferia do corpo, independentes da interpretação humana e dos processos de pensamento. Emoções tão diversas quanto o medo dos animais e o amor de Dante por Beatrice (baseado em Vigotski, 1933/2004, p.214) precisavam ter sua gênese esclarecida pela mesma teoria 6 . Frente à imensidão de dados dispersos e idéias confusas, Vigotski (idem, p.58) sustenta que o futuro de uma psicologia das emoções dependeria de uma divisão de trabalho entre as ciências e no interior da própria psicologia da vida emocional. Para desânimo dos mais afoitos, aponta: os problemas não resolvidos constituiriam tarefas a se solucionar em muitos anos, com extensas e sérias investigações (idem, p.55). A primeira, que ele próprio realizava, era compilar e relacionar o material fatual sem coordenação, expondo a luta de idéias filosóficas por detrás das psicológicas, abrindo caminho para futuras investigações. Tropeçava-se na minguada compreensão do sistema nervoso dos primórdios do século XX: caberia mais formular idéias para as direções futuras da pesquisa do que tecer afirmações seguras no assunto. A expressão “divisão do trabalho” é um tanto indefinida. Nosso autor não esclarece a quais tarefas se refere, mas indica o passo seguinte: diante dos novos fatos neurológicos – ainda incipientes – era necessário mudar o modelo filosófico que embasava a teoria das emoções (Vigotski, 1933/1999, pp.101-105), substituir o modelo cartesiano pelo espinosano, considerando que tanto a ciência pode se acabar com uma grande idéia filosófica como, através dos novos fatos concretos sobre a mente humana, seria possível resolver velhos problemas filosóficos. O gigantismo do projeto vestigial de Vigotski para as emoções, pois, não se detinha nos limites da psicologia, refletindo a emergência de uma ciência interdisciplinar. Ainda incipientes, as pesquisas clínicas e Vigotski endossa uma citação de Brett “En lugar de oponer una categoria de emoción a outra, hay que admitir que cada emoción puede adoptar diferentes formas, tan distintas como, por ejemplo, la rabia de un animal y una fundada indignación.” (1933/2004, p.138). 6 8 neurofisiológicas precisariam ser orientadas por novas bases filosóficas e combinadas com um maior desenvolvimento do trabalho nas ciências humanas. 3 – As emoções como objeto interdisciplinar: Jerome Kagan Setenta e oito anos depois do “Teaching about emotions”, tanto as ciências médicas e biológicas quanto as humanas evoluíram muito, com significativas transformações das metodologias de pesquisa. A produção sobre emoções multiplicouse imensamente, assinalando a amplitude dos interesses políticos e financeiros ligados ao tema. Os resultados desta pesquisa indicaram que, nos campos de conhecimento vinculados às ciências biológicas e da saúde, o darwinismo social apresentou-se como o principal paradigma de pesquisa das emoções humanas. Por outro lado, levantamentos numa base de dados das ciências sociais, o JSTOR (abreviatura de Journal Storage), indicaram grande fôlego de vários outros paradigmas (como a psicanálise e a etnolingüística culturalista). Entretanto, considerados isoladamente, estes não responderam satisfatoriamente ao objetivo principal do projeto vigotskiano: compreender as múltiplas manifestações da vida emocional humana. Tanto a compreensão do sentido das emoções (problema afim à psicologia descritiva de Dilthey) quanto de sua causalidade natural (enfrentada por James-Lange) precisariam ser trabalhados pela mesma teoria. Vigotski, então, elevava a interdisciplinaridade a um primeiro plano, tornando a psicologia parte desse campo limítrofe entre ciências humanas e biológicas. A despeito do elevado número de textos localizados, este trabalho limita-se a expor algumas contribuições do livro de Jerome Kagan 7 : “What is emotion? History, Kagan (1929- ) notabilizou-se pela pesquisa do temperamento, emoção e cognição na primeira década da vida humana, acompanhando muitas crianças a longo prazo. Atualmente, é Professor Emérito da Harvard University e diretor do Mind/Brain Behavior Interfaculty Initiative. Criticou a Teoria do Apego de John Bolwby, entre outras, defendendo que as experiências dos primeiros anos de vida são menos determinantes para a personalidade adulta do que se pensa (Alic, s/d). 7 9 measures and meanings” (2007), em relação com as idéias vigotskianas já expostas. Kagan não reivindica descendência direta do darwinismo, mas muito se utiliza dele na explicação de especificidades biológicas da espécie humana, combinadas com a leitura de uma considerável bibliografia filosófica, antropológica e de sua especialidade: a psicologia do desenvolvimento. O encontro com o livro de Kagan foi casual. Embora seja um dos principais nomes da psicologia americana, é cientista pouco citado no Brasil 8 . Enxergar semelhança entre algumas de suas idéias e as vigotskianas parece, à primeira vista, historicamente insólito: em “What is emotion?”, Kagan não se reporta à psicologia soviética. Tampouco defende a necessidade de que Espinosa seja elevado ao proscênio da pesquisa neurocientífica. Mas um diálogo de Kagan com a psicologia de Vigotski pode-se estabelecer, a princípio, sobre duas bases comuns: 1) o problema da definição das emoções; 2) a valorização da interdisciplinaridade e da multiplicidade dos métodos de pesquisa no campo das emoções. Kagan (2007) destaca-se pela crítica e cuidadosa reflexão metodológica, criticando os equívocos criados pelo darwinismo social nos estudos contemporâneos sobre as emoções. Caracteriza-se por uma ampla compreensão dos mais diversos métodos de pesquisa sobre o tema, incluindo as possibilidades e limites das técnicas de neuroimagem – não raramente fetichizadas na contemporaneidade, além de serem praticamente desconhecidas no campo da psicologia histórico-cultural brasileira. Integrando muitos dados (à primeira vista, divergentes), numa abordagem complexa sobre o desenvolvimento humano, o autor mostra, por exemplo, os erros existentes na dicotomia entre inato e adquirido para explicação das origens do psíquico. Argumenta que o estudo das emoções não amadureceu o suficiente para se adquirir confiança num grande número de premissas (Kagan, 2007, p.214) – afirmação semelhante à de Vigotski, que nada conheceu da recente avalanche de trabalhos sobre emoções. Vale ressaltar que o reconhecimento da importância de sua obra sobre as emoções não representa um alinhamento da autora deste artigo para com idéias expostas em outros trabalhos do autor, que lhe são ainda praticamente desconhecidos. 8 Identificou-se, no PEPSIC (Portal de Periódicos Eletrônicos em Psicologia), uma única referência brasileira a Kagan (Lomônaco, 2006). 10 Kagan critica, também, a falsa universalização das emoções vividas no Ocidente. Em alguns tópicos, explica as relações entre alterações encefálicas e a culturização do cérebro ao longo do desenvolvimento, numa exposição similar à psicologia histórico-cultural de Vigotski e Luria. Afastando-se do binômio estímuloresposta que permeia diversas teorias sobre as emoções, binômio este tão criticado por Vigotski (1931/1995, p. 62), Kagan concentra-se nos complexos de processos conceituais e de julgamento fundadores dos estados emocionais e de suas repercussões nas relações sociais, afastando-os da condição de mera resposta a estímulos. Defende o caráter estrutural das emoções, nelas integrando muitas dimensões da vida emocional e estudos sobre os seus diversificados impactos nos pensamentos, decisões e atos individuais de acordo com diferentes culturas e comunidades. Com isso, avança muito na compreensão das emoções como componentes de um cérebro sujeito a transformações culturais. Kagan (2007) defende que muitas emoções existem, mas não chegam a ser percebidas pelo sujeito e tampouco se manifestam de modos perceptíveis por outros: são como a temperatura dos processos mentais. Há um oceano de manifestações emocionais aquém do discurso – até porque as estruturas cerebrais que alicerçam os sentimentos são menos vinculadas às áreas da linguagem do que as representativas de objetos e lugares do ambiente. Em muitos casos, chegam-se a detectar as emoções, ou seja, vivenciam-se sentimentos, mas não se lhes atribuem um rótulo linguístico. Sustenta o autor (idem, p.23) que a idéia de emoção humana na psicologia das últimas décadas é a de um constructo que se refere a quatro fenômenos imperfeitamente relacionados: 1) uma mudança no perfil da atividade cerebral (brain profile) para selecionar incentivos (recompensas, punições); 2) uma mudança conscientemente detectada no sentimento (detected feeling), com qualidades sensoriais identificáveis; 3) processos cognitivos que interpretam e/ou rotulam o sentimento com palavras (appraisal); e 4) uma prontidão (preparedness) para uma resposta comportamental, ou uma demonstração nesse sentido 9 . Cada perspectiva psicológica varia na significância e Kagan (2007, p.27-28) acredita que futuros investigadores elaborarão diferentes construtos para componentes separados da estrutura que caracteriza a emoção, na esteira dos antigos gregos, que separavam a taquicardia e o calor facial após um insulto, das emoções de raiva e vingança subseqüentes à avaliação do sentimento corporal. Os futuros constructos precisariam, por exemplo, separar um primeiro grupo de respostas a expressões faciais na forma de estados/padrões cerebrais consistentes, sem que o sujeito perceba nenhuma mudança no 9 11 nomenclatura atribuídas aos componentes (Kagan denomina “sentimento” ao segundo componente e “emoção” ao terceiro). Nos encontros e desencontros dos componentes, padrões de neuroimagem semelhantes não significarão necessariamente a associação de todos eles, nem influenciarão igualmente o pensamento e as relações interpessoais. O indivíduo que as experimenta pode chegar, mesmo, a atribuir-lhes rótulos muitos distintos. Um exemplo: pesquisadores associaram a ativação combinada da amígdala, córtex insular e cingulado anterior tanto à percepção de eventos aversivos quanto à excitação sexual decorrente de exposição a filmes eróticos (id., p.83). É o indivíduo que vivencia a emoção quem pode rotulá-la adequadamente. O autor afirma: Although every emotion originates in brain activity, each is first and foremost a psychological phenomenon that is underdetermined by a brain state because each brain profile can give rise to an envelope of emotions. The specific emotion that emerges depends on the setting and always on the person´s history and biology. (Kagan, 2007, pp.12) Uma mudança no sentimento pode ser percebida e descartada ou nomeada e explorada com maior vagar. Para Kagan (2007, p.42), as palavras que utilizamos sofrem a influência do contexto imediato, ações ou pensamentos contínuos, os discursos e a folk theory (a psicologia do cotidiano, psicologia ingênua ou teoria popular corrente sobre os processos mentais). É por atribuir um importante papel à cultura que o autor descrê das definições de emoções básicas, considerando que as classificações existentes apenas refletem os modelos e hierarquias de emoções em diferentes culturas. Para uma nova concepção científica das emoções seria também necessária a criação de diferentes termos para as manifestações emocionais de crianças e adultos: a reação a que hoje denominamos “medo” de um bebê que chora reagindo ao frio imprevisto não é como o “medo” de um adulto que descobre um imprevisto sangramento em sua boca. Nossa sentimento, de um segundo grupo de estados, acompanhados de comportamentos involuntários ou respostas autonômicas, de um terceiro grupo que resulta também em sentimentos detectados, mas não interpretados, de um quarto grupo envolvendo também a interpretação; e um quinto grupo, englobando todos os fenômenos: um estado cerebral, um sentimento detectado, uma avaliação e uma resposta. Mas, de fato, essas diferentes fontes de dados são descritas, por exemplo, com o rótulo “ansiedade”, tanto no encontro com estranhos quanto a ativação da amígdala perante caras raivosas. 12 capacidade de avaliação de um fato impõe diferenças de natureza em todas as manifestações hoje consideradas emocionais, chegando a alterar sua essência. 4 – Conclusões Nos estudos sobre as emoções, Vigotski visualizava uma psicologia que deveria participar de uma grande “divisão de trabalho” entre as ciências, ainda demasiado imaturas para dar origem a uma teoria mais consistente. Mais de setenta anos depois, muito se pesquisou sobre a temática: tornou-se desafiador até mesmo selecionar um corpus de pesquisa, quanto mais formular algum juízo sobre o enorme número de trabalhos publicados. Frente ao gigantismo da tarefa e o nanismo de referências próximas ao projeto vigotskiano para uma psicologia das emoções, recorreu-se a Jerome Kagan para auxiliar a análise da pesquisa contemporânea. Ao refletir tanto sobre pesquisas experimentais quanto trabalhos antropológicos e filosóficos, Kagan advoga em favor da separação dos quatro fenômenos tradicionalmente associados às emoções: perfil neuronal, sentimento detectado, atribuição de sentido e prontidão para resposta, defendendo uma análise circunstanciada das emoções para superar a presente inadequação dos conceitos de emoções. Ao invés de pretender uma descendência direta com relação ao pensamento de Darwin, integra contribuições de diversas áreas do conhecimento, transcendendo os estreitos limites do darwinismo social. Este processo assemelha-se ao percurso metodológico de Vigotski para um futuro (do pretérito) da pesquisa sobre as emoções: ele desejava uma psicologia materialista dialética, que descendesse do darwinismo de modo a refutar o ranço teológico da União Soviética sem perder de vista as especificidades culturais dos humanos. O autor afirma que: “Emotions are like the weather. There is always some form of weather, but we award special status to the infrequent, distinct arrangements of humidity, temperature, and wind velocity called hurricanes, blizzards, and thunderstorms.” (2007, p.22). Assim sendo, não faz sentido interpretarmos as emoções como processos psíquicos necessariamente pontuais e disruptivos, mas as situar como 13 componentes fundamentais da consciência e determinantes do sentido da atividade consciente, tal como propunha Vigotski (1934/2001). O conceito de emoções em Kagan não está plenamente desenvolvido – não deixa de ser melancólico constatar que seu livro, “What is emotion?”, repete a dúvida do clássico artigo de James (1884/1967) – mas apresenta idéias a serem estudadas por uma psicologia histórico-cultural que se proponha a desenvolver o projeto inacabado de Lev Semenovich para a pesquisa sobre as emoções. Referências ALIC, M. (s/d) Kagan, Jerome (1929- ). Encyclopedia of Psychology by Margaret Alic. Recuperado em 25 de novembro, 2008, de Encyclopedia of Psychology web site: http://findarticles.com/p/articles/mi_g2699/is_0005/ai_2699000518. DAMÁSIO, A. (2004) Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. 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