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DESCENDÊNCIA E CONTROVÉRSIA: AS EMOÇÕES COMO OBJETO
INTERDISCIPLINAR
Gisele Toassa - Faculdade de Educação, UFG - [email protected]
Apoio: CNPQ 1
Introdução
Emoção: palavra que atravessa tanto a linguagem coloquial quanto as teorias
científicas e filosóficas, vem se impregnando de acepções nem sempre fundamentadas
em pesquisas mais amplas. No confuso contexto das doutrinas científicas do início do
século XX, o “Teaching about emotions. Historical-psychological studies” (Utchenie ob
Emotsijakh. Istoriko-psikhologicheskoe Issledovanie), de L.S. Vigotski, endossou idéia
de Bentley: emoções eram apenas título de um capítulo dos livros de psicologia, muito
discutidas e pouco compreendidas. A partir do texto vigotskiano, expor-se-ão alguns
problemas histórico-conceituais que habitam esse campo de estudos interdisciplinares,
aqui revisitado por meio do “What is emotion? History, measures and meanings”
(2007), de Jerome Kagan. Tal exposição é norteada por importante objetivo da
psicologia histórico-cultural das emoções: sua compreensão como objeto
interdisciplinar das ciências biológicas e humanas.
PALAVRAS-CHAVE: psicologia histórico-cultural, Lev Semenovich Vigotski, Jerome
Kagan, emoções.
1 – Problemática, objetivos e metodologia
Palavras/locuções significantes de emoções existem em todas as línguas.
Permanente desafio de compreensão dos homens por eles mesmos, caro às ciências
humanas e biológicas, além da filosofia, as emoções vêm sendo objeto de múltiplas
abordagens (Engelmann, 1978).
1
Trabalho extraído da tese de doutorado da autora, intitulada: “Emoções e vivências em Vigotski:
investigação para uma perspectiva histórico-cultural”, defendida no Instituto de Psicologia, USP, São
Paulo.
2 Entretanto, Engelmann (id., p.15) e Vigotski (1933/2004, p.54) assinalam a
vagueza e inadequação do conceito de emoção. Ainda são raras as iniciativas
interdisciplinares que logram defini-lo. Permanece certa incomunicabilidade entre
diversas áreas do conhecimento: um exemplo é “Em busca de Espinosa: prazer e dor na
ciência dos sentimentos” (Damásio, 2004), que, a despeito de seu valor na difusão de
pesquisas recentes sobre a relação mente-corpo, deixa de lado a psicologia do
desenvolvimento, recorrendo ao darwinismo social para explicar a filogênese das
emoções humanas 2 .
Em oposição a enfoques como esse, o presente trabalho defende que a psicologia
histórico-cultural transcenda fenômenos psíquicos nebulosos e gastos em sua aparência,
compreendendo-os em suas múltiplas determinações – o que implica numa
interdisciplinaridade orientada pela obra de Vigotski. Buscando manter tal horizonte em
perspectiva, este texto relata parte de uma pesquisa de doutorado que teve os seguintes
objetivos específicos (entre outros):
1) compreender as idéias de Vigotski para o futuro (do pretérito) dos estudos
sobre as emoções;
2) relacionar tais idéias à pesquisa interdisciplinar contemporânea na referida
temática.
Estudou-se o “Utchenie ob Emotsijakh” em duas traduções (Vigotski, 1999,
2004), processo complementado pela leitura de autores citados por Vigotski (caso de
Charles Darwin e William James) na referida obra. Tratar de pesquisa contemporânea
demandou diversos levantamentos bibliográficos, um dos quais foi empreendido na base
3
de dados PubMed, em outubro de 2008 . Pesquisaram-se, ainda, livros e artigos no
2
Sem convidar para sua reflexão os estudos ontogenéticos, Damásio (2004, p.41) chega, por
exemplo, a classificar os comportamentos lúdicos humanos entre as pulsões e motivações, ao lado da
fome, da sede e dos comportamentos sexuais, em franco desacordo com as contribuições da psicologia do
desenvolvimento. Cite-se, por exemplo, as importantes contribuições da “Psicologia do jogo” de D.B.
Elkonin (Toassa, 2009). Neste trabalho, utilizamos a expressão o darwinismo social como perspectiva
que busca priorizar as explicações acerca da origem e natureza das emoções humanas na finalidade
adaptativa das mesmas, simplificando a sua diversidade ao equiparar a sociedade com a noção darwiniana
de ambiente.
3
O PubMed é uma base de dados mantida pelo U.S. National Library of Medicine e pelo U.S.
National Institutes of Health, especializada em publicações de ciências médicas e biológicas. Um olhar
geral sobre essas pesquisas mostrou-nos alguns temas recorrentes: a busca por definir os papéis deste ou
daquele sistema/região encefálico(a) nos processos emocionais, definir e aplicar modelos experimentais
3 Scientific Electronic Library Online Brazil (SciELO), tendo como palavra-chave a
expressão “sistema límbico” – busca que indicou três artigos de interesse para a
pesquisa de doutorado. Esses levantamentos funcionaram como uma breve varredura no
assunto, posteriormente combinada com livros mais amplos de revisão de literatura
(caso de Kagan, LeDoux e Damásio). O trabalho de Kagan é o único a ser debatido
neste texto.
2 – Vigotski e o futuro (do pretérito) na psicologia das emoções
O “Teaching about emotions” é um manuscrito inacabado, redigido
aproximadamente entre 1931 e 1933 (última versão datada de 1933). Recebeu vários
títulos e teve partes publicadas no Voprosy Psikhologii (1968) e Voprosy Filosofii
(1970).
Na sua primeira e única parte, o “Teaching...” sintetiza as críticas vigotskianas
ao legado da teoria periférica das emoções (identificada como “velha psicologia”), a
partir do relato de experimentos com animais e análises clínicas de pacientes com lesões
cerebrais locais (que ele denominou de “nova psicologia”), defendendo que tal disputa
científica era uma reedição não apenas da antiga querela entre Descartes e Espinosa,
mas também da guerra travada entre materialismo e idealismo no plano filosófico. Foi
concomitante à popularidade da teoria periférica na Rússia, onde a psicologia
para testes de medicamentos, descrever as manifestações emocionais desta ou daquela síndrome
neurológica ou psicopatológica, propor métodos de tratamento psicoterápico, lançar hipóteses
criminológicas, discutir interações grupais. Os autores são tantos que nos é difícil até mesmo listar,
quanto mais definir, os achados mais relevantes. Realizamos, ainda, em 07/11/2007, um breve
levantamento em duas bases de dados internacionais especializadas em ciências biológicas (a CABI e a
Zoological Record, disponíveis no site da USP: http://www.usp.br/sibi), encontrando nelas artigos
relativos à psicologia comparada, a partir das palavras-chave “emotion” e “feeling” sem limite de data.
Foram freqüentes as referências a pesquisas veterinárias, dirigidas a temas práticos de acondicionamento
e tratamento dos animais, ao seu bem-estar, saúde mental, felicidade, prazer, stress e sofrimento animal (e
os indicadores desses fenômenos), estudos sobre os efeitos das expressões faciais e de fármacos, além de
modelos sobre a interação cognição-emoção na filogênese. Obtiveram-se referências a 9.067 artigos
com o termo “emotion” no título ou resumo, 7.846 deles reportando pesquisas (principalmente clínicas)
realizadas com humanos; 2.961 com o termo logo no seu título. Traduções do descritor para línguas como
francês, espanhol e italiano não alterou significativamente o perfil das buscas realizadas.
4 reactológica considerava-a “materialista” (Vigotski, 1933/2004, p.247). Através do
“Teaching...”, Vigotski leva a cabo um primeiro objetivo: refutar esta teoria, negar seu
suposto materialismo e expor seu dualismo, integrando filosofia, fisiologia, neurologia e
psicologia clínica na resolução dos problemas então existentes no âmbito das emoções.
Assim sendo, o “Teaching about emotions” marca-se pela interdisciplinaridade:
há comentários extensos sobre a fisiologia das emoções, a psicologia comparada de
humanos e animais, além do modelo filosófico nelas aplicado. Já se buscava, na época,
uma análise evolucionária do comportamento emocional, cujo pontapé inicial fora dado
por ninguém mais, ninguém menos, que Charles Darwin, com a publicação de “The
expression of the emotions in man and animals” (1872/1934). Nesse contexto, para
Vigotski, o capítulo referente à reação emocional dos animais e à sua evolução era o
item que a psicologia desenvolvera com maiores detalhes (Vigotski, 1932/1999a, pp.8182). Dois trabalhos basilares para a história da psicologia e, também, para nossa
discussão, foram os de William James e Carl Lange: doze anos após Darwin, James,
americano com passagens pela medicina, filosofia e psicologia, publica um artigo
intitulado “What is an emotion?” no Mind (1884, vol. IX, pp.188-205). De forma
completamente independente, o anatomista e fisiologista dinamarquês Lange lança, em
1885, o livro “Emotions”, com idéias essencialmente iguais às de James. Tal concepção
passou a ser denominada de teoria James-Lange, ou teoria periférica das emoções. A
intimidade de Vigotski com o debate fisiológico pode ter se fundamentado nos estudos
de medicina que ele realizava, embora jamais tivesse obtido o diploma de médico
(baseado em A.A. Leontiev, 2005).
No “Teaching about emotions” (1933), de modo similar à “Psicologia
Pedagógica”, é especialmente clara a raiz instintiva das emoções nos instintos mais
primitivos, mais elementares, as emoções inferiores. Num texto sobre o primeiro ano de
vida:
Los impulsos afectivos son el acompañante permanente de cada etapa
nueva en el desarrollo del niño, desde la inferior hasta la más superior.
Cabe decir que el afecto inicia el proceso del desarrollo psíquico del
niño, la formación de su personalidad y se cierra ese proceso,
culminando así todo el desarrollo de la personalidad. No es casual, por
tanto, que las funciones afectivas estén en relación directa tanto con
5 los centros subcorticales más antiguos, que son los primeros en
desarrollar y se encuentran en la base del cerebro, como con las
formaciones cerebrales más nuevas y específicamente humanas (lobos
frontales) que son los últimos en configurarse. En este hecho halla la
expresión anatómica aquella circunstancia que el afecto es el alfa y el
omega, el primero y último eslabón, el prólogo y el epílogo de todo el
desarrollo psíquico. (Vigotski, 1996, p.299) 4
Vigotski, que então estudava um lugar para a psicopatologia clínica em sua obra,
aponta: a psicopatologia da vida afetiva também servia à negação da teoria periférica.
Os trabalhos de S. Wilson (in Vigotski, 1933/2004, pp.45-47), por exemplo, indicavam
em alguns pacientes uma ausência de paralelismo entre elementos mentais e somáticos
das emoções. Outros, de H. Head 5 , com lesões no tálamo óptico, apresentavam uma
hipersensibilidade emocional unilateral do lado afetado, enquanto um terceiro grupo,
mesmo com a musculatura facial paralisada, relatava continuar sentindo toda espécie de
sentimento. Esses estudos provavam a utilidade na associação de métodos objetivos e
subjetivos na constituição de sua psicologia (id., p.41). Provava-se também que as
sensações periféricas de emoções, exceto em condições muito especiais, não se
identificavam com as vivências emocionais, levando Vigotski a concluir que as
sensações são apenas parte das nossas vivências. Cremos que a especificidade
vigotskiana está em atribuir origem social e lingüística à classificação das emoções
(Vigotski 1930/1991g, pp.86-87).
A descoberta do papel do tálamo causava mudanças cruciais. Levava a pensar
que o desencadeamento das emoções implicava-se numa série de relações
neuropsicológicas, colocando em xeque a exclusividade que se atribuía à evolução da
espécie na determinação dos processos emocionais. Era de se supor a existência de mais
causas que interagiam com a evolução biológica do organismo humano. Com isso, as
emoções inseriam-se entre os processos mentais superiores e não entre os reflexos da
espécie, como preconizava James. Aspectos que Vigotski considerava essenciais, como
a determinidade, estrutura e dinâmica das emoções quase não eram problematizadas:
O autor, com o termo afeto, denomina um “simples impulso sem qualidade
especificamente emocional”.
5
Não foram encontradas referências no Google a H. Head e S. Wilson. Nenhuma das
edições do “Utchenie...” oferece dados sobre tais autores.
4
6 Freud e Lewin eram dos poucos autores que buscavam preencher esta lacuna (Vigotski,
1932/1999a). Urgia a necessidade de um monismo, pois a teoria James-Lange
permanecia dualista; suas idéias sobre a relação corpo-mente eram incompatíveis com
as novas descobertas em fisiologia e neurologia clínica. James reivindicava
descendência intelectual para com a teoria da seleção natural, no que foi criticado por
Vigotski, muito atento não à superfície da teoria periférica – fundada na interpretação
de dados experimentais, essa quintessência da ciência moderna – mas sim às suas
similaridades profundas para com o pensamento cartesiano.
Vincular James a Descartes e propor a superação deste bloco dualista pelo
monismo espinosano, doutrina psicofísica que viria a se constituir na principal
orientação filosófica para uma nova teoria das emoções, era a estratégia adotada pelo
bielo-russo (1933/2004, p.8). Ele propunha-se a concretizá-la na segunda parte do
“Utchenie ob Emotsiajakh”, que, infelizmente, para parafrasear Marx (1859/1999,
p.53), não foi legada sequer à crítica roedora dos ratos.
O caminho vigotskiano para a superação do fosso então existente entre humano
e animal (uma vez que James tratava as emoções como mecanismos, processos
explicáveis a partir de nossa história evolucionária), segundo cremos, vincula-se à
concepção do autor sobre as relações de continuidade e ruptura entre eles, em que a
formação cultural supera as reservas hereditárias da vida psíquica num processo de teseantítese-síntese. As mudanças que constituem os eixos natural e cultural do
desenvolvimento são um processo único de formação biológico-social da personalidade
da criança. (Vigotski, 1931/1995, p.36).
Diante deste debate, como ficaria o futuro da psicologia das emoções?
Com Vigotski, selecionamos uma idéia central: o futuro da psicologia das
emoções concentra-se na resposta ao problema da divisão entre psicologia
explanatória e descritiva ou fenomenológica, dirigindo-se ao desenho de um quadro
único das múltiplas manifestações da vida emocional humana, vivenciais e
comportamentais, e de seus processos de determinação.
O bielo-russo defendia a criação de uma psicologia geral, cujos conceitos
contemplassem o que seria próprio do humano. Trabalhava-se no contexto de luta da
7 intelectualidade socialista contra o ranço teológico de uma União Soviética semifeudal,
e ainda sob inspiração do materialismo militante de Lênin. Aí devemos compreender a
interpretação de Vigotski, para quem a teoria James-Lange recaía numa visão
mecanicista: a evolução das espécies, expressa na mecânica do corpo no mundo,
explicava o problema da causalidade das emoções, descoladas da personalidade e da
história, reduzindo-se a um mecanismo animal sem sentido próprio nem vida subjetiva:
mas não há vivência das emoções, há só percepções de mudanças na periferia do corpo,
independentes da interpretação humana e dos processos de pensamento. Emoções tão
diversas quanto o medo dos animais e o amor de Dante por Beatrice (baseado em
Vigotski, 1933/2004, p.214) precisavam ter sua gênese esclarecida pela mesma teoria 6 .
Frente à imensidão de dados dispersos e idéias confusas, Vigotski (idem, p.58)
sustenta que o futuro de uma psicologia das emoções dependeria de uma divisão de
trabalho entre as ciências e no interior da própria psicologia da vida emocional. Para
desânimo dos mais afoitos, aponta: os problemas não resolvidos constituiriam tarefas a
se solucionar em muitos anos, com extensas e sérias investigações (idem, p.55). A
primeira, que ele próprio realizava, era compilar e relacionar o material fatual sem
coordenação, expondo a luta de idéias filosóficas por detrás das psicológicas, abrindo
caminho para futuras investigações. Tropeçava-se na minguada compreensão do sistema
nervoso dos primórdios do século XX: caberia mais formular idéias para as direções
futuras da pesquisa do que tecer afirmações seguras no assunto.
A expressão “divisão do trabalho” é um tanto indefinida. Nosso autor não
esclarece a quais tarefas se refere, mas indica o passo seguinte: diante dos novos fatos
neurológicos – ainda incipientes – era necessário mudar o modelo filosófico que
embasava a teoria das emoções (Vigotski, 1933/1999, pp.101-105), substituir o modelo
cartesiano pelo espinosano, considerando que tanto a ciência pode se acabar com uma
grande idéia filosófica como, através dos novos fatos concretos sobre a mente humana,
seria possível resolver velhos problemas filosóficos. O gigantismo do projeto vestigial
de Vigotski para as emoções, pois, não se detinha nos limites da psicologia, refletindo a
emergência de uma ciência interdisciplinar. Ainda incipientes, as pesquisas clínicas e
Vigotski endossa uma citação de Brett “En lugar de oponer una categoria de emoción a
outra, hay que admitir que cada emoción puede adoptar diferentes formas, tan distintas como,
por ejemplo, la rabia de un animal y una fundada indignación.” (1933/2004, p.138).
6
8 neurofisiológicas precisariam ser orientadas por novas bases filosóficas e combinadas
com um maior desenvolvimento do trabalho nas ciências humanas.
3 – As emoções como objeto interdisciplinar: Jerome Kagan
Setenta e oito anos depois do “Teaching about emotions”, tanto as ciências
médicas e biológicas quanto as humanas evoluíram muito, com significativas
transformações das metodologias de pesquisa. A produção sobre emoções multiplicouse imensamente, assinalando a amplitude dos interesses políticos e financeiros ligados
ao tema.
Os resultados desta pesquisa indicaram que, nos campos de conhecimento
vinculados às ciências biológicas e da saúde, o darwinismo social apresentou-se como o
principal paradigma de pesquisa das emoções humanas. Por outro lado, levantamentos
numa base de dados das ciências sociais, o JSTOR (abreviatura de Journal Storage),
indicaram grande fôlego de vários outros paradigmas (como a psicanálise e a
etnolingüística culturalista). Entretanto, considerados isoladamente, estes não
responderam satisfatoriamente ao objetivo principal do projeto vigotskiano:
compreender as múltiplas manifestações da vida emocional humana. Tanto a
compreensão do sentido das emoções (problema afim à psicologia descritiva de Dilthey)
quanto de sua causalidade natural (enfrentada por James-Lange) precisariam ser
trabalhados pela mesma teoria. Vigotski, então, elevava a interdisciplinaridade a um
primeiro plano, tornando a psicologia parte desse campo limítrofe entre ciências
humanas e biológicas.
A despeito do elevado número de textos localizados, este trabalho limita-se a
expor algumas contribuições do livro de Jerome Kagan 7 : “What is emotion? History,
Kagan (1929- ) notabilizou-se pela pesquisa do temperamento, emoção e cognição na
primeira década da vida humana, acompanhando muitas crianças a longo prazo. Atualmente, é
Professor Emérito da Harvard University e diretor do Mind/Brain Behavior Interfaculty
Initiative. Criticou a Teoria do Apego de John Bolwby, entre outras, defendendo que as
experiências dos primeiros anos de vida são menos determinantes para a personalidade adulta
do que se pensa (Alic, s/d).
7
9 measures and meanings” (2007), em relação com as idéias vigotskianas já expostas.
Kagan não reivindica descendência direta do darwinismo, mas muito se utiliza dele na
explicação de especificidades biológicas da espécie humana, combinadas com a leitura
de uma considerável bibliografia filosófica, antropológica e de sua especialidade: a
psicologia do desenvolvimento.
O encontro com o livro de Kagan foi casual. Embora seja um dos principais
nomes da psicologia americana, é cientista pouco citado no Brasil 8 . Enxergar
semelhança entre algumas de suas idéias e as vigotskianas parece, à primeira vista,
historicamente insólito: em “What is emotion?”, Kagan não se reporta à psicologia
soviética. Tampouco defende a necessidade de que Espinosa seja elevado ao proscênio
da pesquisa neurocientífica. Mas um diálogo de Kagan com a psicologia de Vigotski
pode-se estabelecer, a princípio, sobre duas bases comuns: 1) o problema da definição
das emoções; 2) a valorização da interdisciplinaridade e da multiplicidade dos métodos
de pesquisa no campo das emoções.
Kagan (2007) destaca-se pela crítica e cuidadosa reflexão metodológica,
criticando os equívocos criados pelo darwinismo social nos estudos contemporâneos
sobre as emoções. Caracteriza-se por uma ampla compreensão dos mais diversos
métodos de pesquisa sobre o tema, incluindo as possibilidades e limites das técnicas de
neuroimagem – não raramente fetichizadas na contemporaneidade, além de serem
praticamente desconhecidas no campo da psicologia histórico-cultural brasileira.
Integrando muitos dados (à primeira vista, divergentes), numa abordagem
complexa sobre o desenvolvimento humano, o autor mostra, por exemplo, os erros
existentes na dicotomia entre inato e adquirido para explicação das origens do psíquico.
Argumenta que o estudo das emoções não amadureceu o suficiente para se adquirir
confiança num grande número de premissas (Kagan, 2007, p.214) – afirmação
semelhante à de Vigotski, que nada conheceu da recente avalanche de trabalhos sobre
emoções.
Vale ressaltar que o reconhecimento da importância de sua obra sobre as emoções não
representa um alinhamento da autora deste artigo para com idéias expostas em outros trabalhos
do autor, que lhe são ainda praticamente desconhecidos.
8
Identificou-se, no PEPSIC (Portal de Periódicos Eletrônicos em Psicologia), uma única
referência brasileira a Kagan (Lomônaco, 2006).
10 Kagan critica, também, a falsa universalização das emoções vividas no
Ocidente. Em alguns tópicos, explica as relações entre alterações encefálicas e a
culturização do cérebro ao longo do desenvolvimento, numa exposição similar à
psicologia histórico-cultural de Vigotski e Luria. Afastando-se do binômio estímuloresposta que permeia diversas teorias sobre as emoções, binômio este tão criticado por
Vigotski (1931/1995, p. 62), Kagan concentra-se nos complexos de processos
conceituais e de julgamento fundadores dos estados emocionais e de suas repercussões
nas relações sociais, afastando-os da condição de mera resposta a estímulos. Defende o
caráter estrutural das emoções, nelas integrando muitas dimensões da vida emocional e
estudos sobre os seus diversificados impactos nos pensamentos, decisões e atos
individuais de acordo com diferentes culturas e comunidades. Com isso, avança muito
na compreensão das emoções como componentes de um cérebro sujeito a
transformações culturais.
Kagan (2007) defende que muitas emoções existem, mas não chegam a ser
percebidas pelo sujeito e tampouco se manifestam de modos perceptíveis por outros:
são como a temperatura dos processos mentais. Há um oceano de manifestações
emocionais aquém do discurso – até porque as estruturas cerebrais que alicerçam os
sentimentos são menos vinculadas às áreas da linguagem do que as representativas de
objetos e lugares do ambiente. Em muitos casos, chegam-se a detectar as emoções, ou
seja, vivenciam-se sentimentos, mas não se lhes atribuem um rótulo linguístico.
Sustenta o autor (idem, p.23) que a idéia de emoção humana na psicologia das últimas
décadas é a de um constructo que se refere a quatro fenômenos imperfeitamente
relacionados: 1) uma mudança no perfil da atividade cerebral (brain profile) para
selecionar incentivos (recompensas, punições); 2) uma mudança conscientemente
detectada no sentimento (detected feeling), com qualidades sensoriais identificáveis; 3)
processos cognitivos que interpretam e/ou rotulam o sentimento com palavras
(appraisal); e 4) uma prontidão (preparedness) para uma resposta comportamental, ou
uma demonstração nesse sentido 9 . Cada perspectiva psicológica varia na significância e
Kagan (2007, p.27-28) acredita que futuros investigadores elaborarão diferentes
construtos para componentes separados da estrutura que caracteriza a emoção, na esteira dos
antigos gregos, que separavam a taquicardia e o calor facial após um insulto, das emoções de
raiva e vingança subseqüentes à avaliação do sentimento corporal. Os futuros constructos
precisariam, por exemplo, separar um primeiro grupo de respostas a expressões faciais na forma
de estados/padrões cerebrais consistentes, sem que o sujeito perceba nenhuma mudança no
9
11 nomenclatura atribuídas aos componentes (Kagan denomina “sentimento” ao segundo
componente e “emoção” ao terceiro). Nos encontros e desencontros dos componentes,
padrões de neuroimagem semelhantes não significarão necessariamente a associação de
todos eles, nem influenciarão igualmente o pensamento e as relações interpessoais. O
indivíduo que as experimenta pode chegar, mesmo, a atribuir-lhes rótulos muitos
distintos. Um exemplo: pesquisadores associaram a ativação combinada da amígdala,
córtex insular e cingulado anterior tanto à percepção de eventos aversivos quanto à
excitação sexual decorrente de exposição a filmes eróticos (id., p.83). É o indivíduo que
vivencia a emoção quem pode rotulá-la adequadamente. O autor afirma:
Although every emotion originates in brain activity, each is first and
foremost a psychological phenomenon that is underdetermined by a
brain state because each brain profile can give rise to an envelope of
emotions. The specific emotion that emerges depends on the setting
and always on the person´s history and biology. (Kagan, 2007, pp.12)
Uma mudança no sentimento pode ser percebida e descartada ou nomeada e
explorada com maior vagar. Para Kagan (2007, p.42), as palavras que utilizamos sofrem
a influência do contexto imediato, ações ou pensamentos contínuos, os discursos e a folk
theory (a psicologia do cotidiano, psicologia ingênua ou teoria popular corrente sobre os
processos mentais). É por atribuir um importante papel à cultura que o autor descrê das
definições de emoções básicas, considerando que as classificações existentes apenas
refletem os modelos e hierarquias de emoções em diferentes culturas. Para uma nova
concepção científica das emoções seria também necessária a criação de diferentes
termos para as manifestações emocionais de crianças e adultos: a reação a que hoje
denominamos “medo” de um bebê que chora reagindo ao frio imprevisto não é como o
“medo” de um adulto que descobre um imprevisto sangramento em sua boca. Nossa
sentimento, de um segundo grupo de estados, acompanhados de comportamentos involuntários
ou respostas autonômicas, de um terceiro grupo que resulta também em sentimentos detectados,
mas não interpretados, de um quarto grupo envolvendo também a interpretação; e um quinto
grupo, englobando todos os fenômenos: um estado cerebral, um sentimento detectado, uma
avaliação e uma resposta. Mas, de fato, essas diferentes fontes de dados são descritas, por
exemplo, com o rótulo “ansiedade”, tanto no encontro com estranhos quanto a ativação da
amígdala perante caras raivosas.
12 capacidade de avaliação de um fato impõe diferenças de natureza em todas as
manifestações hoje consideradas emocionais, chegando a alterar sua essência.
4 – Conclusões
Nos estudos sobre as emoções, Vigotski visualizava uma psicologia que deveria
participar de uma grande “divisão de trabalho” entre as ciências, ainda demasiado
imaturas para dar origem a uma teoria mais consistente. Mais de setenta anos depois,
muito se pesquisou sobre a temática: tornou-se desafiador até mesmo selecionar um
corpus de pesquisa, quanto mais formular algum juízo sobre o enorme número de
trabalhos publicados.
Frente ao gigantismo da tarefa e o nanismo de referências próximas ao projeto
vigotskiano para uma psicologia das emoções, recorreu-se a Jerome Kagan para auxiliar
a análise da pesquisa contemporânea. Ao refletir tanto sobre pesquisas experimentais
quanto trabalhos antropológicos e filosóficos, Kagan advoga em favor da separação dos
quatro fenômenos tradicionalmente associados às emoções: perfil neuronal, sentimento
detectado, atribuição de sentido e prontidão para resposta, defendendo uma análise
circunstanciada das emoções para superar a presente inadequação dos conceitos de
emoções. Ao invés de pretender uma descendência direta com relação ao pensamento de
Darwin, integra contribuições de diversas áreas do conhecimento, transcendendo os
estreitos limites do darwinismo social. Este processo assemelha-se ao percurso
metodológico de Vigotski para um futuro (do pretérito) da pesquisa sobre as emoções:
ele desejava uma psicologia materialista dialética, que descendesse do darwinismo de
modo a refutar o ranço teológico da União Soviética sem perder de vista as
especificidades culturais dos humanos.
O autor afirma que: “Emotions are like the weather. There is always some form
of weather, but we award special status to the infrequent, distinct arrangements of
humidity, temperature, and wind velocity called hurricanes, blizzards, and
thunderstorms.” (2007, p.22). Assim sendo, não faz sentido interpretarmos as emoções
como processos psíquicos necessariamente pontuais e disruptivos, mas as situar como
13 componentes fundamentais da consciência e determinantes do sentido da atividade
consciente, tal como propunha Vigotski (1934/2001). O conceito de emoções em Kagan
não está plenamente desenvolvido – não deixa de ser melancólico constatar que seu
livro, “What is emotion?”, repete a dúvida do clássico artigo de James (1884/1967) –
mas apresenta idéias a serem estudadas por uma psicologia histórico-cultural que se
proponha a desenvolver o projeto inacabado de Lev Semenovich para a pesquisa sobre
as emoções.
Referências
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Recuperado em 25 de novembro, 2008, de Encyclopedia of Psychology web site:
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