RUMORES E MITOS URBANOS - Associação Portuguesa de
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RUMORES E MITOS URBANOS - Associação Portuguesa de
RUMORES E MITOS URBANOS: CONTRIBUTOS PARA A FRAGMENTAÇÃO SÓCIO-TERRITORIAL Andreia Magalhães Jorge Gonçalves Universidade Lusíada Rua da Junqueira, 194 – 1300 LISBOA Tel. 21 361 15 00 Fax 21 363 83 07 [email protected] [email protected] Palavras-chave: rumor, mito urbano, fragmentação urbana 1. Introdução A condição pós-moderna acarreta consigo paradigmas que suportam novas leituras do mundo, do espaço e das sociedades. No caso da Geografia esta ruptura de paradigmas não podia deixar de se sentir com grande vigor parecendo, agora, óbvio que algo teria de mudar para “completar” o quadro analítico e crítico que a disciplina tem desenvolvido. Precisamente, a peça que parecia faltar aos pilares da análise e de crítica é a componente que acolhe o olhar afectivo e emocional. A experiência do espaço constroi-se a partir do entrecruzar de elementos racionais e quantitativos, mas muitas decisões (residir, comer, trabalhar, recrear-se) derivam de conjugações subjectivas e emocionais inibindo outros critérios mais objectivos. Aceitando-se e compreendendo-se este novo contributo para a leitura das práticas territoriais o problema da sua utilização transfere-se para as metodologias a adoptar: que fontes e que registos, que técnicas, que alcance para as conclusões, que relação com outros saberes. Surge então como protagonista maior dos tempos que correm a representação individual e colectiva do espaço e dos elementos físicos e humanos que o caracterizam, isto é, a paisagem interior ao indivíduo e às colectividades construída a partir de dados objectivos e quantitativos mas contaminada por cheiros, memórias, modas, pressão do media, etc. Ora, transformando-se a representação individual e colectiva do espaço no vector dominante para os comportamentos que incidem sobre o mesmo, afectando as características do território e construindo-o tal como o reconhecemos hoje, o que interessa é, progressivamente, identificar os factores mais influentes na formação das representações do espaço. Para encontrar o sentido do espaço, uma construção multidimensional, há que procurar, pacientemente, instrumentos ou pistas para uma leitura cada vez mais próxima do seu grau mais “puro”. Essa busca pode passar por campos aparentemente longínquos, de que é exemplo a análise dos rumores e dos mitos urbanos, que correspondem à verbalização de medos, preconceitos ou pressupostos culturais. Histórias que relatam um acontecimento recente, transportando um traço de contemporaneidade e ajustadas aos tempos que correm, nunca desmentidas (eventualmente questionadas, mas prontamente aceites) porque veiculadas por indivíduos que asseguram a sua veracidade. Estas histórias-estórias, que muitas vezes nos obrigam a sorrir, outras vezes nos deixam incrédulos, cumprem o papel de alimentar e até justificar receios ou constrangimentos interiorizados perante espaços urbanos ou grupos de indivíduos. O facto de carregarem consigo universos de significado para múltiplos signos e símbolos urbanos é uma excelente bengala que ajuda a ler a Cidade e é, simultaneamente, uma gramática ajustada aos pressupostos culturais do receptor/descodificador. Para dar seguimento a estes princípios a presente comunicação pretende explorar o contributo dos rumores e mitos urbanos no aprofundamento das práticas de segregação territorial e social, legitimando-as ou recriando-as de modo a atingir novos grupos e espaços. Estórias fantásticas envolvendo territórios, minorias, insegurança e criminalidade, espaços desconhecidos, têm um poderoso efeito sobre o uso do espaço e as interacções pessoais, condicionando comportamentos e olhares sobre os outros. Daí que faça sentido uma breve deambulação sobre a estrutura dos rumores e mitos urbanos, como nascem e como se explica a sua propagação no espaço e no tempo. Finalmente, pretende-se apresentar exemplos e análises críticas de alguns materiais recolhidos em Lisboa. 2. Génese e estrutura de um mito urbano 2.1. O que são mitos urbanos? Os mitos urbanos (ou lendas urbanas ou contemporâneas, como são, por vezes, designados) são estórias populares, que geralmente envolvem factos estranhos, cómicos, humilhantes, aterradores ou sobrenaturais que se passaram com alguém. A veracidade dos acontecimentos relatados é assegurada pelo transmissor, com base na credibilidade da respectiva fonte – geralmente “um amigo de um amigo” – e não tanto por situações testemunhadas ou passíveis de ser provadas. Estas estórias são difundidas pessoa-a-pessoa, geralmente por via oral (mas também por via escrita, nomeadamente, pela Internet) e não através dos media ou de outras formas institucionais de comunicação (como acontece com os fait-divers ou outros fenómenos do mesmo tipo). Nessa medida, nunca duas versões do mesmo mito urbano são exactamente iguais, havendo tantas versões quantos os seus contadores: quem conta um conto... O termo “urbano”, que adjectiva estes mitos e lendas e os distingue, por exemplo, dos mitos e lendas tradicionais, tem a ver, como veremos mais adiante, não tanto com o facto de as situações relatadas acontecerem no meio urbano, mas com o facto de estas estórias serem um “produto” do modo de vida urbano e um reflexo dos medos e anseios que se associam ao estilo de vida contemporâneo. J-B. Renard, sistematiza um conjunto de oito características específicas de um mito urbano1: 1) Trata-se de uma história anónima, que faz parte do imaginário colectivo. 2) Embora pareça ser uma história única, aparece sob múltiplas variantes, em função do tempo e do espaço. 3) É uma história curta. 4) O seu conteúdo é surpreendente, invulgar. 5) A história é contada como verdadeira, independentemente de haver provas ou testemunhas. 6) Cada meio social cria e difunde os seus próprios mitos, nos quais os indivíduos desse grupo se revêm e se sentem implicados. É essa implicação que motiva e justifica a difusão das histórias; a veracidade é importante mas não é o essencial. 1 RENARD, Jean-Bruno (1999), Rumeurs et Légendes Urbaines, Collection Que Sais-je?, PUF, Paris: pp.4 e segs. 7) A história é contada como sendo recente, ou seja, os acontecimentos relatados tiveram lugar há pouco tempo, o que os torna mais verosímeis. Nessa medida, assistese a uma permanente reactualização das histórias (mesmo que algumas possam ser já antigas). 8) Trata-se de uma “historia exemplar”, ou seja, com uma mensagem implícita ou uma moral. Os mitos urbanos exprimem, sob a forma narrativa e simbólica, as angústias e os desejos dos indivíduos na sociedade. Em suma, aquele autor define mito urbano como uma história anónima, que apresenta múltiplas variantes, curta, com um conteúdo surpreendente, contada como verdadeira e recente, num meio social do qual exprime os medos e aspirações2. É para dar resposta a esses medos e aspirações que os mitos urbanos geralmente contemplam um certo sentido de vingança ou de justiça enquanto “moral da história”. E é também essa moral que faz com que o mito seja valorizado e apropriado pelos indivíduos. A par dos mitos urbanos surgem também os rumores (ou boatos), que mais não são que uma forma simples daqueles. Frequentemente dizem respeito a uma personalidade ou a um produto conhecidos (uma celebridade, uma marca comercial, etc.), enquanto os protagonistas dos mitos geralmente são pessoas anónimas, caracterizadas apenas por algumas variáveis (sexo, idade, meio social, etc.). 2.2. Como surgem os rumores e os mitos urbanos? Estão permanentemente a surgir e a chegar até nós novos rumores e mitos urbanos. Tal situação torna possível analisar as circunstâncias em que esse processo - de criação, transformação e difusão - ocorre (ao contrário das lendas tradicionais, cuja origem ancestral dificulta a compreensão clara do contexto em que são criadas). De acordo com as investigações desenvolvidas em torno deste tema, os mitos urbanos surgem a partir de factos reais, ou seja, os mitos têm origem na transformação de um determinado episódio efectivamente verdadeiro. Podem distinguir-se três tipos de processos de transformação dos factos reais em mito/lenda3: 1) a amplificação, em que o mito resulta do exagero de acontecimentos reais, cujas características são empoladas, por forma a torná-los mais “surpreendentes”; 2) a deslocação, em que o mito é criado por desvio do acontecimento para um contexto onde perde o sentido; 3) a reconstrução, em que o mito nasce da reconstrução de um ou vários acontecimentos, enformados na estrutura típica de uma lenda. 2 Op. Cit.: pp. 6 (tradução livre). In RENARD, Jean-Bruno (1994), Entre fait-divers et mythes: les légendes urbaines, in Religiologiques, nº10, Automne: pp. 101-109. 3 Facto(s) / acontecimento(s) real(is) Amplificação Deslocação Reconstrução Rumores / Mitos Urbanos 2.3. Os mitos urbanos no contexto da civilização contemporânea Embora se possa pensar que a tecnologia tende a acabar com determinado tipo de lendas e mitos, os computadores e a Internet provaram serem um campo muito fértil para a sua difusão e desenvolvimento: “The net combines the immediacy of the telephone with the persistence of print”, escreve Peter H. Lewis no New York Times. Páginas Web, mailing lists, correio electrónico permitem transmitir muito fácil e rapidamente vários tipos de estórias, nomeadamente os mitos urbanos. Assim, com a generalização do acesso e da utilização da Internet, torna-se progressivamente mais usual a difusão destas estórias pela forma escrita. Este contexto, ao mesmo tempo que massifica a transmissão de um mito urbano, permite: a) por um lado, que as estórias se tornem mais verosímeis - a escrita é mais crível que a oralidade; b) por outro lado, transmitir a história sem “adulterar” o seu conteúdo. O facto de a estória ser transcrita num determinado site ou de, através do correio electrónico, se transmitir uma cópia exacta do que se recebeu (com um simples “forward”), permite respeitar o documento e as ideias originais. Contudo, esta possibilidade faz com que a história não seja tão facilmente reinventada e recontada, como acontece – inevitavelmente – com a transmissão oral. Os mitos urbanos passam, assim, a ser referências materiais, perdendo, de certo modo, a característica de constante adaptação que as torna formas vivas e fluídas de comunicação. Em alguns casos, os próprios computadores e a Internet – marcas indeléveis da sociedade contemporânea - são a matéria prima a partir da qual são construídos esses mitos. A Internet trouxe uma nova dinâmica aos mitos urbanos, em que a velocidade e a distância perderam significado na sua difusão, mas também veio introduzir modificações no formato e no conteúdo das estórias. Os mitos urbanos apresentam algumas semelhanças com as lendas tradicionais. Tal como aquelas, também são estórias colectivas, que misturam factos verdadeiros e falsos, são contadas como verídicas e são portadoras de uma moral. Quanto aos aspectos que distinguem uns e outros, pode considerar-se que, enquanto as lendas tradicionais apresentam um forte enraizamento local/regional e comunitário, estão geralmente associadas ao meio rural e à economia agrícola e são dominadas pelo paradigma do sobrenatural, os mitos urbanos (ou lendas contemporâneas) estão associados à civilização moderna, à internacionalização das trocas, ao multiculturalismo, à economia industrial, ao meio urbano e são dominadas pelo paradigma técnico-científico. Os mitos urbanos têm, portanto, uma forte ligação com o desenvolvimento tecnológico e com o modo de vida urbano, não apenas enquanto contexto de emergência e difusão, mas também enquanto sujeito das estórias relatadas. Lembre-se que alguns dos mitos actualmente difundidos não são mais do que o resultado da adaptação e modernização de lendas antigas. 3. Rumores e mitos na cidade: representações sociais e espaciais A Cidade foi e será sempre um enorme depositário de indivíduos de condição desigual, o que promove, por arrastamento, a produção de territórios movidos por contornos diferenciados. Celebrar a Cidade é, ainda hoje, um tanto de forma romântica, celebrar a diversidade, a complexidade, o lugar do acaso e do caos como componente indissociável do espaço urbano. Esta diversidade é, todavia, organizada e até segmentada, o que leva F. Archer4 a falar da ilusão da diversidade, pois a fragmentação domina o cenário urbano. Com a cidade moderna que se insinua com a Revolução industrial e se concretiza com a Carta de Atenas a funcionalização/segmentação do espaço urbano reforça-se não só nas vocações operativas do espaço, como também no seio de espaços residenciais, onde se concentram indivíduos que manifestavam entre si algum tipo forte de afinidade (profissional, social, económica). Espaços e comunidades sempre se auto-regraram de modo a preservar os principais traços que pressupunham a sua sobrevivência. Muitas questões se podem levantar acerca da organização espacial da cidade e da sua componente social já que, tanto uma como a outra, procuram garantir e preservar a reprodução da estrutura urbana, mantendo a ilusão da possibilidade de ascensão social e do espaço tangível por todos. Esta ilusão resulta na emergência da condição urbana pós-moderna, caracterizada pelos seguintes atributos: a) neotribalismo, em que os grupos tendem a desenvolver mecanismos de reforço identitário, através da auto-diferenciação e da auto-exclusão; b) redução da permeabilidade urbana, onde os espaços fechados/privados assumem uma importância crescente, em detrimento dos espaços abertos/públicos, um sinal/sintoma de uma generalizada “agorafobia”5; c) aumento da velocidade a que se processam os fluxos intra-urbanos, situem-se eles no plano interpessoal ou económico. A aceleração do ritmo quotidiano pela velocidade mecânica (da deslocação física de pessoas e bens) ou da luz (do transporte da voz ou de dados) exige maior selectividade nos contactos a estabelecer pelos indivíduos, contribuindo por isso para o reforço da coesão do endogrupo e para a desvalorização dos que lhe são exteriores. Produzem-se, então, dispositivos que visam preservar e até aprofundar os contextos sócioespaciais e reforçar a imagem das respectivas fronteiras como forma de tornar liminar a experiência da interacção. A sobrevivência da Cidade depende da sobrevivência dos grupos que aí coexistem e dos novos que se irão formar não sem resistência ou conflito com os demais. Nesta estratégia identitária que está na base da permanência de ideia daquela cidade jogam-se as representações e as auto-representações formuladas a partir do exterior e do interior, respectivamente. Habitantes e espaços passam a fazer parte de um sistema de significados e significantes que codificam a Cidade e a enriquecem. Arantes de Oliveira, no capítulo Guerra dos Locais da sua obra "Paisagens Paulistanas"6, observa justamente que "(…) os habitantes da cidade deslocam-se e situam-se no espaço 4 ARCHER, François (1998), Metapólis - Acerca do Futuro da Cidade, Celta, Oeiras, 240 p. GONÇALVES, Jorge e GRAÇA, Susana (2001), Agorafobia ou a nova condição do indivíduo urbano, Comunicação ao Encontro Temático Cidade e Culturas: Novas Políticas/Novas Urbanidades, Associação Portuguesa de Sociologia. 5 urbano. Nesse espaço comum, quotidianamente trilhado, vão sendo construídas colectivamente as fronteiras simbólicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, numa palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais nas suas múltiplas relações”. Se se aceita a existência de territórios, seguramente será de aceitar que se estabeleçam relações de dominação entre Centro e Periferia dos sistemas espaciais e sociais. Não sendo rígida, a negociação que esta relação permanentemente exige confere posição de supremacia a grupos que já eram dominantes mas que pretendem manter e aprofundar a sua hegemonia, pois dispõem dos mais eficazes e subtis instrumentos de exercício do poder (mesmo que simbólico), capaz de anular ou estigmatizar outros grupos. Em contextos de democracia local, que mais recentemente têm evoluído para uma democracia de proximidade, o exercício da gestão dos recursos políticos tem sido mais complexo no sentido de o manipular em favor de grupos específicos. À medida que se esgotam os dispositivos clássicos, outros surgem, por reinvenção ou criação original. Nesse sentido, verifica-se a adopção de mecanismos informais, dirigidos aos elementos de uma comunidade sobre a qual se julga ter um capital superior, revestidos, por vezes, de uma maior capilaridade e eficácia, face aos dispositivos formais. Simultaneamente, estes grupos podem desenvolver estratégias semelhantes face a outros que lhes pareçam “inferiores”. Cidade Grupos / Espaços Centro – Periferia Hegemónicos – Dominados Mecanismos informais que asseguram a manutenção ou o reforço da hierarquia sócio-espacial Rumores / Mitos Urbanos A violência e a força (física, legal, institucional, etc.) não são os instrumentos privilegiados, passando antes pela insegurança e pelo rumor, jogando com as emoções mais fortes e condicionadoras dos comportamentos e dos juízos de valor sobre os outros. As representações dos grupos formuladas a partir do exterior têm uma força que consegue impregnar o próprio endogrupo de modo a que este se sente obrigado ou a assumir essa imagem ou a reagir contra ela; em todo o caso, tem de passar a lidar com ela. Sendo todos os cidadãos iguais perante a lei, essa igualdade prometida nem sempre é sentida por razões: - de mobilidade social; - de medo e insegurança do desconhecido. 6 FORTUNA, Carlos (1997), Cidade, Cultura e Globalização, Colecção Ensaios de Sociologia, Oeiras, Celta Editora. Nascem assim as histórias-estórias, cuja raiz terá vulgarmente laivos de veracidade, que se multiplicam e ampliam ao longo dos anos e se pulverizam pelos espaços. O mito urbano é, nas circunstâncias actuais de fragmentação da Cidade em espaços cada vez mais reservados e até fechados, um instrumento de afirmação, de poder, de diferença e de exploração face a grupos marcados por características diferentes no plano étnico, cultural, social, etc. Estas estórias apresentam contornos com uma complexidade que pode ser descodificada utilizando três dimensões fundamentais:{ INCLUDEPICTURE "C:\\Programas\\Qualcomm\\Eudora\\Embedded\\image001.png" \* MERGEFORMATINET } Espaço e tempo em que decorre a acção Grupo que protagoniza a estória Estrutura narrativa a) Espaço-tempo da acção As cidades desde sempre têm revelado a existência de espaços centrais e de espaços marginais, espaços com maior interacção social e espaços mais repulsivos. Ao contrário do que é vulgar afirmar, a cidade nem sempre convive bem com esta organização e o urbanismo contemporâneo de clausura é uma prova de que continua activa como nunca esta fobia ao diferente e, por outro lado, a necessidade dos humanos de persistente manifestação de superioridade face aos outros. A diferença é que as intervenções urbanas no sentido da formação de Gates Communities são hoje socialmente toleradas (para além de financeiramente rentáveis) em nome da segurança que tudo vai legitimando. O urbanismo de clausura manifesta-se nos espaços de trabalho (parques de escritórios, pólos tecnológicos), nos espaços de lazer e consumo (centros comerciais, parques temáticos), nos espaços residenciais (condomínios privados) e é uma reacção bem sucedida à coexistência social patente nos discursos políticos. Os espaços remanescentes, isto é, os que ficam no exterior dos espaços fechados, são alvo de crescentes referências ao medo e à insegurança que o desconhecido gera, indo as estórias atingir cirurgicamente o alvo quando abordam estes espaços e produzindo um processo de alastramento e complexidade que é praticamente irreversível. Momentos de transição e ruptura são os que proporcionam as melhores condições para a emergência de disfuncionamentos temporários no seio das sociedades. As mudanças profundas, em que uma das melhores ilustrações será a transição de um quadro dominado pela vida rural para um outro marcado pelo ambiente urbano, deixam marcas que nem sempre são fáceis de apagar, arrastando consigo, até ao limite do possível, as formas de organização e funcionamento adoptadas no período imediatamente anterior à mudança. Por outro lado, ao longo do dia, são a noite, o entardecer ou outros momentos de maior fragilidade e insegurança os períodos privilegiados para enquadrar os acontecimentos relatados. O calendário e o horário fornecem, assim, elementos substanciais para a formação de estórias. Os rumores e os mitos urbanos exploram a sensibilidade dos cidadãos aos medos e às fobias produzidas nesses espaços e momentos da Cidade. Essas fobias centram-se em: Espaços Bairros degradados Bairros de realojamento Acampamentos de ciganos ... Momentos Calendário: momentos de ruptura, de mudança, de crise social ou política,... Áreas de prostituição Áreas de toxicodependência Áreas de fixação de sem-abrigo Horário: a noite, o crepúsculo e outros períodos de insegurança e medo,... ... Espaços mal iluminados Parques urbanos e grandes jardins Espaços abandonados e vazios Canais urbanos ladeados por paredes, sem fenestração ou cruzamentos (becos, ruelas...) ... b) Grupo protagonista A ideia do espaço urbano como um teatro por onde desfilam tensões, conflitos e oposições assenta não só nas características da cidade capitalista e das suas contradições intrínsecas mas também nos grupos humanos necessários à sua sobrevivência mas que reúnem desigual capital social e cultural. Ao debruçar-se sobre a realidade urbana, o mito obriga-se à incorporação de uma estrutura em que a matriz espacial é invariavelmente a descrita atrás e em que os protagonistas são indivíduos sobre os quais recaem estereótipos rígidos já consolidados no inconsciente individual e colectivo. A condição é sempre baixa ou fragilizada pelos espaços que habitam, pela capacidade de consumo, pelas profissões que exercem ou pelas origens geográficas que revelam. Como os estereótipos já estão sedimentados, as estórias e os seus protagonistas mais não fazem que alimentar e aprofundar as ideias já consolidadas e reconstrui-las, integrando novos elementos decorrentes de mudanças societais e urbanas entretanto ocorridas. As minorias étnicas, a população rural, os imigrantes são até agora os alvos preferenciais desta forma de exclusão, por vezes, de grande intensidade e precisão nos resultados. Grupos População rural Imigrantes Toxicodependentes Sem-abrigo Minorias étnicas ... c) Estrutura narrativa A estória pode assumir a forma de narrativa factual, humorística ou piedosa. Narrativa factual Trata-se de um exercício de descrição de acontecimentos com um forte carácter objectivo e sem introduzir elementos que possam denunciar qualquer juízo de valor apriorístico. No fundo, a utilização desta técnica admite que se torne desnecessário o enriquecimento do conteúdo com alusões explícitas à condição ou à moral, dado que o texto, por si, já revela uma significativa autonomia na transmissão da mensagem. A utilização de frases feitas, chavões, ideias comuns, expressões banais, é prática corrente na elaboração destas narrativas. É o domínio do “Sabias que o(s)...?” ou “Sabias que no(a) ...?” Narrativa humorística A anedota é tomada como um processo leve e descontraído de contar uma estória mas também de, subliminarmente, fazer passar juízos de valor inerentes ao seu conteúdo. Esta forma narrativa encontra eco no que podemos designar como sociedade humorística, que se manifesta em amplas situações do quotidiano e com particular ênfase na publicidade, na informação e nas relações interpessoais, percebendo que o humor apresenta um contributo assinalável para que a mensagem chegue com êxito ao receptor, isto é, para que este a descodifique correctamente. Esta descodificação envolve sobretudo os significados que a mensagem acarreta, desvalorizando a estória em si. A sua inocência e o contributo para momentos descontraídos torna-a tolerada e até aceite socialmente embora, em casos extremos, seja censurada7. É o domínio do “Sabes aquela do ...?” ou “Sabes aquela que se passa em ...?”. Narrativa piedosa A expressão narrativa piedosa pretende sublinhar as estórias que apelam ao sentimento de piedade, dó ou caridade por parte do receptor, face a determinadas pessoas ou comunidades. Pertence ao extremo oposto da narrativa humorística apresentando um discurso falsamente moralista ou de sincera preocupação que muitas vezes não faz mais que reconhecer a diferença e a desigualdade espacial e social concedendo aos protagonistas um pouco de atenção, mas quase nunca reclamando mudanças no tratamento de que são/foram alvo. Os meios de comunicação social e a sua eficácia dramática reforçada pela imagem e pelos directos concedem a estas narrativas maior intensidade até como forma de reacção a situações moralmente inaceitáveis. É o domínio do “Vê lá que ...” ou “Então não é que ...” ou “Coitados daqueles que ...”. 4. Olhar Lisboa através dos rumores e mitos urbanos A cidade de Lisboa não foge à regra e também aí podemos encontrar uma enorme diversidade de rumores e mitos, relacionados com determinados espaços e/ou com determinados grupos sociais. Predominam, porventura, os rumores já que estes são mais facilmente criados em contextos específicos. 7 Recorde-se o caso do Eng.º Carlos Borrego, ex-ministro do Ambiente, demitido em resultado de uma anedota a propósito das mortes ocorridas numa unidade de hemodiálise em Évora. A maioria destas histórias resulta, pura e simplesmente, da transposição de rumores e mitos que se ouvem e difundem em inúmeras cidades do Mundo. Outras histórias, porém, apresentam particularidades que as associam a situações “exclusivas” de Lisboa (p.e., de um dado bairro da cidade). Mas, mesmo nestes casos, trata-se frequentemente da adaptação de relatos relativos a outras/outros cidades/territórios por introdução ou substituição de referências e detalhes que conferem especificidade e singularidade aos factos relatados. Ou seja, tal como em muitas outras situações, mobilizam-se mecanismos característicos da criação e difusão dos rumores e mitos urbanos: histórias clássicas, quase universais, são impregnadas de particularidades locais que asseguram, por um lado, uma maior aderência aos espaços ou aos grupos visados, e por outro lado, uma maior veracidade à situação relatada. Que espaços e grupos são “sujeitos” dos rumores e mitos urbanos em Lisboa? Casal Ventoso, Chelas, Bairro da Horta Nova, Casal dos Machados, Monsanto, Parque Eduardo VII, Intendente, Bairro Alto, Parque de estacionamento do Carrefour... são alguns dos espaços onde se desenrolam os rumores e os mitos da cidade de Lisboa. Ciganos, imigrantes africanos, toxicodependentes, prostitutas, seropositivos ou doentes de SIDA são os seus protagonistas. Enfim, de um modo geral, os mesmos protagonistas que encontramos em estórias contadas um pouco por todo o lado. Acontece, porém, que, na maioria dos casos, espaços e grupos surgem nos rumores e mitos fortemente imbricados sendo quase inevitável associar determinado espaço a um grupo específico ou vice-versa. Os exemplos que a seguir se apresentam de estórias relatadas por alguns jovens e adultos em referência a situações alegadamente verificadas em Lisboa são disso demonstrativos. Trata-se de relatos recolhidos por via oral, junto de indivíduos que vivem ou trabalham próximo daqueles espaços e grupos, e por via escrita, junto de um estudante de Arquitectura quando confrontado com uma questão relativa à integração dos migrantes rurais na Cidade de Lisboa. “Os ciganos do Bairro da Horta Nova, que viviam numas barracas, quando foram realojados nos apartamentos faziam fogueiras na sala. Porque era assim que faziam no acampamento... E também dizem que punham os burros nas varandas.” “Dizem que os africanos, do Casal dos Machados, que vêm de África, quando a Câmara lhes dá uma casa num prédio usam as caixas dos elevadores para pôr o lixo e enchem aquilo tudo, em vez de usarem o elevador”. “(...) Apropriam-se desses novos espaços caracterizando-os à sua maneira, cultural e socialmente. Destroem paredes, plantam beterrabas no seu novo quintal chamado de banheira, decoram as casas à sua maneira. Apropriam-se dos corredores de acesso e do vão de escadas e por vezes transpõem a porta da rua, reflectindo a sua imagem na cidade”. Estes rumores, para além de reflectirem as imagens que os habitantes da Cidade produzem, acabam por condicionar os seus comportamentos, quer no caso dos indivíduos convictos da veracidade destes relatos, quer mesmo dos mais incrédulos que, mesmo assim, vão disseminando as estórias, ao mesmo tempo que se questionam acerca do seu conteúdo. Por sua vez, os próprios protagonistas das estórias são levados a reagir e comportar-se de acordo com as imagens (neste caso, através de estórias e crenças) que acerca deles são construídas. 5. Considerações finais Esta comunicação, tendo sido preparada especificamente para o IV Congresso da Geografia Portuguesa, e não estando integrada num projecto de investigação, apresenta limitações, quer no campo teórico, quer no domínio empírico. Apesar disso (ou por isso mesmo), este poderá ser o primeiro passo de um trabalho mais aprofundado e sistematizado que se desenvolva a partir das pistas agora lançadas. A reflexão desenvolvida até ao momento permitiu chegar a alguns resultados que, apesar de ainda não estarem plenamente validados, se revelam interessantes no âmbito dos estudos de geografia social e urbana. Antes de mais, a evidência da existência de um conjunto de instrumentos, de cariz imaterial e informal que, de forma quase subliminar, contribuem para a emergência, a permanência ou o aprofundamento de fenómenos de fragmentação social e territorial. Por outro lado, importa salientar o contributo que a Geografia pode fornecer no sentido de dar visibilidade a esses mecanismos que interferem na organização e na percepção do espaço e na própria experiência/vivência urbana. À semelhança do que vem acontecendo noutros trabalhos, trata-se de alargar o âmbito dos trabalhos em Geografia para além das análises de fenómenos materiais. Porque o espaço - a Cidade - é também (e sobretudo?) produto de fenómenos “invisíveis”.