genero e pesquisa_1edicao - Professor Tito Sena

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genero e pesquisa_1edicao - Professor Tito Sena
GÊNERO E PESQUISA EM
PSICOLOGIA SOCIAL
MARA COELHO DE SOUZA LAGO
MARIA JURACY FILGUEIRAS TONELI
ADRIANO BEIRAS
MARIANA BARRETO VAVASSORI
RITA DE CÁSSIA FLORES MÜLLER
(Organizadores)
GÊNERO E PESQUISA EM
PSICOLOGIA SOCIAL
Casa do Psicólogo®
© 2008 Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade,
sem autorização por escrito dos editores.
1ª edição
2008
Editores
Ingo Bernd Güntert e Christiane Gradvohl Colas
Assistente Editorial
Aparecida Ferraz da Silva
Editoração Eletrônica e Capa
Sergio Gzeschnik
Revisão
Christiane Gradvohl Colas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gênero e pesquisa em psicologia social / organizadores Mara Coelho de Souza Lago... [et al.].
– São Paulo: Casa do Psicólogo®, 2008.
Outros organizadores: Maria Juracy Filgueiras Toneli, Adriano Beiras, Mariana Barreto
Vavassori, Rita de Cássia Flores Müller
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7396-614-5
1. Identidade de gênero 2. Psicologia social 3. Pesquisa avaliativa I. Lago, Mara Coelho de
Souza. II. Toneli, Maria Juracy Filgueiras. III. Beiras, Adriano. IV. Vavassori, Mariana Barreto.
V. Müller, Rita de Cássia Flores.
08-06974
CDD-302
Índices para catálogo sistemático:
1. Estudo de gênero e pesquisa : Psicologia social
302
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à
Casa Psi Livraria, Editora e Gráfica Ltda.
Rua Santo Antonio, 1010 Jardim México 13253-400 Itatiba/SP Brasil
Tel.: (11) 4524-6997 Site: www.casadopsicologo.com.br
Sumário
Prefácio .......................................................................................................................................................... 7
Psicologia e Estudos de Gênero – O caso da UFSC ................................................................................... 9
Mara Coelho de Souza Lago e Maria Juracy Filgueiras Toneli
Reflexões sobre gênero e psicologia no Brasil ........................................................................................ 19
Adriano Henrique Nuernberg
Sobre o gênero de gente que não quer mais viver .................................................................................. 33
Alan Índio Serrano
A psicanálise que faz gênero – reflexões sobre a diferenciação sexual ..................................................... 49
Edmilson Antônio Dias
Eu, tu, elas... in the ghetto: os sentidos do homoerotismo feminino sob a ótica do território ................. 61
Juliana Perucchi
Modos de vida de mulheres lésbicas em Florianópolis ............................................................................ 75
Rosane Maria de Godoy
Movimentações políticas e discursivas em torno da segmentação do mercado de consumo GLS ............ 91
Mário Ferreira Resende
Trajetórias de homossexuais na Ilha de Santa Catarina: temporalidades e espaços .................................. 97
Luiz Fernando Neves Córdova
Uma análise dos discursos sobre corpo e gênero contidos nas enciclopédias sexuais publicadas
no Brasil nas décadas de 1980 e 1990 .................................................................................................. 113
Tito Sena
De “revista da moça moderna”, a “revista da gatinha”: adolescência e sexualidade nas páginas
da revista Capricho (1952 – 2003) ....................................................................................................... 131
Raquel de Barros Pinto Miguel
Sexualidade como tema transversal nas escolas: da teoria à prática ..................................................... 145
Carolina Andaló Fava
Jovens estudantes de Florianópolis falam de adolescência, gênero e Aids ............................................. 157
Patrícia de Oliveira Silva Pereira Mendes
Adolescentes pais e seus pais ................................................................................................................. 169
Renata Orlandi
O velho atualizado, o novo reinventado: homens, masculinidade tradicional hegemônica
e relações amorosas .............................................................................................................................. 183
Zuleica Pretto
O caminho da judicialização e a produção de subjetividade da criança vítima de incesto:
uma interlocução e/ou uma contradição ............................................................................................... 197
Sônia Biehler da Rosa
Fazendo ponto: considerações sobre falas e trajetórias de adolescentes em situação de exploração
sexual ................................................................................................................................................... 209
Adriana Poci Palumbo Rodrigues
A relação entre pesquisadora, sujeitos e comunidade: encontros ao som de anthropological blues ....... 227
Adriana Rodrigues
Gênero e trabalho: considerações sobre a organização/divisão sexual do trabalho em um
assentamento coletivo do MST ............................................................................................................. 243
Giovana Ilka Jacinto Salvaro
Agricultores e agricultoras familiares vivenciando mudanças e permanências na conversão para
agricultura orgânica .............................................................................................................................. 253
Aline Drews
Mulheres em ocupações tradicionalmente masculinas: sentidos do trabalho ........................................ 261
Marly Terezinha Perrelli
Autoras e autores ....................................................................................................................................... 273
Organizadores ........................................................................................................................................... 277
Prefácio
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argem, palavra singular, sentidos vários a engravidar o imaginário e ecoar lembranças distintas, quiçá distantes. Margem beira a acolher o corpo que se posta a admirar as
águas do rio. Margem espaço reivindicado pela folha de papel que se vê preenchida e sufocada
por letras e mais letras, intransigentes, impertinentes. Margem contorno, limite entre o dentro e o fora, entre o que pertence e não pertence, demarcação de territorialidades
arbitrariamente produzidas. Margem intolerância, portanto, a contrastar com outro sentido
possível na referência ao erro, quando se torna então seu oposto, margem de tolerância.
Diferença ad-metida, consentida, acolhida.
Com esses múltiplos sentidos da palavra margem – alguns entre uma infinidade de possíveis – inicio a apresentação desta coletânea que é um importante registro do percurso
iniciado há mais de dez anos pelas colegas e amigas Mara Coelho de Souza Lago e Maria
Juracy Filgueiras Toneli, fundadoras do núcleo de pesquisa Margens. Trabalhamos juntas no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, na mesma área de concentração, “Práticas Sociais e Constituição do Sujeito”. Parceria distanciada em razão das linhas de pesquisa
e interesses distintos, porém entretecida na cumplicidade com as lutas políticas e as preocupações ético-estéticas que vimos travando.
Lutas e preocupações que se opõem a determinadas margens, a limites historicamente
produzidos que aviltam a polissemia da vida e negam as infinitas possibilidades de existência
singular e coletiva. Oposição ao que se naturaliza e é descolado de sua condição inexoravelmente social. Lutas e preocupações, portanto, contra margens, contra fossos a separar o
que pode vir a conviver, o que pode vir a ser diferente, diferença.
Há, porém, junto com a oposição a determinadas margens, lutas e preocupações que se
lançam na demarcação de margens outras, de limites que se apresentam como oposição a
violências, a intransigências e intolerâncias várias. Margens reconhecidas então, uma vez
afirmadas e negadas, em sua positividade, a provocar a produção de modos de ser e estar com
outros em que a alteridade é reconhecida como condição para a assunção de um lugar para si.
Modos de ser e estar, modos de vida, apresentam-se como temática das investigações do
Margens, e seus movimentos em decorrência das transformações urbanas são apresentados
em alguns capítulos. Somam-se aos modos de vida, às escolhas e às preferências não
hegemônicas em relação à sexualidade, a lugares sociais de saber/não saber, de poder em suas
intrincadas tramas, temáticas que permitem às professoras – e aos autores que as acompanham nessa coletânea – problematizar práticas sociais e a constituição de sujeitos em posições
de gênero, classe social, etnia e gerações.
Interessante que a posição de autores que os convidados das colegas Mara e Juracy ora
ocupam foi constituída com a valiosa contribuição das organizadoras, posto que orientaram
seus relatórios de iniciação científica e/ou suas dissertações e teses. Parceria cunhada no
tempo e no espaço da formação acadêmica, nos encontros e nas discussões travados em
disciplinas, nas seções de orientação, nas mesas do Café do CFH. Convívio profícuo a clamar
pelo reencontro, objetivado no evento em que os autores/egressos comemoraram os dez anos
do Margens, e que resultou nesta coletânea. Experiência a ser perscrutada, posto que muito
nos ensina sobre relações orientador/orientados, sobre possibilidades de convivência para
além das exigências acadêmicas, das burocracias que fossilizam práticas sociais e tentam
inviabilizar a emergência de encontros outros.
A diversidade teórica e metodológica é característica do que aqui se apresenta. Foucault,
Freud, Lacan, Vygotski, teóricas feministas, várias referências alicerçam as pesquisas relatadas nos capítulos deste livro e que expressam a interdisciplinaridade pretendida. Imagens,
por sua vez, vêm se juntar às palavras, narradas e escritas, constituindo um vasto material de
registro de informações coletados por meio de procedimentos igualmente variados, cuja
análise baseou-se em estratégias também diversas. Não poderia ser de outro modo: afinal a
produção da diferença é a problemática central deste conjunto de trabalhos.
Com a leitura dos capítulos, os leitores poderão conhecer uma parte significativa do que vem
sendo produzido no Margens. Há muito mais: relatórios, artigos, capítulos de livros, livros,
enfim, uma relevante produção que problematiza margens naturalizadas e que se apresentam
como justificativa para intolerâncias várias. Margens a serem, portanto, transpostas, negadas,
apagadas, em um movimento que autores e autoras participam e dão sua relevante contribuição.
O convite à leitura, consoante com o que disponibilizam os autores é portanto também
um convite à luta em prol da negação de algumas margens e da fundação de outras, de
margens que possam banir as violências em prol da vida. Vida plural, em suas possibilidades
(re)(des)conhecidas, no anúncio do que pode vir a ser. Compartilhando o compromisso com
essa luta, sinto-me honrada em prefaciar esta coletânea, registro do importante trabalho das
colegas Mara e Juracy e dos seus ex-alunos, também colegas.
Florianópolis, julho de 2007.
Andréa Vieira Zanella.
Psicologia e Estudos de Gênero –
O caso da UFSC
Mara Coelho de Souza Lago
Maria Juracy Filgueiras Toneli
O Núcleo de Pesquisa Modos de Vida, Família e Relações de Gênero – MARGENS foi
criado em 1996, tendo como componentes as professoras Nadir Zago, Maria Juracy Toneli e
Mara Coelho de Souza Lago, com seus grupos de pesquisa que envolviam graduandos bolsistas de iniciação científica e orientandos do programa de Pós-graduação em Psicologia, cujo
mestrado foi implantado na UFSC em 1995. As coordenadoras do grupo de pesquisa desenvolviam projetos próprios, integrando-se nos temas investigados e nos métodos de investigação
utilizados. Posteriormente a doutora Nadir Zago transferiu-se para o Centro de Educação da
UFSC com sua equipe, e o grupo tomou as dimensões que tem hoje, expandindo-se à medida
que agrega novos orientandos (com a criação do doutorado no PPGP) e se abre para outras
parcerias e novos projetos de pesquisa.
A idéia deste livro foi gestada ao longo dos anos de trabalho do MARGENS e tomou
forma com o encontro dos egressos do Programa de Pós-graduação em Psicologia orientados
por suas coordenadoras, em comemoração dos dez anos do núcleo. Esse encontro, realizado
em 16 de setembro de 2006, configurou um momento rico de trocas e possibilitou a
visualização da produção do MARGENS no que diz respeito a dissertações e teses. Dos
trabalhos ali apresentados, 19 compõem esta coletânea.
A trajetória do MARGENS se insere em um contexto de discussões sobre os estudos de
gênero que se consolidou na UFSC e congrega um número expressivo de pesquisadores
reunidos em núcleos, em diferentes centros de ensino dessa instituição. Responsáveis por
projetos de pesquisa e extensão, bem como por disciplinas em diversas áreas, esses núcleos
dão suporte, entre outras atividades, aos Encontros Internacionais Fazendo Gênero, realizados bianualmente na UFSC desde 1994, à Revista Estudos Feministas e à área de concentração
“Estudos de Gênero” do Programa de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da
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UFSC (PDICH). Essa equipe foi incorporando acadêmicos de outras instituições, como a
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e, por meio dos trabalhos de orientação
que desenvolvem suas componentes, contribui para a reflexão e a divulgação dos estudos de
gênero por todo o estado de Santa Catarina, a região sul e outros estados do país. Assim, nos
estudos de gênero na UFSC, tem-se vivenciado uma continuada e rica experiência de
interdisciplinaridade que ultrapassa os limites acadêmicos, buscando vínculos com os movimentos sociais. Essa experiência culminou com a criação, em 2005, do Instituto de Estudos
de Gênero – IEG, que congrega todas essas atividades, por meio de núcleos de pesquisa (da
UFSC, UDESC e outras IES do estado), pesquisadores, professores e alunos dos vários níveis
de ensino dessas instituições.
Além disso, em 2006 foi retomado o Grupo de Trabalho sobre Gênero no âmbito do XI
Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio Científico da Associação Nacional de Pesquisa e Pósgraduação em Psicologia (ANPEPP), sob a coordenação da professora Mara Coelho de Souza
Lago. Essa iniciativa ganhou fôlego a partir da pesquisa desenvolvida por Adriano Nuernberg1,
orientada por Mara Lago e pela antropóloga Miriam Pillar Grossi, no Programa de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, sobre os estudos de gênero na psicologia
social brasileira.
Nesse contexto de trabalho interdisciplinar, tem-se tentado refletir sobre o lugar da
psicologia nos estudos de gênero, a partir das experiências de pesquisa, ensino, orientação e
extensão desenvolvidas no MARGENS, que participa da área de concentração Práticas Sociais e Constituição do Sujeito, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, promovendo
a integração dos alunos nos vários níveis de ensino e com outros cursos e instituições.
As pesquisas desenvolvidas por Mara Lago no núcleo tiveram como tema central o estudo das trajetórias de sujeitos no processo de urbanização de ilha de Santa Catarina, a partir
de uma primeira pesquisa em localidade, com relatos de memória de muitos de seus velhos
habitantes (a primeira geração de informantes), sobre a transformação de seus espaços de
vida e trabalho em balneário de veraneio. Após a elaboração de tese de doutoramento,
pesquisando a segunda e a terceira gerações de descendentes dos açorianos que povoaram o
litoral no séc. XVIII em várias localidades de Ilha2 , e já com a participação de auxiliares de
pesquisa, bolsistas IC/ CNPq, foram investigados grupos específicos de mulheres, de jovens,
vivenciando a urbanização de todos os espaços da ilha, em função da atividade turística e da
expansão da cidade sobre as praias. Esses trabalhos já tinham como tema fundamental a
questão de gênero, colocada desde as primeiras idas a campo pelos próprios sujeitos entrevistados. Foram produzidos vários relatórios de pesquisa, vasto material fotográfico relacionado
à própria utilização da etnografia como método de pesquisa e também um vídeo etnográfico
1
Nuernberg, Adriano Henrique. Gênero no Contexto da Produção Científica Brasileira em Psicologia. Tese defendida no Programa
de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina – Área de Concentração Estudos de
Gênero. Florianópolis, 2005.
2
Lago, Mara Coelho de Souza. Modos de Vida e Identidade – sujeitos no processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina.
Florianópolis, Ed. da UFSC, 1996.
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que se mostrou um excelente instrumento de retorno dos trabalhos aos sujeitos que os possibilitaram, além de tornar viável uma mais eficiente e ampla difusão das pesquisas realizadas,
na academia e fora dela.
Essas pesquisas, que se referiam muito estreitamente a questões do trabalho, das relações
familiares, da escolaridade como exigência da urbanização dos espaços de vida dos sujeitos
entrevistados, de suas relações com as transformações desses espaços, a convivência com
novas tecnologias, novos valores e ideologias, estiveram atentas, além da diferenciação de
classes sociais, às questões culturais das origens étnicas dos sujeitos. Elas tiveram continuidade nos espaços da Região Metropolitana de Florianópolis, envolvendo municípios da área de
conurbação que se expande em torno da capital, cuja colonização teve origem alemã, e que
também faziam a passagem do rural ao urbano. O relatório produzido com a primeira pesquisa, realizada em Biguaçu e Antônio Carlos, fez parte de um projeto maior: “Gênero,
Gerações e Subjetividades”, envolvendo também os projetos de orientandos no PPGP e no
PDICH e teve a duração de quatro anos.
Em 2005, foi proposto um novo projeto, dando continuidade às pesquisas de orientadores
e orientandos nos diferentes níveis de ensino “Sujeitos de gênero, gerações, etnia, sexualidade, trabalho”, que deverá produzir novos estudos sobre a região sul do país, com enfoque
especial nas relações de gênero.
A partir de estudo sobre masculinidade e o intercâmbio do trabalho no lar entre casal de
baixa renda em bairro periférico de Florianópolis3 , foi desenvolvida no MARGENS por
Maria Juracy Toneli, uma linha de pesquisa voltada para o estudo das masculinidades, envolvendo alunos de graduação em projetos de pesquisa e extensão, além de mestrado do PPGP
e, mais recentemente, doutorandos. Foram produzidos inúmeros relatórios e dissertações e
publicados muitos artigos em periódicos científicos e coletâneas nacionais e internacionais.
As pesquisas realizadas permitiram o aprofundamento da compreensão de questões relacionadas à vida sexual e reprodutiva, centrando-se em temáticas como: paternidade e
masculinidade, sexualidade na adolescência, relações amorosas entre jovens universitários,
organizações familiares contemporâneas, homens e saúde, e, mais recentemente, violência e
masculinidades. O esforço despendido na direção da investigação de populações masculinas
tem se mostrado frutífero, na medida em que permite a compreensão desses universos, tanto
no que diz respeito aos aspectos comportamentais, quanto às suas dimensões simbólicas. A
articulação com outros grupos de pesquisa que abordam essas temáticas vem sendo estreitada por meio de projetos em parceria com outros programas de pós-graduação em Psicologia
(UFPE, UFES, UFPA e UnB), bem como com organizações não governamentais, como o
Instituto PAPAI/PE. A relação com as políticas públicas e com os movimentos sociais tem sido
intensificada nos últimos anos, por meio de projetos de pesquisa e de extensão desenvolvidos
em unidades básicas de saúde, em escolas, em comunidades de baixa renda do entorno da
3
Siqueira, Maria Juracy Toneli. A Constituição do Sujeito e a Divisão Sexual do Trabalho na Família: análise do caso de um homem
dono-de-casa. Tese de doutoramento defendida no Instituto de Psicologia da Universidade Estadual de São Paulo. São Paulo, 1997.
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UFSC, no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, e outras instituições como a Delegacia
da Mulher4 .
As atividades desenvolvidas no MARGENS, voltadas ao objetivo de realizar estudos
sobre práticas sociais, modos de vida e constituição de sujeitos (em posições de gênero,
classe, etnia, geração) têm também como objetivo fundamental a integração de professoras e
alunos de graduação e pós-graduação nos âmbitos da pesquisa, do ensino e da extensão. Esse
objetivo tem sido alcançado por meio da discussão teórico-metodológica conjunta dos projetos de pesquisa, da participação integrada em disciplinas e orientação, na elaboração de
trabalhos conjuntos para apresentação em eventos científicos, na monitoria em encontros
acadêmicos realizados na UFSC, na participação dos alunos de pós como estagiários docentes em disciplinas ministradas pelas orientadoras na graduação, especialmente aquelas que
envolvem os estudos de gênero, dentre outras atividades.
As teorias que fundamentam as reflexões e análises, marcando a interdisciplinaridade
dos estudos vão da psicanálise freudo-lacaniana à vasta contribuição das teóricas feministas
com ênfase em autoras/es pós-estruturalistas e especial atenção às contribuições de Foucault.
Assim, a psicologia é considerada ciência eminentemente social e alguns trabalhos utilizam
como fundamento a psicologia histórico-cultural. As pesquisas buscam aportes também em
literatura, ciências sociais humanas (antropologia, sociologia, história especialmente) e crítica literária. Ou seja, é na interface com outras disciplinas que se caracterizam teoricamente
os trabalhos desenvolvidos.
Com relação aos métodos de pesquisa, são privilegiados os qualitativos, em alguns
casos combinados com técnicas quantitativas, com a utilização preferencial de entrevistas semi-estruturadas. Tem destaque também nessa linha de investigação a realização de
pesquisas etnográficas, por entrevistas livres, gravadas (e filmadas, em alguns casos),
acompanhadas de observações e contatos repetidos com os ambientes e sujeitos das pesquisas, secundadas pelo registro dessas experiências de contatos e diálogos em diários de
campo. Esses trabalhos que usam, na tradição etnográfica, amplo material fotográfico e
de mapas, entre outros, têm derivado para a realização de vídeos etnográficos, possibilitando uma interação e retorno maior entre pesquisas e sujeitos/localidades pesquisadas.
O trabalho com grupos focais também vem sendo utilizado em algumas das pesquisas.
Outros projetos utilizam pesquisa documental (bibliográfica e na mídia virtual) e são
desenvolvidos por meio do recurso à análise do discurso (Michel Foucault, Michel
Pêcheux, Eni Orlandi).
Os artigos publicados nesta coletânea, produzidos por mestres e doutores orientados
pelas coordenadoras do MARGENS, falam da trajetória acadêmica desse núcleo de pesquisa,
da diversidade de interesses que tem caracterizado os trabalhos desenvolvidos e também da
interdisciplinaridade necessária aos estudos de gênero e às pesquisas em psicologia social.
4
A grande maioria dos projetos desenvolvidos conta com auxílio institucional como CNPq, UFSC, FNUAP e Ministério da Saúde, na
forma de auxílio à pesquisa e à extensão, bem como por meio de bolsas PQ, IC, PIBIC e de Extensão.
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No primeiro artigo, Adriano Nuermberg discorre sobre o tema que desenvolveu em sua
tese de doutoramento, partindo de uma reflexão sobre os estudos de gênero na psicologia
brasileira, ligada mais estreitamente ao campo da psicologia social. Apresenta e comentam
trabalhos divulgados em eventos de associações de psicologia como a Associação Brasileira
de Psicologia Social – ABRAPSO, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Psicologia – ANPEPP, e a Sociedade Brasileira de Psicologia – SBP, assim como os estudos
sobre mulheres e gênero desenvolvidos nos programas da Fundação Carlos Chagas – FCC,
através de publicações dessas instituições. Conclui seu artigo enfatizando o fato de ter sido o
terreno da psicologia social aquele no qual os estudos de gênero puderam emergir pelas suas
alianças com as teorias críticas, que valorizam os contextos sociais e as dimensões subjetivas
e ativas de sujeitos culturais.
Alan Índio Serrano, tendo desenvolvido um estudo epidemiológico sobre o suicídio na
contemporaneidade, comparando discursos sociológicos e psiquiátricos sobre o tema, discute em seu artigo as diferenças entre suicídios de homens e mulheres e procura refletir sobre as
variações geracionais e de gênero, refletidas nas estatísticas sobre mortes auto-infringidas.
No MARGENS foram realizadas várias investigações sobre homossexualidades, tanto
centradas em reflexões referentes a questões teóricas, como estudos sobre modos de vida de
homens e mulheres homossexuais em Florianópolis. Os textos de Edmilson Antônio Dias,
Rosane Godoy e Juliana Peruchi referem-se a pesquisas que se ocupam da homossexualidade.
No artigo que escreveu para essa coletânea, Edmilson Antônio Dias retoma reflexões
desenvolvidas na realização de sua dissertação de mestrado, em que analisou os “relatos do
imaginário” de mulheres homossexuais em Florianópolis, elaborando o que chamou de uma
“abordagem possível da homossexualidade feminina a partir de uma leitura de Freud e Lacan”.
Faz um apanhado de críticas elaboradas por psicanalistas feministas, pró e contra a psicanálise, em suas concepções da centralidade da diferenciação sexual na organização das estruturas
psíquicas. A seguir, discorre sobre os complexos de Édipo e de castração em Freud e sobre o
processo de sexuação em Lacan, para se contrapor às críticas de algumas psicanalistas feministas, ligadas à corrente das relações de objeto, ao primado do falo na análise freudo-lacaniana.
O artigo de Rosane Godoy fala do estudo que desenvolveu na grande Florianópolis, com
o objetivo de tornar visíveis os estilos de vida de mulheres homossexuais. Suas entrevistadas,
de diferentes procedências socioeconômicas, com níveis diferenciados de escolaridade e idades variadas, relataram suas experiências relacionais, nas famílias, no trabalho, seus locais de
encontros e sociabilidade, as relações amorosas, seus ideais de conjugalidade. Tendo conseguido uma boa interação dialógica com os sujeitos da pesquisa, o artigo de Rosane reflete a
forma como as mulheres entrevistadas lhe revelaram seus modos e estilos de vida em
Florianópolis.
O trabalho de Juliana Perucchi, fruto de sua dissertação de mestrado, na qual investigou
as relações sociais engendradas por mulheres que se relacionam afetiva e sexualmente com
outras mulheres e freqüentam um espaço reconhecido socialmente como gueto GLSs em
Florianópolis, privilegia a abordagem dos sentidos atribuídos às relações que se estabelecem
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nesse espaço que se revela como constructo sociológico. O estudo destaca a territorialidade
itinerante, o trânsito e as posições dos sujeitos em redes de sociabilidades, não apenas na
dimensão física do espaço, ainda que tal dimensão seja fundamental para a delimitação de
fronteiras do gueto, mas fundamentalmente como espaço simbólico.
O artigo de Luis Fernando Córdova relata aspectos da pesquisa que desenvolveu entre
homossexuais de três gerações em Florianópolis, buscando analisar suas vivências nos/dos
espaços da cidade em diferentes tempos. Os homens e mulheres entrevistados pelo pesquisador construíram, em seus relatos, os espaços de sociabilidade de gay e lésbica que se foram
constituindo paralelos ao processo de urbanização que se acelerou em Florianópolis nas
últimas décadas do século XX, em função do desenvolvimento turístico da ilha de Santa
Catarina, entre outros múltiplos fatores. No seu envolvimento com a cidade onde vive, Luis
Fernando procurou descrever os mapas que seus sujeitos foram desenhando nos encontros
intersubjetivos das entrevistas, entrelaçando temporalidades e espacialidades, buscando situar os “pedaços” de homossociabilidade que se deslocam dinamicamente pela ilha e pelo
continente fronteiro.
Mário Ferreira Resende discorre sobre o comércio voltado para o consumo gay, realizado em sua dissertação de mestrado, uma análise de discurso fundada nas concepções de
Michel Foucault, tendo como corpus reportagens de revistas disponibilizadas na internet que
apontam o universo GLS como segmento de consumo. Ressaltando a crescente visibilidade
dos homossexuais na mídia, especialmente relacionada ao seu potencial como consumidores
de produtos materiais, culturais e de lazer, o autor chega a níveis micropolíticos de análise,
criticando o aparecimento desses discursos, que recortam uma população marginal, para
investi-la de interesse. Baseado também em autores como Deleuze, Guatarri, Rolnik e Sousa,
o autor suspeita dessa recaptura dos fluxos de desterritorialização e dessa valorização de uma
homossexualidade circunscrita em referências palatáveis, perguntando-se se elas não cumprem justamente a função de operar o apagamento da questão política homossexual.
Os artigos de Tito Sena e Raquel Miguel discorrem sobre gênero e sexualidade, realizando análises documentais. Tito Sena toma como corpus de análise enciclopédias sexuais, vendidas
como fascículos em bancas de revistas, enquanto Raquel Miguel faz análise de cartas de
leitoras da revista Capricho.
O artigo de Tito Sena apresenta a análise documental, utilizando perspectivas teóricas e
metodológicas de Michel Foucault, dos discursos sobre corpo e gênero em enciclopédias
sexuais publicadas no Brasil nas décadas de 1980 e 90. Parte de concepções de Foucault
acerca dos discursos sobre corpo, refletindo também sobre as apropriações de Foucault pelos
estudos de gênero, para se deter sobre esses temas, nas formas como foram apresentados nas
publicações que constituíram o corpus de suas análises.
Raquel Miguel aborda as diferentes concepções de adolescência, sexualidade e gênero
presentes na revista Capricho. Examinando edições ao longo de algumas décadas (1952 –
2003), privilegiou a análise da seção de cartas das leitoras, especialmente as perguntas sobre
sexualidade enviadas e suas respectivas respostas. O artigo destaca a visão da adolescência
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como sendo construída cultural e historicamente, assim como a sexualidade. A análise do
discurso veiculado pela revista destinada ao público adolescente, especialmente do sexo feminino, possibilita acompanhar algumas transformações em relação à adolescência e à
sexualidade ao longo dos anos e refletir sobre o papel da mídia na construção/sustentação do
discurso dominante.
Os artigos seguintes tratam ainda de questões referentes à sexualidade, em enfoques
voltados para a educação, com gerações de crianças e jovens. Carolina Andaló discute a
transversalidade do tema da sexualidade no âmbito da rede pública de ensino. Seu objetivo
foi investigar como vinha sendo empreendida a formação de educadores na área da Educação Sexual nas escolas municipais de Florianópolis. O material coletado por meio de entrevistas
semi-estruturadas com a responsável pela organização dos cursos oferecidos pela Secretaria
Municipal de Educação (SME), com os organizadores da formação oferecida na gestão anterior e com cinco professoras e duas especialistas, de cinco escolas de diferentes regiões de
Florianópolis, que participaram dos cursos oferecidos em 2002, permitiu constatar que os
entraves à implementação da educação sexual como propõem os PCNs (Parâmetros
Curriculares Nacionais), entre outros aspectos, relacionam-se à estrutura do sistema público
de ensino que fragmenta as disciplinas e não permite espaço e tempo para a reflexão e o
intercâmbio entre os educadores.
Patrícia Pereira Mendes relata a pesquisa que desenvolveu com adolescentes de três
escolas de Florianópolis sobre as formas como significavam os temas adolescência, gênero e
AIDS. Seu artigo detalha a descrição das estratégias metodológicas utilizadas na pesquisa,
questionários e grupos focais. A autora analisa também, em seu texto, as diferenças encontradas nos significados atribuídos aos temas pesquisados pelos jovens que participaram de seu
estudo, oriundos de diferentes camadas sociais, com experiências de vida diferenciadas.
Os dois artigos que seguem referem-se aos estudos de masculinidades, investigando também os temas da paternidade e conjugalidade.
O trabalho de Renata Orlandi, oriundo de dissertação de mestrado, teve como propósito a identificação de significados referentes ao cuidado e à paternidade que circulam no
discurso familiar e engendram as significações produzidas pelos sujeitos sobre a experiência
de ser pai. Tendo como grupo investigado adolescentes pais, Renata apresenta duas perspectivas inter-relacionadas do discurso por eles elaborado sobre suas famílias de origem: a família
de origem como referência face ao processo de constituição do adolescente face à paternidade e o lugar de seus respectivos familiares como rede de apoio na transição para a parentalidade.
Chama a atenção para a relevância de propostas metodológicas voltadas para o estudo sobre
transições familiares decorrentes do nascimento de filhos contemplarem a rede de apoio das
famílias investigadas, uma vez que se mostra fundamental para que os adolescentes exerçam
sua paternidade de forma mais segura e tranqüila.
O texto de Zuleica Pretto, também originado de sua dissertação de mestrado que investigou a significação de amor segundo homens jovens universitários, parte do pressuposto
central de que há uma participação considerável de modos de comportamento culturais
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hegemônicos que servem como mediadores nas vivências e concepções amorosas apresentadas por homens jovens. A complexidade da questão amorosa é abordada em seu caráter
histórico e cultural, à luz dos estudos de gênero e masculinidades. Por meio das entrevistas,
Zuleica discute a evidência de que, muitas vezes, o desejo e o movimento vivido dos sujeitos
se diferenciavam, caracterizando uma contradição dialética, na qual diversas e antagônicas
mediações marcavam o cotidiano e o desejo dos jovens pesquisados.
Em outro tópico da coletânea, os textos de Sônia B. da Rosa e Adriana Palumbo Rodrigues
discutem as questões de violência e abuso contra crianças e adolescentes, enquanto Adriana
Rodrigues analisa os significados da violência institucional sofrida por agricultores do Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST).
Sonia B. da Rosa realizou pesquisa sobre casos de abuso sexual intrafamiliar de crianças,
procedendo à análise dos discursos de julgadores, em acórdãos da jurisprudência do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina. Em seu artigo, problematiza a condição de crianças que, submetidas à violência do incesto, são levadas a percorrer os caminhos da judicialização, através de
discursos em que não são consideradas, ou tratadas, como sujeitos de direito, apesar da
moderna legislação brasileira de proteção à criança e ao adolescente (ECA).
Adriana Palumbo Rodrigues, tratando também do tema da violência e dos abusos físicos
e sexuais contra crianças e adolescentes, realizou pesquisa com jovens que vivenciavam a
exploração sexual em Lages, município de Santa Catarina, e que já haviam sido submetidas/
os a processos de institucionalização, via Conselho Tutelar local e Programa Sentinela. Utilizando método etnográfico, entrevistou 12 moças e um rapaz que vivenciavam as práticas da
prostituição na cidade serrana, e que lhe fizeram relatos de suas trajetórias desde a infância,
com as famílias de origem, as passagens pelas instituições educacionais e tutelares, até a
prática da prostituição. No artigo desta coletânea, Adriana retoma os relatos de duas das
adolescentes entrevistadas, para refletir sobre questões que se impuseram à sua consideração
no trabalho produzido.
O trabalho de Adriana Rodrigues, além de tratar de questões de gênero, dedicou-se a
refletir sobre os relatos da violência sofrida por famílias dos sem-terra do Paraná, submetidas
a recorrentes processos de reintegração de posse, perpetrados pelos governos do estado com
uso do aparato policial. A autora fala de sua trajetória de pesquisa e analisa os relatos que lhe
fizeram homens e mulheres de diferentes gerações sobre os sofrimentos vivenciados até chegarem “em cima do lote”.
Junto ao artigo de Adriana Rodrigues, os dois textos que se seguem tratam também de
temas referentes ao mundo rural e ao trabalho agrícola.
O trabalho de Giovana Salvaro reflete sobre as questões de gênero ligadas em especial à
divisão sexual do trabalho em um assentamento coletivo do MST em Santa Catarina, analisando as formas coletivas de produção agrícola, marcadas pela criação de setores, de núcleos
de trabalho e pelo estabelecimento de jornadas diferenciadas para homens e mulheres. Reflete sobre a construção desse processo, mediado pelas diretrizes do Movimento, pelas
singularidades do grupo e das mulheres e homens que o constituem.
PSICOLOGIA
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Aline Drews também se debruça sobre o tema do trabalho rural, analisando um grupo de
agricultores familiares que fez o percurso entre o cultivo tradicional de produtos alimentares, para a lavoura de produtos orgânicos, Seus sujeitos foram proprietários de terras
transformadas em parte de um Parque Estadual de Preservação Ambiental, em município da
região metropolitana de Florianópolis. A autora trata dos temas da agricultura familiar e da
campesinidade, refletindo também sobre meio ambiente, gênero, gerações e etnia.
Finalmente, temos o artigo de Marly Perrelli, referente ao estudo sobre o trabalho de
mulheres em uma unidade da Petrobras em práticas laborais, consideradas redutos profissionais masculinos altamente mediados pelo uso de tecnologia avançada. A intenção da pesquisa
foi a de analisar as relações interpessoais e intrapessoais com o trabalho sob a ótica de gênero. Os dados coletados por meio de entrevistas individuais, semi-estruturadas, submetidas à
análise de conteúdo temática, indicam o crescimento do número de mulheres inseridas em
cargos tradicionalmente masculinos na Petrobras e demonstram que elementos como força
física passam a não ser mais determinantes para o acesso das mulheres em tarefas que agora
contam com o auxílio da tecnologia para superá-la. Constata-se também o acréscimo de
outra jornada de trabalho, pois, além do trabalho formal e daquele exercido no âmbito
doméstico, essas mulheres dedicam-se a outras atividades profissionais, como: a abertura de
seu próprio negócio, trabalhos em outras empresas ou prestação de serviços gratuitos na
comunidade. É relevante destacar o papel facilitador da constituição de 1988 no processo de
inclusão mais igualitária das mulheres no mundo do trabalho apontando a necessidade de se
promoverem esforços na construção de igualdades de gênero. Sendo característica predominante das mulheres nessa década, a conquista da oportunidade de trabalho, os informantes
destacaram como fator determinante dessa condição, a “competência”.
Concluindo este histórico do MARGENS e apresentação de alguns dos estudos produzidos em seus dez anos de trabalho, podemos falar da imensa satisfação que este balanço nos
propiciou, numa espécie de rememoração conjunta de todas essas jornadas de troca, produção e convívio, a parte mais prazerosa do trabalho acadêmico.
Na avaliação mais distanciada dos artigos produzidos a partir das dissertações e teses
que orientamos, podemos confessar o sentimento de prazer e realização originados da organização desta coletânea, em conjunto com novos orientandos.
Reflexões sobre gênero
e psicologia no Brasil1
Adriano Henrique Nuernberg
INTRODUÇÃO
O
estudo de temas que hoje se enquadram – resguardado o olhar feminista – nos
estudos de gênero, como os relacionados às diferenças sexuais, existe na psicologia há quase
um século. O campo da “psicologia diferencial” historicamente foi o que abrigou as questões
psicológicas que envolviam a raça e o sexo, em razão da dificuldade que representava à
perspectiva experimental esse tipo de variável (Unger, 1993). O pressuposto biológico preponderou na maioria das explicações psicológicas desse campo, naturalizando as diferenças
constitutivas dos seres humanos.
Segundo Nogueira (2001), a partir da constatação científica da igualdade das capacidades intelectuais entre homens e mulheres, passou-se a buscar na identificação dos
temperamentos masculinos e femininos novas possibilidades de se justificar a vigente divisão
sexual do trabalho. Assim, ao mesmo tempo em que características subjetivas como a
afetividade e a docilidade foram associadas às mulheres, vinculou-se a agressividade e a
racionalidade aos homens, legitimando a distinção de duas formas de ser e agir conforme o
sexo biológico. Para tanto, aquilo que na realidade era efeito desses processos de dominação
foi tomado pela psicologia e demais ciências como razão principal da restrição do trabalho
da mulher ao universo doméstico e familiar2.
1
Esse artigo foi produzido a partir da tese de doutorado defendida pelo autor no Programa de Doutorado Interdisciplinar em
Ciências Humanas da UFSC em 2005, intitulada Gênero no contexto da produção científica brasileira em psicologia, a qual contou com
a orientação da professora doutora Mara Coelho de Souza Lago e co-orientação da professora doutora Miriam Pillar Grossi.
2
Do mesmo modo que o sexismo constituiu a história científica da psicologia, o racismo também pautou diversas elaborações
teóricas e técnicas desenvolvidas na psicologia e em outras ciências desde o século XIX, como demonstra Masiero (2002).
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Até a metade do século XX essa perspectiva predominou, sendo utilizada para explicar
por que apenas os homens assumiam os cargos de maior importância, responsabilidade, poder e status social, no contexto público de atuação dos meios urbanos industrializados. Nesse
período, frente à necessidade de se restabelecer a ordem social que a Segunda Guerra modificara em função da ocupação dos cargos operários pelas mulheres, criou-se toda uma ideologia
pautada por fortes apelos ao confinamento feminino na esfera privada, à qual a psicologia
serviu de suporte científico legitimador (Merisse, 1996). O argumento principal era o de que
a saúde mental das crianças dependia da presença materna em tempo integral, sendo o afastamento da mulher em função do trabalho um problema social gerador de distúrbios
psicológicos infantis. Em resposta, a psicóloga clínica feminista Betty Friedan3, publicou durante a década de 1960 estudos nos quais fez críticas aos mitos da femilinidade da cultura
americana4 no pós-guerra, para ela, gerados apenas para justificar a necessidade do isolamento da mulher na esfera doméstica (Amâncio, 2001).
De acordo com Amâncio (ibid), as críticas da psicologia clínica de inspiração feminista à
dominação masculina, influenciadas pelos escritos de Friedan, foram amplamente divulgadas,
através de revistas voltadas à publicação de estudos de mulheres, durante a década de 1960.
Com base nessas críticas, foi publicada uma série de outros estudos que se opunham aos
estereótipos sexuais, caracterizando a emergente corrente da psychology of women nos Estados Unidos, cuja inserção foi mais significativa na psicologia clínica, da educação e da
personalidade do que na psicologia social. De acordo com a autora,
Fundamentando-se na investigação, a corrente da psychology of woman vai procurar denunciar os efeitos
sobre a psicologia feminina, em particular sobre a auto-estima, da posição de subordinação das mulheres,
da escassez de oportunidades de emprego a que tinham acesso e da pressão a que eram submetidas para
o desempenho do papel tradicional. Num país como os Estados Unidos, onde existiam revistas de divulgação científica e um público curioso e capaz de se apropriar desses conhecimentos, a investigação era
assumida, nesta perspectiva, como uma forma de intervenção política e de participação para a mudança
de atitudes e comportamentos (Amâncio, 2001, p. 12).
Conforme descreve Nogueira (2001), a psicologia nesse período também foi marcada
pelo debate entre essencialização e socialização. Na primeira, o gênero era considerado um
atributo inerente ao sujeito, como propriedade estável da personalidade. Já no pressuposto
da socialização, em vigor nos anos 60 e 70, o foco foi deslocado da biologia para o contexto,
sendo gênero o resultado de processos sociais e culturais. Nesse sentido, destacou-se a teoria
do papel social de Alice Eagly, na qual as diferenças sexuais resultam dos papéis sociais que
atuam sobre o comportamento das pessoas e que são apropriados pelas crianças no curso de
seu desenvolvimento.
3
Heleieth Saffioti (1999) mostra que, na verdade, Betty Friedan teria se fundamentado em Simone de Beauvoir, utilizando os
argumentos do O segundo sexo, sem citar a fonte, em seu livro A mística feminina, de 1963.
4
É interessante observar que, se de um lado as feministas americanas na década de 1960, como Friedan, opunham-se à psicanálise
acusando-a de “falocêntrica” e defensora de uma noção estigmatizadora de “castração” da mulher, na França, é a mesma teoria
freudiana que pauta as postulações feministas de afirmação do gênero feminino e sua diferença (Zanotta-Machado, 1992).
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Amâncio, discutindo a produção científica americana, ressalta que as primeiras menções
à categoria gênero na psicologia vão surgir desde a década de 1970, a partir de estudos que
versavam sobre a relação dos atributos considerados masculinos e femininos relacionados com
o sexo biológico. Esses estudos foram importantes no contexto científico de maneira geral,
representando a primeira possibilidade real de distinguir sexo e gênero nas pesquisas sobre
identidade. Um dos argumentos que animou as perspectivas feministas foi o de que seria mais
fácil mudar o sexo biológico do que a identidade de gênero de uma pessoa (Stoller, 1993).
Nessa perspectiva, outra autora que se destaca é Sandra Bem, que parte de um modelo
cognitivista para compreender como os indivíduos fazem uso de esquemas de gênero para
pensar a si e aos outros. Numa linha próxima à de Stoller, Bem produziu, na década de 1970,
estudos que discutiam a possibilidade de pessoas de ambos os sexos desenvolverem atributos
de personalidade considerados masculinos ou femininos, bem como construiu um inventário
para avaliar a identidade de gênero, chamada Bem Sex-Role Inventory (Magalhães & Koller,
1994; Ferreira, 1993).
Ainda nessa época houve a emergência de críticas feministas aos aspectos conceituais e
metodológicos dessas pesquisas e a publicação de outros estudos que sugeriam a existência
de uma essência andrógina, presente tanto nos homens quanto nas mulheres (Nogueira,
2001). Contudo, essa perspectiva não representou avanços efetivos na superação dos dualismos
de gênero, pelo fato da mesma dicotomia de atitudes masculinas e femininas ainda estar
presente, embora pensada como atributos coexistentes e complementares do ser humano.
Nos Estados Unidos, durante os anos 70, Nancy Chodorow, psicanalista feminista com
formação em sociologia, discute como as distintas formas de socialização entre meninos e
meninas, em sua relação primária com a mãe, resultam na estruturação das diferenças de
gênero. As formas culturais de ação materna seriam, para ela, os fatores por excelência da
produção da diferença entre as personalidades masculina e feminina. Sua contribuição à
psicanálise e aos estudos de gênero se pauta na tese de que a identificação das filhas com as
mães é maior do que a identificação dos filhos com elas, o que leva as meninas a desenvolverem uma estrutura feminina de personalidade a partir da identificação relacional com a figura
materna, ao passo que os meninos são levados a desenvolver a personalidade masculina em
oposição a essa relação, na identificação com o pai. Uma identificação posicional, frente ao
relacionamento mais distante com as figuras paternas, a partir dos aspectos definidores do
papel masculino e na negação dos caracteres femininos (Chodorow, 1979).
Segundo Amâncio, a despeito da relevância dos resultados das pesquisas de inspiração
feminista para a superação dos estereótipos de gênero, pouco se avançou nessa direção na
produção científica que sucedeu a esse momento na psicologia inglesa e norte-americana. Na
análise da autora, houve um esvaziamento do conceito e de seu poder explicativo no contexto geral da psicologia, a partir de sua redução a um simples critério classificatório das
investigações da época sobre o tema. Para ela,
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As razões para o desencontro do gênero com a psicologia radicam na influência combinada e não particularmente produtiva, neste caso, do movimento feminista e do mainstream da psicologia (...). Na verdade,
se estas duas influências não resultaram contraditórias foi porque ambas partilhavam uma visão liberal das
relações sociais. (Amâncio, 2001, p. 11).
Aprofundando as razões da resistência da psicologia produzida nesses contextos à incorporação efetiva da categoria gênero, Amâncio destaca dois aspectos. O primeiro corresponde
à dificuldade da psicologia experimental, historicamente dominante e considerada “mais
científica”, em assumir as mulheres como legítimas pesquisadoras. Já a segunda diz respeito
à incapacidade dessa ciência em ouvir os problemas enunciados pelos movimentos sociais,
dentre eles o feminista, que já batia às portas da academia na época. Conforme a autora,
mesmo na psicologia social americana prevaleceu uma incorporação do gênero como mera
variável, a partir de formas individualizantes de reflexão, onde se reduz gênero a sexo.
Algumas teóricas feministas, de quem se esperaria a superação dessas questões, também
acabaram por reproduzir a mesma lógica, como foi o caso de Carol Gilligan (1993), que nos
anos 80 investigava as diferenças entre a moral masculina e a feminina. Ao polarizar atitudes
morais de acordo com o sexo, sem o aprofundamento das dimensões histórico-sociais, Gilligan
acabou por reproduzir noções essencialistas de gênero. Embora desejasse contribuir para a
crítica aos modelos científicos que legitimavam a dominação de gênero, seu estudo foi envolvido pela mesma lógica de sobreposição do sexo ao gênero. Por outro lado, como argumenta
Morawski (1994), Gilligan reproduz o individualismo que caracteriza a psicologia de sua
época, que acaba limitando seu campo de análise.
Foi justamente como reação à resistência da psicologia às questões feministas que surgiu
em 1974 a feminist psychology, com larga abrangência também na Europa (Burns, 2000).
Diferente da psychology of woman, mais voltada para a denúncia do olhar masculinizado
sobre as mulheres e para a valorização de suas experiências pessoais, a psicologia feminista
desenvolve um ponto de vista epistemológico mais amplo e se articula com as questões étnicas e de classe (Dauder, 2003). Conforme Amâncio (2001), a psicologia feminista surgiu
como forma de dar visibilidade às questões feministas na produção científica da psicologia,
desenvolvendo-se desde o embalo da segunda onda feminista5. Esse esforço não se restringiu
às questões teóricas, abrangendo também aspectos práticos, como por exemplo, a criação de
psicoterapias feministas para a atenção de problemas psicossociais vividos por mulheres (Nogueira & Neves, 2003).
Uma referência importante dessa tendência é o livro Woman and gender: a feminist
psychologist, de autoria de Mary Crawford e Rhoda Unger (Crawford & Unger, 2000). Esse
livro representa uma síntese da psicologia feminista americana em seus 30 anos de produção,
como um campo voltado à crítica aos vieses sexistas e androcêntricos da psicologia e à análise dos estereótipos sobre a mulher, com base no pressuposto da construção social das
5
Dentre os nomes importantes da feminist psychology temos Carolyn Sherif, Rhoda Unger, Mary Crawford, Mary Parlee, Kathleen
Grady, Michelle Fine, Rachel Here-Mustin e Jeanne Marecek (Crawford & Unger, 2000).
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diferenças de gênero (Dauder, 2003). Os processos de gênero relacionados à saúde da mulher, à questão da violência e ao trabalho, são os temas fundamentais dessa perspectiva, cujo
objetivo é contribuir para a mudança da realidade da mulher, através da produção de saberes
que transformem a percepção sobre a mulher e permitam a superação de sua condição de
subordinada (Nogueira & Neves, 2001).
Meyer (1993), referindo-se ao contexto europeu, discute que o impacto das reflexões
feministas também tem sido mais rapidamente assimilado pela psicologia clínica e pela psicologia do desenvolvimento que pela psicologia social. A necessária discussão da experiência
subjetiva no âmbito da psicologia clínica e a importância das diferenças sexuais na psicologia
do desenvolvimento levaram as duas disciplinas a incorporarem mais facilmente as temáticas
feministas. Por outro lado, a restrição do campo de análise dos estudos da psicologia social
americana, em geral limitados a discussões teóricas menos ambiciosas, impediu que fossem
analisados os problemas sociais trazidos pelos movimentos feministas. Mesmo assim, argumenta a autora, muitas psicólogas sociais têm investigado o sexismo de algumas teorias e
pesquisa e se proposto a estudar as questões sociais feministas.
De acordo com Amâncio (2001), a análise desses processos tem sido feita em parte na
psicologia social européia com base em leituras críticas das tendências dominantes nesse
campo, sendo a teoria das representações sociais um dos corpos teóricos mais férteis às
análises pautadas pelas questões de gênero. Unger (1993) menciona também a emergência de
perspectivas cognitivas na análise dos estereótipos sexuais, concebendo o sexo como variável
cognitiva e não biológica. Nesse contexto, houve ainda a emergência do construcionismo
social como perspectiva teórica dos estudos feministas realizados na psicologia social (Nogueira & Neves, 2001, 2003; Dauder, 2003), cuja proposta foi a incorporação da crítica das
teorias feministas e pós-modernas à ciência tradicional e a valorização do potencial delas
para a superação das concepções universalistas da psicologia.
É preciso também dizer que alguns estudos psicanalíticos vêm desde há muito tempo
problematizando, na psicologia6, questões associadas ao gênero e à subjetividade, como as
relações objetais/parentais e suas vicissitudes na constituição do sujeito. Ainda que faltassem
a muitos desses estudos a necessária discussão sobre os processos sociais e políticos e sua
relação com o gênero, eles representam uma forma de aproximação de uma parte da psicologia à temática aqui discutida. Arruda (1992) lembra também que em outros países, como a
Argentina, a frutífera relação entre o instrumental psicanalítico e a análise das questões feministas teve larga divulgação, diferentemente do Brasil, cuja produção nessa área é mais recente
(Kehl, 1992; Freire Costa, 1992; Lago, 2001).
A incorporação dos estudos de gênero à psicologia brasileira foi realizada preferencialmente no campo da psicologia social. Desde a década de 1970 foi possível identificar os
primeiros momentos em que, nesse campo, as questões sobre as diferenças sexuais, sobre
6
Há um debate clássico nesse meio acadêmico sobre a relação psicanálise e psicologia. Enquanto que para os psicanalistas a
psicanálise não é psicologia, dado o fato de que não é ‘ciência do comportamento’, em geral, para os psicólogos ela é uma corrente
desta ciência. Em realidade, na base dessa polêmica há tanto o problema da definição de psicologia quanto de psicanálise.
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mulher e sobre gênero começaram a ser enfocadas por parte de psicólogas sociais. As instituições universitárias (USP e PUC’s) e de pesquisa (Fundação Carlos Chagas) são os contextos
em que a maior parte dos estudos surgiram, através de publicações das revistas Cadernos de
Pesquisa da Fundação Carlos Chagas e, mais tarde, na revista Psicologia e Sociedade, da Associação Brasileira de Psicologia Social.
Além da ABRAPSO, outras instituições científicas da psicologia em que os estudos de
gênero encontraram abrigo foram a ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia) e a SBP (Sociedade Brasileira de Psicologia). Nelas, os estudos de gênero
apresentam-se de maneira distinta, afastando-se sobremaneira do teor político dos apresentados na ABRAPSO, mas compartilhando enfoques teóricos e metodológicos. De 1992 a
2000, nos encontros da ANPEPP, reuniram-se várias pesquisadoras em torno do grupo de
trabalho “Psicologia e Relações de Gênero”, voltado à discussão das “contribuições da psicologia e suas interfaces disciplinares ao estudo das relações sociais de gênero, em especial às
questões relativas à condição feminina” (Guzzo, 2000, p. 133). O objetivo do grupo era dar
relevo aos conceitos que caracterizam os estudos de gênero, incluindo a crítica feminista aos
paradigmas clássicos da ciência e o debate ético na análise de questões contemporâneas, a
partir dos estudos de gênero. Contudo, no encontro dessa Associação ocorrido em Águas de
Lindóia em 2000, o grupo se dissolveu, tendo seus membros se engajado em outros GTs7.
Na importante revista Psicologia: Ciência e Profissão, que todo psicólogo ou psicóloga
registrado no Conselho Federal de Psicologia recebe, dois artigos merecem destaque quanto
à introdução de análises influenciadas pelo campo intelectual feminista. O primeiro é o artigo “Afinal, por que somos tantas psicólogas?” de Fúlvia Rosemberg, publicado em 1984
(Rosemberg, 1984), em que a autora discute as razões de a psicologia ser uma profissão
hegemonicamente feminina. O outro artigo é intitulado “Gênero: o que é isso?”, de Maria
Eunice Guedes, no qual a pesquisadora sintetiza as reflexões de Joan Scott e resgata as contribuições que a categoria gênero tem para a psicologia (Guedes, 1995). Ambos os artigos
tiveram o papel de difundir diretamente na psicologia brasileira argumentos de teor feminista e a importância das questões de gênero para essa ciência.
Merece destaque também a contribuição de Gláucia Diniz (1999), que em conferência
no I Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, ocorrido em Salvador em maio de 1999, chamou a atenção da comunidade científica para essa área do conhecimento, acerca do fato de a
psicologia contribuir para o reforçamento dos estereótipos de gênero vigentes na sociedade.
Sua crítica representa um momento importante para a psicologia brasileira, por reforçar a
necessidade de se incluírem as questões de gênero na análise da produção do conhecimento,
de modo a se superar perspectivas androcêntricas embutidas em conceitos e pressupostos
dessa ciência.
7
Apenas em 2006, no XI Simpósio de Pesquisa e intercâmbio Científico da ANPEPP, em Florianópolis, temos a retomada desse
grupo, por iniciativa de Adriano Henrique Nuernberg e Mara Coelho de Souza Lago (ambos do departamento de psicologia da
UFSC), visando a re-articulação de um grupo de trabalho voltado a análise de temas da psicologia à luz das contribuições dos
estudos feministas e de gênero.
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Uma outra parte da produção científica da psicologia pertinente ao campo de estudos de
gênero está localizada também nas publicações dessas associações ou, de maneira dispersa,
nos periódicos e coletâneas feministas como a Revista Estudos Feministas, os Cadernos Pagu
e os Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. A expressão da psicologia nesses
periódicos é, contudo, bastante reduzida, sobretudo quando comparada às ciências sociais.
GÊNERO E PSICOLOGIA SOCIAL
Até os anos 70 os estudos sobre estereótipos e preconceitos tendiam a negligenciar os
fatores contextuais ao priorizarem aqueles relacionados aos indivíduos. A superação do modelo psicologizante na construção de um modelo mais efetivo de análise social para psicologia
ocorreu num momento de grande difusão das lutas feministas, o que aumentou a incidência
dos estudos sobre estereótipos e preconceitos sexuais, especialmente junto à psicologia social
norte-americana, conforme Amâncio (1998).
A partir da segunda onda dos movimentos feministas as questões de gênero começaram
a deixar de ser vistas do ponto de vista biológico, prevalecendo o pressuposto da socialização
como o princípio explicativo, através dos conceitos de imitação e modelagem. Do mesmo
modo, a masculinidade e feminilidade passaram a ser tomadas como conjunto de características que se constituem no desenvolvimento cognitivo e emocional dos indivíduos, embora
ainda fossem vistas como diferenças dicotômicas. Nesse sentido, se por um lado se avançava
no pressuposto da gênese desses atributos, agora não mais buscados no organismo, mas nas
aprendizagens sociais, por outro, permanecia um conceito de gênero como atributo interno
aos sujeitos (Nogueira, 2001). Em síntese,
No plano teórico, o predomínio das explicações intrapsíquicas, como as que recorreriam ao modelo das
atitudes para explicar os estereótipos, ou aos esquemas e scripts, como nos modelos da androginia e
cognitivistas dos anos 80, continuou a remeter para o indivíduo, ou para o interior dos grupos de sexo,
acentuando a polarização das diferenças, confusão de sexo e gênero e a bipolaridade das categorias de
sexo. (Amâncio, 2001, p. 14).
Assim, até meados das décadas de 1980 e 90, o que caracteriza essa parte da história da
psicologia social na Europa e nos Estados Unidos é a ausência da dimensão ideológica e
conceitual na maior parte das análises das relações de gênero. Os poucos estudos que mencionavam gênero, reduziam essa categoria à mera variável experimental. Embora o feminismo
militante tenha deixado sua marca na demanda da análise dos conflitos sociais de gênero, a
virada epistemológica feminista tardou em mudar os rumos da psicologia social. O que se
apresenta nos estudos de gênero da psicologia social nessa época é representado por três
perspectivas de análise resumidas a seguir, de acordo com o que propõe Amâncio (1993): a
psicologia social norte-americana, que enfatiza a aprendizagem dos papéis sexuais como
diretriz explicativa dos comportamentos de homens e mulheres e das convicções associadas
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ao masculino e feminino, pautada ora por uma abordagem sociobehaviorista ora por
referenciais cognitivo-interacionista; a psicologia social européia que toma o modelo de Tajfel
como referencial principal, enfocando a relação da identidade social8 com a pertença a determinados grupos, mas articulando essas questões com os pressupostos feministas sobre os
conflitos de poder entre homens e mulheres; e a psicologia social européia que discute os
significados atribuídos às categorias sociais, vendo a desigualdade de gênero como resultado da
assimetria que caracteriza essa produção simbólica, onde o homem é universal e dominante e a
mulher é definida por sua especificidade. Além dessas três perspectivas, a partir da década de
1990 destacou-se a análise das representações sociais associadas à categoria gênero, o que
permitiu compreender ainda mais a assimetria simbólica que constitui essas relações sociais que
privilegiam os homens em detrimento das mulheres, conforme Amâncio (1998; 2001).
Mais recentemente, o necessário deslocamento de foco dos indivíduos para os processos
também tem sido feito a partir do feminismo pós-modernista, que tem difundido a corrente
construcionista na psicologia social. A crítica ao modelo científico tradicional e à racionalidade
universalista moderna chegou à psicologia social européia e norte-americana, inaugurando
uma perspectiva que se opõe aos essencialismos e compreende o masculino e feminino como
construções sociais (Nogueira, 2001). Para Unger (1993),
Talvez a crítica mais importante do ponto de vista ‘construcionista’ seja a de que o foco individualista na
medição dos traços pode induzir à falta de preocupação em relação à responsabilidade da sociedade
quanto à distribuição diferencial de vários traços em mulheres e homens. Essa questão é particularmente
importante porque os traços – mesmo quando colocados por feministas – não estão isentos de valor
(Unger, 1993, p. 153).
No contexto da psicologia social, certamente o construcionismo é uma referência importante como fundamento básico para pensar os fenômenos pertinentes a esse campo e o
papel das relações de gênero nesses processos. Conceitos centrais para a psicologia social têm
sido renovados a partir dessa perspectiva, agregando as contribuições das teorias feministas e
valorizando os aspectos referentes ao gênero na constituição dos sujeitos.
Cumpre esclarecer também que os estudos feministas e de gênero anglo-saxônicos chegam à psicologia social num momento de crise dessa disciplina, quando tensões epistemológicas
se intensificam e geram a institucionalização de correntes e grupos alternativos às perspectivas tradicionais. Essas perspectivas construcionistas acabam sendo identificadas como aliadas
para pensar a pesquisa sobre mulher e gênero como parte das transformações conceituais
tecidas a partir do final da década de 1970. Ou seja,
Na psicologia, esse desafio do conhecimento, como algo socialmente construído, consubstancia-se na
perspectiva do construcionismo social, na perspectiva da análise do discurso, ou da psicologia crítica,
8
No Brasil, Marise Jurberg (UGF) é uma da que utiliza a contribuição de Tajfel para compreender fenômenos associados às relações
de gênero (cf. Jurberg, 1992).
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perspectivas que partilham entre si premissas semelhantes e se inserem num mesmo posicionamento
epistemológico (Nogueira, 2001, p. 145).
Tais premissas, em última análise, têm por base a crítica a noções que reduziam as diferenças sexuais aos fatores biológicos, comum ao feminismo da segunda onda. Essa crítica aos
reducionismos biológicos (Nicholson, 2000), pode explicar a grande difusão dos pressupostos construcionistas nos estudos de gênero desenvolvidos na psicologia social, onde também
é forte a busca pela desnaturalização dos processos sociais.
No Brasil, um dos primeiros estudos que superavam o reducionismo biológico na análise
das diferenças sexuais no contexto da psicologia, aparece em 1966 no livro Psicologia diferencial, de Dante Moreira Leite, psicólogo social da USP falecido em 1976. Conforme Graciano
(1976), esse pesquisador era atento à força dos processos ideológicos que influenciam a
percepção social, favorecendo a formação dos preconceitos. Esse tipo de análise aparece em
sua obra também em relação às diferenças sexuais, em que o fator socialização é explorado
na análise de valores e atitudes contrastantes entre homens e mulheres. Tal argumento representou uma alternativa às correntes que tendiam a ver as diferenças sexuais como naturais,
trazendo pioneiramente para a psicologia social o debate sobre essas questões.
As primeiras publicações brasileiras que discutiam as questões feministas enfocando ou
resgatando a psicologia social estão no histórico número 15 dos Cadernos de Pesquisa da
Fundação Carlos Chagas, de autoria de pesquisadoras dessa instituição. Era o Ano Internacional
da Mulher, proposto pela ONU, desencadeando uma série de eventos para discutir a condição da mulher. As pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas concentravam, nesse momento,
o que de mais avançado se tinha em termos de reflexão científica feminista. Nesse número
dos Cadernos de Pesquisa temos três artigos que constituem um marco importante para a
incorporação das questões feministas na psicologia:
1. O artigo de Carmem Barroso, intitulado “Estereótipos sexuais: possíveis contribuições da psicologia para sua mudança” (1975), que discute a necessidade de a psicologia investigar os estereótipos relacionados aos papéis sexuais e os resultados destrutivos
da desigualdade entre os sexos. A autora, lança mão de conceitos caros à psicologia
social da época, como percepção, atitudes e estereótipos, comentando sobre a insuficiência da literatura psicológica sobre o assunto.
2. “Contribuições da psicologia contemporânea para compreensão do papel da mulher”, de autoria de Marília Graciano (1975) em que a pesquisadora faz críticas ao
modo reducionista como a psicologia interpreta o comportamento feminino, contribuindo ideologicamente para manter o conformismo social da mulher. Por outro
lado, reconhece que o estudo da situação social da mulher anuncia novas mudanças
de análise desta ciência sobre a mulher, sendo a psicologia social um campo fértil
para esse tipo de investigação. Suas pesquisas posteriores, desenvolvidas no período
em que trabalhou na FCC (1974-1979), inclusive, abrangeram temas relacionados
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aos estereótipos sexuais, relacionando com o processo de socialização da criança (cf.
Graciano et al, 1977; Graciano, 1978).
3. O artigo de Fúlvia Rosemberg, chamado “A mulher na literatura infanto-juvenil”
(1975), que realiza uma revisão de importantes pesquisas demonstrando que os papéis sexuais são representados de maneira estereotipada nesse tipo de literatura, na
qual a mulher ocupa uma posição inferior.
Nos artigos mencionados, fica evidente a tentativa de lançar mão dos conceitos da psicologia social clássica, como estereótipos e preconceitos, para compreender a condição feminina,
algo comum na psicologia da época (Amâncio, 2001). A insatisfação com a psicologia, por
outro lado, parece ser comum entre as autoras que ao mesmo tempo em que buscam extrair
dessa área saberes que permitam desenvolver seus argumentos feministas, identificam nela a
compatibilidade com a mesma ideologia que criticam.
Mais recentemente, no contexto acadêmico da psicologia social brasileira, foi especialmente a partir de pessoas engajadas na superação do modelo positivista do campo que as
questões de gênero começaram a se constituir em uma preocupação de maior espaço.
Em realidade, as questões feministas sobre mulher e gênero têm sido incorporadas com
maior visibilidade há mais de 20 anos, especialmente por pesquisadoras vinculadas à ABRAPSO
– Associação Brasileira de Psicologia Social –, instituição da área pioneira na criação de
grupos de trabalho sobre gênero em seus eventos científicos. Embora essas questões fossem
uma preocupação mais antiga nas ciências sociais, foi na psicologia social, sobretudo por
meio de pesquisadoras interessadas em um modelo crítico e comprometido9 de pesquisa, que
o gênero começou a se legitimar enquanto uma categoria de análise importante no contexto
da produção científica no campo da psicologia.
Há que se destacar a intensa participação do grupo de psicólogas sociais paulistas, mineiras e cariocas no início da incorporação das questões feministas e de gênero na psicologia
social brasileira. É possível ainda fazer um paralelo com a análise de Costa & Bruschini
(1992) sobre o papel da revista Cadernos de Pesquisa da FCC quanto à divulgação e consolidação dos estudos de gênero no Brasil. Sem dúvida, a revista Psicologia e Sociedade da
ABRAPSO é também central na história de consolidação dos estudos de gênero na psicologia
social brasileira, como atestam os artigos descritos. Publicada regularmente de 1986 a 1992,
em dez números, a revista teve sua periodicidade interrompida de 1993 a 1996, retomando
posteriormente suas atividades.
Ainda em 1988 foram apresentados trabalhos pautados por temáticas feministas e de gênero, sendo a violência contra a mulher o foco principal investigado. A revista Psicologia e Sociedade,
nos meses seguintes, publica artigo de Karin Smigay que apresenta seu grupo como
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No contexto acadêmico brasileiro, essa categoria “crítico e comprometido” sugere que determinado modelo de pesquisa e de
atuação considera as necessidades sociais das camadas populares, incorporando-as como foco de suas preocupações científicas ou
de intervenção psicológica. Tal modelo surge basicamente no final da década de 1970, a partir da abertura política vivida no campo
da psicologia no período.
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(...) investigadores rebeldes com relação à concepção de separação, pretensa isenção, entre ciência e
prática. Pensamos ciência a serviço das mudanças sociais, emprestando seus conhecimentos no desvendar
de uma ideologia cultural que submete um dos gêneros humanos à posição de submissão. (Smigay, 1988/
9, p. 130).
A partir década de 1990, os estudos de gênero continuaram a ocupar um lugar destacado nos eventos e publicações da ABRAPSO, observando-se o progressivo aumento do número
de temas associados à questão. Nos números seguintes da revista Psicologia e Sociedade, no
entanto, poucos artigos sobre gênero foram publicados. Os únicos foram o artigo de Karim
Smigay (1999) sobre o estupro como estratégia das guerras balcânicas, o de Neuza Guareschi
(2002), sobre paternidade e o de Conceição Nogueira e Sonia Neves (Nogueira & Neves,
2003) sobre aplicações da psicologia feminista à psicoterapia. Do mesmo modo, os livros e
coleções didáticas produzidas pela ABRAPSO quase sempre reservam espaço para os estudos
de gênero, o que faz dessa associação um contexto privilegiado para os debates que caracterizam esse campo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde os primeiros momentos da interface dos estudos de gênero com a psicologia
brasileira os pressupostos naturalizantes sobre as diferenças sexuais foram sendo progressivamente superados por argumentos que, cada vez mais, refinavam conceitos e teorias de base
funcionalista e/ou sociocultural. Isso se deu produzindo os mesmos avanços e equívocos dos
estudos de gênero norte-americanos e europeus, que historicizaram e politizaram as noções
de gênero preservando desse esforço a noção de natureza e de corpo (Haraway, 2004).
Merece destaque o fato de que a incorporação das questões feministas no seio da psicologia brasileira obedeceu à lógica própria dessa matriz disciplinar e sua configuração
teórico-metodológica (Bourdieu, 2004). Considerando que o paradigma hegemônico da psicologia não reservava espaço para questões dessa ordem, em razão da necessidade de dar
manutenção a um sujeito universal e distanciar-se do que considera ideológico, o campo intelectual feminista nesse contexto integrou-se à parcela da matriz disciplinar que se opunha ao
modelo tradicional de ciência, do mesmo modo que as teorias feministas se aliavam ao pósmodernismo, ou seja, criticamente (Flax, 1994, 1990). Os estudos de gênero no Brasil
estabeleceram alianças com teorias e campos que valorizam a cultura, o contexto social e a
dimensão ativa e subjetiva dos sujeitos. Como um campo que se define por essas características,
a psicologia social representou, na psicologia, o terreno no qual tais questões puderam emergir.
As questões de gênero na psicologia social brasileira foram introduzidas
concomitantemente à emergência de outras categorias chaves desse campo. Os estudos de
identidade (Ciampa, 1987) e as pesquisas sobre afetividade e emoções (Lane & Sawaia, 1995),
por exemplo, também surgiram nas décadas de 1980 e 90 (cf. Molon, 2000). Conforme
Freitas (2000), nesse período a psicologia social brasileira convergia suas preocupações cada
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vez mais para os níveis microestruturais, para os processos psicossociais e para as questões
ligadas ao cotidiano. Para a autora, isso se deu como resultado do fortalecimento do compromisso desse campo com a transformação da realidade social e com os processos sociais
enfocados nos trabalhos de seus agentes. Diante disso, a psicologia social teve que se adaptar
às novas demandas sociais emergentes na contemporaneidade, contemplando questões vindas do contexto social. Ao valorizar temas de grande valor para os movimentos sociais,
psicólogas sociais transformaram em problemas científicos preocupações trazidas do ativismo
político ou da vida pessoal, apoiando-se nos instrumentos da academia para produzir saberes
que iam ao encontro dos interesses do feminismo.
Na equação que polariza gênero e psicologia, o resultado aponta para a necessidade de
fazer avançar e continuar difundindo os debates propostos por esse campo. Muitos ainda
pensam que as questões de gênero são de interesse exclusivo do feminismo e das mulheres
identificadas com esse movimento. Ademais, é minoria a parcela da comunidade acadêmica
da psicologia que compreende os alcances das teorias desse campo e o valor que seu tipo de
análise pode representar, tanto para a pesquisa quanto para intervenção. Cabe, portanto,
continuar difundindo os estudos de gênero na psicologia, explicitando seu potencial analítico para os fenômenos da psicologia e para a maior abertura dessa ciência à interdisciplinaridade.
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Sobre o gênero de gente que
não quer mais viver
Alan Índio Serrano
GÊNERO, SEXO E REGISTROS DE ÓBITOS
D
esde a eclosão da adolescência até as idades mais avançadas, muitas pessoas são
levadas às emergências de hospitais, após diligenciarem atos contra a própria vida. É curioso
o fato de que as mulheres procuram ou são levadas a serviços médicos após tentativas de
suicídio sem eficácia em proporção muito maior do que os homens. Contudo, mundialmente, os homens levam a cabo os atos autodestrutivos bem mais do que as mulheres. Pode-se
dizer que, em certas regiões do planeta, o tema do suicídio é eminentemente masculino. Essa
proporção entre homens e mulheres, denomina-se, em estatística e epidemiologia, “razão
masculino/feminino”.
É possível realizar pesquisas sobre a relação entre gênero e morte autoprovocada. Tais
investigações, necessariamente, valer-se-ão de uma metodologia qualitativa, utilizando entrevistas ou estudos de casos. Um dos mais clássicos sobre o tema vem da psicanálise. É o
estudo, realizado por Freud (1976), da análise de uma jovem homossexual que tentara o
suicídio, escrito em 1920. A partir desse caso foi possível aprofundar os conceitos de atuação
(acting out) e, mais tarde, com Jacques Lacan (1997), o de passagem ao ato.
Sempre houve suicídios altruístas, movidos por ideais – em geral discutíveis – como os
de fundamentalistas muçulmanos, explicáveis no contexto da psicologia das massas (Serrano, 2006, p. 163-225). Sempre houve, também, suicídios fatalistas e filosóficos, igualmente
excepcionais. Todavia, na maioria das vezes, quem busca a morte está desesperado e
ambivalente. As configurações psíquicas envergadas pelos sujeitos para diminuir o sofrimento provindo do conflito entre suas pulsões e entre elas e as exigências externas, próprias da
civilização, implicam a religião, a intoxicação por drogas, a neurose e a sublimação (arte,
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trabalho, ciência, criação cultural). Se falharem essas possibilidades, o ensejo da morte voluntária pode funcionar como saída de cena, pela passagem ao ato.
Se formos colher dados quantitativos teremos que utilizar, em vez da categoria “gênero”, a categoria “sexo”, pois as estatísticas classificam os óbitos por sexo. O termo sexo,
utilizado nos registros oficiais e nas estatísticas, tem sentido biológico: refere-se a atributos
natos definidos genética e cromossomicamente. O sexo é uma determinação genética, definida por ocasião da concepção. Contudo, o desenvolvimento sexual é influenciado por vários
outros fatores, desde o quarto mês de gestação, quando as gônadas do feto se diferenciam em
ovários ou testículos. Nos discursos biomédicos, portanto, considera-se o sexo de um ser, do
ponto de vista do genótipo (constituição hereditária) e do fenótipo (conjunto dos caracteres
físicos exteriores). Uma pessoa pode alterar, artificialmente, seu fenótipo, por cirurgia dos
genitais e uso de hormônios capazes de lhe modificar formas do corpo, por exemplo, mas
não pode alterar seu genótipo. O significante gênero tem sentido de sexo social, compatível
com a noção de “relações sociais de sexo” (Rial, Lago, Grossi, 2005). A pesquisa qualitativa
pode servir de base para estudos quantitativos que a usem.
Porém, o fato de o suicídio atingir principalmente os homens traz à tona questões relacionadas à masculinidade e aos estudos de gênero. Esses estudos, desenvolvidos a partir dos
anos 60, propiciaram reavaliações da noção de masculinidade. A noção de masculinidade
ideologicamente hegemônica foi criticada como um modelo idealizado a partir de uma cultura calcada no homem branco, heterossexual e dominante. Nessas reflexões se evidenciaram
alguns estereótipos de homens, particularmente o machista, o homofóbico e o homoerótico
(Medrado, Lyra, Galvão, 2003). Porém, ficaram excluídos alguns homens e algumas masculinidades, pois a idealização contida na masculinidade hegemônica não cobre todas as
possibilidades.
O que se apresenta como novidade nesse campo de discussões é exatamente a percepção
dos contextos e das condições particulares que jogam por terra a noção de homem genérico.
Passa-se a ver os homens como inseridos numa cultura caracterizada por relações sociais
hierárquicas, por relações desiguais de poder e por relações de gênero. Os estudos de gênero,
herdeiros das abordagens, em ciências humanas, sobre mulheres e feminilidade, têm, mais
recentemente, refletido sobre como os homens se posicionam no contexto das relações de
gênero e que alternativas discursivas suas culturas lhes oferecem. Tais estudos, em geral,
buscam identificar e analisar como os homens atualizam (ou não), em seu cotidiano, o modelo hegemônico de masculinidade, considerando as matrizes culturais e históricas em que
interagem e se desenvolvem socialmente (Medrado, Lyra, Galvão, 2003).
A psiquiatria denomina como identidade de gênero a “percepção subjetiva que alguém
possui de seu sexo” (Kandel, 2003, p. 155). A identidade de gênero desabrocha e se compõe
com a personalidade do sujeito e pode implicar questões biológicas e biopsíquicas. Mas implica especialmente desenvolvimentos intrapsíquicos apoiados no ambiente familiar e
sociocultural. Freud (1976) conseguiu montar uma teoria ampla sobre a sexualidade humana, capaz de lançar algumas luzes sobre as identificações de gênero.
SOBRE
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As variações de gênero cobrem um vasto espectro ligado à identificação. Apesar de haver
influências, não há, psicologicamente, correspondência direta entre escolha de objeto sexual
(incluindo as formas de exercício de prazer por meio das zonas erógenas) e identidade de
gênero. Ao classificar os transtornos de comportamentos (OMS, 1993, p. 210-217), a psiquiatria separa os transtornos da identidade sexual (transexualismo, transvestismo e transtornos
da identidade sexual na infância) dos transtornos da preferência sexual (fetichismo,
exibicionismo, voyeurismo, pedofilia, sadomasoquismo, bestialismo, necrofilia, etc.) e dos
transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e à orientação
sexuais (transtorno de maturação sexual, orientação sexual egodistônica, transtorno de relacionamento sexual e outros, que podem, todos eles, ser associados à heterossexualidade, à
homossexualidade, à bissexualidade ou a situações pré-puberais).
Tais variações de gênero têm a ver com o “sentir-se” masculino ou feminino, e com a
rejeição da masculinidade ou da feminilidade, independentemente de sua anatomia e de seu
genótipo. Trata-se de uma vivência psíquica. Pesquisas sobre o suicídio enfocando questões
de gênero, em especial estudos de casos, usam métodos diversos do estatístico: etnográficos,
clínicos, sociopsicológicos, sistêmicos, psicanalíticos.
Nos registros de mortalidade ocorrem raras situações em que o sexo não pode ser estabelecido. Geralmente se trata de cadáveres anônimos, não reclamados por familiares ou pela
sociedade, encontrados em deterioro, com apresentação anatômica dúbia ou impossibilidade
de reconhecimento devido a lesão ou mutilação. O preço e a dificuldade de acesso, pelos
órgãos policiais, a exames laboratoriais de determinação do sexo pelo estudo dos cromossomos
configuram uma relação custo-benefício elevada. Podem ocorrer, também raramente, casos
de deficiência de anotação do sexo na certidão de óbito (por negligência ou erro do médico
legista) em pessoas com nomes epicenos ou neutros, que não esclarecem sobre o sexo da
pessoa por eles designada. Novos dados, colhidos pela polícia ou por órgãos da saúde pública, podem vir a esclarecer tais casos, ao longo do tempo, modificando-se, então, os registros
até ali provisórios. Essas circunstâncias excepcionais – e escassas – constam nas estatísticas
como “de sexo ignorado”.
HOMENS E MULHERES AUTODESTRUTIVOS NO BRASIL
A auto-agressão levada ao pronto-socorro
Há fortes motivos, nos prontos-socorros de hospitais, para se suspeitar de que as mulheres tentam dar cabo de sua vida muito mais do que os homens. Contudo, parece inegável que,
em todo o mundo, com exceção da China, os homens suicidam-se mais do que as mulheres
(Zhao et al, 1994; Jianlin, 1999; Yip et al, 2000).
Depressões, transtornos de personalidade bordeline, esquizofrenia e dependências de
substâncias psicoativas (entre as quais as bebidas alcoólicas) são os fatores médicos mais
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presentes. A gravidez e a prática religiosa mostram-se como fatores de proteção. Contudo, a
gravidez precoce e não desejada em adolescentes parece acentuar a vulnerabilidade. A urbanização caótica das periferias, constituída de migrantes que tendem a perder raízes culturais
e tradições, torna-se um novo e importante cenário de predisposição social para o fenômeno,
com situações mesclando solidão, anemia, exigências coletivas e incentivo ao egoísmo.
A decisão firme e os meios eficazes parecem ser as características das tentativas de
autodestruição perpetradas por homens. Muitos dos casos nem passam pelos prontos-socorros e são vistos somente nos Institutos Médico-Legais. Estamos, pois, diante de uma questão
de altas especificidades para o gênero masculino. Os homens, menos longevos do que as
mulheres, além de estarem em menor número, exporem-se mais a múltiplas formas de violência e terem expectativa de vida mais baixa, algumas vezes se dedicam a dar cabo dela, com
métodos agressivos de maior eficácia.
PERGUNTAS E CAMINHOS
O Brasil acompanha a tendência mundial de ter mais óbitos autoprovocados de homens
do que de mulheres? Quantos desses óbitos masculinos acontecem no Brasil, para cada suicídio de mulher? A percentagem de suicídios masculinos é quantas vezes maior do que a
percentagem feminina? Essa relação aumentou ou diminuiu durante as duas décadas que
marcaram a virada para o século XXI?
A forma de observação epidemiológica que usamos para conseguir essas respostas é a do
estudo descritivo ecológico transversal, cobrindo vinte e cinco anos, de 1980 a 2004, dos
quais coletamos o número de ocorrências de suicídios de pessoas residentes no país, para
cada um dos sexos. Calculamos as taxas de suicídio masculinas e femininas, por cem mil
habitantes1. Calculamos quantos suicídios masculinos ocorrem para cada suicídio feminino.
Calculamos, ainda, as médias do período e o percentual2 em que a taxa masculina é maior do
que a feminina.
OS NÚMEROS DAS CRUZES
Em 1980, a população feminina brasileira tinha 754.555 pessoas a mais do que a masculina. Essa diferença vem se avultando a cada ano e tende a aumentar à medida que a expectativa
de vida cresça, pois a longevidade das mulheres é maior (IBGE, 2002). Em 2004, já chegava
1
As taxas são os coeficientes de mortalidade a partir da divisão do número de suicídios de cada sexo pela população daquele sexo,
multiplicada por cem mil, usando dados censitários, para 1980, 1991 e 1996, e estimativas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) para os demais anos.
2
Esse percentual foi calculado segundo a fórmula usada pela equipe européia de Armin Schmidtke [100-(taxa feminina X 100)/taxa
masculina], cujo estudo das taxas mundiais de suicídio, no fim do século XX (Schmidtke et al, 1999), foi adotado pela Organização
Mundial da Saúde como modelo de apresentação de pesquisa na área.
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a mais de 2,7 milhões. Apesar de ser um número absoluto alto, ao longo dos anos a relação
matemática de quantas mulheres há para cada homem tem mudado de forma muito discreta.
Todavia, a relação do número de suicídios masculinos para o de femininos aumentou em
ordem inversa ao crescimento da população feminina.
Taxas de Suicídio por Cem Mil Habitantes, por Sexo*, Razões de Proporção e Percentual de Magnitude da
Taxa Masculina sobre a Feminina, Brasil, 1980 a 2004.
Ano
Taxa Masc.
Taxa Fem.
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
Média
4,59
4,77
4,63
5,26
5,12
4,88
4,73
5,21
4,86
4,88
5,08
5,49
5,56
5,82
6,10
6,73
6,89
6,99
6,92
6,56
6,46
7,28
7,01
7,19
7,16
5,85
1,97
1,95
1,72
2,02
1,78
1,62
1,72
1,69
1,63
1,50
1,68
1,62
1,57
1,55
1,67
1,79
1,77
1,76
1,78
1,48
1,60
1,78
1,91
1,79
1,88
1,73
Razão
M/F
2,3
2,4
2,7
2,6
2,9
3,0
2,8
3,1
3,0
3,3
3,0
3,4
3,6
3,7
3,7
3,8
3,9
4,0
3,9
4,4
4,0
4,1
3,7
4,0
3,8
3,40
% Taxa Masc
>Taxa Fem
57,1
59,1
62,9
61,6
65,2
66,8
63,6
67,6
66,5
69,3
66,9
70,5
71,8
73,4
72,6
73,4
74,3
74,8
74,3
77,4
75,2
75,5
72,8
75,1
73,8
69,66
Fonte: IBGE e Sistema de Informações sobre Mortalidade, M./S.
Nos 25 anos estudados, ocorreram 109.272 óbitos por suicídio em homens e 32.485 em
mulheres. Isso dá uma média de 4.371 mortes masculinas por ano, e de 1.299 mortes femininas por ano. Em média, para essa série histórica, a razão masculino/feminino traduziu-se
em 3,4 casos masculinos para cada caso feminino. A média da taxa masculina é maior do que
a média da feminina em 69,7%. Esta razão e este percentual, porém, mostraram alguma
tendência de crescimento3, conforme se visualiza na tabela.
O gráfico ilustra a diferença entre as linhas e a grande ascensão da curva masculina,
desde 1991, ano a partir do qual as taxas, para os homens, se mantiveram sempre acima da
média da série histórica.
3
Estatisticamente, por regressão linear, nota-se uma tendência clara de gradativo aumento desta diferença entre os sexos, pois o
número de mortes autoprovocadas em homens é muito grande, diminuindo o impacto de qualquer aumento temporário que porventura
ocorra na população feminina. Na correlação de Pearson calculou-se R=0,92; R2=0,85; R ajustado=0,85; erro padrão 0,22.
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Tendências das taxas de suicídio masculinas e femininas, Brasil, 1980 – 2004.
Fonte: IBGE e Sistema de Informações sobre Mortalidade, M. / S.
Pode-se depreender desses dados que os fatores de proteção e de imunização contra o
suicídio distribuíram-se de forma desigual entre homens e mulheres. Poder-se-á pensar que
as grandes mudanças ocorridas nas últimas três décadas, quanto aos papéis desempenhados
pelas mulheres e pelos homens na sociedade, tenham contribuído para tal fato. O papel
masculino – e em especial o papel do pai – tem sofrido ataques e entrado em crise, não só
como decorrência da liberação feminina, mas como resultado de intrincado processo cultural da modernidade. A diminuição do poder teocrático e a diminuição dos espaços de
solidariedade mecânica, exigindo condutas individuais planejadas, responsáveis e complexas
fazem parte do processo. As formas de manifestação do mal-estar inerente à cultura contemporânea aumentam a sensação de desamparo vivida pelo sujeito.
VARIÁVEIS A CONECTAR COM GÊNERO
As tentativas de suicídio socorridas em hospitais e salas de emergências médicas apresentam padrão semelhante em quase todo o mundo. O estudo multicêntrico sobre o
comportamento suicida, da Organização Mundial da Saúde e da Comunidade Européia
(Schmidtke et al, 1996), vê as mulheres como as protagonistas de tentativas sem resultado
letal, em toda a Europa, com uma única exceção documentada, em Helsinque, na Finlândia.
O fato é que as mulheres aparecem mais nos prontos-socorros após terem tentado a
auto-extinção, são atendidas e retornam às suas casas. O paradoxal é que poucos homens
fazem esse trajeto. As tentativas são muito maiores em mulheres e o fato consumado é muito
maior em homens.
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Se há, na cultura masculina, uma associação entre a tentativa de suicídio e o método
eficaz, é também possível que os atos de auto-agressão perpetrados por mulheres nem
sempre tenham a intenção de provocar o suicídio, e sejam uma forma feminina de comunicar sua aflição a outros, a fim de modificar o comportamento deles em relação a elas
(Hawton, 2000). Aparentemente as mulheres comunicam, discutem, ameaçam e jogam
com suas idéias suicidas, muito mais do que os homens. As relações sociais de sexo, também em relação ao comportamento autodestrutivo, apresentam duas categorias: conferem
diferentes posições e causam diferentes manifestações para os homens e para as mulheres,
numa mesma sociedade.
Nos homens, a intenção de dar fim à vida parece ser mais individual, menos comunicada
e mais segura. Os métodos usados são geralmente mais violentos e aplicados em locais ou em
doses planejadamente fatais. Os resultados de autópsias permitiriam pensar que homens,
mais do que mulheres, não se preocupam com o grau de violência ou de deformidade que o
método de morte escolhido possa causar ao corpo. Por isso, muitas vezes usam métodos
agressivos, tanto para se matar e para se machucar deliberadamente, quanto para maltratar
ou assassinar outras pessoas.
Em autópsias psicológicas, a doença mental tem sido vista como um fator predominante,
em grande parte dos suicídios, para ambos os gêneros e em geral pode-se encontrar mais de
um transtorno psiquiátrico ao mesmo tempo (comorbidade), na mesma pessoa. Grande número das mulheres apresenta queixas depressivas e grande número dos homens abusa de
bebidas alcoólicas.
O desemprego é uma condição comum entre doentes mentais graves. Por não haver
uniformidade de registro e nem conceituação clara e permanente nos órgãos que mantêm os
bancos de desempregados, essa é uma variável de difícil estudo. Em anos diferentes, órgãos
como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (FIESP) conceituaram de forma divergente e mutável o que se denomina
desemprego. Isso prejudica a montagem de tábuas estatísticas de longo prazo. Da mesma
forma, é difícil levantar dados objetivos sobre a influência das condições de emprego para
homens e mulheres e suas relações com a passagem ao ato suicida. Têm-se aí aspectos estudáveis
por recortes subjetivos.
O casamento deixou de ser uma variável segura, já que é difícil, no Brasil hodierno,
conceituar os status de solteiro e de casado: há solteiros nos registros civis que coabitam em
parceria na vida cotidiana; há casados nos registros civis que, tendo casa e parceria para fins
econômicos, levam vida de solteiros; há parcerias de casais em vários graus diferentes; há
casais separados que se dizem casados; há os desquitados e há os divorciados com e sem
outra parceria; há os viúvos, com e sem parceria.
Por outro lado, um casamento com filhos é bem diferente de um casamento sem filhos.
Alguns casados sem filhos têm uma vida muito semelhante à dos solteiros. Os filhos geram
um senso de responsabilidade e de vínculo afetivo intenso, já reconhecido por Durkheim
(1982) como imunizante contra o desejo de morrer.
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A religião é outra variável de difícil abordagem, no Brasil. A grande maioria da população se diz católica, mas faz a diferenciação entre católicos praticantes e não praticantes. Para
os praticantes, os rituais e o uso das redes sociais montadas pela igreja têm importância na
sua vida, diferentemente dos não praticantes. Há pessoas que se inscrevem nos censos do
IBGE como católicas, mas também praticam, simultaneamente, outras religiões, em especial
a umbanda, o candomblé e o espiritismo kardecista. Ultimamente, muitos freqüentam também as igrejas pentecostais mais novas, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Há pessoas
que trocam de religião, passando de católico a evangélico e vice-versa, muitas vezes na vida.
Mesmo que muitos se digam não praticantes, mas freqüentadores eventuais igrejas e de terreiros afro-brasileiros, são pessoas de fé.
Sem, dúvida, as relações sociais no mundo do trabalho e da economia têm sua importância como fatores de proteção e de agravamento do suicídio, mas são de difícil apreensão
como variáveis a serem cruzadas numa pesquisa.
O Sistema Único de Saúde pode absorver alguns aspectos da discussão sobre as causas da
morte voluntária, do ponto de vista da saúde pública, dando capacidade de intervenção aos
serviços de saúde mental. Por outro lado, a transição demográfica, trazendo maior longevidade,
aponta para uma tendência de aumento do número de casos em faixas etárias avançadas, o
que desperta para a necessidade de políticas públicas voltadas a dar qualidade de vida aos
idosos. As expectativas sobre a vida, organizadas para uma época de menor longevidade, de
coesão familiar e de solidariedade espontânea, podem não encontrar guarida nos ambientes
hodiernos, exigentes de outros estilos de vida e de outras formas de subjetividade.
A CHINESA E O GAÚCHO
Lótus de ouro
Na tradição chinesa o lótus é a planta associada ao nascimento e à criação. Na China
antiga era um elogio chamar uma mulher de “lótus de ouro” (Chevalier, Cherbrant, 1995). A
superpopulação do país, modernamente, talvez tenha contribuído para uma desvalorização
da maternidade e da feminilidade. Por outro lado, a sociedade chinesa mudou rapidamente
nos últimos quinze anos, adotando métodos econômicos concorrenciais e realizando uma
veloz modernização, irreconhecível para quem viveu a Revolução Cultural de Mao Tse Tung.
A China, com cerca de 23 suicídios para cada cem mil habitantes (Phillips, Li, Zhang,
2002) contém 22% da população do mundo e 40% dos suicídios (Brown, 1997). Este país
tem chocado a opinião pública ocidental, acostumada a ver a superpotência asiática apenas
como nova Meca dos investidores e exemplo de crescimento econômico. Cerca de 160 mil
mulheres morrem anualmente dessa forma, o que daria uma morte a cada quatro minutos
(Chong, 2004). A taxa feminina, 25% maior do que a masculina, sobressai-se na faixa dos 15
aos 34 anos.
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As causas apontadas são várias. Entre elas, sobressaem-se a condição precária das trabalhadoras rurais, os hábitos opressivos sobre as camponesas, a tradição dos casamentos
contratados pelas famílias, o senso de poder que os homens têm sobre as esposas, o desincentivo
a ter mais de um filho, o hábito de esperar filhos homens e lamentar o nascimento de meninas, o desdém da saúde pública para com as doenças psiquiátricas, como a depressão. A
esquizofrenia parece estar bastante ligada ao tema do suicídio: se já é difícil a uma mulher de
boa saúde mental viver em certos ambientes rurais chineses, o que se poderá dizer de mulheres discriminadas por sofrerem de uma doença como a esquizofrenia, que diminui
enormemente a capacidade de integração social e familiar da pessoa? A falta de tratamento é
apontada como um fator de deterioro da vida e de suicídio nas mulheres com sintomas
esquizofrênicos (Ran et al, 2003).
Apesar de haver aspectos ligados a doenças, os fatores culturais que a eles se sobrepõem
são apontados com os de maior impacto no padrão de suicídio feminino chinês (Zang et al,
2004). Estudos etnográficos mostram a idealização da morte como vingança pela ocupação
de um status inferior no conjunto familiar (Meng, 2002). Para a visão ocidental contemporânea, afirma Michel Phillips (1998), do Centro de Prevenção do Suicídio do Hospital Hui
Long Guan de Pequim, é axiomático que quem cometa suicídio se torne suspeito de doença
mental e por isso seja examinado. Na China, a sociedade não medicaliza o tema. Oferece a
morte, portanto, como uma opção de normalidade. Os setores oficiais da saúde pública têm
atribuído o aumento das taxas, desde os anos 90, à condição de rebaixamento das mulheres,
à mudança rápida em direção a uma economia de mercado e à disponibilidade de pesticidas
(usados como meio fácil para provocar a morte). As mulheres rurais não são as únicas, porém, a alimentar as estatísticas: pessoas de classe média urbana e vida agitada, atuando nos
mundos comercial e financeiro, também têm apresentado vulnerabilidade antes desconhecida no país. Nos ambientes de trabalho as mulheres têm enfrentado, geralmente, muito mais
estorvos e tolhimentos de que os homens. A probabilidade de serem incomodadas durante a
gravidez é ainda maior, afirma Zhan Chuhua, psicólogo de Guangzhou, uma capital provincial do sul da China.
Os técnicos em saúde têm notado, também, um número muito elevado de mortes
autoprovocadas em função de comportamentos impulsivos, especialmente entre moças de
áreas rurais. Esses comportamentos ocorrem, geralmente, sob efeito de paixões depressivas,
de abuso de álcool ou de outras drogas, ou de sintomas psiquiátricos não tratados.
Autópsias psicológicas, levantando dados de 895 mulheres que escolheram morrer,
mostravam uma idade média de 42 anos (Phillips et al, 2002). Entre elas, 63% eram tidas
como sofredoras de alguma doença psiquiátrica, mas só 9% haviam consultado especialistas. Havia histórico de tentativas de suicídio anteriores em 27% dos casos e 47% eram
ligadas intimamente a pessoas que apresentaram comportamentos suicidas. Suas maiores
queixas eram, por ordem, ligadas a problemas financeiros, à saúde e ao relacionamento
conjugal. O emprego de pesticidas disponíveis no lar, como meio de morte, ocorreu em
mais de metade dos casos.
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Lideranças de movimentos femininos chineses ligam o problema à precária auto-estima
das mulheres que limitam suas vidas ao cuidado dos trabalhos domésticos, a ter filhos e às
atividades da roça ou da granja. Muitas dessas senhoras se desesperam ao descobrir que há
um mundo maior e inacessível, cercado de barreiras sociais e educacionais e sem oportunidades abertas a elas. As revistas populares e as rádios chinesas têm publicado perfis psicológicos
de mulheres que se suicidaram e buscam valorizar mulheres fazendo carreira na cozinha ou
na costura, encorajando as jovens rurais a terem maior estima por suas vidas. Senhoras que
ultrapassaram obstáculos tornando-se alvos de respeito da comunidade, que estudaram e se
profissionalizaram são mostradas como exemplos inspiradores (Wan, 1999).
É comum, porém, dizer-se que as mulheres de muitas regiões rurais da China jamais
recebem qualquer tipo de amor, por parte de suas famílias. Esta atitude cultural estaria no
cerne da falta de vontade de mandar as garotas à escola. Muitas mulheres, desde a infância,
passam a vida inteira convivendo com um grupo muito restrito de pessoas, sem um estímulo
a pensar em si próprias. Neste sentido, a idéia de terminar com a vida é interpretada como
uma forma de fuga, ante a inexistência de novas oportunidades e de outras saídas para o
descontentamento. O sentimento de fidelidade ao marido é outro fator cultural importante:
o desejo de abandoná-lo tem sido apontado como um motivo importante para o suicídio. Há
relatos até de viúvas que optaram pela autodestruição após terem tido um caso com outro
homem, por sentirem que traíram o esposo falecido.
A forma de lidar com a raiva e a vingança na China rural tem sido apontada como outro
fator que destoa dos hábitos ocidentais (Meng, 2002). Aborrecidas com sua posição na sociedade, muitas mulheres usam a morte como desforra, especialmente se elas ainda não geraram
um filho homem. Matar-se é tido como uma forma de mostrar a raiva, recriminar e punir os
parentes. Na China pré-moderna, crê-se que as esposas suicidas retornarão como espíritos
aos seus lares para incomodar os parentes que não lhes foram justos ou agradáveis. Esse ato
de vingança tem um poderoso sentido moral. É pela possibilidade de decidir não mais viver
que a mulher chinesa pode adquirir poder. Um evento transgressor de tal envergadura é visto
como perene: permanece na memória coletiva recriando culpas, arrependimentos e medos.
Ao consumar o ato autodestrutivo, ela adquire um poder que jamais teve em vida.
CENTAURO DOS PAMPAS
O mais meridional dos estados brasileiros, o Rio Grande do Sul, apresenta os índices
mais altos de suicídio, seguidos de Santa Catarina e do Paraná, que lhe estão imediatamente
ao norte, em todas as faixas etárias. Geograficamente, no ponto cardeal oposto, esse agravamento das taxas continua, em direção ao Uruguai e à Argentina.
Até hoje os habitantes dos pampas – campos onde se cria gado – são os gaúchos que
vivem segundo a tradição das grandes estâncias pecuárias. A palavra gaúcho representa cavaleiro, peão de estância e atirador de laço e boleadeiras. A participação do gaúcho nos embates
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armados do século XIX o fez de tal forma valorizado pela aristocracia rural que a palavra se
tornou sinônimo de habitante daquela parte do Brasil. O gaúcho foi também admirado pelos
descendentes de imigrantes, pela desenvoltura com que dominava a natureza da região. O
processo de agauchamento das etnias recém chegadas foi rápido, com exceção de alguns bolsões.
No século XX, o picoteamento das grandes estâncias, repartidas em heranças, e a necessidade de diversificação da produção levaram o gaúcho campeiro a se integrar, gradativamente,
à sociedade rural. Precisou encontrar meios regulares de subsistência e abandonar o
nomadismo. Vastas áreas, com exceção das de fronteira com o Uruguai, foram aproveitadas
para a agricultura, que passou a exigir técnicas refinadas e menos mão-de-obra. A dificuldade
de sobrevivência no mundo campeiro em transformação fomentou a migração aos novos
centros industriais, como Caxias do Sul e toda a região metropolitana de Porto Alegre.
Nas primeiras décadas do século XX, o transporte ferroviário, as cercas de arame farpado, as pastagens artificiais e a divisão das grandes propriedades já tinham reduzido fortemente
a necessidade de mão-de-obra na atividade pastoril:
Despejados das fazendas, esses tipos rudes marcham para os cinturões de miséria que envolvem as cidades
do pampa, sem possuir qualquer qualificação para o trabalho citadino. O desemprego é inevitável assim
como a bebida e a depressão. Sem alternativas, voltam-se nostalgicamente para o passado, que pintam
como uma época de ouro. Daí à marginalização é apenas um passo (Gonzaga, 2002).
O gaúcho, antigo “centauro dos pampas”, e “monarca das coxilhas” se desmistificou e se
reduziu a um “gaúcho a pé”. A expressão, criada em 1935 por Cyro Martins, visa refletir a
situação de desaculturação de um povo vivendo intensas transformações que mudaram o
modo de inserir o peão na nova estrutura social. O modelo de vaqueiro do sul, o “gaúcho a
cavalo”, dá lugar à figura das periferias urbanas, sem possibilidade de retorno, à procura de
outras perspectivas, de uma vida autônoma e sem profissionalização.
Cyro Martins, psiquiatra de formação freudiana, em um conjunto de romances neorealistas, designado como a “trilogia do gaúcho a pé”4, enfoca o processo de expulsão dos
trabalhadores do campo face à inexorável modernização capitalista das estâncias. A lenta
migração dos peões de estância e seu empobrecimento nos cinturões de miséria das cidades
deixaram à vista os problemas socioeconômicos do Rio Grande do Sul. O mundo expresso
por essa literatura não deixa de ser uma visão etnológica de um povo sofrendo as dificuldades de se destacar de uma vida ligada à natureza e ao meio rural por ocasião da urbanização,
sentindo-se exilado na terra em que nasceu. Os triunfos épicos do século XIX, tempo de
guerra e valentia, assim como os lances de heroísmo individual ficam no passado e sobrevivem apenas como lendas e tradições orais. A ruptura histórica é evidente: a saga do gaúcho
deu lugar à industrialização do pampa e alterou hábitos e estilos de vida seculares. A tradição
política do gaúcho nos campos era a de sentir-se livre: assalariado e desorganizado, nunca se
vinculava a sindicatos. Partidos políticos eram-lhe interessantes pela sensação de disputa
4
Esses romances denominam-se Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova.
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apaixonada que transmitiam, lembrando tempos de lutas armadas, debates astutos e embates
físicos. Não tinha as reivindicações que os partidos esperam de um camponês: não queria
terra, nem normas para a jornada de trabalho, nem se importava por melhores salários. Nada
disso tinha a ver com a vida solta do gaúcho e seus valores ligados à natureza (Leal, 1990, p.
16). O tempo se encarregou de deixar esse clima para trás. O nascimento de movimentos
sociais de trabalhadores rurais sem terra, no Rio Grande do Sul, que se espalharam pelo
Brasil a partir dos anos 80, promovendo ocupações de latifúndios e pressões políticas em
prol da reforma agrária, muitas vezes com força destrutiva e à revelia do direito, representa
uma das novas conseqüências dessa ruptura histórica, ainda vigorante.
No Rio Grande do Sul, portanto, há uma situação melancólica capaz de emoldurar os
suicídios das periferias urbanas. E há uma situação própria dos suicídios no mundo rural remanescente. A antropóloga Ondina Fachel Leal, nas regiões campeiras do extremo sul do Brasil e
do norte do Uruguai, colheu narrativas em estâncias, referindo-se a homens que cometeram
suicídio. Em geral, gaúchos que estavam ficando velhos e cansados para o trabalho e que
estavam perdendo a gana de viver. Freqüentemente eram solteiros ou sem descendentes. Escolhiam o enforcamento como forma de morte. Este quadro típico era descrito assim:
Um homem vai ficando mais e mais pensativo sobre a vida, quieto, “só em sua solidão”. Um dia, ele faz
tudo o que fazia todos os dias e o que sempre fez sua vida inteira, monta seu cavalo e sai a camperear,
carrega uma corda consigo – provavelmente o laço que sempre carrega consigo para laçar [vacas] recolutas
– ele procura uma árvore (tarefa difícil na pradaria do pampa) e se enforca (Leal, 1990, p. 2).
O suicídio rural é aceito com certa naturalidade, como uma “coisa comum”. Nas conversas de galpão, os gaúchos classificam suas práticas sociais e visões do mundo por figuras de
linguagem, envolvendo palavras como “direito, correto, razoável, de honra, de respeito”,
sem que elas carreguem sentido de aprovação ou de censura:
A classificação em coisas que são “corretas”, “razoáveis” ou “respeitáveis” funciona como parâmetros
para a prática cotidiana e como um sistema eficaz de controle social. A ausência de instituições tradicionais na sociedade pastoril gaúcha, tais como religião, família, escola, estado ou sistema legal é notória.
Apesar de este grupo estar inserido numa sociedade complexa cheia de instituições muito bem estabelecidas,
fica claro que os gaúchos têm seus próprios valores e um entendimento peculiar sobre o que é certo e o
que é errado. Regras da sociedade como um todo têm pouca penetração e pouca legitimidade dentro do
grupo. Os recursos de linguagem definindo o correto, o razoável e o honrado formam um sistema normativo
coerente. Neste sistema, o fenômeno do suicídio é percebido como “de direito”, embora nem sempre “de
razão” (Leal, 1990, p. 6).
Logo, entre os gaúchos da campanha5, a idéia e a prática da morte voluntária, em certas
situações, para os homens, recebe uma legitimação cultural: o indivíduo é visto como alguém
que tem o direito de decidir o que deseja fazer de sua vida.
5
Campanha significa campo extenso, planície. É um dos termos usados no interior do Rio Grande do Sul para significar as áreas
rurais dos pampas, contraposta à idéia de cidade.
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Trata-se de uma sociedade na qual o tema da morte é recorrente no folclore. Como no
tango, prezado pelo gaúcho, a vida é trágica. A convivência com a morte do gado, dos cavalos e dos cães é cotidiana. Mesmo que o gado seja levado a matadouros, a morte está muito
presente na lida campeira: animais são abatidos para o consumo dos moradores da estância,
animais doentes ou irremediavelmente machucados são sacrificados, animais morrem nas
geadas e nas secas (Leal, 1990, p. 13).
A etnografia observa que essa cultura celebra o individualismo. Nela, o indivíduo precisa
se afirmar, constantemente, diante da natureza6. Individualismo, liberdade, honra e virilidade são valores prezados, para quem vive perigosamente, exposto às intempéries, entre animais
que chifram, domando cavalos chucros. Viver é, a cada dia, não temer a morte. O cavaleiro
dos pampas precisa, além da coragem, de sua força física. É graças a ela que domina a natureza. Porém, na velhice, a força começa a faltar:
Quando ele não é mais capaz de segurar o boi com o laço, quando ele começa a perder na disputa corpoa-corpo que ele trava diariamente com o animal – neste momento ele pensa na morte. Simbolicamente
este é o momento no qual ele se amarra, laça a si próprio: ele se enforca com o seu próprio laço numa
espécie de epitáfio silencioso: ele próprio é o último animal a ser domado, a ser controlado. Este é um ato
solitário; ele não permitirá que ninguém o controle. Até seu último ato ele mantém a ilusão de que
ninguém tem controle sobre ele (Leal, 1990, p. 8).
Ao perder a força, o gaúcho perde o senso de poder sobre a natureza, identificado com
sua masculinidade e seu valor. Esse poder é a condição para ser homem e fundamenta sua
identidade de gaúcho. O gaudério7 evita laços por toda a vida: casamento e filhos significam
estar amarrado; cultivar a terra significa criar raízes e fazer vínculos. Seu universo simbólico
desqualifica os vínculos e as posses, ou porque ele não os quer, ou porque ele não os pode ter.
O cavaleiro montado, solteiro e livre, não tem laços que o prendam ao solo: Coincidentemente ou não, sua morte o mantém longe do solo. O mais evidente a respeito do enforcamento
é que os pés do sujeito não podem tocar o chão (Leal, 1990, p. 9). Largando o cavalo e a terra
onde vive, que não são dele, mas do dono da estância, seu último gesto é fazer com que a
morte cultural se identifique com a morte pessoal. Se não tem mulher e filhos, o gaúcho está
livre para deixar a lida da estância e exercer a morte sob um imaginário de coragem e de
liberdade. Dessa forma evita, na velhice, depender de outros ou de outras8. A lógica que
sacrifica um boi inútil, incapaz de arar, se estende aos homens. A força física, que fora seu
6
Na poesia “Galo de rinha”, de Jaime Caetano Braun, o gaúcho se identifica com o galo: “Eu contigo sofro junto / Ao te ver quase
defunto / De arrasto, quebrado e cego / Como quem diz: ‘ – Não me entrego / Sou galo, morro e não grito” (Braun, Jaime Caetano.
Potreiro de guachos. Porto Alegre: Sulina, 1981).
7
No linguajar gauchesco ressalta o lado aventureiro, livre e sem compromissos de um homem. Parece-nos que o termo, no Rio
Grande do Sul, tem uma conotação ambivalente: ao mesmo tempo em que representa uma condição negativa, economicamente
pouco produtiva e fora das regras sociais, também representa algo valorizado e invejado, que demonstra prazer em viver, independência
e autodeterminação.
8
A cultura tradicional gaúcha sente a dependência como uma humilhação, que se torna ainda maior se um homem inútil passar a
depender de mulheres.
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trabalho e seu modo de vida, ao faltar, obriga-o a um último ato de auto-estima. É a salvação
de sua onipotência narcísica: simbolicamente, os limites frágeis entre o homem e a natureza
que o engloba são apagados pelo ato do suicídio. Esse ato pode também ser entendido como
uma incorporação pela natureza. Misturado aos elementos naturais, aos céus de quatro horizontes do pampa e aos seus animais, o gaúcho quer evitar a dor de se separar do espaço em que
viveu. Esta dor, diz Leal (1990), “talvez seja maior do que a de sua auto-aniquilação” (p.15).
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A psicanálise que faz gênero –
reflexões sobre a diferenciação sexual
Edmilson Antônio Dias
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ste artigo retoma reflexões desenvolvidas na dissertação de mestrado que defendi
no Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFSC em 1998, ligada ao Núcleo de pesquisa Margens – Modos de vida, família e relações de gênero. A escolha da teoria psicanalítica
para fundamentar as reflexões sobre questões referentes à sexualidade humana resultou de
minha identificação com as concepções psicanalíticas. Acredito que através de seus construtos,
a psicanálise oferece instrumentos teóricos para refletir sobre a construção de subjetividades,
que outros paradigmas não proporcionam.
• No desenvolvimento dos estudos de gênero, a psicologia nunca esteve na vanguarda,
como outras disciplinas da área das ciências humanas sociais (antropologia e história,
especialmente, sem deixar de citar as teorias literárias).
• Não é o que ocorre com relação à psicanálise que, se não se aventura pelos estudos de
gênero, conceito que estranha, constitui-se, no entanto, como novo paradigma, com
Freud teorizando, já no início do século, sobre o papel estruturante da vivência da
diferenciação sexual na constituição do psiquismo humano.
As disciplinas que se ocupam dos estudos de gênero costumam estabelecer diálogos carregados de tensões com a psicanálise. As tensões ocorrem em torno de um equívoco, presente
na maioria dos trabalhos feministas, sobre o pretenso essencialismo da psicanálise (um
paradigma estruturalista que teve, no entanto, outras variadas leituras, sem escapar das versões biologizantes).
Já no conhecido artigo em que Joan Scott (1990) defende a utilização da categoria gênero nas análises históricas, o diálogo dos estudos feministas com a psicanálise está explicitado.
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E Joan Scott fala da psicanálise com bastante competência, o que não ocorre em muitos dos
trabalhos de teóricas feministas que discutem com a teoria (e até mesmo de feministas psicanalistas que discutem com Freud fazendo leituras literais de sua obra, desenvolvendo
argumentações no mínimo ideológicas sobre ela).
Neste artigo, em que define gênero como “elemento constitutivo de relações fundadas
nas diferenças percebidas entre os sexos” (Scott, 1990, p. 14) e como “um primeiro modo de
dar significado às relações de poder” (idem), Joan Scott faz um balanço da produção acadêmica sobre gênero, analisando as contribuições das feministas marxistas, seus impasses quanto
às utilizações das categorias de produção e de reprodução, seus esforços para incluir o gênero
nas análises das lutas de classes (as categorias de opressão e dominação) e para trazer à
visibilidade, a questão da divisão sexual do trabalho e a consideração do trabalho das mulheres no lar que, mesmo improdutivo, contribui para a mais-valia, o sobretrabalho produzido
pelo operário para a acumulação capitalista.
Scott analisa também as contribuições das teóricas estudiosas do patriarcalismo e da
dominação histórica das mulheres, nessa forma de constituição de famílias e de sociedades.
Aqui se desenvolveram os estudos sobre a subordinação das mulheres nas diferentes culturas, e também a questão da naturalização da mulher fundada nas diferenças biológicas
entre os sexos, em concepções teóricas que, muitas vezes resvalaram para explicações
essencialistas.
No que define como a terceira posição dos estudos de gênero, Scott fala da psicanálise e
de suas contribuições à questão da produção das identidades de gênero. Distingue duas correntes de contribuições psicanalíticas aos estudos feministas: a primeira, referida às teorias
das relações de objeto, da escola anglo-americana, que caracteriza citando os escritos de
Nancy Chodorow, e, a segunda, referida à escola francesa, representada principalmente por
Jacques Lacan. Ao final de sua análise (rápida, mas pertinente, desenvolvida nas dimensões
de um artigo), Scott (1990) questiona a produção dessa linha da psicanálise, ressaltando que,
a seu ver, “as explicações limitam a produção (e reprodução) do gênero à esfera da família e
da experiência doméstica” (p. 11). Com relação à escola francesa, fundamentada “nas leituras estruturalistas e pós-estruturalistas de Freud no contexto das teorias da linguagem” (idem),
e cuja figura central é Jacques Lacan, a autora sinaliza que a ênfase se dá sobre o papel da
linguagem na significação e representação do gênero. Scott destaca as contribuições dessa
vertente teórica para a consideração da instabilidade do processo constante de construção
das identidades subjetivas de gênero na diferenciação da sexualidade, culturalmente significada.
Após, a autora critica o que considera perigo de reificação do “antagonismo subjetivamente
produzido entre homens e mulheres” (Scott, 1990, p. 12), além de acreditar que, se a maneira pela qual o sujeito se constitui permanece aberta, na teoria ela incorre, ainda, no risco de
universalizar as categorias de masculino e feminino.
A partir daí, e mesmo anteriormente, os escritos feministas estão atentos à psicanálise,
mas as críticas a ela dirigidas por inúmeras autoras não têm sempre alcançado o nível de
compreensão teórico revelado no estudo de Joan Scott.
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Rubin Gayle (1975), em artigo bastante difundido entre os estudiosos de gênero no
Brasil, detém-se sobre as obras de Lévi-Strauss e Sigmund Freud, já que esses teóricos, ao
contrário dos criadores de outros paradigmas importantes das ciências sociais, construíram
suas teorias sobre a consideração das diferenças entre homens e mulheres. Lévi-Strauss, fundamentando suas concepções teóricas sobre as estruturas de parentesco e Freud, sobre a
questão da sexualidade humana. Nesse artigo, desenvolvendo críticas que a levam a proposições muito próprias e distantes de ambos os autores, Rubin destaca, nos dois paradigmas, o
que considera brechas para a introdução de concepções essencialistas de homem e mulher.
O propósito deste artigo não é o de enveredar pelos estudos de gênero, o que outros
autores fariam com melhor preparo, mas, considerando essa vertente da produção acadêmica diversificada e abundante, tentar, por meio de um estudo fundamentado na teoria
psicanalítica, contribuir para as discussões de gênero, especialmente num terreno onde a
psicanálise tem muito a dizer: a questão da diferenciação sexual.
Por esse motivo, interessei-me mais pelas posições de feministas que se auto-identificam
como psicanalistas, sobre as articulações que estabelecem entre psicanálise e estudos do gênero.
Nancy Chodorow é a mais conhecida entre nós, por ter participado da publicação organizada por Rosaldo e Lamphere A mulher, a Cultura e a sociedade, coletânea das feministas
americanas, traduzida e editada no Brasil em 1979. Seu livro The reproduction of mothering:
psychoanalysis and the sociology of gender, escrito ainda na década de 1970, foi publicado no
Brasil com o subtítulo sugestivamente traduzido por Uma crítica a Freud a partir da mulher. No
artigo citado, Chodorow (1979), analisando a questão edipiana, ressalta o aspecto da continuidade das identificações femininas infantis com a mãe e os papéis femininos e conclui ser a
experiência edípica uma situação menos complicada para as meninas. Os meninos, ao contrário, vivenciam uma descontinuidade de identificações, já que devem realizar a ruptura das
identificações primárias com a mãe, para poderem se identificar ao pai e aos papéis masculinos,
na dissolução do complexo de Édipo. Nessa linha de reflexões, a autora vai caracterizar o
desenvolvimento de personalidades de cunho relacional nas mulheres, na continuidade de suas
identificações primárias e secundárias com a mãe e as figuras femininas, no aconchego do
mundo privado. Nos meninos, em contrapartida, a tendência é a de se desenvolverem personalidades preocupadas com a negação dos relacionamentos, na medida em que a ruptura de suas
identificações primárias com a figura materna pode levá-los mesmo a uma rejeição a tudo que
é feminino, no esforço de superação da dependência infantil em relação à mãe. Em seu artigo,
Chodorow se contrapõe, portanto, aos estudos freudianos sobre a feminilidade. Nos textos em
que fala sobre a diferenciação entre os sexos, Freud passa a negar o paralelismo inicial de suas
concepções sobre o complexo de Édipo em meninos e meninas, e a ressaltar a importância do
relacionamento feminino pré-edipiano com a mãe, com as conseqüentes dificuldades adicionais da menina, em seu caminho para a feminilidade1.
1
Caminho que coloca para a menina, além da exigência da troca do objeto de amor, a continuidade de sua identificação com a
mãe, nos momentos mesmo em que dela se afasta com hostilidade, em direção ao pai.
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Enquanto as identificações femininas seriam, para Chodorow, mais “pessoais” pelo convívio direto entre as mulheres, as identificações secundárias dos meninos, seriam
caracteristicamente “posicionais”, com “valores e traços comportamentais paternos”
(chodorow, 1979, p. 70), pelo convívio mais distante das crianças com os pais.
Para romper com esses modelos dicotômicos de personalização, a autora idealiza um
envolvimento maior dos homens nos cuidados diretos com as crianças, bem como a atuação
das mães também em outras esferas, legitimadas e valorizadas de atividades.
Robert Stoller (1993), que fez observações clínicas com crianças portadoras de alterações orgânicas sexuais e com hermafroditas, preocupou-se com o desenvolvimento da noção
pessoal de identidade de gênero. Demonstrou, através do relato de casos clínicos, a importância da atribuição social do gênero, para a auto-identificação do sujeito. Stoller discorda de
Freud (fundamentalmente) no que este concebe como um período de indiferenciação sexual
pré-edípico marcado pelo princípio masculino (a fantasia da universalidade do falo). Baseado no desenvolvimento dos conhecimentos da embriologia genética, Stoller afirma que o
princípio da vida humana, ainda não marcado pela diferenciação sexual psíquica, é dominantemente feminino, conforme ensina a biologia. Assim, a masculinidade seria, segundo o autor,
mais penosamente conquistada que a feminilidade.
Partindo dos escritos de Stoller, Emilce Dio Bleichmar (1988) também defende, em desacordo com Freud, um período pré-edípico de indiferenciação sexual, fundado no princípio
feminino. A autora procura incorporar o conceito de gênero à teoria psicanalítica, situando
o gênero “no lugar reservado ao significante” (Dio Bleichmar, 1988, p. 33) enquanto o sexo
estaria situado abaixo da linha da elipse de Sausurre, como significado2.
O fantasma da mulher fálica deve ser produzido, para manter a crença na onipotência materna, onipotência que encontrava sua sustentação em um universo governado pelas significações que emanavam da
feminilidade enquanto gênero feminino: o falicismo lhe será posteriormente acrescido não para dar conta
da masculinidade inicial, senão que tal masculinidade lhe deve ser acrescida quando esta última se institui
no símbolo privilegiado pela cultura para designar o poder. Esta passagem ao corpo ao simbólico na
determinação da identidade (...) de agora em diante deveríamos denominar identidade de gênero... (Dio
Bleichmar, p.20).
Janine Chasseguet-Smirgel (1988), contrapondo-se a Freud e seguidores, critica o que
caracteriza como a teoria do monismo sexual fálico. A autora, que enfatiza a equivalência das
diferenças geracionais e sexuais, afirma que a criança não desconhece simplesmente a vagina,
com capacidade receptora e complementar ao pênis, no período pré-edipiano (dominado,
segundo Freud, pela fantasia da universalidade do falo), mas a nega, por não ter capacidade
maturacional de penetrá-la (processo defensivo de recalcamento, motivado pela prematuração
humana).
2
Em Sausurre significado, em Lacan significante, em Dio Bleichmar gênero
significante
significado
sexo
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Quando a criança é obrigada a reconhecer a diferença dos sexos na sua complementariedade genital, vêse ao mesmo tempo obrigada a reconhecer a diferença de gerações. Isto constitui uma ferida narcisista
dolorosa que a teoria do monismo sexual fálico tenta apagar (Chasseguet-Smirgel, 1988, p. 39).
Para a autora, a inveja do pênis na menina não se funda na ignorância da vagina e no
sentimento de castração resultante dessa ignorância, mas na necessidade de combater a onipotência do poder materno (Chasseguet-Smirgel, 1988, p.42).
Chasseguet-Smirgel, como outras autoras feministas, defende, na polêmica com a psicanálise freudiana, a prevalência de um direito (poder) original materno, sobre o direito paterno
das sociedades patriarcais.
Numa posição que diverge dos autores citados, Juliet Mitchell (1979) defende o pensamento de Freud sobre a sexualidade humana, como verdadeiramente revolucionário e, neste
sentido, podendo ser colocado à serviço da causa feminista.
A Psicanálise é vista como uma justificação do status quo burguês e patriarcal (...) Certamente, isto é
verdadeiro quanto a uma certa vulgarização das teorias de Freud (...) A despeito de como tenha sido
usada, a Psicanálise não é uma prescrição para uma sociedade patriarcal, mas uma análise de uma sociedade patriarcal (Mitchell, 1979, p. 17).
Em artigo em que discorre sobre as teorias de Freud e Lacan acerca das diferenças sexuais, Mitchell (1988) enfatiza o fato de não serem, inconsciente ou sexualidade, fatores
predeterminados, mas sim históricos, com o sujeito se constituindo nas histórias inconscientes de sua sexualidade, um a um. As diferenças entre os sexos, não estando estabelecidas de
antemão, ou determinadas pela anatomia, serão construídas nas organizações da sexualidade
infantil, nas vivências das relações edipianas de identificação e nas experiências dos fantasmas de castração de meninos e meninas. Mitchell, em leitura lacaniana de Freud, ressalta que
a clínica analítica
...revela um sujeito fragmentado, de identidade sexual incerta e mutável. Ser humano é estar sujeito à lei
que descentraliza e divide: a sexualidade é criada numa divisão: o sujeito é dividido, mas o mundo ideológico esconde isso do sujeito consciente que deve sentir-se inteiro e certo de uma identidade sexual (Mitchell,
1988, p. 54).
Como se pode ver, há uma divisão clara entre os autores que se posicionam sobre as
questões de gênero (ou a diferenciação masculino/feminina) no interior do paradigma
psicanalítico. Os teóricos formados numa tradição inspirada na leitura psicanalítica de
Melanie Klein (psicanálise das relações de objeto) centram suas concepções sobre a importância das identificações primárias da criança com a mãe – a mãe como figura central
– e o princípio materno, da feminilidade, como norteador inicial e relevante, no desenvolvimento da sexualidade.
Os autores formados numa tradição inspirada na leitura de Freud feita por Jacques
Lacan, sem minimizar o papel da mãe como pólo das primeiras identificações infantis,
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reafirmam a importância atribuída por Freud à figura do pai, cuja função é a de introduzir a
criança na lei da linguagem. A metáfora paterna, conforme define Lacan.
Como já destacamos, muitas são as leituras literais da obra de Freud, em especial, com
referência à questão da diferenciação sexual Em nossa prática acadêmica e incursões junto a
alguns estudiosos de outras ciências, em especial às feministas que se ocupam dos estudos de
gênero, identificamos muitas vezes a aversão pelo tema do complexo de Édipo e aos conceitos que lhe dão sustentação, especialmente aqueles referidos à inveja fálica, castração, falo e
diferenças sexuais.
Em psicanálise, o complexo de castração e o complexo de Édipo revelam-se decisivos na
diferenciação entre feminilidade/masculinidade. Embora existam as duas tendências, dependendo da história de vida de cada um, a masculinidade ou a feminilidade aparecerá como
dominante.
O tema da castração está referido na psicanálise, diferentemente de como é considerado
no imaginário coletivo, não ao órgão anatômico, mas como símbolo de uma falta primordial,
de uma incompletude inerente ao ser humano. É esse o sentido de castração, porque o sujeito
não é completo, nem tudo pode, é dividido e se constitui mesmo na falta, como sujeito
barrado, evanescente.
A castração está fundamentalmente articulada com a ordem fálica, e não com o pênis. É
a noção de falta de pênis que promove o objeto fálico, introduzindo-o para além da anatomia. A noção de falta sugere a idéia de uma presença anterior, ou seja, de algo que já existira.
Esta falta do pênis está atrelada ao registro do imaginário, pois é ao presumir a completude
imaginária que a criança pressente que algo pode faltar.
Esta construção imaginária, que invoca imperativamente uma falta adiante do real dessa diferença, postula implicitamente a existência de um objeto, ele próprio imaginário: o falo. Este objeto imaginário sustenta,
de um extremo a outro, o fantasma alimentado pela criança a partir do momento em que ela insiste em
conceber como faltante algo que imagina dever encontrar-se ali (Dor, 1992: 75).
Conforme Hugo Bleichmar (1991), o falo é a presentificação de uma ausência, pois o
conceito de falo surge em relação a algo que se crê existir. “O pênis é, então, uma presença
que se define em relação a uma ausência possível e uma ausência que se torna possível em
relação a uma presença suposta” (p. 35).
Inicialmente, a diferenciação entre os sexos atua em conformidade com o falo como
objeto imaginário, o qual, entretanto, será determinante na estruturação da dialética edipiana,
já que promoverá uma operação simbólica inaugural. “A referência ao falo não é a castração
via pênis, mas a referência ao pai, ou seja, a referência a uma função que mediatiza a relação
da criança com a mãe e da mãe com a criança”3 (Dor, 1992, p. 73).
3
Lacan ajuda a esclarecer o distanciamento da psicanálise em relação às explicações biologizantes quando introduz os conceitos de
função paterna, referida à introdução da lei, e de função materna, remetendo à pessoa encarregada da maternagem, o Outro.
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Dessa forma, a dinâmica do complexo de Édipo se dará, então, em relação ao lugar
ocupado pelo falo no desejo da mãe, da criança e do pai, através de uma dialética que se
estenderá sob a forma do ser e do ter (o falo). Lacan introduz assim, novos conceitos teóricos
importantes para a compreensão do complexo de Édipo.
A partir daí, a mãe apresentada por Lacan, na dinâmica do complexo de Édipo, é esta
mulher – ser em falta, incompleta, em relação ao falo, esse significante da falta, da
incompletude, que está, então, sempre presente na relação mãe e filho, não uma relação
dual, portanto, uma tríade – mãe, criança, falo.
Na completude não há falta, portanto, não há desejo, não há castração. De acordo com
Lacan, a falta é a única instância capaz de promover o desejo. É neste sentido que a criança
ocupa o lugar de objeto do desejo materno, atuando como agente que complementa a falta
materna. Uma vez nesse lugar, torna-se parte do corpo da mãe, transformando-a em mulher
plena. Embora parida, a criança ainda não é posta no mundo, ao menos como sujeito.
Três tempos são observados na visão lacaniana do complexo de Édipo. No primeiro
tempo, a experiência fundamental da criança frente à mãe, é de pura dependência.
...é a experiência de seu não ter, é a experiência da frustração. Lacan põe a frustração como o verdadeiro
centro da relação mãe-filho. E ainda que a frustração da criança enquanto ligada à mãe – e dependente da
mãe – apareça em primeiro plano, o mais importante é a frustração da mãe, não a da criança – a frustração
da mãe como mulher (Miller, 1995, p. 64).
A frustração é o afeto decorrente da experiência de uma perda imaginária, sentida pela
mulher em relação a um objeto real, o pênis. Trata-se de uma experiência imaginária, porque, na realidade, a mulher nunca foi aparelhada com um pênis.
O filho vem ocupar o lugar de falo, tamponando a falta deixada pela frustração. Entretanto, o aparente Nirvana desse estádio fusional tende a esmorecer. Nesse caso, a criança
imaginária, enquanto falo imaginário, complemento da falta e habitante da fantasia materna,
é contraposta à criança real4. Segundo Lacan, esta posição ocupada pela criança imaginária,
enquanto objeto do desejo materno, transcende ao próprio objeto, uma vez que é a criança o
pólo que atua no resgate do narcisismo da mãe.
A criança percebe que a completude de sua relação com a mãe é quebrada. Ao constatar
não ser tudo para a mãe, já que a mesma apresenta outros interesses, a criança irá se identificar ao objeto de desejo da mãe, ao falo, visando completar, preencher (o buraco), a falta
presenciada na mãe. “Para agradar a mãe, é preciso e é suficiente ser o falo” (Lacan, 1970, p.
86). Ao aceitar o filho como complemento de sua falta, a mãe impõe seu desejo a ele, levando-o a não manifestar outro desejo, que não o dela próprio. Nesse caminho, como ser não
desejante de algo além dessa relação, a criança não reconhece a falta, excluindo-se como ser
desejante, mantendo-se na posição de completude, distante da castração, isto é, da falta.
4
Freud já havia apontado para a questão, frisando que os casos de depressão pós-parto atestam o abismo existente entre a criança
sonhada pela mãe e a criança parida.
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A forma como a mãe viveu a própria castração, favorece ou não, a castração do filho. “O
determinante para cada sujeito é a relação da mulher que se encontra como sua mãe, a
relação desta mulher com a própria falta” (Lacan, 1995, p. 63).
No segundo tempo do Édipo em Lacan, através do discurso da mãe, mediado por ela,
interpõe-se o pai imaginário, como objeto de rivalidade. Em duplo sentido, o pai intervém,
privando o menino de seu objeto de desejo, a mãe, e privando a mãe de seu objeto fálico, o
filho. “Em relação ao filho: não te deitarás com tua mãe. E com respeito à mãe: não reintegrarás teu produto” (Lacan, 1970, p. 89). Nesse sentido, o desejo de ambos, mãe e filho,
passa a depender do desejo do pai, do Outro do outro, ou seja, da lei paterna.
Faz-se importante destacar que a presença do pai, o homem pai, não é fundamental. A
proposição lacaniana de pai real, imaginário e simbólico, juntamente com a noção de função
paterna, esclarece o problema. Segundo Lacan, o pai que intervém no complexo de Édipo
não é o pai real, e sim, o pai imaginário, ou seja, o pai fantasiado pela criança, e o pai
simbólico, representado pelo discurso materno. Presente ou não, o pai real é um coadjuvante
no que está edipianamente em questão. Em relação ao pai imaginário e simbólico, a presença
ou a ausência são atributos determinantes, associados a uma evolução psíquica estruturante
para a criança, sendo o discurso da mãe a instância que irá presentificar o pai.
Portanto, não se trata aqui da presença do pai biológico; qualquer outro poderá ocupar
esse lugar, desde um padre do orfanato ou até mesmo uma outra mulher. O que está implícito é a “função paterna” que advém do pai simbólico, isto é, o pai mediado e significado pela
mãe. O que determina a relação edípica é a mediação da mãe, ou seja, o discurso que ela faz,
presentificando (ou não) o pai. “O que, para a criança, é estruturante, é que ela possa fantasiar um pai, isto é, elaborar a figura de um pai imaginário, a partir da qual ela investirá,
interiormente, a dimensão de um pai simbólico” (Dor, 1997, p. 29).
Insisto, é de pouco valor que na realidade esse pai esteja presente ou ausente, pois a
presentificação (ou não) dependerá do discurso da mãe. O que é mais importante é a função
paterna, advinda do pai simbólico, significado pela mãe. A criança constata que há um objeto
do desejo materno e quer ser o falo para a mãe. Nessa perspectiva, quando comparado ao
lugar do pai, é a mãe quem ocupa um destaque fundamental no destino da diferenciação
sexual, garantindo, (ou não) a assunção do pai simbólico para a criança.
Essa é a operação simbólica inaugural, cuja resolução se dá através do que Lacan concebeu
como a metáfora do Nome do Pai5. É o pai simbólico que atua como instância mediadora do
desejo da mãe, do desejo do Outro. Somente a atribuição fálica ao pai é que irá configurá-lo
5
Metáfora e metonímia são termos da lingüística. O primeiro indica a substituição de uma palavra por outra, pertencente a um
contexto diferente. O segundo designa o deslizamento de uma palavra a outra, apresentando um elo de associação, de contigüidade,
entre ambas. Jakobson relacionou essas concepções aos mecanismos (inconscientes) de deslocamento e condensação, que, de
acordo com Freud, atuam na formação dos processos do inconsciente. Tais mecanismos que se evidenciam nos sintomas, sonhos,
chistes e atos falhos, são característicos do processo de funcionamento do aparelho psíquico. Lacan, defendendo a idéia do inconsciente
estruturado como uma linguagem, desenvolve a contribuição de Jakobson, utilizando os conceitos de metáfora e metonímia como
concepções fundamentais na sua leitura da psicanálise freudiana. Segundo Lacan (1988, p. 246), em relação à metáfora “...é na
substituição do significante ao significante que se produz um efeito de significação...” e quanto à estrutura metonímica, o que há
“...é a conexão do significante com o significante...”.
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como pai simbólico, o representante da lei, “... o pai como mediação estruturante do interdito
do incesto” (Dor, 1997, p. 41).
Ante o impasse, duas possibilidades se abrem frente à criança: ser ou ter o falo. Segundo
Dor (1997) essa é a dialética fundamental na dinâmica edipiana, o momento determinante
para a inscrição da criança na função fálica, ou seja, o momento em que a criança permanece
identificada com o objeto que preenche a falta da mãe (ser o falo), ou então, renunciando a
esse lugar, identifica-se com o pai, como aquele que tem o falo, o objeto do desejo do Outro
(ter o falo). “É pelo lado do pai, de fato, que o falo, apenas imaginário na relação mãecriança, pode receber seu fundamento simbólico” (André, 1987, p. 194).
Na segunda possibilidade, o pai imaginário, introduzido pela mãe, cede lugar ao pai
simbólico, trazendo, conforme nominada por Lacan, a metáfora do Nome do Pai, a qual atua
como instância mediadora do desejo da criança, isto é, instaurando o registro da castração e
da estrutura psíquica. Dor (1997), comentando Lacan, ressalta que esses momentos do processo edipiano são fundamentais para o sujeito. Momentos em que a relação desejo/falo é
determinante para a concretização das organizações estruturais6.
Assim, a relação ternária (mãe, falo e criança), presente no primeiro tempo, é quebrada
pela dinâmica do segundo. No que regula o curso do Édipo, a função fálica supõe quatro
protagonistas: a mãe, o pai, a criança e o falo, sendo “...este último termo, o elemento central
em torno do qual vêm gravitar os desejos respectivos dos três outros” (Dor, 1997, p. 26)
Essa conjugação quadrangular é de máxima importância no processo de identificação da
criança em relação ao pai, já que o objeto de seu desejo, a mãe, é, em realidade, possuído por
outro, ou seja, o pai, cuja lei a mãe mesma referencia.
No terceiro tempo, por meio de sua intervenção, o pai passa a ser visto não mais como
sendo o falo, o objeto de desejo da mãe, mas sim, como tendo o falo. Esse é o momento em
que a angústia da castração é deflagrada com todo o seu rigor. A renúncia à mãe fálica
implica a confrontação com o real da diferença entre os sexos, exatamente aquilo do qual a
criança, menina ou menino, nada quer saber, o objeto suposto faltar, o falo, e também, as
conseqüências desse fato: ser castrado ou não ser castrado. Essa constatação é angustiante
porque revitaliza a castração, no caso da menina, e por outro lado, no caso do menino,
desperta a ameaça de castração.
Insisto que se trata de uma castração simbólica, dirigida a um órgão imaginário, ou seja,
ao falo. A castração a ser simbolizada é a da mãe.
Ante a perspectiva do terceiro tempo da dinâmica edipiana em Lacan – ter o falo – a
criança poderá seguir o caminho que a levará a se aproximar do pai, buscando identificar-se
a ele (o que tem o falo), que representa a lei, resultando dessa identificação o Ideal do Eu, ao
final do Édipo.
6
A partir da posição ocupada pelo sujeito frente à castração, ou seja, a simbolização da castração, é que se configura uma determinada
estrutura psíquica, sejam elas, perversas, obsessivas, histéricas ou psicóticas.
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Através da dinâmica entre o ser ou ter o falo, a criança, menino ou menina, se insere no
campo das identificações. É o processo identificatório que indica o caminho para a feminilidade e a masculinidade. A castração atua indistintamente na criança, meninos e meninas. Na
dinâmica identificatória, a criança aceita (ou não) o real da diferença entre os sexos, aceita a
castração (simbólica) e a falta na mãe, (ou não), articulando-se como ser em falta na conjunção do desejo.
Essas reflexões tiveram a intenção de fazer vislumbrar a complexidade das elaborações
psicanalíticas a respeito da diferenciação entre os sexos, desde Freud e, muito particularmente, na leitura e desdobramentos de sua teoria feitos por Lacan. Podemos, assim, retornar aos
textos de Juliet Mitchell, quando opina que as teóricas feministas teriam mais a ganhar com
a discussão e incorporação de conceitos da psicanálise freudo-lacaniana, em vez de rejeitá-los
sumariamente, sob a acusação de misoginia /patriarcalismo, tanto dos autores como das teorias que elaboraram.
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Eu, tu, elas... in the ghetto: os
sentidos do homoerotismo feminino
sob a ótica do território
Juliana Perucchi
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s estudos sobre a homossexualidade tomaram fôlego com a ascensão – não apenas, mas fundamentalmente – dos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos, dos
direitos civis de lésbicas e gays e da liberdade sexual, que tiveram início há aproximadamente
três décadas nos Estados Unidos (1969-1970) espalhando-se em seguida pela Europa, para
então se difundirem pelo mundo. Nessa linha de investigação destacam-se os estudos de
gênero que contemplam, sobretudo, o próprio recorte proposto neste texto.
Este artigo é fruto da análise desenvolvida em uma investigação de dois anos, com pesquisa de caráter etnográfico cujo objetivo foi investigar os sentidos que mulheres lésbicas
atribuíam às relações sociais que estabeleciam em um gueto LGBT1 da cidade de Florianópolis,
Brasil. Trabalhando com os relatos das informantes obtidos por entrevistas, buscaram-se
identificar, por meio da análise de conteúdo, os diversos sentidos do homoerotismo feminino, à luz dos pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural.
A decisão de trabalhar conceitualmente com o termo homoerotismo sustenta-se na perspectiva de que tal conceito, cunhado por Jurandir Freire Costa (1992), descreve adequadamente
as práticas ou os desejos dos sujeitos em sua pluralidade, desmontando concepções essencialistas
ou normalizadoras. Tal exercício conceitual apresenta uma redefinição de categorias que
1
LGBT, sigla que define Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros. A letra T da sigla LGBT era originalmente utilizada para identificar
os travestis e/ou transexuais, mas atualmente tem sido utilizada para identificar uma categoria mais abrangente de pessoas – os
transgêneros. Pelo fato de, tecnicamente, os transexuais poderem não estar incluídos nos transgêneros, algumas pessoas preferem
utilizar apenas a expressão “trans” para mais corretamente abranger todas estas pessoas. Na maior parte das sociedades os crossdresser
e travesti são abrangidos pela definição de transgênero. (Crossdresser – indivíduo que gosta de utilizar roupas usualmente próprias
do sexo oposto, sem que tal atitude implique necessariamente sua orientação sexual. Transexual – pessoa que possui uma identidade
de gênero oposta ao sexo designado no nascimento. Travesti – pessoa que possui sua identidade de gênero oposta ao sexo designado
no nascimento mas que não almeja se submeter à cirurgia de adequação sexual. Travesti também se refere a pessoas que misturam
as qualidades tradicionalmente associadas ao masculino e ao feminino, não se identificando necessariamente como mulheres ou
homens, mas como travestis.)
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implica um novo olhar sobre o fenômeno, justificado em três aspectos básicos. O primeiro está
no deslocamento do termo, do espaço da patologia, do desvio e da anormalidade para o âmbito
da cultura e da pluralidade. O segundo motivo está na historicização do conceito, recusando
idéias reducionistas ou naturalizantes. E, por fim, o fato de que a noção de homoerotismo não
possui um modelo substantivo que indique identidade, o que vai de encontro, conseqüentemente, à concepção de um tipo humano específico, de sujeitos idênticos entre si. “Assim sendo,
quando emprego a palavra homoerotismo refiro-me meramente à possibilidade que têm certos
sujeitos de sentir diversos tipos de atração erótica ou de se relacionar fisicamente de diversas
maneiras com outros do mesmo sexo biológico” (Costa, 1992, p. 22).
A delimitação de escolha das participantes da pesquisa, exclusivamente mulheres, destaca uma tendência cunhada no seio das produções feministas e continuada na perspectiva dos
estudos de gênero: destacar o lugar que as mulheres têm ocupado nos estudos científicos. O
presente trabalho vai ao encontro da proposta de repensar a ciência do ponto de vista das
mulheres, de dar-lhes espaço de palavra, na tentativa de desconstruir o modelo androcêntrico
que marcou, por muito tempo, os estudos científicos na área da psicologia.
A incursão pelos estudos micropolíticos, pelas análises do cotidiano e dos modos-de-vida, sem contudo
desconsiderar os aspectos macroestruturais, parece ser um veio interessante na direção que se aponta
aqui. A construção de novas categorias, de um arcabouço conceitual que dê conta dessas realidades, elas
mesmas plurais, parece poder encontrar nesses estudos um campo fértil, fecundo de investigação. A
identificação dos inúmeros agenciamentos de subjetivação que atravessam o sujeito cotidianamente, entre os quais os oriundos do gênero, da posição social e da raça, parecem ainda necessários para que se
possa efetuar a desconstrução das categorias por demais impregnadas por uma visão sexista, classista e
etnocentrada (Siqueira, 1997, p. 277-278).
O estudo de tais agenciamentos constitui uma perspectiva de pesquisa pertinente para a
psicologia, na medida em que discute a concepção de identidade pessoal socialmente construída
e inacabada, legitimando gênero como categoria útil para se problematizar e investigar alguns aspectos fundamentais no processo de constituição da subjetividade.
O método da pesquisa foi norteado por uma estratégia cunhada no campo da antropologia e, devido à sua ampla envergadura nas pesquisas desenvolvidas, vem se estendendo por
outros campos disciplinares: a etnografia. Segundo Cláudia Fonseca (1999), “a etnografia é
calcada numa ciência, por excelência, do concreto. O ponto de partida deste método é a
interação entre pesquisador e seus objetos, ‘nativos em carne e osso’. É de certa forma, o
protótipo do ‘qualitativo’”(p. 58). No registro das informações o diário de campo mostrouse uma ferramenta fundamental que possibilitou ordenar elementos específicos e gerais sobre
o tema e a dinâmica da investigação, sobretudo, quanto à observação, auxiliando no processo de caracterização e mapeamento do campo.
No que se refere ao tratamento das informações coletadas no trabalho de campo, destaca-se a análise de conteúdo das entrevistas, que problematiza o gueto como categoria nativa
e como categoria de análise, discutindo as vicissitudes desse território, as trocas simbólicas,
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os significados atribuídos às práticas que ali se processam, as relações sociais em que subjetividades se constroem, o trânsito dos sujeitos e os lugares sociais por eles ocupados.
No decorrer da leitura do artigo se poderá perceber a complexidade das relações sociais
que se processam no interior do gueto, carregadas de historicidade e constituídas na dialética
do processo social. Relações múltiplas e repletas de tensões que se evidenciam no cotidiano
desses sujeitos.
O GUETO COMO ESPAÇO DE PROTEÇÃO E DE EXCLUSÃO
O conceito ghetto tem sua origem nas concepções teóricas formuladas pela Escola de
Chicago e é aplicado para denominar os locais de lazer, de compras e de residência de certos
grupos minoritários nos Estados Unidos. Parece pertinente discutir esse outro conceito aqui
utilizado: minoritário. Neste sentido, é preciso atentar para algumas questões que se referem a
sujeitos em situações sociais e históricas específicas. Quando se discutem as condições desses
sujeitos como “minoria” remete-se à noção de condições de desigualdade social, ou em situações e posições sociais hierarquicamente inferiores. Dizendo de outro modo, a noção de minoria
contempla pessoas ou grupos “em desvantagem a” e não “em menor número que”.
Dito isso, é imprescindível que se compreenda que o que é aqui denominado gueto LGBT
florianopolitano: trata-se de um espaço cultural e de lazer, uma boate2 localizada no centro
urbano da cidade de Florianópolis. Nesse espaço circulam determinadas práticas e vivências
homoeróticas de diferentes sujeitos que, segundo Costa (1992), têm possibilidade de sentir
diversos tipos de atração erótica ou de se relacionar fisicamente de diferentes maneiras com
outras pessoas do mesmo sexo biológico que o seu. Essa perspectiva desloca o foco da investigação para as práticas possíveis no campo da sexualidade e não exclusivamente para a identidade.
Os reparos que provocam a aplicação literal do conceito de gay ghetto de Levine (1979), com sua carga de
homogeneização, têm a ver não somente com a operação de ‘modelização’ que esse contrabando ideológico poderia eventualmente acarretar, mas também com “dissimilitudes” reais entre as populações
homossexuais norte-americanas ou “metropolitanas”, de um lado, e as brasileiras ou até latino-americanas em geral, do outro (Perlongher, 1987, p. 64).
Uma diferença importante do conceito formulado pela Escola de Chicago e o aqui proposto para designar a realidade investigada, é a de que a concentração de homossexuais no
gueto florianopolitano é reconhecida como deliberada, ao contrário dos espaços que receberam a denominação norte americana em que, num primeiro momento, a concentração de
pessoas deveu-se à forte repressão social.
2
Boate, no vocabulário local, é sinônimo de danceteria. No ano em que a pesquisa foi realizada (2001), essa não era a única
danceteria reconhecidamente gay de Florianópolis, nem tampouco o único espaço que agregava um público predominantemente
homossexual – a capital tem inclusive uma “praia gay” – mas esse espaço foi escolhido para tal pesquisa por ser, naquela ocasião,
uma das mais conhecidas de Santa Catarina, ou seja, com um trânsito mais intenso de pessoas.
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Essa suposta deliberação não significa, todavia, que o gueto florianopolitano não caia na
lógica da desqualificação social da diferença. Ao contrário, ele carrega o paradoxo de ser
simultaneamente espaço de proteção e de exclusão. Nos limites da boate os freqüentadores
têm a liberdade para agirem de acordo com seus interesses e desejos, estando protegidos de
agressões e manifestações de preconceito. Essa liberdade, contudo, se restringe a aquele espaço. Portanto, a escolha desses sujeitos em freqüentar ambientes de lazer com seu/sua parceiro/
a de forma segura e isenta de manifestações homofóbicas fica limitada aos locais reconhecidos e aceitos socialmente como guetos gays.
O gueto aparece, na fala das informantes, destacando o seu caráter de cerceamento do
trânsito das pessoas. Não significa que as mulheres que freqüentam esse espaço não possam,
de fato, ir a outros ambientes. O cerceamento é mais sutil e se aplica sob a forma da impossibilidade delas “ficarem à vontade com a namorada” ou de sentirem-se seguras para poderem
“demonstrar atração” por uma outra mulher em outros ambientes que não sejam reconhecidos como guetos gays.
Tais locais configuram-se como espaços de proteção e liberdade ao mesmo tempo em
que transcendem sua função de entretenimento e de lazer. O sentimento que algumas informantes estabelecem com o gueto (uma vez assumido para si mesmas o desejo afetivo-sexual
por outras mulheres) é descrito como muito próximo da proteção, da liberdade e do conforto, associados ao espaço da casa: “a partir do momento que eu me aceitei como lésbica e
comecei, na minha adolescência, a freqüentar ambientes gays e ver que eu não era a única no
mundo, que existiam várias pessoas como eu, eu passei a me sentir em casa nestes espaços.
Acabei freqüentando assiduamente”, afirma uma das entrevistadas. É nesse campo da experiência que se processam tanto o reconhecimento da vivência pessoal das sensações e percepções
corporalmente significadas, quanto a identificação social dos sujeitos com os outros que
também vivenciam tais experiências. Vivências que se constituem como componentes do que
Norma Fuller (1997) descreve como o processo de recriação diária da identidade, pela atuação cotidiana dos sujeitos e do relato de si mesmo.
Quando indagadas sobre as motivações que as levavam a freqüentar ambientes reconhecidos como guetos LGBT, todas as entrevistadas relataram cada uma ao seu modo, a intenção
de encontrarem pessoas com as mesmas orientações sexuais. “Eu acho que o que leva outras
mulheres a freqüentar [o gueto] é porque lá você encontra outras mulheres com a mesma
preferência [sexual],” afirma uma informante. “(...) fomos lá pra saber o que rolava naquele
lugar, pra ver se encontrávamos gente que tivesse histórias parecidas”, relata outra entrevistada. Ou ainda, (...) “eu gostei de sentir que as pessoas eram iguais a mim. Gays!”. As afirmações
refletem os sentidos da identificação dessas mulheres com outras mulheres (e outros homens)
que vivenciam experiências homoeróticas. O fragmento de um dos relatos exemplifica adequadamente essa aproximação:
O que passa pela minha cabeça é mais ou menos isso: eu te conheço, você é gay e por isso você está mais
próximo de mim! Venha aqui! Você é mais meu amigo do que qualquer um! Pelo simples fato de você ser
gay! Porque você vive as mesmas aflições que a sociedade me impõe!
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TU, ELAS... IN THE GHETTO: OS SENTIDOS DO HOMOEROTISMO FEMININO SOB A ÓTICA DO TERRITÓRIO
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Esses relatos apontam à necessidade de se atentar para estas experiências, datadas historicamente e significadas a partir de um dado contexto social. Portanto é fundamental que a
investigação não naturalize a experiência, ao contrário, como afirma Joan Scott (1999), é
pertinente que se tratem todas as categorias de análise como contextuais, passíveis de contestação e contingentes.
Experiência não é uma palavra sem a qual podemos passar, apesar de ser tentador, dado seu uso corrente
para essencializar a identidade e reificar o sujeito, abandoná-la totalmente (...) Dada a ubiqüidade do
termo, parece mais útil trabalhar com ele, analisar suas operações e redefinir seu significado. Isso exige um
enfoque nos processos de produção da identidade, uma insistência na natureza discursiva da “experiência” e na política da sua construção (Scott, 1999, p. 47-48).
Percebe-se a importância da experiência de se sentir à vontade, protegida e, ao mesmo
tempo, livre para se expressar diante dos outros que lhe são significativos. Entretanto, a análise
evidencia que, no contexto territorial do gueto, o outro é um “semelhante”, alguém “igual a
mim”. Eis a cumplicidade, construída em processos de identificação. Como afirma Celi Regina
Pinto (1992) “O gueto não pode ser entendido simplesmente como marca de retraimento,
medo de expor-se ou reafirmação da exclusão. É também, e, talvez principalmente, regido pelo
princípio de prazer, de pertinência, da consciência de estar entre iguais” (p. 113).
O espaço da boate é reconhecido unanimemente pelas informantes como mediação importante para que os sujeitos posicionem-se criticamente diante do seu contexto sócio-histórico.
Aparece como lócus de (re)produção de modos de vida e conseqüentemente de constituição
de subjetividades, tendo movimentos de aproximação e de afastamento, bem como de identificação e de diferenciação, como elementos fundamentais do processo.
Não se trata apenas, portanto, de um solo fértil para a criação-reprodução-perpetuação
de subjetividades individuais ou de uma identidade grupal oriunda de modos de vida semelhantes ou de interesses em comum. A boate como espaço, territorialmente circunscrito e
temporalmente datado, é apontada pelas informantes como um reflexo da própria sociedade
– também delimitada histórica e territorialmente no contexto sociourbano da cidade de
Florianópolis. As trocas sociais que se estabelecem no interior da boate constituem as relações desses sujeitos que encontram nesse espaço e nos outros que ali transitam a mediação
para se posicionarem e agirem no processo grupal. Desse modo, as transformações se processam em nível individual – do sujeito implicado no processo – e, simultaneamente, em nível
coletivo – do intenso fluxo de sujeitos que transitam por esse espaço.
A complexa relação paradoxal proteção/segregação que constitui essa territorialidade
remete às discussões sobre “região moral”3, que se referem ao contexto e à freqüência de
certas populações em se agruparem em áreas específicas do espaço urbano, suas perambulações
(trânsito) à procura de sexo, diversão, prazeres e “outros vícios próximos à ilegalidade”. Tal
3
Nestor Perlongher (1987) sobre o conceito de Robert Park (1973).
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definição abrange uma gama diversificada de espaços urbanos e, apesar do gueto poder estar
implicado nesse contexto, esse conceito não o caracteriza em sua complexidade como espaço
onde se constituem redes de relações sociais, que implicam modos de vida, linguagem, sinalizações e trocas entre sujeitos homoeróticos.
A boate foi assimilada pela cidade como espaço de lazer voltado predominantemente ao
público LGBT e, neste sentido, as batidas policiais freqüentes nos locais da chamada “região
moral” – descrita por Perlongher – não ocorrem ali, exatamente por não lhe ser atribuído um
caráter de ilegalidade e clandestinidade. É um local de lazer como outro da cidade – mantendo, contudo, suas especificidades em relação ao atendimento da demanda de seu público.
Este gueto LGBT de Florianópolis se diferencia exatamente em: 1) ter sido assimilado/
tolerado pela cidade como espaço de lazer voltado predominantemente ao seu público. 2) O
gueto florianopolitano não fecha os critérios de classificação propostos pela Escola de Chicago, já que ele possui um caráter de “passagem”, ou seja, de trânsito de pessoas que buscam
diversão no mesmo espaço. Assim, o critério “concentração residencial” colocado por Wirth
(in Perlongher, 1987, p. 52) para definir ghetto não é cumprido. Esta é uma característica
fundamental desse território da capital catarinense: um local onde, pessoas com interesses e
gostos semelhantes encontram-se para se divertir.
É inevitável que indivíduos que buscam as mesmas formas de diversão (...) devam de tempo em tempo se
encontrar nos mesmos lugares. A população dessas áreas – que nem necessariamente reside, mas apenas
perambula pelo local – tende a se segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de acordo com
seus gostos e temperamentos (Park, in Perlongher, 1987, p. 47).
A proposta de trabalhar com o conceito gueto sob a ótica do território implica utilizar
um termo que, como pôde ser evidenciado em diversos momentos da fala das informantes, é
corrente no discurso dessas pessoas. A palavra gueto já está assimilada por alguns sujeitos que
freqüentam a boate, como denominação desse espaço de lazer, especificamente. Por outro
lado, essa perspectiva demanda uma compreensão mais completa da sua dinâmica social, na
medida em que contextualiza o leque de trajetórias que marca as “territorialidades flutuantes” do espaço urbano estudado.
Essa noção de territorialidade possibilita pensar os movimentos dos códigos e as transações (trocas) simbólicas – que constituem as relações entre pessoas em um determinado espaço
social e são por elas constituídas – como engendradas em um plano de reconhecimento entre
as pessoas, no qual significados são construídos a partir das experiências e legitimados (ou
não) pelo grupo. Assim, tal noção parece possibilitar o entendimento das concepções dos
sujeitos que freqüentam o gueto, como histórica e culturalmente construídas, no contexto
das relações sociais.
Neste sentido, a possível comparação dessa realidade florianopolitana com os territórios
fixos dos gay ghettos norte americanos é restrita e deve ser feita com muita cautela, pois a
“cultura gay” das cidades americanas constituiu-se a partir de elementos bastante peculiares
e próprios daquele contexto sócio-histórico. A concentração de gays e lésbicas em determinados
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espaços urbanos dos Estados Unidos da América, como nas cidades de São Francisco e Nova
York, por exemplo, aumentou significativamente na última década do século XX4. Tal
crescimento ocorreu devido, fundamentalmente, ao aumento do número de lésbicas, aumento
da imigração de gays e consolidação de parcerias estáveis entre pessoas do mesmo sexo.
O aspecto mais significativo foi que os gays se estabeleceram predominantemente em determinadas áreas
da cidade, formando autênticas comunas, em que residências, negócios, propriedades, bares, restaurantes, cinemas, centros culturais, associações comunitárias, reuniões de rua e celebrações teceram uma
malha de vida social e autonomia cultural: um espaço de liberdade (Castells, 1999, p. 248).
A fixação, residencial e profissional desses espaços é característica da modernidade tardia (Stuart Hall, 1999). Gays e lésbicas organizaram-se politicamente no contexto de algumas
cidades norte-americanas, no sentido de fazerem valer os seus direitos como cidadãos, chegando inclusive a exercer uma influência bastante considerável no governo local –
principalmente na cidade de São Francisco. Uma das exigências vitoriosas desses grupos em
relação às decisões e estratégias de planejamento urbano da cidade foi o recrutamento de
gays e lésbicas para integrarem pelo menos 10% da força policial.
Essa concentração espacial é realmente uma marca da cultura gay em quase todas as cidades, embora nos
anos 90, em decorrência da maior tolerância e porque um número cada vez maior de gays vem assumindo
sua homossexualidade, eles tenham-se espalhado por todas as áreas metropolitanas dos Estados Unidos,
para horror dos conservadores homofóbicos (Castells, 1999, p. 249).
Segundo tais análises, são dois os motivos principais para essa concentração territorial
da cultura gay norte-americana: conseguir visibilidade e proteção. A visibilidade consiste,
nesse processo geográfico/político, em uma estratégia de posicionamento público que remete
a uma nitidez em relação aos modos de vida constituintes desse universo. A proteção surge
exatamente da coesão que abarca essas coletividades. As chamadas “áreas liberadas” são
espaços de legitimação da própria visibilidade. O propósito seria garantir a liberdade de
expressão e de condutas nesses espaços, construindo novas concepções entre os cidadãos e
desconstruindo velhos paradigmas preconceituosos e equivocados a respeito de uma suposta
“cultura gay” e das pessoas que dela fazem parte.
Para poderem se expressar, os gays sempre se juntaram – nos tempos modernos em bares e lugares social
e culturalmente marcados. Quando se conscientizaram e sentiram-se suficientemente fortes para “assumirem” coletivamente, passaram a escolher lugares onde se sentiam seguros e podiam inventar novas vidas
para si próprios. Os limites territoriais dos lugares selecionados tornaram-se as bases para o estabelecimento de instituições autônomas e a criação de uma autonomia cultural (Castells, 1999, p. 249).
4
Manoel Castells (1999).
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Parece questionável a idéia de que essa concentração apontada por Castells (1999) represente de fato uma autonomia cultural, mesmo no contexto norte americano. Não se pode
ignorar que tais bairros e seus respectivos estabelecimentos de comércio e moradia estão
inseridos em um contexto urbano amplo e repleto de elementos que condicionam e influenciam os processos humanos nesses espaços específicos.
Nessa linha de reflexão, pode-se supor que os motivos que levam determinados sujeitos
a escolherem freqüentar – e no caso dos guetos norte-americanos, morar em – alguns espaços
e não outros são variados e nem sempre óbvios. A escolha não é necessariamente crítica,
podendo, ao contrário, ser mediada por condições implicitamente discriminatórias e não
percebidas como tal pelo sujeito que, alienado de sua posição de sujeito sujeitado, reconhece
sua escolha como deliberada e crítica, quando, de fato, é influenciada por condições históricas, sociais, políticas e econômicas, do próprio contexto em que está inserido.
Analisando os laços estabelecidos nas relações sociais investigadas percebe-se não apenas
a coerência com o contexto contemporâneo globalizado – que produz transformações de
impacto sobre o cotidiano das pessoas – mas, sobretudo, a constituição discursiva dos diversos estilos que se manifestam no contexto da boate. Assim, as roupas, o corte de cabelo, a
postura e outras manifestações “servem de cimento” dos discursos como práticas, de modo
que “a teatralidade instaura e reafirma a comunidade. O culto do corpo, os jogos da aparência só valem porque se inscrevem numa cena ampla em que cada um é, ao mesmo tempo, ator
e espectador” (Maffesoli, 1998, p. 108).
O que possibilita ao sujeito posicionar-se com tamanha propriedade na cena social é dentre outras, a sua capacidade de se comunicar e de estabelecer intercâmbio no contexto em que
se insere. E são estas duas características, a comunicação e o intercâmbio social, duas funções
básicas da linguagem. Trazendo a discussão para o âmbito da linguagem, Denise Portinari (1989)
afirma que o discurso do homoerotismo feminino habita a linguagem, ocupando um espaço
singular neste campo. Sua singularidade estaria em certo silêncio que paira sobre o fenômeno.
O não dito é apontado não como lacuna, mas como possibilidade de compreensão. O silêncio,
lembra a autora, faz parte da fala e, por conseguinte, é constitutivo do discurso.
A autora não nega a possível relação entre o silêncio referente ao homoerotismo feminino e um silêncio maior que paira sobre o universo feminino como um todo, porém, aponta
um jogo da linguagem onde a homossexualidade não estaria em oposição à heterossexualidade,
mas, sobretudo, à própria sexualidade de modo geral, na medida em que esta pertence ao
âmbito da fala, domínio predominantemente masculino.
(...) podemos observar primeiro que se trata de um silêncio relativo, pois, se se faz notar, é pelo contraste
estabelecido com o ruído produzido em torno da sexualidade e da homossexualidade masculinas. Costuma-se atribuir essa disparidade ao prolongado monopólio exercido pelos representantes do sexo masculino
sobre a história e a cultura. (...) Assim, a temática do silêncio nos serve de introdução a uma outra e
importante figura do discurso da homossexualidade feminina: aquela que a delineia como o lugar de uma
feminilidade em revolta, ou como um lugar onde o signo feminino ensaia uma busca de si mesmo através
da exclusão do termo masculino (...) (Portinari, 1989, p. 43-44).
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Nesse sentido, pode-se propor que essas mulheres, por meio de tais conjunturas
interpessoais no interior do gueto, encontram na estética, na aparência e na vivência da
experiência imediata e concreta, nos estilos, enfim, nas diversas nuances de suas relações, um
meio de se reconhecerem e de se posicionarem no mundo. Esse reconhecimento refere-se
não apenas a pessoas com possibilidade de sentir diversos tipos de atração erótica ou de se
relacionar fisicamente de diversas maneiras com outras do mesmo sexo; mas, fundamentalmente, como pessoas que convivem em sociedade.
AS MULHERES... SEUS ESTILOS...
A dinâmica social no interior do gueto também se manifesta no caráter cambiante dos
estilos que as próprias mulheres constroem ou assimilam para si. Gradações entre masculinidades e feminilidades cujos limites apresentam-se bastante tênues, constituindo os modos de
vida desses sujeitos – estilos que se manifestam no contexto do gueto, mas que transcendem
os limites físicos e simbólicos daquele espaço.
As informantes relataram a existência de estilos bastante próprios que acabam por diferenciar os grupos de mulheres no contexto da boate. Esses estilos parecem estar implicados
discursivamente em um conhecido pressuposto pautado na lógica binária de dois extremos:
machos e fêmeas, na medida em que diferenciam os grupos em fanch e ladys5 ou, segundo os
relatos, “mulheres mais pesadas”, “caminhoneiras”, “mulheres masculinizadas” e “mulheres
mais leves”, “mulherzinhas”, “mulheres femininas”.
Esses elementos das falas das informantes, sustentados em uma assimetria entre masculino e feminino, evidenciam certa transitoriedade na dinâmica dos estilos em um leque de
sentidos que vão de um pólo “mais masculino” para outro “mais feminino”, estabelecendo
nuances dinâmicas de um ponto a outro. Como afirma uma das entrevistadas:
A questão dos estilos é um pouco complicada porque parece que todo ano tem uma ‘nova geração’.
Então assim, tem anos que entram algumas meninas que são superfemininas e tal. De repente entram
umas outras que são supermasculinizadas.
Outra informante relata que
(...) tem algumas meninas que ficam na fronteira, tem uma garota que eu conheço que quando ela
começou a freqüentar [o gueto] ela ia bem mulherzinha e depois ela deu uma virada, engordou, começou
a usar umas calças baixas, camisa e agora ela voltou a usar vestido e outras roupas de mulher.
5
Peter Fry (1982) trabalhou as noções de bofe e bicha como modelo hierárquico de relações entre homens e da classificação de
identidades sexuais masculinas. A partir desse estudo pode-se estabelecer uma análise comparativa à classificação dessas duas
categorias (lady e fanch) referentes à realidade das mulheres investigadas, sendo que tais termos aparecem como categorias nativas
freqüentes em algumas publicações gays norte-americanas e até mesmo brasileiras, como a revista Sui Generis, por exemplo.
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Ou ainda:
No passado tinha muita mulher masculinizada, poucas meninas mais femininas. Agora, de uns tempos pra
cá, as mulheres que usam saia, vestido, começaram a aparecer. (...) Então eu acho que de uns tempos pra
cá as mulheres estão se ‘feminilizando’.
Tais afirmações apontam uma racionalidade na qual masculino e feminino aparecem
hierarquizados. Essa bipolarização característica, de modo geral, dos sentidos que as mulheres entrevistadas atribuem às relações sociais que estabelecem no gueto LGBT florianopolitano
e, especificamente, dos estilos do homoerotismo feminino, merece atenção.
A relação entre masculino e feminino é processada na própria dinâmica do cotidiano
como assimétrica e desigual. Trata-se de um modo de ascendência social que se produz na
base de um processo de naturalização do feminino, inerente à noção de fêmea, e do masculino à noção de macho. Como afirma Miguel Vale de Almeida (1996) “a relação entre feminino
e masculino não é como as duas faces de uma moeda na avaliação moral, mas sim assimétrica,
desigual” (p. 165). É interessante a proposição do autor a respeito dessa “colagem” ou como
ele mesmo aponta, a compactação entre “macho”, “homens” e “masculinidade”.
Masculinidade e feminilidade não são sobreponíveis, respectivamente, a homens e mulheres: são metáforas de poder e de capacidade de acção, como tal acessíveis a homens e mulheres. Se assim não fosse, não
se poderia falar nem de várias masculinidades nem de transformações nas relações de gênero (Almeida,
1996. p. 162).
Se a identidade de gênero corresponde ao sentimento de pertencer ao sexo feminino ou
ao sexo masculino6 e se sexo implica em significação cultural do corpo; então, pode-se conceber que identidade é a própria construção histórica de si mesmo, que cada pessoa vai
reorganizando ao longo de sua vida e em relação ao contexto em que se insere. Trata-se da
unidade inacabada e dinâmica que contempla as posições dos sujeitos na dinâmica social.
La identidad es recreada a diario a través de la actuacion cotidiana y del relato de si mismo; cada sujeto narra
a sì mismo y a los otros su biografía y, en el acto mismo de relatarla, le confiere coherencia y continuidad. No se
trata pues de un cuerpo fijo y acabado de representaciones acerca del yo que cada sujeto actualiza en la
práctica sino de una construcción histórica que cada persona va reajustando a largo de las diferentes etapas de
su vida y de acuerdo al contexto en ele que atua. En consequencia, para entender la identidad es necesario
explorar las diferentes posiciones que los sujetos han ocupado através de su vida, estabelecer quiénes han sido
los otros en estas interacciones y cuáles fueron las definiciones y normas relativas al contexto que circularon
entre los actores (Fuller, 1997, p. 17).
Em uma perspectiva histórico-cultural sobre a constituição da subjetividade, tal processo não é entendido como um sistema binário entre dois pólos opostos, em que o sujeito é
6
Norma Fuller (1997).
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exclusivamente uma coisa ou outra, mas sim exatamente como processo humano em que,
apesar de não ser o mesmo, o sujeito não deixa de ser o que era. Edifica perpetuamente sua
história. No relato de si mesmo apropriando ou refutando modelos disponíveis culturalmente,
o sujeito se constrói e se reconhece enquanto tal. É a partir da relação e do reconhecimento do
outro (seja por aproximação ou afastamento, por afirmação ou negação) que o sujeito define a
si mesmo. Como afirma Fuller (1997), o outro significante confirma a identidade do sujeito.
Nesta perspectiva é imprescindível atentar para o que Scott (1988) denomina como o
trabalho da diferença dentro da diferença. As múltiplas e diversificadas características dos
sujeitos que, ainda que semelhantes, são peculiares.
Quando igualdade e diferença se discutem dicotomicamente, estruturam uma eleição impossível. Se alguém optar pela igualdade, estará forçado a aceitar que a noção de diferença é sua antítese. Se alguém
optar pela diferença admitirá que a igualdade é inalcançável. (...) Como fazer para reconhecer e utilizar
noções da diferença sexual e, ao mesmo tempo, Ter argumentos a favor da igualdade? A única resposta é
dupla: é preciso desmascarar a relação de poder construída ao colocar a igualdade como a antítese da
diferença, e é preciso rejeitar as conseqüentes construções dicotômicas nas decisões políticas (Scott, 1988,
p. 217).
Como afirma Antônio Flávio Pierucci (1999) ao se propor um olhar sobre a diferença,
no ato mesmo de notá-la ou de reconhecê-la naquilo que está em questão, ei-la então já
relacionada a um valor, a um juízo estabelecido anteriormente. Trata-se sempre de uma diferença valorizada ou desvalorizada, apreciada ou depreciada, prezada ou desprezada. A diferença
socialmente partilhada recebe sempre um valor positivo, apreciado e prezado – a nossa diferença, viva a diferença! – ou negativo, depreciado, desprezado – as diferenças alheias, do
outro. Pensar o diferente sob a ótica do desigual é uma forte tendência em nossa sociedade.
Tais relatos apontam uma evidência óbvia já assinalada por teóricas feministas dos mais variados
campos disciplinares: (Scott, 1988; Saffioti 1992; Harding 1993, dentre outras) a constatação
de que existem diferenças significativas entre as mulheres.
Trazendo a problemática para o contexto do território investigado, tais diferenças manifestam-se nas roupas, nos gestos, nos gostos musicais, no consumo de produtos e mercadorias,
nas performances que essas mulheres desempenham naquele espaço, significações de práticas
que se esforçam, mas necessariamente falham na reprodução de ideais fantasiosos de masculinidade e de feminilidade. Lanço mão das proposições teóricas de Biddy Martin (1992) e
Judith Butler (1998)7 para afirmar que a dicotomia homoerótica é tão vazia de essência ou de
natureza quanto a heterossexual, pois, como afirmam essas autoras, ambas são fundamentalmente imitações de um ideal inalcançável.
A recorrência ao modelo binário – não somente pela invisibilidade de modelos de relações homoeróticas entre mulheres na sociedade de modo geral, mas, sobretudo, pela assimilação
7
Apesar de não sustentar minhas reflexões no suporte teórico pós-estruturalista, a discussão de gênero que proponho nesta investigação
vai ao encontro a algumas concepções formuladas por teóricas feministas dessa corrente.
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de ideais do imaginário social que perpetuam essa dicotomia na compreensão do mundo a
partir do masculino (colado ao macho humano) e do feminino (à fêmea) – não se dá necessariamente em termos de práticas criticamente escolhidas e modeladas racionalmente a partir de
tipos originais (Butler, 2003). O limite entre masculinidade e feminilidade é mais ilusório do
que se supõe. É preciso compreender as relações homoeróticas entre mulheres para além da
concepção binária masculino/feminino, freqüentemente presente nos estudos que se deparam
com as temáticas da diferença/igualdade. A compreensão dos processos humanos a partir de
um emparelhamento opositivo entre igualdade e diferença representa de maneira enganosa a
relação entre ambos os termos (Scott, 1988). O dualismo aplicado a qualquer proposição que
conceba oposições fixas, como por exemplo, unidade/diversidade, identidade/diferença, presença/ausência, ocultam o caráter de interdependência desses elementos.
Não reivindicamos a semelhança ou a identidade entre as mulheres e os homens, porém uma mais complicada diversidade (historicamente variável) do que a permitida pela oposição homem/mulher, uma
diversidade que também se expresse diferentemente para propósitos diferentes em contextos diferentes.
Na realidade, o dualismo que esta oposição cria pinta uma faixa de diferença, a investe com explicações
biológicas e então trata a cada lado da oposição como um fenômeno unitário. Assume-se que tudo em
cada categoria (mulher/homem) é a mesma coisa (é igual); portanto, se suprimem as diferenças dentro de
cada categoria. Pelo contrário, nosso objetivo é não só ver as diferenças entre os sexos, como também as
formas em que estas funcionam para reprimir as diferenças no interior de cada grupo e gênero. A igualdade construída a cada lado da oposição binária oculta o múltiplo jogo das diferenças e mantém sua irrelevância
e invisibilidade (Scott, 1988, p. 219-220).
APONTAMENTOS FINAIS
A análise de conteúdo das entrevistas, realizadas na pesquisa da qual este artigo é proveniente, possibilitou dissertar sobre a dinâmica da linguagem e das práticas sociais que se
constituem no universo investigado sobre as relações que se constroem em espaços sociais
circunscritos histórica, territorial e simbolicamente como lócus de constituição de sujeitos
masculinos, femininos, plurais.
Permitiu exercitar, sobretudo, outra perspectiva conceitual a respeito das relações entre
pessoas do mesmo sexo, a partir do uso do termo homoerotismo, proposto por Costa (1992)
com o intuito de “desconstruir” as idéias implícitas às noções de “homossexualidade” ou
“homossexualismo”. Nesse sentido, a análise aqui apresentada destaca que a noção de homossexualidade, como apontou Michel Foucault (1993) está, desde sua origem, amarrada a
um essencialismo que homogeneíza a experiência de toda e qualquer pessoa que vivencie e
dê significados às relações homoeróticas. Ignora assim a complexidade e a diversidade dessas
relações, naturalizando-as com base em uma lógica identitária, pautada na hierarquia
dicotômica “igualdade versus diferença” que legitima as relações de poder sustentando-as
nos discursos e nas práticas.
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O olhar investigativo que acompanhou todas as etapas da pesquisa questiona essa lógica,
na medida em que atribui um caráter fundamentalmente sócio-histórico-simbólico à experiência humana. Não se trata de niilismo ou de negar a existência de elementos de identificação
ou de características identitárias, mas sim de afirmar a transitoriedade dessas características,
concebendo-as não como fixas e imutáveis, mas como processos, como um contínuo movimento de caos e reorganização por meio do qual se constroem práticas sociais de constituição
de subjetividades.
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Modos de vida de mulheres lésbicas
em Florianópolis
Rosane Maria de Godoy
E
ste artigo é fruto de algumas reflexões da pesquisa realizada com mulheres lésbicas
da Grande Florianópolis, sobre suas práticas sexuais e suas inserções sociais. Nesse sentido,
teve como objetivo estudar os modos e estilos de vida dessas mulheres, no interesse da
desconstrução dos discursos que sustentam discriminações contra as vivências que se afastam
do modelo heterossexual. Pretendeu também investigar a forma como outras vivências da
sexualidade se articulam com os modelos heterossexuais de assimetria de papéis nas relações.
Em seu trabalho sobre identidade homossexual, a pesquisadora Teresa Sell (1987) descreve as dificuldades que encontrou para entrevistar mulheres lésbicas em Florianópolis. Essas
dificuldades se traduziam em desencontros, adiamentos, não atendimento de telefonemas, etc.,
o que a fez optar por não mais discutir a homossexualidade feminina, concentrando-se no
estudo da homossexualidade masculina. Tal comentário torna-se importante, na medida em
que destaca, na época da pesquisa citada, a dificuldade de aproximação ou de abertura para
a discussão da temática entre homossexuais mulheres.
Como não encontrei a mesma dificuldade na ida a campo, penso que se pode falar numa
mudança, no sentido da maior visibilidade da questão homossexual atualmente. Uma visibilidade que esta pesquisa busca complexificar.
As discussões em torno da sexualidade têm tomado novos rumos, no sentido de
contextualizarem as diferenças entre homens e mulheres. Os estudos de gênero destacam a
assimetria de papéis e funções femininos e masculinos nas relações (sexuais, cotidianas,
sociais), nas diferentes sociedades humanas, em que as mulheres, em geral, têm sido relegadas
a um plano secundário, de subordinação. Em termos de sexualidade, uma forma tem sido
erigida como modelo: a heterossexualidade, ligada à procriação, enquanto as outras formas são escamoteadas, disfarçadas, reprimidas. Esse modelo padronizado, normatizado,
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de sexualidade, caracteriza-se por ser, além de heterossexual, falocêntrico. Estudar outros
estilos de viver a sexualidade tem se revelado um modo de contribuir para a relativização
e/ou questionamento do modelo hegemônico de sexualidade que exclui as demais formas
de vivência sexual.
Nas últimas décadas, no rastro dos movimentos feministas e de luta pelos direitos das
minorias excluídas, apontadas muitas vezes como desviantes pelas sociedades, têm-se multiplicado os estudos sobre a homossexualidade. Essas pesquisas, no entanto, em sua maioria,
dedicam-se à análise da homossexualidade masculina. A sexualidade feminina (homo ou
hétero) é relevada, posta em segundo plano e, por isso, menos estudada. Tornando-se,
portanto, menos visível como salienta Mott (1987) “...no caso do lesbianismo a falta de
documentos se deve mais à cegueira, indiferença e preconceito dos homens face à sexualidade feminina, considerada assunto de menor importância e indigno de atenção do sexo
forte” (p. 8).
No cotidiano das relações sociais de gênero, que não costumam ser simétricas, ocorrem
submissão e opressão das mulheres, independentemente de sua orientação sexual. As sociedades ocidentais, em particular, levam as mulheres a viverem sua sexualidade muitas vezes de
forma reprimida e “marginal”, assumindo um papel passivo em todos os tipos de relações
(amorosas, familiares, trabalhistas). Nesse contexto se encontram as mulheres lésbicas que
vivem sob um “pacto do silêncio” e na “clandestinidade”. Uma contingência por estarem
inseridas em sociedades onde a heterossexualidade é a norma e que, ao padronizarem práticas, comportamentos e vivências, convertem outras formas de experiências em anormalidade,
ou patologia.
Nesse sentido, o Conselho Federal de Psicologia, preocupado com os profissionais que
atuam em questões que envolvam a orientação sexual, editou uma resolução sobre sexualidade, divulgada no Jornal CFP (1999):
É preciso colaborar para a superação de preconceitos, discriminações e estigmatizações, principalmente
em relação às pessoas que têm orientações sexuais para o mesmo sexo. A resolução apresenta princípios
éticos para a conduta do psicólogo que lida, de alguma forma, com a orientação sexual de seus clientes,
procurando garantir que, quando procurados por homossexuais ou seus responsáveis para tratamento, os
psicólogos não recusem o atendimento, mas sim aproveitem o momento para prestar esclarecimentos
sobre a perspectiva da Psicologia. Mas nunca propor métodos de cura, pois vale a pena reforçar que não
se trata de doença, muita menos desordem mental (Jornal CFP, 1999, p. 6).
Essas informações são importantes, pois hoje todos falam de gays e de lésbicas. Cada vez
mais os estudos da sexualidade nas diversas culturas têm apontado para preconceitos, falas,
visões equivocadas que precisam ser discutidas e revistas, pois relativizar os discursos que se
produzem sobre a homossexualidade pode contribuir para a desconstrução dos modelos
normatizadores, que descaracterizam a diversidade cultural existente.
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O CAMPO
Nesta pesquisa, realizei uma análise qualitativa, baseada nos pressupostos do método
etnográfico. Por meio da gravação de entrevistas abertas, procurei obter depoimentos e histórias de vida de algumas mulheres lésbicas residentes em Florianópolis.
Entrevistei dez mulheres que se dispuseram a me contar detalhes de suas vidas. Quatro
delas já haviam sido entrevistadas para pesquisa que desenvolvera anteriormente. Sempre
que realizava uma entrevista, a própria informante indicava uma colega para que fosse também ouvida. Esse foi um fato que facilitou o contato com as informantes, possibilitando o
estabelecimento de uma rede de relações sociais.
Buscando preservar o anonimato de minhas informantes, optei por identificá-las pela
idade e designá-las por nomes próprios iniciados com as letras do alfabeto, procurando
corresponder a ordem alfabética àquela em que foram realizadas as entrevistas.
As entrevistas tiveram duração de cerca de uma hora a duas horas e trinta minutos. Com
algumas entrevistadas mantive mais de um contato, possibilitando obter maiores informações sobre elas. Essa etapa do trabalho de campo foi realizada em diferentes espaços. Cinco
informantes foram entrevistadas em minha casa, porque disseram que ali ficariam mais à
vontade, pois moravam na casa dos pais, ou não tinham um espaço onde pudessem falar
livremente sobre suas vivências. Quatro entrevistas foram feitas na própria residência das
informantes, que moravam com as namoradas. Apenas uma entrevista foi realizada em um
espaço neutro, ou seja, nas proximidades da casa da informante, que morava com os pais.
O trabalho de campo foi desenvolvido entre janeiro de 1999 e fevereiro de 2000. As
entrevistas foram todas gravadas para posterior transcrição. O roteiro, embora se caracterizasse como aberto, continha itens que ajudavam a questionar as entrevistadas, tais como o
começo de sua autopercepção como homossexuais, seus relacionamentos familiares com
mãe, pai, irmãos, filhos, relacionamentos cotidianos e sexuais com parceiras fixas ou ocasionais, projetos para o futuro, etc. Indagações que pretendiam obter as representações das
informantes sobre suas vivências cotidianas.
Consegui obter, em geral, os relatos das mulheres que pretendia entrevistar. Os imprevistos foram apenas trocas de horário e dias de entrevista, em decorrência de impedimentos
momentâneos de algumas informantes. Nenhuma recusa aconteceu; pelo contrário, encontrei muitas mulheres querendo conceder entrevista e contribuir para o trabalho.
O diário de campo também foi largamente utilizado, acompanhando todas as situações
de pesquisa. Destaco a importância do diário de campo que, além de abrigar as anotações
sobre o que observei nas situações do trabalho empírico, trazia meus desenhos, mapas e
lembretes de notícias referentes ao tema. Lago (1996), em seu estudo sobre sujeitos no processo de urbanização da ilha, salienta a importância de se caracterizar os sujeitos pesquisados,
retratando seus modos de vida, descrevendo os locais da pesquisa, as origens dos informantes, ascendência, profissão, nível de escolaridade, entre outros aspectos, pois permitem
explicitar de quem se está falando.
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As informantes possuíam idades entre 22 anos e 52 anos (cinco de 20 a 30 anos, quatro
de 30 a 45 anos e uma de 52 anos). Com relação à procedência, três eram oriundas do
interior de Santa Catarina e as outras sete nasceram na Grande Florianópolis.
Em termos de escolaridade, apenas uma possuía pós-graduação completa, duas estavam
cursando pós-graduação, cinco tinham o ensino médio completo e duas, o ensino fundamental incompleto.
A atividade profissional das informantes era diversificada: duas se identificavam como
“biscateiras”, ou seja, desenvolviam pequenos serviços na área da construção civil. Três trabalhavam na área do comércio (atendente de lanchonete, balconista, auxiliar de processamento
de dados). Uma possuía um pequeno comércio (lanches e salgadinhos). Três eram professoras e uma, auxiliar de enfermagem.
Como se pode perceber pelos dados sobre níveis de escolaridade e atividades profissionais, as informantes tinham posições sociais diferenciadas. Inseridas numa sociedade complexa,
zona urbana, algumas das mulheres moravam em Florianópolis, cidade de porte médio, mas
centro de uma região em processo de metropolização; outras habitavam os bairros periféricos da capital, ou de municípios do seu entorno. Em termos de inserção social, posso dizer
que, enquanto a maioria das informantes pertencia às camadas médias, duas delas podiam ser
caracterizadas como pertencentes às camadas populares (ou classes trabalhadoras)1 enquanto outras ainda transitavam em situações fronteiriças entre as classes populares e camadas
médias.
RELENDO O DIÁRIO DE CAMPO
Durante a realização do trabalho de campo estive atenta às notícias e aos eventos que
aconteciam na cidade e que eram significativos para minhas informantes. Convidada por
algumas delas, participei de diferentes acontecimentos, como a passeata do orgulho gay de
1999 e um show com a cantora Zélia Duncan que aconteceu no Centro Sul (Centro de
Convenções), em uma festa organizada pela prefeitura municipal de Florianópolis.
Essa cantora consegue agregar em seus shows muitas mulheres lésbicas e, é “cultuada”
como adepta de práticas homossexuais, principalmente pelas letras das músicas que canta,
embora ela nunca tenha se declarado homossexual.
Zélia Duncan, assim como outras cantoras da música popular, consegue destacar em
suas performances as mais variadas sexualidades. Sendo assim, nesse show em especial, pude
perceber as faces fluidas e híbridas das pessoas que assistiam ao espetáculo e a dubiedade de
seus comportamentos, misturando nas roupas e nos gestos atributos de masculinidade e feminilidade. As mulheres pareciam sentir-se muito confortáveis. Percebi naquele evento que
eu estava simultaneamente num espaço verdadeiro e ilusório. A realidade era assegurada
1
Sobre a questão, conferir Lago (1996), e Moisés (1978) e Durham (1986), apud Lago (1996).
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pelas palavras entoadas pela cantora, que levavam o público ao frenesi, no entanto, ali se
estava longe das paredes seguras do gueto. E foi então que percebi que estava diante de um
‘pedaço2’, conforme caracterizou Magnani (1998), pois embora nem todos se conhecessem
ali, as mulheres conseguiam estabelecer um código e podiam se reconhecer,
(...) venham de onde vierem, trazem na roupa, na postura corporal, na linguagem, os sinais exteriores de
seu pertencimento. Por causa dessa ênfase mais nos aspectos simbólicos, aqui o pedaço é menos dependente da variável territorial: se for o caso, muda-se de ponto e pronto (Magnani, 1998, p. 12).
Era uma situação que se configurava na transitoriedade, com códigos próprios estabelecidos naquele momento, naquele cenário, onde o palco do Centro Sul, tipicamente tradicional,
abria suas cortinas para um outro show, com outras cores, outras linguagens.
Nos relatos produzidos, as mulheres falaram muito de seus espaços de encontros e diversão, aguçando minha curiosidade em conhecê-los. Assim, circulei por esses ambientes durante
a pesquisa, tentando descrever os locais de sociabilidade gay freqüentados por minhas informantes. Procurei adentrar suas paredes, participando dos grupos e atenta às representações
das próprias mulheres sobre esses espaços. Freqüentei a Danceteria Chandon3, o Bar Via 11
Café4 e alguns bailões5 .
A Danceteria Chandon e o Bar Via 11 Café são espaços freqüentados por gays, lésbicas e
simpatizantes (GLS6). Esses espaços buscam as diversões ilimitadas dos sonhos e desejos, em
que as possibilidades do encontro são testemunho, ora oculto, ora explícito, da intranqüilidade
do romance longe daquelas paredes. O público que freqüenta esses locais é predominantemente oriundo de camadas médias. Como a maior parte de minhas informantes compõem essa
camada social, encontra neles a possibilidade de se expressar e comunicar. Essa comunicação
que explicita, para os entendidos, a orientação homossexual dos sujeitos, é sutil: está presente
no modo de dançar, na roupa, no olhar, na música, na fala, etc. Tais signos só podem ser
decodificados se existe o pertencimento do sujeito a esses grupos. Caso contrário, os signos
passam a ser meramente símbolos urbanos criados para se diferenciar sujeitos.
Como algumas de minhas informantes pertenciam às camadas populares, tive curiosidade em conhecer os locais onde se divertiam e se encontravam. Levada por uma delas, freqüentei
os bailões, espaços diferentes dos descritos até o momento, pois não são conhecidos como
2
Este conceito faz parte do estudo de Magnani (1998), que será discutido no decorrer do trabalho.
3
É uma danceteria noturna dirigida ao público homossexual. Localiza-se na rua Henrique Valgas, 112, Centro – Florianópolis. Existe
na cidade desde 1985. Fechou durante um período e reabriu em 1993. Funcionou até agosto de 1998 na rua Felipe Schmidt, 760,
Centro, quando se mudou para o endereço atual.
4
O bar localizava-se na rua Trajano, 155, centro de Florianópolis. Fechou recentemente, funcionando em seu lugar uma casa de
cosméticos.
5
“Bailões”: expressão usada pelos freqüentadores de clubes abertos ao público pagante, organizada em espaços que têm pista de
dança com música ao vivo, ou seja, uma banda ou conjunto tocando. As músicas são variadas, principalmente sertanejas e “gauchescas”
(o “vanerão”) e são dançadas por duas pessoas. A pista de dança destina-se a casais heterossexuais, em geral adultos e pessoas mais
velhas. Freqüentei três clubes da Grande Florianópolis.
6
GLS (Gays, lésbicas e simpatizantes). A expressão não significa exatamente um grupo ou organização. Trata-se de uma sigla de
adesão ou de posicionamento político favorável à homossexualidade.
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locais de freqüência tipicamente homossexual. Existem, no entanto, no interior desses ambientes, fronteiras de penetração de diferentes grupos, que se encontram, mas se mantém
separados, criando regiões próprias, delimitadas por diferentes pertenças. Assim, temos ali
os jovens com suas linguagens peculiares, vestimentas características como bermuda, boné,
tênis, dançando na discoteca ao som de música tecno. Encontramos também mulheres homossexuais que criam seus espaços e vão para as pistas dos bailões dançando juntas suas
músicas, fazendo uso de linguagens próprias, formando redes de sociabilidade.
A Danceteria Chandon e o Bar Via 11 são espaços identificados pela sociedade em geral
como locais de freqüência gay. Os bailões, ao contrário, não ganham essa conotação, mas no
interior dos clubes, freqüentados principalmente pelas camadas populares, ou classes trabalhadoras, são estabelecidas também novas pronúncias das sexualidades.
GUETO, REGIÃO MORAL OU PEDAÇO?
Durante a realização da pesquisa, seja nos relatos das informantes ou nas saídas noturnas para minhas observações de seus espaços de diversão e encontros, ocorreram constantes
discussões sobre a existência de guetos homossexuais. De um lado, as mulheres que acreditavam que o gueto fosse importante para a sua identificação, para a convivência com pessoas
de estilos de vida semelhantes, podendo ficar à vontade, sentindo-se seguras. De outro
lado, as mulheres que acreditavam que o gueto acabava fechando os grupos e, com isso,
reforçando a segregação dos homossexuais, contribuindo até para o aumento do preconceito contra eles.
Albertina Costa (1985), no texto em que analisa a produção de estudos sobre a mulher
no Brasil entre 1975 e 1984, faz uma discussão sobre os espaços periféricos desses estudos na
academia, afirmando que fizeram um percurso – do limbo ao gueto. Nesse artigo a autora se
detém na questão do gueto, ressaltando suas vantagens, como a possibilidade de afirmação
de identidade e, por outro lado, suas desvantagens, como o isolamento.
Celi Pinto (1992), discutindo mais recentemente a questão dos espaços privilegiados da
mulher como sujeito político nos movimentos sociais desenvolve também um debate sobre o
gueto, chamando a atenção para outro tipo de entendimento acerca dele:
O gueto não pode ser entendido simplesmente como marca de retraimento, medo de expor-se ou
reafirmação da exclusão. É também, e, talvez principalmente, regido pelo princípio do prazer, de pertinência,
da consciência de estar entre iguais (Pinto, 1992, p. 133).
Na análise da participação das mulheres nos movimentos sociais, esse aspecto é importante, pois, como salienta a autora, para algumas o ‘gueto’ é prazeroso e pode até possibilitar a
inserção de um novo sujeito na esfera pública, servindo como um rito de passagem, do mundo
privado para a esfera política. Os relatos de minhas informantes falam destas questões:
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Não tenho muitos amigos hoje assim né, mas tenho grandes amigos, (...) são os mais chegados que a
gente convive mais, e nós temos a JUGARA. A JUGARA é uma sigla que nós inventamos quando a gente
veio morar aqui [...] quer dizer Juventude Gay de Ratones, porque como a gente veio morar pra cá, o
Alberto e o Bernardo vieram também, o Cláudio e o Daniel vieram também... (Ellen, 44 anos).
A informante ainda relata que o grupo tem vários objetivos: “não só pra se reunir assim,
a nossa casa seria a sede da JUGARA então, aí a gente faz encontro, faz almocinho, jantar, (...)
a gente até está querendo dar uma ativada, fazer carteirinha.”
O depoimento de Ellen explicita que as afinidades são estabelecidas com os mais chegados, formando grupos de iguais:
E assim, os amigos que hoje a gente tem são muito legais (...) o pessoal do Campeche, que todos querem
participar da JUGARA, mas eu como presidenta sou muito crítica, mas hoje eu sou um pouquinho mais
aberta, assim, eu acho que depois que a casa pegou fogo eu abri um pouquinho mais, porque antes eu
achava que não precisava mais de amizade nenhuma, mas depois assim, tantas pessoas que eu não via há
anos assim e tal e vieram nos dar uma força, então eu tive que repensar tudo isso né.
Algumas de minhas informantes consideram que o gueto não é positivo, pois acaba
excluindo os participantes da sociedade mais ampla. Relatam que sonham com o momento
em que possam beijar sua namorada na rua. Destacam que ficar trancado só vai aumentar o
preconceito.
(...) Uma das coisas que também prejudica no relacionamento homossexual porque o sexo não é só sexo
de cama, sexo é sexo de relação, de amor, de abraçar, de estar junto, de carinho, tudo isso já é uma
relação sexual (Joana, 25 anos).
Muitas das entrevistadas acreditam que uma saída seja a visibilidade. De uma maneira
calma, jeitosa, trabalhada, não agredindo. Destacam que é importante mostrar para as pessoas que “o homossexual não morde”. Salientam que o estereótipo é o grande inimigo da
liberação da homossexualidade. Relatam que a partir do momento em que passe a existir
respeito das pessoas em relação à sexualidade, o relacionamento e a convivência com os
demais não vai ser alterado quando souberem da orientação sexual do sujeito.
Para falar desses espaços de convivência entre iguais, alguns autores fazem uso de outros
conceitos. Perlongher (1987), por exemplo, em trabalho sobre prostituição masculina no
centro de São Paulo, usa a concepção de “região moral” de Robert Park, remetendo ao
estudo do autor sobre os problemas da investigação do comportamento humano nas cidades:
É inevitável que indivíduos que buscam as mesmas formas de diversão, quer sejam proporcionadas por
corrida de cavalos ou pela ópera, devam de tempos em tempos se encontrar nos mesmos lugares. O
resultado disso é que, dentro da organização que a vida citadina assume espontaneamente, a população
tende a se agregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de acordo com seus gostos e seus
temperamentos. [...] Cada vizinhança, sobre as influências que tendem a distribuir e a segregar as populações da cidade, pode assumir o caráter de uma “região moral”. (Park, 1973, p. 64).
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Em Florianópolis, Oliveira (1997) realizou um estudo a respeito da temática dos travestis, em que inseriu a discussão da categoria de “região moral” de Park, para concluir que os
locais freqüentados por seus sujeitos não se caracterizariam como regiões morais, por não
serem definidos ou delimitados. Os espaços de circulação e “pegação” dos travestis em
Florianópolis, de acordo com seu estudo, são variados. Os sujeitos circulam pelas ruas do
centro da cidade, pelo bairro do Estreito, pelo Kobrasol em São José, etc.
José Guilherme Magnani (1998), em seu trabalho sobre espaços de lazer e festas populares
na cidade de São Paulo, sugere outra reflexão a respeito dos lugares em que os sujeitos se
reconhecem, que lhes propiciam sensações de pertencimento e onde são estabelecidos códigos
próprios de comportamento. O autor chama esses espaços de “(...) o pedaço é o lugar dos
‘colegas’, dos ‘chegados’. Aqui não é preciso nenhuma interpelação: todos sabem quem são, de
onde vêm, do que gostam e do que se pode ou não fazer” (Magnani, 1998, p. 12).
De acordo com o autor, são dois os elementos constituidores do pedaço, um de ordem
espacial, ao qual corresponde determinada rede de relações sociais, com um núcleo que
concentra pontos de referência que o delimitam: “... o ponto do ‘búzio’, o terreiro e o
templo, o campo de futebol e algum salão de baile” (Magnani, 1998, p. 115), etc. O outro
elemento aponta que as bordas do pedaço,
(...) são fluídas e não possuem uma delimitação territorial precisa. O termo na realidade designa aquele
espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica,
mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações
formais e individualizadas impostas pela sociedade (Magnani, 1998, p. 116).
Assim, o autor ressalta que não basta morar perto ou freqüentar o pedaço com alguma
assiduidade, “...para ser do ‘pedaço’ é preciso estar situado numa particular rede de relações
que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência” (Magnani, 1998, p. 115). No
caso estudado aqui, a rede de relações inclui ainda, e principalmente, a orientação sexual dos
sujeitos. Ressignificar esses espaços é garantir sua problematização, pois, como se vê, são
locais que já ganharam vários nomes e representações. A discussão é oportuna e nas observações do meu trabalho de campo a dinâmica desses lugares era a da descontração, da afinidade,
da paquera.
Alguns dos locais freqüentados por minhas informantes, como a boate Chandon eram
dirigidos ao público GLS, onde a freqüência de mulheres homossexuais (a maioria jovens)
era menor que a de homens gays. Nesse sentido, podemos definir o espaço como gueto.
No Bar Via 11 observou-se também a participação de um público basicamente jovem e
uma rede mais ampliada de mulheres. Esse ambiente, situado no centro da cidade, não era
conhecido somente como local de encontro de homossexuais, servindo a uma clientela heterogênea. No entanto, pude perceber que ali as jovens homossexuais acabaram delimitando
um espaço e formando uma rede de pessoas conhecidas. Dessa forma, acredito que a designação de pedaço seria adequada para referir o Via 11 Café.
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Os outros locais de lazer observados na pesquisa, os bailões, divididos em ambientes
diferenciados, com música dirigida a gerações diferentes, eram destinados à diversão de um
público heterogêneo, onde as mulheres criaram espaços de sociabilidade homoerótica. No
caso desses estabelecimentos, acredito que estamos diante de um espaço onde também caberia melhor a designação de “pedaço”, proposta por Magnani. Nesses bailões pudemos perceber
a circulação de mulheres com mais idade (entre 30 e 40 e poucos anos). Como o acesso a eles
é mais simples e gratuito para mulheres, pudemos perceber aí a freqüência de um público
predominantemente de camadas populares.
As questões apresentadas permitem-nos pensar um pouco mais sobre os ambientes que
são nominados de formas diversas, ora gueto, ora região moral ou pedaço. O que esses
espaços têm em comum é a busca da sociabilidade, do estar entre iguais, do pertencimento.
Percebemos também algumas diferenças que merecem ser destacadas, a de classe e a de geração. Conforme a classe social e a idade, foram aparecendo formas diferenciadas de vivenciar
o lazer e a sociabilidade.
Analisando o percurso das informantes, podemos perceber que a maioria delas buscou, de
início, os espaços de sociabilidade gay, seja para se assumirem ou para terem a possibilidade de
conviverem com iguais. Por outro lado, muitas não gostaram das experiências que tiveram
nesses espaços e, a partir daí, não os freqüentaram mais, ou acabaram buscando outros lugares
de convívio e sociabilidade. Comparados a grupos heterossexuais, podemos argumentar que
esta é uma busca comum, geracional. Os jovens costumam freqüentar espaços de festa e lazer
compartilhados com pessoas da mesma idade, com as quais estabelecem relações de identificação. A continuidade da freqüência a esses ambientes pode ir diminuindo com a idade, o
estabelecimento de parcerias amorosas mais estáveis, a constituição de novos grupos de interesses, etc. Percebemos que isso ocorreu também com os sujeitos desta pesquisa.
A questão da homossexualidade, no entanto, aponta para a constituição de “guetos”, de
“pedaços” – de ambientes mais fechados que permitam a expressão e extroversão de atitudes
que não são tão facilmente aceitas em geral, em ambientes públicos.
São observações importantes para levantarmos alguns questionamentos: o que significa
circular nesses ambientes? Busca de proteção? Lazer? Visibilidade? Ou apenas a possibilidade
de um encontro?
O relato de algumas informantes, bem como a descrição dos ambientes freqüentados
indicam a tentativa de romper com modelos, padrões definidos e fechados, ou seja, as mulheres relatam várias possibilidades de sociabilidade.
AS INFORMANTES FALAM DE SI
Nas representações de minhas informantes sobre aspectos de suas vidas como mulheres
homossexuais, destacaram-se alguns temas recorrentes que nortearam as análises das entrevistas. Tenho consciência de que esses temas surgiram muito em função de minhas interferências
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nas entrevistas, pelas perguntas que fiz, procurando atingir o objetivo de escutar a voz dessas
mulheres sobre seus relacionamentos sociais e amorosos e, desta forma, tentar compreender
modos e estilos de vida de mulheres lésbicas de Florianópolis, em suas singularidades.
Tenho consciência, igualmente, que as mulheres entrevistadas contaram histórias de seu
passado, a partir de representações construídas, marcadas por suas perspectivas e motivações
atuais. Os relatos que me ofereceram não podem ser tomados, portanto, como fatos reais. São
suas interpretações, suas representações, seus discursos sobre vivências passadas. Interpretações que também reinterpreto neste trabalho, sobre minha ótica, meus interesses, motivações.
A primeira questão que se destaca no relato das mulheres entrevistadas é o início de sua
autopercepção como homossexual. Nesse sentido, muitas começaram falando de sua infância, das brincadeiras preferidas, outras iniciaram seus relatos pela adolescência, contando
suas participações nos guetos e pedaços de convivência homossexual. Em geral, trataram o
tema como uma descoberta do que realmente eram. Nesse momento reporto-me a Portinari
(1989) que, em um dos capítulos de seu trabalho, destaca ser o “... então eu soube que
sempre fui”, a primeira inscrição no discurso da homossexualidade, ressaltando a importância crucial da figura do outro nessa inscrição.
A figura desse alguém que, mesmo à revelia, traz em si a palavra – a boa nova – é marca tão constante do
discurso da homossexualidade feminina que podemos supor que as suas manifestações concretas são a
base de referência do mito da lésbica “aliciadora”, “perigosa”, cujo contato corrompe. Todavia, aquele
alguém não precisa necessariamente ser uma pessoa real; mesmo quando assume essa forma, nem sempre desempenha a função pela uma sedução; e ainda que essa sedução se dê, ela dificilmente se dará por
deliberação. O que essa espécie de mito pressente – corretamente – é que ninguém se torna homossexual
sozinho. Mas o que não se costuma perceber é que o outro que está em questão aí não é um outro
concreto, e sim imaginário, isto é., um significante (Portinari, 1989, p. 68-69).
Na continuidade das entrevistas, as informantes falaram de seus relacionamentos com as
famílias de origem. Algumas delas falaram de sua relação com os filhos e das experiências
anteriores de casamentos heterossexuais. Foram depoimentos que relataram as dificuldades
em contar para as famílias sobre sua orientação sexual, muitas vezes decidindo não comentar
nada para evitar conflitos, conforme relato: “aquela história que todo mundo sabe, mas
ninguém fala no assunto” (Ivete, 34 anos). Cássia revelou que contara sobre sua homossexualidade inicialmente para a mãe. Fora difícil e sendo cobrada, principalmente pelo pai, ela
acabara negando sua orientação sexual, dizendo que iria morar com uma amiga, mas não
significava que estivessem namorando. Conforme ressaltou, ficou “o dito pelo não dito, ele
sabe, mas está querendo tapar o sol com a peneira” (Cássia, 24 anos).
Outro tema destacado nas entrevistas foi os relacionamentos cotidianos e sexuais com as
parceiras fixas ou ocasionais. Nesse item as informantes contaram um pouco de seu dia-a-dia,
das divisões de tarefas, das parcerias vividas, bem como das relações atuais. Algumas falaram
de suas práticas sexuais. Foram relatos que abordaram as assimetrias dos relacionamentos,
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como a busca de uma convivência mais igualitária e harmoniosa entre parceiras. Ellen, por
exemplo, salientou que nas tarefas do cotidiano ela e a companheira são desorganizadas.
Muito embora dividissem as tarefas, existia uma cobrança com relação a determinadas funções ou arrumações na casa. “...ah, porque tu não fizesses isso...”. Existiam alternações de
tarefas entre ambas e algumas divergências. Salientou que o sexo é muito importante no
relacionamento. O depoimento, a seguir, parece romper com a idéia de que as mulheres
estão mais propensas para o amor do que para o sexo:
(...) eu acho que sexo tem assim uma grande parcela, um grande percentual assim, porque eu pelo menos
não quero viver de amiguinha (risadas), não quero, se não tiver sexo, e eu sou muito reclamadeira, porque
eu sou muito sexual e a Fernanda é fogosa tudo, só que eu queria todo dia e ela não quer todo dia (Ellen,
44 anos).
No trabalho de Córdova (2000), a questão também é abordada. O autor afirma que:
“elas, entretanto, reivindicam maior atenção para a regularidade de suas práticas sexuais.
Essas mulheres não querem mais fazer parte de estatísticas que asseguram que as mulheres
querem mais ‘amor’ e menos ‘sexo’”(p. 207).
Por último, as informantes falaram de seus projetos para o futuro, destacando preocupações com questões profissionais, o desejo de encontrarem parceiras ou de continuarem
vivendo com as companheiras. Débora contou que pretendia fazer faculdade, arrumar
um trabalho melhor e arranjar uma namorada legal, ou melhor, “...uma pessoa que se
identificasse comigo”. Pretendia sair de casa e morar com a companheira, numa relação
de conjugalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do trabalho, surgiram vários temas nos relatos das mulheres entrevistadas
que, por serem significativos, merecem ser retomados com o objetivo de ampliar as discussões, possibilitando talvez, novos entendimentos sobre o assunto.
Observou-se que a maioria das informantes teve um difícil começo da autopercepção
como homossexual. Exemplos disso foram os relatos de Ellen e Helena, que abordaram a
angústia e o sofrimento em “aceitar” sua orientação sexual, deixando claro que não tinham
com quem conversar sobre o assunto. As representações das demais entrevistadas sobre a
questão também revelaram ambigüidades, inseguranças: “...a homossexualidade é inata (...)
tu nasce homossexual”; “...eu tomei consciência que eu tinha atração por mulheres (...) aquilo aflorou”; “...foi uma descoberta e eu não tinha com quem desabafar”; “...uns amigos meus
(...) deduraram que eu estava apaixonada”; “...eu custei a me assumir, até a decodificar minha sexualidade”; “...eu voltei de lá lésbica (...) quando eu cheguei em Florianópolis, eu já
era lésbica”; “...eu tinha preconceito de mim mesma, sabe”.
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Outro aspecto comum nos relatos foi, ao se perceberem atraídas por pessoas do mesmo
sexo, a procura de ambientes onde pudessem criar laços de sociabilidade, sentindo-se entre
iguais. Foram então a bares, boates, bailões, shows, etc., identificados de alguma forma como
espaços de convivência gay – pedaços, na concepção de Magnani (1998), ou guetos, para
muitas delas.
Percebemos também, na pesquisa, a criação de novos espaços e formas de sociabilidade,
como a Juventude Gay do Ratones, que se constituiu como um grupo de convivência entre
iguais para os momentos de lazer e descontração, sem terem que procurar espaços públicos,
além de formar uma rede de apoio mútuo.
Algumas das entrevistadas declararam que as pessoas vão para os ambientes de sociabilidade gay na busca de uma identificação com o semelhante, pois lá “todo mundo tem um
espelho (...) todo mundo age meio igual” (Cássia, 24 anos). “...é bem coisa da identificação
(...) se sentir dentro do grupo” (Joana, 25 anos). Essas falas corroboram a extensa bibliografia das psicologias, social e clínica especialmente, sobre a importância da pertença a grupos.
Demonstram também que as identificações sociais são fundamentais para os processos de
construção de identidades dos sujeitos individuais.
Em termos de relacionamentos com as famílias de origem, percebemos uma forte ligação
das informantes com as mães, sendo que a figura do pai esteve praticamente ausente em
muitos dos relatos. Fernanda declarou que o pai estivera distante na sua vida, sendo as figuras femininas muito presentes e fortes em sua família. A repetição dessas falas levou-me a
refletir sobre as concepções psicanalíticas de organização da sexualidade feminina (e da homossexualidade), destacando a importância atribuída por Freud ao tema das identificações
na organização das estruturas psíquicas e na própria escolha objetal por homens e mulheres.
Reflexões sobre conceitos psicanalíticos foram também importantes para analisar o tratamento entre Araci e Bethânia, presentificando a repetição da relação mãe-filha, explicitado
no discurso das duas informantes. Da mesma forma, recorri a essa teoria para refletir a
respeito das projeções de Fernanda sobre sua filha.
Outra situação referente às famílias de origem, ressaltada no relato de algumas informantes, foi a dificuldade enfrentada por companheiras que coabitavam, quando tiveram que
compartilhar a moradia (ou sua proximidade) com parentes de uma delas. Os relatos
explicitaram as tensões vividas em seus relacionamentos amorosos, em função da convivência com os familiares. A freqüência com que as queixas apareceram nas falas pode indicar
uma maior tensão e interferência das famílias de origem nas relações conjugais de seus membros, quando se contrapõem às “normas” da heterossexualidade.
O relato de uma de minhas informantes, particularmente, ressalta as questões de poder
imbricadas nos relacionamentos familiares, pois embora sua mãe procure mediar a relação
da informante com o pai, acaba silenciando e permanece numa posição submissa, pois a fala
que predomina, de forma bastante autoritária, é sempre a do pai.
Percebemos também a preocupação de duas dessas mulheres quanto ao retorno para as
casas das famílias de origem, quando tiveram que se afastar de suas namoradas. Não sabiam
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como seriam acolhidas e ficou claro nos relatos das duas que, muito embora não estivessem
convivendo com as companheiras naquele momento, o temido retorno para casa significou
também a volta ao aconchego e proteção do ninho (Perrot, 1994).
Da Matta (1987) desenvolve uma discussão a respeito da família na sociedade brasileira,
destacando que é constituída de um valor permeado por duas éticas: as razões da família (ou
as razões da casa) e a razão pública (razões da rua). O autor salienta que vivemos cotidianamente essa dualidade e valorizamos o mundo da rua (o legal) e o mundo da casa (o familial).
Ele destaca que é possível haver muitas famílias – a que constitui o emprego; a da parentela
como um todo; a que compõe a própria nação brasileira; a formada pela mulher (ou marido)
e filhos. Mas só se tem uma casa. É importante fazer esse destaque, a idéia de casa e rua, pois
nesses espaços existem valores e relações sociais diferenciados. Diferenças relativas aos variados tipos de família e à própria constituição dos sujeitos nos espaços privados (família, casa)
e públicos (rua).
Citando Da Matta (1987) “... somos senhor e escravo; patrão e empregado; homem e
mulher, pai e filho; mas todos vivemos (moramos) num espaço comum, que é o da nossa
casa” (p. 120). Nesse sentido, o autor ajuda a pensar sobre os valores atribuídos aos espaços
sociais (casa e rua), mas o interessante é que, segundo ele, o nosso referencial é o da casa, pois
sempre retornamos a ela. Praticamente todas as informantes se referiram à importância da
casa, e muitas destacaram, falando de seus projetos para o futuro, o desejo de conseguirem
um espaço próprio para morar, em geral com as namoradas.
Outra situação interessante envolvendo a moradia, ressaltada no relato de uma das entrevistadas, foi a de valorizar o viver a conjugalidade em casas separadas, pois diante do
modelo de casamento instituído, fica legitimada a comunhão de bens, estando imbricada aí
uma relação de poder que o dinheiro acaba estabelecendo. Como destacou a informante,
nesses casos se porventura acaba o laço conjugal, além de se perder a companheira, perde-se
também a referência, o teto.
As questões de poder, que de acordo com Foucault (1966; 1979; 1980; 1994; 1985;
1995), certamente perpassam as relações cotidianas e amorosas, estabelecendo assimetrias,
estiveram atravessadas, nos relatos das mulheres entrevistadas, por questões econômicas evidenciadas na posse da casa, na obtenção de coisas materiais, no dispor de mais dinheiro, ter
salário mais alto, etc.
A maioria das informantes tem como projeto de vida morar sob o mesmo teto, ou seja, ter
uma relação conjugal estável, de partilha. Esses planos de futuro estão fortemente alicerçados
nos ideais do amor romântico. Os relatos de duas das entrevistadas, que largaram tudo por
amor, deram-me elementos para refletir sobre a questão, tão central nos relacionamentos amorosos entre mulheres, de acordo com algumas das autoras que subsidiaram esta análise.
Denise Portinari (1989), tratando do amor lésbico, dedica-lhe um capítulo de seu livro,
o qual denomina de “O amor para além do amor”. A discussão é complexa e a autora apresenta várias falas, nas quais o amor entre mulheres aparece como uma exacerbação de
sentimentos e emoção.
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(...) o que se passa na homossexualidade feminina é qualquer coisa que só pode ser indicada no superlativo (profundamente infeliz, violenta paixão, extrema dependência, suprema delícia etc.); qualquer coisa,
enfim de ‘extra-ordinário’(...). O amor homossexual entre mulheres não pode ser ‘apenas’ um amor: ele é
mais-que-perfeito ou desqualificado. (Portinari, 1989, p. 83-84).
Jacqueline Muniz (1992), também pensando sobre o amor entre mulheres, escreve um
capítulo de sua dissertação de mestrado Do céu ao inferno – a pedagogia do ‘entender’ feminino, onde visa o debate e o entendimento desse amor, que segundo ela, é indescritível.
(...) o amor entre mulheres é apreendido como alguma coisa que, incompreensível ou inaceitável, desliza
do superlativo ao diminutivo. Assim, da mesma forma que a homossexualidade feminina, ao buscar legitimidade no imaginário sexual, explicita os limites de sua tradução, o tipo de amor nela agenciado, ao ser
dito, sustenta resíduos de ininteligibilidade, colocando-se como algo duvidoso que pode estar aquém ou
além da paixão (Muniz, 1992, p. 151).
As questões discutidas pelas autoras aparecem nos relatos produzidos, principalmente
quando uma de minhas informantes salienta “a pureza do relacionamento gay”. Um relacionamento, que segundo ela, “tem uma coisa mais de toque, mais de corpo, mais sensibilidade”
(Joana, 25 anos).
As discussões apresentadas neste estudo procuram demonstrar a heterogeneidade de
modos de vida de mulheres homossexuais em nossas sociedades. Vimos aqui um pequeno
recorte do cotidiano dessas relações sociais, que muitas vezes não são percebidas ou, pelo
contrário, são negadas, silenciadas. Essas dez mulheres tornaram visíveis algumas de suas
práticas cotidianas, sexuais, relações familiares, de trabalho, etc., contribuindo dessa forma
para a quebra do silêncio que paira sobre a homossexualidade feminina (Portinari, 1989).
Práticas que são significadas e vivenciadas por sujeitos ambíguos, contraditórios, plurais.
Concluindo, posso dizer que outros rumos poderiam ter sido tomados, ou melhor, que
o caminho se abre para novas trajetórias.
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Movimentações políticas e discursivas
em torno da segmentação do mercado
de consumo GLS
Mário Ferreira Resende
Eu, que estou perpetuamente tomando notas na margem da minha
mente, para alguma afirmação final, faço esta anotação aguardando
uma noite de inverno
Virginia Woolf.
E
ste trabalho é resultado de um recorte da minha dissertação de mestrado1, em que
propus realizar uma análise de discurso, a partir da perspectiva teórica e metodológica desenhada por Michel Foucault, cujo corpus foi composto por uma série de reportagens de revistas,
disponibilizadas na rede mundial de computadores, que identificam o universo GLS como
um ainda pouco explorado segmento de consumo. A análise revela que, consolidada como
nicho de mercado, a homossexualidade parece ter encontrado, finalmente, a visibilidade
almejada capaz de lhe garantir substrato para o jogo político na luta pelo reconhecimento e
por direitos civis. Em níveis macro, portanto, as reivindicações dos homossexuais, como
grupos minoritários, encontram-se num momento de efervescência, favorável a significativas
conquistas nos mais diversos setores sociais, empurrada ainda mais pela crescente exposição
da questão na mídia. Vide exemplo na presença de personagens homossexuais em seguidas
telenovelas na televisão aberta brasileira.
Já no campo da micropolítica, podemos tecer ainda algumas considerações importantes.
Considerações que resgatam o impacto do aparecimento desse discurso que recorta uma
1
Dissertação defendida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC, sob orientação da professora Dra. Mara Coelho de
Souza Lago. Resende, Mário Ferreira. Dinheiro cor-de-rosa: uma reflexão crítica sobre o mercado homossexual. Dissertação (Mestrado)
– PPGP/CFH/UFSC, Florianópolis, 2003.
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determinada população marginal, investindo-a de interesse. Nesse sentido, a análise que
este artigo propõe caminha numa direção crítica, partindo da articulação estratégica de
uma trama onde determinados temas são trazidos em detrimento de outros, temas esses
que compõem objetos que oferecem o terreno para a estruturação de discursos que se põem
a falar. É o que propõe Michel Foucault (2002a) ao tomar a análise como um modo de fazer
aparecer o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos descrevendo nele, e
fora dele, os jogos de relações.
Assim, torna-se de crucial importância observar os efeitos da consolidação do mercado
GLS em termos de continuidades e rupturas, explicitando os jogos de força existentes entre
as objetivações discursivas produzidas pelas relações estratégicas entre saberes e poderes,
assim como a formação de um espaço de subjetivação amparado por esses discursos. E é
nessa cena enunciativa caracterizada pela demarcação do universo GLS como um segmento
de mercado, que se constitui o objeto de análise desse artigo.
Para tanto, sublinhamos o depoimento do presidente da Associação da Parada do Orgulho GLBT, presente na reportagem da revista semanal IstoÉ (2001), na qual afirma que: “se
não há solidariedade e amparo legal, vamos ser aceitos pela força da grana” (grifo meu). A
reportagem destaca que o mercado GLS poderia ser ainda mais lucrativo se o preconceito
não persistisse, revelando-se no temor de grandes empresas tradicionais verem seus nomes
associados à temática gay. No entanto, segundo a mesma reportagem, essa tendência está em
refluxo e não aparece nos pequenos e micro empresários que já não hesitam em investir no
chamado setor “cor-de-rosa”.
Tomemos o enunciado destacado como ponto privilegiado de análise. Deflagrado pela
“força da grana”, engendra-se um movimento de inclusão de identidades, antes marginais,
na medida em que elas se submetem à lógica capitalista. Há um reconhecimento e até
mesmo um discurso de valorização do homossexual, na medida em que se identifica essa
população como um interessante e pouco explorado segmento de mercado. Mas aí entramos na discussão colocada por Deleuze (1995) ao diferenciar maioria de minorias. Não é
em termos numéricos que ambas se distinguem como, apressadamente poderíamos pressupor, mas sobretudo em termos de referências homogeneizadoras. Conforme aponta Deleuze
(1995), o que define a maioria é um modelo ao qual deve-se estar conforme, ao passo que
a minoria não tem modelo, existe como processo, como devir. Ao se unificar em torno de
determinados modelos e lugares discursivos, a minoria aponta para aspirações majoritárias. Assim, o discurso de valorização dos homossexuais por seu potencial de consumo aparece
de maneira a homogeneizar, padronizar, sinalizando que a “aceitação” social da homossexualidade dá-se apenas de maneira tácita, tolerada sob rigorosas circunstâncias. O
homossexual valorizado, por exemplo, é claramente aquele das classes médias, disposto a
gastar e consumir.
A homossexualidade, assim, ganha status de reconhecimento, mas ao preço de ser fixada
em padrões (de normalidade ou anormalidade, não importa) já que passa a ser reconhecida e,
num certo sentido, desejada socialmente. A homossexualidade deixa de ser questão e passa a
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oferecer caminhos legitimados e reconhecidos a serem trilhados, percorridos por todos como
mais uma dentre as múltiplas possibilidades de subjetivação legitimadas (e regulamentadas)
pela sociedade. Como espelho desse movimento, observamos uma corrida incessante de reivindicações pela inscrição nos mesmos lugares disponibilizados aos heterossexuais, num
interessante desdobramento sobre a mesma base de enunciação. Os modelos de família e até
de relacionamentos são os mesmos que caracterizam as relações heterossexuais, por exemplo. Suplantar o outro, a pura diferença, fazê-la cair como erro ou, nesse caso, englobá-la no
próprio discurso, submetendo-a à sua lógica e neutralizando-a em seu possível efeito de
ruptura com a verdade afirmada são, muitas vezes, as condições necessárias para garantir a
(aparente) autoridade, coerência e universalidade da própria voz.
No entanto, é também preciso considerar o inusitado quando traçamos os efeitos de
determinados jogos discursivos, neste caso, as implicações nas formas de subjetivação atreladas à “descoberta” do universo GLS como grupo de consumo. Pois se é bem verdade que o
mercado, ao recortar um segmento investindo na “marginalidade” de modo a torná-la produtiva, o faz padronizando e homogeneizando, é verdade também que se criam com isso
novas tensões nas correlações de força e possibilidades de resistências, tendo em vista que o
que há de fato no campo político são sempre enfrentamentos. Como salienta Foucault (2002c),
toda estratégia de poder traz, nela mesma, possibilidades de resistências.
Assim, é interessante trazer à luz da discussão, o jogo que se estabelece no momento em
que a sociedade se volta com interesse para o público homossexual, tornando-o personagem
central nos discursos publicitários e da mídia em geral. Ao se expor e ao fazer falar um
determinado grupo, como o dos homossexuais, criam-se e desenvolvem-se práticas
institucionais e discursivas, como no caso da reportagem selecionada para essa análise. Tais
práticas definem quem pode falar, de que lugar(es) se pode falar e, mais ainda, como se deve
constituir (subjetivar) esse sujeito de que se fala e que também, de alguma maneira, resiste, ao
mesmo tempo em que se oferece como disponível às estratégias de poder e saber que se
articulam nesse jogo correlativo de forças.
Resgatamos aqui, novamente, a demarcação operada por Deleuze (1995) acerca do jogo
estabelecido entre minorias e maiorias. Triunfada no seu reconhecimento, a questão homossexual que pode começar a se articular agora, também pode caminhar no sentido de abrir
novas possibilidades de afirmação, ou seja, novos jogos políticos em que o homossexual
abandone a posição de falar de si mesmo apenas em termos dicotômicos de inclusão/exclusão. Romper dicotomias não é aproximar seus pólos, mas, sobretudo suspendê-los e desfazê-los.
Nesse novo jogo político, a busca não deve ser pela demarcação ou disputa por um terreno
próprio e minoritário, reivindicando os mesmos critérios de legitimação. Como aponta
Deleuze, o movimento pode caminhar mais no sentido de “invasão” do território majoritário, sem contudo renunciar aos dispositivos de um sistema “menor” de identidades. Ao invadir
(e não buscar o reconhecimento pelos mesmos critérios) o discurso dominante, o discurso
minoritário (menor, nos termos de Deleuze) pode promover desterritorializações e operar
mudanças na trama dos jogos de força, propondo um outro regime de signos, não marcado
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por hierarquias, modelos e dualismos, mas resultante de um processo contínuo de intensidades que não para de se alongar, de se romper e de retornar2.
O movimento de valorização do homossexual via esfera do consumo promove certas
desterritorializações que, no entanto, não representam a garantia da composição de novos
territórios onde se passe prioritariamente por intensidades. Isso porque tal investimento que
promove desterritorializações é seguido imediatamente pela recaptura para dentro da lógica
capitalística3, de modo a se fazer reconhecer um sistema de hierarquização de sentidos e de
modelos orientados pelo capital que nada tem a ver com o sistema rizomático, acentrado,
não-hierárquico e não significante. O que se vê é um duplo movimento iniciado pela captura
de fluxos desterritorializados, mas seguido imediatamente por uma recomposição/
sobrecodificação de uma ordem, tanto ou ainda mais rigorosa no campo das territorialidades,
operada por um processo de reterritorialização (Rolnik, 1989).
Todavia, o discurso de valorização homossexual via mercado pode sim apresentar uma
perspectiva que extrapola a noção repressiva, enfatizada na padronização e homogeneização
do sujeito homossexual em um quadro geral e identificável de referências. Se tomado no
momento em que antecede à sua recaptura (e posterior sobrecodificação), o discurso de
valorização do homossexual pode representar uma estratégia interessante de resistência. Uma
estratégia irônica, já que se articula a partir do interior do jogo capitalístico de produção de
subjetividades. É o movimento, sublinhado por Deleuze, de invasão do discurso maior operado pelo discurso menor. Num campo onde só se dava a ver um padrão, começa a aparecer
outro e a minoria se insere, não sem tensões, na lógica da maioria, abrindo para um interessante e fértil jogo discursivo. Instala-se uma lógica de combate onde, segundo Rolnik (2002,
p. 314), “o desafio está em enfrentar a ambigüidade desta estratégia contemporânea do capitalismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se ao investimento do capitalismo na
potência criadora, mas negociando para manter a vida (e não mais o capital) como princípio
ético organizador”.
Nesse movimento de reconhecimento como segmento de mercado, a homossexualidade
expande suas fronteiras para além do espaço restrito do gueto, invadindo mesmo o território
dominante e hegemônico da heterossexualidade. Assim, não cabe mais ao movimento homossexual a posição de evocar apenas o espaço molar de legitimação, enraizado ainda na
dicotomia inclusão/exclusão. Invadindo o território dominante, mesmo que via mercado,
promove-se a possibilidade de um deslizamento real no ideal hegemônico da
heterossexualidade e, talvez, um novo rearranjo no campo de correlações de forças que
extrapolem velhos pares dicotômicos. Um campo de enunciação que ainda passa pelo lugar
2
Souza (2000) aponta justamente o funcionamento dessa estratégia, quando o discurso menor invade o maior promovendo
desterritorializações e mudanças nos arranjos de linhas de força ao analisar discursos presentes em uma publicação voltada para a
população negra.
3
Felix Guattari (1987) coloca o sufixo “ístico” por acreditar que o termo capitalístico melhor representaria as sociedades que vivem
permeadas pelo capitalismo, incluindo aí não apenas os países desenvolvidos ocidentais, mas também os chamados de terceiro
mundo, caracterizados por um capitalismo periférico, assim como as economias ditas socialistas. Em todas essas sociedades, o modo
de produção de subjetividades se dá, segundo o autor, da mesma maneira, na mesma economia subjetiva.
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POLÍTICAS E DISCURSIVAS EM TORNO DA SEGMENTAÇÃO DO MERCADO DE CONSUMO GLS
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hegemônico, é verdade, mas que também aponta para um outro lugar, para outros horizontes na produção de si.
Não se pode deixar pôr em circulação outro discurso que não seja o dominante. Na prática
de dominação, dialogando novamente com Foucault, só há um jeito de ser sujeito, ainda que
fragmentado sob o signo da diversidade. Nas práticas de liberdade há múltiplos, uma vez que
remetem aos devires minoritários, às singularidades, aos rizomas, à operação por intensidades.
Como a sociedade poderia aceitar outras formas de exercício da sexualidade, outros modos de
ser, se não o hegemônico? Por isso a recaptura dos fluxos de desterritorialização e a valorização
de uma homossexualidade circunscrita em referências palatáveis, que muitas vezes chegam a
operar o próprio “apagamento” da questão homossexual. O mercado GLS delineia um campo
de subjetivação em que já nem importa tanto a orientação sexual propriamente dita. O que
vemos no enunciado destacado para esse trabalho é a valorização de um determinado modelo
de consumidor, cuja opção sexual aparece subsumida ou insinuada, que encontra eco apenas
no exato momento em que brada a “força de sua grana”.
A intolerância aponta para o não deixar ver aparecer outras possibilidades se não a
hegemônica. Nesse caso específico é como se houvesse o seguinte esquema: existam, consumam, seu dinheiro é bem-vindo. Entretanto, não apareçam, não circulem, não enunciem,
não deixem circular enunciados. Daí o movimento de recaptura das diferenças pelo modo
capitalístico de produção de subjetividades. Mas também decorre daí a necessidade de se
operar no cerne do próprio dispositivo, um agenciamento que lhe imponha resistências. A
resistência deve ser da mesma natureza do poder, como destaca Foucault (2002d, p. 242):
“para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão
produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de baixo e se distribua estrategicamente”.
A demarcação do universo GLS como grupo de consumo corresponde a uma interessante
posição de análise, que traz à luz os jogos enunciativos situados nas margens dos sistemas de
regras que fundam os discursos, os conceitos e os campos de possibilidades de subjetivação. A
grande questão que permanece e merece ser pensada é: como, então, fazer irromper a diferença no seio da uniformidade, para que o vir a ser possa sempre se descortinar em diferenças, em
intensidades e não em identidades-raiz? O mundo pode revelar-se, assim, mais enigmático e
ininteligível, onde todas as tentativas de organização de um quadro geral de referências
identificável sucumbam diante da proliferação de sentidos, abrindo espaços para agenciamentos
que culminem numa trama rizomática de devires minoritários que podem tornar esse mesmo
mundo ainda mais enigmático, instável e ininteligível. E por que não?
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Trajetórias de homossexuais na Ilha
de Santa Catarina:
temporalidades e espaços
Luiz Fernando Neves Córdova
Quero brincar com a minha cidade.
Quero dizer bobagens e falar coisas de amor
Para a minha cidade.
Vinícius de Moraes
INTRODUÇÃO
A
homossexualidade vista neste trabalho é produto e produtora de uma época que
traz transformações muito rápidas, assim como foram abruptas as transformações espaciais
na cidade de Florianópolis, particularmente as que ocorreram a partir das décadas de 1960 e
1970. A capital dos catarinenses é, sem dúvida, uma cidade de contradições e de profundas e
rápidas transformações. Observa-se, em qualquer um de seus rincões, uma constante interação
entre a tradição e as novidades da modernidade, o que demonstra a existência de várias
realidades. São contradições e os paradoxos comuns das sociedades urbanas atuais.
A cidade (o espaço) se transforma ao longo de um período (a temporalidade) e faz com
que a sua população também experimente novas formas de viver em sociedade. Valores
morais, tradições, hábitos e normas se entrecruzam em roteiros sociais historicamente
construídos, proporcionando pequenos avanços cotidianos, e alguns recuos. Isso sem falar
nos processos globais de mudança que influenciam todos os aspectos da vida diária, inclusive
as práticas sexuais. Por sua vez, a homossexualidade, aqui considerada uma produção
discursiva, só existe nos limites de um território e de um período histórico onde, enquanto
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participa de outras transformações, também vai se transformando. Ao trabalhar com significados locais das homossexualidades, podemos contribuir para a compreensão das mudanças
socioculturais que ocorrem no mundo atual. Florianópolis, costumeiramente é considerada
por muitos gays e lésbicas um lugar privilegiado para o exercício de uma mínima liberdade
sexual. Sua urbanização garante certo anonimato e contatos relativamente impessoais, favorecendo a criação de espaços onde se possam encontrar outros homossexuais e estabelecer
um “mundo” social. Outros, no entanto, acham a cidade ainda bastante conservadora. Uma
particularidade observada em Florianópolis, que a aproxima das demais capitais de estado, é
o fato de ser destino de migrantes de outros lugares, que, estando longe de seus familiares,
vivem as suas homossexualidades de forma menos vigiada.
A CIDADE E OS SUJEITOS
A presença pública de homossexuais em determinados pedaços1 acaba por criar algumas
representações muito específicas das diferentes homossexualidades. Se é possível constatar
ganhos nas novas imagens dos gays e lésbicas das camadas médias e altas, não dá para ignorar
o fato de que outros tantos homossexuais não querem ou outros, ainda, não conseguem viver
suas experiências da mesma maneira. Há uma enorme diversidade de representações quando
o assunto é sociabilidade, os próprios sujeitos vão redesenhando a geografia homoerótica da
cidade, criando diferentes segmentos entre os sujeitos, especialmente no que se refere às
diferenças de geração e de poder aquisitivo.
O interesse em percorrer os diferentes arranjos de espaços na cidade concentra-se em
observar como esses territórios foram demarcados simbolicamente e no fato de serem percebidos como “naturais” por muitos homossexuais. Como se eles sempre tivessem estado ali.
Conhecer como eles foram se constituindo como espaços de sociabilidade não implica esquecer as desigualdades sociais, as formas de violência ou as contradições urbanas. Apresentar
esses lugares de lazer é, também, mostrar como alguns homossexuais, homens e mulheres,
foram desenvolvendo vínculos com a cidade, modos e padrões culturais. Tanto com familiares quanto com amigos, colegas, “chegados” e desconhecidos.
Tradicionalmente o centro das cidades, suas ruas e praças, caracterizam-se como um
espaço de circulação e de permanência de diferentes grupos sociais. Da “irreflexão” dos jovens
à experiência do mais velho dos meus entrevistados, através da memória, fui identificando os
1
As noções de “pedaço” e de “circuito”, desenvolvidos por Magnani (1998), parecem-me mais apropriadas do que o uso da
categoria “gueto” para explicar as áreas da cidade ocupadas pelos homossexuais para sua circulação e encontros sociais. Pedaço é
o lugar dos colegas, dos “chegados” e o circuito é formado por diferentes estabelecimentos que oferecem produtos e serviços e
onde os usuários ou freqüentadores, mesmo que esporádicos, constróem seus trajetos ou fazem suas escolhas. O conceito de
“gueto”, apesar de muito utilizado, não parece dar conta das redes de sociabilidade por onde circulam os homossexuais da cidade
e parece excluir seus participantes de uma sociedade mais ampla. Até porque estes pedaços não são exclusivamente freqüentados
pelos gueis ou pelas lésbicas e sim compartilhados com homens e mulheres com outras vivências e com diferentes características,
idades, classes, etnias.
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percursos por onde circularam em Florianópolis e como significaram esse espaço como seu.
Como memória, as lembranças são fragmentárias, relatos bricolados de um caminhar pela
cidade.
A Praça XV de Novembro, por exemplo, é apresentada como um “pedaço” da cidade,
um dos espaços privilegiados de sociabilidade de homossexuais, que é muito freqüentado
por diferentes tipos de pessoas, em diferentes tempos e momentos do dia. Símbolo da cidade,
a Praça XV é marcada pela presença de velhos aposentados, políticos, pregadores da palavra
de Deus, ilustres desconhecidos, engraxates, pivetes, pessoas em trânsito, além de alguns
tipos folclóricos, prostitutas, bichas e dos turistas. À noite, há um carrinho de cachorroquente que, localizado em uma das esquinas, atrai muitas pessoas e é fonte de interação entre
seus freqüentadores. Houve épocas em que a praça contava também com a presença de
inúmeros marinheiros vindos do 5º Distrito Naval, que ficava nas redondezas, e de muitos
hippies com seus artesanatos. Assim, junto à Figueira, às estátuas e aos monumentos, muitos
circulam em busca de sexo, paquera, prazer, diversão, bom papo, leitura de jornal, pequenos
furtos, etc. Dizem que dar três voltas em torno da Figueira faz com que o turista retorne à
cidade, e que para casar basta, também, dar três voltas, só que no sentido anti-horário. A
Praça é o “coração” da cidade e foi a partir dela que Florianópolis foi se configurando como
um grande conglomerado urbano.
Como qualquer metrópole, a pequena/grande Florianópolis dispõe de, em sua área
central, recursos destinados ao público GLS que quase chegam a caracterizar uma “região
moral”, conforme descrita por Richard Park (1973). Num território mais ou menos circunscrito há bares, boates, saunas, hotéis, dormitórios e alguns pontos de “pegação”, como
praças, avenidas, ruas, esquinas, banheiros públicos, etc. Delimitada entre as baías norte e
sul e o maciço do Morro da Cruz, a região possibilita a interação de gueis e lésbicas,
facilitando suas relações sociais, ao mesmo tempo em que estabelecem relações de contigüidade com diferentes populações “marginais”, prostitutas, travestis, malandros, pequenos
traficantes, entre outros.
O “gueto” florianopolitano, no entanto, evidencia-se nos locais de lazer ou de atividades
relacionadas às práticas sexuais: bares, boates, pedaços de praias e determinadas ruas e praças. Dessa forma, uma boate destinada ao público GLS logo passa a ser identificada como
gueto, seja por seus freqüentadores ou por seus detratores. Um bar pode ser considerado
gueto. Enfim, qualquer lugar destinado a esse público, devido à freqüência desta clientela,
logo passa a ser considerado gueto2. Isso não acontece como reivindicação da criação de
bairros ou espaços para “segregação” da vivência homossexual; pelo contrário, em
Florianópolis observam-se tentativas de ocupação da cidade como um todo.
A partir das entrevistas que realizei foi possível deduzir que os homossexuais
florianopolitanos, ou os que aqui vivem foram construindo quase que milimetricamente cada
um de seus espaços. Se, no início, houve a ocupação de alguns lugares voltados para o público
2
Torna-se uma categoria nativa.
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hétero, com certeza não foi pela benevolência de seus proprietários. A sensação que vislumbro a cada leitura das entrevistas é a de uma reelaboração dos valores e dos costumes a cada
geração. Cada qual teve que, a seu modo, desenvolver formas de ações/reações que permitiram/permitem a convivência com a heteronormatividade. Saliento, entretanto, que se o foco
está voltado para os locais por onde esses sujeitos circularam, mais do que ao fato de compartilharem uma orientação sexual, isso significa que o meu interesse foi identificar os espaços
físicos ou simbólicos onde os homossexuais desenvolveram alguma forma de sociabilidade.
DO SAMBURÁ AO ESCRACHO: A BUSCA DE UM LUGAR
Agenor (71 anos), o senhor com mais idade que entrevistei, disse que nunca gostou de
freqüentar bares, local descrito por ele como “o ponto dos fracassados no amor”. Em sua
juventude, gostava de ir às festas, especialmente no Clube 12 de Agosto, ou no Palácio do
Governo, bailes ali na Praça XV. “Antigamente se faziam bailes ali, interditava-se a praça
toda. Bailes no 5º Distrito Naval que eram os mais chiques do Estado”. Confessou que
também encontrava “seus” homens na Praça...
Outra forma de se reunir com os homens eram as festas organizadas em apartamentos
particulares. Isso nos anos 60. Tais festas chegavam a reunir uns 15 ou 20 homens, e alguns
se vestiam de mulheres. Também em São Paulo e no Rio de Janeiro, nessa época, as interações
sociais aconteciam em lugares privados, longe das hostilidades públicas e das perseguições
policiais, segundo James Green (2000), “os membros da turma costumavam se reunir no
apartamento de alguém para pequenas festas, nas quais ocasionalmente organizavam brincadeiras que imitavam os desfiles de moda e concursos de beleza. Essas eram atividades discretas”
(p. 296). Francisco (63 anos), outro senhor entrevistado, também se referiu a esses discretos
encontros, mas acrescentou que, entre os membros da sua turma, a escolha recaía no aluguel
de casas em diversos balneários da ilha, em particular a Lagoa da Conceição e o Campeche.
Francisco descreveu o Samburá como “o primeiro bar gay”, mas que logo acabou. O bar
teria existido em meados dos anos 50 e, segundo Francisco, teria sido fechado por pressão da
igreja católica, mas sem precisar como isso aconteceu. “Que eu lembre, nunca houve repressão, a polícia nunca se meteu ou mexeu com veado. Nunca aconteceu comigo, ao menos,
também não havia travestis. Não tinha essas coisas antigamente”. A associação da repressão
policial com a existência das travestis pareceu-me recorrente nas falas desse homem, que
também era policial. Talvez a presença das travestis fosse mais clandestina, não aparecendo
tanto, ou elas não circulavam pelos mesmos meios sociais que Francisco. De qualquer forma
ele atribui a maior visibilidade das travestis à existência dos movimentos gueis.
James Green (2000, p. 332) afirma que foi somente após a resignificação social das
homossexualidades e sua iminente visibilidade que ocorreu a apropriação e a transformação
de bares e casas noturnas como locais de sociabilidade entre os homossexuais. Isso não quer
dizer que não haveria, antes do final do século XIX, outras formas de sociabilidade entre
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eles, no Brasil. Foram, segundo o autor, os famosos bailes de travestis, no Rio de Janeiro, que
fortaleceram os movimentos anti-opressão, possibilitando assim um aumento da tolerância
social e, conseqüentemente, a criação de pontos de sociabilidade homossexual mais explícitos.
Mais tarde apareceu o bar Universal, na frente do Hotel Querência. Tinha uns bares de prostitutas, ali na
[Rua] Conselheiro Mafra, tinha o Cristal Lanches, também... Onde tem o Edifício Dias Velho era um bar,
não me recordo o nome, tinha de tudo ali. A gente se encontrava ali, o Roda Bar apareceu bem depois,
mas este também nunca foi um bar gay (Francisco, 63 anos).
Apesar de não considerar o Roda um bar guei, Francisco afirmou que
ali, a gente fazia muitas “pegações”. Nos anos de 75, 76 apareceu o Escovinha, que logo se transformou
num ponto onde as “bichas” iam se encontrar. O Escovinha ficava ali na rua Padre Miguelinho, atrás do
Banco do Brasil, onde funciona uma casa de molduras. Ali, foi o começo de bar gay.
Perguntado pela presença de lésbicas nesses ambientes, Francisco reforça o caráter da
invisibilidade dessas mulheres. Os relatos de Belinha (61 anos) foram ao encontro das observações dos dois senhores entrevistados quando afirmam que desconheciam os relacionamentos
lésbicos. Belinha apenas se referiu ao início dos anos 70, quando já contava com quase 30
anos, já tinha uma profissão e acabara de adquirir o seu primeiro automóvel que, com certeza, possibilitou-lhe maior autonomia para se deslocar entre as diferentes praias da cidade. Na
época, a praia da Joaquina era a sua favorita para a prática da meditação, mas também era
uma praia que estava sendo descoberta pela juventude de então. Os entrevistados de Erdmann
(1981) também citam a praia da Joaquina e a Lagoa da Conceição como pontos propícios
para “pintar alguma coisa”.
A presença em bares e boates é uma questão pessoal que não implica vivência melhor,
nem pior, mas diferente. Se Belinha e Agenor viveram suas juventudes sem procurarem por
esses espaços, houve outros homens e mulheres que procuraram justamente nesses locais os
seus relacionamentos. Assim foi com Francisco e com Mariza (53 anos). Pessoas “inquietas”
que teimavam em freqüentar os lugares voltados para o público heterossexual e lá formarem
seus grupinhos.
Com a entrada na faculdade, ainda nos anos 70, Mariza descobre o Escracho, o bar dos
universitários. Era “um lugar que ia uma moçada mais doida, onde a gente podia namorar,
tanto os meninos quanto as meninas (...) Era permitido tudo, podia qualquer negócio (...)
Maconha a gente fumava na Felipe Schmidt”. Nessa época, a rua Felipe Schmidt ganhou o
calçadão e se tornou uma espécie de ponto de encontro dos jovens da cidade, o espaço de
lançamento de novidades culturais.
De acordo com Ricardo (46 anos), “em 1972, 1973, nasceu o melhor da sacanagem que
Florianópolis já teve, que é o Aterro da Baía Sul. A cidade que já era urbana ganhou uma área
extremamente erma, fora dos olhares do centrão”. Para esse informante, a construção do
aterro logo se constituiu numa área de sacanagem, “isso à noite e também de dia”. No entanto,
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para Ricardo o Roda Bar e o famoso Escovinha foram o começo de tudo, eram os locais para
onde os homens iam, depois do trabalho, para tomar um chopinho. Ele disse que via o Clube
Paineiras, que marcou fama na cidade como afirmou Agenor, como o primeiro lugar para os
gueis da cidade, “foi o primeiro bar onde beijei um homem na boca, em público”. Para ele,
“era tudo muito liberado, não tinha essa coisa de gueto, o gueto não existia em Florianópolis.
Existiam locais mais discretos de caça e ou pegação”. O Escracho Bar foi, segundo seu ponto
de vista, o mais famoso bar para os gueis da época. Visão também compartilhada por Mariza
para quem da rua Álvaro de Carvalho, onde as coisas foram ficando mais explícitas, as mulheres e homens homo-orientados voltaram para a rua Padre Miguelinho, onde começava a
se configurar o que chamou de “circuito da lama”.
A CRIAÇÃO DOS ESPAÇOS: O “CIRCUITO DA LAMA”
Os anos iniciais da década de 1980 ficaram marcados como aqueles que viram o aparecimento dos primeiros bares voltados para um público homossexual. Desde aquele período,
sempre houve algum bar ou boate abertos e público suficiente para os manterem em funcionamento. Quase todos, no entanto, seguiram um mesmo roteiro: foram criados para atender
uma clientela heterossexual, mas alguns gueis, algumas lésbicas ou até mesmo algumas travestis começaram a freqüentá-lo e eles foram ampliando o leque de atendimento, até, em
alguns casos, ficarem voltados exclusivamente para o atendimento desse público. Outros
foram criados já pensando nesse filão de mercado.
Quando o bar Escova na rua Padre Miguelinho fechou, foi aberta a boate do Escova na
rua Fernando Machado. No início, a freqüência maior era de prostitutas que foram sendo
substituídas pelas travestis, que levaram consigo os gueis, que também trouxeram as lésbicas.
Os gueis e as lésbicas estavam finalmente conseguindo um lugar para freqüentar sem tanta
vigilância, mas até chegarem ao local tomavam uma série de cuidados, como deixar o carro
estacionado em frente à Catedral.
Leila (44 anos) disse que nessa boate havia uma mistura das diferentes camadas sociais,
étnicas e socioculturais. A possibilidade de interação com outros homossexuais, talvez seja
um dos aspectos mais positivos da criação de um “circuito” de bares e boates. Como afirmou
Leila, nesses locais muitos acabaram se descobrindo e formando um grande grupo de amigos.
Estavam começando a se configurar os espaços desses sujeitos na cidade.
Com a conquista do bar Brasileirinho (rua Fernando Machado) os mesmos jovens que
deixavam os carros em frente à catedral e corriam para entrar numa boate, num lugar tipo
sótão, agora passaram a freqüentar um bar aberto, com luminosos à porta, sem precisar se
esconder. O Brasileirinho funcionou de 1980 a 1982 e de acordo com Schwinden (2003) era
freqüentado por Celso Pamplona, colunista social; Beto Stodieck, jornalista; Ciro Maciel,
cabeleireiro, entre outros. “Cada grupinho se instalava numa parte do bar/boate, um tentando ‘arrasar’ com o outro, desde a maneira de vestir até a sua condição financeira” (Schdwinden,
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2003, p. 23). Pode-se observar que esses espaços têm em comum a busca de sociabilidade e
lazer, mas são atravessados por algumas diferenças como as de classes sociais e gerações.
O carnaval da avenida Hercílio Luz, ou do Roma, como ficou mais famoso, tem origens
desconhecidas. Eu ouvi diferentes personagens atribuindo a si e à sua turma o pioneirismo na
(des)organização da festa. Acredito que a criação desse espaço de carnaval foi uma decorrência da ocupação dessa região da cidade, e do próprio circuito que começava a se formar ao
seu redor. O Roma ficava situado numa avenida larga, sem canteiros no meio, e nas suas
redondezas havia dois hotéis que hospedavam muitos turistas que se montavam para a festa
e ali era um espaço que necessariamente teriam que percorrer ao se dirigirem ao carnaval na
Praça XV. Ali perto também se realizava o tradicional Baile Municipal, no Clube 12 de Agosto, um dos principais clubes da elite local, que sempre despertou a curiosidade da população,
especialmente para verem a chegada dos blocos, ou das pessoas e personalidades convidadas.
Outra atração do Municipal eram os concursos de fantasias, do qual participavam também
gueis locais e de outras cidades do país. O carnaval, sem dúvida, trouxe muita visibilidade
para o incipiente circuito que estava começando a se formar em Florianópolis.
O Bar e Pizzaria Roma já existia há algum tempo e resistiu até o mês de novembro de 2001,
na esquina da avenida Hercílio Luz com a rua Fernando Machado. Na verdade, funcionou durante 25 anos, sempre no mesmo lugar, nunca se caracterizando como um bar voltado exclusivamente
aos homossexuais. Durante o dia servia refeições e à noite era freqüentado por muitos homens.
Era um bar que ficava aberto até altas horas da noite e, nesse sentido, sempre atraía aqueles que
queriam tomar uma última cerveja, ou estavam “caçando” alguém para fazer um último programa. Sempre teve uma procura dos homens gueis e não havia restrições a suas presenças. Com o
aumento do movimento de gueis e lésbicas em função dos bares Escova e Brasileirinho, também
o Roma, às vezes, era invadido por essas turmas e aí, alguns problemas começaram a ocorrer.
Havia noites em que os garçons eram proibidos pelos proprietários de atender qualquer pedido
dos homossexuais. Em outras ocasiões, talvez a maioria delas, em determinado período o bar era
freqüentado quase que exclusivamente por gueis e lésbicas e algumas travestis.
Em seguida, o Brasileirinho foi adquirido por um guei que transferiu a boate primeiro
para a rua Marechal Guilherme e, em seguida, para a escadaria do Rosário. Essa foi sem
sombra de dúvidas a mais famosa boate guei de Florianópolis nos anos 80. A Oppium, citada
incontáveis vezes pelo jornalista Beto Stodieck foi palco de inúmeras festas na cidade, que
reuniam especialmente gueis e lésbicas das camadas médias e universitárias. A Oppium também foi o primeiro espaço público local dedicado aos shows de transformistas. A boate teve
uma longa duração, funcionando de 1982 até 1990, e durante algum tempo fez parte do
“circuito” carnavalesco, pois foi a primeira a realizar o Gala Gay Para as mulheres, no entanto, nem tudo foram flores. “O (dono) tinha muito preconceito contra as mulheres (...) Inclusive,
ele, às vezes, cobrava mais caro, para desestimulá-las de irem à boate” (Leila).
Em 1984, foi aberta a boate Studio Masmorra no mesmo local onde funcionou o bar e
boate Brasileirinho. Aliás, a boate também ficava no porão; em cima funcionava a Petisqueria
Brasileirinho, sob nova direção. Também começou como bar voltado para o público
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heterossexual, mas logo o espaço foi reapropriado por gueis e lésbicas. A boate tinha suas
paredes pintadas imitando pedras, como numa prisão medieval, uma masmorra. Nos fundos
do casarão foi montado um anfiteatro para montagens de pequenas peças teatrais, às vezes os
próprios freqüentadores da boate improvisavam a peça, mostrando-se como atores. Havia
nessa boate uma presença considerável de punks e darks. Diferentes tribos que se formavam
na cidade e que não eram, necessariamente, homossexuais.
O Degrau’s funcionava na esquina da escadaria do Rosário com a rua Vidal Ramos e
talvez tenha sido o último bar no centro voltado para os jovens das camadas médias e altas da
cidade, que na época já começavam a freqüentar a avenida Rubens de Arruda Ramos, a
famosa Beira-mar Norte. O Banana’s funcionou por algum tempo na rua Araújo Figueiredo
e foi o bar freqüentado pela maioria dos atores que trabalharam na montagem local da peça
Zumbi dos Palmares, que ficou meses em cartaz no Teatro Álvaro de Carvalho (TAC). Havia
uma confluência de artistas, jornalistas, estudantes e, entre eles, muitos gueis e lésbicas. Segundo Schwinden (2003, p. 27) “era um bar fino, de intelectuais”. O Pinga só Pinga, como o
nome indica, só trabalhava com cachaças e era um pequeno bar de balcão na rua Saldanha
Marinho. O Maçã Verde ficava situado na rua Artista Bitencourt e foi um dos primeiros bares
criados para uma clientela homossexual.
O Divina Comédia ficava na rua Padre Miguelinho. O Havana, bar freqüentado principalmente por estudantes e intelectuais de esquerda, funcionava na Saldanha Marinho e durante
alguns anos também organizava um carnaval de rua na frente do bar, que configurava, junto
com os carnavais da Praça XV e do Roma o circuito momesco. A boate Chandon, no seu
início ficava nos altos da rua Felipe Schmidt e só mais tarde é que se transferiu para a rua
Henrique Valgas.
Outro bar, citado por Mário (41 anos), chamava-se Fin-de-siècle e impressionava por
sua “ousadia”, na época. Em um grande casarão, funcionava com vários ambientes, inclusive
uma sala de sinuca, cuja freqüência era predominantemente de mulheres. No porão funcionava uma boate. Nesse bar apareceram, publicamente, as primeiras drags de Florianópolis.
Durou pouco, e logo o seu proprietário voltou para a Escadaria do Rosário, onde abriu sua
última boate na cidade, a Ominus.
Mas por que “circuito da lama”? Mariza é quem explica.
O circuito abrangia aquela região do centro as ruas Padre Miguelinho, Anita Garibaldi, Fernando Machado, Saldanha Marinho, avenida Hercílio Luz, porque toda a baixaria rolava ali, por isso se chamava circuito
da lama. Era uma região ocupada por um pessoal mais underground, por isso se chamava lama, era um
lugar, assim, dos artistas da cidade. Vamos dizer, assim, era um lugar do pessoal diferente, de alguma
forma. Uns pela prática trabalhista, outros pela prática de uso de drogas, outros pela diversidade sexual.
As diferenças estavam ali (Mariza, 53 anos).
O hábito de desqualificar o “circuito” por onde circulavam parece ser uma característica
desses anos iniciais. Talvez como uma resposta às precariedades dos locais oferecidos, ou
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talvez uma simples brincadeira. Mas, acima de tudo, pareceu-me que se tratava de uma
maneira de estabelecer uma noção de “código-território” (Perlongher, 1993, p. 57) em que
se ressaltassem menos as características de seus freqüentadores (sentido descritivo) do que
uma maneira de regular relações e passagens (sentido prescritivo). Apesar de um mesmo
público freqüentar esses diferentes espaços, havia uma distinção por camadas sociais ou níveis de escolaridade.
Outro bar que foi bastante conhecido na cidade, apesar de não ter sido citado por meus
entrevistados, foi o Fulanos & Florianos. Esse bar funcionou na rua Presidente Coutinho e
atraía, além dos homossexuais, diferentes tribos, em particular os darks. Uma de suas principais
atrações era a existência de um palco, em cima do balcão, onde se realizavam pequenos esquetes,
aconteciam shows, ou ainda onde os presentes poderiam improvisar alguma apresentação.
No entanto, não era só no centro da cidade que esses homens e essas mulheres se encontravam. A estação de veraneio possibilitava a realização de muitas festas nas casas de praia,
assim como a abertura de diferentes bares, de norte a sul da Ilha. Também em São José essas
turmas foram procurar espaço para se encontrarem, fora do circuito já estabelecido de bares.
A VISIBILIDADE DE HOJE: “BEIJAÇO” E “ABRAÇASSO”, SEM PARADA
As gerações mais novas de gueis e lésbicas encontraram certa estrutura de locais de lazer
que, no entanto, não foi acompanhada de avanços tais que possibilitassem a realização de
paradas gueis. A imagem divulgada de Florianópolis como uma “cidade guei” ou “paraíso
para os gueis”, talvez só se realize no carnaval ou no canto esquerdo da Praia Mole. Por outro
lado, há ainda na cidade, muitos espaços que não são receptivos às manifestações das homossexualidades e aqui também ocorrem episódios de violência contra gueis, tanto quanto em
outras cidades brasileiras, especialmente para com as travestis. A principal batalha das novas
gerações, talvez esteja sendo a de colocar suas imagens nas ruas. Uma luta que nem sempre é
acompanhada por seus pais. Júnior (18 anos) disse que alguns de seus amigos e amigas foram
expulsos de casa quando resolveram se “assumir”. Em pleno século XXI.
Marina (25 anos), garota de programa da boate Bokarra, na rua Menino Deus, afirmou
que freqüentava “uma boate gay, onde funcionava a antiga Chandon, ali perto da rodoviária
e o Bier Haus”. A boate que sucedeu a Chandon3 era a Transpoort, nas proximidades do
Terminal Rodoviário Rita Maria. A garota trabalhava na pequena rua que leva ao Hospital de
Caridade, e onde funciona o Mix Café, um bar/boate para gueis. Francisco já havia dito que
nessa rua, nos anos 60, havia “uma casa de zona”. Ali também passa a tradicional procissão
do Senhor dos Passos.
A Chandon foi inaugurada nos anos 80, nos altos da rua Felipe Schmidt e durante muito
tempo foi considerada a boate da moda. Aos poucos a freqüência foi se tornando
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A Chandon, depois de 10 anos, foi à falência em 2002.
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predominantemente de um público homossexual que, no início dos anos 90 se sentiu livre
para a demonstração de afetos entre si. A boate, então, passou a dominar a cena guei da
cidade. Em agosto de 1998, passou para a rua Henrique Valgas, onde contava com diferentes
ambientes, com capacidade para aproximadamente 1500 pessoas. As mulheres ficavam onde
o “som” era nacional, com muito axé e pagode; os homens preferiam o techno. Havia,
também, o espaço do telepaquera com treze cabines, além de locais para jogar sinuca, para
vídeos e dark room.
Nese período, década de 1990, outras duas boates existiram na cidade. A Notre Vie, na
Praça XV, com grande presença de travestis e a Ominus, com shows de transformismo, no
mesmo local onde a Oppium funcionou nos anos 80, a escadaria do Rosário. A Notre Vie
funcionou por dois anos, até 94, e a Ominus durante cinco anos (1993-98). O mesmo público se revezava entre elas nos finais de semana.
Rosane Godoy (2001) apresentou um roteiro de bailões espalhados pela região metropolitana e que ampliavam a noção do gueto como única forma de convivência ou sociabilidade
guei. Também identificou, em sua pesquisa, o bar Via 11 Café, situado na rua Trajano que, no
entanto, não foi citado por meus entrevistados. Um bar onde era predominante a freqüência
de mulheres e onde aconteciam shows com cantores locais de MPB. A presença de casais
heterossexuais também era grande, segundo a autora.
O bar Bier Haus, na rua Anita Garibaldi acabou se transformando no Stylo, de propriedade de uma lésbica. Esse fato talvez explique ser o público que freqüentava a casa
majoritariamente composto por mulheres, o que não quer dizer que os homens fossem
excluídos. Eles, em sua maioria, freqüentavam primeiro o Estaleiro Ilha dos Patos4 e depois, quando fechou, o The Pub. O Mix Café, na rua Menino Deus, considerado gueto por
Ricardo, também foi apontado por um jovem entrevistado como um lugar mais elitizado,
que se destacava ao realizar shows com drag queens vindas de São Paulo, Curitiba e Balneário Camboriú. Esse bar foi idealizado para homossexuais, assim como as saunas Oceano e
Hangar, que faziam parte do mesmo grupo de empresas. Apenas um de meus entrevistados
falou sobre as saunas.
Como as últimas entrevistas realizadas foram no ano de 2003, resolvi fazer uma pesquisa
na internet sobre os locais de lazer e diversão em Florianópolis, em 2005. Escolhi para isso
um site que faz essa identificação em todo o país e, talvez, um dos mais acessados por gueis e
lésbicas internautas. Segundo o Guia Gay do Brasil havia, naquele ano, na cidade os seguintes
estabelecimentos voltados ao público GLS: os bares do Deca na Mole e na Lagoa (“é o ponto
de encontro preferido da turma GLS na praia”); o Bob’s, no calçadão da Trajano (“muita
gente procura o lugar para se encontrar, principalmente adolescentes”); Sins, na rua Tiradentes
(“ideal para uma boa paquera ou um encontro mais leve, sem badalações pesadas”); Thai
Bar, na travessa Harmonia (“bar com inspiração oriental em sua decoração”); The Pub
4
Quando o Ilha dos Patos fechou, foi aberto no mesmo lugar o Escotilha Bar, em 1997. Esse bar fez com que os shows das dragqueens se tornassem uma atração comum na cidade.
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(“inspirado nos pubs ingleses”); Zero Grau, no Mercado Público Municipal (“público bastante
eclético”). As boates: Concorde, na avenida Rio Branco; o Mix Café, na rua Menino Deus.
Os restaurantes: Bistrô da Leila, em Sambaqui; o Bistrô Isadora Duncan, na Fortaleza/Barra
da Lagoa. As saunas Thermas Hangar e Thermas Oceano, no centro. Há no site, ainda a
sugestão de alguns points e de serviços de locações de VHS e DVD.
Alguns dos lugares citados foram freqüentados por meus entrevistados, outros são mais
recentes, inaugurados depois que terminei o campo, mas a maioria é voltada para um público
GLS. Ou, ainda, dirigidos a um público heterogêneo e, portanto, sem restrições aos homossexuais. O Guia Gay do Brasil somente é acessado via internet, o que restringe bastante a sua
abrangência, e dirigido a um público bastante específico, especialmente em termos financeiros. Dificilmente algum sujeito oriundo das camadas populares acessa um site como esse para
definir seu local de lazer ou de pertencimento, talvez por isso não haja menção aos bailões
das periferias da cidade. Até na forma como os ambientes são descritos, pode-se observar que
os organizadores do Guia estão se dirigindo a um público específico. Outro fator que se
ressalta é que, fora as boates, os bares onde se pode dançar ou as saunas, os outros espaços
são freqüentados basicamente por heterossexuais e não necessariamente simpatizantes. A
Praia Mole ou a Lagoa da Conceição são points de jovens, independentemente de orientações sexuais. O Mercado Público tem uma freqüência bastante eclética, tanto de consumidores
nativos quanto de turistas, de diferentes gerações, etnias e classes sociais. Os bistrôs, que se
espalham pela cidade, vão formando uma clientela diversificada quase sempre com interesses
mais próximos e com um poder aquisitivo também diferenciado. O Thai Bar é guei apenas
nas noites de quinta-feira e de sábado; o Bob’s é o local escolhido pelos jovens adolescentes
para os seus encontros, mas somente no período da tarde e naquelas mesas colocadas no
calçadão, em frente à loja.
Outros “pedaços” identificados como de sociabilidade para os homossexuais são as praias, especialmente o costão esquerdo da Mole, em frente ao Bar do Deca, e a Galheta. A Mole
assumiu, nos anos 90, o lugar que era da Joaquina nos anos 70 e 80. A praia reúne diferentes
tribos da cidade. A Galheta é a única praia da Ilha onde é possível praticar o naturismo, sem
ser obrigatório o nudismo, e por ser praticamente deserta, é um local onde se pode namorar
mais à vontade5.
Na praia da Galheta, no verão, há uma circulação intensa de homens interessados em
manter encontros sexuais rápidos com outros homens. Pode e é considerado um ponto de
“pegação”. Assim como o aterro da baía sul, agora já ajardinado e ocupado por diversos
aparatos públicos, que povoou a juventude de Ricardo (46 anos) e foi também assinalado por
Erdmann (1981). Se os encontros continuam a acontecer por toda aquela área é, entretanto,
sob as pontes Colombo Salles e Pedro Ivo que interligam a ilha ao continente, que os homossexuais se concentram mais nas madrugadas. Agenor (71 anos) admite, no entanto, que prefere
encontrar os meninos da avenida Hercílio Luz, a sua Broadway.
5
Entretanto, em anos anteriores, já houve registro policial de atos violentos contra gueis que praticavam o naturismo.
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No dia 8 de abril de 2005, o Grupo New-Floripa de Adolescentes e Jovens GLBTA6,
promoveu um ato de “Livre Expressão Homoafetiva” em frente ao Bob’s da Rua Trajano, no
centro, intitulado de “Beijaço & Abraçasso”. No convite para participar do evento o presidente do grupo de jovens, Washington “Muleke” da Silva, manifestava-se “... de nada vale
um milhão de pessoas na Parada do Orgulho Gay se vergonhas como essa continuarem a
acontecer impunemente...”. A concentração reuniu dezenas de pessoas e reivindicava liberdade de expressão, com direitos iguais aos dos heterossexuais. Vários casais de gueis, lésbicas
e simpatizantes se beijaram ou se abraçaram, especialmente aqueles que não tinham par, em
protesto à suposta discriminação por orientação sexual dos seus freqüentadores. Dias antes,
dois gueis haviam sido abordados por uma “gerente junior” solicitando que não mantivessem contato físico dentro do estabelecimento.
O conceito GLS, aliás, como já foi dito, ampliou a noção dos espaços gueis como tal,
para espaços por onde circulam ou vivem os homossexuais. Apresentei os bares e as boates
como espaços de sociabilidade para gueis e lésbicas, mas jamais me afastei da noção de sujeitos que se socializam com os demais moradores da cidade, colegas de trabalho, família, etc.
De outra forma pareceria que eles somente se socializariam para o lazer. Da mesma forma,
pareceu-me que a integração de gueis e lésbicas das camadas médias da população ainda não
veio acompanhada da inclusão de sujeitos homossexuais com outras condições de classe, ou
de travestis e transgêneros.
CONCLUSÃO
Esta minha pesquisa sobre as sociabilidades de homossexuais relacionadas a suas vivências
na cidade mostrou que até a década de 1980, para encontrar amigos e namorar sem serem
molestados, os gueis e as lésbicas organizavam festas em casas e apartamentos espalhados
pela cidade. Havia uma discreta presença dos homens nos bares e lanchonetes do centro,
alguns procuravam outros homens nos cinemas Ritz e São José, ao lado da Catedral Metropolitana, ou ainda, nos bailes e clubes da sociedade. A praia preferida era a Joaquina. A partir
dos anos 80 apareceram os primeiros bares e boates voltados quase que exclusivamente aos
homossexuais, aí incluídas as travestis. Nos anos 90, com a diluição do conceito GLS, ampliaram-se os locais de sociabilidade guei na cidade. Realizei um resgate da memória dos locais
por onde os homossexuais florianopolitanos circularam nas últimas décadas. O “gueto”, que
fornece uma “falsa” sensação de proteção contra a homofobia, ainda resiste mas cada vez
mais se observa que os gueis e as lésbicas estão adotando outros comportamentos e, em vez
do confinamento, começam a se expor.
Parafraseando Michel de Certeau, a cidade de Florianópolis foi sendo redesenhada e
replanejada também a partir dos lugares onde os/as homossexuais iam construindo seus espaços
6
New-Floripa, Grupo de Adolescentes Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgêneros e Aliados em Florianópolis.
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de sociabilidade e de vivências. Para além da Praça XV, do aterro da baía sul, de ruas, praias
ou banheiros públicos, os/as homossexuais pareciam ir conquistando a cidade como um todo
e buscando sua inserção em qualquer espaço. A circulação de gueis e lésbicas é, no entanto,
bastante difusa e dispersa por todo o espaço urbano, marcada por divisões de classes e gerações,
entre outras. Apesar de não haver na cidade bares e boates exclusivos para homens ou para
mulheres homossexuais, foi possível observar, através das falas dos/as entrevistados/as, que
havia uma hierarquização dos seus espaços de sociabilidade e lazer, que os segmentavam e
separavam em grupos. Assim, ouvi falar de lugares identificados como de freqüência de
diferentes sujeitos e estilos de vida, os bares aonde iam “tias velhas”, “bichas pintosas”,
“bichas pobres”, “caminhoneiras”, “travestis”.
A circulação de gueis, lésbicas, travestis, cross-dresser, por diferentes territórios configura diferentes percepções de cidade. Florianópolis é múltipla e cresceu muito nos últimos
anos. Não é só pelo aumento do número de lugares de lazer voltados ao público guei que se
pode fazer tal constatação. Há um grande número de homens e mulheres que se relacionam
sexualmente com outros homens e com outras mulheres que não freqüentam os chamados
“guetos”, procurando outros espaços para seus momentos de lazer. Contudo, o próprio “gueto”
cresceu e seus ambientes já não são considerados como de “risco” para os freqüentadores. Na
cidade não há mais porões ou sótãos e apesar de não ostentarem uma bandeira na porta,
muitos dos moradores da cidade sabem onde estes bares e boates estão localizados. Com
exceção das saunas, que não possuem identificação em suas fachadas, esses locais são bastante conhecidos.
Revendo os trabalhos historiográficos de Ivonete Pereira (1996) e de Joana Pedro (1998)
sobre vivências de mulheres na cidade e justapondo-os com os lugares de sociabilidade
homoerótica identificados é possível concluir que apesar de mudarem os personagens o cenário é quase o mesmo. “As ruas da Toca, da Pedreira, Beco do Menino Deus, General
Bitencourt, entre outras, foram substituídas pela Conselheiro Mafra, Praça XV, Hercílio Luz...”
(Pereira, 1996, p. 147). Nesses lugares, os homossexuais foram aparecendo e disputando o
espaço com as prostitutas. Isto permite deduzir que mesmo a história em permanente estado
de movimento, permaneceu o uso de determinados espaços da cidade por sujeitos “marginais”, assim como novos espaços foram construídos.
Esse meu olhar sobre a cidade resultou de um roteiro ditado por meus entrevistados.
Formas diferentes de apropriações de espaços também foram apresentados, mas com certeza,
a cidade é diversa quando vista por outros olhares, guiada por outros mapas. O importante é
não pensá-la como a soma de fragmentos desconexos. Para Maria Lúcia Montes (2000) “a
cidade revela que, na dinâmica da organização do seu espaço, se inscrevem signos diferenciais de pertencimento, que é necessário levar em conta, se se quiser compreendê-la, ou
mesmo representá-la” (p. 304). Uma trama frágil em perpétua tarefa de construção, reconstrução e onde os “pedaços” refletem, numa dinâmica maior, a própria cidade. E, apesar de
Ricardo (46 anos) afirmar que é muito difícil ser guei em Florianópolis, os demais afirmaram
que ainda há espaços de vida com qualidade na cidade, onde os gueis, as lésbicas e as travestis
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podem se reconhecer como cidadãos. Espaços que foram sendo construídos ao longo do
tempo. O processo de desencantamento, comum em muitas metrópoles, ainda não atingiu o
grupo de entrevistados. Por outro lado, ao ouvir, especialmente dos/as entrevistados/as com
mais idade, as lembranças sobre a cidade e sobre o desaparecimento dos lugares que davam
suporte material aos seus relatos, as narrativas se viam plenas de recordações afetivas.
As histórias narradas pelos gueis e pelas lésbicas urbanos, de diferentes gerações, identificados com valores das camadas médias, demonstraram que este “mundo tão opressor”
muitas vezes é fomentado pelos próprios homossexuais. Muitos restringem suas vivências de
lazer a lugares como bares, boates e saunas, num padrão construído por eles mesmos,
aprofundando uma visão dicotômica do mundo, hétero e homo. Os espaços de sociabilidade
por onde circulam parecem ter relação com a maneira como homens e mulheres vivem a
própria sexualidade. A maior parte dos depoimentos sobre os percursos pelas territorialidades
foi narrada a partir da percepção das preferências sexuais.
Sigmund Freud, respondendo à carta enviada pela mãe de um homossexual americano, em 1935, já se opunha às tentativas de separar os homossexuais como uma “espécie”
particular de seres humanos. O que mais impressiona, neste início de milênio, é que são
justamente alguns dos próprios homossexuais que reivindicam ou se colocam como uma
categoria à parte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Comunidade do Ratones. Florianópolis, 2000. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Programa de PósGraduação em Psicologia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. UFSC.
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FREUD, Sigmund. Carta para uma mãe americana. In: GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo. São
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Florianópolis, 2001. 140 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. UFSC.
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PARK, Robert E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento social no meio urbano. In:
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PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis, Ed. da
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PEREIRA, Ivonete. As decaídas: mulheres no quotidiano de Florianópolis (1900-1940). 1996. Dissertação
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PERLONGHER, Néstor. Territórios Marginais. In: Grupos e Coletivos. Saúde e Loucura 4. São Paulo, Hucitec,
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2003. Monografia. (Curso de História) – Curso de Graduação em História, UFSC, Florianópolis.
Uma análise dos discursos sobre corpo
e gênero contidos nas enciclopédias
sexuais publicadas no Brasil nas
décadas de 1980 e 1990
Tito Sena
INTRODUÇÃO
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ste trabalho é o resultado de uma pesquisa documental realizada segundo a perspectiva teórica e metodológica de Michel Foucault, tomando como categorias analíticas corpo
e gênero, apresentados nos discursos presentes em guias e enciclopédias sexuais publicadas
no Brasil, nas décadas de 1980 e 1990. Essas publicações tiveram alto grau de penetração
nacional, pois foram comercializadas em bancas de jornais e revistas, de todo o país, sob a
forma de fascículos semanais ou quinzenais, sendo posteriormente encadernados formando
os volumes finais.
A edição destas enciclopédias no Brasil não ocorreu por mero e único interesse
mercadológico, pois se iniciou no período derradeiro da ditadura militar, ou seja, em finais
da década de 1970 e início de 1980, com o processo de abertura política e democratização.
Isto não significa que, em períodos precedentes, publicações ou reportagens sobre sexualidade tenham sido inéditas, mas sim, que fatores aglutinadores e suportes instrumentais
possibilitaram divulgação mais explícita e insistente da temática. Primeiramente, fatores como
o movimento de liberação sexual da década de 60 (e sua chegada defasada no Brasil), a
eclosão dos movimentos feministas, a inclusão acentuada das mulheres nos meios profissional e acadêmico, a produção literária, cinematográfica e teatral explorando sexualidades,
etc. Em segundo, fatores como o retorno dos anistiados e as falas de suas experiências no
exterior, a americanização do Brasil a partir dos anos 70, através de invasão de produtos e
slogans da moda, a intensificação de estudos sexológicos e sua divulgação mundial, dentre
outros. Por último, fatores como a flexibilização de setores conservadores institucionais
(sustentadores da censura prévia oficial ou religiosa), a maior industrialização do parque
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editorial e a melhoria do sistema de transportes, divulgação e distribuição de bens materiais
e culturais que podem ser destacados paralelamente ao acirramento da utilização do sexo ou
do corpo como apelo para o consumo.
No universo de publicações da época, as enciclopédias ocuparam um espaço no mercado
para o leitor, o colecionador ou o comprador eventual, encontrarem possíveis respostas às
suas “dúvidas” sobre sexualidade. Sexualidade explorada de forma mais intensificada não
somente pelo mercado editorial e pela mídia escrita, que vislumbrou o caráter mercantil e
rentável do “sexo”, como também pelos meios de (tele) comunicação de massa e mídia
audiovisual, com filmes, vídeos, programas televisivos, e mais recentemente a internet. Estes
fenômenos, obviamente típicos da sociedade capitalista e consumista, tiveram destaque a
partir dos últimos 40 anos do século XX, com a multiplicação dos canais informativos e a
popularização dos meios de comunicação de massa, produtores de mudanças incontestáveis
no cotidiano das pessoas: divulgação instantânea de acontecimentos, facilidade de contatos a
longa distância e comercialização rápida de novas tecnologias, são alguns exemplos. Acrescente-se o fato de que com isso o próprio saber passou a ser exaustivamente comercializado,
o saber sobre sexo, em especial, e de forma especializada.
ALGUMAS REFLEXÕES TEÓRICAS
O corpo em Michel Foucault
O corpo está tematizado de forma central em duas obras de Foucault: Vigiar e Punir, e
História da sexualidade: a vontade de saber. Nos dois escritos são realizadas, respectivamente, uma genealogia da sociedade disciplinar e uma genealogia do biopoder, em articulações
que procuram diagnosticar e desconstruir as relações de poder/saber incidindo sobre os corpos na sociedade moderna.
A historicidade do corpo, portanto, é analisada numa perspectiva política, em teias
discursivas que, utilizando e formando dispositivos estratégicos, atravessam os corpos em
seu cotidiano singular e em sua abrangência coletiva, em relações complexas intimamente
conectadas ao exercício de poder. O corpo, portanto, é o “lugar” maleável, onde práticas
sociais micro-pontuais e localizadas se relacionam com a organização do poder, inclusive e
notadamente com o sistema econômico.
Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização
econômica; é numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de
poder e dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele
está preso num sistema de sujeição (Foucault, 1999, p. 25-6) (grifos meus).
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Tal “sujeição” não é apenas e unicamente obtida de formas violenta ou ideológica e,
muito embora esses mecanismos até possam ser utilizados de forma direta, física, opressora,
coatora, outros instrumentos multiformes, calculados, organizados, sutis, tecnicamente pensados, podem agir sobre os corpos, tornando-os alvo de um investimento tecnológico, político
e discursivo.
O saber ou os saberes, em Foucault, articulam-se com os múltiplos poderes, incidindo
nos corpos, seja no corpo dos indivíduos, seja no corpo da população, marcando-os historicamente. Assim, na gênese humana, existem relações de vigilância, de controle e de registro.
E os micropoderes, em níveis capilar e tissular, agregando-se a macropoderes, institucionais,
hierárquicos, organizacionais, administram ritmos e desejos, segundo coordenadas
espaçotemporais, forjando um sujeito disciplinado, dócil. Desta forma, múltiplas relações,
desde práticas disciplinares dos corpos, sustentadas através de discursos como os da medicina, da psicologia e da pedagogia, até práticas institucionais como as existentes em hospitais,
famílias, penitenciárias e escolas e outros dispositivos da sociedade contemporânea, são ativadas
e intensificam-se por uma maquinaria e mecânica de poder.
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar
as “disciplinas”. (...) O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano. (...) A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui
essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) (Foucault, 1999, p. 118-9).
Desse pólo, de corpo-máquina, adestrado na ampliação de suas forças e assegurado por
poderes disciplinares, ou seja, de uma anatomopolítica do corpo humano desenvolvida a
partir do século XVII, Foucault aponta para outro alvo, como pólo de organização do poder
sobre a vida, a partir do século XVIII, não tão simples de focar: o corpo-espécie, a população. Não mais apenas o corpo concreto e singular do indivíduo, mas o “corpo molar” da
sociedade, alvo de empreendimentos de controle, iniciando a era do biopoder, a biopolítica
da população caracterizada por técnicas diversas e numerosas para obter a sujeição dos corpos e o controle da população. E, admitindo como uma das formas primordiais da consciência
de classe a afirmação do corpo, Foucault situa principalmente os meados do século XIX
como lócus de emergência deste centramento no corpo-espécie da burguesia.
A sexualização do corpo do proletariado esteve atrelada às necessidades socioeconômicas
e a políticas higienistas de controle de riscos. A proximidade dos corpos, fruto do crescimento demográfico nos séculos XVIII e XIX, especialmente a concentração de pessoas em grandes
cidades e a preocupação com o contágio de doenças, epidemias e pandemias, exigiram uma
arquitetura urbana e um quadriculamento do corpo doméstico.
(...) a classe que se tornava hegemônica no século XVIII se atribuiu um corpo para ser cuidado, protegido,
cultivado, preservado de todos os perigos e de todos os contatos, isolado dos outros para que mantivesse
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seu valor diferencial e isso outorgando-se, entre outros meios, uma tecnologia do sexo (Foucault, 1988, p.
116-7) (grifos meus).
Para evitar a contaminação dos corpos higienizados, separam-se os corpos, e através de
múltiplas e difusas técnicas institucionais, disciplina-se e administra-se o corpo em termos de
tempo e espaço. O sexo e a sexualidade são, neste pensar, figuras históricas investidas por
dispositivos de poder que marcam os corpos e gerenciam a população em seu detalhe corpóreo.
O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exigem-se procedimentos de
gestão; deve ser assumido por discursos analíticos. No século XVIII, o sexo se torna questão de “polícia”.
(...) Polícia do sexo: isto é, necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e não pelo rigor de
uma proibição (Foucault, 1988:27-8) (grifos meus).
Para Foucault, a partir da metade do século XVIII, surgiu uma sexualidade de classes,
sexualidade do proletariado distinta da sexualidade da burguesia, “inventada” por esta última, com o intuito de marcar uma distinção, numa espécie de “racismo” (ou “classismo”?)
dinâmico, um racismo de expansão que se consolidou na segunda metade do século XIX.
Entretanto, o próprio Foucault afirma não ser esta uma invenção, mas uma transposição, sob
outras formas, dos procedimentos utilizados pela nobreza para marcar a especificidade do
seu próprio corpo. Enquanto a aristocracia olhava para trás, sua ascendência sangüínea, a
burguesia olhava para frente, para sua descendência sadia.
Deve-se vê-la (a burguesia), a partir da metade do século XVIII, empenhada em se atribuir uma sexualidade e constituir-se para si, a partir dela, um corpo específico, um corpo “de classe” com uma saúde, uma
higiene, uma descendência, uma raça: autossexualização do seu próprio corpo, encarnação do sexo em
seu corpo próprio, endogamia do sexo e do corpo (foucault, 1988:117) (grifos meus).
E prossegue, nessa reflexão contida no volume A vontade de saber, de sua História da
Sexualidade, afirmando que o crescimento e o estabelecimento da hegemonia burguesa devem ser ligados à valorização do corpo, não apenas ao seu valor mercantil e laboral, mas a
uma “cultura” do corpo burguês fundamentada na higiene deste corpo e na higiene dos
ambientes por onde estes corpos circulam, preocupada com o seu futuro (em especial a
saúde) e com a manutenção de sua dominação.
A “filosofia espontânea” da burguesia talvez não seja tão idealista e castradora, como se diz; uma de suas
preocupações, em todo o caso, foi assumir um corpo e uma sexualidade – de garantir para si a força, a
perenidade, a proliferação secular deste corpo, através de um dispositivo de sexualidade. E esse processo
estava ligado ao movimento pelo qual ela afirmava sua diferença e sua hegemonia. É, sem dúvida, preciso
admitir que uma das formas primordiais da consciência de classe é a afirmação do corpo (Foucault, 1988, p.
118-9) (grifos meus).
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Nos últimos 200 anos, a “tecnologia política do corpo”, a “valorização do corpo”, a
“polícia do sexo” continuam a agir sob outras formas, dispersas, difusas, institucionalizadas
ou não. Realizando recortes históricos, principalmente a partir da década de 1970, podemos
perceber investimentos discursivos massificadores no corpo individual, através de uma
corpolatria midiática que confirma uma tese foucaultiana: o corpo foi fragmentado e tem
suas partes negociadas como produtos para serem melhorados ou aperfeiçoados. Através da
exploração econômica e ideológica da erotização, desde os produtos de bronzear até os
filmes pornográficos, criou-se uma forma de controle-estimulação, (con)versão reativa e
reformatada do controle-repressão: “Fique nu... mas seja magro, bonito e bronzeado!”
(Foucault, 1998, p. 147). Neste imperativo (subsumidamente, de produção econômica), a
exaltação do corpo belo tem caráter intencionalmente pseudoproibitivo, estimulado cotidianamente, numa forma estratégica de imposição normatizadora.
A sociedade industrial contemporânea, através de múltiplas práticas e processos discursivos
seccionou o corpo, tornando-o objeto submetido ao controle e à manipulação científica das
tecnologias de biopoder. É notória a proliferação popular, via mídia, de cirurgias estéticas,
bronzeamento artificial, cremes rejuvenescedores, lentes oculares coloridas, implantes e
colorizações capilares, numa espécie de intervenções tecnológicas na geografia do corpo,
visando, a priori, torná-lo mais erótico. Padronizadamente erótico. Modelado segundo as
mais recentes descobertas e procedimentos científicos.
Mas, quem dita os padrões de beleza? Qual indústria? Qual veículo de comunicação e
divulgação? Impossível identificar um agente principal. São várias práticas e discursos
entrecruzados e interconectados, que têm em comum normatizar o corpo para obter e
maximizar lucros, pois a massificação e uniformização de hábitos sempre favoreceu
exponencialmente a produção e comercialização de produtos.
“Só é gordo quem quer! Acabe com sua careca! Flacidez e celulite, jamais!”, são alguns
dos convites que a publicidade apresenta insistentemente e com tantos testemunhos. São
mentiras? São verdades? São verdades produzidas historicamente, a partir das contribuições
de diversas ciências, com inúmeros especialistas a legitimarem as informações, distribuídas e
divulgadas através de vários veículos (guias e enciclopédias sexuais são algumas destas formas populares de divulgação), tendo o corpo como alvo de investimentos, como objeto de
enquadramentos, como sujeito a normatizações e a normalizações. Corpo atravessado pela
história de “verdades”.
ESTUDOS DE GÊNERO E FOUCAULT
Embora a categoria de gênero não tenha sido diretamente tematizada por Foucault, seus
escritos tiveram ressonância, com desencadeamento progressivo de pesquisas e leituras, principalmente a partir do texto, entre outros, da norte-americana Joan Scott, Gênero, uma
categoria útil de análise histórica. Ancorada em Foucault, a historiadora se posiciona contrária
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à utilização de uma perspectiva de oposição binária universal antitética (masculino/feminino)
da diferença sexual: “Temos necessidade de uma rejeição do caráter fixo e permanente da
oposição binária, de uma historicização e de uma desconstrução genuínas dos termos da
diferença sexual” (Scott, 1995, p. 84).
No pensamento de Michel Foucault, a problematização das diferenças e desigualdades
dos sexos é pluridiscursivamente estabelecida, e essa pluralidade discursiva se opõe à polarização do pensamento e à lógica binária. A polaridade fixa é, pois, impossível dentro de seu
raciocínio. A análise se processa dentro da dinâmica (histórica) plural de poder, não da estática de poder (meramente estruturado). Considerando que os conceitos de hegemonia, sujeição,
dominação, assimetria e hierarquia, referem-se a relações de poder, a apropriação e aproveitamento de sua teoria aos estudos de gênero, remete, no mínimo, a reconceitualizações e
leituras plurais. A concepção de poder no pensamento foucaultiano é instigante, pois este é
trabalhado fora das concepções clássicas: “O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é certa potência de que alguns são dotados: é o nome dado a uma situação estratégica
complexa numa sociedade determinada” (Foucault, 1988, p. 89).
Nessa linha de raciocínio, efetuar uma leitura da categoria gênero é destacar a construção
dos discursos sobre o masculino e o feminino, as assimetrias e desigualdades nos blocos de
correlações de forças, em oscilações de micro e macropoderes nas relações homem/mulher.
As teorias feministas, as teorias sobre gênero e as teorias construcionistas sobre sexualidade passaram justamente a ter em Foucault uma referência teórica importante, pelo seu
questionamento do discurso universalizante da história convencional. Esse pensar permitiu
desfazer noções de identidade única, a-históricas e essencialistas de “mulher” e “homem”,
para mostrar homens e mulheres, sujeitos e assujeitados em relações de poder/saber histórico-culturais.
No rol de autoras feministas internacionais influenciadas por Foucault, traduzidas no
Brasil, podemos destacar além de Joan Scott, Judith Butler (1987, 1997, 1999), Susan Bordo
(1997), Michèle Barret (1999), Chantall Mouffe (1996), Teresa de Lauretis (1994), Donna
Haraway (1994); entre as nacionais, citamos Margareth Rago (1998, 2000), Tânia Navarro
Swain (2000), Guacira Lopes Louro (1997,1999). E podemos acrescentar nomes masculinos, que têm dialogado também com Foucault numa perspectiva de gênero: Thomas Laqueur
(1994, 2001), Jeffrey Weeks (1999), Isaac Balbus (1987).
ANÁLISE DAS ENCICLOPÉDIAS SEXUAIS
A análise arqueológica de discurso, exposta no livro de Foucault, A arqueologia do saber,
efetua basicamente descrições de continuidades e descontinuidades discursivas e as relaciona
com as práticas extradiscursivas.
As publicações objeto da pesquisa são, em sua maioria, temáticas, e não seguem o modelo tradicional de apresentação tipográfica das enciclopédias, o da ordem alfabética, ou seja,
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ANÁLISE
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não utilizam verbetes para abordagem dos assuntos (exceção: Dicionário da Vida Sexual), e
possuem dois a cinco volumes. As coleções publicadas no período compreendido entre 1979
e 1999 estão assim identificadas por título, ano de publicação, e editora:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
Amar – Toda a realidade sobre a vida sexual – 1979 – Editora: Abril
Vida íntima – Enciclopédia do Amor e do Sexo – 1981 – Editora: Abril
Dicionário da Vida Sexual – 1981 – Editora: Abril
NÓS2 – Amor e Sexo – 1983 – Editora: Abril
Nova Enciclopédia de Amor e Sexo – 1986 -Editora: Nova Cultural
Viver o Amor – 1986 – Editora: Rio Gráfica
Biblioteca Básica de Educação Sexual – 1986 – Editora: Século Futuro
Guia Prático do sexo – 1990 – Editora: Globo
Enciclopédia da Sexualidade – 1995 (reeditada em 1999) – Editora: Três
Guia dos Amantes – 1996 – Editora: Nova Cultural
UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE O CORPO
Idealização do corpo
O corpo nas enciclopédias e guias sexuais está mostrado sempre na forma de idealização,
tanto nos textos quanto nas gravuras e fotografias, seja enaltecendo o valor da “aparência”,
seja apontando para os benefícios de dispor de um corpo ideal. Muito embora haja enunciados descrevendo que nem sempre beleza é fundamental, ou que um sobrepeso no corpo não
é tão “negativo”, essas referências são mínimas em relação àquelas de idealização corpórea.
Não é afastada a consideração de que a beleza é relativa, dependendo de cada cultura e do
momento histórico, mas esse olhar sempre está ofuscado pelos discursos de padronização do
corpo, dentro das características cultuadas no Ocidente: magro, alto, branco, sorridente,
desprovido de excessos. O corpo do negro, por exemplo, passou a “aparecer”, mas ainda de
maneira esparsa e ocasional, somente nas publicações da década de 1990.
Outro elemento de idealização, a juventude, foi observado como continuidade discursiva
no período analisado, apresentado como característica valorizada universalmente. Se as edições da década de 1980 eram mais ilustradas com crianças, pessoas de meia-idade e até
idosas, nas edições de 1990 a ênfase era feita sobre corpos jovens modelados, com aparência
atlética, muscular ou esbelta, acompanhada por argumentação textual sobre a sedução e
atração para o sexo oposto.
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FRAGMENTAÇÃO DO CORPO
Nas publicações Amar (1979) e Vida Íntima (1981) e Dicionário da Vida Sexual (1981) o
corpo era apresentado na sua totalidade, mais vestido, mais recatado, em poses mais singelas,
embora sensuais. O clima de liberdades públicas estava se reinstalando e o relaxamento da
censura ditatorial proporcionou o surgimento de variadas publicações eróticas1.
Se por um lado, inicialmente os corpos estavam retratados, nas enciclopédias, em obras
de arte e/ou desenhos, no transcorrer das edições, os corpos foram sendo gradativamente
mais expostos em fotografias e com genitais explícitos. Já a partir da edição de Nós 2 (1983),
o corpo passou a ser apresentado de forma mais ousada e mais fragmentada, sob recortes de
seios, nádegas e bocas para as mulheres e em torsos, pernas, e olhos para os homens2. Essa
descontinuidade, entretanto, não foi abrupta, percebendo-se que seguiu uma lógica de valorização dos outros meios de comunicação, principalmente a televisão e revistas dirigidas ao
público feminino e masculino, além de seguir padrões de absorção e aceitação públicas.
CORPO BELO ASSOCIADO AO CORPO SAUDÁVEL
Uma das constantes dos textos foi a associação do corpo belo ao corpo saudável, retratando uma sobreposição no campo dos discursos, de que “beleza é saúde” (discurso explícito)
e um subentendimento pela negação de que “um corpo feio é um corpo doente”. Houve a
insistência de que um corpo de formas bem proporcionadas, esteticamente atraente, sem
manchas, não está relacionado unicamente aos interesses econômicos e de padronização,
movimentadores de uma complexa engrenagem comercial de tratamentos de beleza e cirurgias plásticas, mas relacionado principalmente à saúde. Os nexos discursivos começaram a se
apropriar do discurso da saúde e do corpo saudável (e vice-versa), para consolidar sua base
de sustentação. Nos enunciados estavam presentes, em casos até explícitos, o consenso universal em torno do qual um corpo que “pareça em forma” é saudável.
Como complemento enunciador, um corpo belo e com saúde, terá sucesso, financeiro e/
ou sexual, favorecendo os relacionamentos, obtendo vantagens e melhorando a auto-imagem e a auto-estima. Nessa teia de discursos, onde se misturam outros incontáveis subdiscursos,
está presente na maioria das vezes, a famosa frase latina, dualista e mentalista: mens sana in
corpore sano (mente sã no corpo sadio).
Convém registrar que, no campo extradiscursivo, academias ultra-especializadas proliferaram-se geometricamente na década de 1990, em todos os centros urbanos, principalmente
metropolitanos, mantendo o culto ao corpo belo, corpo com ótimo “condicionamento” (apenas
físico ou comportamental?). Dessa maneira, em nossa sociedade consumista, o discurso da
1
2
A primeira exposição de órgãos sexuais femininos em nu frontal foi feita pela revista Ele Ela em 1980.
Muito embora haja fotos difusas de nu frontal masculino na edição Viver o Amor (1986), somente no Guia dos Amantes (1996) estão
expostos explicitamente órgãos genitais masculinos.
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estética se conecta ao discurso médico, imputando modelos normatizadores geradores de
lucros. Em outras palavras, corpo alvo de uma estratégia retroalimentadora: corpo saudável
associado ao corpo modelo; corpo modelo associado ao corpo perfeito; corpo perfeito associado ao corpo belo; e corpo belo associado ao corpo saudável.
Constata-se, portanto, a presença, nas enciclopédias analisadas, de um vetor discursivo
médico (normatizador e normalizador) encadeado com o vetor dos discursos (e práticas)
sobre a valorização do corpo burguês, “explorado” economicamente, não apenas em seu
valor de trabalho, mas em sua possibilidade de auto-exploração pela negociação (econômica) das partes de seu corpo, através da erotização e corpolatria. Neste sentido, o capitalismo
produz não só coisas como mercadorias, produz também indivíduos como coisas, como
mercadorias.
MICROFÍSICA COTIDIANA SOBRE OS CORPOS
Nas edições de 1983 e 1986, o corpo sexual apresenta-se fortemente como alvo de
orientações de posturas, cuidados físicos e exercícios básicos para melhoria de imagem. Essa
preocupação com a “consciência do corpo”, sua “manutenção” como máquina, sua condição
física e higiênica, recebe suporte discursivo da medicina, da psicologia e da engenharia
nutricional. Os inúmeros cuidados corporais são exigidos diariamente, numa microfísica de
poder atuando no cotidiano, em mínimos detalhes gestuais e posturais, invasora de uma
“privacidade” não diretamente sexual, mas indiretamente considerada como “lucrativa” neste campo. As publicações dos anos 90 não repetem tão insistentemente esse procedimento,
partindo para textos voltados para a beleza “natural”, a sedução, excitação e atração sexual.
Muito embora essa constatação possa ser analisada, num primeiro momento, como uma
ruptura discursiva, outros recortes enunciativos efetuados comprovam que a “tecnologia do
corpo” transpôs o exagero dos cuidados anteriores (e os esforços físicos), para a possibilidade de intervenções mais diretas (menos desgastantes), sob a forma de cirurgias estéticas,
cremes, e outras parafernálias instrumentais para efetuar a correção das imperfeições.
A AIDS COMO RUPTURA DISCURSIVA
A emergência da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), como fenômeno
extradiscursivo, no início da década de 1980, promoveu rupturas significativas nos discursos
conectados à sexualidade. Em 1986, as edições passaram a reservar extensos textos sobre a
síndrome, mas ainda sob a forma de discurso higienista, típico das Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs). Em outras palavras, em descontinuidade, a Aids, verifica-se continuidade, o monitoramento sexual: o rastreamento de pequenos e grandes trajetos, posturas e
condutas corporais e também dos comportamentos sexuais, individuais e sociais.
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Muito embora nos primeiros enunciados observem-se características preconceituosas e
homofóbicas, colocando os sujeitos com práticas homossexuais como os responsáveis pela
disseminação epidêmica da síndrome, somente após “novas descobertas científicas” surgiram
alterações discursivas. Em 15 anos, novas formas de contágio da síndrome mudaram os textos, direcionados até então aos chamados grupos de risco, para redirecionamentos de alertas
sobre comportamentos de risco. Não obstante, os corpos dos drogados, dos hemofílicos e,
principalmente, dos homossexuais, ficaram estigmatizados como agentes de disseminação e
contaminação de outros corpos. Foram necessários anos para a ocorrência de uma inflexão
discursiva no tocante aos olhares sobre esses corpos e, ainda assim, no campo extradiscursivo
não há garantias de que a população, de modo geral, tenha assimilado esta alteração.
A Aids representou um marco nas rupturas discursivas de diversas áreas, e inegavelmente gerou mudanças sociais e políticas (campo extradiscursivo), com abrangência mundial.
Também no campo extradiscursivo verificamos a substituição do câncer pela Aids, no que diz
respeito ao mito social de “doenças” incuráveis e causadora de inúmeros medos e pânicos. O
que vem a confirmar que as sociedades, ao longo do tempo e das mais diversas maneiras,
reagiram violentamente a certas doenças do tipo epidêmico, com marcas indeléveis de isolamento social aos corpos de seus portadores.
O DISCURSO CONSUMISTA DA “REVOLUÇÃO SEXUAL”
Um dos tópicos presentes nas enciclopédias do início da década de 1980 e recorrente no
período final analisado, ou seja, durante os 20 anos, era o discurso da “revolução sexual”.
Nesse aspecto, convém retomar Foucault, quando faz uma profunda crítica ao afirmar que a
“revolução sexual” não passa de uma exagerada preocupação discursiva com o sexo. Tal
como no final do século XIX, a mascarada revolução das décadas de 1960 e 1970 eclodiu,
não para liberação do prazer em oposição à repressão da sexualidade, mas porque interessou
ao Estado e a outras instituições estimular a exposição racionalizada da sexualidade para
manter o seu controle. Dessa forma, o sexo é produzido e modelado discursivamente, induzindo à formação de novas atitudes “revolucionárias” e “liberais”, conforme interesses
econômicos e políticos.
O recrudescimento sexual esperado com o advento da Aids, conforme abordado, não se
deu em todos os campos e, por mais paradoxal que possa parecer, a exploração (discursiva e
extradiscursiva) sexual tomou outras vias para manifestar-se. A mídia televisiva, expondo os
corpos em seus programas para ganhar audiência, a publicidade utilizando corpos sensuais
ou sexuais para vender produtos, as redes de sex-shop comercializando produtos eróticos, a
proliferação de casas de strippers, o turismo sexual, ofertas de sexo seguro por telefone e
internet, o mercado de locação de fitas pornográficas e uma quantidade incomensurável de
livros, revistas, e publicações sobre a temática sexual, comprovam o crescimento de uma
indústria do sexo, coexistindo com práticas e discursos conservadores.
UMA
ANÁLISE
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SOBRE
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UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE GÊNERO
O termo “gênero” nas enciclopédias
Em todas as publicações a questão de gênero estava textualmente inexistente, segundo
esta terminologia ou nomenclatura. Não obstante, a enciclopédia Amar (1979) apresentou a
maior quantidade de textos, em dois capítulos (32 páginas), sob o título “Feminismo”, contemplando a história dos movimentos de emancipação feminina (e a inserção no mercado de
trabalho) até a década de 1970 e a Biblioteca Básica de Educação Sexual (1986) com o livreto
“Masculino x Feminino”, de 110 páginas. Em todas as outras enciclopédias e guias eram
reservados, no máximo, três páginas para abordar a temática, ainda assim sob os títulos
distintos. Nas edições de Amar (1979) e Vida Íntima (1981), os títulos referiam-se a “Feminismo”; em Vida Íntima (1981), o tema “Gênero” é tratado no sentido de traços biológicos e
comportamentais. Na mesma enciclopédia, surgem os títulos “Feminismo” e “Papéis Sexuais”.
A partir dessas edições percebem-se discussões ligadas a papéis sexuais, masculinidade/feminilidade e machismo nas publicações de 1983 até 1986. As publicações da década de 1990
não abordam diretamente o tema sob nenhum título ou subtítulo, omitindo quaisquer discussões contemporâneas a respeito da expansão dos estudos de gênero e a renovação de marcos
conceituais.
Nestes 20 anos, a transformação do conceito promovido pela(o)s estudiosa(o)s dessa
categoria não foi absorvida pelos editores e/ou responsáveis pelos textos e discursos das
enciclopédias. Gênero estava descrito, subsumidamente, nas diferenças referidas aos corpos de homens e mulheres, ou seja, como distinção biológica explícita entre masculino e
feminino. Esperava-se encontrar tópicos envolvendo a trajetória e a continuidade do
movimento feminista ao longo das duas décadas (1980 e 1990), tão significativa na luta
pelos seus direitos, e pela procura e utilização de matrizes teóricas que apontassem para
a superação de perspectivas fixas de oposição binária antitética da diferença sexual. Ao
que parece, o feminismo e os estudos de gênero obtiveram expressão substancial no
espaço de reflexão acadêmica, mas como “vez e voz” no campo dos direitos políticos,
ainda apresentam-se um desafio.
As mudanças nas últimas duas décadas, como por exemplo, além da maciça inserção das
mulheres no mercado de trabalho formal, a participação ativa na economia em campos antes
de domínio masculino, a gestão sobre o próprio corpo, os conflitos sobre o aborto e a limitação da maternidade, a revolta contra a violência doméstica, os estupros e o assédio sexual, a
construção de uma subjetividade menos atrelada a hierarquização masculino/feminino e outros temas relevantes foram, no máximo, nestas publicações, trabalhados tangencialmente,
sem a devida importância e reflexão teórica.
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DISCURSO MÉDICO-BIOLOGISTA E A GENÉTICA
Identificamos, nas publicações, uma visão marcadamente biologista, desconsiderando as
relações de poder que permeiam as sujeições, assimetrias, desigualdades, hierarquias e dominações nas “relações de gênero”. Os textos descrevem o feminino e o masculino, atravessados
por determinadas concepções, segundo “verdades inquestionáveis”, elaboradas por autorias
discursivas, em sua maioria nominalmente não identificadas. Em nosso entendimento, apresentamos como suposições (não únicas): 1°) A impermeabilidade do discurso médico,
predominante nas enciclopédias, ainda não absorveu, resiste ou ignora as forças e o crescimento dos discursos sobre gênero; 2° ) Como fenômeno extradiscursivo, o movimento
feminista enfrenta ambivalências, fragmentações e impasses que impedem-no de autoafirmarse como discurso político; 3°) As transformações ocorridas no discurso sobre gênero ainda
não desencadearam reconhecimento histórico e reflexos em outros discursos.
As publicações sexuais continham transformações, na esfera do biopoder. O discurso
médico utilizando-se de “altas/recentes tecnologias” exerce o controle sobre o indivíduo e a
população, mediante o motivador psicológico da inovação, da eliminação da dor, e do medo
da imperfeição genética. E nesse último ponto, liga-se o discurso da eugenia e engenharia
genética para apontar outra faceta deste biopoder, o julgamento de quem deve e quem não
deve nascer. O controle da evolução da espécie, “prerrogativa da medicina”, como estratégia
tática inversa à limitação da procriação, ao praticar a interdição, a seleção, a manipulação
genética como proposta de programas sociais orientados para o aperfeiçoamento biológico
da espécie ou à prevenção de defeitos hereditários, promove movimentos discursivos nos
territórios morais, sociais, religiosos e éticos com modificações extradiscursivas.
O CORPO DA MULHER
Nas publicações analisadas, a representação do corpo feminino é exibida e percebida
com olhares disparadamente diferentes em relação ao corpo masculino. A preocupação estética não se configura apenas externamente, mas também com os órgãos femininos internos.
Esse processo de análise minuciosa do corpo feminino e a construção de sua imagem, segundo Foucault, remonta ao século XVIII com o nascimento do dispositivo estratégico da
histerização do corpo da mulher:
Tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado qualificado e desqualificado como corpo
integralmente saturado de sexualidade; pelo qual, este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia
que lhe seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em comunicação
orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual
deve ser elemento substancial e funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir, através
de uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação) (Foucault, 1988, p. 99).
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Nessa reflexão sobre a milenar fixação do corpo da mulher à sua sexualidade, intensificada no século XVIII, com a patologização da mulher tornando o seu corpo objeto médico
por excelência, Foucault destaca o papel de inversão estratégica dos movimentos feministas
no questionamento desta imensa “ginecologia” e no questionamento desta “verdade sobre o
sexo” constituída numa “sexografia” (termo utilizado por Foucault).
TÉCNICAS CONCEPTIVAS E ANTICONCEPTIVAS
Percebeu-se, nas enciclopédias sexuais, o predomínio do discurso médico, principalmente aquele envolvendo a questão da natalidade. Os discursos da natalidade estavam
conectados diretamente a outros subdiscursos, como o discurso da maternidade, da obstetrícia, da demografia, bem como a discursos auxiliares como o da psicologia, estética,
feminilidade, etc.
Os textos tratando modernas técnicas conceptivas, tais como tratamento de fertilização,
inseminação artificial, eram apresentados em proporção aproximada a dos textos sobre técnicas anticonceptivas, como métodos e recursos anticoncepcionais naturais e artificiais,
esterilização, métodos experimentais de contracepção, e discussão inclusive sobre a prática
do aborto (que embora seja ilegal no Brasil, sabe-se freqüente). O alvo, entretanto, era predominantemente o corpo da mulher.
A continuidade discursiva de privilegiar o corpo da mulher na forma de naturalização da
maternagem nos remete ao dispositivo que Foucault chamou de socialização das condutas de
procriação:
Socialização econômica por intermédio de todas as incitações, ou freios, à fecundidade dos casais, através
de medidas “sociais” ou fiscais; socialização política mediante a responsabilização dos casais relativamente
a todo o corpo social (que é preciso limitar ou, ao contrário, reforçar), socialização médica, pelo valor
patogênico atribuído às práticas de controle de nascimentos, com relação ao indivíduo ou à espécie
(Foucault, 1988, p. 100) (grifos meus).
As enciclopédias sexuais retrataram uma não oficialização do planejamento familiar,
apresentando textos de saúde reprodutiva, sejam de técnicas conceptivas ou anticonceptivas,
sem emitir, pelo menos discursivamente de maneira explícita, interesses natalistas ou
antinatalistas.
ARRANJOS E REARRANJOS FAMILIARES
As enciclopédias espelharam as transformações ocorridas nos arranjos e rearranjos familiares. A instituição da lei do divórcio, em dezembro de 1977 no Brasil estava comentada na
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edição de Amar (1979) e nas publicações seguintes, em textos referentes a aspectos jurídicos
e relacionais da separação de casais, dissolução do casamento e retomada de novas
conjugalidades. O discurso sobre o casamento, entretanto, continuava sendo uma regularidade, juntamente com a dependência feminina em relação ao homem (discurso machista) e
uma sutil exigência de constituição de família. A opção de planejamento do número de filhos
e a escolha do momento adequado para a gravidez foram reflexos de práticas extradiscursivas
vivenciadas pelas mulheres (e homens) com a sua inserção no mercado de trabalho, e conseqüentes influências sócio-econômicas. Essa continuidade, muito conectada à de permanência
enunciativa do tipo “natureza reprodutiva” ou “função procriadora” da mulher, configura
uma intrincada teia discursiva, com componentes biológicos, psicológicos, matrimonias, jurídicos, econômicos e sociais. Nos recortes do final da década de 1990, o discurso da natalidade
sofre uma ruptura, relacionada à maternidade da mulher solteira, levantando objeções jurídicas quanto ao direito individual e independente.
HOMOSSEXUALIDADE
Os discursos sobre a homossexualidade apresentam artigos em razoável quantidade e
regularidade, mas a emergência da Aids promoveu rupturas e inflexões discursivas no período analisado. Nos enunciados, apesar da ruptura “oficial” quando a Associação Americana
de Psiquiatria retira em função de pressões dos movimentos sociais (domínio extradiscursivo),
a homossexualidade do quadro de “doenças mentais” em 1974, algumas correntes médicas
manifestaram-se nos textos considerando-a, ainda, objeto de estudo patológico. Neste sentido, as próprias contradições teóricas no meio científico fazem com que, extradiscursivamente,
segmentos da sociedade continuem a considerar a homossexualidade uma “doença” passível
de “cura”.
Foucault (1988) insere nos mecanismos de poder/saber/prazer, como unidade estratégica formulada a partir do século XVIII, a psiquiatrização do prazer perverso:
[...] o instinto sexual foi isolado como instinto biológico e psíquico autônomo; fez-se a análise clínica de
todas as formas de anomalia que podem afetá-lo; atribuiu-se-lhe um papel de normalização e
patologização de toda a conduta; enfim, procurou-se uma tecnologia corretiva para tais anomalias
(Foucault, 1988, p. 100).
Na publicação Amar de 1979, o homossexual é percebido e objetivado de forma
preconceituosa e estigmatizada em diversos discursos institucionais, como os discursos da
moralidade (“depravados”), discurso religioso (“pecadores”), discurso psiquiátrico (“doente”) e até do discurso jurídico (“infrator”). Na Enciclopédia da Sexualidade, em 1995,
identifica-se uma descontinuidade nos segmentos discursivos, atenuando a “perseguição”,
como conseqüência das situações extradiscursivas, principalmente no reconhecimento da
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luta pelos direitos igualitários. É absorvido, por exemplo, um discurso sobre homossexualidade, elaborado pelos próprios homossexuais.
O ativismo e militância política homossexual, travado no campo extradiscursivo, articula-se com questões de liberdade individual, vivências e visibilidades homossexuais, mobilizando
diversos discursos co-existentes, como os discursos sobre a construção de identidades sexuais
e identidade de gênero.
EDUCAÇÃO SEXUAL E GÊNERO
As enciclopédias e guias sexuais fizeram e fazem parte de um conjunto de literatura
educativa. Os textos podem ser considerados leitura de formação, de educação informal, e o
caráter prescritivo, de “reforço” de normas, condutas e valores de membros da classe média
consumista, estavam sutilmente presentes na maioria dos discursos. Dessas condutas, destacamos a fabricação ou manutenção das diferenças sexistas e hierarquizantes, seguindo uma
lógica dicotômica de oposição masculino/feminino.
No interior das estantes, essas publicações e outras semelhantes ou sucedâneas, repousam à espera de um acesso ocasional, do casal autodidata, dos pais com dúvidas próprias ou
de seus filhos, e de filhos curiosos pela sexualidade (embora a leitura fosse indicada na capa
dos fascículos como “proibida para menores de 18 anos”). Mas o mundo retratado é, predominantemente, o mundo público masculino convivendo em harmonia com o mundo doméstico
feminino, numa espécie de pedagogia da sexualidade, onde relações de poder seguem padrões assimétricos que foram naturalizados.
Sabe-se que as formas de educação assistemática, familiar, doméstica, concorrem com a
educação sexual institucionalizada, da escola, da mídia e entidades profissionais que monitoram
e se preocupam com a sexualidade infanto-juvenil. E apesar das contradições inerentes aos
discursos destas instâncias, a evolução “sadia e natural” da sexualidade é apresentada como
objetivo final (teleológico, portanto) de toda intervenção. Este raciocínio direciona-nos novamente à Foucault, e ao quarto e último dispositivo estratégico montado a partir do século
XVIII, a pedagogização do sexo da criança:
[...] dupla afirmação, de que quase todas as crianças se dedicam ou são suscetíveis de se dedicar a uma
atividade sexual; e de que tal atividade sexual, sendo indevida, ao mesmo tempo ‘natural’ e ‘contra a
natureza’, traz consigo perigos físicos e morais, coletivos e individuais; as crianças são definidas como
seres sexuais ‘liminares’, ao mesmo tempo aquém e já no sexo, sobre uma perigosa linha de demarcação;
os pais, as famílias, os educadores, os médicos e, mais tarde, os psicólogos, todos devem se encarregar
continuamente desse germe sexual precioso e arriscado, perigoso e em perigo (Foucault, 1988, p. 99).
Como estratégia desse dispositivo da sexualidade, o controle minucioso e meticuloso do
corpo e da sexualidade de crianças e jovens, a restrição dos seus movimentos a partir dos
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regulamentos escolares, o espaço das salas e disposição das turmas e o balizamento do vestuário e da exposição de partes dos corpos, são indicativos contemporâneos da continuidade
desta pedagogização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha de Michel Foucault como aporte metodológico e teórico levou-me a repensar
a maneira como os textos e os discursos são elaborados e apresentados e refletir sobre como
estamos presos nas malhas de poder/saber, sem o reconhecimento desse aprisionamento. Ao
imaginar a quantidade de livros, publicações, trabalhos e textos que são produzidos, divulgados e comercializados com a pretensa finalidade de educar, sob bases científicas, de divulgar
“verdades” acerca de sexualidade, emergem inúmeras questões sobre os padrões de normalidade, a imposição de normas, e os processos de assujeitamento que experimentamos, sutilmente
e lentamente.
Estamos acostumados a tomar o poder como algo superior, super-estruturado,
institucional, estatal. Mas Foucault nos lembra que o Estado é apenas resultado e efeito da
concentração de poder, é no Estado que ocorre a visibilidade e o agenciamento do poder.
Foucault não nega a liberdade: apenas efetua um descentramento de sua condição: podemos
conseguir espaços de liberdade, mas nunca estados de liberdade; podemos “manipular o
poder” mas nunca “tomar o poder”. Os graus ou degraus de liberdade pelos quais podemos
lutar fazem parte de uma singular equação de micro-revoluções onde “linhas de fuga” são
traçadas, a partir da transgressão dos discursos, das resistências localizadas e do exercício de
liberdade nos múltiplos espaços nos quais o sujeito transita.
A apropriação de Foucault pelos estudos de gênero centraliza-se justamente na analítica
de poder apresentada pelo pensador francês. Homens e mulheres estão mergulhados de tal
forma em relações de poder, que seus assujeitamentos (ou subjetivações) são tomados muitas
vezes como “naturais”: são naturalizadas a força masculina e a correlata fraqueza feminina, a
tendência à maternidade feminina e a exacerbada sexualidade masculina. São naturalizadas a
violência masculina e a passividade feminina, os espaços públicos como masculinos e os
espaços domésticos como femininos. A crítica à naturalização como agente do obscurecimento
da historicidade foi uma das evidências deste trabalho.
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UMA
ANÁLISE
DOS
DISCURSOS
SOBRE
CORPO
E
GÊNERO
CONTIDOS
NAS
ENCICLOPÉDIAS
SEXUAIS
...
129
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De “revista da moça moderna”, a
“revista da gatinha”: adolescência e
sexualidade nas páginas da revista
Capricho (1952 – 2003)1
Raquel de Barros Pinto Miguel
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O
s fenômenos humanos devem ser estudados levando-se em conta seu processo de
transformação e mudança, seu aspecto histórico. Com a adolescência não poderia ser diferente. A totalidade social é constitutiva da adolescência. Sem as condições sociais que constroem
determinada adolescência, ela poderia não existir ou poderia não ser a mesma caracterizada
pela sociedade moderna.
Dessa forma, pode-se dizer que a adolescência é construída historicamente, não sendo,
portanto, uma fase natural do desenvolvimento, devendo ser compreendida como inserida
no processo histórico de sua constituição (Ozella, 2002). As características atribuídas aos
adolescentes surgem nas relações sociais, são históricas, sofrendo modificações ou sendo
reforçadas, de acordo com as condições materiais, culturais e sociais de tal contexto.
Assim como este artigo compartilha da visão de adolescência construída historicamente,
abordará a sexualidade como construto social e cultural, respeitando sua diversidade e
especificidade histórica, uma vez que é construída de maneiras diferentes através das culturas
e do tempo (Parker, 2000). Pode-se, portanto, compreender que “a sexualidade não é fixa.
(...) seus significados e os conteúdos a ela atribuídos podem variar” (Loyola, 1999, p. 90).
Cabe ressaltar que, certamente, esta discussão a respeito da sexualidade é permeada
pelas questões de gênero, pois, como afirma Thomas Laqueur (2001):
1
Este artigo está baseado em minha dissertação de mestrado em Psicologia, orientada por Maria Juracy Filgueiras Toneli. Tal
dissertação, defendida em fevereiro de 2005, encontra-se sob o título: “De ‘moça prendada’, à ‘menina super-poderosa’, um estudo
sobre as concepções de adolescência, sexualidade e gênero na revista Capricho (1952 – 2003).”
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(...) quase tudo que se queira dizer sobre sexo – de qualquer forma que o sexo seja compreendido – já
contém em si uma reivindicação sobre gênero. O sexo, tanto no mundo de sexo único como no de dois
sexos, é situacional; é explicável apenas dentro do contexto da luta sobre gênero e poder (p. 23).
O meio aqui escolhido para contar as transformações no que tange à sexualidade e à
construção das adolescências, foi acompanhar os discursos presentes em uma revista feminina
a respeito destes temas. Para tanto, elegeu-se a revista Capricho (Editora Abril), uma vez que é
uma das revistas destinadas ao público adolescente de maior destaque, tendo grande aceitação
entre os jovens, especialmente do sexo feminino. A Capricho possui uma longa história, podendo-se, através da consulta de suas edições, esquadrinhar um panorama de como são abordadas
as questões relacionadas à sexualidade e à adolescência no decorrer das últimas décadas.
A revista Capricho foi criada em 19522. Seu conteúdo era constituído de fotonovelas,
dirigidas a um público adulto. Ainda nesse ano, a revista foi ampliada e passou a abordar os
seguintes temas: moda, beleza, comportamento, contos e variedades; contemplando assuntos como: técnicas de conquista, namoro e virgindade. Em 1956, atingiu a até então maior
tiragem de uma revista da América Latina, rompendo a marca dos quinhentos mil exemplares. Em 1982, sofreu uma grande mudança editorial. As fotonovelas saíram de cena, abrindo
mais espaço para moda, beleza e comportamento, passando a se direcionar para a faixa etária
entre os 15 e 29 anos. Em 1985, reforçou seu perfil de revista direcionada a adolescentes do
sexo feminino, adotando o slogan “a revista da gatinha”. Seu público era constituído por
meninas entre 15 e 22 anos. Em 1989, após novas reformulações, passou a ter como alvo
leitoras adolescentes de 12 a 19 anos. Em 1997, a Capricho, sob nova direção, redefiniu a
faixa etária a ser atingida: adolescentes do sexo feminino entre 12 e 16 anos. Em 1999, outra
mudança na direção foi efetuada, buscando ampliar seu público-alvo: meninas, vivendo a
adolescência, independentemente da idade.
Optou-se por uma amostra de 27 revistas. As edições da revista examinadas pertenciam
aos anos em que aconteceram reformulações editoriais na Capricho: 1982, 1985, 1989, 1997
e 1999. Além desses, foram escolhidos números pertencentes ao período que vai de 1952 a
1982, e aos anos de 2000, 2001 e 2003. A consulta ao material aconteceu na própria redação
da revista, na Editora Abril, em São Paulo. Privilegiou-se a análise da seção de cartas das
leitoras, especialmente as perguntas sobre sexualidade enviadas e suas respectivas respostas.
Além desses espaços específicos, em alguns momentos lançou-se mão de artigos e matérias
que abordavam questões relativas à sexualidade.
2
As informações deste breve histórico sobre a revista Capricho foram cedidas, via e-mail, por Simone Miranda, responsável pelo
serviço de atendimento ao leitor da publicação.
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CONSTRUÇÃO DAS ADOLESCÊNCIAS NAS PÁGINAS
DA REVISTA CAPRICHO
A primeira menção feita à adolescência nos números consultados foi em 17 de fevereiro
de 1982, em uma pequena matéria intitulada “A adolescência é uma idade chata e perigosa.
Mesmo!”, em que é exibida uma imagem da adolescência como um período crítico, conflituoso
e problemático. Serão reproduzidos alguns trechos da matéria a fim de que o/a leitor/a possa
visualizar o que está sendo dito.
Todo mundo muda com o tempo, mas os especialistas descobriram que, dependendo da idade, as pessoas são mais ou menos sensíveis a coisas como a dor e a fossa. E as pesquisas revelaram fatos surpreendentes
como este: os adolescentes se entediam muito mais do que os adultos. São também os jovens entre
quinze e vinte e quatro anos os que correm mais risco de sofrer acidentes. (...) Ao contrário do que se
pensa, em matéria de grilos, os adolescentes ganham disparado.
Essa visão da adolescência está em consonância com a “síndrome normal da adolescência” defendida por Aberastury e Knobel, identificando a fase como o momento mais difícil da
vida do homem, quando “o adolescente passa por desequilíbrios e instabilidades extremas”
(Aberastury & Knobel, 1981, p. 9), crise inerente ao sujeito.
Tal imagem da adolescência como período perigoso e frágil da vida, trazida pela
modernidade, incentiva a vigilância e justifica a intervenção constante de instituições na vida
dos jovens. As ciências modernas, inclusive a psicologia, atêm suas forças na objetivação e
naturalização das faixas etárias (Groppo, 2000). A revista Capricho adota essa visão e entra
como parceira na empreitada. Entendendo a juventude como um momento de preparação
do jovem para a vida adulta, a revista lança mão de diferentes artifícios, em diferentes momentos, objetivando a maturação das adolescentes tornando-as aptas para integrarem a
sociedade adulta. A seção de cartas das leitoras é um exemplo, prescrevendo comportamentos adequados para uma jovem, seja visando um bom casamento, nas décadas de 1950 e
1960, seja ensinando-as a buscarem prazer em suas relações amorosas e a se protegerem das
DSTs e da Aids (anos 1970 a 2000).
Mas então, se a primeira menção à adolescência aconteceu em 1982, como a revista
abordava a questão antes desse ano? Como aconteceu e como vem acontecendo a construção
deste conceito pela Capricho?
Luís Antônio Groppo (2000) discorre acerca da importância da categoria social juventude para a compreensão da sociedade moderna. Indo além, é possível acrescentar que conhecer
a trajetória das concepções de adolescência e juventude leva a uma discussão sobre os caminhos percorridos pela história como um todo, os paradigmas que dominaram cada época, os
saberes tidos como verdadeiros. Devido ao fato de a adolescência ser um fenômeno construído
socialmente e que, concomitantemente, constrói também esse social, conhecê-la é estar dentro da história. Isso foi corroborado na prática. A discussão sobre os lugares e não lugares da
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adolescência na revista Capricho, proporciona uma viagem no tempo, esboçando peculiaridades de cada um dos momentos abarcados nas edições destas últimas cinco décadas.
O histórico desta revista revela muito da relação entre Capricho e adolescência. Todas as
reformulações editoriais sofridas pela revista nos anos de 1982, 1985, 1989, 1997, 1999,
implicam a mudança da faixa etária do público-alvo da revista. Com exceção das mudanças
no ano de 1999, nos demais a idade das adolescentes a quem a revista se destinava diminuía
a cada reformulação.
Talvez antes de nos aprofundarmos nesta discussão seja interessante, até mesmo por uma
questão cronológica, considerar o lugar da adolescência na revista nos anos antecedentes a
essas mudanças. Como dito anteriormente, o termo adolescência não esteve presente antes
da década de 1980 na amostra de edições analisadas. Nos anos 50 e início dos anos 60, a
revista parecia destinar-se a jovens em idade de casar ou casadas, mães ou futuras mães e,
especialmente, donas de casa. Apesar de as seções de cartas das leitoras na época não apresentarem a idade das remetentes, pode-se imaginar que elas devessem ter 18 anos a mais,
sendo difícil precisar a idade máxima, mas certamente atingia mulheres adultas, em torno de
40 anos. Pode-se chegar a esta constatação tanto através de algumas perguntas, onde as
leitoras declaram o tempo em que estão casadas, como também devido às propagandas veiculadas pela revista. Um exemplo é a propaganda de Modess, destinada a mães de
meninas-moças, presente na Capricho de 1956, que traz o seguinte enunciado: “A Sra. deve
contar à sua filha ... Antes que ela ouça lá fora, entre cochichos e murmúrios, procure ajudála a compreender “certas coisas” sobre a natureza íntima da mulher”. Junto ao pacote de
Modess vinha o livrinho: “Ser quase mulher... e ser feliz”, “em linguagem simples, porém
discreta, tudo quanto uma menina-moça necessita saber sobre menstruação”. Outras propagandas também tratam as leitoras por “senhora”. Nem mesmo a palavra “jovem” aparece;
salvo poucas exceções, os termos utilizados com maior freqüência são: mulher, amiga, amiguinha, querida. Vale destacar também que nas capas das revistas de 1954 a 1963 encontrava-se
o slogan “A revista da mulher moderna”.
Em 1953, foi exibida a seguinte matéria: “A Garota de 1953”, que traçava o perfil de
como deveria ser e se comportar a garota de 53, baseado em dados de uma das Organizações
Internacionais da Juventude. De maneira resumida, serão apresentados alguns traços do perfil. Primeiramente, ela deveria ser ela mesma, sem sofisticação espiritual nem física; caso não
estudasse nem trabalhasse, “tendo o privilégio de cuidar da casa” deveria aproveitar e se
preparar para ser uma dona de casa exemplar quando se casasse, mas, se não tivesse tempo
para se ocupar da casa, deveria ao menos saber “preparar um bolo, um creme aveludado e
um ou dois coquetéis a fim de poder dizer que possui algumas especialidades nesse campo”.
A garota de 53 deveria praticar esportes, mas sem exagero, já que um futuro marido preferiria
saber que a noiva fala vários idiomas ou sabe cuidar de casa em lugar de ser campeã em algum
esporte. Ela não deveria falar muito alto, deveria estar bem arrumada, usar pouca maquiagem,
bons perfumes e “tratar de não flertar demasiado”. Ou seja, “deverá representar a imagem da
verdadeira mulher de nosso século: agradável, compreensiva e antes de tudo ser mulher!”.
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Acredita-se que essa matéria mostre a visão que se tinha da leitora, da mulher dessa
época, marcando o fato de que a garota dos anos 50 nada tinha da visão de adolescente que
se tem hoje em dia. A juventude servia como uma preparação para o casamento.
Em dez anos, mudanças aconteceram... Pelo menos, aparentemente. Em 1963 foi
publicada uma matéria com o mesmo tema, só que agora, obviamente, intitulada “A
garota de 63.” A ilustração é uma jovem, cabelos soltos, vestida com blusa e calça pretas,
à vontade na natureza, acompanhada dos seguintes dizeres: “Mais simples e independente, bem mais liberal em sua visão dos problemas do mundo de hoje e, sobretudo, ciente
de suas responsabilidades na comunidade em que vive, a jovem moderna é típica da
nossa era: essencialmente prática.” Contudo, o discurso contrasta com o presente nas
cartas das leitoras e nas respostas fornecidas pela revista, bem mais próximos da garota
de 1953.
Em 1968, percebe-se na revista a presença de temas mais ousados. A participação
de leitoras mais novas também é notada. A matéria “Meu pai é pra frente” conta com
depoimentos de moças entre 16 e 20 anos, revelando “o pensamento de uma geração
que exige uma educação moderna como ela”. Mas é em 1972 que o visual mais jovem
salta aos olhos. É nítido que a revista passa a direcionar-se para um público mais novo,
uma vez que suas capas passam a exibir mulheres mais jovens, trazendo como brinde às
leitoras estampas com motivos jovens (corações, elefantes, barcos); utiliza o termo
“brotinho”. Entretanto o objetivo não era atingir meninas tão jovens assim, já que em
sua capa vinha estampado “desaconselhável para menores de 16 anos”, talvez devido à
freqüência ainda maior de temas ousados, associados a sexo e desejo. Esse processo de
“juvenilização” continua e se aprofunda cada vez mais, com a presença de cartas à
leitora escritas pela editora-chefe de forma bastante jovem, descontraída, como se a
Capricho fosse uma amiga, além de aparecerem ao longo de suas páginas algumas frases imitando a escrita à mão, figurinhas, estrelinhas, flores, corações, etc. É importante
ressaltar que junto a essa “juvenilização” vem ocorrendo uma “sexualização” dos conteúdos trazidos pela revista.
Essas mudanças, especialmente após 1968, estão em consonância com o que disse
Contardo Calligaris (2000), ao afirmar que nos anos 1960, sendo possível ampliar para os
anos 1950, os adolescentes tinham os adultos como ideal, buscando ser reconhecidos como
tal, fato que não é diferente da atualidade. Acontece que, para tanto, os adolescentes imitavam os adultos em tudo: atitudes, roupas, hábitos. No entanto, aos poucos o adolescente, na
tentativa de desvendar os desejos e sonhos dos mais velhos, depara-se com a sua própria
imagem como o ideal escondido dos adultos, o que o levou a concluir que a melhor forma de
agradá-los seria viver intensa e longamente a sua adolescência.
A revista Capricho entra em um processo que empresta cada vez mais às suas páginas
qualidades da modernidade, dentre elas: novidade, extravagância, irreverência, espontaneidade, ousadia, rebeldia, exclusividade e diferença. Sendo estas qualidades, segundo Groppo
(2000) valores atribuídos pela publicidade à juventude.
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Em 1982 acontece a primeira reformulação editorial, com mudanças no formato, logotipo,
bem como do público-alvo, que passou a ser de jovens entre 15 e 29 anos. Daí em diante, as
demais mudanças no editorial seguem com a diminuição da idade do público a ser atingido:
1985 (“A revista da gatinha”): adolescentes de 15 a 22 anos, 1989: de 12 a 19 anos, 1997: de
12 a 16 anos.
É em 1999, em agosto, que devido a problemas de circulação se promove uma nova
mudança editorial, trazendo para a sua direção a jornalista Brenda Fucuta, que se encontra à
frente da revista ainda hoje. A revista passou a compor suas capas com ídolos (artistas, cantores, apresentadores), adotando uma linguagem mais adulta, reforçando a pauta com assuntos
mais jovens e menos femininos (Miranda-Ribeiro & Moore, 2003). Ocorre uma ampliação
do seu público, que passa a ser composto por meninas que estão vivendo a adolescência,
independentemente da idade.
Essas informações fazem eco ao processo de “juvenilização” abordado por Groppo (2000),
processo que substituiria a juventude, tendo como característica ser desvinculado da idade
adolescente, podendo ser vivido por qualquer idade. Dessa forma, as faixas etárias deixariam
de ser essenciais para a determinação do curso da vida, transformando-se em estilos de vida
escolhidos livremente pelos sujeitos.
Ao examinar as edições da Capricho, fica claro que a revista não contempla a diversidade, a pluralidade das adolescências, acompanhadas das diferenças culturais, sociais, de gênero,
raciais, regionais e nacionais (Groppo, 2000). O modelo disseminado por este veículo midiático
é o de adolescência dominante, da adolescência padrão e naturalizada, vista como uma fase
difícil da vida, conflituosa pela qual todas as pessoas passam, que serve como modelo de
identificação para as demais adolescentes, tendo o outro como referência para encontrar a si
mesma (Kahhale, 2003). Ao mesmo tempo em que a revista passa por reformulações para se
adequar às mudanças vividas na sociedade, atenta à “nova organização das idades” (Bozon,
2004), até mesmo para não ver a sua popularidade despencar, ela também participa na construção da adolescência, do modelo dominante de adolescência que através da desconsideração
da diversidade legitima diferenças.
A revista parece ter acompanhado a onda das mudanças. E não poderia ser diferente.
Pegando carona com a Capricho é possível sobrevoar as últimas cinco décadas e vislumbrar as
transformações ocorridas no que diz respeito à construção das adolescências.
O SEXO NAS CARTAS E NAS PÁGINAS
Acompanhar os caminhos e as transformações das seções de cartas das leitoras da Capricho mostrou-se como um excelente recurso quando o objetivo é discutir os lugares ocupados
pelo sexo na revista nas diferentes épocas.
Com relação ao conteúdo, mudanças significativas podem ser verificadas nas seções ao
longo do tempo. Da década de 1950 até meados da década de 1960 predominavam as cartas
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questões relacionadas a sentimento, relacionamentos, comportamento. Foi o reinado de Marga
Mason3. Enquanto era ela a responsável pela seção “O coração pergunta, Marga Mason
responde”, não foram encontradas, uma vez sequer, as palavras: sexo, virgindade, relação
sexual, prazer e suas correlatas. Um termo utilizado com muita freqüência era “ceder”, a
moça não poderia “ceder”, dar “liberdades”, “intimidades”, senão o rapaz se aproveitaria
dela, apenas por diversão; como mostra o exemplo a seguir4.
Moreninha Indecisa: Ele diz que não o amo, e que se eu não ceder aos seus caprichos, me abandonará. *
Fique certa que, se você ceder, ele a abandonará um dia, talvez com um filho no braço! Não seja bobinha,
minha querida! Esse rapaz é um aproveitador e você não deve ceder absolutamente. Prefira terminar tudo
e esquecê-lo, conservando sua dignidade e sua pureza. Se ele alegar que quer mesmo casar-se, então que
se case ANTES. Tome cuidado! Não cometa uma tolice da qual fatalmente se arrependeria mais tarde!
Segundo Carla Bassanezi (2001), o silêncio das revistas femininas da época com relação
ao sexo e a censura nas informações sobre sexualidade estavam a serviço da manutenção da
pureza das moças. O sexo fora do casamento era recriminado de modo veemente, e dentro
aparecia com o intuito de procriar. Não existia preocupação relacionada à vivência do sexo,
à felicidade sexual, mas sim com a preparação para a vida matrimonial e, conseqüentemente,
com a procriação.
E por falar em felicidade, a destacada no momento era a conjugal. A felicidade conjugal
era o ícone, o ápice que uma mulher poderia almejar, e deveria esforçar-se ao máximo para
mantê-la. Bassanezi (id.) lista alguns ingredientes que deveriam estar presentes para a obtenção e manutenção dessa felicidade: prendas domésticas, boa reputação da esposa, cuidado da
esposa com sua aparência, ser econômica, evitar discussões, agradar ao marido. Chama atenção que todos os ingredientes são obrigações da mulher. A ela cabia o papel da preservar o
equilíbrio conjugal.
Foi em 1963 que se encontrou a primeira menção aos métodos contraceptivos, não na
coluna de Marga Mason, mas sim em uma propaganda veiculada na mesma página coluna. O
método em questão era o “guia perpétuo para o controle da gravidez”, trazendo a seguinte
chamada: “Para sua maior felicidade conjugal e em seu próprio benefício você não deve
ignorar o método natural mais moderno, seguro e de precisão científica. Aprovado pela
ciência médica e por todas as religiões”. A raríssima menção a métodos contraceptivos pela
revista e a não abordagem deste tema por Marga Mason, ao menos nas edições consultadas,
deixam claro a ligação entre sexo e procriação. Para que falar de métodos numa revista que
tem como público “moças de família”, que farão sexo apenas após o casamento e com o
objetivo de dar filhos ao marido?
3
“Conselheira sentimental” que respondia pela coluna de perguntas de leitoras da revista Capricho, chamada “O coração pergunta...
Marga Mason responde”, entre as décadas de 1950 e 1960.
4
As perguntas enviadas pelas leitoras e as respectivas respostas formuladas pela revista, serão separadas pelo símbolo *. Antecede
estas perguntas, em alguns casos, o pseudônimo adotado pelas leitoras.
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Em 1968 algumas coisas começaram a ficar diferentes. Ainda era Marga Mason quem
assinava a seção, publicando os mesmos estilos de perguntas e respostas, apesar de em um
número bastante reduzido. Entretanto, na mesma página, encontrava-se uma propaganda de
livros disponíveis por reembolso postal. Entre os títulos, estavam: Melodia do sexo, Sexo em
delírio, Contos de alcova, A carne, Freud – atos maníacos, A juventude diante do sexo. Além
disso, ficou evidente a presença de temas mais avançados quando comparados com os até
então expostos, como famosas falando sobre suas experiências: “eu adoro ser desejada”,
“não quero ter filhos” e sobre trabalhar fora. A sensação era de que Marga Mason havia
parado no tempo. Em meio a pílulas, biquínis, livros sobre sexo, Marga responde o seguinte
a suas leitoras:
Maria que dá na vista: quando sai na rua os homens bulam (sic) com ela. * Não sei o que tem você, Maria.
Mas deve ser algo muito visível, já que os homens todos notam. Talvez se vista, se penteie ou se pinte em
exagero. Nenhum homem bole com uma garota séria e discreta, por mais bonita que ela seja.
Não é à toa que esse foi o último ano em que Marga respondeu pela seção, entre edições
consultadas. Enquanto a revista passa a abordar temas mais “ousados”, receptiva a mudanças
e transformações, começando a preparar o terreno para a entrada de quem seria mais tarde o
grande astro – o sexo, Marga Mason segue com seus conselhos, seus valores, sua moral; sem
mexer nem um centímetro.
Durante a década de 1970, pôde-se perceber que o teor das perguntas se manteve parecido, a maior mudança estava no conteúdo das respostas: casamento deixa de ser o centro da
vida da mulher, desvincula roupa à moral, incitam as mulheres à ação. Acontece uma divisão
da seção de cartas das leitoras: uma delas passou a se dedicar a comportamento, relacionamentos e a outra a questões médicas. A divisão mostra o início da separação entre sexo e
amor que se consolidará mais tarde nas páginas da revista. Ainda não se falava diretamente
sobre sexo, apenas uma pergunta insinua a sexualidade, em 1974, mas nem na pergunta e
nem na resposta a palavra sexo foi citada, sendo utilizado como subterfúgio: “problemas que
envolvem um homem e uma mulher”. Já o tema virgindade foi abordado diretamente em
duas perguntas em 1976: uma delas na seção “consultório médico”, a qual foi respondida
por um profissional de maneira técnica e impessoal, e a outra na seção “O coração pergunta”, a cargo de Maria Beatriz:
“Devo contar ao meu noivo que não sou mais virgem?” – Rosa ferida (RS): tem 18 anos, perdeu a virgindade aos 15, é noiva de outro rapaz, com casamento marcado, mas tem remorso, se contar ele sofrerá e
estragará o amor deles, ao mesmo tempo não quer enganá-lo, angustiada por não saber se deve dar a ele
contas do seu passado. * “Uma pétala roubada de uma rosa não diminui seu perfume nem sua beleza”. O
importante não é o que aconteceu, mas o que ela é agora. As mulheres, assim como os homens, precisam
ser aceitas pelo que são e não pelo que foram.
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Década de 1980: a década do prazer. Nunca se falou, nem se falará, tanto em sexo,
prazer, orgasmo, nem tão abertamente, quanto nesta época. Em 1980, as perguntas enviadas
pelas leitoras iam desde as mais ingênuas: “É normal o marido pedir para a mulher ficar nua
na hora da relação?”, até as mais “ousadas”: “Estou cansada de fingir que sinto prazer.”
Alguns temas estavam presentes cada vez mais assiduamente, tanto nas cartas das leitoras
quanto nas demais matérias da revista: busca pelo prazer, orgasmo feminino, masturbação
feminina, aborto, ereção, ejaculação precoce, zonas erógenas, virgindade (preocupação que
descubram que não é mais virgem), métodos contraceptivos (em especial a pílula). Mantémse a divisão de seções relacionadas a comportamento e a sexo.
Um exemplo dessas mudanças é a publicação da seção especial “Sexo no consultório”,
exibida na edição de fevereiro de 1982, onde foram respondidas as perguntas, segundo a
Capricho, feitas nos consultórios dos ginecologistas com maior freqüência. A proposta era
que o caderno especial servisse como manual a ser consultado sempre que necessário. Compreende 12 páginas e 50 perguntas, endereçado a adolescentes entre 14 e 17 anos.
Sexo passou a ser abordado. Entretanto, é importante ressaltar que de maneira bastante científica, pedagógica, biologizante e também psicologizante, características que se
acentuaram especialmente a partir de 1982. Foi também a partir desse ano que dois personagens ganharam destaque: psicólogo e ginecologista, que muitas vezes trazem também o
título de educadores sexuais ou sexólogos. São eles, na maior parte das vezes, os responsáveis pelas respostas das cartas das leitoras. A função desses profissionais é ajudar as leitoras
a resolver seus problemas com relação à sexualidade, buscando atingir a satisfação sexual.
Se nos anos 1950 e 1960 o que imperava era a felicidade conjugal, agora passou a ser a
felicidade sexual. Todos esses acontecimentos na década de 1980 estão em consonância
com a segunda sexologia descrita por Michel Bozon (2004), em que o foco passa a ser o
prazer e o orgasmo, encarados fundamentais para o bom funcionamento conjugal. Com
isso surgem as preocupações com as disfunções sexuais, onde a figura do sexólogo teria
papel fundamental, procurando, através dos mais diversos tipos de tratamento, resolver os
problemas sexuais, visando a satisfação de ambos os parceiros. Isto corrobora o que Bozon
(id.) falou a respeito da emergência do ideal do “juntos por amor” nas últimas décadas do
século XX, quando cresce a importância dos interesses individuais dos cônjuges e a sexualidade passa a assumir uma posição especial.
A princípio, pode-se pensar que essa abertura da revista com relação à sexualidade feminina foi uma grande conquista. Certamente não se podem ignorar os méritos da mudança.
Entretanto, a maneira como muitas vezes os assuntos eram abordados e as respostas eram
dadas dão margem à reflexão de se toda essa mise-en-scène em torno da sexualidade teria não
o objetivo de proporcionar à mulher uma vida sexual mais satisfatória, desenvolvendo uma
relação igualitária com seu parceiro, mas sim, o de ensinar a mulher como agradar seu companheiro. Ou seja, impressioná-lo, tanto para conquistá-lo, como para mantê-lo. Mais uma
vez caberia à mulher o papel de responsável pela manutenção de uma vida equilibrada e
satisfatória entre o casal.
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Em 1989 passa a haver apenas uma seção de cartas da leitora que responde a perguntas
de cunho médico. Nela constatou-se uma diminuição da presença de perguntas relacionados
à busca de prazer, orgasmo, satisfação sexual; abordando temas como pílula e cisto ovariano.
As respostas são ainda mais técnicas e impessoais. Porém, aqueles temas continuam presentes
em matérias ao longo da revista. Destaca-se aqui a presença de discussões sobre a relação
entre prazer e dever no relacionamento, o momento de dizer não e dúvidas quanto ao momento certo de transar, podendo, talvez, ser uma resposta à ênfase dada ao sexo, até então,
na década, sugerindo que é chegado o momento de se refletir sobre a obrigação de transar e
obter prazer, enfatizando o poder de decisão individual. Essa questão mostra “(...) a emergência de valores individualistas nas concepções morais sobre sexualidade, deixando as decisões
sobre o pensar e o agir a critério do indivíduo” (Afonso, 2001, p. 34).
Final dos anos 1990: 1997 e 1999. O foco das perguntas das leitoras, assim como de
matérias e reportagens não está mais na busca pelo prazer, na satisfação sexual. Mas a sexualidade continua na pauta do dia, só que agora tendo os seguintes temas como alvo: gravidez
na adolescência, início da vida sexual, camisinha, namoro pela internet, homossexualidade
feminina, masturbação feminina, sexo anal, bissexualidade, primeira vez, como contar aos
pais que não é mais virgem. Cabe ressaltar o quanto as preocupações em torno da virgindade
estão sempre presentes, de 1953 a 2003. Elas se diferenciam um pouco de acordo com as
particularidades de cada momento, entretanto, o âmago da questão, ou seja, o valor conferido socialmente à virgindade, se mantém.
Além dessas questões, vem atrelada a emergência, nas últimas décadas do século XX, de
uma nova forma de relacionamento: o “ficar”. Na década de 1990 o “ficar” já se encontra
incorporado ao linguajar da revista, possuindo, memso, um conjunto de vocábulos em torno
dele: ficadas, ficantes, pegar, etc. Esse “novo código” estabelecido entre os adolescentes
pode ser entendido como mais um indicador do individualismo como central na ideologia
moderna. Segundo Jacqueline Chaves (1997) “(...) o “ficar com” só é possível dentro de uma
ideologia individualista, igualitária, levada ao extremo, em tal contexto esse código de comportamento vai ao encontro do processo de individualização” (p. 77).
A maneira de abordar esses assuntos também está diferente. As respostas às perguntas
das leitoras perderam muito do caráter pedagógico e científico, deixando também de serem
técnicas e impessoais, assumindo um tom mais descontraído e próximo da leitora. Em 1997,
contava-se com a existência da seção “sexo” para responder às cartas das leitoras. Em 1999,
estavam presentes duas seções, uma destinada a perguntas sobre sexo e outra, sobre relacionamentos. Para auxiliar na elaboração das respostas, a revista contava com a contribuição de
consultores, predominantemente ginecologistas.
Desde maio de 1997, estava presente, junto à seção de cartas, a campanha “camisinha,
tem que usar”, o que demonstra o comprometimento da revista com a causa. Mais do que
isso, está ligado ao papel deste veículo em contribuir para a inculcação de comportamentos e
atitudes, assim como uma resposta ao que o momento pedia. Segundo Bozon (2004), nas
sociedades onde não existissem mais instâncias que pudessem impor uma norma coletiva
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com relação à sexualidade, era necessário estabelecer parcerias que adotassem a idéia, “pois,
em si mesma, a conduta sexual não está associada a uma preocupação sanitária” (p. 150).
Pode-se dizer que a revista funciona como uma das parceiras.
Além das seções de cartas, duas matérias presentes em revistas de 1999 ajudam a pensar
a respeito do olhar lançado à sexualidade no final da década. As matérias referidas são:
“Cedo ou cedo demais?”, sobre o aumento do número de adolescentes que “perdem” a
virgindade antes dos 15 anos; e “O filho que chegou cedo”, com depoimentos de meninas
que foram mães na adolescência. Em ambas, ganharam destaque os aspectos negativos, as
perdas sofridas pela menina (haja vista a expressão “perder a virgindade” utilizada nas matérias), arrependimentos e a gravidez na adolescência entendida como problema.
Chama atenção a palavra “cedo”, empregada nas duas matérias. Ela passa a impressão de
que a revista, de uma maneira suave, quase implícita, recrimina o início da vida sexual antes
dos 15 anos e a gravidez na adolescência. Com aumento no número de casos de adolescentes
contaminadas pelo vírus da Aids e a preocupação com a gravidez na adolescência, a atividade
sexual do adolescente passa a ser vista pela sociedade como um problema econômico e social, um problema de saúde pública. (Paiva, 1996). Dessa forma, fez-se necessária a presença
de uma linguagem mais sanitária, de um discurso a respeito dos riscos ligados à sexualidade
e de como se proteger deles. (Bozon, 2004). Parece que neste final da década de 1990 a
revista tenta “frear” algumas questões relacionadas à sexualidade. É como se toda aquela
liberação ao falar de prazer, orgasmo, sexo na década passada tivesse rendido frutos não
muito agradáveis, cabendo nesse momento à revista contornar a situação. Mas tudo deve ser
feito de uma maneira bastante sutil, sem perder o ar de modernidade, sem comprometer a
imagem da revista. Não é por acaso que nestas matérias conta-se, predominantemente com o
depoimento de meninas e meninos que viveram na prática essas situações. Ou seja, não é a
Capricho quem está falando, mas sim os próprios adolescentes.
Seguem-se 2000, 2001, 2003, chega-se ao século XXI. Em 2000 existiam duas seções:
“Sexo” e “Help”, esta última de perguntas sobre comportamento. Em 2001 e 2003, passa a
haver uma só coluna que abrange tanto perguntas sobre sexo quanto sobre comportamento:
“Sexo atitude relações” e “Assunto de amiga”, respectivamente. Nos dois primeiro anos,
conta-se com o auxílio de consultores: ginecologista, terapeuta sexual, psicólogo e orientador
sexual. Já em 2003, Giovana Gonzáles é a responsável pela seção, e é quem responde às
cartas. Os temas abordados e a maneira como são tratados não diferem muito do que foi
relatado sobre o final dos anos 90, podendo ser acrescentados debates com relação ao namoro virtual e encontros na internet. Predominam perguntas sobre relacionamentos, ou seja,
que falem de sexualidade, não no sentido de pedirem uma informação científica, técnica,
mas sim o que devem fazer, como agir, solicitando conselhos. As repostas continuam de
forma descontraída, falando diretamente à leitora, especialmente em 2003, onde se acrescenta uma pitada de humor.
O número de páginas e de perguntas das seções de cartas das leitoras, presentes nas
revistas nos diferentes anos, também revela informações significativas que complementam as
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já explanadas. O auge foi no início da década de 1960, seguido pelos anos 1950 e pelo ano de
1982 (devido ao especial “Sexo no consultório”). Os anos com menor número de perguntas
relacionadas à sexualidade foram 1989 e 1997.
Nas décadas 1950 e 1960 pode-se pensar que o grande volume de cartas enviadas por
leitoras e o significativo espaço que a revista destinava à correspondente seção, estão relacionados com o número restrito de opções e oportunidades onde se pudesse conversar sobre
assuntos que envolvessem relacionamento, comportamento. As revistas femininas possibilitavam essa discussão, preenchiam, na medida do possível, esta lacuna. 1982 foi outro ano
que apresentou um número considerável de perguntas, acredita-se que em virtude do fato de
a revista, mais uma vez, ser uma das principais fontes de informação utilizadas pelas mulheres. Era preciso “aprender” sobre sexo, sobre como fazê-lo, e bem. Depois de tanto tempo de
silêncio, era necessário falar sobre isso. As perguntas presentes no especial “Sexo no consultório” muitas vezes pareciam não terem sido enviadas por leitoras, mas sim formuladas pela
própria revista, de acordo com o que ela julgasse ser importante divulgar.
É possível também conjeturar a respeito do menor número de perguntas sobre sexualidade e comportamento em 1989 e 1997, no máximo duas e até mesmo a ausência delas em
dezembro1989. Uma hipótese é que este fato esteja relacionado com o surgimento da Aids.
Isso porque, como foi dito anteriormente, fez-se necessário conter algumas questões relacionadas à sexualidade. Percebe-se que a revista deixa de enfatizar a busca pelo prazer, como se
isso fosse uma medida preventiva. A revista falava sobre sexo, mas de maneira técnica, informativa. Cabe ressaltar que foi em novembro de 1985 que se fez, pela primeira vez nas páginas
da Capricho, menção à Aids. A partir de 1997 a presença da campanha pró-uso da camisinha
indica a preocupação compartilhada pela revista, estando presente perguntas sobre este método nas cartas das leitoras.
Outro ponto relacionado à diminuição da presença de cartas que abordem o tema sexualidade, e que foi indicado por Simone Miranda (atendimento ao leitor) é o maior número de
canais onde a menina pode pesquisar sobre sexo, como a internet. A adolescente de hoje
possui outras ferramentas para sanar suas dúvidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas mudanças puderam ser observadas ao longo das últimas cinco décadas, através
do exame de edições da revista Capricho, a começar pela solidificação e popularização da
adolescência na sociedade contemporânea. Através do exame de edições desta revista foi
possível verificar a emergência da adolescência ao longo destes cinqüenta anos: da sua quase
inexistência nas páginas da Capricho até o processo de “juvenilização” (Groppo, 2000) vivido na contemporaneidade.
Ficou claro que a revista trabalha voltada para uma determinada adolescente: pertencente às camadas médias, branca e heterossexual. Ou seja, o discurso por ela veiculado é
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direcionado a esta leitora. Mas serão apenas estas as leitoras da Capricho? Segundo Paula
Miranda-Ribeiro e Ann Moore (2003) o número de leitoras não se restringe ao número
oficial de revistas vendidas. É comum, dentre as adolescentes, que estas revistas circulem
dentro da turma, família ou sala de aula. Enfim, a revista trabalha com um modelo de adolescência que acaba, por vezes, servindo como modelo de identificação para algumas, ao mesmo
tempo em que legitima as diferenças e desigualdades para outras.
Neste ponto, seria interessante que a revista considerasse a diversidade, a multiplicidade
das “adolescências”, ou seja, “a verdade plural, definida pelo local, pelo particular pelo limitado, pelo provisório” (Louro, 2003, p. 51). Sendo, assim, uma mídia que questione em vez
de normatizar, que desconstrua a naturalidade e a universalidade, que compreenda o movimento e as possibilidades inúmeras das relações. Essas considerações cabem não apenas com
relação à adolescência, mas também no que concerne ao discurso impresso pela revista sobre
sexualidade.
As seções destinadas a responder as cartas das leitoras passaram por diversas transformações ao longo destas cinco décadas. A mudança a ser aqui destacada é relacionada à separação,
que teve início na década de 1970, entre perguntas sobre sexo e perguntas sobre comportamento, que resultou, na maior parte das vezes, na existência de duas diferentes seções dentro
de uma mesma edição: uma sobre sexo e outra sobre comportamento. O exame das diferentes seções possibilitou constatar que, nas que respondem às cartas sobre sexo, prevalece nas
respostas um discurso igualitário e individualista, em que são propostos: a igualdade de
direitos entre os sexos (especialmente na década de 1980, que atribuía a todos o direito à
satisfação sexual), o direito à informação, a queda do tabu em torno da virgindade feminina,
os direitos reprodutivos, dentre outros aspectos. Caracterizando, assim, a função de informar deste veículo midiático.
Por outro lado, nas seções que respondem às cartas sobre comportamento e relacionamentos amorosos, percebeu-se o predomínio de respostas marcadas por um discurso tradicional
e hierárquico, sendo possível destacar, principalmente, a sustentação das desigualdades entre
homens e mulheres e o não questionamento da superioridade masculina. Que por sua vez
indica o caráter “formador” (constituidor) presente na revista.
Chama atenção o fato de que é nas questões relacionadas a gênero que o discurso tradicional sobrevive com maior intensidade, indicando o quão arraigada está a naturalização das
diferenças entre homens e mulheres. Parece que, com relação à sexualidade, foi possível
imprimir um discurso com viés igualitário, por tratarem destes assuntos de uma forma mais
técnica e impessoal, o que pode ser percebido na maneira como as perguntas e as respostas
presentes nas seções sobre sexo são formuladas. Já no que diz respeito às perguntas sobre
comportamento é mais difícil que as respostas sejam dadas de maneira impessoal, pois as
leitoras escrevem à procura de conselhos. E é no momento de formular esses conselhos,
especialmente os voltados para o relacionamento homem e mulher, às relações de gênero,
que a visão tradicional e hierárquica prevalece, segundo a qual nem todos têm os mesmos
direitos.
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Sexualidade como tema transversal nas
escolas: da teoria à prática1
Carolina Andaló Fava
A TEORIA – OS PCNS E OS TEMAS TRANSVERSAIS
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partir de meados dos anos 90, o Ministério da Educação e do Desporto (MEC)
passou a elaborar os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Estes documentos, editados
em forma de livros, apresentam novas propostas e diretrizes para a estruturação curricular da
Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Médio.
Segundo os PCNs, além das áreas tradicionais de ensino, devem ser trabalhados os chamados Temas Transversais: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação
Sexual, Trabalho e Consumo. Eles não constituem novas disciplinas, mas devem ser trabalhados de forma integrada, contínua, sistemática e abrangente, incorporados às áreas já existentes
e ao trabalho educativo da escola.
De acordo com os documentos, o trabalho de Educação Sexual deve acontecer de duas
formas: 1) dentro da programação, onde cada disciplina abordará o assunto dentro do conteúdo previsto; 2) como extra-programação, aproveitando a emergência do tema para
abordá-lo.
Os Temas Transversais deverão permear toda a prática educativa e estender-se às diversas relações do espaço pedagógico. É impossível conceber a transversalidade separada da
interdisciplinaridade, que questiona a visão segmentada da educação que isola os diferentes
campos de conhecimento.
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Este trabalho apresenta alguns resultados obtidos na pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da UFSC. Seu objetivo foi investigar como vinha sendo empreendida a formação de educadores na área da Educação Sexual nas
escolas municipais de Florianópolis.
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A transversalidade busca uma prática educativa em que possa existir uma relação constante entre os conteúdos teoricamente sistematizados e as questões da vida real. Isso requer
uma transformação na prática pedagógica, que rompa com o confinamento da atuação docente às atividades formalizadas. O trabalho com essas questões exige o preparo específico
dos educadores para lidar com o tema de forma ampla e com ocorrências inesperadas e
situações emergentes.
Mary Figueiró (2001) e outros autores (Aguiar, 1996; Silva Júnior, 1998; Nunes e
Silva, 2000), questionam a viabilidade dos temas transversais, pois entre os obstáculos à
implantação dessa proposta, encontram-se “...os limites impostos pela bagagem dos professores e a precariedade dos seus contextos de formação e de atuação profissional”
(Figueiró, 2001, p. 52). Acrescenta ainda que, para haver uma inserção dos temas transversais no processo de ensino é necessário que os professores atuem interdisciplinarmente,
reúnam-se e planejem em conjunto, o que implica contato entre eles. A viabilidade dos
temas transversais está, portanto, vinculada à “...transformação da escola como local de
trabalho, incluindo as mudanças nas condições objetivas para o exercício da profissão”
(idem, p. 57).
Apesar de criticar e mostrar as dificuldades dessa proposta, Figueiró (2001) destaca duas
grandes contribuições da inclusão da Educação Sexual como Tema Transversal: a primeira é
que ela deve ser vista pelos educadores como uma tarefa que cabe a eles próprios e não a
outros profissionais; a segunda refere-se ao fato de que a determinação oficial faz com que
muitos possam dar-se conta de seu despreparo, o que pode levá-los à busca de mais conhecimentos e formação. Acrescenta ainda que, esta proposta representou um apoio legal para a
escola lidar com o assunto.
Um dos aspectos importantes apontados pela revisão da literatura sobre Educação Sexual diz respeito à necessidade de preparo dos educadores. Vários estudiosos (Nóvoa, 1995;
Schön, 1995; Gómez, 1995; Figueiró, 2001) reconhecem que o novo modelo da formação
continuada é a reflexão, feita pelos professores, sobre a sua prática cotidiana.
Neste trabalho, a formação dos professores é concebida como um processo contínuo, sistemático e permanente, onde os profissionais tenham a oportunidade de pensar e repensar sua prática pedagógica
através de discussões, leituras e reflexões feitas em grupo.
Figueiró (2001) e Angel Gómez (1995) apresentam dois processos essenciais na prática
reflexiva: 1) a “reflexão na ação”: é elaborada pelo professor espontaneamente durante o ato
de ensinar e está pautada no pensamento intuitivo, cotidiano e experimental; é o conhecimento implícito na atividade prática; 2) a “reflexão sobre a ação”: é a análise que se realiza
a posteriori, o que implica um olhar retrospectivo sobre a ação, através de um pensar intencional que pretende reavaliar a prática.
Segundo Antonio Nóvoa (1995), a formação deve compreender a experimentação, a
inovação, o ensaio de novos modos de trabalho pedagógico e uma reflexão crítica sobre a sua
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utilização. Assim, a formação passa “... por processos de investigação, diretamente articulados com as práticas educativas” (p. 28).
A formação continuada, para Figueiró (2001), diz respeito a todas as formas deliberadas
e organizadas para aprimorar a prática docente. Uma das suas características fundamentais é
a ligação com os problemas que os professores enfrentam em sala de aula e a sexualidade é
um dos assuntos que mais têm trazido dificuldades, problemas e desafios.
O OLHAR DO PESQUISADOR – O REFERENCIAL TEÓRICO
O referencial teórico que orienta este trabalho é a perspectiva histórico-cultural, cujo
autor principal L. S. Vygotski, compreende a constituição do psiquismo humano, como social, onde as funções psíquicas superiores são entendidas como o produto das relações entre
os homens, sendo estes, ao mesmo tempo, produtos e produtores da cultura.
O ser humano, ao nascer, encontra-se inserido em um meio cultural repleto de significações socialmente definidas que servem de referência para ele e para o seu grupo social nas
suas inter-relações. A internalização do universo cultural no qual os sujeitos se inserem não é
um processo simples, pois não se restringe à simples transferência de práticas e conteúdos
culturais do plano social/externo para o plano individual/interno; mas constitui-se em uma
operação complexa de (re)constituição ou (re)criação de algo já construído socialmente.
Trata-se de um processo de natureza semiótica que, para Vygotski, não consiste numa
mera internalização das ações, pois nele os sujeitos significam a realidade. Portanto, o objeto
de internalização não é a ação ou a atividade em si, mas a sua significação, que emerge nas
relações sociais.
Andréa Zanella (2001) questiona a utilização do termo interiorização pelo fato de veicular uma dicotomia entre interno e externo e apresenta outras terminologias: conversão,
apropriação. Adotou-se neste trabalho o termo apropriação, pois parece mais adequado à
compreensão de um processo onde o sujeito do conhecimento é ativo, interpreta e re-significa a realidade, atribuindo sentidos próprios às suas experiências.
Nesta perspectiva, a escola, além do papel de difundir a produção cultural da humanidade, deverá propiciar um espaço de relações interpessoais promovendo, a “... formação e
desenvolvimento das funções psicológicas caracteristicamente humanas, ou seja, aquelas que
fazem uso da mediação dos signos” (ZANELLA, 2001, p. 96).
Neste espaço, cabe ao docente a função de organizar o espaço interativo, com a diversificação da formação dos grupos, a apresentação de problemas significativos para os aprendizes
e a promoção de questionamentos e desafios ao longo do trabalho. Essas questões aplicam-se
a qualquer processo de ensino-aprendizagem e, portanto, aos cursos de formação e aperfeiçoamento docente.
Quanto ao processo de construção de conhecimento, Zanella (2001) afirma que,
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a apropriação da ação significa saber fazer, ou seja, o domínio de partes da atividade em si, a apropriação da
atividade (...) envolve o ‘compreender e saber fazer’, ou seja, a leitura de todo o processo e o estabelecimento de
múltiplas relações, o que permitem tanto a execução de ações quanto a criação de novas possibilidades (p. 111).
Entende-se, portanto, que a educação formal deveria ter como meta a apropriação da
atividade, isto significa, a formação de sujeitos autônomos e capazes de atuarem de maneira
crítica diante das situações vivenciadas no dia-a-dia.
Na perspectiva vygotskiana, olhar o sujeito significa olhar o contexto no qual ele vive,
suas atividades, os lugares que ocupa, como se apropria dos significados socialmente produzidos, como significa o mundo e como é significado pelos outros da sua cultura. É fundamental,
portanto, que se considere a dimensão de processo e movimento permanentes, tanto nas
análises quanto nas conclusões de qualquer trabalho de pesquisa.
De acordo com a perspectiva histórico-cultural adotada, não é possível compreender a
sexualidade humana como um simples fenômeno da natureza. Ela é uma questão fundamental da constituição de homens e mulheres e não pode ser simplesmente reduzida a aspectos
biológicos. As formas como os seres humanos vivenciam seus prazeres não são dadas naturalmente e a sexualidade é uma construção complexa de experiências, sentidos e significados
que se modificam continuamente. Ela não está limitada à atividade genital, nem à reprodução, pois vai além das necessidades fisiológicas.
A compreensão de Educação Sexual adotada neste trabalho converge com a apresentada
por Figueiró (1995), que a define como
...toda ação ensino-aprendizagem sobre sexualidade humana seja em nível de conhecimento de informações básicas, seja em nível de conhecimento e/ou discussões e reflexões sobre valores, normas, sentimentos,
emoções e atitudes relacionados à vida sexual (Figueiró, 1995, p. 8).
Assim sendo, ela deve abranger tanto o nível informativo como o formativo e não deve
ser entendida como uma ação que ocorre desvinculada da formação global do indivíduo.
A Educação Sexual, nessa perspectiva, além de auxiliar no combate a problemas sociais
como DSTs/Aids e à gravidez na adolescência, “... deve ser realizada a fim de contribuir para
o desenvolvimento integral da personalidade do educando e, conseqüentemente, para sua
qualidade de vida” (Figueiró, 2001, p.19).
Alguns autores discutem essa questão de terminologia (Werebe, 1998; Costa 2001;
Figueiró, 2001; Mattos, 2001) e ponderam que a designação Orientação Sexual conduz a
ambigüidades, pois pode assumir duas conotações: 1) a de sinônimo do termo Educação
Sexual, isto é, como prática de intervenção educativa na área da sexualidade; 2) a de orientação da identidade sexual dos indivíduos em torno da homo, hetero ou bissexualidade.
Em virtude das ambigüidades apresentadas pelo termo Orientação Sexual, Ramiro Costa (2001) e outros autores (Barroso e Bruschini, 1982; Goldberg, 1982; Figueiró, 1995;
Werebe, 1998), propõem uma priorização do conceito de Educação Sexual.
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DA TEORIA À PRÁTICA – O PROBLEMA DE PESQUISA
A publicação das novas diretrizes para a educação proposta pelos PCNs pressupõe uma
mudança na capacitação docente. O próprio documento afirma a necessidade de formação
específica na área de sexualidade.
Apesar da determinação oficial e da enorme quantidade de situações manifestadas no
ambiente escolar relativas ao tema, os professores relatam muita dificuldade em lidar com
essas questões nas situações do dia-a-dia. São comuns pedidos de ajuda com relação a situações emergentes, que envolvem questões de gênero, abuso sexual, prostituição juvenil, gravidez
na adolescência, entre outros. Todo esse quadro levou a questionamentos a respeito da
capacitação docente oferecida pelo município de Florianópolis. Com base nessas preocupações delinearam-se as perguntas da pesquisa:
• “A Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis vem capacitando seus professores, para que a sexualidade como Tema Transversal seja trabalhada nas escolas públicas? De que forma?”
• “Como os professores avaliam os cursos que têm recebido? Estes têm auxiliado em sua
prática cotidiana?”
A partir dessas questões, realizaram-se entrevistas semi-estruturadas com os seguintes
sujeitos: a) cinco professoras do ensino fundamental e duas especialistas que freqüentaram os
cursos em sexualidade oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação (SME) de
Florianópolis no ano de 2002; b) a responsável pela organização dos cursos oferecidos em
2002 (Gestão Atual); c) dois responsáveis pela organização dos cursos anteriores (Gestão
Frente Popular).
Durante as entrevistas, além das informações oferecidas espontaneamente pelos sujeitos,
buscou-se investigar os seguintes aspectos: a) a opinião dos professores e especialistas sobre
os cursos oferecidos; b) as atividades em Educação Sexual realizadas nas escolas visitadas; c)
quais as necessidades dos docentes para lidar com o tema da sexualidade na sua prática; d)
como foram organizados os cursos na gestão atual (2002) e na anterior.
RESGATANDO A HISTÓRIA – O CAMINHO PERCORRIDO
Em agosto de 2002 iniciei os contatos com a Secretaria Municipal de Educação de
Florianópolis e fui encaminhada para a responsável pela capacitação de professores na área
da sexualidade (Heloísa)2, que me contou sobre os trabalhos desenvolvidos na rede municipal na área, sobre sua história profissional, seu trabalho na Prefeitura e os projetos sobre
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Todos os nomes dos entrevistados são fictícios.
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sexualidade em andamento. Os dados obtidos ficaram restritos ao ano de 2002, pois não
dispunha de informações sobre as capacitações da gestão anterior.
Convidou-me para participar da etapa final do curso de educação sexual e do I Seminário de Socialização e Fortalecimento do Trabalho de Educação Sexual, promovido pela Divisão
de Educação Fundamental da Prefeitura Municipal de Florianópolis.
No início de 2003, tentei agendar um novo encontro com Heloísa, sendo informada de
que ela havia entrado em licença sem previsão de retorno e nenhuma outra pessoa poderia
fornecer as informações necessárias.
De posse da lista das escolas que participaram do Seminário de Socialização, entrei em
contato com as mesmas para marcar as entrevistas com as educadoras.
O PRESENTE: A CAPACITAÇÃO ATUAL
As informações sobre as unidades escolares (UEs) e sobre os cursos de capacitação foram
obtidas através das entrevistas semi-estruturadas individuais, com Heloísa, com professoras e
especialistas das escolas.
Conforme as informações, o ano de 1996 foi o último em que a Rede Municipal ofereceu capacitação em Educação Sexual – último ano da Gestão da Frente Popular – e os trabalhos
só foram retomados a partir de 2002.
No início de 2002, a SME ofereceu cursos abordando alguns temas transversais, cujo
objetivo era chamar a atenção das escolas para os projetos que poderiam ser desenvolvidos.
Das 36 escolas da Rede Municipal de Ensino somente quatorze se inscreveram nos cursos de
sexualidade oferecidos em 2002 e todas elas desenvolveram algum tipo de trabalho sobre
esse tema3 .
O processo de formação nessa área era dividido em dois tipos de cursos: os centralizados
e os descentralizados. A capacitação iniciou-se com os cursos centralizados, que foram
direcionados para todo o Ensino Fundamental, através de folders encaminhados para as UEs,
tendo sido oferecidas duas vagas para cada instituição (uma para especialista e uma para
professora). Tais cursos foram subdivididos em três etapas de 20 horas cada e exigiam o
deslocamento dos participantes até o local do evento. Eles eram realizados com os
“multiplicadores”, que deveriam elaborar projetos sobre sexualidade nas suas próprias UEs,
além de auxiliarem os demais educadores no trabalho com o tema em caso de necessidade.
A primeira etapa dos cursos centralizados aconteceu durante uma semana. Tinha o objetivo de chamar a atenção dos participantes para a implementação de possíveis projetos de
Educação Sexual nas UEs. Na segunda parte do curso, participaram dezoito educadoras e
especialistas representando as escolas que elaboraram projetos sobre sexualidade.
3
A Rede Municipal de Ensino, dispõe de 23 Escolas Básicas de Ensino Fundamental (1ª a 8ª série) e 13 Escolas Desdobradas de Ensino
Fundamental (1ª a 4ª série), perfazendo um total de 36 escolas. As Escolas Desdobradas são unidades escolares com NEI (Núcleo de
Educação Infantil) vinculado, que atendem crianças de três a seis anos.
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Todas as quatorze escolas que participaram dos Cursos Centralizados elaboraram projetos e tiveram acesso aos Cursos Descentralizados, com duração total de 20 horas, ministrados
por consultores contratados pela Prefeitura. Cada escola era visitada sempre pelo mesmo
consultor em encontros de três ou quatro horas cada.
Quanto à sua percepção sobre as maiores necessidades dos professores em relação ao
tema da sexualidade e do seu caráter transversal, Heloísa aponta dificuldades relativas à
prática, por exemplo, de como fazer no dia-a-dia.
Com respeito a uma avaliação do trabalho, Heloisa pondera que ainda não estão conseguindo suprir as necessidades dos professores devido ao pouco tempo de implementação dos
cursos. Comenta que as políticas públicas acabam por dificultar o processo de capacitação
docente, uma vez que as dificuldades e as incertezas com relação a verbas não permitem um
planejamento de longo prazo.
O PASSADO: A CAPACITAÇÃO ANTERIOR
Durante a realização das entrevistas, as educadoras com mais tempo de trabalho na rede
Municipal de Ensino referiam-se à capacitação em Educação Sexual empreendida pela administração da Frente Popular (1993 a 1996), que antecedeu a gestão atual (1997 a 2003).
Em virtude da falta de informações sobre o processo de capacitação docente na área da
sexualidade que vem desenvolvido pela SME ao longo dos anos; da constatação da existência
de um período de alguns anos sem cursos nesta área (1997 a 2001); e por se considerar que
a formação do educador sexual é um processo longo, que inclui diversas experiências e anos
de estudo, sentiu-se necessidade de pesquisar sobre o processo histórico da capacitação docente na área da sexualidade nas escolas municipais de Florianópolis.
Por essa razão, foram entrevistadas duas docentes que integravam a equipe de coordenação dos projetos realizados pela Prefeitura na administração anterior e uma professora que
participou de toda a formação em educação sexual realizada por essa gestão.
A primeira etapa da capacitação foi empreendida através de um convênio com o GTPOS
(Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual)4, no período de agosto de 1994 a
dezembro de 1995, oferecidos para professores de 5ª a 8ª séries.
Depois de encerrado este trabalho, a Secretaria Municipal de Educação começou a elaborar outro formato para a capacitação na área da sexualidade. A idéia era estender a formação
para todos os professores da Rede, incluindo também os da Educação Infantil e de 1ª a 4ª
séries, aproveitando aqueles que já estavam em formação. Foram escolhidos cinco professores, que passaram a trabalhar 20 horas com docência nas suas escolas e 20 horas como
4
O GTPOS é uma Organização Não Governamental (ONG) criada em 1987 por psicólogos, psicanalistas e pedagogos interessados
no estudo das questões da sexualidade. Esta ONG trabalhava com Orientação Sexual para escolas da rede de ensino público e
particular. (“Projeto Brasil: Orientação Sexual e Prevenção das DSTs/Aids mas Escolas das Redes Municipais de Ensino”, Realização:
GTPOS/Prefeituras Municipais).
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coordenadores do Projeto de Educação Sexual. Esses coordenadores atuavam como novos
formadores, prestando assessoria às escolas.
OS PCNS NA PRÁTICA – ANALISANDO OS DADOS
O procedimento adotado para a análise das informações foi análise de conteúdo temática.
Durante as leituras das entrevistas alguns temas emergiram e através de um diálogo entre a
realidade observada e o contato com resultados obtidos em outras pesquisas foi possível observar aspectos freqüentes no discurso das entrevistadas. Dentre eles, devem ser destacados:
1. Quanto à atuação docente, a análise demonstra que ainda existe entre os educadores,
de maneira geral, dificuldade, resistência e falta de informação para que a Educação
Sexual na escola seja efetivada. Apesar de muitos sentirem a necessidade de trabalhar
com o tema, consideram-se despreparados para realizá-lo – temem estimular os alunos excessivamente, fornecer-lhes informações erradas, entrar em conflito com seus
valores familiares, não saber como responder determinadas perguntas.
2. Quanto ao processo individual de apropriação do conhecimento em Educação Sexual,
foi possível constatar aspectos importantes:
• A necessidade de interlocução entre as ministrantes dos cursos e o coletivo das
escolas. Algumas das entrevistadas consideraram os consultores despreparados ou
distantes da realidade das escolas.
• A importância de entrar em contato com sua própria história e vivências para
compreender o processo de construção dos valores preconceitos e tabus em torno
da sexualidade. A maioria das entrevistadas recebeu uma Educação Sexual rígida,
pautada nos valores da “normalidade”, da heterossexualidade e da monogamia,
principalmente a feminina. Aquelas que de alguma forma conseguiram romper
com as normas impostas conseguiam tratar do tema com uma mais tranqüilidade.
• A necessidade de romper com a tradicional cisão entre teoria e prática. Para que os
cursos atendam às necessidades dos professores precisam ser organizados como
um espaço de troca e reflexão de experiências e de atuação, o que facilita o estabelecimento de relação efetiva entre as teorias estudadas e suas práticas. Uma das
entrevistadas sugeriu que os educadores com experiência na área, “os iniciados”,
poderiam auxiliar na formação dos que estão começando, “os iniciantes”, atuando
como multiplicadores dentro das UEs.
• A necessidade da formação permanente também foi ressaltada por várias entrevistadas.
3. Quanto aos cursos oferecidos pela SME na área da sexualidade, verificou-se:
• Uma programação verticalizada, que desconsidera o saber e as necessidades dos
educadores. Uma das professoras “iniciadas” apontou que a nova gestão misturou
profissionais com experiência com os inexperientes.
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• A a-historicidade do processo de formação docente: um dos aspectos que chamou
a atenção foi o total desconhecimento, por parte da organizadora, dos cursos da
história anterior da formação dos professores.
• A descontinuidade do processo de formação: a organizadora não tinha perspectiva
de continuidade, que estava sujeita à liberação de verbas. Foram criticadas nas
políticas educacionais a interrupção dos cursos nas mudanças de gestão e a
descontinuidade das programações.
• Aspectos positivos: apesar das críticas, as entrevistadas apresentaram posturas mais
próximas dos objetivos apontados nos PCNs, em comparação com professores que
não haviam passado por um processo de formação semelhante. Observou-se que
os cursos puderam, em alguns casos, sensibilizar, desmistificar, trazer informação,
estimular o trabalho na escola e a busca de novos conhecimentos.
4. Com relação aos PCNs, constatou-se que ainda estão muito distantes da realidade
das escolas, sendo utilizados por um número restrito de educadores. Apesar disso,
sua publicação trouxe a autorização oficial para a introdução do tema nas escolas.
E O FUTURO? – CONSIDERAÇÕES FINAIS
No momento de tecer as considerações finais, põe-se o foco na principal pergunta que
norteou esta pesquisa: é possível, na realidade das escolas públicas brasileiras, pôr em prática
a Educação Sexual como um Tema Transversal?
Dentro dos limites deste trabalho, foi possível constatar que a grande maioria das educadoras apresentava dificuldade e medo de abordar o assunto quando esse emergia no dia-a-dia
da sala de aula. Reclamavam por mais preparo, apoio, supervisão e muitas solicitavam modelos, “fórmulas” de ação. Concordando com Figueiró (2001), para haver uma inserção dos
Temas Transversais no processo de ensino é necessário que os educadores atuem
interdisciplinarmente, reúnam-se e planejem em conjunto, o que implica maior número de
reuniões ou contatos entre eles.
Em sua tese de doutorado, Adriana Mohr (2002) aborda a questão da educação em
saúde no ensino fundamental e critica os PCNs, na medida em que não conseguem descolarse do modelo onde as disciplinas são individualizadas. Mostra que há autores (Busquets et
al., 2001), que fazem uma proposta de reelaboração curricular das diferentes disciplinas em
função desses temas. Alertam que se os Temas Transversais forem tratados como novos conteúdos a serem acrescentados aos já existentes, irão apenas sobrecarregar os programas e
dificultar a tarefa dos professores.
Quanto ao processo de construção do conhecimento, no caso da Educação Sexual, a
compreensão e realização de algumas ações – “apropriação da ação” – não garantem o domínio e a execução independente de um trabalho ou um projeto na área, muito menos a
possibilidade de atuação como multiplicador. Como a “apropriação da atividade” envolve o
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domínio do processo como um todo, isto é, o compreender e saber fazer, para a atuação
como multiplicador em Educação Sexual é necessário que o professor consiga fazer uma
leitura de todo o processo, o que significa atender às demandas de seus alunos integrando o
trabalho de Educação Sexual ao projeto educativo.
Na presente pesquisa, encontraram-se diferenças na apropriação da atividade em Educação Sexual. As mais experientes, “as iniciadas”, relatavam mais tranqüilidade e confiança
para abordar a temática, conseguindo atuar, auxiliar colegas e interferir em situações cotidianas. As menos experientes, “as iniciantes”, reclamavam mais apoio, supervisão e estudo.
Tais diferenças existentes são resultado de suas diferentes histórias e da forma como significam aquilo que é ensinado, aspectos que deveriam ser levados em conta na preparação de
cursos de formação.
De acordo com Zanella (1997), nos processos de ensino-aprendizagem, as relações
dialógicas assumem características diferenciadas, dependendo dos sujeitos envolvidos e dos
signos utilizados. Assim sendo, quem ensina precisa levar em conta que aqueles que aprendem fazem-no de muitas maneiras e que o ensinar não pode restringir-se à simples repetição
mecânica de palavras, que desconsidera os sujeitos em questão.
Nesse sentido, o processo de formação do professor em Educação Sexual não pode ser
encarado como algo linear e homogêneo que não leve em conta a história anterior de formação dos educadores, bem como sua trajetória na área e os grupos aos quais pertencem.
A importância de se empreender uma formação continuada, sistemática e permanente
também foi ressaltada pelas entrevistadas deste trabalho. Aprender a trabalhar com Educação
Sexual não é algo que acontece rapidamente, com apenas alguns cursos, mas requer um processo contínuo de formação, em que os educadores possam adquirir conhecimentos científicos,
rever posturas, questionar valores e preconceitos, trocar experiências, confrontar opiniões, de
modo a construir novos saberes e descobrir outras possibilidades de atuação nesta área.
Será no processo de formação continuada proposto por vários autores (Schön 1995,
Nóvoa, 1995; Gómez, 1995; Figueiró, 2001) e a partir da “reflexão na ação” e “sobre a
ação” que os professores, aos poucos, poderão se apropriar desse conhecimento.
Em de uma perspectiva histórico-cultural podemos dizer que o “nascimento” dos PCNs
traz em si o germe da sua contradição, pois ele se torna inviável no sistema educacional
fragmentado e desvalorizado. Desa forma, impõe de modo premente a revisão de todo sistema educacional, já que a transversalidade pressupõe a interdisciplinaridade.
Com base no que foi constatado na pesquisa, pode-se afirmar que a preparação dos
professores para trabalhar com Educação Sexual na escola é um processo: a) complexo,
longo e que se defronta com crenças, tabus, resistências e preconceitos, construídos ao longo
da trajetória de vida e de trabalho; b) que requer o envolvimento do coletivo da escola; d)
que precisa ser acompanhado por supervisão e assessoria constantes, numa perspectiva de
formação sistemática, prolongada e que não fique sujeita às alternâncias governamentais e
suas divergências políticas; e) que deve partir das concepções dos professores e das suas
experiências, de forma que possibilite a reflexão sobre elas, ampliando suas possibilidades de
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construção de um conhecimento menos fragmentado, mais crítico e elaborado na área da
sexualidade.
Foi interessante perceber que, ao longo das entrevistas, algumas professoras pareciam
surpresas ao se depararem com questionamentos que iam fazendo durante o diálogo. Uma
delas, após encerrarmos, comentou que tinha achado interessante a conversa, pois pela primeira vez tinha refletido sobre as questões dos PCNs e da transversalidade. Esse depoimento
confirma a importância da interlocução e da reflexão por parte dos docentes a respeito da
sua própria prática.
É ainda importante salientar que o modelo reflexivo de formação, proposto por vários
autores – contínuo, longo e sistemático – em que sejam valorizadas as experiências, as histórias de vida, as práticas pedagógicas, os saberes construídos e o exercício de reflexão em
grupo pressupõe necessariamente a revalorização do trabalho docente, através de melhores
salários, da redução da carga horária em sala de aula e de mais tempo para a dedicação a
cursos, estudos, planejamento e trocas com os colegas. São condições necessárias para que se
avance na construção de uma escola efetivamente voltada para a formação de cidadãos éticos, críticos e capazes de atuar na construção de uma sociedade mais justa e democrática,
bem como para a vivência de sexualidade de forma plena, satisfatória e segura. Isto não pode
ser deixado para o futuro, deve ser feito já!
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Jovens estudantes de Florianópolis
falam de adolescência, gênero e Aids
Patrícia de Oliveira
Silva Pereira Mendes
A
intenção de estudar a adolescência não surgiu como projeto para a dissertação de
mestrado que realizei, mas é o resultado de uma caminhada de pesquisa iniciada em 1998,
em um curso de especialização em Educação Sexual (Universidade do Estado de Santa Catarina
– UDESC), quando elaborei um estudo exploratório acerca do imaginário adolescente frente
às campanhas de prevenção à Aids. Tal pesquisa me possibilitou uma reflexão sobre oss
adolescentes e as ações de prevenção, quando mencionaram a importância de as campanhas
não serem pensadas a partir da idéia que os jovens já têm sobre a temática abordada, e ainda,
sobre o quanto a prevenção não é algo centrado apenas no uso do preservativo. O estudo
também me auxiliou na compreensão da necessidade de ações e programas a serem pensados
a partir de realidades específicas, procurando atender aos adolescentes (garotos e garotas)
em suas comunidades, em seus espaços e respeitando seus modos de vida, já que vivemos em
um país com uma multiplicidade de adolescentes e adolescências. Pude perceber ainda a
importância do diálogo e da participação dos jovens na implementação de trabalhos voltados
à prevenção de DST/Aids e outras ações que envolvam o exercício de cidadania.
A partir desse estudo, passei a compreender a adolescência como um conceito recente na
cultura ocidental (Ariès, 1881). Áries nos faz perceber que a divisão da vida em etapas,
questão tão cara às psicologias do desenvolvimento, tem história e não é fenômeno universal,
como mostram estudos etnográficos sobre outras culturas (Mead, 1945).
Interessante observar que, como os jovens já indicavam na pesquisa realizada em 1998,
hoje pesquisadores argumentam sobre a necessidade de que as políticas públicas voltadas aos
jovens no país sejam programadas considerando o contexto social da população a que se
dirigem, a partir da necessidade de seu envolvimento na implantação de ações voltadas à
prevenção de DST/Aids. Como José Ricardo Ayres (1993) bem ressalta, é importante que as
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políticas de promoção de saúde sejam pensadas para adolescentes e jovens, a fim de evitarem
exclusões e buscando dirigir-se a esta faixa da população. O autor argumenta que a categoria
adolescência foi usada pela medicina de uma forma a-histórica, incorrendo no risco de
universalizações. Faz também uma crítica às determinações cronológicas utilizadas para o
tratamento da saúde adolescente que, para ele, acabam promovendo exclusões de jovens em
relação aos programas de saúde.
A investigação inicial com aos/as adolescentes também reforçou a necessidade de pesquisar
os significados atribuídos por eles à própria adolescência, bem como às doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs) e à Aids.
Esclareço que, por entender que o social constitui os sujeitos ao mesmo tempo em que os
sujeitos são constituídos por ele, a partir da mediação dos signos, como aponta Suzana Molon
(2003), considerei importante ouvir os significados atribuídos pelos/as adolescentes às temáticas
que lhes dizem respeito.
A atribuição de significado acontece em uma situação objetiva que necessita da intervenção do outro. O
outro atribui significado à situação, que posteriormente é significada pela criança, ou seja, em uma situação
objetiva o outro atribui significado a uma determinada condição na relação interpsicológica, que se converte
posteriormente na relação intrapsicológica do sujeito consigo mesmo como significativa. No significado do
gesto indicativo do sujeito para o sujeito, ele se converte em gesto de si. (Molon, 2003 p. 100).
Outro fator também importante para a continuidade de meus estudos relacionados a adolescência e Aids foi o panorama da epidemia no Brasil, pois, segundo o Boletim Epidemiológico
de outubro de 2001 a março de 2002, (dados fornecidos pelo Ministério da Saúde através da
Coordenação Nacional de DST/Aids1), houve um aumento no número de infectados pelo HIV
na faixa etária de 13 a 19 anos, com um maior número de casos de Aids em mulheres adolescentes. Os dados mostraram que em 2000 foram 191 casos em garotas de 13 a 19 anos, contra
151 casos em rapazes da mesma idade. Em 2001, foram notificados 152 casos em adolescentes
do sexo feminino, contra 91 casos em adolescentes homens. Entre os jovens de até 24 anos, a
relação homem-mulher é hoje praticamente de 01 para 01. Dessa forma, os novos números da
Aids confirmam uma ‘feminização’ da epidemia, maior a cada ano, apontando as mulheres
heterossexuais como a população entre a qual a epidemia mais cresce no país.
Esse quadro de feminização com relação a Aids possibilitou-me avaliar que em minha
trajetória acadêmica não havia dado a devida atenção à categoria gênero, o que considerei
fundamental nesta investigação.
Para Maria Luiza A. Heilborn (1996)
pensar as políticas de saúde que incidem sobre o domínio da reprodução e da prevenção das doenças
sexualmente transmissíveis é avaliar que os sujeitos aos quais elas se destinam estão marcados por condições
1
Fonte site: www.aids.gov.br acessado em março de 2003
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sociais distintas, entrelaçando estas determinações de classe, gênero, etnia, faixa etária, posição no ciclo
reprodutivo, afiliação religiosa, capital cultural e educacional. (Heilborn, 1996, p.101).
Os dados apresentados pelo Boletim Epidemiológico, com o crescente aumento de infecção pelo HIV entre mulheres, e as colocações de Heilborn apontam para a relevância de se
pensar as relações de gênero nas campanhas voltadas para adolescentes, bem como a importância cada vez maior de se pensar políticas públicas direcionadas à saúde dos adolescentes e
jovens a partir de seus contextos sociais. No entanto, diante dessas constatações podemos
formular as seguintes questões: o que há de errado, já que existem políticas públicas atualmente sendo pensadas para adolescentes e não há, efetivamente, uma resposta diferenciada?
O que falta? Onde estariam falhando as políticas públicas?
Ayrès nos ofereceu algumas pistas, e talvez a resposta a essa questão resida exatamente
no fato de as ações e políticas públicas serem pensadas para adolescentes e jovens, e não com
ou por eles/as.
Na intenção de avançar em minha trajetória como pesquisadora, neste estudo elegi investigar adolescência, gênero e Aids nas significações atribuídas a esses temas por jovens que
fui buscar em três escolas de Florianópolis. Procurei ouvir esses adolescentes em suas idéias
e opiniões sobre as questões, estimulando-os a refletirem a respeito de saúde sexual e prevenção às DST/Aids para, quem sabe, contribuir na produção de reflexões que pudessem subsidiar
ações propostas pelas políticas públicas no município, considerando os entendimentos dos
jovens sobre questões que lhes são pertinentes e incentivando sua participação na discussão
desses temas.
A política é a condição que resulta possível a uma cultura. Uma cultura onde todos os sujeitos, inclusive
crianças e jovens, possam se ver reconhecidos envolve ação politicamente sensível dos sujeitos na sua
pluralidade e diferença. Tal ação é essencialmente emancipatória, ou seja, não há como um sujeito ou
grupo de sujeitos “se preparar” para a ação politicamente sensível, porque a melhor preparação é a
própria ação. Assim, crianças e jovens não se tornam capazes politicamente, eventualmente, num futuro
que há de vir, mas se capacitam no hoje, pela sua ação e participação no mundo. (Eaglenton, 2002, apud
Castro, 2001, p. 43-44).
No desenvolvimento desta investigação, procurei contextualizar a cidade de Florianópolis,
caracterizando assim os bairros em que estão localizadas as três escolas de ensino fundamental em que estudam os sujeitos da pesquisa. Na medida em que elegi trabalhar com jovens de
classes sociais diferenciadas, no sentido de que a investigação pudesse abranger contextos
diversos, escolhi três escolas de diferentes redes de ensino do município.
Conforme Milton Santos (1979)2, o espaço geográfico apresenta um mapa de diferenciação
de classes, inscrito na utilização do solo urbano. Assim, alguns bairros são habitados por
2
Citado por Lago, 1996.
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populações de mais baixa renda, outros abrigam as camadas médias ou as elites das cidades.
Muitos são divididos entre as classes sociais, apresentando espaços com moradias populares
e ou favelas, próximos a locais mais bem servidos por aparelhos e infra-estrutura/urbanas,
habitados por populações de média ou alta renda.
As escolas a que pertencem os jovens participantes dessa investigação situam-se nos
bairros Costeira do Pirajubaé, Estreito e Agronômica. A Costeira do Pirajubaé é habitada em
geral por camadas populares, com menor número de residências de famílias de camadas
médias. Embora isso possa mudar brevemente, em função da implantação da avenida BeiraMar Sul, que tornou o bairro bastante acessível e próximo ao centro da cidade, concorrendo
para a valorização dos terrenos e apontando para uma próxima recuperação do local às
classes populares, por população de renda mais alta.
O Estreito foi tradicionalmente um bairro com forte expressão de estabelecimentos comerciais, com terrenos não tão valorizados como os do centro de Florianópolis, na Ilha.
Embora tenha abrigado esta população de camadas médias ligadas ao comércio continental,
nas últimas décadas teve uma forte expansão dos bairros habitados pelas camadas populares
e também de favelas urbanas. Ao lado dessa ocupação tem havido, especialmente nos últimos
dez anos, forte expansão imobiliária e verticalização das residências, acompanhando o que
acontece com toda cidade. Assim, no Estreito encontramos uma população diversificada, em
relação à questão da divisão de classes sociais.
A Agronômica, bairro da cidade próximo ao centro e bem servido por estabelecimentos
urbanos, apesar de abrigar alguns dos chamados bolsões de pobreza3, é habitado, num movimento gradativo de transformação urbana, pelas camadas médias e pela população de alto
poder aquisitivo, em função inclusive de sua proximidade com a avenida Beira-Mar Norte,
onde se localizam os metros quadrados mais valorizados da capital. A Agronômica, assim,
também retrata topologicamente a desigualdade social, mas é um dos bairros em processo de
ocupação pela população de maior poder aquisitivo, em função também de ali ter sido localizada a residência dos governantes do estado e, mais recentemente, vários órgãos dos poderes
estaduais e federais, além de estabelecimentos comerciais importantes e do Centro Integrado
de Cultura, com teatro, cinema, salas de exposições, oficinas, etc. É também via de acesso
para universidades (a Federal, a Estadual, privadas) e para as praias do norte da ilha, com
seus equipamentos turísticos.
Essa caracterização sucinta de Florianópolis e dos bairros que abrigam as escolas cujos
alunos foram os sujeitos da pesquisa procurou diferenciá-los e às escolas, em termos de
posições que ocupam nas hierarquias sociais, instituídas pelas desigualdades de renda e acesso
aos bens materiais e simbólicos. Assim, os alunos que participaram da pesquisa no núcleo de
EJA da Costeira do Pirajubaé, fazem parte da população de baixa renda – camadas populares;
3
A condição original de periferia urbana do bairro pode ser avaliada pela localização ali de estabelecimentos como a Penitenciária
Estadual (hoje deslocada para outro município da Região Metropolitana) e do chamado Abrigo de Menores, uma espécie de asilo
para meninos órfãos ou aqueles cujas famílias não os podiam manter (hoje desativado, na medida em que aumentam os
estabelecimentos que “abrigam” menores infratores, meninos e meninas).
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rapazes e garotas da escola estadual do Estreito pertencem às camadas médias e camadas
populares; os alunos pesquisados na escola privada da Agronômica são de camadas médias.
Alguns índices, apontados pelos jovens em resposta ao questionário, como escolaridade
dos pais e responsabilidade sobre a renda familiar confirmam as afirmações explicitadas.
Com relação à metodologia utilizada na investigação, cabe salientar que realizei uma
pesquisa qualitativa, buscando ancorar meus procedimentos na compreensão dos adolescentes como sujeitos ativos, constituídos social e historicamente na cultura em suas formas de
pensar, sentir e agir.
Como expõe Fernando González Rey (1997) o processo de investigação qualitativa é
dinâmico e contínuo, não se esgota em suas formas de expressão e envolve os próprios
sujeitos que se relacionam nesse processo, gerando uma situação de comunicação que pode
apresentar em seu curso elementos relevantes para a construção do conhecimento.
Para a investigação, decidi aplicar um questionário com perguntas abertas e fechadas,
nas turmas de 5ª e 7ª séries das duas escolas seriadas e no Núcleo de Educação de Jovens e
Adultos – EJA, que não é uma instituição de ensino seriado. Isso, seguido da realização de
três grupos focais de discussão, com as turmas de 7ª série e o Grupo do EJA. A elaboração do
questionário deu-se a partir da utilização de instrumento já usado em pesquisa com jovens
em Florianópolis (Lago, Silva, Santos, 1996) ao qual acrescentei questões relacionadas às
temáticas centrais deste estudo. As questões discursivas presentes no questionário foram utilizadas no roteiro de discussão dos grupos focais.
Roberto Jarry Richardson (1999) salienta que os questionários cumprem pelo menos
duas funções em um trabalho de pesquisa: além de possibilitarem a descrição das temáticas
abordadas permitem a obtenção de informações sobre aspectos importantes de determinado
grupo social. Para ele, uma descrição adequada das características de um grupo não apenas
beneficia a análise a ser feita por um pesquisador, mas também pode ajudar outros especialistas, como planejadores, administradores e outros (Richardson, 1999, p. 189).
A opção pela realização do grupo de discussão focal sucedendo a aplicação do questionário deu-se pelo fato de a literatura apontar o grupo focal como um instrumento importante em
pesquisas com adolescentes. Além de permitir a discussão de temáticas específicas (na pesquisa,
adolescência, relações de gênero e Aids), propicia a manifestação mais espontânea de idéias e
entendimentos dos jovens sobre diversas questões, nos diálogos que estabelecem com o grupo.
Segundo Maria de Nazareth Agra Hassen:
A técnica do grupo focal permite a identificação e o levantamento de opiniões que refletem o grupo em
um tempo relativamente curto, otimizado pela reunião de muitos participantes e pelo confronto das
idéias que se estabelece, assim como pela concordância em torno de uma mesma opinião, o que permite
conhecer o que o grupo pensa (Hassen, 2002, p. 161).
O contato com a escola particular deu-se a partir da apresentação do projeto de pesquisa, bem como dos termos de consentimento que deveriam ser encaminhados aos pais dos
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alunos, tendo a diretora se manifestado favorável à realização da pesquisa no espaço de sua
escola, no período matutino em duas turmas, uma na 5ª série e outra na 7ª série. Na escola
estadual, o contato se deu através da professora de Biologia, que mediou minha relação com
a direção do estabelecimento e esteve comigo no momento da apresentação dos objetivos da
pesquisa. Ficou combinado com a diretora que essa professora concederia o início de suas aulas
para que eu pudesse entrar em contato com os alunos das turmas de 5ª e 7ª séries em que
seriam aplicados os questionários. No espaço da Escola Municipal – Núcleo EJA, uma escola
em que não há seriação, a entrada se deu por meio de uma das coordenadoras que, sendo
também uma estudiosa e pesquisadora na área da sexualidade humana, colocou-se à disposição
para colaborar, solicitando a participação dos alunos na investigação. Foi a própria coordenadora quem levou para a escola os Termos de Consentimento e, ao explicitar os objetivos da
pesquisa a ser realizada, distribuiu-os no Núcleo EJA. Quando os alunos trouxeram as autorizações, a coordenadora marcou comigo o dia da aplicação dos questionários na escola. Alguns
solicitaram aos pais,e outros foram respondidos pelos próprios jovens, maiores de idade.
TABELA 1
Total de Alunos/as que Responderam ao Questionário, nas três escolas
Total de jovens
por Escolas
Escolas
Séries
Garotos
Garotas
Total por Série/
gênero
Escola Particular
5ª
05
08
13
7ª
07
01
08
21
5ª
06
04
10
25
7ª
11
04
15
EJA
11
12
23
Escola Estadual
Escola Municipal
TOTAL GERAL
23
69
Fonte: Mendes, 2004
A realização dos grupos de discussão focal aconteceu após um mergulho inicial nas informações obtidas na aplicação dos questionários, em que passei a refletir sobre a efetivação
do grupo de discussão focal. A princípio, intencionava realizar o procedimento apenas em
uma das escolas estudadas. Porém, diante da riqueza dos depoimentos dos adolescentes e
jovens nos questionários e da diversidade de seus contextos sociais e de idade, pensei que, ao
privilegiar um dos grupos, poderia estar perdendo a chance de escutar essa diversidade.
Desse modo, decidi realizar grupos focais de discussão nas três escolas.
Para a realização do grupo focal, precisei de alguém responsável pela filmagem da discussão; dessa forma, na realização de todos os grupos estive acompanhada da pessoa que
filmou as discussões.No Núcleo EJA pude esclarecer os objetivos do grupo de discussão focal
com as professoras e fiquei aguardando em uma sala a chegada dos jovens que haviam respondido ao questionário e que se dispuseram novamente a participar da pesquisa.
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Coloquei-me a organizar as carteiras da sala em círculo e, na medida em que os alunos
chegavam, já se posicionavam para a discussão dos temas. Em razão da filmagem, quatro
jovens não quiseram participar, pois não recordavam que o grupo focal seria filmado e se
recusaram a entrar na sala, alegando estarem encabulados.
Com a explicação do objetivo do grupo de discussão focal aos participantes, os esclarecimentos acerca da utilização das imagens e a apresentação de todos, com
especificação de suas idades, iniciei o debate seguindo o roteiro de questões previamente
formuladas.
Participaram da discussão sete garotas: uma com 23 anos, uma com 16 anos, duas com
17 anos, uma com 18 anos, uma com 19 e outra com 22 anos. Também participaram seis
garotos, dois com 16 anos, três com 17 anos e dois com 18 anos. O grupo interagiu de forma
dinâmica na discussão dos temas. De modo geral, os participantes não se inibiram, deixando
claros os seus posicionamentos e opiniões. Ao final das discussões, os jovens solicitaram um
retorno sobre seus posicionamentos frente às questões investigadas, fato que resultou em
mais um contato com eles, para assistirem ao vídeo produzido.
O encontro de feedback transcorreu de forma inusitada, pois o vídeo da escola não
funcionou adequadamente, ficando difícil o entendimento das falas. Porém, serviu como
mais uma possibilidade de dialogar com os jovens, na medida em que pude pontuar algumas
falas do grupo como, por exemplo, o fato de a maioria delegar, em suas colocações, o cuidado com a prevenção da gravidez para as garotas.
Na escola particular, marquei com a diretora a manhã em que realizaria o grupo de
discussão focal com a 7ª série. No dia agendado fui até a escola acompanhada pelo responsável pela filmagem. Estavam presentes sete garotos: dois de 14 anos e cinco de 13 anos;
também duas garotas, uma com 14 anos e a outra com 13 anos.
A participação desse grupo nas discussões foi mais comedida, os jovens se mostraram um
pouco inibidos pelas questões e as respostas foram curtas, sem muito debate. Os participantes possuíam pouca idade e apresentavam experiências de vida diferentes das experiências
vividas pelos jovens do EJA, de idades maiores.
Para a realização do grupo de discussão com os alunos da escola estadual, combinei
pessoalmente com a turma da 7ª série o dia em que a filmagem seria realizada e novamente
encaminhei um Termo de Consentimento explicando o objetivo da filmagem e informando
aos pais o local, o dia e a hora da mesma. Os alunos deveriam trazer o documento assinado,
pois viriam participar do grupo focal fora do horário de aula.
No dia marcado, vieram seis participantes: dois garotos, um com 14 e outro com 13
anos; e três garotas de 13 anos, que chegaram com os consentimentos assinados. A professora de biologia esteve presente na sala, assistindo à realização do grupo focal.
A discussão das questões com o pequeno grupo deu-se de forma bastante participativa e
o debate foi acalorado, havendo divergências nas opiniões entre garotos e garotas. Nesse
grupo, embora as idades fossem as mesmas dos alunos da escola particular, o grupo se
diferenciou, pois não manifestou nenhum constrangimento na participação.
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Quando encerramos as discussões nessa escola, lanchamos juntos e continuamos conversando sobre as questões relativas à prevenção e à saúde sexual, momento em que pude
esclarecer com garotos e garotas participantes o quanto os encontrei envolvidos e preocupados com as questões discutidas. Houve um aluno que, sabendo que discutiríamos a questão
da Aids, trouxe um material informativo que consultou, esclarecendo dúvidas dos colegas ao
longo dos questionamentos.
Nessa segunda etapa da pesquisa, dos três grupos de discussão focal participaram ao
todo 27 estudantes, sendo 12 moças e 15 rapazes.
TABELA 2
Total de Alunos/as que Participaram dos Grupos Focais
Escolas
Séries
Garotos
Garotas
Total
Escola Particular
7ª
07
02
09
Escola Estadual
7ª
02
03
05
Escola Municipal
EJA
06
07
13
TOTAL
27
Fonte: Mendes, 2004
Penso que a riqueza das falas e respostas dos adolescentes e jovens desta pesquisa se
encontra na diversidade de experiências e ambientes sociais em que vivem, pois suas opiniões
estiveram permeadas por essas vivências e circunstâncias.
Procuro sintetizar algumas das muitas declarações presentes nos questionários e nos
grupos de discussão focal, na intenção de apontar para a riqueza de significações presentes
nas opiniões desses/as adolescentes e jovens com relação às temáticas investigadas.
Para eles e elas, a adolescência teve diferentes significados: “um momento em que os
gostos estão mudando”; “uma etapa de desenvolvimento maravilhosa”; “uma etapa em que
os jovens se libertam e têm mais controle sobre si mesmos, preocupam-se mais e estão saindo
da infância”; “período em que se é responsável”; “uma fase difícil em que surgem dúvidas;
uma etapa boa da vida, namoro, diversão, descobertas; as jovens estão muito malucas e a
adolescência está diferente do que era antigamente”; “quando os adolescentes fazem coisas
erradas”; “eu faço um monte de coisas erradas, mesmo sabendo que não deveria”.
Já as relações de gênero foram significadas a partir de várias expressões: “uma garota
relaciona-se com um garoto e qualquer coisa que aconteça tudo fica para a garota. O garoto
sai limpo”; “o homem é mais forte que a mulher em tudo, tem mais capacidade de arrumar
emprego que a mulher”; “quando um garoto fica com duas garotas em duas semanas, é
considerado um pegador, um garanhão. Já a garota é considerada galinha e sem-vergonha”;
“acho que os pais se preocupam mais com as meninas”; “os pais se preocupam mais com as
meninas porque sabem como são os garotos”; “hoje já não tem tanta diferença, antigamente
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a mulher ficava em casa o dia todo, hoje o homem dependendo do que a mulher estuda e
sabe, é ela que manda no homem...”; “existem muitas diferenças (mudanças) as mulheres
antigamente não votavam”; “não tem serviços de homem e de mulher”.
Com relação à Aids, as opiniões também foram variadas: “uma doença, mas ninguém
morre de Aids”; “muito falada, mas poucos realmente se preocupam”; “algo em que a maioria dos/as adolescentes não se preocupam muito”; “as pessoas contraem essa epidemia por
transarem com quem não conhecem”; “pegam Aids por fazer sexo errado (sexo anal)”; “contraem porque fazem sexo sem camisinha”; “as pessoas não se preocupam muito com a Aids e
não é falta de informação”; “contraem HIV por “burrice” pois têm a informação, mas fazem
sem camisinha”; “a garota tem que negociar o uso da camisinha”.
Foi importante ter utilizado dois instrumentos de pesquisa. Os questionários, mesmo
com perguntas abertas, acabam por possibilitar respostas mais diretivas, o que não acontece
com a técnica de grupos focais.
As diferenças de gênero no tratamento das questões referidas à Aids e à sexualidade em
geral estiveram muito presentes em toda pesquisa, conforme aparece na análise das falas e
respostas escritas pelos/as jovens.
A adolescência ainda aparece nas falas como tempo de crise e tensão, mas é relatada
também como uma boa ou a melhor fase da vida, um tempo de irresponsabilidade e liberdade para viver o momento de forma despreocupada. O que pode contribuir para a reflexão
sobre o fato de conhecerem os perigos das DSTs/Aids, conhecerem os métodos de prevenção
e contracepção, terem acesso a eles, e ainda assim, não se prevenirem.
A relação adolescência – irresponsabilidade ficou clara nos depoimentos. Inclusive quando
duas das jovens do EJA afirmaram terem deixado de ser adolescentes ao engravidarem, tornando-se mães aos 13 e 14 anos. Questão que ficou evidente na fala de um garoto, afirmando
que a adolescência é tempo de curtição, enquanto os jovens já têm que pensar em constituir
e prover a família.
A função provedora do homem foi explicitada em inúmeras falas, até na da moça que,
referindo-se às desvantagens das mulheres, ressaltou o fato das mais liberais em termos de
práticas sexuais, serem estigmatizadas como “galinhas” e, por essa fama, poderem perder a
oportunidade de arrumar um bom provedor. Ao mesmo tempo, a maioria afirmou a importância das conquistas femininas no mundo do trabalho, e em questões referentes à igualdade
entre os gêneros.
As desigualdades de gênero em relação às funções de homens e mulheres no lar e no
trabalho, salários, etc., foram bastante questionadas por garotos e garotas das escolas, especialmente por elas.
Os jovens das escolas públicas se mostraram mais politizados e comprometidos com as
discussões a respeito de cidadania e sobre as políticas públicas de saúde e educação, questões
que não surgiram nas preocupações dos adolescentes da escola particular. Os primeiros também
apresentaram posições mais críticas a respeito das diferenciações sociais feitas pela mídia, nas
matérias referentes aos adolescentes.
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Quanto aos conhecimentos sobre a Aids, a maioria revelou possuir informações acerca
da epidemia, mas houve diferença de significações nos grupos focais, sendo que na escola
particular os jovens mencionaram a importância de atitudes responsáveis, e nas escolas públicas, debateram mais profundamente as questões ligadas à infecção pelo HIV.
Ainda com relação à Aids e o aumento dos casos entre mulheres jovens, verifiquei que
há, por parte de alguns estudantes, a associação da epidemia com grupos de risco e promiscuidade, quando argumentaram que as mulheres estão transando mais, algumas se prostituindo.
No EJA as jovens trouxeram algo apontado por estudiosos da Aids, o fato de os adolescentes
acharem que a doença nunca vai acontecer com eles/as.
Percebi, como já salientei, que os cuidados com a prevenção de Aids e de outras DSTs
não estão centrados apenas nas informações, pois esses jovens salientaram que não lhes falta
conhecimento, mas que também aprenderam que sexo não se pensa muito, como disseram,
“na hora H ninguém quer saber de nada”. Isto, somado a todas as questões sobre a própria
adolescência e as constatações sobre igualdade/diferença entre os gêneros.
Foram destacadas na pesquisa as colocações das jovens do EJA, em relação às questões
ligadas à prevenção de DSTs/Aids e contracepção, quando consideraram que a escola deveria
ser um espaço onde os adolescentes poderiam experienciar, como uma espécie de laboratório, o que vem a ser ter um filho, praticando os cuidados necessários para um bebê. Entendi
as colocações das moças como sugestões, e saliento que elas também afirmaram que as escolas devem se abrir a um trabalho permanente de discussão sobre as temáticas ligadas à
sexualidade, como algo não apenas voltado para alunos, mas também aberto às comunidades
onde inserem.
A análise das colocações dos estudantes investigados confirmou que não é possível propor uma estratégia única na aplicação de políticas públicas de prevenção às DSTs. É necessário
pensar contextos e realidades específicas, em um trabalho permanente de prevenção, de
educação sexual e de tomada de consciência com relação à sexualidade e aos significados
atribuídos a ela e às relações de gênero pelos jovens.
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Adolescentes pais e seus pais1
Renata Orlandi
INTRODUÇÃO
A
o longo de toda a história, cada sujeito exerceu a paternidade de maneira particular, no entanto, vigorava a figura simbólica do pai associada aos compromissos com o
provimento e a autoridade familiar. Segundo Rosely Costa (2003), mesmo que no exercício
da paternidade o homem exerça atividades tradicionalmente consideradas femininas, o provimento ainda é uma prerrogativa masculina. Percebe-se que, atualmente, aumentou a
visibilidade da atuação de homens pais marcada pela apresentação de comportamentos que
décadas atrás eram considerados inapropriados para o exercício da paternidade. Neste contexto, a literatura especializada tem apontado um fenômeno designado como “novas formas
de paternidades”. Este fenômeno diz respeito à “participação mais efetiva dos homens no
cotidiano familiar, particularmente no cuidado com a criança” (Lyra, 1998a, p. 194). Destaca-se, no delineamento destas novas paternidades, a importância da relação afetiva estabelecida
entre pais e filhos e a visibilidade da figura do pai cuidador.
Quanto à figura de pai cuidador, Ana Resende e Ilca Alonso (1995) perceberam que a
maioria dos pais entrevistados vivenciaram uma infância marcada pela participação ativa dos
seus pais, experiência o que favoreceu a apropriação de modelos de relações de gênero diferenciadas. Esses homens relataram que seus pais estabeleceram com eles relações marcadas
por contatos físicos e afetivos, e afirmaram ter prazer em cuidar dos seus filhos, reconhecendo a importância da figura paterna no processo de desenvolvimento infantil.
1
Texto baseado na dissertação de mestrado em Psicologia, orientada por Maria Juracy Filgueiras Toneli.
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Entre outros aspectos, uma questão muito importante no processo de constituição da maneira como um pai irá exercer a paternidade consiste nos significados dos quais o sujeito se apropriou
no contexto de sua família de origem, em meio às relações estabelecidas com seu próprio pai,
com a mãe, além dos sujeitos que compõem os grupos culturais nos quais está inserido.
De acordo com a ancoragem analítica aqui adotada, a abordagem histórico-cultural em
psicologia, os processos singulares de constituição dos sujeitos ocorrem em meio às relações
sociais que, dialeticamente, são produzidas/produtoras pelos/dos sujeitos. No contexto das
relações sociais, mediadas semioticamente, os sujeitos apropriam-se dos significados produzidos e acumulados na história de seu grupo e atribuem sentidos aos mesmos (Vygotski, 1995).
Conforme essa matriz teórica, só existem sujeitos em relação e o sujeito não é passivo,
ele se apropria dos significados compartilhados pelo seu grupo de maneira singular. O processo de constituição do sujeito, por sua vez, é estudado sob uma perspectiva histórica. Este
processo é entendido como um movimento onto e filo-genético (divisão apenas didática). Há
uma herança genética, mas ela só se objetiva nas relações estabelecidas com o meio, tendo em
vista as condições que estão postas, as relações entre elas e a maneira como o sujeito se
apropria delas no seu processo de constituição. O que nos torna humanos é a dimensão
cultural, que é condição, mas não é suficiente; assim, o ser humano é devir.
Neste trabalho, serão abordados aspectos gerais referentes à família de origem dos
adolescentes pais participantes do estudo. Tendo em vista a matriz teórica que o fundamenta, a Psicologia Histórico-Cultural fundada por Vigotski (1984, 1995), os
questionamentos dirigidos aos sujeitos entrevistados quanto às suas famílias de origem
tiveram como propósito a identificação de significados referentes ao cuidado e à paternidade que circulam no discurso familiar e engendram as significações produzidas por estes
sujeitos sobre a experiência de ser pai.
MÉTODO
Participaram do estudo como sujeitos de pesquisa adolescentes pais. A faixa etária adotada para delimitar a adolescência baseia-se no referencial da Organização Mundial de Saúde:
10 a 19 anos (WHO, 2004). Muitas críticas podem ser tecidas à rigidez do estabelecimento
de uma delimitação etária de um grupo, porém, tal escolha foi feita com fins didáticos, bem
como para tornar possível o delineamento de critérios para a localização de informantes para
a realização desta investigação. Tal faixa etária trata-se de somente uma entre outras tantas
propostas de delimitação etária identificadas na literatura, contudo, fez-se esta escolha teórica, tendo em vista o alcance mundial dessa organização, buscando-se empregá-la, na medida
do possível, de maneira dinâmica e contextualizada.
Os oito participantes desse estudo foram localizados através de suas parceiras que estavam realizando os atendimentos obstétricos no ambulatório de atendimento pré-natal do
Hospital da UFSC. Os sujeitos foram selecionados considerando-se apenas a idade e sua
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disponibilidade em participar da pesquisa. Foram utilizados como instrumentos de coleta de
informações o diário de campo, no qual foram registradas todas as impressões da pesquisadora durante as observações e encontros com os sujeitos e um o roteiro de entrevista.
No que diz respeito ao procedimento de análise das informações, empregou-se a análise
do discurso dos sujeitos entrevistados nos moldes de Eni Orlandi (2002). Buscou-se compreender o movimento dinâmico, histórico e cultural de atribuição de sentidos à paternidade e
ao lugar paterno no cuidado dos filhos. Destaca-se o fato de que com esse tipo de análise
“não se objetiva alcançar o sentido do texto, até porque, de certo modo, isto seria reduzir a
sua riqueza. Ao contrário, sua finalidade é, antes, fornecer uma interpretação dentre as várias
possíveis” (Coutinho, 1998, p. 328).
O emprego dessa estratégia favoreceu a identificação de contradições, lacunas e inconsistências discursivas que possibilitam certo rigor analítico no processo de realização da
investigação. Nesse sentido, os depoimentos foram alvo de análises em profundidade/verticais (internas a um mesmo discurso) e transversais (entre os discursos dos sujeitos).
Durante a análise do material obtido em campo, procurando-se compreender os dados
que emergiram nas situações de observação ou de entrevista, foram identificados alguns
pontos de encontro, similaridades, como também diferenças e particularidade dos sujeitos
investigados. Assim, o grau de abrangência e transposição dos “resultados” e reflexões produzidos dependerá do tipo de relação que se possa estabelecer entre o micro-universo
investigado e os universos sociais mais amplos.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Breve caracterização dos sujeitos participantes
Com relação aos resultados obtidos, no que tange ao número de filhos de cada participante desta investigação, sete eram pais do primeiro filho, sendo um pai de uma criança (de
cerca de nove meses), além do filho que sua parceira estava gestando. As idades dos sujeitos
variaram entre 16 e 19 anos. Com relação à escolaridade, verificou-se que houve interrupção
dos estudos (sete participantes) e/ou atraso escolar (todos os participantes), que ocorreu em
momento anterior à gestação da parceira. Portanto, a gravidez não determinou a evasão, mas
dificultou o retorno ao meio discente.
Sobre o estado civil, todos os participantes eram legalmente solteiros. Entre os oito, seis
consideravam-se casados, sendo que o tempo que coabitavam com a parceira, geralmente,
estava em torno do período em que a gestação ocorreu ou foi verificada.
Referente à casa onde residiam, apenas um deles (Inácio2) morava em casa própria,
adquirida e construída como fruto do seu trabalho. Fabrício, por sua vez, morava em uma
2
Todos os nomes foram substituídos com o intuito de garantir o anonimato dos sujeitos entrevistados e de suas parceiras.
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casa emprestada por um amigo, porém, havia feito uma série de mudanças no último ano e,
após a entrevista, veio a mudar-se novamente. Em geral, os participantes moravam com
familiares (seis), sendo um na casa de seu pai (Moisés) e outro na de sua mãe (Olavo); três
residiam na casa de sua família com a parceira (Amoroso, Tadeu e Oscar) e um na casa da
família da parceira (Cláudio). Quanto aos ganhos renda mensal dos participantes, três não
tinham renda, e entre os demais variou entre 300 e 600 reais.
Todos já haviam vislumbrado a paternidade antes de tornarem-se pais. Dois planejaram
a gestação com a parceira; cinco não haviam planejado a gravidez, mas consideravam o filho
desejado e um não considerou a paternidade planejada nem desejada, mas ainda assim considerou-se feliz em ser pai. Entretanto, todos declararam, em algum momento, que a paternidade
aconteceu em um período anterior ao imaginado.
SOBRE AS FAMÍLIAS DOS SUJEITOS PARTICIPANTES
O lugar da mãe na família de origem desses rapazes estava, principalmente, associado
aos cuidados dos filhos. Todos buscavam de alguma forma manter o contato com suas mães
e mesmo os que citaram a vivência de conflitos mencionaram a dimensão afetiva atrelada
especialmente à mãe, mesmo quando idealizada (Fabrício gostaria que a mãe fosse mais carinhosa). Apesar de as mães de quatro sujeitos (Inácio, Oscar, Cláudio e Moisés) trabalharem
de forma remunerada, seus lugares de provedoras não foram declarados, destacando-se o
caso de Moisés que considera “muito ignóbil, uma mulher dar pensão pra dois homens3”.
Conforme Jane Flax (1992), o antagonismo subjetivamente produzido entre homem e
mulher é abordado no contexto ocidental como uma possibilidade única, compreendida
como um aspecto natural, permanente e a-histórico da condição humana que institui um
caráter hierárquico na relação entre homens e mulheres. No que tange à divisão sexual do
trabalho, no plano simbólico, o campo do masculino ainda se encontra associado às esferas
do exercício da sexualidade e da atividade remunerada, logo ao espaço público e produtivo,
portanto, atrelado à proteção e ao provimento da família. O campo do feminino, por sua
vez, diria respeito à esfera da reprodução e do cuidado dos filhos, logo, circunscrita ao
espaço privado. Nesse sentido, o lugar da mulher na família na condição de cuidadora tem
sido apontado pela literatura especializada (Trindade, 1991; Lyra, 1997; Villa, 1997; Arilha,
1998; Trindade e Bruns, 1999; Keijzer, 2000; Olavarría, 2001b).
No caso de Moisés, assim como no de Tadeu, seus pais participaram ativamente do
cuidado com eles. A mãe de Moisés, ao contrário da de Tadeu, trabalhava de maneira remunerada. Entretanto, Moisés excluiu a contribuição da mãe na provisão a partir do momento
em que ela se separou do pai, deixando de fazer parte do núcleo familiar. Contudo, afirmou
3
O destaque em itálico será empregado para as citações de trechos das falas dos participantes desta investigação de maneira a
diferenciá-las das citações formais de outros autores.
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que caso a sua guarda estivesse com a mãe, aceitaria uma pensão do pai. Tal como verificado
por Costa (2003), homens podem exercer atividades tradicionalmente atribuídas ao campo
do feminino, como o cuidado com os filhos e/ou a realização de tarefas domésticas, mas a
atividade remunerada e o provimento dos filhos permanecem como deveres dos homens
pais. Assim, o cuidado das crianças pode compor o repertório masculino de homens pais,
porém, a paternidade legítima não admite a não provisão.
Algumas outras figuras, em sua maior parte mulheres, foram apontadas como coadjuvantes no cuidado de seis dos entrevistados. Fabrício destacou a importância de sua irmã
mais velha na sua infância, tendo ele sido cuidado junto com a sua sobrinha de idade aproximada. Na medida em que é oriundo de uma família numerosa, formada por vários núcleos
familiares, Oscar apontou a participação de um de seus irmãos e de suas cunhadas, destacando-se a importância de uma delas até o dia da entrevista. Essa cunhada era casada com seu
irmão mais velho e tinha um filho (sobrinho de Oscar) cuja idade era próxima da do rapaz,
fazendo com que os cuidados de ambos, assim como de outras crianças da família fossem
realizados em conjunto, por exemplo, as idas à unidade de saúde. Esses entrevistados apontaram um padrão de convivência familiar denominado pelo IBGE (2005) como famílias
conviventes.
Moisés disse que ele, seu pai e sua mãe contribuíam com as tarefas domésticas. Amoroso
considerou que tinha menor responsabilidade pela realização de tarefas domésticas comparando-se às suas irmãs. Olavo não falou sobre a divisão de tarefas domésticas em sua família
(em meio à narrativa marcada por agressões e abandonos no contexto familiar, não foi encontrado espaço para questionar sobre esse aspecto). Fabrício disse que sua mãe era a maior
responsável pela realização das tarefas, tendo ele passado a contribuir a partir do momento
que se considerou crescido, assim como seu pai, depois que a mãe adoeceu. Entre os sete
sujeitos que abordaram a negociação da realização de tarefas domésticas, cinco apontaram a
mãe como a maior responsável, sendo que na família de Moisés e Tadeu havia maior distribuição, apesar de, ainda assim, haver uma discreta tendência em colocar a mãe neste lugar.
Portanto, na família de origem desses adolescentes a mulher é a maior responsável pelo
trabalho doméstico, mesmo quando realiza atividade remunerada, cabendo aos demais membros da família “ajudar”. Ellika Trindade e Maria Bruns (1999) constataram que a
responsabilidade pelo bem-estar doméstico é atribuída à mãe, mesmo quando exerce atividade remunerada no espaço público.
Portanto, quanto à realização das tarefas domésticas, mesmo quando apontada a divisão
entre os membros da família, identificou-se uma tendência em colocar a mãe nesse lugar.
Neste sentido, nas famílias de origem dos sujeitos, com maior ou menor intensidade, à mãe
era delegado o lugar de cuidadora ou líder expressiva-afetiva, terminologia também empregada por Zeide Trindade (1991).
Quanto ao estabelecimento de regras, identificou-se uma diversidade de meios de exercício da autoridade e/ou formas de negociação de limites nas famílias de origem, inclusive ao
longo da história de cada família. Em relação aos demais participantes, destacou-se a violência
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sofrida por Cláudio e Olavo, o primeiro agredido freqüentemente pelo pai e o segundo pelo
padrasto. Apesar das diferenças, verificou-se uma correlação negativa entre a legitimidade da
autoridade da mãe e a presença do pai.
Nas famílias de Inácio e de Oscar não havia a presença do pai. No caso do segundo,
tratava-se do filho mais novo e o pai morrera logo após o seu nascimento. Esses rapazes
foram os únicos que apontaram a primazia da mãe no estabelecimento das regras na família.
Segundo Inácio, a mãe “Dava um puxão de orelha, botava de castigo, essas coisas assim”. Na
família de Oscar em casos de desobediência “a vara pegava”.
Tadeu e Cláudio não citaram a mãe nessa arena, destacando a autoridade do pai. O
primeiro, quando questionado sobre como considerava que o pai assumiu esse lugar, respondeu: “Não sei, ele é o homem da casa. Ele botava regra lá em casa”. O pai de Tadeu exercia
a autoridade pelo “castigo” e “às vezes me batia também, se eu fizesse alguma coisa errada”.
Cláudio mencionou o medo que sentia do pai desde quando seus pais eram casados, mas
enfatizou o período em que ambos, ele e o pai, viveram juntos após a separação do casal.
Entre outras ilustrações de eventos pautados pela violência, o rapaz narrou: “O meu pai nem
me chamava, meu pai assobiava. E se o meu pai desse o segundo assobio... ôh, o bicho pegava
lá dentro de casa! (...) ‘Vai lá comprar cerveja pra mim’. Tá, pai, tá”.
Os demais sujeitos, apesar de apontarem a participação de suas mães nesse campo,
enfatizaram a autoridade, em última análise, conferida ao pai. Amoroso disse que o pai
nunca lhe bateu, mas tinha mais medo e respeito por ele, apesar de ter sido repreendido com
maior freqüência pela mãe. Depois da morte de seu pai, a mãe passou a representar a figura
de autoridade, exercendo-a conversando com o garoto. Moisés, falando do período em que
seus pais eram casados, fez uma declaração de conteúdo semelhante ao de Amoroso:
Eu apanhei duas vezes do meu pai. Da minha mãe eu já perdi a conta. Mas o meu pai eu respeitei sempre bem
mais ele. Mesmo não apanhando, eu respeitava mais ele (...) Não sei, acho que sei lá, o jeito de falar mais
autoritário né. Tu entendia que... que se não fizesse ia ser grande o negócio.
Em princípio, Fabrício e Olavo disseram que suas mães estabeleciam regras em suas
famílias, apesar de apontarem a participação de suas mães, a legitimidade da autoridade era
conferida ao pai ou às figuras masculinas. Na família de Fabrício, diante de uma indisciplina,
“comia o pau”, sendo o pai quem batia nos filhos. De acordo com Olavo: “às vezes também
não era muito a mãe não, porque a mãe falava e ele teimava que mulher era pra ter filho do
jeito dele, entendeu?”.
Entre os resultados da pesquisa chamou a atenção o fato de que grande parte dos entrevistados se constituiu à distância ou se distanciou do pai. Alguns passaram a conviver com
padrastos com os quais estabeleceram vínculos, porém, ainda assim, nenhum deles considerou o pai substituível por qualquer outra pessoa que tenha participado de alguma forma do
seu processo de constituição. Esses sujeitos não abrem mão de responsabilizar pelo exercício
da paternidade o homem que participou da fecundação, mesmo que seja deles desconhecido
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ou se encontre distante, destacando-se, portanto, a importância do lastro genético na determinação da paternidade.
Apesar da delegação do tradicional lugar de cuidadora às mães, haja vista o distanciamento
dos pais de cinco rapazes entrevistados, na configuração familiar da maior parte deles não se
destacou a atribuição do provimento ao pai. A maioria desses pais não se enquadra no modelo tradicional de exercício da paternidade, entretanto, também não corresponde ao
delineamento das ‘novas paternidades’, abordado por autores como Michael Lamb (1983),
Resende e Alonso (1995), Jorge Lyra (1998) e Norma Fuller (2000).
Alguns sujeitos abordaram a relação de cuidados com os filhos comparando-a diretamente com a estabelecida pela sua família de origem consigo próprio. Conforme Vygotski
(1995), o processo de apropriação dos significados compartilhados por um determinado
grupo cultural só é possível através da mediação do outro. Em nossa sociedade a família é
significada como uma das maiores responsáveis pela socialização dos sujeitos.
Identificaram-se nos depoimentos registrados significados referentes ao cuidado e à paternidade que circulam no discurso familiar e engendram as significações produzidas por
esses sujeitos sobre a experiência de ser pai. Contudo, os rapazes demonstraram nitidamente
o processo de reinvenção do exercício da paternidade através do compromisso de buscar
fazer “tudo” pelo filho (mesmo quando avaliam que seus pais não o fizeram) e/ou de exercer
a paternidade de maneira diferenciada de seus pais. As estratégias que projetam para o estabelecimento de limites e regras familiares aos filhos ilustram esse compromisso. A maior
parte considerou que cabe tanto à mãe quanto ao pai essa tarefa e todos declararam o intuito
de não se valeram da violência com fins didáticos; desse modo, mesmo que em um plano
idealizado, superaram o padrão de estabelecimento de regras e limites da família de origem,
em alguns casos, pautado pelo emprego sistemático de violência, bem como pela atribuição
de autoridade legítima às figuras masculinas.
De acordo com José Olavarría (2001a), a figura do próprio pai do sujeito consiste em
um referencial do que é ser pai, seja para espelhar-se nele, seja para diferenciar-se, ou assemelhar-se e diferenciar-se do pai de acordo com o contexto. Movimentos dialéticos de constituição
das subjetividades e identificação (seja pela afirmação, negação e, sobretudo, contradição)
dos sujeitos com as posições assumidas por seus pais no processo de exercício da paternidade
também foram observados entre os participantes da investigação. Nos relatos coletados, o
lugar do pai como referência no exercício paterno foi verificado (figura que pode ser declarada como um exemplo, bem como antimodelo ou um exemplo de como não pretendem
atuar). Contudo, os sujeitos também demonstraram a importância do vínculo estabelecido
com a mãe e outros familiares, sugerindo que a referência que norteia o exercício da paternidade pode não estar centralizada no pai. Da mesma forma, apesar da relevância da mediação
familiar no processo de apropriação dos recursos sígnicos para lidar com o exercício da
paternidade, destaca-se a relevância de outros grupos e espaços entre os quais os sujeitos
também circularam, na medida em que promoveram mediações outras, além das familiares.
Neste contexto, entre uma infinidade de outros determinantes, também pode fazer parte do
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cenário o apelo da mídia que veicula múltiplas posições de sujeitos, entre elas, algumas
performances pautadas por saberes e fazeres igualitários.
Segundo os participantes desse estudo, o processo de identificação com o lugar paterno
é intenso durante toda a gestação da parceira. Alguns sujeitos atestaram também a importância da relação com o outro (parceira, familiares do casal, amigos) para este fim. Esses
participantes destacam a preponderância da concretude da presença do filho após o nascimento para a identificação com a paternidade. Conforme Vygotski (1995), a atribuição de
sentidos a um determinado evento dá-se na relação dialógica, como produto da história e da
cultura. Mesmo sozinho, em um monólogo, o sujeito está em relação, na medida em que,
como produto da cultura, apropriou-se dos recursos sígnicos disponíveis no contexto social
os quais mediam a produção de sentidos, ainda que o sujeito não esteja em relação direta
com outrem. Ainda assim, os adolescentes pais enfatizam a importância da relação objetiva
com o outro nos processos identitários com o lugar paterno.
Corroborando Fuller (2000), afirma-se que não apenas múltiplos e heterogêneos como
também contraditórios significados podem ser atribuídos à paternidade tanto por uma coletividade quanto por um sujeito ao longo do seu singular exercício da paternidade. Esses
jovens consideraram-se, uns mais outros menos, credenciados para participar dos cuidados
demandados por seus filhos. Sutil ou explicitamente, enfatizaram o vínculo entre a parceira
e a criança, insinuando a naturalização da relação mãe-filho. Assim como rompem com o
modelo tradicional de exercício da paternidade, os sujeitos, à sua maneira, também reproduzem em seu cotidiano algumas práticas filiadas a este modelo.
Semelhanças e diferenças quanto às posições assumidas pelos participantes referentes à
paternidade foram identificadas, bem como diferentes níveis de compartilhamento, seja em
relação aos significados atrelados ao tradicional lugar paterno de provedor e/ou ao de cuidador.
Isto porque não correspondem totalmente às prescrições de gênero que instituem a mãe
como cuidadora dos filhos e o pai como provedor, bem como não se satisfazem de todo os
critérios que abarcam a definição de pai cuidador.
A maior parte desses adolescentes pais explicitou o projeto de viver com a companheira
uma relação igualitária no que se refere à divisão das tarefas domésticas e do cuidado dos
filhos, incluindo o incentivo à escolarização e à inserção dela no mundo do trabalho. Porém,
deve ser lembrado que os processos de produção de significados sobre a família e de ocupação de posições sociais são dinâmicos, marcados pela volatilidade e contradição. Não
necessariamente, no cotidiano desses sujeitos, tais projetos são viabilizados, nem por vezes
negociados com as mulheres.
Referindo-se especialmente ao contexto latino-americano, Olavarría (2001b) destaca
alguns aspectos que compõem a caracterização dos homens de acordo com o modelo de
masculinidade dominante: realização de trabalho remunerado, constituição de uma família,
incluindo a filiação, provimento do lar e exercício de autoridade. Apesar do reconhecimento
do fato de que cada sujeito exerce e/ou exerceu a paternidade de maneira singular, a figura
simbólica do pai associada aos compromissos com o provimento e a autoridade familiar
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esteve presente ao longo da história Ocidental e ainda se destaca no cenário atual, assim
como foi verificado no discurso destes participantes, ainda que não haja rigidez no delineamento destas atribuições.
A REAÇÃO DOS FAMILIARES À NOTÍCIA DA GESTAÇÃO
A problemática do trabalho e da renda foi abordada por alguns dos participantes de
maneira estreitamente relacionada com a reação à notícia da gestação em sua família ou na
família da parceira. Portanto, a seguir serão abordados, brevemente, aspectos citados pelos
sujeitos sobre a reação destas pessoas à notícia da paternidade deles.
Cláudio disse que a parceira teve receio de noticiar a gestação à família dela. Segundo ele
entrevistado, o padrasto da garota, quando soube, “levou uma pancada”, mas depois aceitou
o fato. O entrevistado disse que a opinião do padrasto da parceira, de qualquer maneira, não
o interessava, pois não era ele quem iria prover a criança. Destacou que quando a gravidez
foi constatada, ele estava morando com a parceira e um amigo em outro lugar e que foram
a mãe e o padrasto da parceira que pediram para o casal morar na casa deles. Contudo,
disse que já naquela época estava desempregado e que as condições em que moravam eram
precárias. No momento da entrevista, a família da parceira era responsável financeiramente pelo casal.
Sobre a reação da família da parceira à notícia da gestação, Amoroso narrou:
A família dela que não gostou muito. Queriam que ela tirasse, tudo. Eu disse: ‘Não, tirar, tu não vai’. Peguei
e carreguei ela pra minha casa. (ri) Depois de uns seis, sete meses, eles já começaram a tratar bem, hoje eles
adoram ele. Credo. Fazem de tudo por ele. E agora, inclusive, ela engravidou de novo e eles não deram a
mínima, eles sabem que caso o que precisa eu dou. A gente não pede nada pra eles. Aí eles nem ligaram
dessa vez.
Quanto à sua mãe, destacou a dimensão afetiva entre avó e neto: “Na verdade, a primeira palavra que ele falou foi vovó, pra minha mãe”; “Ah, ela é só chegar perto e ele já pula”.
O discurso de Tadeu sobre a aceitação da família da sua condição de pai estava estreitamente relacionado com aspectos de ordem financeira. Segundo Tadeu,
No começo, o meu pai não aceitava. Mas depois eu conversei com ele e ele começou a aceitar assim, né. Ele
disse pra mim que não era a hora. Mas depois ele aceitou (...) Ele dizia pra mim que eu tinha que fazer o meu
pé de meia, depois, pra ter um filho, senão não teria como sustentar.
Quanto à relação do rapaz com a família da parceira, pude observar uma situação
protagonizada por Tadeu e sua sogra, cujo cenário consistiu em uma sala da maternidade
onde a filha dele estava sendo examinada. Ela o criticou por ter ficado com a filha no colo
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durante a primeira noite na maternidade, considerando que estaria “mimando” a criança. O
rapaz, por sua vez, argumentou que o bebê estava chorando e que o fez por respeito às
demais pessoas internadas no mesmo quarto. Encerrado o exame na criança, apesar da familiaridade desse pai com sua filha, a sogra precipitou-se para pegá-la “é melhor que eu pegue”,
em seguida, sorrindo, afirmou que ele estava “sem experiência”. Essa mulher, portanto, pareceu considerar-se mais capaz do que o adolescente pai para cuidar da criança tendo em
vista, provavelmente, duas categorias: gênero e geração. Por tratar-se de uma mulher e possuir mais idade que o rapaz, naturalizou que estaria mais apta para a tarefa. Entretanto, em
seguida reconheceu que estava “sem experiência”, sugerindo que a habilidade para realizar
tal atividade demanda um conjunto de aprendizagens que devem ser atualizadas. No que diz
respeito à questão geracional, Lyra (1997) afirma:
Apreendemos uma relação perversa da sociedade adulta com o adolescente: ao patologizar a paternidade
adolescente, sempre e por princípio, acaba por patologizá-la mesmo, pois dificulta ao adolescente pensar,
prevenir ou assumir sua condição de pai real ou virtual (p.11).
Moisés, ao abordar a experiência de ser pai aos 16 anos, declarou: “O mais difícil de
tudo foi dar a notícia pra mãe dela. Pra minha mãe não teve problema nenhum, pro meu pai
também não teve. Pro pai dela também não teve. (...) Ela chorou um monte e tal. Mas depois,
tudo certo, felizmente.” A mãe do rapaz incentivou e acompanhou o casal quando a garota
realizou o exame para verificar a gravidez, “minha mãe é muito amigona”. Quanto ao pai da
parceira, afirmou: “não é aquele pai (...) É pai-pai, pai de nome. (...) ela tá grávida, se ele
fosse, se ele gostasse bastante dela (...) pelo menos uma vez por dia ele ia ligar pra ela pra
saber”. No momento da entrevista, a mãe da parceira estava responsável pelas despesas relacionadas à gestação, mas o rapaz imaginava que, futuramente, seria ele.
Segundo Moisés, quando o filho completar em torno de um ano de idade, o casal pretende
morar em uma casa que a mãe dele teria em um bairro de Florianópolis. O rapaz afirmou que sua
parceira iria continuar estudando em uma escola particular, supondo que a mãe dela pagaria a
mensalidade. “Ela eu quero que continue estudando porque a mãe dela é funcionária pública, eu
quero que ela também faça um concurso público (...) Porque ser funcionário público é relax”.
Olavo, que nunca havia trabalhado e estava morando com a mãe, declarou que, em
momentos de conflito, quando discutiam, a mãe costumava lhe dizer: “tens que arranjar uma
casa pra ti, não sei o que”. Na data do nascimento de sua filha, Fabrício, que havia sido
expulso da casa de seus pais em Morro da Fumaça, estava morando em Criciúma e dependia
da mãe para conseguir passagens de ônibus para visitar a filha internada no Hospital Universitário em Florianópolis. Após a alta, a família da parceira havia preparado um quarto para a
criança na casa deles em Biguaçu para que mãe e filha tivessem o acesso a Florianópolis
facilitado, visando a continuidade ao acompanhamento do bebê na maternidade nos primeiros meses. Após alguns meses, o casal passou a morar em Morro da Fumaça, em outra casa
que não a dos pais dele.
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Inácio e a parceira haviam planejado a gravidez e estavam morando na casa que o rapaz
havia construído com suas economias. Sobre a opinião de seus familiares e os de sua companheira em relação à gestação, disse que: “São tudo a favor”. Apesar de possuírem casa própria,
o casal iria morar na casa da mãe do rapaz durante o puerpério, para que a mãe e a avó dele
possam auxiliar nos cuidados da parceira e da filha nesse período, “porque eu trabalho”. O
casal morava perto delas e ambas se disponibilizaram para tal tarefa.
Segundo Oscar, a sua mãe “ficou faceira”. Isto porque seus sobrinhos ainda na infância
são todos do sexo masculino e “daí uma guria agora”. Quanto à reação da mãe da parceira
que tem 14 anos e era responsável pelos cuidados dos irmãos mais novos: “A mãe dela ficou
meia... assim, né. (...) Ela ficou dizendo que ela é muito nova. Daí eu falei pra ela que eu
também achava, ela que queria. Ela (parceira) disse que ela queria. E a mãe dela disse: ‘Ah,
não podia fazer nada, né, se ela quer”.
O roteiro de entrevista consistiu em um referencial do que se esperava que fosse abordado pelos interlocutores para os fins da pesquisa tendo em vista a problemática dos sentidos
atribuídos por eless à paternidade e à relação de cuidados aos filhos. Nesse sentido, a abordagem da especificidade da reação das famílias de origem à gestação de acordo com a perspectiva
dos sujeitos não estava contemplada neste roteiro, porém, tendo em vista a flexibilidade, esta
temática foi de alguma forma tratada por todos os sujeitos. Daniela Levandowski (2001)
chama a atenção para a importância da participação da família da parceira no decorrer da
gravidez, bem como a de sua própria família, especialmente, no que se refere à experiência
com modelos de relação apresentados pelo próprio pai, geralmente, considerados negativos
pelos adolescentes pais por ela abordados.
Maria Auxiliadora Dessen e Marcela Braz (2000) afirmam que, no processo de transição
da família face ao nascimento de uma criança, as mudanças no cotidiano exigem uma adaptação de seus membros às novas demandas. O sucesso desta reconfiguração, de acordo com
as autoras, está diretamente relacionado à atuação da rede social de apoio das famílias.
No que diz respeito ao cuidado, considera-se importante descrever, mesmo que sucintamente, o contexto imediato no qual a criança estava ou seria inserida após o nascimento. Isto
porque as famílias formadas pelos participantes não correspondem ao modelo nuclear caracterizado pela configuração: mãe, pai e filho(s). Somente Inácio morava com a parceira em
domicílio separado das famílias de origem de ambos, mas ainda assim, a mãe e a avó do
rapaz, que moravam nas proximidades, haviam se disponibilizado para contribuir com os
cuidados do bebê, ao menos durante o puerpério da parceira. No dia da entrevista, Fabrício
também estava morando com a parceira (apesar de ela ter passado dois meses acompanhando
a filha internada no HU). Contudo, tanto no ano anterior à pesquisa, quanto durante sua
realização, o casal ou a parceira realizaram mudanças de casa sucessivas, tendo morado em
diversas cidades, sozinhos ou na casa de familiares.
Sobre a estrutura da casa onde a criança seria abrigada, Cláudio disse que no
“apertamento” onde morava com a companheira e a família dela não havia espaço para
colocar o berço de sua filha e ele não soube responder como iriam resolver o problema.
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A mudança da companheira de Tadeu para a casa de seus pais implicou o deslocamento de
sua irmã, que passou a dormir no quarto dos pais. Moisés planejava mudar-se para uma casa
disponível de sua mãe, mas mencionou o projeto de mudar a configuração da casa da sogra
para abrigar a ele e o bebê junto com sua parceira. Olavo declarou que em momentos de
discussões entre ele e a mãe, ela lhe pediu para que se mudasse, já que agora iria ser pai.
Oscar também contava com os seus familiares, tendo, durante toda a entrevista, narrado
a cotidianidade do cuidado coletivo das crianças de sua família. Olavo, por sua vez, preferia
que a tia da namorada cuidasse dela e de seu filho, pois ela “cuida mais direitinho (...) mulher, topa um pouco mais. (...) Enquanto isso eu vou batalhando”. Porém, ele não estava
empregado no dia da entrevista.
O fato de que a maior parte dos sujeitos estava morando na casa de familiares ou próximo deles sugere que as implicações da paternidade, de alguma forma, também poderiam
estar atuando nas famílias de origem. Verificou-se, em maior ou menor grau, a contribuição
dos familiares dos rapazes e/ou os de suas parceiras no que se refere às demandas das gestantes, dos próprios participantes e, especialmente, dos filhos destes casais. Na medida em que
os pais e/ou responsáveis por esses sujeitos não foram entrevistados, a temática não foi
aprofundada, bem como não consistia no problema da pesquisa, porém destaca-se a importância das implicações, do impacto, das conseqüências, enfim, dos sentidos atribuídos à
paternidade na adolescência por famílias de adolescentes pais. Sendo assim, considera-se
relevante a realização de estudos que contemplem discursos da família extensa de adolescentes pais (pais e mães) face à paternidade na adolescência, posto que a investigação referente
à dinâmica da rede de apoio destes sujeitos constitui uma lacuna neste campo de pesquisa.
Daniela Levandowski & César Piccinini (2002) apontam que os jovens encontram dificuldades no exercício da paternidade; entretanto, tais complicações não são exclusivas, e
são também enfrentadas por pais adultos, e, em ambos os casos, superáveis, sobretudo,
quando os sujeitos contam com a contribuição da sua família e da família da companheira.
Trindade & Menandro (2002) também constataram a importância do suporte da rede familiar no processo de adaptação dos sujeitos às mudanças no cotidiano face à gravidez na
adolescência, tal como apontado em diferentes graus de destaque por todos os participantes desta investigação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, buscou-se apresentar duas perspectivas inter-relacionadas do
discurso de adolescentes pais sobre suas famílias de origem: a família de origem como referência face ao processo de constituição do adolescente frente à paternidade; e o lugar de seus
respectivos familiares como rede de apoio na transição para a parentalidade.
A família de origem de cada pai representa um importante aspecto no delineamento do
exercício da paternidade. Entretanto, na medida em que os sujeitos são ativos no processo de
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atribuição de sentidos aos significados compartilhados no decorrer de seu processo de constituição (Vygotski, 1995), além do fato de que os pais circulam em outros grupos e sistemas
além do familiar, verificam-se processos identificatórios contrastivos que estão em jogo em
meio a uma série de mediações, engendrando projetos diferenciados como o de exercer a
paternidade de maneira outra em relação à sua referência paterna. Portanto, parte-se do
pressuposto de que cabe às pessoas (personas) a co-autoria dos personagens que vivenciam
no cotidiano (Maheirie, 1997; Maheirie, 2002). Tendo em vista a perspectiva de que o processo de constituição do ser humano é devir, pensa-se no exercício da paternidade como um
projeto aberto e inacabado, além da atuação no lugar de pai atual, que não pode ser esgotada,
nem totalmente capturável.
Dessen e Braz (2000) destacam a importância da rede de apoio de uma família em momentos de transição decorrentes do nascimento de uma criança, pois esse fato demanda
arranjos e modifica a rotina de qualquer família, independentemente da idade cronológica
dos pais e/ou responsáveis pelo bebê.
Neste momento, pretende-se chamar a atenção para a relevância de propostas
metodológicas voltadas para o estudo sobre transições familiares decorrentes do nascimento
de filhos. Considera-se importante a realização de estudos sobre a paternidade na adolescência que contemplem a observação da família de origem dos adolescentes, não perdendo de
vista o contexto cultural no qual essa família se insere e os grupos culturais dos quais seus
membros fazem parte.
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O velho atualizado, o novo reinventado:
homens, masculinidade tradicional
hegemônica e relações amorosas
Zuleica Pretto
E
ste artigo consiste numa síntese de minha dissertação de mestrado realizada no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC em 2003, intitulada: Como tecer a mais
antiga/contemporânea trama: significação de amor segundo homens jovens universitários1. O
pressuposto central da pesquisa era de que ainda havia uma participação importante de padrões culturais tradicionais que serviam como mediadores nas vivências e concepções amorosas
apresentadas por homens jovens. Dentre eles, o modelo de masculinidade hegemônico2 e
uma diversidade de concepções tradicionalmente aceitas sobre o amor, tais como a platônica
(retratando um amor extramundano, inato e sagrado); do cristianismo (instituindo um amor
imaterial, incondicional, ligado ao sacrifício e a constituição da família); do amor paixãoromântico (assinalando exclusividade, idealismo, perfeição e a paixão transgressora de normas
sociais); bem como noções mais modernizantes, como o amor confluente (Giddens, 1993),
onde os parceiros buscam a auto-realização individual e o amor perde o caráter do para
sempre e único, baseando-se na confiança e no contrato negociado pelo casal; o casal igualitário (Salém, 1989), em que a díade é objeto de reflexão, idealização e unificação, descolada
de outras relações sociais; por fim, o amor pensado nesse trabalho a partir da leitura das
obras dos existencialistas Jean-Paul Sartre (1994, 1978a, 1978b, 2001, 1965, 1947) e Simone de Beauvoir (1949, 1980), que apontam um amor contingente, constituído historicamente,
1
2
Orientação da Prof. Dra. Maria Juracy Filgueiras Toneli e co-orientação da Dra. Kátia Maheirie.
A masculinidade hegemônica tradicional é uma ideologia e constitui-se como um modelo de masculinidade central e hegemônico
nas sociedades ocidentais, especialmente na América Latina. É um paradigma dominante de masculinidade que tem duplo efeito:
concepção de masculinidade e orientação de conduta (a norma), ao mesmo tempo em que supõe formas diversas no grau de
adesão e negação desse modelo. Constitui, portanto, um saber ideológico que orienta, motiva e interpela os indivíduos concretos
constituindo-os como sujeitos e espera uma resposta sujeitada à norma (Abarca, 2000). É sustentada, ainda, em fenômenos como
homofobia, hegemonia, cumplicidade, heterossexualidade, afastamento emocional, virilidade, pressão e exclusão (Connel, 1997).
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constituinte de singularidades e da coletividade, o qual independe de modelos estabelecidos
pelos parceiros, mas sustentado no projeto comum da parceria. A curiosidade, portanto, era
conhecer que arranjos eram realizados por homens jovens a partir dessas mediações.
Essa questão se configurou como importante tema de pesquisa devido à sua centralidade
em nossa cultura, bem como pela dificuldade aparente encontrada pelas pessoas para lidar
com ela. Como sintetiza Jurandir Freire Costa (1999), a temática amorosa é tão atraente
como propiciadora de sofrimentos aos sujeitos, haja vista o alto índice de separações e a
“máquina de reparar amores infelizes” que foi acionada para sanar problemas amorosos na
atualidade, entre elas, os profissionais da psicologia, em especial, no trabalho de psicoterapia.
Ao adentrar na temática amorosa, logo percebi que se tratava de um contexto complexo.
Envolvia relações afetivas, questões de gênero, transformações históricas associadas à vida
pública e vida privada, bem como diversas crenças e ideologias. Assim sendo, adotou-se uma
perspectiva histórico-dialética, na qual o amor não pode ser compreendido como um fenômeno isolado do contexto existencial dos sujeitos, inato, puramente pessoal. Como todas as
relações entre sujeitos, o amor consiste numa possibilidade humana, criada e recriada pelos
homens de acordo com os instrumentos históricos disponíveis, com suas limitações e superações, negações e afirmações, numa dialética concreta entre a realidade histórica coletiva e a
singular. Para pensar o amor, portanto, torna-se necessário considerar a totalidade histórica
na qual ele está inserido.
Além de várias leituras de gênero que pensam as masculinidades, tais como Michael
Kimmel (1997), Robert Connel (1997), Norma Fuller (1995, 1997), Humberto Abarca (2000),
Pedro Paulo Oliveira (1998, 2000) entre outros, me instrumentalizei basicamente com trabalhos dos seguintes autores: Richard Sennet (1999) e Anthony Giddens (1993), que discutem
a questão da intimidade, Costa (1999), que faz uma análise crítica a respeito do amor no
ocidente, Sartre (2001), que reitera a crítica, nomeando a forma de amor no ocidente como
sado-masoquista. Embora esses autores tenham proveniências teóricas e metodológicas diversas, realizam uma análise crítica do amor e da intimidade no sistema neoliberal ocidental
e, por esse motivo, utilizei suas considerações neste trabalho.
O que me inquietava é que essas novas compreensões e pesquisas sobre relacionamentos
– apontados e elucidados muito bem nos trabalhos de Giddens (1993) e Tânia Salém (1989),
principalmente nos anos 90 – pouco se detinham em como os sujeitos, no caso homens
jovens, compreendiam de fato o amor, o que, de certa forma, fundamentava o movimento
deles em direção a um relacionamento afetivo-sexual. Isso acarretou a curiosidade em saber
se a concepção de amor oferecida era realmente capaz de suportar novas formas de relacionamento e de fato os possibilitava, bem como, se não fosse capaz, o quanto isso aumentava a
probabilidade de desencontros e fracassos nos relacionamentos. Buscava saber se se tratava
de uma mudança nas pautas de gênero e, em caso afirmativo, se esse redimensionamento
também ocorria com relação à concepção de amor.
A opção por investigar o discurso de homens sobre o amor visou acompanhar os indicadores dos estudos atuais de gênero. Evidencia-se, desde a década de 1980, um aumento de
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estudos sobre masculinidades, propondo repensá-las a partir dos próprios homens e não
apenas das insatisfações das mulheres referentes a eles3. Sobre as relações amorosas, eram
escassos os trabalhos que retratassem a visão masculina sobre o amor, percebendo que a
questão sempre aparece tangenciada, não diretamente abordada.
A especificidade de uma geração e de uma situação social se fez um imperativo. O recorte pela juventude universitária deveu-se ao fato de a universidade ser vista como um centro
de formação e expansão de novos saberes ou conhecimentos, pelo estilo de vida diferenciado
que ela acaba possibilitando aos sujeitos, pelo próprio convívio com outros jovens. A opção
pelo curso de Engenharia Mecânica foi por consistir num território eminentemente masculino, onde homens estabelecem contatos freqüentes entre si – 95, 4% dos alunos matriculados
em 2002 na UFSC eram do sexo masculino.
Foram realizadas entrevistas individuais4 semi-estruturadas e um grupo focal com cinco
jovens universitários do curso de Engenharia Mecânica da UFSC, referidos aqui como (B),
(L), (I), (T), (V). Quatro entrevistados eram provenientes de Santa Catarina, de cidades situadas entre 100 e 150 km de Florianópolis e um era do Paraná. Um deles morava em pensão,
outro com a família e os outros três em repúblicas, também com familiares (irmãos ou primos). A idade dos entrevistados ficou entre 21 e 23 anos. Três deles estabeleciam namoros e
dois revelaram estar procurando uma namorada. Todos ingressaram na Universidade no primeiro semestre de 1999, no momento das entrevistas cursavam a 7a e 8a fases. Nenhum
apresentava reprovações no curso e todos trabalhavam em laboratórios do Departamento de
Engenharia Mecânica da UFSC, como bolsistas de pesquisa, referindo o mestrado como
possibilidade futura.
Tanto nas entrevistas como no grupo focal, o qual teve o objetivo de complementar a
investigação sobre as concepções de amor e relacionamentos dos jovens, os entrevistados
mostraram-se bem-humorados e dispostos a falar, não apresentaram pressa, pelo contrário, ampliavam as questões. Não posso deixar de salientar a riqueza de informações que o
grupo focal trouxe à pesquisa, uma vez que as questões expostas pelos sujeitos transcenderam em muito as falas apresentadas nas entrevistas individuais. Além de ampliar as perguntas
por mim colocadas, questionavam entre si, ponderavam, refletiam, elaboravam. De modo
geral, houve predomínio de convergências de opiniões, um completava o outro, sendo
poucas as discordâncias, o que possibilitou, em muitos tópicos, que formulassem concepções em conjunto.
3
Os estudos de gênero, no reflexo do movimento feminista, colocam a questão dos homens e seus deveres, chegamos a um
momento que se faz necessário pensar também em quais são os direitos dos homens e como garanti-los. A inclusão dos homens em
discussões sobre sexualidade e direitos reprodutivos, e a inserção masculina em serviços de saúde são exemplos disso (Toneli, 2006).
4
Os depoimentos foram gravados e transcritos em sua forma original.
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CONSIDERANDO ALGUNS GRUPOS MEDIADORES: A FAMÍLIA,
O GRUPO DE AMIGOS E A UNIVERSIDADE
A dialética sujeito singular-grupo é central para compreendermos o sujeito e determinada situação social. Sartre (1968b) afirma que “a pessoa singular encontra-se condicionada
pelas suas relações humanas (...) vive e conhece mais ou menos claramente sua condição
através de sua pertinência a grupos. A maioria desses grupos é local, definida, imediatamente
dada” (p. 140), por exemplo, à família, a comunidades, os amigos; “há um condicionamento
mútuo de todas essas relações humanas e das condições materiais configurando singularidades” (ibid., p. 146), ou seja, a estrutura dos grupos nos quais um sujeito está inserido vai
delineando sua singularidade, estabelecendo uma mediação entre ele e os costumes, as normas e a ética de outras integrações maiores.
Nesse sentido, os grupos em que os entrevistados estabeleciam relações ofereciam
indicativos para a compreensão de como se constituíam no mundo e, no caso da pesquisa,
como constituíam seu perfil amoroso. A família, o grupo de amigos e a própria condição
universitária que vivenciavam estruturavam um campo de possibilidades, muitas vezes contraditórias, na medida em que apresentavam valores, moralidade, conhecimento e saberes
diversos. Tais grupos constituíam-se como um tecido psicológico ou suporte existencial, caracterizando a história dos sujeitos desta ou daquela maneira.
Todos descreveram as relações de gênero na família de origem como tradicionais, obedecendo à divisão de tarefas por sexo; em três casos, a mãe abandonou o emprego para cuidar
dos filhos e em dois as mães trabalhavam como funcionárias, mas se responsabilizam pela
organização da casa; citam também as diferenças em suas relações com os pais e mães: com
elas havia maior proximidade e cumplicidade, com eles predominava um distanciamento,
calcado na autoridade e controle de desempenho na esfera pública.
No que diz respeito aos relacionamentos de amor pais/mães, nenhuma separação
caracterizou suas histórias; os pais sempre se entenderam bem no casamento e “tinham
uma vida boa” (B), ocorrendo algumas “brigas por besteiras” (T). Cumpre destacar que
os entrevistados tiveram dificuldades para desenvolver a questão, não explicitando
ligações entre suas experiências amorosas e a de seus pais, o que pode apontar para o
fato de que a relação dos pais era vivenciada por eles no plano da espontaneidade, em
que as situações aparecem como naturalizadas, dadas, sem a mediação de uma reflexão
crítica.
O grupo de amigos foi referido constantemente em suas vidas amorosas, tanto no momento que estavam à procura da parceira, quanto no início de um relacionamento ou enquanto
o estavam vivendo. Tal participação aparece em termos de incentivo, aprovação ou crítica
por parte dos amigos quanto a suas posturas diante das garotas, à beleza ou outras qualidades
das parceiras. Para eles, os amigos podem favorecer, mas também atrapalhar o estabelecimento das relações. No último caso, poderiam possibilitar uma traição, criticar a recusa por
uma garota, uma vez que recusar oportunidades afetivo-sexuais com mulheres não condiz
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com o mito do homem viril, fazendo com que se sentissem obrigados a fazer o que de fato
não desejavam “eles não sabem o que eu penso e desejo” (T).
Fuller (1995), Abarca (2000), Hubert Lafont (1987), Oscar Vázques (2000) discutem a
importância do grupo de pares na construção da identidade masculina. Considerado um
veículo central para a promoção do modelo de masculinidade hegemônico, tal grupo se
torna uma fonte de segurança, aceitação social e identificação viril, demarcando hábitos
próprios de conduta entre os homens.
No que se refere à condição universitária, os entrevistados estavam inseridos num curso
que se destaca como um dos melhores do país, conforme informações do INEP (1997),
sendo comum as empresas catarinenses solicitarem para contratação engenheiros mecânicos
com formação na UFSC. Tal reconhecimento social oferece aos estudantes do curso certa
margem de segurança em seu futuro profissional, com um retorno financeiro de curto prazo,
mas, também, implica empenho e dedicação nas disciplinas que cumprem, devido à cobrança
e à exigência. Nesse aspecto, com exceção de (B), os outros quatro entrevistados disputavam
as melhores notas da turma. Referindo o cotidiano do curso retratam:
Engenharia é assim, o pessoal tem todos os horários preenchidos, tem laboratório que ocupa bastante
tempo... é uma correria, a gente não pára (V).
Estou aqui para estudar mesmo, é meu objetivo, quero me formar bem (I).
Essa característica acabou fazendo com que, muitas vezes, dessem prioridades aos estudos e ao trabalho, deixando em segundo plano as festas e ‘zoeiras’, bastante comuns no
círculo universitário, incentivado, em grande parte, pela vida em grupo.
Não sou muito de sair... tenho todos os horários preenchidos (T).
Revelaram que a universidade promoveu mudanças em suas vidas: a saída da casa dos
pais, a mudança de cidade, o conhecimento de pessoas e outros estilos de vida, alguns aderidos, outros recusados, a aprendizagem, a responsabilidade exigida, o consumo de bebida nas
festas, o fato de praticamente só conhecerem mulheres na noite, uma vez que a “engenharia
só tem homem” (T) e o próprio modo como percebem os relacionamentos amorosos, conforme apontam:
Você mora sozinho, começa a ter mais responsabilidade, conhece outras pessoas, começa a pensar diferentes essas coisas, não quer ficar por ficar, quer ter uma pessoa para você (I).
Acho que o que mudou foi o tipo de mulher que me interessa também, antes eu só procurava uma menina
bonita para ficar, se não fosse eu não ficava, hoje já olho para o jeito dela (V).
Já (B) retrata que a universidade abriu possibilidades de conhecer mulheres, pelas festas,
pelo grupo de amigos, pelas características de Florianópolis, elas aparecem como quase
irresistíveis, fazendo com que ele freqüentemente traia sua namorada que está no Paraná
“imagina você sem namorada aqui, você desbunda”.
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A referência amorosa dos pais, caracterizada por ser uma união duradoura, calcada em
valores tradicionais: casamento, família nuclear, a associação mulher/casa/filhos e homem/
trabalho; o comprometimento com o futuro profissional, a seriedade atribuída aos estudos
que, em muitos momentos, os afastava das festas universitárias, onde poderiam estabelecer
mais contatos com as mulheres e com o grupo de pares em situações de divertimento são
características que, de certa forma, contribuíram para dar forma ao modo como os jovens
entrevistados buscavam e viviam as relações com as mulheres e com o amor, bem como
conferiam ao grupo características singulares.
O PERTENCIMENTO A UMA ÉPOCA COMUM:
A NECESSIDADE DE UMA RELAÇÃO
Os participantes do grupo revelaram semelhanças quanto a desejos e planos no que diz
respeito a seus relacionamentos amorosos. Isso indica, sem dúvidas, o pertencimento a uma
época histórica comum, de onde se tornou possível identificar algumas mediações apropriadas por eles quanto à forma de amar.
Todos desejavam viver relações amorosas, mais especificamente na forma de namoro e
com vistas à constituição de família. O início da procura ocorria por volta de 15 anos e se
mantinha de forma intensa na juventude. Assim, o lazer era perpassado pela questão amorosa, sair, em especial na noite, quase se tornava sinônimo de conhecer mulheres.
Revelaram o desejo por relacionamentos duradouros em detrimento de relacionamentos
breves como o ficar e rolos. Segundo Lúcia Afonso (2001), o namoro demarca um vínculo
amoroso, onde há reciprocidade e desejo de estar junto e o sentimento se faz a principal
experiência amorosa, diferente do ficar e rolo que se pautam na atração e prazeres imediatos.
Isso fica expresso nas falas abaixo:
Comecei a pensar que tudo o que eu estava fazendo, ficar com um monte de mulheres, não trazia nada...
‘o que adianta fazer uma estatística gigante e não significar nada? (L)
Nunca fui de ter muitas mulheres, ficar com várias ao mesmo tempo, como muitos colegas fazem, meio
que em busca de status (...) aquele negócio de ficar por ficar, beijar e depois voltar para casa não me
agrada mais (...) sempre pensei ‘ah, quero uma mulher para mim (V).
Percebia-se, assim, que o futuro dos entrevistados estava garimpado pela presença de
alguém, no caso, uma mulher, uma companheira:
Eu posso até ficar solteiro. Não que eu queira ficar sozinho, não consigo me imaginar sem ninguém. Se eu
ficar solteiro é porque não quero a pessoa que está do meu lado, mas eu quero outra (V).
Quando estou sozinho sinto falta e vou atrás de outra. Parece um ciclo (I).
A gente sempre está procurando, não é procurar qualquer uma, é alguém especial (V).
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Tem um vazio, um espaço reservado que só pode ser preenchido por ela (...) eu fico orando direto para
Deus colocar essa pessoa no meu caminho (T).
A preferência por namoros, também parecia estar associada a determinado estilo de
vida. Os entrevistados buscavam estabilidade em um namoro, na medida em que desejavam
ter uma vida mais tranqüila e relaxada, sem ficar procurando constantemente por alguém o
que julgam “cansativo” e “vazio”. Comentava (L) “quando a gente namora fica mais confortável, é um outro estado, dá para relaxar”.
As qualidades que esperavam de uma parceira, em sua maioria, coincidiam com valores
tradicionais atribuídos à mulher “...ela não deixou muito nem pouco... se a menina for muito
fácil na primeira noite o cara já fica assim ‘o que é isso’”? (I). A boa conduta, bem como o desejo
por um namoro e casamento, docilidade, meiguice, discrição, beleza, charme, ser calma, compreensiva, carinhosa, ter habilidades em cuidar eram características importantes na mulher. Ao
mesmo tempo, salientaram a importância de a mulher ter seu espaço, sua profissão, sua independência, sugerindo aspectos de superação de padrões dicotômicos de gênero5.
EXPECTATIVAS NA RELAÇÃO AMOROSA
Para os jovens, existem aspectos indispensáveis numa relação: carinho, companheirismo,
compreensão, comunicação, diálogo, respeito à singularidade do outro, inexistência de proibições e imposições, fidelidade, comprometimento, ajuda mútua e apoio. Assinalaram a
importância do projeto singular do parceiro, as particularidades históricas de cada um, recusando, assim, o entendimento do amor como a absorção do outro, como aponta o amor
romântico e o sadomasoquista.
Ressaltaram o fato de a parceira ter a mesma perspectiva de futuro, o que envolvia ter
objetivos comuns, sendo um deles a constituição de família e a conjugalidade. Isto é, a existência do que, a partir da teoria de Sartre, pode-se chamar de projeto comum:
As características de um e de outro tem que ir batendo, aí o amor pode vir mais rápido (...) quando
começam a aparecer as diferenças, começam os problemas (I).
Acho que o que incomoda mais é uma visão de vida diferente, uma perspectiva de futuro diferente, aí fica
complicado. Se tu tens um sonho desse jeito, um futuro com aquele teu jeitinho, e tu vê que a pessoa que
está do teu lado não tem, aí incomoda mais... pequenas coisas dá para contornar. Quando tu pensa em
algo maior, quando um quer ir para um lado e outro por outro, aí com certeza não vai dar certo (L).
5
Apesar dessa posição de muitos homens ser evidenciada nas camadas médias, identifica-se, em paralelo, a ocorrência freqüente de
retrocessos, nos quais a hierarquia e a submissão da mulher vêm novamente à tona.
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Partindo da teoria sartreana, podemos refletir que as perspectivas diferentes incomodam
devido ao fato do sujeito não se sentir mediado em direção a seu projeto, não se perceber
reconhecido no seu desejo de ser e, assim, não se ver lançado para ele por meio da parceira.
Isso, para eles, poderia acarretar o fracasso da relação.
Os entrevistados não cogitaram relações abertas, bastante consideradas na atualidade,
mas, sim, colocaram a fidelidade como fundamental e indispensável na relação, sendo que se
uma traição ou interesse por outro ocorresse poderia estar denotando o fim do interesse no
parceiro e na parceria. Revelaram, contudo, a complexidade da questão, uma vez que culturalmente para o homem é natural e até esperado a traição:
Tem a ver com o jeito que a gente aprendeu, a mãe desse rapaz que falou isso ‘vocês não tem que
namorar, tem que viver a vida e não sei o quê’, a gente fica um pouco com isso na cabeça. Fica aquele
negócio assim de ter que aproveitar, de não saber se é isso mesmo...acho que tem um pouco isso...uma
certa pressão da sociedade. Me sentia um pouco diferente...até tentei ser mais cafajeste, mas não me senti
bem (L).
Novamente, padrões tradicionais de gênero invadiam o campo de possibilidades dos
sujeitos. Isso torna possível inferir que o modelo de masculinidade hegemônico atua como
uma mediação impositiva para os homens na nossa cultura. Com menor ou maior intensidade, na casa ou na rua, na música, nos livros, na televisão, os valores da masculinidade ideal
são transmitidos e dificilmente há possibilidade de recusá-lo completamente, seja para o
homem, seja para a mulher.
As principais dificuldades vividas por eles nos relacionamentos se configuraram como
um contraponto a esses desejos. Diferentes perspectivas de futuro, diferentes expectativas
em relação ao outro; falta de diálogo; falta de paixão; restrições ao espaço/respeito à liberdade/singularidade do outro; excessos de ciúme por parte da namorada seriam problemas que
poderiam acarretar o insucesso do relacionamento.
É importante destacar que eles demonstraram rever, em diversos pontos, a posição de
gênero tradicional, revelando a busca por maior eqüidade entre homens e mulheres nos
relacionamentos, apesar de muitas vezes não conseguirem realizar efetivamente essa busca.
Um dos pontos é quanto à subordinação da mulher ao ambiente doméstico, mesmo sendo
essa a posição adotada pela maioria de suas mães. Todos julgaram importante a parceira ter
ambição profissional e dirigir-se a ela, embora muitas vezes tenham salientado a feminização
e a meiguice da mulher como um limite.
A tentativa de superação de padrões de gênero hegemônicos foi revelada igualmente, na
maneira como, repetidas vezes, diferenciavam-se de outros colegas, criticando estilos de vida
que banalizam a posição feminina e o amor. Isso ficou ilustrado na tentativa de superação da
questão do acesso incondicional às mulheres, das conquistas episódicas e passageiras, dos
jogos de sedução masculinos que visam à prova da virilidade. A partir disso, revelaram um
desejo e, muitas vezes, um movimento concreto de negação de valores considerados modernos,
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como o imediatismo, o prazer individual, a cultura do lazer e consumo, acusando-os de
banalização do outro e dos sentimentos; como contraponto, denotaram a preferência a
sentimentos historicizados, temporalizados, duradouros, menos transitórios, primando pelo
comprometimento com o outro, por um investimento existencial que envolve o eu de cada
um em sua totalidade e, assim, com uma forte demanda de futuro.
A crítica ao individualismo e à banalização do amor faz pensar em alguns aspectos que
não são contemplados, pelo menos diretamente, nos trabalhos de Giddens (1993) e Salém
(1989) a respeito dos relacionamentos modernos. Estas apresentam a derrocada da idéia de
um amor para sempre e único, apontando um caminho para a democratização e igualdade
econômica e psicológica entre os sexos; procuram a definição de limites pessoais e de autonomia aos parceiros, primam pela extinção da violência física, permitem associações diferentes
do casamento, oferecem direitos e deveres ajustáveis e negociáveis nas situações (o chamado
de contrato móvel), salientando a importância da confiança mútua e demarcando o afrouxamento da necessidade de vínculos entre as famílias dos parceiros. Se a estabilidade da relação
é submetida a motivos individuais, em que o outro se torna descartável a qualquer momento,
uma vez que o desejo individual é privilegiado na parceria, tal base é individualista e, como
tal, em geral, funciona pela lógica do mercado. Isso fica explícito nos próprios termos que
definem os relacionamentos, como contrato móvel, negociações, interesses, associações.
Podemos refletir que tais relacionamentos, assim descritos, corroboram para o processo
de privatização do eu, onde as sensações, as novidades, o prazer individual, a cultura do lazer
e a liberdade de velhos costumes instituem o fim da noção de pertencimento e ofuscam o
tempo futuro. Este processo foi criticado por Sennet (2001), Costa (1999), Bader Sawaia
(1999), Sartre (1978 a) e Agnes Heller (1985), acusado de legitimar o fim da vida pública ou
a negação do plano humano-genérico do sujeito, de certo modo, criticado também pelos
entrevistados da pesquisa.
CONCEPÇÕES DE AMOR
Vale enfatizar que os entrevistados afirmaram ser muito difícil definir o amor. Da mesma
forma que em relação à parceira e à própria relação desejada, revelaram nunca terem refletido muito sobre o significado do amor em suas vidas. Quanto às concepções de amor,
propriamente ditas, foram mencionados os aspectos da convivência, do estar junto e da troca
existencial como centrais, implicando, necessariamente, a questão temporal e processual
como fundamentais para a constituição e solidificação do amor:
Se amo ela, gosto dela, sinto amor, então estou com ela na minha cabeça. Então pensar em fazer carinho,
em chegar em casa ficar com ela, como uma companheira. É assim que eu penso, não poder imaginar
estar longe dela (T).
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(...) o amor exige tempo. Eu não senti amor por minha namorada logo que eu vi ela... comecei a amar ela
depois de um tempo, quando comecei a conhecer.. .o amor é diferente de uma paixão (...) é uma coisa
que você consegue fazer planos, não é uma coisa que você consegue de imediato (B).
O que vi das minhas experiências é isso: chega uma hora em que eu começo a gostar da pessoa, de tanto
estar junto dela. Invariavelmente foi assim (I).
O amor não é algo que acabe fácil... para acabar é preciso ter algo muito forte (V).
O caráter mágico do amor ficou em grande parte por conta da paixão, que garantiria a
continuidade da relação. Esta foi assinalada como um dos aspectos essenciais para demarcar
o amor homem-mulher, sendo uma forma de assegurar o futuro da relação amorosa através
do desejo de estar junto:
O que faz eu ficar junto com a minha namorada é aquele negócio da paixão, de estar satisfeito ao lado
dela, feliz. Eu acho que pela mulher tem que ter a paixão. Não adianta só a paixão, mas não adianta só o
amor. Acho que entre um homem e uma mulher tem que ter duas coisas: amor e paixão (V).
Quanto ao amor ser destinado ou ser construído a partir da condição existencial de
cada um, os entrevistados divergiam nas opiniões e se contradiziam muitas vezes, o que
reflete o mistério e a magia que, culturalmente, envolve e torna complexa a temática
amorosa. Ora as contingências foram consideradas, ora não, o que ficou visível nas seguintes falas:
Acho que a gente não controla essas coisas. Fico orando direto para Deus colocar a pessoa certa no meu
caminho... eu peço que seja o mais breve possível também. No grupo focal o mesmo entrevistado expôs:
também acho que o amor não é eterno, a gente constrói o amor e acho que ninguém está livre de
conhecer outra pessoa e achar interessante (T).
(...) penso que quando conheci minha namorada foi uma coincidência muito grande, sei lá foi destino...o
jeito que ela tem é o jeito de uma mulher que sempre sonhe (B).
O amor passa mais pela identificação com determinadas pessoas que pela questão do destino (I).
A gente é jovem, às vezes não sabe bem o que está sentindo... a hora que vier mesmo, que é para valer
assim, acho que a gente vai sentir (T).
É notável que a ideologia do amor romântico, a racionalidade do casal igualitário e do
próprio amor confluente indicam a noção de destino. Isso ocorre na medida em que possibilitam a crença de que o casal é constituído naturalmente e livre da situação social, fundado
pelo desejo e escolhas puramente individuais, não derivando sua realidade das categorias
sociais nas quais os sujeitos estão inseridos, tal como classe, raça, vizinhança, preferências
pessoais, padrões de comportamento, família de origem, idade, etc. Desse modo, impõe uma
visão determinista do amor, onde as pessoas independentes do que fazem e pensam, irão
viver a mesma história amorosa.
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Ocorre de forma demarcada, na fala dos entrevistados, a associação do amor com a
constituição de família e o casamento e, com isso, da mulher com a maternidade. Percebe-se
que o amor, a partir do cristianismo, é atravessado pela noção de institucionalização, a qual
salienta a função moral do casamento, qual seja, perpetuação dos laços amorosos, reprodução de filhos e via importante para a salvação divina:
Se você ama, se dá bem com tudo dela (...) acho que não tem opção, se você ama acho que não tem
escapatória: você casa mesmo (B).
Formar uma família é um objetivo. Sonho com isso, ter uma família grande, encontrar com os irmãos e tal.
Acho que as coisas se ligam, amor e família (I).
Em seus entendimentos de amor, apareceu, também, mesmo que de forma implícita em
idéias de companheirismo e futuro comum, o amor como uma mediação para a transcendência
de cada um em busca de um futuro comum. Esse futuro não seria individual, mas coletivo: os
parceiros seriam sujeitos de suas histórias e as noções de mudanças, de processo, de construção, de comprometimento e de responsabilidade para consigo e com as parceiras se fariam
presentes. Numa perspectiva sartreana, o amor adquiriria força de metamorfose para os
sujeitos, sendo antes uma mediação, privilegiada na cultura ocidental, para a transcendência
dos sujeitos em direção a seus projetos, do que uma vivência de aprisionamento, isolamento,
impotência, obrigação ou determinação (noções muitas vezes presentes nas entrelinhas da
concepção idealista de amor).
Tendo isso, ficou evidente que, muitas vezes, o desejo e o movimento vivido dos sujeitos
se diferenciavam, caracterizando um movimento de contradição dialética, onde diversas e
antagônicas mediações marcavam o cotidiano e o desejo dos jovens pesquisados. Pelo fato do
sujeito ser construído dialeticamente, esbarra com uma limitação objetiva que é o próprio
campo de instrumentos disponível, onde convivem ao mesmo tempo significações antigas, já
estabelecidas, e significações novas, muitas vezes ambíguas e embrionárias. Isso explica a
presença de valores modernos, valores tradicionais, noções de amor romântico, cristão, platônico e noções sado-masoquistas nas vivências e concepções destes jovens.
Dessa maneira, tenho clareza de que os depoimentos dos entrevistados consistiram numa
revelação parcial de suas vivências, possibilidades e desejos em relação ao amor, o que não
torna possível esgotar a definição do perfil amoroso dos sujeitos através desse estudo (nem
desses sujeitos específicos, nem dos homens jovens em geral). Porém, uma vez que coexistem
inúmeras verdades ao mesmo tempo, as quais dizem respeito tanto a um sujeito singular
como a um grupo social, considero que algumas delas foram compartilhadas comigo nas
entrevistas e retratadas e analisadas.
Outras verdades existem para serem ditas sobre o amor, bem como existe o desejo de
dizê-las, como deixaram transparecer os homens da pesquisa. Assim, deixo salientada a importância de outros estudos sobre a temática amorosa, tendo em vista a centralidade que
ocupa na organização da vida singular e também da sociedade num sentido mais amplo, uma
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vez que envolve a afetividade como um todo, norteia ações, opiniões, institui desejos e provoca mudanças que, sem dúvidas, dizem respeito à história coletiva.
Entendeu-se, assim, baseado na teoria de Sartre, que a escolha amorosa não se resume ao
ato da escolha em si, mas também a um compromisso que se estabelece com o que foi escolhido. Para que haja uma escolha crítica, é necessária uma saída da espontaneidade em algum
momento, a qual preconiza a reprodução do que já está dado culturalmente. Para os jovens,
a reflexão sobre o que esperam de uma mulher, de uma relação, de sua vida, do futuro e
avaliar se o caminho que está sendo percorrido os levará na direção desejada ou não, tornase uma postura fundamental a ser adotada para o estabelecimento de um amor nos termos
pretendidos pelos sujeitos.
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O caminho da judicialização e a
produção de subjetividade da criança
vítima de incesto: uma interlocução e/
ou uma contradição
Sônia Biehler da Rosa
INTRODUÇÃO
C
oloco em debate a judicialização e a produção de subjetividade da criança vítima de
incesto. O tema é complexo e pode ser analisado de muitas maneiras. Vou abordá-lo no que
tem de mais próximo das questões que investigo, qual seja, subjetividade, práticas sociais e
direitos humanos. Neste sentido, discuto a cultura judicializante de práticas sociais, como solução de relações conflitivas. E sigo a criança abusada sexualmente no caminho da judicialização,
perseguindo a produção de subjetividade no enfrentamento de violações de direitos humanos.
O texto que segue é fruto de um recorte de dissertação1 problematizando a condição da
criança que, submetida à violência do incesto é, ainda, levada a percorrer o caminho do
mundo judicializante atravessado pelos mais diversos discursos. Analiso os discursos dos
julgadores contidos em acórdãos2 da jurisprudência3 do Tribunal de Justiça do Estado de
Santa Catarina, utilizando o mecanismo da interpelação ideológica. O regulamento para a
análise do discurso está baseado na teoria de Michel Pêcheux e leituras de Eni P. Orlandi.
Afinal, proponho a re-significação de práticas para acolher a criança com dignidade que
a condição de sujeito requer e que o conjunto dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, impõe.
1
Dissertação defendida em fevereiro de 2003, junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa
Catarina, na linha de pesquisa “Práticas sociais e constituição do sujeito”, sob a orientação da Profa. Dra. Mara Coelho de Souza
Lago.
2
Acórdão é a denominação do texto que narra julgamentos coletivos oriundos de um Tribunal.
3
A jurisprudência é a representação do entendimento de um Tribunal através de julgamentos formalizados em acórdãos.
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A CULTURA DA JUDICIALIZAÇÃO
O princípio jurídico de que o que não está nos autos não está no mundo, fez-me pensar e
questionar os julgamentos sobre abuso sexual infantil intrafamiliar/incesto. Para a existência
desse princípio é pressuposto que só exista o que está escrito nos autos do processo,
obstaculizada a visibilidade da trama subjetiva das relações que impõe a demanda judicial.
Assim, cabe pensar o mundo da judicialização como a metade do mundo em que demandantes
e demandados estão inseridos, o que significa que vai ficar alguma metade sem o seu complemento. Algo vai ficar faltante. Por isso a busca da verdade está além. É preciso uma inversão
estratégica com o mesmo objetivo de vontade de verdade.
O que é feito com o mundo que não é o mundo jurídico? Ele não existe? Qual a posição
do sujeito-criança no processo judicial? A criança abusada sexualmente na família se constitui em sujeito no discurso do julgamento judicial? Ou não passa de vítima, apenas?
Trata-se de enfatizar como os “adultos” do judiciário, hoje, oferecem uma jurisdição
às “crianças”. Penso nos aspectos relacionados com a subjetivação da criança, incentivada pela cultura de Direitos Humanos, comprometida com a doutrina da proteção integral
à criança e com o dever de assegurar prioridade absoluta na efetivação dos direitos que
sustentam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tido como expressão do “processo de construção de direitos humanos conquistados e afirmados pela marcha civilizatória
da humanidade” (Saraiva, 2005, p. 23). A criança é aqui tomada como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, a qual foi contemplada pela normativa internacional4
a ter “direitos a cuidados e assistência especiais“, passando a ser sujeito de direitos, isto
é, deixando o lugar de objeto passivo para tomar assento num lugar em que lhe é reconhecida a titularidade de direitos, juridicamente protegidos. É garantia desses direitos
exigir tratamento diferenciado para a criança e com mais razão para a criança abusada
dentro da família que, através do segredo comumente mantido sobre o abuso, tanto na
ordem privada quanto na ordem pública (o judiciário), pode sofrer repercussões na construção de sua subjetividade.
O estudo enfoca o processo judicial criminal, lócus do julgamento do abusador sexual,
permeado pela lógica jurídica, cuja finalidade está relacionada com a busca e produção da
verdade, na forma prescrita pela lei. Todos os fatos, documentos, indícios, declarações, todas
as provas chegarão ao processo pela devida forma legal. É com base nos autos que o juiz
formula seu julgamento, que será tomado como verdadeiro, porque o que não está ali, não
está no mundo dessa verdade. É com esse fundamento que a sentença será prolatada, como
também a apreciação do recurso interposto deste julgamento e que virá a ser examinado de
forma coletiva numa outra instância, o Tribunal de Justiça.
4
Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e
assinada pelo Governo brasileiro, em 26 de janeiro de 1990.
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Faz parte da cena judicial a criança envolvida com ocorrência de incesto propriamente
dito ou ordinário5 , que é instada a quebrar a aliança secreta que mantém com o pai/abusadormãe/abusadora. Pensar a articulação do jurídico e do psicológico, do julgar e da constituição
do sujeito-criança-abusada serviu como motivo desta pesquisa. Uma pretensão de rever práticas
jurídicas num diálogo com a psicanálise como matriz de pensamento, ou seja, “enquanto
instrumento de ’sinalização’ de novas respostas a velhas perguntas que o saber jurídico não
consegue contemplar” (Philipi, 1996, p. 27).
A CRIANÇA COMO SUBJETIVIDADE SINGULAR
Ao enfrentar a conexão da psicanálise com o direito, a concepção de sujeito, o objeto
psicológico, não pode estar dissociado da realidade social, do espaço político em que está
inserido, por isso introduzo no debate o sujeito assujeitado, sujeito do inconsciente de Freud,
aquele que sofrerá alterações nos processos de pensamento, determinando construção de
subjetividade, inclusive em razão de práticas violadoras dos direitos humanos, da
desconsideração da dignidade humana, valor-fonte de subjetividade.
Enfatizo o referencial psicanalítico do sujeito do inconsciente posto como alternativa
para compreender de outra maneira o sujeito criança judicializado, porque essa concepção
de sujeito é definida como essencialmente distinta da noção abstrata e universal de sujeito.
Para a psicanálise, o sujeito do inconsciente estrutura-se não linearmente, nada de causa e
efeito entre a ordem corporal e a ordem psíquica. Para o discurso freudiano, o sujeito é
fundamentalmente dividido. Além da consciência e do comportamento, Freud inaugura uma
nova vertente no pensamento moderno quando se refere ao inconsciente, evidenciando uma
multiplicidade estrutural na constituição do sujeito. Nesse contexto, a psicanálise trata dos
impasses do registro simbólico que a ocorrência do incesto provoca, por atacar interditos
básicos que regulam a ordem humana, atrapalhando a constituição do sujeito do inconsciente, a partir da conflitiva edípica. A razão para “manter o fantasma da situação edípica é,
justamente, a garantia de não realização do incesto” (Giberti, 2002, p. 7). A passagem ao ato
incestuoso não é o equivalente ao complexo de Édipo. É sim, o abandono das ligações edípicas
com o pai. É uma forma predatória de agir, porque nesta relação o outro não é reconhecido
na sua singularidade e na sua diferença, é apenas um pedaço de carne para manipulação e
instrumento de gozo e prazer.
Como o psiquismo é fundamentalmente marcado pela complexa rede das relações
intersubjetivas, o caráter desta estruturação inconsciente é dinâmico. Vai estar se engendrando
no dia a dia, no cotidiano da vida, no envolvimento com o familiar e com o social, sem concluir-se. Uma concepção de sujeito conectado com as relações sociais que o cercam e o fundam.
5
Incesto propriamente dito ou ordinário é aquele que se constitui nas relações sexuais dentro da própria família, com consangüíneos,
entre pai/mãe e filho/filha, configurando uma quebra no pacto social através do qual se constitui a família, a exogamia.
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É esta construção das subjetividades singulares, uma a uma, que passa pelo reconhecimento das diferenças, o desafio que proponho neste campo de interlocução e/ou contradição.
VÍTIMA MENOR
Agrupei sete acórdãos, cujas ementas não fazem referência de se tratar de um crime
contra uma criança. Somente foi possível constatar o dado depois da leitura e da verificação
da idade. Exemplo: “Apelação criminal. Delito sexual. Atentado violento ao pudor. Vítima
menor. Prova suficiente da autoria. Sentença confirmada” (Jurisprudência Catarinense, v.
75, p. 598). Tal acontece porque o artigo 224 do Código Penal Brasileiro (CPB) traz a presunção de violência ou violência ficta, quando os crimes de estupro e atentado violento ao
pudor forem praticados contra vítima com menos de 14 anos; contra vítima alienada ou
débil mental e que o agente sabia desta circunstância; e contra vítima que não tem condições
de oferecer resistência.
O efeito do enunciado da ementa supra e do artigo 224 do CPB não é protetor especificamente à criança, mas às pessoas que sejam frágeis para oferecer resistência. Como o Código
Penal é de 7 de dezembro de 1940 e aplicando os ensinamentos arqueológicos de Foucault
(2000), é possível destacar que na época não tinha episteme, ou seja, condições para pensar
a criança como objeto de saber. Por isso, tanto nas ementas quanto no dispositivo legal não
está em causa o incesto, a proteção ao genealógico, à criança, mas o corpo, a questão do
submetimento da vítima, na medida em que fica explícito na norma que existirá aumento da
pena quando existir um título de autoridade. Na tipificação desses crimes não é tratada a
violência contra a criança, especialmente a que acontece dentro da família, porque a visão
dos crimes previstos é da afronta aos costumes, à sociedade. Não existe essa visão micro de
que o que acontece dentro da família é a violência que submete uma criança e que reduz o seu
espaço de defesa. Para criminalizar o incesto é preciso resgatar a ordem privada para a esfera
pública. Para a publicização, é imperioso o desvencilhamento do segredo, do silenciamento
que a privatização do incesto impõe. Os textos silenciam sentidos que dizem de qualquer
dimensão da criança como saber, como discurso. A subjetividade da criança não interessa à
língua que o discurso jurídico oferece, a não ser sua condição de fragilidade, comparável à de
debilidade mental e à alienação, mas não representativa de sua singularidade. A criança não
acontece no discurso jurídico desses acórdãos.
A posição discursiva da criança é de vítima. A lei lhe reserva esse lugar por sua condição
de fragilidade. A criança é interpelada em sujeito pela ideologia do discurso jurídico apenas
como vítima. Vale lembrar que sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo.
Ao constituir a criança como vítima, o discurso jurídico produz o apagamento do sujeito
criança na língua. Tanto que em nenhuma ementa dos sete acórdãos analisados aparece a
palavra criança, a não ser quando é feita referência ao Estatuto da Criança e Adolescente.
Nos julgamentos, a criança não é falada. Ela passa a reproduzir o significado de vítima no
O
CAMINHO
DA
JUDICIALIZAÇÃO
E
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PRODUÇÃO
DE
SUBJETIVIDADE
DA
CRIANÇA
VÍTIMA
DE
INCESTO
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processo, ou seja, aquela que por ter sofrido a ação criminosa é provavelmente quem mais
sabe do fato, tornando-se objeto precioso de prova para sustentar a punição do acusado. É
uma vítima menor, como reproduz a ementa antes transcrita.
O efeito sentido da subjetividade como vítima no processo vai distanciá-la dos laços
familiares, deslocando-a da posição de filho/filha. Vai torná-la “acusadora do seu carrasco”,
na expressão de Vrignaud (1994). Ela está ali posta, afastada de sua condição de filha, investida
na condição de instrumento de prova. Essa substituição pode produzir efeitos maléficos na
subjetividade da criança. Mas a fragilidade psíquica não está prevista na lei. Ali é destacada a
fragilidade física, na medida em que a criança está emparelhada a outro sujeito, alienado ou
débil mental, e mesmo a outro não alienado e nem débil mental, mas que não tenha força
suficiente para oferecer resistência.
As regras, as formas e as posturas de um processo judicializante dirigidas ao adulto não
consideram o sujeito-criança e deixam passar despercebida a exigência do deslocamento da
posição de filho/filha junto à família. A posição de filho/filha, provavelmente, vai sofrer
alteração. Ser ou não ser instrumento de prova deixando de ser filho/filha para ser o carrasco
do pai ou não ser instrumento de prova e continuar sendo a mulher do pai. É a condição de
desamparo presente na subjetividade da criança, ocupando lugar de adulto, porque é esse
lugar que lhe colocam à disposição. Lembro do século XIII, quando criança não passava de
uma miniatura do adulto (Ariès, 1981, p. 41).
A PROTEÇÃO NÃO PROTETORA
É a condição de situação abusiva da criança que está no processo, passando por
revitimizações. Inúmeros estudiosos do assunto atribuem o lugar de revitimizadas para as
crianças que participam da judicialização do abuso sexual incestuoso. Dentre eles, Furniss
(1993) mostra como o judiciário, através do processo visando à punição do pai incestuoso,
coloca-se na condição de protetor não protetivo da criança que foi submetida ao incesto,
quando toma medidas de proteção à criança fora do contexto do tema. Primeiro, isto pode
acontecer quando os juízes não compreendem as implicações específicas do abuso sexual da
criança como síndrome conectadora de segredo e adição6 . Em segundo, o incesto não aparece no campo jurídico, que mantém o entendimento de inseri-lo na categorização dos crimes
contra os costumes: estupro e atentado violento ao pudor. Nesses casos, juridicamente, uma
absolvição criminal significa apenas que não há nenhuma prova além de dúvida razoável no
domínio legal. Todavia, isso não significa que não tenha ocorrido abuso. Então, é aí que a
adição e o segredo podem se tornar reforçados e levar à continuação do crime de abuso,
6
Conforme Furniss (1993), a síndrome de adição para o abusador, significa excitação com o posterior alívio sexual, criando a
dependência psicológica pela criança que serve de instrumento dessa excitação e alívio; e a síndrome de segredo para a criança e a
família, acontece porque o abusador precisa que a criança guarde segredo para a continuidade da adição. É um funcionamento
dialético, a síndrome de adição impulsiona o abusador à exigência do segredo para garantir a repetição do abuso e a sua satisfação.
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porque a criança não esta sendo protegida. Ao contrário, a questão jurídica está encerrada,
mas a criança permanece no livre acesso do(a) pai-abusador/mãe/abusadora, sem supervisão,
ou o cuidado ou controle do que ele(ela) possa estar fazendo com os filhos(as).
Essas questões resultaram da análise do acórdão n. 99.008670-47 , que trata de apelação
criminal com provimento (acolhimento) do recurso para absolver o réu que havia sido condenado pelo crime de estupro, por ter mantido relações sexuais com sua filha de 11 anos. A
motivação para absolver o pai incestuoso se sustentou no ”(...) elenco probatório sobre o
qual pairam dúvida e contradições” (p. 616).
A menina procurou ajuda no SOS Criança e por isso os fatos vieram à tona. No processo, ela relata um estupro que teria acontecido aproximadamente seis meses antes da realização
do laudo. Ela não é mais virgem e “os vestígios de desvirginamento eram recentes, com
hiperemia do hímen”8 . Essa divergência na questão temporal do desvirginamento foi o argumento para absolver o pai da menina como autor do estupro, porque “a sentença condenatória
criminal deve vir fundada em uma certeza incontestável, o que não ocorreu (...)”9 .
A menina foi interpelada pelo discurso de proteção à criança, SOS Criança. Ela queria
um basta na situação que vivenciava na sua casa com seu pai. Mas como o assunto implicava
crime, o encaminhamento legal foi feito e o processo tramitou. Ela passou a ser interpelada
em outro crivo pelos adultos: a polícia, o médico, o juiz. Uma interpelação que não acontece
diretamente é referida pelo outro. Uma interpelação que se dá pela objetivação, como ressalta
Foucault (1995, p. 231). No caso da judicialização é o poder do Estado que aplica práticas
individualizantes. São modos de objetivação que significam a menina/filha em vítima de crime.
Há um processo ideológico que possibilita chegar ao julgamento, o discurso jurídico.
Está dito que “tudo indica que o recorrente tenha efetivamente atentado contra a infante,
mas as declarações da menina acabaram por destruir aquela uniformidade...”10. A dúvida foi
(não foi) enfrentada servindo-se de um princípio do direito penal que também faz parte do
processo ideológico: na dúvida se absolve.
A natureza específica do abuso sexual da criança como síndrome de segredo e adição,
também pode capturar o jurídico em não querer descobrir o segredo que reveste o incesto.
Esta é a não história. A possibilidade de dizer que ele não é culpado pelo incesto vem pelo
efeito de sentido que põe ali no acórdão a ausência da história, não ter o laudo a data que
corresponderia à versão da menina. A cronologia que impõe o discurso jurídico não é a
lógica temporal do discurso da psicanálise, onde o sentido não é instantâneo. É retroativo,
fruto de um produto histórico. A menina/filha é submetida ao assujeitamento da ideologia
jurídica, em que sua singularidade não está em causa, e sim a sua condição de vítima do
processo, que é caracterizada por uma racionalidade e por uma identidade construídas a
7
Jurisprudência Catarinense v.87, p.614-17.
8
Jurisprudência Catarinense,v.87,p.616.
9
Idem,p.617.
10
Jurisprudência Catarinense,v.87,p.617.
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partir de um dispositivo político de dominação e sujeição, a ordem jurídica, ou seja, submetida à lei e ao controle da sociedade. Ela é também assujeitada ao discurso médico, ser uma
vítima com sinais ou não da agressão sexual. Ela é um objeto de prova, um instrumento do
processo para punir o pai agressor.
Essa construção depura a singularidade em busca da objetividade, construindo verdades
universais, a partir de uma entidade transcendental, não de um sujeito concreto de carne e
osso, falante e situado em meio a condições materiais.
Enquanto o discurso jurídico fala das provas, silencia em relação ao abuso da criança.
Parece uma maneira de aliança com o segredo que é fundante desta peculiar forma de abuso.
Mas nesse discurso o silenciamento é fruto da ausência da articulação dessas práticas do
abuso sexual de uma criança, com um domínio de saber, no caso, o jurídico.
Conforme Orlandi (1994), o homem significa sempre falando ou calando. Simbolicamente esse silêncio significará na constituição da subjetividade da menina. O silêncio em
relação à criança e ao abuso surge entre fragmentos de linguagem, permitindo observar que
essa produção decorre das condições com que a criança se apresenta para o mundo jurídico.
Além do espaço reservado pelo ECA, nos últimos dez anos, não se vislumbra sedimentada a
condição da criança como sujeito de direitos, merecedora de proteção integral e irrestrita,
em outras áreas do Direito. Não são oferecidas condições para pensar a criança como objeto
de saber, porque a perspectiva adultocêntrica, parcial e preconceituosa, torna mais difícil tal
pensamento (Alanen, 2001). É a impossibilidade de falar, de dar estatuto para estes relatos de
violência entre adultos e crianças no seio familiar. O SOS Criança foi uma tentativa. A criança está posta em relação e faz parte do nível de circulação das palavras, das práticas, dos
processos. Mas, não irrompe como um domínio de saber e de poder, como uma ordem de
discurso que proporcione a articulação com estas relações e práticas. Inclusive o ECA é um
inventário arqueológico dessas relações e práticas que, para dar a ver em relações discursivas,
importa um “mais”. Michel Foucault (2000, p. 56) explica esse “mais” dizendo que consiste
em práticas que é preciso fazer aparecer e descrever.
Conforme o acórdão, o julgamento do caso se efetivou. Os sujeitos que ali estão envolvidos foram homogeneamente tratados como partes de um processo em que todos são iguais.
É preciso reconhecer a fronteira de uma singularidade nessa criança, onde estão coladas
várias formas de subjetivações. Ela não é um ser homogêneo, não é igual a ninguém. Olhar
para um sujeito homogêneo tem a ver com a disciplinarização, onde o sujeito é fruto de uma
ideologia e de uma política (Foucault, 1991).
Cabe questionar: será que as subjetivações que estão atuando dentro daquela menina/
filha de 11 anos, submetida ao ato incestuoso, foram articuladas e/ou estariam em conflito/
contradição, num fluxo de tensões que podem desestabilizá-la? O pai não foi punido. A
criança deixou de ser vítima e voltou para casa. Ela retornou ao lugar de menina/abusada,
objeto do ato incestuoso, porque o lugar ocupado antes já não era o de filha, porquanto a
relação incestuosa elimina essa filiação. No caminho da judicialização não restou amparo à
menina que lhe garantisse sair ilesa na sua subjetividade. As marcas simbólicas da violência
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física do abusador e da violência invisível da justiça ficaram marcadas no corpo e na subjetividade dessa menina. Que lugar ocuparia essa menina/abusada? O judiciário é capaz de
responder através do processo? Foi suficiente o processo para ajustar os lugares do parentesco? A insistente visibilidade da violência doméstica re-significa as relações incestuosas?
Essa é a sociedade disciplinar de que Foucault (1991) fala e que pratica formas de
individualização do sujeito em relação ao Estado. É a expressão de poder interferindo na
vida do réu, da vítima e de todas as pessoas nas mais diversas condições em que o Estado
as coloca, objetivando-as através de “processos identitários e de subjetivação” (Orlandi,
1999, p. 24).
UMA INTERLOCUÇÃO E/OU UMA CONTRADIÇÃO
Trago para reflexão a contradição nesta forma de assujeitamento, que procura levar em
conta que o indivíduo afetado pelo simbólico seja sujeito e se subjetive passando a ser criança
abusada em busca de proteção, mas quando instrumento probatório de processo judicial
estabelece-se outro estatuto do sujeito, o de vítima em processo crime, porque o Estado
apresenta um modo que individualiza a forma sujeito na história.
Falo da produção de efeitos nos processos que constituem a subjetividade estruturados
sob o modo da contradição (Orlandi, 1999), porque quando a criança foi chamada a falar
no processo, não significa que lhe tenha sido dado um lugar de sujeito singular. Ela foi
falada por outro. Seu discurso foi apagado. Vejo nessa criança, a criança desamparada de
que Freud (1896) fala na Etiologia da histeria, “que em seu desamparo fica à mercê dessa
vontade arbitrária que é prematuramente despertada para todo o tipo de sensibilidade e
exposta a toda a sorte de desapontamentos...” (p. 210). No caso, trata-se do desamparo da
criança que sofre abuso sexual. Ela foi objetivada na condição de vítima instrumentalizando
a prova do processo. Ela foi escutada na ordem discursiva dos julgadores. Não há um
movimento de escuta desta criança em direção a uma posição de singularidade. Como se
constituir sujeito sem amparo da família ou de seus substitutos sociais e jurídicos para
entrar em uma ordem social?
É a condição da criança vítima que está no processo. Não a vítima conceituada processualmente, mas a criança-vítima porque o adulto não se importa com ela. Aí se inclui o adulto
do judiciário, o adulto da polícia, o adulto legislador, o adulto da medicina, que a obrigam a
submeter-se a uma legislação de mais de 60 anos. Existem sim alterações posteriores na lei,
mas nada que tenha alterado as condições da criança no sentido de dar a ela a visibilidade da
sua singularidade. O efeito é a produção da ausência da constituição da criança como objeto
de saber, de discurso. De um lado, a criança e a constituição de uma subjetividade. De outro
lado, a criança e os aparelhos disciplinares utilizados pelo Estado através de mecanismos
individualizantes que servem para “fabricar” indivíduos. Todos são iguais perante a lei. É o
aparelho judiciário invadido pelo poder disciplinar (Foucault, 1991).
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A nova ordem decorrente da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, incorporada nacionalmente como garantia constitucional11 da criança sujeito de direitos,
reafirmada pelo ECA, que poderia mediar a interlocução entre a judicialização e a subjetividade, ainda não é plenamente reconhecida, porque o Judiciário nas suas práticas produz
modos de objetivação (vitima objeto de prova) que resultam em formas de subjetivação
(vitimização) (Foucault, 1995). São contribuições para “fabricar” o indivíduo (Foucault, 1991).
Um indivíduo que, no discurso jurídico não é, no entanto, singularizado.
PARA NÃO TERMINAR
É na análise do discurso jurídico sobre a subjetividade da criança quando ela é interpelada a falar, que se reitera o apagamento de sua fala e se desloca a posição de filho/filha para de
instrumento de prova. A criança está ali para ser o carrasco do abusador(a)/pai-mãe ou sair
dali para continuar sendo a mulher do abusador/pai ou o companheiro da abusadora/mãe. O
discurso de proteção à criança cede às práticas disciplinadoras, porquanto o processo funciona inscrevendo-a enquanto criança-objeto e vítima, outorgando-lhe uma marca simbólica,
que suponho rica na produção de efeitos a partir deste discurso. Penso que a tomada desta
criança pelo processo de judicialização necessita considerar a posição subjetiva e histórica
desta criança, tramando articulações para enfrentar contradições. O lugar da criança no
percurso judicializante é crucial e cruel, conforme estatuto de individualização imposto pelo
Estado, esquecido o simbólico, o histórico e a ideologia, condições possíveis para a interpelação do indivíduo em sujeito.
O campo jurídico é insuficiente para dar conta da objetividade que lhe é peculiar, porque o impasse do litígio, da demanda, extrapola este lugar, defrontando-o com a contradição
da singularidade, onde não é possível reter toda a verdade do sujeito do direito nos autos de
um processo. É o ponto em que o jurídico não dá conta, porque o que não está no processo
não está no mundo jurídico. Não existe.
Assim, penso possível e necessário ampliar a reflexão sobre os direitos humanos/dignidade humana da criança, procurando discuti-los, seguindo o que preconiza a doutrina da
proteção integral e atentando para a condição peculiar da criança como pessoa em desenvolvimento, incentivando os diversos profissionais para a maior consideração da criança, em
casos de violação destes direitos quando submetidos a processos judicializados, pela compreensão e reflexão crítica e pela abordagem cruzada/articulação entre o jurídico, o psicológico,
o social e o familiar. Com certeza, essa é uma perspectiva de humanidade que pode reduzir
contradições.
11
Constituição Federal de 1988, artigo 227.
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Fazendo ponto: considerações sobre
falas e trajetórias de adolescentes em
situação de exploração sexual
Adriana Poci Palumbo Rodrigues
E
ste artigo resulta de uma pesquisa sobre trajetórias de adolescentes que vivenciam a
exploração sexual em Lages, na serra catarinense1.
A violência e a exploração sexual infanto-juvenil afetam milhares de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo. Estudos apontam para o fato de que violências e abusos físicos e
sexuais contra crianças e adolescentes sempre ocorreram, porém permaneceram escondidos no
interior das famílias, e apenas recentemente vêm sendo denunciados, ainda que não em suas
reais proporções. A problemática da violência e exploração sexual infanto-juvenil no Brasil,
nas suas diferentes expressões – prostituição, turismo sexual, tráfico de crianças e adolescentes
e pedofilia na internet – vem ocupando espaço crescente na mídia e na agenda nacional, preocupando os poderes executivos, legislativos, judiciários e também a sociedade civil.
O processo da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na década de
1990, marcou o surgimento da concepção da criança e do adolescente como sujeitos de
direitos, seres integrais em desenvolvimento, deixando para trás a noção da criança em situação de risco como “menor”2, tutelado pelo Estado.
Debrucei-me sobre as trajetórias de 13 adolescentes, 12 meninas e um rapaz, que vivenciam
as práticas da prostituição na cidade de Lages3. Como procedimentos de coleta das informações,
1
Vinculada ao Núcleo de Pesquisa Margens: Modos de vida, família e relações de gênero, do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFSC, essa pesquisa (dissertação de mestrado defendida no ano de 2004), intitulada “Fazendo Ponto”: trajetórias de
adolescentes em situação de exploração sexual em Lages – SC foi realizada sob a orientação da profª Drª Mara Coelho de Souza Lago.
2
Termo jurídico criado para referir-se aos menores de idade nas leis anteriores a 1990, que se tornou uma expressão popular em referência
às crianças e aos adolescentes excluídos de seus direitos de cidadania. Porém, traz em seu significado uma concepção de criança e
adolescente em situação irregular em relação aos padrões sociais vigentes e, portanto, alvos de medidas repressivas pelo Estado.
3
Localizada na serra catarinense, essa cidade teve grande movimentação econômica e noturna no apogeu do ciclo da madeira, na
década de 1950. Com o declínio do setor madeireiro, na década de 1960, a cidade entrou num novo período econômico, em que
predominou a crise, o adensamento da população urbana, o aumento da periferia e dos problemas sociais. Essa conjuntura acaba
banalizando a miséria, a violência, e a própria prostituição.
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foram realizadas entrevistas abertas e gravadas com as adolescentes, e também com as
profissionais do Centro de Referência Bem Viver4. Além disso, realizei uma pesquisa
documental nos arquivos do Conselho Tutelar de Lages, e procurei observar os principais
locais de trabalho e lazer destas adolescentes, conversando com elas na rua onde “fazem
ponto” e visitando-as em seus domicílios.
Baseando-me nos pressupostos da pesquisa etnográfica, procurei me aproximar das informantes, buscando estabelecer uma relação dialógica, na qual elas pudessem ser
transformadas em interlocutoras, como ensina Roberto Cardoso de Oliveira (2000), ao ressaltar que o pesquisador precisa ter a habilidade de ouvir o sujeito pesquisado e ser por ele
igualmente ouvido, buscando um diálogo, que se estabelece através de uma continuidade de
contatos. Essa interação envolve o que os antropólogos chamam de observação participante
e para alcançá-la, o/a pesquisador/a precisa assumir um papel digerível pela sociedade e
pessoas observadas.
A análise dos significados que os sujeitos deram às suas trajetórias e práticas levou-me a
refletir sobre as situações de extrema pobreza e vulnerabilidade vividas pelas populações e
famílias marginalizadas nas periferias das cidades. Para este artigo, selecionei falas e trajetórias de duas adolescentes, utilizando-as como exemplares do universo estudado, em relação
às reflexões e apontamentos que me permitiram elaborar.
A EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTO-JUVENIL
A violência sexual que é categoria chave desta pesquisa manifesta-se sob a forma de
abuso sexual intra ou extrafamiliar, e também na forma de exploração sexual comercial. “A
exploração sexual comercial tem uma relação direta com a pornografia, o turismo sexual, a
prostituição5 e o tráfico para fins sexuais” (Cecria, 2002).
Sônia Sousa (2001) propõe uma análise psicossocial do fenômeno, ou seja, o entendimento da prostituição infanto-juvenil da forma como é vivida, os sentimentos gerados, as
atividades cotidianas. Ela adverte para o fato de que a prostituição infanto-juvenil não pode
ser vista somente como um fenômeno individual ou social. Para entendê-la, é necessário
fazer uma profunda associação entre seus aspectos individuais e sociais e essa compreensão,
por sua vez, conduz à rejeição dos rótulos existentes na nomeação desse fenômeno, como
por exemplo, prostituta ou prostituída.
A autora afirma que a designação de prostituta para crianças e/ou adolescentes não
contempla a diversidade das situações vividas por esses sujeitos em situação de exploração
4
Centro onde funciona o Programa Sentinela, de atendimento às crianças e adolescentes em situação de exploração sexual e
também às suas famílias.
5
A prostituição infanto-juvenil desmembra-se em duas situações: aquela em que há a presença da/o intermediária/o (cafetina ou
cáften), e aquela em que a criança ou adolescente troca favores sexuais por dinheiro, e o explorador é a pessoa que usa os favores
sexuais (o cliente).
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sexual comercial e, além disso, esse rótulo “individualiza a responsabilidade pela ‘opção’ de
vida, impede-as de romper com o ‘destino’ que a sociedade lhes reservou e descompromete
cada vez mais a criação de políticas públicas que atendam à população em geral e às crianças
e adolescentes em particular” (Sousa, 2001, p. 48). Por outro lado também considera a denominação de prostituída, utilizada principalmente pelas ONG’s, como inadequada, pois o
sujeito acaba sendo colocado em situação passiva, de não sujeito, de “coitadinha”, vítima
sem vontade própria.
Optei por utilizar “crianças e adolescentes em situação de prostituição infanto-juvenil”
porque essa é uma circunstância psicossocial e pode ser transitória, passageira. A categoria
“crianças e adolescentes exploradas sexualmente” é considerada mais ampla, pois abarca a
pornografia, o turismo sexual, a prostituição e o tráfico para fins sexuais.
Os termos “ir para a rua”, “fazer ponto” e “fazer programas”, também se fazem presentes no estudo, por serem as formas que as próprias adolescentes sujeitos da pesquisa usam em
seus relatos.
Sobre o conceito de exploração sexual, Heleieth Saffioti (1989) fala de duas dimensões
fundamentais: a primeira confunde-se com o conceito de exploração econômica e tem o
lucro por objetivo; a segunda é a de obtenção de outras vantagens para o explorador. Saffioti
apresenta o conceito de dominação entrelaçado ao de exploração. Ela afirma que para que
uma pessoa possa explorar outra, seja economicamente ou para o próprio prazer, é necessário que exerça domínio sobre esse outro. A dominação pode ter raízes em mais de uma
dimensão da vida. No caso da exploração sexual infanto-juvenil fica mais evidente a dominação, que articula as categorias de gênero e idade, em decorrência das expectativas sociais.
Isso porque, segundo a autora, nas sociedades ocidentais espera-se que as crianças se submetam à autoridade dos adultos e que as mulheres se sujeitem à autoridade do homem.
A autora remete essa relação de dominação-exploração que se estabelece entre o homem, de um lado, e a mulher e a criança, de outro, a uma relação de poder, decorrente de
duas características básicas de nossa sociedade: androcentrismo e adultocentrismo. O adulto,
homem ou mulher, exerce poder sobre a criança, que deve submeter-se a seus desígnios,
sejam pai ou mãe, avô ou avó, independentemente do grau de correção de suas ordens e
argumentos. As mães exercem ante os filhos a autoridade, mas seu poder é sempre menor
que o do homem. Ao se observar a família e também a sociedade em geral, verifica-se que há
uma hierarquia entre categorias de sexo, raça, classe social e faixas etárias.
“No topo desta escala de poder está o macho branco, rico e adulto”, afirma Saffioti (1989,
p. 17), destacando que em razão da alta concentração de renda em poucas mãos, não é elevado
o número de homens a desfrutar desse grande poder, ou macropoder. A violência contra crianças e adolescentes acaba se disseminando em razão de o agressor exercer pequenas parcelas de
poder, e continuar aspirando ao macropoder. Insatisfeito com sua pequena fatia, e desejando
muito mais, exorbita de sua autoridade e apresenta a síndrome do pequeno poder.
Em suma, a síndrome do pequeno poder é a forma como cada um de nós lida com os
seus pequenos poderes nas diferentes relações, em que a submissão a priori é recorrente em
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variados tipos de relacionamentos. Trata-se, por exemplo, do trabalhador que tendo de obedecer a ordens e ouvir “desaforos” de seus superiores hierárquicos, ao chegar a casa maltrata
a mulher e os filhos, submetendo-os à sua pequena parcela de poder. O pequeno poder é
potencialmente mais perigoso que o macropoder, em razão de sua pequenez, que
freqüentemente conduz à síndrome caracterizada pela mesquinhez. A pessoa age de mauhumor e mesquinhamente: em face do seu diminuto poder, de seu não poder, trata de ampliá-lo
ou criá-lo na relação interpessoal.
Em outro trabalho Saffioti (1992) complexifica essas afirmações, quando utiliza o conceito formulado por Foucault para analisar as relações de poder entre os gêneros, buscando
compreender como as mulheres colocam cunhas de poder, tentando solapar a autoridade
masculina no ambiente doméstico. A autora ressalta que essa concepção de poder, qual seja,
“o de constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em campos
sociais de força” (p. 185), possibilita a análise das relações tanto ao nível macro como ao
microssocial.
Assim, pode-se depreender também que as relações entre as diferentes gerações estão
conectadas às contradições fundamentais da sociedade: relações de classe social, gênero,
raça/etnia, e a violência inerente às relações antagônicas de oposição, podem contaminar
todo o tecido social (Saffioti, 1997, p. 149).
A compreensão do fenômeno da violência e da exploração sexual infanto-juvenil implica um levantamento de suas causas, partindo de uma abordagem macroestrutural, passando
pelas causas econômicas, até a compreensão das subjetividades permeadas pelas mediações
próprias de cada sujeito.
Saffioti (1989) afirma que não existe uma causa única para o fenômeno da prostituição:
Não se pode apontar um único fator como determinante da prostituição. Isto seria um reducionismo
inaceitável. A título de ilustração, é reducionista a postura dos que só vêem causas de ordem econômica
para este fenômeno. Se isto fosse verdadeiro, toda mulher pobre seria prostituta e não haveria prostitutas
oriundas das classes média e alta. Obviamente, a maneira mais rica de se focalizar esta intrincada questão
é pensar toda uma configuração de vida, sem esquecer os mediadores psicológicos singulares de cada
mulher, como determinante da prostituição. Os mediadores psicológicos são importantes, porque um
mesmo fato pode desencadear certo tipo de conduta em uma mulher e não em outra (p. 62).
Ela explica que o abuso sexual incestuoso pode contribuir para a situação de prostituição, pois a criança (ou o adolescente) sexualmente abusada por um membro da família,
seja pai, tio, irmão ou padrasto, acaba aprendendo a trocar favores sexuais por amor,
atenção e carinho, podendo passar a perceber o seu corpo como um instrumento para
auxiliá-la a obter o que deseja. Para a autora, quando se tem a vivência do incesto, torna-se
mais fácil vender o corpo.
Algumas das entrevistas que realizei corroboram essa afirmação de Saffioti (1989), visto
que seis adolescentes com as quais conversei sofreram abuso sexual na infância e, segundo a
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coordenadora do programa Sentinela, é elevado o número das que estão na exploração
sexual e foram abusadas na infância. É importante ressaltar, porém, que não existe relação
de causa e efeito entre esses fatos. A circunstância de uma adolescente sair para fazer
programas depende de múltiplos fatores psicossociais relacionados à sua constituição como
sujeito: tanto os mediadores psicológicos aos quais se refere Saffioti, quanto o contexto
sociofamiliar, as relações que estabelece com as pessoas com as quais convive, suas relações
com instituições como escola e/ou programas de atendimento, suas relações de amizade,
identificações, etc. Os sujeitos se constituem, um a um, e suas práticas são também marcadas
pela singularidade.
Conheci em Lages vários casos de exploração sexual de adolescentes por parte de pais.
Em uma ocasião, conversei com uma garota de 13 anos que sustentava a casa onde morava
com a mãe e mais dois irmãos menores. Ela contou que perdeu a virgindade em troca da
reforma de sua casa, e que o negócio tinha sido feito por sua mãe, uma senhora de aproximadamente 60 anos. A partir daí, a mãe marcava todos os seus encontros e utilizava todo o
dinheiro que a adolescente recebia para a manutenção da casa.
Um pai com três filhas e um filho, todos menores de 18 anos, mudou-se, depois de
viúvo, para o porão de uma boate de prostituição. As filhas trabalhavam no local e o pai ia às
vezes beber um “traguinho” com os clientes da boate. Certa vez, foi flagrado numa situação
dessas pelo Conselho Tutelar e afirmou que tinha ido ali para “buscar” as meninas, que
teimavam em ficar “no salão”. Uma das filhas, que se negava “a ajudar” o pai, foi expulsa de
casa, passou a usar drogas e álcool em excesso, dormiu muitas vezes em bancos das praças de
Lages, ou mesmo na rodoviária. Algumas vezes, desaparecia por um tempo, período em que
ficava abrigada em alguma casa de prostituição. Numa das vezes em que “desapareceu”, a
polícia encontrou um “corpo feminino” no pátio do Posto do Patussi, que fica às margens da
BR 116 próximo ao cruzamento com a Rodovia SC 470. Publicaram a foto “do corpo” no
jornal, e uma das irmãs da menina a reconheceu. Verena, que mal havia completado 12 anos,
fora assassinada e deixada à beira da estrada, em 2002. Suas irmãs continuam se prostituindo
e uma delas completou 18 anos de idade. O pai continua a receber “auxílio” das filhas.
Tanto esses, como outros fatos relatados nas entrevistas realizadas remetem à discussão
levantada por Saffioti (1995) de que, embora seja comum que condições econômicas muito
precárias acabem induzindo pais e mães a encaminharem os filhos para a prostituição, seria
muito reducionista se não olhássemos para outras situações e contextos. Ela afirma que na
família se dão a competição, a trapaça, a inveja, a violência física, psicológica e sexual, as
mentiras, o abuso, e isso tudo pode expulsar crianças e adolescentes para fora de casa. Miriam
Grossi (1994) relata que muitas das meninas vão para a rua estimuladas pelas próprias mães,
para fugirem de situações de violência na família, particularmente o abuso sexual por parte
de parentes.
A pesquisa que realizei em campo evidenciou situações que corroboram essas afirmações,
inclusive a de que muitas das meninas se prostituem apenas para comer quando estão com
fome, ou entram em situações de prostituição para conseguir droga. Das 13 adolescentes
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pesquisadas, 12 estão ou estiveram na exploração sexual, e dessas, nove relataram que utilizam
o dinheiro conseguido com os programas para auxiliar/prover a manutenção familiar, ou
para ter acesso a comidas “diferentes” (como bolachas recheadas, salgadinhos, chocolates ou
presunto). Embora nove adolescentes tenham relatado a utilização de drogas, apenas duas
disseram que fazem (ou fizeram) programa só para consegui-las.
ANA6, 17 ANOS
Ana é uma das adolescentes mais assíduas na rua Otacílio Vieira da Costa, conhecida em
Lages como a “Rua da Vergonha”. Ela teve dois filhos cuja guarda acabou perdendo, e em sua
entrevista ficaram muito fortes a decepção e a tristeza em relação ao fato. A adolescente
nutria forte carinho pelos filhos, porém não conseguiu transformar esse sentimento em cuidados, segundo o entendimento do Conselho Tutelar e do Ministério Público. Os filhos
foram retirados de sua casa e posteriormente encaminhados para adoção. Ana estava grávida
de um terceiro filho no dia da entrevista, mas não relatou isso. O educador do Programa
Sentinela me informou que em setembro de 2003 a adolescente foi levada pelo Corpo de
Bombeiros quase em coma alcoólico para a maternidade, onde foi realizada uma cesariana às
pressas. Nasceu um menino, prematuro de seis meses, que permaneceu internado por um
tempo, mas veio a falecer.
Entrevistei a adolescente numa noite fria de sábado, na esquina da “Rua da Vergonha”,
onde ela e sua amiga “faziam ponto”. Era véspera do dia das mães, e durante a entrevista
fomos interrompidas por alguns clientes que se aproximavam, diminuíam a velocidade do
carro, buzinavam, mas nem sempre paravam7 .
CONTEXTO SOCIOFAMILIAR
A mãe de Ana morreu quando ela tinha apenas oito anos. A menina morava com o pai,
que era alcoolista e doente, com a avó, que também era muito doente e logo faleceu, e com
as irmãs menores, uma de nove meses e a outra de dois anos. Havia também duas irmãs mais
velhas, que trabalhavam em casas de prostituição, uma em Florianópolis e a outra em São
Joaquim. Coube a Ana cuidar de suas irmãzinhas; havia pouca comida, e muitas vezes, a
própria adolescente (na época uma criança) teve que arranjar alimento:
6
7
Todos os nomes utilizados são nomes fictícios.
Percebi que acabei atrapalhando um pouco o trabalho da adolescente, motivo pelo qual combinamos com as outras duas amigas
realizar a entrevista na casa de uma delas.
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“...depois daquilo que aconteceu, daí começou a dificuldade. O pai ficou doente, não podia mais trabalhar e eu bem desesperada, o que ia fazer? Daí tinha chuchu na lavoura e feijão, eu mandava as meninas
colher o feijão e cozinhava o chuchu. Fazia feijão e nós pegávamos sal na vizinha... aí nós comia feijão com
chuchu. Daí depois eu fiz o feijão ali com chuchu pra nós comer e comemos, ficamos um tempão assim.
Depois que acabou o negócio da lavoura, é que nós íamos na casa da minha tia pedir comida pra ela”.
A adolescente chegou a pedir auxílio na rádio para a manutenção da família:
...fomos no Maurício, pedimos coberta, fogão, panela, prato, que nós não tinha, né. Só tinha aqueles de
plástico, pequenininho. Daí veio um montão de gente e ajudou nós. Cobertor, roupa, calçado, um monte
de coisa, daí eu já melhorei mais, já... que daí eu já tava estudando. (...) A professora ouviu a minha voz lá
na rádio e também começou a me ajudar, era pra me ajudar no colégio... Ela me dava roupa, calçado,
dava caderno, lápis.
Ana relatou que acabou se iniciando na exploração sexual em função da situação de falta
de comida. Ela falou que o seu pai inicialmente resistiu à sua profissão, mas depois, acabou
aceitando. Segundo ela, quando o pai descobriu,
começou a me esculachar um monte... Daí eu disse, falei: “é pai você fica me excomungando, mas sabe
da onde nós tamo comendo essa comida? Do dinheiro que eu fui dá o rabo na rua”. Daí ele começou a
chorar sabe e ele falou assim que ele nunca imaginava, porque a minha irmã já era dessas coisas, né, e ele
disse que nunca imaginava que, pelo menos, a filha que ficou dentro de casa, cuidando das mais nova, ia
saí fazer essas coisas pra ajudá a família. Daí depois ele concordou e agora ele não pega mais no meu pé,
ele me apóia... ele me apóia porque, porque cada um tem a sua profissão.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Aos 12 anos, Ana foi estuprada por um vizinho. Estava retornando da igreja quando foi
abordada:
Daí quando vi um monte de maconheiro, assim, na esquina, com um pacote de cola e eu com medo né, passei
com a bíblia embaixo do braço e com aquele medo, com vontade de gritar pro pai vim me pegar, mas o pai
não ia me escutar e nem a vó... daí eu passei e ele disse: daí gatinha, daí gatinha e eu fui apurando o passo, mas
quando eu vi eles me pegaram pelos cabelos e foram me arrastando até em cima ali numa casinha ali, daí a
hora que me comeram legal eu consegui escapar, e ainda tinha uma guria junto com eles, a Sandra, daí me
puxou pelos cabelos e eu saí pelada só de camiseta... daí eu fui no orelhão e chamei a polícia.
Esse depoimento me fez lembrar das palavras de Saffioti (1997), quando afirma que
todos os tipos de violência, especialmente a sexual, são peças fundamentais de uma sociedade
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que controla de perto a sexualidade feminina. “Os homens tentam, de todas as maneiras,
colocar a libido das mulheres nos trilhos da falocracia” (p. 182). Ela ressalta que embora a
parcela das mulheres estupradas em nossa sociedade constitua a minoria, “a ameaça paira
sobre todas como uma espada de Dâmocles, sujeitando-as às leis asseguradoras da supremacia masculina” (Saffioti, 1997).
Quando a adolescente relatou o fato, não demonstrou raiva nem dor. Apenas contou o
que havia acontecido e a forma como tinha reagido, chamando a polícia, posteriormente
mantendo a acusação, apesar das ameaças por parte da família do agressor. Perguntei se ela
ficava pensando no que tinha acontecido, se tinha ficado impressionada, respondeu que
ficava “tendo pesadelo, com medo das irmãs dele virem me matar, que elas viviam me
ameaçando.”
A entrevista de Ana é permeada por várias situações de violência consumada, ou então
de ameaças, e a postura da adolescente, corajosa, impositiva, deixando transparecer uma
agressividade defensiva, de prontidão latente, reporta a Lev Vygotski, quando ensina que o
homem constitui-se como sujeito e constrói suas características singulares a partir das relações estabelecidas com os outros. Como afirma Andréa Zanella (2001), é “alguém que, ao
mesmo tempo em que é marcado pelo contexto social e histórico em que se insere, é capaz de
regular sua própria conduta e vontade” (p. 72).
Embora Ana tentasse, à sua maneira, “meter cunhas na supremacia masculina” (Saffioti,
1992, p. 184), acabou fortemente prejudicada por um ex-companheiro, que conseguiu fazer
com que a adolescente perdesse o pátrio poder sobre os dois filhos.
O SIGNIFICADO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
A adolescente afirma que faz programa por causa da situação financeira. O pai, doente,
não trabalha, e não consegue prover o sustento da casa. Quando ela estava com os filhos sob
os seus cuidados, não voltava para casa sem levar um cachorro-quente ou guloseima para as
crianças. Ela contou que com 13 anos resolveu fazer programas:
Daí quando eu interei meus 13 anos, quer saber de uma coisa, eu vou sair. Pela primeira vez que eu saí foi
com uma amiga minha, a Kíria, encontrei ela no terminal, né... e vim... determinada a arrumar dinheiro
(...) encontrei ela aqui, daí eu falei: Kíria, como é o negócio, aqui?... Era 30 reais que ela cobrava o
programa, daí o cara parou né. Um chevete, um chevete cinza parou, falou: quanto você cobra o programa? ah, eu cobro 30, ele me falou: te dou 150 se você ficar 2 horas comigo. Daí eu disse: eu vou, daí eu
fiquei lá só que ainda tava doendo, ainda daquela vez sabe.
Ana estava referindo-se à vez em que foi estuprada. A primeira relação sexual de sua vida
aconteceu aos 12 anos, quando foi abusada sexualmente pelo vizinho. E a segunda foi cerca
de um ano depois, quando, aos 13 anos, fez seu primeiro programa. A partir daí, conforme
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relatou, não parou mais. Ela contou que depois do programa dormiu no hotel e voltou para
casa no dia seguinte:
Daí quando eu cheguei em casa, desembarquei do ônibus e fui direto no mercado, comprei um monte de
coisa e mandei o carro levar lá em casa. E ali foi indo e eu ia saindo todo dia, né... comecei a reunir um
montão de coisa pra dentro de casa.
A adolescente ressalta que faz programa apenas por dinheiro:
Eu vou mais porque eu quero o dinheiro, porque prazer por homem eu não sinto. Só se for uma pessoa
que a gente ama, que a gente tá há tempo, entendeu, mas programa é só por dinheiro, nem que seja um
cara bonito, a gente só vai por dinheiro.
A maioria dos programas é realizada dentro de carros, mas Ana e suas amigas também
fazem programas em hotéis e motéis, e os preços são diferenciados: “o preço é vinte, e pra ir
no hotel é trinta.”
ELVIRA, 13 ANOS
Elvira fazia programas na “Rua da Vergonha”, mas não tem sido mais encontrada nas
abordagens realizadas pelos técnicos do Centro de Referência. “São idas e vindas”, afirmou a
assistente social. Assim que nasceu, seus pais a abandonaram; ela foi criada pela avó juntamente com seus irmãos. Em sua casa também residem os tios, que se alcoolizam diariamente,
muitas vezes agredindo Elvira e seus irmãos. A tia tem seis filhos, que foram abrigados e
encaminhados pela justiça para adoção. Em razão disso, a adolescente permaneceu no abrigo
municipal por certo tempo, mas não se adaptava às regras da instituição, por diversas vezes
evadindo-se do local.
As “idas e vindas” a que se referiu a técnica do Programa Sentinela servem para o vaivém
de Elvira à rua Otacílio Vieira da Costa, para o vaivém da menina à escola, assim como para
o vaivém entre o abrigo municipal e a casa da avó.
CONTEXTO SOCIOFAMILIAR
As relações familiares de Elvira foram e são bastante complicadas. Várias vezes a menina
apareceu no Conselho Tutelar machucada pelas agressões dos tios. Quando tinha sete anos,
foi estuprada pelo cunhado da tia (que, segundo a adolescente, tem ciúmes dela). Elvira, em
alguns momentos, tem rompantes de raiva e agressividade. Enxergo nessa adolescente uma
criança assustada, que pede carinho, atenção e reivindica cuidados. Numa das brincadeiras
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realizadas em grupo no Programa Sentinela, a menina disse que o seu maior sonho era arrumar uma mãe. Ela disse isso e completou: “eu não tenho mãe... mãe que é mãe não abandona
os filhos...”
Elvira foi abandonada à própria sorte. Nas fichas e nos ofícios do Conselho Tutelar,
encontrei uma requisição de Matrícula e Freqüência Obrigatória em Estabelecimento Oficial
de Ensino Fundamental, que exigia a matrícula e ao mesmo tempo explicava à direção da
escola sobre sua “família desorganizada”8 e as sucessivas violações de direitos a que Elvira foi
submetida.
A fala de Elvira em relação ao abandono pela mãe e à requisição do Conselho Tutelar,
falando da negligência familiar em relação à adolescente, propicia uma reflexão levantada
por Mello (1995) sobre qual é o modelo de análise apropriado para a compreensão das
famílias das camadas urbanas populares no Brasil. A autora afirma que é necessária observação, pesquisa e abandono de conceitos e preconceitos, citando sua observação realizada num
bairro popular de São Paulo. Ela ressalta que é necessário ampliar o nosso conceito tradicional de família: “família e parente designam, pelo menos, três tipos de laços: a família nuclear
própria; a família composta por várias famílias nucleares que, por questões de sobrevivência,
habitam juntas; a família que inclui parentes de parentes e compadres sem laços consangüíneos” (Mello, 1995, p. 54).
A autora explica que os aglomerados familiares nas periferias urbanas respondem aos
esquemas de mútua dependência, explicitando a prática da ajuda mútua, nascida da experiência comum de necessidades vitais minimamente supridas.
É necessário ver as condições em que vivem estas famílias para compreender a inevitabilidade dos conflitos. Lado a lado com a conquista diária do alimento, sempre escasso, conquista-se um espaço no interior
das casas pequeníssimas, um lugar nas camas e colchões compartilhados com muitos irmãos. Nas casas,
eles estão, literalmente, jogados uns sobre os outros e, o que é importante, jogando seus sentimentos de
afeto ou os, igualmente fortes, de raiva e frustração (Mello, 1995, p. 58).
Com a sua família “desorganizada”, as instituições, no caso, o Conselho Tutelar de Lages,
falaram por essa adolescente em situação de risco. Elvira e seus irmãos já são grandinhos,
portanto, não adianta tentar encaminhá-los para adoção, porque não se consegue viabilizála. Os primos, que são crianças pequenas, posteriormente foram encaminhados para adoção.
Essa situação remete à discussão que Matilde Luna (2001) faz sobre “infâncias” e
“vulnerabilidades” contemporâneas, que não têm garantidas as condições de sobrevivência:
crianças e adolescentes como Elvira, que sem acesso à educação, ao sistema de saúde, não
8
Sylvia Leser de Mello (1995) critica a falsa associação que alguns pesquisadores fazem entre a “desorganização familiar” e a
violência. Para Mello, a família não está desorganizada, ela está sim, organizada de modos diferentes, segundo suas necessidades e
peculiaridades, em relação ao modelo burguês de família. Ela fala em polimorfismo familiar e lembra que em qualquer forma de
família, podem-se perceber conflitos e problemas. A violência dos mais fortes contra os mais fracos, o exercício do poder arbitrário,
sempre estão presentes e não são características apenas das famílias pobres, sendo necessária atenção para que não se confunda a
violência dos conflitos com desorganização familiar.
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contam com uma família ou na família sofrem maus-tratos, exploração ou negligência. A
autora adverte para a tendência presente na visão e nas ações institucionais que se exercem
sobre as crianças nessa condição: a tendência à apropriação, ou seja, manipular seu presente
ou seu futuro, tomando decisões que não levam em conta seus desejos, história e identidade,
privilegiando a concepção institucional do que é bom para elas.
Em sua entrevista, Elvira disse que foi encaminhada ao Abrigo Municipal por causa das
agressões da tia, que tem ciúmes dela:
Eu fui para o Abrigo porque eu não queria mais ficar em casa... Por causa da Maria... Ela bebia e me
pulava9.
(Só ela?)
Só...
(E agora você voltou para casa, e ela não te pula mais?)
Pulá ela pula...
(E o que você faz?)
Eu fico quieta...
(Porque ela pula em você?)
É que o marido dela é assim, sabe tia...
(Ele dá em cima de ti?)
Não... ele gosta tanto de mim, que ele não deixa me bater, daí ela fica pensando que eu durmo com ele.
(Tu nunca dormiu com ele?)
(gesto negativo com a cabeça).
Elvira está sobrevivendo às agressões dos tios, às vezes reage de forma agressiva, mas
normalmente ela interage com as pessoas de maneira simpática e agradável. Quando perguntei sobre a escola, que voltou a freqüentar, ela disse: “olha, eu tenho amizade com todo
mundo... Quase todos os parentes estudam lá... tem a Aninha, o João, o Pedrinho, tudo
estuda lá.”
Em sua entrevista, várias vezes referiu-se às amizades, às companhias e brincadeiras de
sua adolescência. Ela luta e busca a alegria e a felicidade.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Aos sete anos, Elvira foi abusada sexualmente pelo cunhado de sua tia. O rapaz vivia
alcoolizado, morava de favor na casa da mãe da cunhada (a avó de Elvira) e atacou a criança
de sete anos, que tinha sido abandonada pela mãe e morava na mesma casa que ele, sob os
cuidados da avó. A adolescente relatou o fato:
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Agredia fisicamente.
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(Você falou outro dia que foi estuprada, é verdade?)
Foi...
(Quer contar isso?)
Foi um tio, cunhado da Maria. Era irmão do marido dela...
(Irmão do Paulo?)
Não, que ela tinha um marido que se chamava Daniel, que mora ali no Santa Catarina.
(Ah... Daniel era o primeiro marido)
É...
(Morava lá na casa?)
Morava.
(Como é que foi? Quantos anos você tinha?)
Sete...
(Sete?)
É, e eu esqueci de fechar a porta do quarto...
(E daí?)
Estava dormindo, e ele foi em cima de mim...
(E daí...)
Peguei uma tesoura e finquei nele.
(Uma tesoura aonde?)
Minha avó, que punha uma tesoura em baixo do travesseiro para não vir as bruxas...
Colocava uma tesoura aberta, uma arruda e um alho para espantar as bruxas.
(Ah... e daí você pegou a tesoura?)
E acertei nele aqui (mostrou a cabeça, atrás da orelha)
(Na cabeça?)
É...
(Mas doeu?)
Hum... Hum...
(Doeu muito?)
Hum... hum...Tive que ir para o hospital...
(Quem te levou para o hospital?)
Minha avó, no outro dia, ela viu sangue na cama...
(Ah, tu não gritou? Porque você não gritou?)
Porque eu gosto de surrar quieto, sabe... Não gosto de ficar berrando...
(E boletim de ocorrência, a sua avó registrou?)
Registrou, mas depois rolou, rolou, e não deu muita coisa.
Elvira tentou reagir, machucou o agressor, mas sofreu o abuso, foi penetrada, mas “não
deu muita coisa” e isso me fez lembrar o que vários autores (Azevedo & Guerra, 1989; Leal,
1999) afirmam em relação ao abuso sexual intrafamiliar: que esse tipo de violência atravessa
os tempos e se constitui em uma relação historicamente construída a partir das relações de
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força e poder. E a violência intrafamiliar constitui-se num fato desencadeador de outros tipos
de violência. A banalização do sexo, da violência, a “ultrapassagem de limites”, conforme
Eva Faleiros (2000), ocorreram na vida dessa adolescente quando tinha apenas sete anos.
Depois que ela me relatou o estupro, eu perguntei sobre a segunda experiência sexual e
ela me respondeu: “depois eu comecei a ir para a rua”.
O SIGNIFICADO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
Elvira associou, em seu discurso, o ato de fazer programas à oportunidade de inclusão/
ascensão social. Várias vezes ela citou, na conversa, confortos a que teve acesso através dos
programas que realizava10:
E daí apareceu um rapazinho e levou eu e Ana para comprar um monte de coisa, salgadinho, mas bem
naqueles hotéis que tem banheira, sabe aqueles, que tem banheira, que enche de água quente[...]
Não era o (hotel) 5 estrelas... Era outro...
Era outro, e nós fomos, compramos um monte de coisa... E depois nós fomos outras vezes...
O cliente que pagava... Nós pedia para ir lá porque a gente gostava de lá, que lá é mais chique, lá tem
chuveiro, lá tem cama, cama redonda, espelho no teto, na parede...
Ele me deu presente...
(O que ele te deu?)
Me deu um cachorrinho de pelúcia primeiro... Depois me deu um joguinho de brinco e colar, e um
relógio, que roubaram.
No início, a adolescente teve medo de fazer programas, e a função agregativa da prostituição, desenvolvida por Michel Maffesoli (1985), pode auxiliar nessa análise, pelo fato de
que inicialmente ela só fazia programas acompanhada de uma amiga:
(E daí... como foi o seu primeiro dia de fazer programa... Como você decidiu a fazer programa?)
Eu tinha muito medo de sair, e sempre levava alguém...
(Para quê, para ir fazer festa?)
Não... Para ir fazer programa...
(E qual o primeiro dia que você foi fazer programa...)
O primeiro dia eu fui com a Susi e com a Ana...
(Você decidiu sair para fazer programa ou elas te convidaram?)
Não, elas bem assim: hoje vamos, Elvira? Daí eu bem assim: deixa eu ver... Se tiver
dinheiro nós vamos!
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É importante ressaltar que no período em que realizei o trabalho de campo Elvira estava numa fase em que não fazia programas.
Posteriormente voltou a freqüentar a rua Otacílio Vieira da Costa
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Ela contou que foi e fez os programas. A festa, os passeios, a farra, esses prazeres também foram viabilizados por meio da exploração sexual. Elvira, ainda uma criança, contou
com satisfação e orgulho suas aventura.
O sentido da exploração sexual para Elvira é a possibilidade do consumo de coisas
simples, como ela mesma verbalizou:
(você saindo com um homem, fazendo um programa... o que significa isso para você? É legal, ou não é...)
Não, é que eu gosto de comer as coisas, Adriana...
(Que coisas?)
Eu gosto de comprar presunto...
(Presunto?)
Assim, roupas, salgadinhos, eu gosto de comprar...
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu intento em estender um olhar sobre algumas adolescentes que estão na atividade
da exploração sexual em Lages e são estigmatizadas diariamente pela sociedade excludente,
consistiu na tentativa de escutar as vozes dessas meninas que relataram trajetórias, anseios,
emoções, talvez na busca dos significados produzidos pelos próprios sujeitos sobre suas
práticas.
É interessante apontar algumas questões: a primeira indica que prostituição infantojuvenil é um fenômeno psicossocial, que inclui crianças e adolescentes em situações diversas,
em diferentes contextos. Pesquisei apenas camadas populares e pude perceber que a violência sexual11 está muito mais presente do que se pensa: ela perpassa e atravessa vidas e famílias
de uma forma fria e cruel no Brasil inteiro.
Ao tratar sobre pobreza, exclusão e classes sociais no Brasil, José de Souza Martins
(2002) afirma que “a vivência real da exclusão é constituída por uma multiplicidade de
dolorosas experiências cotidianas de privações, de limitações, de anulações, e também, de
inclusões enganadoras” (p. 21). Quando fala de inclusão enganadora, o autor refere-se aos
signos de consumo da sociedade moderna. Martins afirma que o excluído é capturado como
consumidor pela sociedade que o rejeita. E, ainda que consumidor marginal, porque suas
necessidades estão limitadas ao que pode ser satisfeito pelos resíduos do sistema. “Suas necessidades são necessidades que afirmam as liturgias da sociedade de consumo, seus valores e
ideais” (Martins, 2002, p. 36).
Analisando as trajetórias das adolescentes pesquisadas, percebi que na maioria dos casos
essas adolescentes buscam uma forma de inclusão na sociedade movida pelo mercado. A
exclusão está na falta de alimentação, de oportunidades, de emprego dos mantenedores da
11
Categoria que engloba a exploração sexual e a prostituição infanto-juvenil.
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família. A exclusão está no bairro, nas escolas, nas relações familiares e afetivas. A maioria
dos familiares das adolescentes entrevistadas trabalha fazendo “biscates12”, e tem muita dificuldade para comprar alimentos, pagar água, luz, etc. Não poderia dizer que algumas
adolescentes “foram empurradas” para a exploração sexual pela questão econômica, mas
com certeza o fator econômico influenciou na ida para “fazer ponto”.
A questão da violência sexual na infância também se fez presente nas trajetórias estudadas. Das 13 adolescentes, seis foram abusadas sexualmente por parentes ou vizinhos. Na
maioria dos casos houve a necessidade de cuidados médicos, e em dois casos isso não ocorreu. Alguns autores associam o abuso sexual na infância com a prostituição, e pude perceber,
olhando para essas trajetórias adolescentes, que existe relação sim, mas não de causa e efeito.
Saffioti (1989) deve ser lembrada com sua afirmação de que fica mais fácil vender o corpo
quando se tem a vivência do incesto (Saffioti, 1989), e também quando fala sobre as questões
subjetivas de cada mulher.
A violência doméstica se fez presente nas trajetórias analisadas. A maioria das entrevistadas sofreu violência física na infância, e/ou presenciou várias situações de violência de gênero
dentro de casa. As drogas, a festa, o álcool perpassaram muitas das entrevistas, mas não de
forma determinante para a prática da prostituição.
Pensando nas falas, nos olhares e nos gestos de três entrevistadas, percebo que a prostituição é, para elas, uma profissão, um trabalho. Das outras dez adolescentes sujeitos da
pesquisa, quatro fazem programas com freqüência, mas não assumem a atividade como profissão. O significado da prostituição para duas delas é visível: é a forma que utilizam para
conseguir drogas. Essas duas adolescentes estiveram internadas em clínicas para dependentes
químicos e agora enfrentam altos e baixos em relação à dependência.
Das outras seis jovens entrevistadas, quatro fazem programas esporadicamente. É necessário desconstruir o mito de que a exploração sexual comercial afeta apenas um pequeno
número de meninas, as que se fazem conhecer pelos serviços de abordagem de rua e são
reconhecidas pela assiduidade na avenida. Algumas afirmam que não fazem mais, porém
ocasionalmente são abordadas “fazendo ponto” pelos órgãos de atendimento.
Em relação às instituições, é necessária uma avaliação e uma reflexão sobre as próprias
práticas. Muitas vezes, falta “amadurecimento institucional” aos profissionais que atuam nos
programas de atendimento e nos próprios conselhos tutelares. O Estatuto da Criança e do
Adolescente precisa ser estudado e efetivamente colocado em prática. É urgente a capacitação
dos que atuam na rede de atendimento à infância e adolescência. Minha intenção, com este
estudo, foi desvendar possíveis sinais para auxiliar nessa auto-avaliação, que pode ser o ponto de partida para o aperfeiçoamento de algumas práticas.
Tenho consciência de que isso não resolverá a problemática, mas poderá amenizar o
sofrimento e as dores de adolescentes como as pesquisadas, que estão construindo suas trajetórias, cada uma “fazendo ponto” à sua maneira, com a sua própria história de abandono,
12
Trabalhos não qualificados e periódicos.
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abuso sexual, violência intrafamiliar, pobreza e falta de alternativas. Elas estão lutando pela
inclusão e se constituindo como sujeitos nas relações que vão estabelecendo no decorrer de
suas vidas.
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FAZENDO
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A relação entre pesquisadora, sujeitos
e comunidade: encontros ao som de
anthropological blues
Adriana Rodrigues
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m 2004 apresentei à professora doutora Mara Coelho de Souza Lago, do Núcleo
de Pesquisa “Modos de vida, família e relações de gênero” – MARGENS, da UFSC, uma
proposta de pesquisa em uma comunidade de trabalhadores rurais sem terra da região norte
do Paraná, vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A proposta
surgiu em virtude de um trabalho que desenvolvi com essa comunidade na condição de
psicóloga, entre os anos de 2002 e 2003, tendo como foco principal o processo de
criminalização e violência sofrido por essas famílias e organizado pelo aparato repressivo do
Estado entre 1998 e 2000, durante ações de reintegração de posse. As conseqüências objetivas e subjetivas oriundas desse sofrimento eram inúmeras e além do trabalho de dimensão
social e clínica que havia desenvolvido, os relatos desses sujeitos me motivaram a desenvolver um trabalho de pesquisa acadêmica.
Aceita para desenvolver o projeto no Programa de Mestrado em Psicologia da UFSC,
trabalhei o material que já tinha obtido com a experiência profissional e agreguei o material
obtido posteriormente como pesquisadora, buscando alcançar alguma compreensão acerca
das formas pelas quais esses sujeitos sem terra significaram as experiências de violação de
direitos humanos. Outro objetivo da pesquisa consistiu em ampliar as discussões empíricas e
científicas acerca da criminalização dos movimentos sociais, especificamente o MST e de
possíveis violências daí decorridas. Entrevistei mulheres, homens, jovens e crianças, pertencentes a três diferentes gerações.
As análises do material de campo e dos estudos teóricos resultaram numa dissertação
que trata, em um primeiro momento, das questões metodológicas em inter-relação com minha vivência com essa comunidade. Em seguida, aborda pontos políticos e econômicos
concernentes à modernização agrária no Brasil a partir de 1960, entendendo esses períodos
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como importantes impulsionadores da formação do MST, ocorrida na primeira metade da
década de 1980. Numa dimensão psicopolítica, trabalha a constituição do MST, com sua
metodologia pautada na ocupação, acampamento, mística e assentamento, na tentativa de
clarificar alguns elementos acerca do sentimento de pertencimento e consciência política que
o movimento proporciona.
Numa discussão mais específica trabalhei a problemática da terra no Paraná, desde o
declínio da produção cafeeira, os conflitos violentos na luta pela terra (revoltas de Porecatu
e do Sudoeste), a construção da usina hidrelétrica de Itaipu, que desalojou milhares de famílias, as famílias que rumaram para o Paraguai em busca de terra e trabalho, o surgimento do
MST no Paraná e os conflitos que se intensificaram em função de uma atrasada oligarquia
rural que, no final da década de 1990 se uniu ao governo estadual para iniciar as operações
de expulsão das famílias sem-terra dos acampamentos ocupados.
Partindo do mapeamento e da análise do contexto histórico, econômico e político em
que se encontravam esses sem-terra, passei a analisar algumas de suas falas a respeito da
criminalização da qual foram alvo, destacando o papel dos meios de comunicação de massa
que, instrumentalizados pelas elites fundiárias e pelos governos, tentavam legitimar junto à
população a necessidade dos ataques a estes agricultores marginalizados. O conceito de violência que atravessa o trabalho é o de violência e/ou terrorismo de Estado, fundamentado
nos relatos desses sujeitos acerca dos despejos, da forma como vivenciaram e significaram
estas experiências de horror.
Analisando esses elementos numa interface com a psicanálise freudiana em seus conceitos de
narcisismo das pequenas diferenças, amor, desamparo e sentimento de culpa, sustento que a
convivência em um grupo político com ideais e valores tão fortemente marcados tenha sido o
principal instrumento a fornecer subsídios emocionais para que conseguissem superar esses eventos traumáticos. A dimensão do coletivo como fonte de amparo e solidariedade, foi certamente
um dos elementos mais significativos no processo de elaboração da violência por eles/as sofrida.
Outras nuances importantes da pesquisa foram as diferenças entre gênero e geração nos
enfoques atribuídos aos episódios de violência. Destacando a categoria gênero, foi possível
observar que ao evocarem as lembranças dos momentos mais marcantes nos episódios de
conflitos, que deflagaram verdadeiras batalhas no campo, em boa parte dos casos as mulheres se direcionavam para o núcleo familiar. Lembravam-se da reação de cada um dos filhos,
do sofrimento do marido e de seus esforços em tentar protegê-los. Além de preocupação e
proteção, elas se colocavam como fonte de apoio e força para a família e para a comunidade,
verdadeiras “guerreiras” na preservação da vida e da família. Em relação às diferenças
geracionais, chamou-nos a atenção, na fala dos meninos jovens, a preocupação levantada
acerca da discriminação, humilhação e criminalização por portarem a identidade política de
sem-terra. Essa preocupação não apareceu de forma tão incisiva nos depoimentos de homens
e mulheres adultos. Possivelmente, porque esses jovens estavam vivenciando uma etapa da
vida em que a opinião de grupos externos, sobretudo grupos hegemônicos, assumia uma
dimensão maior.
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Dentre esses temas, optei por trabalhar de forma mais completa neste artigo os caminhos metodológicos percorridos na elaboração da dissertação. Não foi uma escolha simples,
porém se fundamentou na compreensão de que as formas de construção do trabalho (vale
dizer, a convivência com uma comunidade de trajetórias diferentes das trilhadas pelo pesquisador, o choque entre universos diferentes que posteriormente se transforma em um encontro
prazeroso, as dificuldades objetivas do trabalho empírico e sobretudo a dificuldade em lidar
com um tema tão denso como o da violência) evidenciam matizes do campo de pesquisa que,
vistas sob a perspectiva do método etnográfico, possivelmente despertem reflexões empírico/
teóricas, que poderão se transformar em contribuições mais concretas aos que integram e
principalmente aos que virão integrar este núcleo de pesquisa, ao qual devo a gratidão pela
acolhida e pelo auxílio no desenvolvimento da dissertação.
QUANDO OS/AS SEM TERRA DEIXAM DE SER “DE PAPEL”:
OS PRIMEIROS CONTATOS COM O CAMPO
Os caminhos que conduzem à escolha de um objeto de pesquisa são, na maioria das vezes,
marcados por questões objetivas e subjetivas, que ora se aproximam e se confundem, ora se
distanciam, dando-nos a clareza necessária para a realização da pesquisa. Os temas que nos instigam, as causas que nos mobilizam, as descobertas que pretendemos, vão delineando um percurso
fortemente marcado pela subjetividade. Feita a escolha, inicia-se um longo e, por vezes, doloroso
trajeto que busca colocar o que é da ordem do desejo no campo do conhecimento.
Comigo não foi diferente. Desde muito cedo minhas áreas de interesse foram inicialmente se direcionando para o envolvimento em projetos de atendimento à comunidade.
Depois, já no final da adolescência, passaram pela política, pela psicologia e, mais tarde, pela
psicanálise freudiana e pelo materialismo histórico dialético. Numa trajetória muito marcada
por uma proposta de ruptura com o status quo, dediquei-me à intervenção no movimento
estudantil durante o período da graduação. Foi desse local, acadêmico e político, que surgiram os primeiros contatos com o que viria a ser o meu campo de pesquisa. Nesse cenário,
conheci alguns dos professores da Universidade Estadual de Maringá ligados ao Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária, o PRONERA. Por meio deles, conheci também
alguns alunos que faziam parte do projeto, além de militantes e lideranças do MST.
Ao concluir a graduação e me desvincular do Movimento Estudantil, passei a participar
das atividades do Movimento Nacional de Direitos Humanos, o MNDH. Uma das professoras1 que integrava o PRONERA também fazia parte do MNDH e quando foi reestruturado
pelo setor de Direitos Humanos do MST, o “Projeto de Apoio às Vítimas da Violência no
Campo no Estado do Paraná”2 , ela fez a ponte entre os dois Movimentos e me indicou para
1
2
Professora Maria Aparecida Cecílio (Departamento de Teoria e Prática da Educação – Universidade Estadual de Maringá).
A fim de ser menos repetitiva, doravante passo a me referir ao “Projeto de apoio às vítimas da violência no campo no Estado do
Paraná”, apenas como “Projeto”, com a inicial em letra maiúscula.
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compor a equipe multidisciplinar que iria executar o projeto. O convite era para que eu
integrasse, como psicóloga, uma equipe formada por mais uma psicóloga, duas pedagogas,
um advogado, estudantes de direito e militantes do MST. Fiquei muito entusiasmada com a
proposta. Era um projeto único no Brasil e me colocava a oportunidade de trabalhar numa
dimensão psicopolítica realizando um desejo antigo, o de conhecer in loco a realidade de
alguns dos indivíduos que compunham o grande coletivo chamado MST. Diante disso e num
misto de euforia e ansiedade por imaginar as dificuldades que encontraria, aceitei o convite.
Esse era o segundo ano do projeto e ele agora ganhava outras nuances. No primeiro ano,
a equipe era mais reduzida, contava com uma psicóloga, um advogado e alguns militantes e
estudantes de direito. O trabalho de apoio psicológico e jurídico era direcionado a famílias
que haviam perdido algum de seus membros em conflitos com a polícia ou com milícias
privadas3. Na segunda etapa, o projeto previa a continuidade do trabalho com essas famílias
e seria ampliado, incluindo o atendimento ao assentamento Dom Hélder Câmara, município
de São Jerônimo da Serra, na região norte do Paraná.
A decisão de incluir esse assentamento no projeto ocorreu em virtude da constatação de
que nele se reunia grande parte das famílias vítimas da onda de repressão e violação dos
direitos humanos aos trabalhadores do campo ligados ao MST, sobretudo entre 1998 e 2000,
período que deixou uma triste marca na história recente do estado do Paraná. Vitimizadas
por esse processo de violência implementado pelo aparato repressivo do Estado e por milícias armadas nas ações de reintegração de posse4, essas famílias traziam em sua bagagem um
histórico marcado por toda sorte de humilhações, violência física, medos e traumas.
A área que se tornou o assentamento Dom Hélder Câmara fora uma grande fazenda e
estava submersa em dívidas com a União e com particulares, fato que levara o proprietário a
aceitar a proposta de compra das terras, feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Quando as famílias sem terra chegaram, a área estava em processo
de legalização, sem os riscos de novas reintegrações de posse. Essas famílias vieram de diferentes regiões do estado, sendo priorizadas as que apresentavam um histórico de sofrimento
mais intenso, devido aos vários e violentos processos de despejo.
Ao fim o assentamento ficou composto por 123 famílias, muito sofridas e miserabilizadas.
Foi exatamente esse assentamento e essa realidade que me foram destinadas como campo
principal de intervenção5. Sem nunca ter entrado antes num acampamento ou assentamento
do MST, lá fui eu, cheia de expectativas e angústias e com uma visão bastante idealizada da
realidade que me esperava. Em companhia de minha colega de trabalho, que além de pedagoga
3
As “milícias privadas” são entendidas aqui como grupos contratados por fazendeiros para defender suas propriedades através do
uso intensivo de armas de fogo. São o que popularmente se denomina “jagunços” ou “pistoleiros”.
4
Reintegração de posse, para o código de processo civil brasileiro, é a ação que o possuidor de um bem pode mover para recuperar
a posse perdida, em virtude de esbulho. O termo “despejo” é definição popular desta ação. Cf. art. 926, do código de processo civil.
BRASIL. Código de processo civil. Organizadores Manoel Augusto Vieira Neto e Juarez de Oliveira. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
5
Mais tarde assumi o trabalho com duas outras famílias, em assentamentos dos municípios de Mariluz e Palmital, também no Estado
do Paraná, que em confronto com as milícias armadas, haviam perdido, respectivamente, o marido e um filho. Ainda assim,
continuei dedicando um tempo maior ao trabalho no assentamento Dom Hélder Câmara.
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era militante do MST e conhecia grande parte das famílias, fiz minha primeira visita ao
campo, em novembro de 2002. Por estar em companhia de uma militante do movimento e
com uma tarefa delegada pela coordenação estadual, as portas se abriram com mais facilidade e fui muito bem recebida. Foi uma importante resposta aos sentimentos de ansiedade e
insegurança, próprios do primeiro contato com o campo de trabalho, ainda não concebido
como campo de pesquisa, no que só mais tarde viria a se transformar.
As demonstrações de acolhimento com as quais fui recebida não conseguiram amenizar
completamente o impacto que tive ao adentrar o universo daquelas famílias, vivendo na
época em condições precárias. Não que eu desconhecesse a história da luta pela terra e as
condições de vida dos trabalhadores rurais ligados ao MST (que geralmente têm sua trajetória marcada por processos de expropriação e empobrecimento material, intensificados ao
longo das últimas décadas pelas transformações econômicas no campo) porém, conhecia-os
ainda no plano “teórico-intelectual”, no plano da idealização, das bandeiras vermelhas tremulando nas marchas extensas e bem organizadas, das passeatas, dos atos políticos, dos sem
terra militantes que freqüentavam a universidade, das revistas, dos livros. Eram para mim até
então, “de papel”, tal como “os índios de papel”, sobre os quais fala o antropólogo Roberto
Da Matta, numa referência ao momento que antecede o contato com o universo destas
pessoas reais – “de carne e osso”.
Na fase teórico-intelectual, as aldeias são diagramas, os matrimônios se resolvem em desenhos geométricos
perfeitamente simétricos e equilibrados, a patronagem e a clientela política aparecem em regras ordenadas,
a própria espoliação passa a seguir leis e os índios são de papel. Nunca ou muito raramente se pensa em
coisas específicas, que dizem respeito à minha experiência, quando o conhecimento é permeabilizado por
cheiros, cores, dores e amores. Perdas, ansiedades e medos, todos esses intrusos que os livros, sobretudo os
famigerados “manuais” das Ciências Sociais teimam por ignorar. (Da Matta, 1978, p. 24).
Para sair da idealização e encontrar os sujeitos com os quais iria iniciar meu trabalho de
intervenção como psicóloga, percorri um caminho de aproximadamente 240 quilômetros. Uma
distância relativamente curta, porém um longo trajeto entre embarque em Maringá; espera;
baldeação em Londrina; desembarque em São Jerônimo da Serra; nova espera e muita “sorte”
para conseguir uma carona até o distrito de Terra Nova e de lá, até o assentamento.
O pequeno município de São Jerônimo da Serra abrigava uma população de aproximadamente 11.000 habitantes6, residentes nas áreas urbana e rural. A cidade, como o próprio
nome revela, fica numa região de serra, cercada por morros, reservas indígenas, fazendas,
sítios e nove assentamentos do MST. Uma paisagem diferente do cotidiano urbano no qual
sempre vivi. Dentre as montanhas e os rios, chamava atenção uma cachoeira enorme, que de
longe parecia um filete branco em meio a uma montanha verde, um verdadeiro cartão postal.
Ao elogiar a beleza do local, o senhor que estava guiando o carro e gentilmente nos dava
6
Dados obtidos em 2005.
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carona, explicou que a cachoeira tinha aproximadamente 200 metros e que a prefeitura
tinha a intenção de transformar a região em local de turismo ecológico. Ele parecia bastante
simpático à idéia. O cenário deslumbrante amenizava os solavancos da viagem pela estrada
de terra precária que ligava o município ao assentamento. Ainda assim, não conseguia amenizar a ansiedade causada pelas expectativas da chegada, o que fez com que um trajeto de
menos de 40 quilômetros parecesse interminável.
Finalmente, a pedagoga, minha colega de trabalho, avisou que estávamos entrando na
área do assentamento, porém ainda não conseguia ver nada que identificasse o local. Passados alguns metros, entramos numa região mais alta e então avistei vários barracos de lona
preta circundando um grande galpão de telhado de zinco (mais tarde soube que se tratava do
silo, local destinado ao armazenamento dos grãos e do maquinário na antiga fazenda, e que
no assentamento era o local utilizado como centro de convivência comunitária). Na medida
em que o carro ia entrando, algumas crianças e adultos saíam para ver do que se tratava e, ao
perceberem que o carro era conhecido pois o senhor que nos deu carona era assentado ali, os
adultos foram se tranqüilizando e retomando suas atividades. As crianças seguiram o carro
até o local onde ficamos, uma casa de alvenaria que tinha sido do administrador da fazenda
e, mesmo sendo a melhor construção do local, ainda mantinha o aspecto de uma casa abandonada. Os assentados a utilizavam apenas para reuniões e encontros.
Logo que descemos do carro e começamos a guardar as bagagens, as crianças e os vizinhos mais próximos foram chegando na varanda da casa, ainda um pouco receosos, até que
reconheceram minha colega. As crianças ficaram eufóricas com a presença dela, conhecida
em vários assentamentos do estado pelo trabalho com o Projeto Político Pedagógico do Movimento. A notícia da nossa presença correu rapidamente entre os barracos e em poucos
instantes eu estava sendo apresentada para as pessoas que foram se concentrando aos arredores da casa, como a “psicóloga do Projeto”. Teve início então a dinâmica da convivência com
os assentados. Receptivos e livres dos comportamentos mais formais utilizados via de regra
nos primeiros encontros, eles me tratavam como companheira de longa data e aliada na
superação das dificuldades enfrentadas em seu dia-dia. Esse comportamento, apresentado
pela maioria das pessoas com as quais conversava me permitiu maior flexibilidade para trafegar nesse novo espaço. Oscilando entre sentimentos de receio e curiosidade, fui vencida por
esse último e, aos poucos as resistências, minhas e deles, foram se rompendo e o sentimento
de familiaridade despontando. Estava iniciado o processo de “transformar o exótico em
familiar” (Da Matta, 1978).
Em meio a inúmeras incertezas em relação à minha intervenção como psicóloga, uma
certeza se construía: a partir daquele momento ficava para trás toda a idealização que nutria em
relação ao MST e começava a adentrar a realidade dos integrantes daquela comunidade sem
terra. Esse choque entre ideal e real, não se deu numa escala de valores entre melhor e pior, mas
apenas no sentido de me fazer entender que no plano ideal as coisas acontecem de forma
sincronizada, bonita e organizada, numa dinâmica em que todas estas qualidades se encaixam
perfeitamente aos nossos desejos. No plano do real, as coisas são como são, sem efeitos especiais,
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sem trilha sonora, sem o colorido e alegria dos dias de festas, sem uma “conspiração natural”
para atender a nossas expectativas e desejos, deixando espaço para evidenciar-se a beleza do
cotidiano sofrido e esperançoso daqueles sujeitos, uma beleza singela e real.
A proposta de trabalhar com o assentamento Dom Hélder Câmara, em detrimento de
tantos outros, gerava grandes expectativas entre os que ali estavam assentados. Em princípio,
entendiam que poderíamos intervir diretamente na resolução dos problemas de um projeto
de assentamento, ou seja, um assentamento que ainda era acampamento, uma área regularizada, porém sem a divisão de lotes e portanto sem os recursos do governo federal para o
cultivo da terra, criação dos animais, construção das casas, da escola e do assentamento de
forma geral. Numa realidade objetiva de tanto sofrimento pela privação das condições mais
elementares de moradia, educação e saúde, o trabalho subjetivo se tornava mais desafiador.
Contudo, aos poucos fomos, eu e a pedagoga, desconstruindo as expectativas de que poderíamos oferecer soluções para aqueles problemas, e nos colocamos como um ponto de apoio
para superação de algumas dificuldades, inclusive do ponto de vista organizacional.
Aos poucos fui me “familiarizando com o exótico”, com as dificuldades do local. Na
primeira visita, choveu muito no dia marcado para retornarmos e nenhum motorista aceitou
o desafio de enfrentar as estradas íngremes, que com a chuva se tornavam um “sabão”, como
eles nos diziam. Como não podíamos adiar o retorno em virtude de outros compromissos,
colocamos a mochila nas costas e caminhamos por mais de 10 quilômetros descalças (porque
os sapatos não agüentaram por muito tempo) na terra enlameada, até chegarmos ao distrito
mais próximo e pagarmos um preço abusivo por uma carona até a cidade.
Assim como foi difícil entrar naquele universo, conseguir dele sair também não foi
tarefa fácil. E, contrariando minhas expectativas, essas dificuldades não diminuíram com o
passar do tempo. Durante todas as visitas, sofria um pouco com o choque de realidades e
com a adaptação às mesmas. Nos dias que decorriam do meu retorno para casa, não conseguia desfrutar dos confortos mais elementares – como uma cama com colchão macio, uma
geladeira com frutas e guloseimas, um banho num chuveiro quente – sem antes pensar nas
dificuldades e privações que havia vivenciado com aquelas famílias nos dias anteriores.
Para lidar com esses sentimentos, inconscientemente optava pela somatização, o que fazia
com o que os meus dias de folga fossem preenchidos por um tour nada agradável, aos
consultórios médicos.
Mesmo com todas estas dificuldades, no mês seguinte estávamos lá, eu e a pedagoga,
minha colega de trabalho. Iniciamos o trabalho com um grupo de jovens e também com um
grupo de mulheres. Utilizamos a mesma metodologia com os dois grupos. Nos primeiros
encontros os grupos escolheram assuntos de seu interesse para serem trabalhados nos encontros temáticos que realizaríamos mensalmente. Enquanto os jovens escolheram temas como
teatro, drogas, sexualidade, gênero, dança e música, as mulheres escolheram temas como
saúde da mulher, convivência em comunidade, gênero, auto-estima e orientação na educação
das crianças e adolescentes. Dentro das nossas limitações, e numa perspectiva de troca de
saberes, trabalhamos um a um os temas solicitados.
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Em relação à escola e às famílias, fez-se necessário dividirmos as responsabilidades imediatas na intervenção. Por uma questão de identificação teórica e temática, fiquei responsável
pela atuação com as famílias – contribuindo também em atividades com as crianças. Na
época, 2002, o assentamento era composto por 126 famílias. Percebi que seria impossível
conhecê-las e reservar um tempo para ouvi-las em atividades coletivas. Decidi então, em um
primeiro momento, visita-las em seus barracos, para que me contassem um pouco da sua
trajetória desde antes de se integrarem ao MST, passando pela vida atual num assentamento
do MST e as perspectivas para o futuro. Entendia que o trabalho de entrevistas seria um bom
instrumento para me aproximar das famílias, conhecê-las melhor e alcançar uma dimensão
mais exata da problemática ali colocada, a fim de melhor orientar a intervenção. Essas entrevistas revelaram muitos aspectos da realidade dos sujeitos, compondo o primeiro material de
investigação mais sistemática que obtive em campo e se constituindo tanto no embrião, como
em parte da pesquisa que realizei posteriormente.
As experiências das visitas e entrevistas com as famílias foram além das minhas expectativas, revelando-se como os momentos mais prazerosos do trabalho. Ouvi-las relatando suas
histórias, suas impressões e conclusões, seus sonhos e esperanças, num processo em que
fortalecíamos os vínculos de confiança e empatia mútuos, era sem dúvida muito gratificante.
As narrativas eram, em sua maioria, bastante emotivas e carregadas com as lembranças de um
passado de sofrimento, marcado por agressões físicas e morais e pela perda dos poucos bens
materiais que ficaram pelo caminho. Um passado ainda muito presente em virtude das condições difíceis que continuavam vivenciando. Entretanto, as expectativas em relação a
finalmente estarem “em cima do lote”7 fechavam as narrativas de suas histórias com uma
chave de esperança.
Em dez meses de trabalho consegui conversar com boa parte das famílias, alcançando o
objetivo de ter um histórico do assentamento para, a partir de então, traçar um plano de
intervenção coletiva. Além disto, o setor de Direitos Humanos do MST no Paraná pretendia
preparar um material que contasse a história destas famílias. Porém, o contrato de subsídios
ao projeto não foi renovado e a partir de setembro de 2003 não conseguimos dar continuidade ao trabalho, uma vez que a estrutura de deslocamento para os assentamentos, os encontros
para organização dos trabalhos, enfim a estrutura material para a realização do projeto se
extinguiu.
Durante esse período cursei, como aluna especial, uma disciplina do Programa de
Mestrado em Psicologia e Sociedade da Unesp em Assis, e trabalhei alguns excertos das
entrevistas, na perspectiva da disciplina “Projeto de modernidade e constituição do sujeito”.
As análises realizadas forneceram elementos que me instigaram a dar continuidade a esta
pesquisa (Rodrigues, 2003). Assim, no período de setembro a dezembro de 2003, trabalhei
para amadurecer um pouco mais os possíveis caminhos de investigação com estes sujeitos.
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Utilizavam com freqüência essa expressão quando se referiam ao futuro, na esperança de que a vida seria menos sofrida quando
estivessem “em cima do lote”.
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Em março de 2004, ao ser aceita para cursar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia na UFSC, passei a trabalhar com minha orientadora os caminhos para o retorno
ao campo de pesquisa.
ENTRE ANGÚSTIAS E “MIÇANGAS”8, FINALMENTE O PRAZER EM
RETORNAR AO CAMPO
Construir o retorno ao campo, não mais como psicóloga, mas como pesquisadora na
realização de um trabalho acadêmico, como mencionei no início deste artigo, colocou-me
diante do desafio de trazer para o campo da reflexão acadêmica, experiências, sentimentos e
vivências também da ordem do desejo.
Foram necessários meses de trabalho, relendo as entrevistas realizadas, lendo pesquisas
desenvolvidas em assentamentos do MST, dialogando com autores que realizaram trabalhos
com comunidades semelhantes e com um tempo maior de convívio com elas, além de longas
conversas com a orientadora para colocar cada coisa em seu lugar. Precisava valorizar o material e a experiência adquiridos na primeira etapa do trabalho, desvinculada da pesquisa acadêmica
e, ao mesmo tempo, retornar ao campo tendo o olhar disciplinado não mais apenas pela psicologia clínica, pelo envolvimento com as causas de direitos humanos ou ainda pelas demandas
da coordenação do Projeto no MST, mas por teorias de psicologia social, sociologia, antropologia, política, e pela psicanálise, em suas relações com o tema da pesquisa.
Ao optar por um método de pesquisa, foi necessário levar em consideração toda essa
trajetória. Em decorrência dessa necessidade, aproximei-me do modelo antropológico, com
o qual me identifiquei por encontrar nele a possibilidade de realizar um trabalho que me
permitisse carregar a bagagem que acumulara, sem senti-la como um peso ou como um
obstáculo, mas, ao contrário, podendo incorporá-la. Nessa perspectiva, Lago (1996) afirma
que, “enquanto as correntes cientificistas das ciências humanas e sociais procuram a objetividade, a imparcialidade da análise da realidade pelo distanciamento, a abordagem antropológica
está marcada pelo profundo envolvimento do pesquisador com seu objeto de estudo” (p. 19).
Levando em consideração que o envolvimento entre pesquisador e sujeito, no meu caso,
estava concretizado, resolvi buscar nessa metodologia instrumentos para melhor lidar com
essas circunstâncias. Definida a opção de utilizar o método etnográfico como inspiração
metodológica, comecei a preparar de fato o retorno ao campo.
A primeira etapa da pesquisa etnográfica de alguma forma estava cumprida. Tratava-se
da fase “teórico-intelectual”, momento em que, segundo Roberto Da Matta (1978), os “índios são de papel”. Como relatei, depois de um encontro impactante, essas idealizações foram
desfeitas e, os “nativos”, saíram do “papel” e se materializaram em “carne e osso”. Meu
8
Utilizo o termo miçangas, numa referência ao antropólogo Roberto Da Matta que, no texto citado, fala sobre os objetos de troca
que levava a campo a fim de estreitar os vínculos com os nativos. No meu caso as miçangas tinham, além do sentido de troca, o
desejo de presentear.
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conhecimento já estava permeado por “cores, cheiros, dores e amores”. Contudo, continuei
a preparação teórica a fim de visualizar o mesmo cenário sob outras lentes. Em meses de
pesquisas em livros, artigos, bases de dados, fui lapidando essas lentes para chegar ao campo
com um olhar mais aguçado.
Passei então para a segunda etapa da pesquisa, ou como define Da Matta (1978), o
“período prático” (p. 35). É o momento que antecede a ida ao campo, momento em que as
coisas aparentemente menos importantes na fase “teórico-intelectual” tornam-se primordiais. É a hora de pensar em como chegar até o local, quanto levar de alimento, quais remédios
levar, que tipo de roupas serão necessários, quanto levar de dinheiro para eventualidades e
ainda, quais “miçangas” carregar.
Essa segunda etapa foi de bastante angústia, pois, apesar de ter convivido com os sujeitos
durante um período considerável entre os anos de 2002 e 2003, havia perdido o contato com
as famílias. Não tinha notícias, não sabia se as pessoas com as quais eu poderia contar numa
chegada inesperada ainda estavam lá. Não sabia como iriam me receber depois de praticamente dois anos sem contato e, sobretudo, tinha medo de que não quisessem mais falar sobre
o período de maior sofrimento de suas vidas, justamente quando estavam envolvidos com
um novo momento, assentados e reconstruindo suas bases. Para aumentar a angústia, tentei
um contato prévio por telefone através da Secretaria do MST na cidade de São Jerônimo da
Serra, que não consegui efetivar. Mesmo assim, preparei a bagagem, a alimentação, os agasalhos, pois se tratava de um período frio e chuvoso, escolhi umas “miçangas” para os meus
entrevistados e também para outros que não pretendia entrevistar, mas a quem queria presentear (como imaginei que estariam num momento de construção das suas casas, escolhi
alguns utensílios para a casa com a qual tanto sonharam) e fui.
Quando estava chegando a Londrina, ainda distante mais de 100 quilômetros do assentamento, o tempo começou a se preparar para uma tempestade e isso ocasionava uma série
de problemas de ordem prática. Com chuva, era praticamente impossível chegar até o assentamento, teria que pernoitar num único e precário hotel da cidade, o que de pronto me
desagradava. Além disso, estava ansiosa para chegar logo ao assentamento. Felizmente as
nuvens se dissiparam e caiu uma chuva leve, que fez com que o carro rodasse algumas vezes
na estrada de terra, porém nada que causasse maiores problemas, e pude chegar ainda no
final da tarde.
As estradas continuavam as mesmas, a promessa da prefeitura local de arrumá-las, não
havia se cumprido até então. O assentamento estava totalmente diferente. Perdeu a característica de acampamento, onde as famílias constroem seus barracos umas ao lado das outras.
Por ser um assentamento individual, cada família já estava “em cima do seu lote”, distantes
umas das outras. Em alguns lotes havia casas simples construídas em madeira, algumas outras
construídas em alvenaria, a maioria em fase de acabamento. Em outros, as famílias estavam
morando nos barracos de lona preta. Mais tarde me explicaram que os recursos do governo
federal para a construção das casas vêm em etapas. Algumas famílias tinham sido beneficiadas, outras ainda não.
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Era final de tarde e precisava encontrar alguma família que me recebesse naquela noite.
Tinha em mente uma da qual me aproximara durante a primeira etapa do trabalho e, logo que
avistei algumas pessoas na estrada, perguntei-lhes sobre a localização do lote desta família.
Seguindo as orientações, avistei o barraco de lona preta numa área mais baixa do terreno, às
margens de um pequeno rio. Ao ouvirem o barulho do carro se aproximando, as crianças
saíram do barraco para ver quem estava chegando, em seguida saiu a mãe. Desci do carro ainda
a alguns metros do barraco, pois como estávamos em período chuvoso havia muito barro e o
carro poderia ficar atolado. De longe acenei para eles e, ao me reconhecerem, receberam-me
com um misto de surpresa e acolhimento. Convidaram-me para um café e enquanto fazíamos
o lanche, eles me contavam as novidades, tanto da família, como do assentamento. Escureceu
e me convidaram para pernoitar com eles – o casal e quatro crianças. Fiquei um pouco
constrangida por alterar a ordem cotidiana da família, que se acomodava num barraco de dois
cômodos divididos entre cozinha e quarto, e como estava com um carro cujo espaço traseiro
propositalmente acomodava um colchão, pedi que não se incomodassem, pois eu estava preparada para pernoitar no carro. Estacionei o carro na porta do barraco e antes das 21 horas já
estávamos dormindo, ou melhor, já estavam dormindo, porque acostumada com o ritmo urbano, eu invariavelmente durmo mais tarde. Como no lote da família não havia energia elétrica,
a conversa se encerrou cedo, as crianças deitaram porque tinham aula na manhã seguinte, a
vela foi apagada e minha opção era ir para o carro e me esforçar para dormir.
A partir dessa noite, adentrei a terceira etapa do trabalho, a que Da Matta denomina
“existencial ou pessoal”. É caracterizada por um momento em que temos o conhecimento
teórico-intelectual e estamos tendo também a vivência prática, o conhecimento empírico do
cotidiano dos sujeitos. É o momento em que fazemos a interação entre as duas coisas, a
integração do conhecimento. Ou seja, ao “olhar” os barracos, as localidades, “ouvir” as
pessoas, eu o faço a partir de um local que me permite integrar esse conhecimento e direcionálo para os meus interesses concretos. É o momento de “sintetizar a biografia com a teoria, a
prática do mundo com a do ofício”.
Nesta etapa ou, antes, nesta dimensão da pesquisa, eu não me encontro mais dialogando com índios de
papel, ou com diagramas simétricos, mas com pessoas. Encontro-me numa aldeia concreta: calorenta e
distante de tudo que conheci. Acho-me fazendo face a lamparinas e doença. Vejo-me diante de gente de
carne e osso. Gente boa e antipática, gente sabida e estúpida, gente feia e bonita. Estou, assim, submerso
num mundo que se situava, e depois da pesquisa volta a se situar, entre a realidade e o livro. (Da Matta,
1978, p. 25).
Não foi uma noite muito agradável, acordei várias vezes e, não sem susto, com vacas,
cavalos e galinhas ao lado do carro, fazendo barulho. Mas com o início da manhã veio
também uma sensação de familiaridade com o local e depois de um café, despedi-me da
família e fui procurar um dos coordenadores gerais do assentamento, a fim de explicar o
motivo do meu retorno e solicitar permissão para realizar o trabalho.
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Essa situação me deixou um pouco ansiosa, receava não ser entendida, ou simplesmente
me ser negada permissão. Estava na coordenação um dos militantes que apoiou muito o
desenvolvimento do projeto anterior, e que me recebeu muito bem, demonstrando bastante
interesse em apoiar e participar da pesquisa. Depois de muitas cuias de chimarrão e depois de
ter me mostrado o lote, o açude, o poço em construção, a casa dos pais construída em
alvenaria e bem acabada, os animais que por ali estavam e após termos conversado bastante
sobre a situação atual do assentamento, as novidades, as mudanças, ele e sua esposa me
convidaram para almoçar. O casal estava morando em um barraco de lona e se preparando
para construir a casa no lote que dividem com os pais do rapaz. Logo após o almoço, fomos
acompanhar a construção do poço, a alguns metros da casa dos pais e, depois de descansarmos um pouco entre conversas e chimarrão, fiz a entrevista com o coordenador.
A partir da primeira experiência me dei conta de que estava novamente adentrando o
mundo deles, onde se tem a sensação de que o tempo tem outra dimensão, onde se tem
tempo para as visitas, para as conversas, para contar os “causos” e apreciar os encantos da
vida no campo. E assim foi a dinâmica com todas as famílias que visitei, todas me recebiam
com muito carinho, mostravam-me os detalhes do lote, das casas, dos animais, falavam sobre
os planos para os recursos advindos do governo federal, contavam as novidades sobre os
filhos, os vizinhos, as manifestações políticas na cidade, as reuniões, as assembléias e missas,
compartilhavam comigo sua comida e me convidavam para pernoitar com eles.
Em meio a esse clima de boas-vindas, realizei as visitas e todas as entrevistas da segunda
etapa da pesquisa. As lembranças e as falas sobre o passado de tanto sofrimento fluíam,
inevitavelmente, carregadas de emoção. Ao mesmo tempo, preservadas as particularidades
de suas experiências, predominava um sentimento generalizado de alegria pela superação de
momentos tão difíceis. Estavam bastante envolvidos com os projetos para a casa e para o lote
e essa alegria era contagiante, marcando definitivamente os dias em que estive com eles.
Toda essa vivência de campo, formada por esses momentos que antecedem e que seguem
a entrevista, são de fundamental importância na pesquisa etnográfica. Acompanhar os sujeitos nos momentos de construção de um poço, da colheita dos legumes para o almoço, da
ordenha da vaca, enfim, nas suas tarefas cotidianas, devem ser atividades consideradas pelo
pesquisador como material precioso de pesquisa, como discursos não falados que trazem, nas
entrelinhas elementos importantes para observar aspectos da constituição psíquica, social e
histórica de cada sujeito. O enfoque nessas nuances do campo de pesquisa é tecnicamente
chamado de “observação participante” e, segundo o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2000) é o que distingue o trabalho de campo antropológico, dos demais métodos de
observação na área das ciências sociais.
Trata-se de um instrumento metodológico que exige do pesquisador um longo período
de convivência com seus informantes, para que possa se “familiarizar com o exótico” (Da
Matta, 1978) e para que os sujeitos pesquisados se familiarizem com o pesquisador, de modo
que a observação e as interlocuções que daí decorram sejam as mais espontâneas possíveis.
Para Oliveira (2000) “este é um gênero de observação muito peculiar – isto é, peculiar à
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antropologia – por meio da qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender – a
sociedade e a cultura do outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade” (p. 34).
É também a “observação participante” que permite a realização do que Clifford Geertz
(1978), aponta como a característica principal da pesquisa em antropologia social, isto é,
uma “descrição densa” do cotidiano dos sujeitos. Para Cláudia Fonseca (1999), é exatamente
essa descrição detalhada e profunda das situações percebidas pelo pesquisador que dá ao
modelo antropológico de pesquisa a dimensão de ciência do concreto: “A etnografia é calcada numa ciência, por excelência, do concreto. O ponto de partida desse método é a interação
entre o pesquisador e seus objetos de estudo, ‘nativos em carne e osso’” (p. 58).
No entanto, para se fazer uma descrição densa, falando de coisas que não foram ditas,
interpretando também os silêncios, é necessário o exercício das faculdades de “ouvir” e
“olhar”. Ouvir o que o informante está dizendo nas linhas e entrelinhas de seu discurso, e ver
com um olhar capaz de captar mais do que imagens, imagens em movimento, em interação
com o que é dito e com o contexto social, cultural e histórico do universo do sujeito requerem sensibilidade e exercício de relativização. De acordo com Oliveira (2000), é através da
fala do informante que seu universo simbólico se revela. A entrevista assume então um espaço privilegiado, sendo condição imprescindível para que os “horizontes semânticos” do
pesquisador e do informante se abram, possibilitando o verdadeiro “encontro etnográfico”.
Mas, para tanto, é necessário desconstruir verdades e procurar ouvir o que de fato o
informante está querendo dizer. Em geral, desenvolvemos ao longo da vida a capacidade de
ouvir e ver o que nos interessa, ficando surdos e cegos ao que em algum momento nos
confronta. E esse é um dos importantes exercícios que o método etnográfico – assim como a
escuta clínica – nos impõe. É necessário que o pesquisador aceite as diferenças que aparecem
na sua relação com o informante, como situações próprias de um momento em que dois
universos distintos se encontram, o que para Oliveira (2000) “é sempre um encontro político”, uma vez que envolve sujeitos de diferentes classes sociais, gênero, etnia, entre outras
condições que exigem relativização e para as quais o pesquisador deve estar atento. Relativizar
é também ter sensibilidade para entender que tanto as suas concepções, como as do informante, não são “um discurso nem falso, nem verdadeiro, mas que representa uma dimensão
de uma realidade social multifacetada” (Fonseca, 1999, p. 64).
A vivência das diversas etapas de diálogo e construção dos conhecimentos necessários
para retornar ao campo, somada às experiências que obtive através das “entrevistas”, do
“ouvir” e do “olhar”, resultaram num sentimento de bastante proximidade com o “confronto entre dois universos”. Identifiquei-me com as palavras de Da Matta acerca desse confronto
que, através de “mediações pacientes e artesanais”, transforma-se em “encontro”:
(...) se estabelece uma ponte entre dois universos, (ou subuniversos) de significação, e tal ponte ou mediação é realizada com um mínimo de aparato institucional ou de instrumentos de mediação. Vale dizer, de
modo artesanal e paciente, dependendo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todos os
outros ingredientes das pessoas e do contato humano. (Da Matta, 1978, p. 27).
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Parece-me que a beleza desse modelo de pesquisa consiste exatamente em “estabelecer
uma ponte entre dois universos” distintos, significando e sendo significado nesta relação. O
que me remete ao ofício do psicanalista, quando na relação transferencial e estabelecida a
partir do encontro entre dois inconscientes, os conteúdos que dali emergem são significados
e transitam entre os sujeitos. O antropólogo Vicent Crapanzano (1991), que faz uma
interlocução com a psicanálise, ao apontar indiretamente esta dimensão transferencial e
contratransferencial do trabalho de campo antropológico, afirma que “qualquer que seja a
resistência daqueles com quem conversamos, eles sempre são um pouco nossa criação, assim
como nós somos a deles” (p. 79).
E é quando se deixa o campo e se inicia o trabalho de forma solitária e isolada na etapa
do “escrever”, que essas significações e ressignificações que brotaram durante o trabalho de
campo ganham uma dimensão mais exata. É na solidão do “gabinete”, ou do quarto de
estudos, que conseguimos elaborar as observações, entrevistas, acontecimentos e sentimentos, colocando-os sob a configuração da racionalidade do discurso acadêmico, nas
interpretações que produzimos.
É nessa última etapa da pesquisa etnográfica, a escrita9, que as lembranças das vivências do
campo emergem com força maior do que se supunha. É aí que se percebe o quanto se foi
ressignificado pelas experiências vividas no “estando lá” (Geertz, 1996). Nesse período, não
foram raros os momentos em que me surpreendi submergindo nas reminiscências do trabalho
que fiz “lá”, e de uma forma não totalmente consciente, as pessoas, as falas, as paisagens, “os
cheiros, as cores, as dores e amores”, passaram a ocupar um espaço progressivo e constante na
minha vida intelectual. Também não foram raras as ocasiões em que, ao emergir dessas águas já
distantes, trazia involuntariamente à cena personagens inusitados: tratava-se do anthropological
blues10 pedindo passagem, como dimensão presente numa “ciência interpretativa, destinada
antes de tudo a confrontar subjetividades e delas tratar” (Da Matta, 1978, p. 35).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRAPANZANO, Vicent. Diálogo. In: RAMOS, Rita A. (coord.). Anuário antropológico/88. Brasília: ed. UNB,
1991. p. 59-79.
DA MATTA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter “antropological blues”. In: NUNES, Edson de
Oliveira (org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1978.
FONSECA, Cláudia. Quando cada caso não é um caso. Revista Brasileira de Educação, n. 10. p.58-78, jan/
abr. 1999.
9
Para Roberto Cardoso de Oliveira (2000), lendo Geertz (1996), o trabalho etnográfico compreende diferentes (porém
interdependentes) etapas: “olhar”, “ouvir” e “escrever”.
10
O termo anthropological blues, segundo Da Matta, no texto citado, foi cunhado pela doutora Jean Carter Lave, na tentativa de
nominar os elementos que aparecem de forma inusitada no campo de pesquisa, e que fogem ao script, ou seja, os sentimentos, a
emoção, a saudade, a tristeza, a empatia, a antipatia, enfim, “Estes seriam, para parafrasear Lévi-Strauss, os hóspedes não convidados
da situação etnográfica. E tudo indica que tal intrusão da subjetividade e da carga afetiva que vem com ela, dentro da rotina
intelectualizada da pesquisa antropológica, é um dado sistemático da situação” (Da Matta, 1978, p. 30).
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
_______. El antropólogo como autor. Barcelona, Paidós, 1996.
LAGO, Mara Coelho de Souza. Modos de vida e identidade: sujeitos no processo de urbanização na Ilha de
Santa Catarina. Florianópolis: ed. da UFSC, 1996.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo. 2. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 2000.
RODRIGUES, Adriana. A violência institucional como método para lidar com a miséria social: a trajetória dos/
as sem terra do assentamento Dom Hélder Câmara/PR, no difícil percurso de luta até chegar “em cima do lote”.
Florianópolis. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Centro de Filosofia e Ciências Humanas. UFSC.
_______. Uma breve análise do Movimento Sem Terra no contexto da modernidade. Setembro de 2003. Mimeo.
Gênero e trabalho: considerações sobre a
organização/divisão sexual do trabalho
em um assentamento coletivo do MST
Giovana Ilka Jacinto Salvaro
ALGUNS DOS PRESSUPOSTOS QUE FUNDAMENTARAM O ESTUDO
P
ara tecer essas considerações, convém, inicialmente, destacar alguns dos pressupostos que fundamentaram o estudo e que dizem respeito ao MST, movimento social
reivindicatório e mediador de transformações sociais, e à constituição das/os trabalhadoras/
es nesse processo. O MST trava sua luta no terreno da exclusão de trabalhadores rurais do
acesso à terra. Contudo, as desigualdades de classe e de gênero também são preocupações do
Movimento. As questões de gênero passaram a incorporar os discursos do MST, de acordo
com o setor de gênero1, a fim de nortearem a organização dos acampamentos, assentamentos, assim como as demais relações entre os sujeitos que integram o Movimento, ainda que
tal incorporação, como foi descrito em um dos objetivos gerais do setor, estabeleça certa
dependência em relação às lutas de classe, como é possível evidenciar: “(a) Levar a discussão
de gênero para o conjunto do MST e procurar mostrar a importância de se estabelecer novas
relações de gênero para avançar a luta de classes” (MST, 2001, p. 147-148).
No que tange à luta pela transformação social, segundo Stédile e Frei Sérgio (1996), o
MST incentiva a organização de assentamentos, áreas de terra destinadas aos agricultores
sem terra, em torno de associações e cooperativas de produção, ao invés do trabalho em lotes
individuais; incentivo justificado pelo fato de que o MST defende que as organizações coletivas facilitam, ao mesmo tempo, a especialização e a diversidade, o aumento de investimentos
na produção, a obtenção de recursos econômicos e a comercialização da produção. Para
1
O MST conta com um setor de gênero, em que se defendem objetivos gerais e específicos, orientados para a construção de novas
relações entre homens e mulheres.
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tanto, o MST ressalta: “não podemos deixar de estimular o trabalho coletivo, visto que é
uma forma superior de cooperação, tem o sentido estratégico do nosso novo jeito de conceber a agricultura” (MST, 2001).
A partir disso, pode-se supor que buscar um “novo jeito” significa lutar para eliminar as
desigualdades que atravessam as relações entre os sujeitos, sejam estas de classe ou de gênero.
Além disso, pode-se pensar também que as referidas desigualdades não se limitam às produções materiais, pois se assim fosse, representariam apenas a distribuição da terra. Isso implica
dizer que produções sociais e culturais constituem a interface desse processo e a transformação social proposta estaria atrelada a mudanças nas significações produzidas pelas/os
trabalhadoras/es acerca da sua atividade. O que se quer destacar com isso é o caráter histórico e cultural das desigualdades de classe e de gênero, as quais apontam para a implicação do
sujeito na construção da sociedade.
Diante desse quadro, ressalta-se que na perspectiva da psicologia histórico-cultural, fundada por Vygotski e fundamentada epistemologicamente nos pressupostos marxistas, os sujeitos
constituem a sociedade e, ao mesmo tempo, constituem-se. Eles são produtores e produtos
da história, e esse duplo processo de constituição decorre das relações que estabelecem entre
si. Na lógica marxista, ao intervirem na natureza para produzir a existência, os sujeitos se
produzem. Nesse caso, o trabalho como ação humana possibilita a produção das condições
de existência. Segundo Zanella (2001) “o conceito de atividade/ação utilizado por Vygotski
está diretamente relacionado ao conceito de trabalho humano tal como proposto na teoria
marxista” (p. 74). A ênfase das duas teorias está posta nas relações sociais como fundantes
dos sujeitos e das sociedades. Contudo, como ressalta a autora citada, na teoria de Vygotski,
a centralidade está posta na atividade mediada.
...a atividade caracteristicamente humana, pois, é sempre necessariamente mediada, o que demarca a
relação indireta que estabelecemos com a realidade: de acordo com a perspectiva vygotskiana, o nosso
contato com o mundo físico e social não é direto, é na verdade marcado por aquilo que significamos desse
próprio mundo, significação essa igualmente marcada pelas nossas experiências, possibilidades, enfim,
pela nossa história de vida (Zanella, 2001, p. 77).
Partindo desse pressuposto, os sujeitos não se apropriam da realidade em si, mas das
significações que são produzidas acerca dessa realidade. Significa dizer que a atividade é
sempre mediada por “instrumentos de dois tipos: os técnicos, produzidos para agir sobre a
natureza ou a realidade material, e os semióticos (sistemas de signos), criados para a comunicação entre os diferentes atores e para representação da realidade” (Vygotski apud Pino,
1995, p. 31). Refere-se, assim, à centralidade dos processos de significação, formados pelos
signos produzidos e apropriados histórica e culturalmente pelos sujeitos, e que possibilitam a
constituição do psiquismo humano. Desta forma, os significados, convencionados coletivamente, e os sentidos referentes à singularidade da apropriação de tais convenções,
compreendem o duplo referencial do processo de significação. Reporta-se aqui, ao fato de
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TRABALHO:
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
A
ORGANIZAÇÃO/DIVISÃO
SEXUAL
DO
TRABALHO...
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que os “instrumentos têm várias coisas em comum, em particular sua função mediadora nas
relações dos homens entre si e deles com o mundo, como sublinha Vygotski (1984)” (PINO,
1995, p. 31).
Diante disso, pode-se dizer que as transformações sociais propostas pelo MST, dentre as
quais as que dizem respeito às relações de trabalho e de gênero, passam pela transformação
dos seus aspectos materiais e das significações produzidas acerca dessas relações. As relações
de trabalho e de gênero, como construções sociais, produzem sujeitos e modos de vida.
Como enfatiza Saffioti (2004) acerca do gênero:
Este conceito não se resume a uma categoria de análise, como muitas estudiosas pensam, não obstante
apresentar muita utilidade enquanto tal. Gênero também diz respeito a uma categoria histórica, cuja
investigação tem demandado muito investimento intelectual. Enquanto categoria histórica, o gênero pode
ser concebido em várias instâncias: como aparelho semiótico (Lauretis, 1987); como símbolos culturais
evocadores de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (Scott, 1988); como divisões e atribuições assimétricas
de características e potencialidades (Flax, 1987); como numa certa instância, uma gramática sexual, regulando não apenas relações homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações mulher-mulher
(Saffioti, 1992, 1997B; Saffioti e Almeida, 1995) etc. Cada feminista enfatiza determinado aspecto do
gênero, havendo um campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a construção social do masculino e do feminino (p. 44-45).
Tendo em vista esses pressupostos, outro aspecto não deve ser desconsiderado: o de que
as relações de trabalho são atravessadas pelas relações de gênero2. De acordo com Fonseca
(2000) e Souza Lobo (1991), a força de trabalho é sexuada, valorizada conforme os significados atribuídos histórica e culturalmente às atividades femininas e masculinas, o que culmina
na divisão sexual do trabalho. Como desdobramento da articulação das relações de trabalho
e de gênero, tal divisão, segundo Souza Lobo (1991), requer que se considerem dois pontos,
os quais compreendem a produção de bens mercantis, a reprodução dos seres humanos e a
relação assimétrica que se estabelece entre produção e reprodução e que, por sua vez, orienta
as relações entre homens e mulheres nos demais espaços sociais.
Em face desses pressupostos, sendo coerente com a psicologia histórico-cultural, buscou-se investigar e analisar a organização/divisão sexual do trabalho no assentamento, bem
como os sentidos produzidos pelas/os trabalhadoras/es acerca de tal configuração, de forma
contextualizada, centrando o olhar nas trajetórias de trabalho destes sujeitos e suas implicações nas atividades diárias e na construção do assentamento. Nessa perspectiva, foram
realizadas entrevistas abertas e observações, por meio das quais foi possível tramar a análise.
As considerações que seguem constituem partes dessa análise, focando em pontos considerados pertinentes à discussão proposta.
2
Cabe destacar também que as relações de gênero, de classe, étnicas, entre outras, como pontua Scott (1990), articulam-se entre si.
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A ORGANIZAÇÃO/DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO ASSENTAMENTO:
AS RELAÇÕES DE GÊNERO NESSE PROCESSO
...discutir assentamentos rurais implica vê-los como parte de uma história de distintos tempos, vivida por
múltiplos atores sociais que têm as fronteiras de seu mundo demarcadas por pressões, atritos e, conseqüentemente, por lutas. O trilhar desse caminho não obedece a padrões lineares de desempenhos, sucessos
ou insucessos, alocados unicamente no plano econômico ou no embate desses atores com outros agentes,
dentre eles, o Estado. Exige, sim, o repensar das condições objetivas e subjetivas que poderiam provocar
a explosão de conflitos e o desencadeamento de mudanças (Sonia M. P. Bergamasco).
A autora contribui para evidenciar que as relações sociais que se estabelecem nos assentamentos não estão isentas de atravessamentos conflituosos, inscritas nas condições objetivas
e subjetivas dos atores envolvidos. Entendendo-se que não se trata apenas da ocupação de
um espaço geográfico, mas também da forma como os sujeitos se organizam socialmente
para ocupar e construir espaços de produção e reprodução da vida, buscou-se analisar as
relações de trabalho no assentamento estudado.
Nesse sentido, foi possível observar que as questões de gênero foram incorporadas às
discussões desde o período do acampamento. Segundo alguns depoimentos das/os trabalhadoras/es, as ações que mobilizaram a ocupação e o acampamento3 envolveram homens e
mulheres de diferentes gerações. Sobre este aspecto, pesquisas sobre a temática gênero no
MST, realizadas por Lechat (1993), Pavan (1998) e Melo (2001), nos estados do Rio Grande
do Sul e São Paulo, ressaltam a participação das mulheres no processo de luta pela terra. No
caso estudado, especificamente, incluindo a ocupação e o período de acampamento, além de
serem ações que articularam mulheres e homens de diferentes gerações, foi possível observar
que a organização contava, desde os acampamentos anteriores, com a possibilidade de construção de um assentamento coletivo após a conquista da terra, orientada para a efetivação de
um espaço que pudesse contribuir para o rompimento de relações desiguais entre os sujeitos.
Quanto à construção e organização de assentamentos coletivos, o MST (2001) enfatiza
“a importância de identificar no processo de discussões aquelas famílias que desejam conhecer melhor a nossa proposta de trabalho coletivo e nisto abrir espaços específicos para estudos
e reflexões com elas” (p. 98). Assim, pode-se supor que essas reflexões motivaram o grupo
que fez a ocupação e as pessoas que passaram a integrá-lo posteriormente, no período de
acampamento e no assentamento.
Tendo como objetivo essa construção, as ações que seguiram foram orientadas para a sua
efetivação, de modo que os trabalhadores que permaneceram quando do processo de desapropriação da terra e criação do assentamento aceitaram integrar o grupo, assim como o
3
“Ocupação é um processo socioespacial e político complexo que precisa ser entendido como forma de luta popular de resistência
do campesinato, para sua procriação e criação” (Fernandes, 2000, p. 281). Os acampamentos, por sua vez, de acordo com este
autor, “são espaço e tempos de transição na luta pela terra. São, por conseguinte, realidades em transformação. São uma forma de
materialização da organização dos sem-terra e trazem, em si, os principais elementos organizacionais do movimento.
Predominantemente, são resultados de ocupações. São, portanto, espaços de lutas e de resistência” (Fernandes, 2000, p. 293).
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modelo proposto. Como parte do projeto, incluindo aí as questões de gênero, as casas foram
construídas na forma de uma agrovila4, por seus próprios moradores e moradoras. O que
demandou que eles aprendessem a construir casas, trabalho que alguns nunca haviam realizado. A tarefa de capacitação, por assim dizer, foi promovida pelo Sistema Nacional de Empregos
(SINE), por meio de um curso de construção civil, em que se buscou envolver mulheres e
homens.
Foi possível observar que a construção de casas não era um trabalho até então realizado
pelas mulheres. Há que se considerar que o envolvimento das mulheres, impulsionado pelos
instrutores, como observado em relatos, lança questões acerca do fato de que mesmo quando
não ocorre uma divisão do trabalho por gênero, propriamente, ou seja, mesmo quando realizam as mesmas atividades, ocorrem produções de diferentes significados, os quais se
encontram atrelados aos sujeitos que as realizam, mulheres ou homens.
A incorporação do trabalho feminino à construção das casas, entre outras questões,
pode ser considerada a partir dos objetivos específicos do MST, a saber: “b) Massificar e
qualificar a participação das mulheres desde antes do acampamento (fase de preparação),
durante a luta pela terra, nos assentamentos, setores e instâncias” (MST, 2001, p. 147-148).
Assim, no processo de construção do assentamento, buscando seguir as diretrizes sugeridas
pelo MST, no que se refere à organização /divisão do trabalho, foi definida uma direção
geral, núcleos de base e setores que compreendiam a lavoura, gado (leite para venda, consumo e corte), subsistência (horta comunitária e demais produções destinadas ao consumo
interno), integração (criação de suínos para agroindústrias em sistema de contratação de
trabalho), administração e o social (saúde, educação, lazer, mística, embelezamento). É importante considerar que, diferentemente da direção geral do assentamento e dos setores, os
núcleos, responsáveis por ações organizativas e políticas dentro do assentamento5, eram constituídos por todos os assentados. Segundo as diretrizes, a coordenação dos núcleos de base
deve ser constituída por uma mulher e por um homem.
...para nós do MST, a coordenação do núcleo deverá ser necessariamente compartilhada em pé de igualdade por um homem e por uma mulher, escolhidos por todos os membros do núcleo... Os dois
coordenadores (um homem e uma mulher) é uma opção política que o MST faz de muita importância
para a vida do assentamento. Em geral, o assentamento é comandado pelos homens, sob um olhar masculino da vida, o que limita a compreensão do conjunto do assentamento. A presença feminina na direção
e coordenação do assentamento é um esforço que cabe a todos realizar, buscando qualificar estas coordenações para apreender a realidade do assentamento como um todo (MST, 2001, p. 84-85).
4
“A agrovila, como forma particular de ocupar o território rural, implica, para os assentados, que suas futuras casas sejam localizadas
umas próximas às outras. Já as dimensões do lote, o tipo de implantação da casa dentro do lote, são decisões a serem discutidas em
geral entre, assentados e assessores. Mas, por definição, as casas devem ser construídas próximas e num núcleo comum” (Castells,
2001, p. 160).
5
Os núcleos intermediavam as discussões entre os setores e entre os setores e a direção. De modo que as questões discutidas pela
direção e pelos setores eram estudadas e avaliadas nos núcleos e nas assembléias.
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Assim, visando a essa incorporação no processo de organização/divisão do trabalho,
percebeu-se a circulação de produções discursiva6 sobre as questões de gênero, mediadas por
uma das assentadas. Como argumento, além de fazer referência à organização do trabalho,
antes realizado apenas pelos membros da família, no “lote individual”, onde as mulheres
“faziam tudo”, esta apontou para outras questões que diziam respeito ao trabalho organizado em setores, e a possibilidade de as mulheres integrarem todos os setores, por conta de
facilidades que podem advir com a compra de máquinas para a realização do trabalho mais
pesado. Essa argumentação, ao que se pode perceber, apóia-se em referenciais do trabalho
considerado leve e pesado, os quais não se explicam apenas como atividades mediadas por
instrumentos técnicos. Sob essa perspectiva, Paulilo (1986, p. 137) contribui para refletir
sobre “a falácia da ‘naturalidade’ da distinção entre trabalho ‘leve’ e ‘pesado’”. A autora
esclarece que a classificação de leve ou pesado para o trabalho agrícola está atrelada ao
sujeito que o realiza. As mulheres e as crianças, dessa forma, realizam os trabalhos considerados leves e o trabalho pesado é realizado por homens. Inscreve-se em uma lógica social e
simbólica, que extrapola o trabalho material, por assim dizer, em que se atribuem significados em função de quem o realiza, mulheres, crianças e homens.
Por conta disso, outras questões estão em jogo e, fundamentalmente, incluem, mas não
se restringem à compra de máquinas agrícolas. Há que se modificar as significações produzidas acerca do trabalho, assim como o movimento de apropriação dessas significações pelos
sujeitos, nesse caso, inscritos na transformação dos instrumentos técnicos e semióticos que
constituem o fazer cotidiano dos setores no assentamento. Woortmann & Woortmann (1997),
em estudo acerca da lógica e da simbólica da lavoura camponesa, destacam que mesmo em
atividades realizadas conjuntamente, em condições iguais, as ferramentas e o tempo de trabalho não são os mesmos para homens e mulheres. E como foi possível observar, durante os
períodos em que se acompanhou a rotina diária de trabalho e em alguns dos depoimentos
concedidos, as mulheres e os homens coordenavam núcleos de base e integravam os setores,
no entanto, essas inserções apresentavam diferenças significativas.
Isso implicou considerar os atravessamentos das relações de gênero, presentes na não
participação feminina nos setores de integração e administração, inserção limitada no setor
da lavoura e do gado, predominância nos setores de subsistência, social e direção geral do
assentamento, e nas jornadas diárias diferenciadas para homens e mulheres nos setores de
produção7. Quanto às diferentes jornadas de trabalho, os homens cumpriam uma jornada de
8 horas e as mulheres de 4 horas diárias. As horas trabalhadas tinham o mesmo valor de troca
para homens e mulheres, convertidas em alimentação e dinheiro, de modo que os homens
eram os maiores responsáveis, pensando em termos de porcentagem de horas trabalhadas,
pela manutenção alimentícia e financeira da família.
6
“A palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim
palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando” (Orlandi, 2003, p. 15).
7
Estas questões sobre o modo de organização do trabalho articulado às questões de gênero em assentamentos coletivos do MST
que diferenciam trabalhos femininos e masculinos, também foram ressaltadas nos estudos de Lechat (1993), Schwade (1993),
Pavan (1998), Melo (2001), Silva (2003), entre outros.
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Nessa lógica organizativa, o cuidado com os filhos foi ressaltado, entre outras questões,
como um dos cerceadores da inserção das mulheres no setor da administração do assentamento. Vale pontuar que, entre outras coisas, o setor de administração era responsável pela
comercialização da produção. Sobre a manutenção da figura masculina como o “negociador” em grupos de trabalho coletivo, Lechat (1993) observou, em seu estudo sobre dois
assentamentos localizados no Rio Grande do Sul, que o trabalho e sua representação são
modificados, bem como as relações hierárquicas e de poder, mas os homens ainda assumem
a produção para venda e sua comercialização.
No assentamento foi possível observar que havia uma naturalização da mãe como a
principal cuidadora das crianças. Assim, as questões referentes ao cuidado das crianças e as
limitações que daí derivam para a inserção das mulheres em um determinado setor, não eram
exclusividade do setor da administração. O setor da lavoura, por exemplo, onde eram realizados os trabalhos de preparo da terra, plantio e colheita contava com a participação de uma
das mulheres, porém com algumas restrições, que se inscreviam no cuidado das crianças.
Desse modo, evidenciou-se que um dos eixos centrais da divisão/organização sexual do
trabalho compreendia o cuidado das crianças como uma atividade das mulheres. A criação
da ciranda infantil, nesse sentido, vem ao encontro da preocupação do MST em relação ao
cuidado das crianças no assentamento8. A ciranda infantil extrapola, por assim dizer, o âmbito familiar e passa a ser um assunto discutido e de responsabilidade do grupo como um
todo9. Nesse ponto, destaca-se que no assentamento existia a ciranda infantil, integrada ao
setor social, pela qual as responsáveis eram as mulheres; o que não altera o pressuposto de
que cuidar é uma atribuição feminina, apesar de questionamentos em relação a isso. Essas
pontuações relativas ao viés naturalizador do cuidar, longe de se caracterizarem como uma
negação de que as crianças necessitam de cuidados, remetem ao fato de que tais relações
devem ser consideradas como produções sociais e culturais, e por isso, passíveis de serem (re)
significadas. Como esclarece Saffioti (1994).
Não se trata de buscar qualquer outra igualdade situada fora do campo social, na medida em que isto
levaria, inexoravelmente, a uma essência masculina e uma essência feminina. Tampouco se trata de negar
diferenças entre homens e mulheres, o que representaria intolerância, mas entendê-las como fruto de
uma convivência social mediada pela cultura (p. 271).
Outra questão é que, se por um lado, os horários de trabalho das mulheres eram definidos em função da ciranda infantil, por outro lado, a ciranda infantil definia o seu horário a
partir das atividades das mulheres nos diferentes setores de trabalho. Essas relações são complexas e contraditórias, porque outras demarcações de espaços não diziam respeito apenas
8
“d) Organizar a ciranda infantil: também deveremos discutir com as famílias do assentamento a necessidade da ciranda infantil
para crianças de zero a seis anos. Este espaço, além de criar condições para a participação das mulheres no processo produtivo do
assentamento, também proporciona espaços de socialização e educação coletiva das crianças pequenas” (MST, 2001, p. 96).
9
Outros estudos sobre o MST ressaltam este arranjo coletivo, entre estes, Pavan (1998).
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ao horário de funcionamento da ciranda. Implica dizer que existiam, além desses, outros
atravessamentos que se inscreviam a priori na organização/divisão do trabalho nos setores, os
quais contribuíam para a reprodução de uma divisão sexual do trabalho fundada nos limites
das esferas consideradas doméstica e da produção. Faz-se importante destacar que a divisão
que se coloca entre os trabalhos doméstico e produtivo, no meio rural, longe de encerrar
polêmicas, posto que a concepção de produtivo no modo de produção capitalista é apenas
aquele que produz mais valia, coloca-se como possibilidade de leitura de uma realidade em
que o trabalho se revela como generificado. Como ressalta Paulilo (2004),
...nas propriedades familiares não é nada simples separar o que é trabalho doméstico do que seria trabalho
produtivo. Afinal, o conceito de ‘trabalho produtivo’ foi cunhado para situações em que se dá a extração
de mais-valia, ou seja, quando o trabalho excedente é apropriado pelo dono dos meios de produção, ou
seja, o capitalista. Querer empobrecer seu sentido até reduzi-lo ao trabalho que produz o que pode ser
vendido, o que tem valor de troca é, como diz Alexander Chayanov, tentar explicar diferentes formas de
produzir apenas com categorias adequadas para o modo de produção capitalista, o que só faz sentido se
entendermos essas formas como transitórias, em vias de extinção (p. 245).
Tendo a clareza dessas questões e a partir do que se observou com a pesquisa, alguns dos
fios condutores da organização/divisão do trabalho nos setores, que contribuíam para definir
jornadas de trabalho diferenciadas para homens e mulheres, consistiam na conciliação, por
parte das mulheres, do trabalho doméstico e do cuidado para com as/os filhas/os. Pode-se
dizer que os trabalhos restritos a cada casa, no seu conjunto, instauravam certa ordem que
regulava os horários do assentamento e contribuíam para determinar a inserção das mulheres
nos demais setores de trabalho.
Seguindo com essa discussão, mais questões poderiam ser desdobradas, produzindo outras tantas. Contudo, com o intuito de finalizar este artigo, cabe destacar que esses fragmentos
de análises mais amplos, tramados a fim de comporem a discussão, desvelaram questões
ilustrativas do modo como os trabalhadores produziram sentidos diversos acerca de uma
realidade em que se discutem questões relativas ao gênero e se busca incorporar a concepção
de igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres à organização do trabalho.
Essas produções apontaram para o fato de as mulheres serem a maioria no setor social e
de subsistência, onde não estabeleciam vínculo direto com a produção para venda, e os
trabalhos nos setores eram realizados a fim de serem conciliados com o trabalho doméstico.
Porém, evidenciaram também que as mulheres eram maioria na direção, em que eram definidos, por assim dizer, os “rumos do assentamento”. Nessa perspectiva, a realidade pode sugerir
que a possibilidade de que a organização/divisão do trabalho no contexto da coletivização da
terra, como forma de transformação de uma realidade de desigualdades de classe, não implica diretamente na transformação de uma realidade de desigualdades de gênero. Dessa forma,
tendo em vista que a transformação social proposta estaria atrelada a mudanças nos significados e sentidos produzidas pelos trabalhadores acerca da sua atividade, isso nos leva a considerar
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que as relações de trabalho e gênero não se apresentam de forma linear e universal; ao
contrário, apresentam-se de forma singular e multifacetada, exigindo leituras historicamente
contextualizadas, evidenciando a complexidade inerente ao processo de constituição dos
sujeitos e da realidade social e cultural.
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Agricultores e agricultoras familiares
vivenciando mudanças e permanências
na conversão para agricultura orgânica
Aline Drews
A
apropriação da agricultura orgânica possibilitou mudanças e permanências nos
modos de vida e trabalho de um grupo de agricultoras e agricultores familiares residentes na
localidade de Vargem do Braço, Santo Amaro da Imperatriz – Santa Catarina. Estes agricultores e agricultoras foram os informantes da pesquisa de campo desenvolvida para a elaboração
da dissertação de mestrado Transformações nos modos de vida e trabalho relacionadas à
transição para a agricultura orgânica: um estudo com agricultores familiares em Santo Amaro
da Imperatriz/SC (Drews, 2006).
As entrevistas e as observações, estratégias utilizadas para obtenção de informações,
foram realizadas nas residências e nos locais de trabalho de seis agricultores (idades entre 15
e 70 anos) e seis agricultoras (idades entre 16 e 67 anos), em 2005. Os dois espaços, de labor
e moradia, muitas vezes se confundiam, demonstrando que não podem ser considerados
estanques mesmo no meio rural em transformação.
O esclarecimento da forma como são concebidos dois conceitos fundamentais neste
trabalho – agricultura familiar e agricultura orgânica – precederá as discussões relacionadas
às especificidades do contexto estudado. A compreensão da categoria agricultura familiar é
possibilitada pelas discussões desenvolvidas por Maria Wanderley (1999). A autora destaca o
caráter mais geral do termo, o que propicia abrangência de diversas situações peculiares. A
característica compartilhada pelos diferentes exemplos de agricultura familiar é a centralidade
da família. A autora demonstra a importância da família neste modelo de agricultura ao
afirmar que ela “ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o
trabalho no estabelecimento produtivo” (Wanderley, 1999, p. 23).
Entre os pioneiros na conversão para o modelo de produção orgânica nesse grupo de
agricultoras e agricultoras estavam casais ligados por laços de parentesco. Os vínculos
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familiares entre eles originavam-se nos membros masculinos dos casais. Com a progressiva
efetivação da prática orgânica entre os precursores da transição, outros membros da mesma
família iniciaram a conversão para modelo orgânico.
A agricultura orgânica não é concebida aqui como um mero conjunto de técnicas. Para
compreendê-la é necessário considerar o ideário a ela relacionado. Guivant (1995) apresenta
a agricultura orgânica como uma alternativa às práticas agrícolas convencionais, resultantes
da modernização agrícola, e àquelas que a antecederam, as práticas tradicionais. De acordo
com a autora, ela diferiria das outras formas de agricultura por sua preocupação com o meio
ambiente e a saúde, sem abdicar da comercialização de seus produtos, mas não prezando
pelo imediatismo na obtenção de ganhos econômicos e produtivos.
Dentro de um conjunto de motivos, relacionados de maneira complexa, as trabalhadoras e os trabalhadores entrevistados destacaram como mobilizadores da transição para
agricultura orgânica temas condizentes com as afirmações de Guivant (1995).
Os agricultores e as agricultoras apontam a preocupação com a saúde, impulsionada
principalmente por casos de intoxicação ocorridos com seus familiares, e com o meio ambiente, relacionada à localização de suas terras no Parque da Serra do Tabuleiro, como incentivos
importantes para a mudança de sistema produtivo.
O Parque da Serra do Tabuleiro, em que estão localizadas as nascentes de rios importantes para o fornecimento de água potável para a região metropolitana de Florianópolis,
apesar de ser considerado unidade de conservação restritiva desde 1975, não teve a situação dos moradores locais regularizada até os dias atuais. A participação dos moradores das
áreas englobadas pelo Parque, tanto na sua criação quanto na sua posterior implantação,
foi escassa.
A conversão para a cultura orgânica é compreendida e utilizada por algumas das famílias
residentes no interior do Parque como estratégia para a conquista de sua permanência no
local, de forma legalizada. Considerando-se que “há grande necessidade de se conhecer melhor as relações entre manutenção da diversidade biológica e a conservação da diversidade
cultural” (Diegues, 2001, p. 159), isto significaria a superação da dicotomia homem/natureza, permitindo que famílias de agricultores continuassem em suas terras desde que adotassem
formas de cultivo de baixo impacto ambiental.
Após a introdução do sistema produtivo orgânico em suas propriedades, os agricultores familiares reuniram-se em uma associação, no ano de 1998. A associação era composta,
primeiramente, apenas por agricultores com vínculos de parentesco. Gradativamente foram sendo incluídas na associação famílias que residiam nas imediações da sede e
pertencentes a outras localidades. Apesar da ampliação na cobertura da associação, suas
instalações estão localizadas nas propriedades rurais das famílias que iniciaram a organização e entre as quais é dividida a responsabilidade pelo beneficiamento, divulgação e
comercialização dos produtos.
O fortalecimento dos agricultores, a partir da sua organização em associação, permitiu
que eles encontrassem conjuntamente alternativas para a produção e a comercialização.
AGRICULTORES
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A possibilidade de transformações nos sistemas produtivos, que abranjam a maior responsabilidade com o meio ambiente e a assunção de riscos, também é facilitada pelo agrupamento
dos agricultores.
A agricultura que se baseava em unidades individuais de produção foi transformada em
agricultura de grupo, composta inicialmente só por famílias aparentadas. Badalotti e Reis
(2005), ao discutirem a formalização de grupos de cooperação no oeste catarinense, destacam os constituídos por famílias aparentadas. A proximidade, tanto espacial quanto emocional,
facilitaria o consenso nas tomadas de decisões. A primeira, possibilitada pela existência de
propriedades rurais compartilhadas ou perto umas das outras, permitindo a convivência no
cotidiano. A segunda, viabilizada pelos laços familiares.
A divisão do trabalho na agricultura de grupo é definida a partir da quantidade e da
qualidade das terras e da infra-estrutura existentes, além do tempo e da mão-de-obra à disposição nas diferentes famílias que estão reunidas, segundo Badalotti e Reis (2005). Esses critérios
se aproximam dos encontrados em Santo Amaro da Imperatriz no processo de eleição da
área de trabalho sob responsabilidade de cada família, acrescentando a afinidade dos componentes das famílias com certa atividade, como o cultivo da terra ou a realização das feiras.
A distribuição das diferentes atividades entre as famílias associadas foi uma das estratégias encontradas para enfrentar a intensificação e a complexificação do trabalho trazidas pela
agricultura orgânica.
As práticas orgânicas ocasionaram a intensificação do trabalho, exigindo mais mão-deobra para sua realização. As agressões sofridas pela terra, derivadas do uso intensivo de
maquinários, agrotóxicos e fertilizantes durante o predomínio do modelo convencional repercutiram na sua erosão e no empobrecimento de seus nutrientes. Nesse estado de
deterioração, os agricultores precisaram apropriar-se de uma forma de cultivo em que predominam o trabalho manual, sendo a enxada um dos principais instrumentos de trabalho, e a
utilização de plantas e outros organismos vivos encontrados em sua propriedade para a adubação e o combate às pragas.
A complexificação do processo produtivo, que agora envolve mais que o plantio, também contribuiu para tornar o cotidiano de trabalho mais árduo. A introdução da agricultura
orgânica no seu dia-a-dia exigiu que os agricultores adotassem novos cuidados com a produção. Eles tiveram que assumir a lavagem e a embalagem dos produtos colhidos para poderem
comercializá-los. Essa é uma prática comum com os produtos orgânicos, realizada com o
intuito de diferenciá-los dos convencionais. A adoção de outro padrão de produção, com os
agricultores processando o que é colhido em suas terras, objetiva a agregação de valor aos
produtos. Esse tratamento especial que o produto orgânico recebe, contribui para a sua
valorização no mercado. A comercialização é outro encargo dos agricultores que, além de
realizarem as feiras, distribuem a produção em várias redes de supermercados.
A divisão das tarefas ocorreu entre as famílias que fundaram a associação. Uma delas
ficou responsável pela distribuição dos produtos ao longo dos pontos de venda, outra passou
a cuidar da lavagem e do empacotamento da produção, e outra, da realização das feiras e de
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parte do plantio. Cada uma das outras famílias associadas se especializou em alguns tipos de
cultivo. Além disso, ocorreu a contratação de outros trabalhadores, pois mesmo com a divisão das tarefas as famílias não conseguiram assumir o intenso fluxo de trabalho sozinhas.
Esses trabalhadores são denominados “ajudantes”, já que os familiares são considerados os
principais responsáveis pelo trabalho.
Badalotti e Reis (2005) sublinham além da viabilização financeira das propriedades rurais a partir da coletivização das práticas agrícolas, a transformação dos valores e dos costumes
dos agricultores. Entre os agricultores de Santo Amaro, as alterações na hierarquia familiar,
com as relações tornando-se mais igualitárias, podem ser vislumbradas nos lugares sociais
ocupados pelas diferentes gerações e nas articulações entre os espaços públicos e privados de
trabalho. Alguns valores e costumes não sofreram grandes alterações, como os vinculados às
relações de gênero.
A contratação de pessoal, por exemplo, foi marcada pela divisão sexual do trabalho.
Essa categoria entendida como “pertinente para pensar as relações no trabalho – que são um
aspecto das relações sociais entre homens e mulheres – (...) não esgota a problemática destas
relações (…) a divisão sexual do trabalho é um dos muitos locus das relações de gênero”
(lobo, 1992, p. 260). No setor da associação destinado à preparação dos produtos agrícolas
para venda (lavagem e embalagem), apenas mulheres foram admitidas. Já para trabalhar com
o plantio e a colheita foram empregados tanto homens quanto mulheres. Nesse último caso,
as mulheres assumiam o trabalho durante meio período para poderem se dedicar a suas casas
nas horas restantes.
Além de contratarem exclusivamente mulheres para trabalharem na área de
beneficiamento de produtos orgânicos e aceitarem o trabalho delas no cultivo da terra durante metade de uma jornada, as mulheres associadas assumiram novas funções com a
apropriação da cultura orgânica sem deixar de priorizar os cuidados com a casa e os filhos,
responsabilidades praticamente exclusivas delas. O trabalho na lavoura, na feira ou na área
de beneficiamento, para muitas delas, acaba se tornando apenas mais uma atividade entre
inúmeras outras, em vez de uma nova e instigante oportunidade de trabalho.
Brandão (1999), ao discorrer sobre uma comunidade rural tradicional, destaca a
complementaridade das atividades e dos espaços ocupados por homens e mulheres. O autor
relaciona aos homens as práticas características das extremidades do processo agrícola: a
preparação da terra para o plantio e a comercialização da produção. As mulheres participam
das atividades intermediárias, semeadura, colheita e beneficiamento, na maioria das vezes
tendo seu trabalho a conotação de “ajuda”. A análise feita por Brandão (1999) mostra-se
pertinente para o local de pesquisa apresentado neste trabalho.
Para compreender outras mudanças e permanências vivenciadas pelos agricultores
pesquisados, é importante saber como se processam as relações com aspectos da agricultura
familiar tradicional e com a agricultura familiar moderna.
Woortmann (1990) fala sobre a peculiaridade das relações estabelecidas entre os sujeitos
e deles com a terra no campesinato, constituindo uma “ordem moral” específica. O autor
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lembra que esses sujeitos vivenciam situações ambíguas, pois não estão aprisionados a um
modelo, mas sim inseridos na história, que está em constante movimento. Dessa forma, o
autor opta por “falar não de camponeses, mas de campesinidade, entendida como uma qualidade presente em maior ou menor grau em distintos grupos específicos” (p. 13).
Ao longo de suas reflexões, o autor ressalta como valores fundamentais família, trabalho
e terra na constituição da campesinidade, definindo da seguinte forma a relação entre as três
categorias: “Vê-se a terra, não como natureza sobre a qual se projeta o trabalho de um grupo
doméstico, mas como patrimônio da família, sobre a qual se faz o trabalho que constrói a
família enquanto valor” (Woortmann, 1990, p. 12).
A campesinidade se relaciona de maneira ambígua com os valores trazidos pela
modernidade, de acordo com Woortmann (1990), aproximando-se mais destes em alguns
momentos e afastando-se em outros. Apesar de o campesinato ser menos marcado por relações capitalistas de produção, a campesinidade não é inviabilizada pela crescente integração
ao mercado. O autor acredita que a continuidade de certos valores mais holistas, em alguns
casos, como a caracterização da terra como patrimônio familiar e não como mercadoria
significa a continuidade da campesinidade. Além disso, acredita que “um movimento que se
dirige a uma dimensão da modernidade pode ser, ele mesmo, necessário para que haja outro
movimento, o de reconstituir a tradição” (Woortmann, 1990, p. 16).
Woortmann (1990) ainda destaca outras peculiaridades da campesinidade como a relação “trabalho e negócio se opõe num plano, noutro plano se articulam, na medida em que
um é o meio para se chegar ao outro. Se, num contexto, ele nega a reciprocidade, noutro, ele
garante a liberdade e ambos são princípios constituintes da honra do pai” (p. 41). Nesse
argumento, expõe outros valores que considera importantes: a reciprocidade, a liberdade, a
honra e a hierarquia familiar, representada pelo poder do pai. Ele demonstra mais uma vez a
ambigüidade presente em muitas situações em que se vivencia a campesinidade. O negócio,
tradicionalmente considerado negativo frente ao predomínio da troca e ao enaltecimento do
trabalho na terra, é aceito ao permitir a conquista de outro valor fundamental, a liberdade. A
possibilidade de ser dono da terra e indicar as direções é dada ao pai. A liberdade é vinculada
a uma hierarquia familiar, já que o coletivo prevalece.
Ao refletir sobre a realidade social pesquisada para a composição desta dissertação, considerando o posicionamento de diferentes autores sobre agricultura familiar e campesinato,
sobressaiu uma afirmação feita por Wanderley (1999): “de certa forma, os agricultores familiares modernos enfrentam os novos desafios com as armas que possuem e que aprenderam a
usar ao longo do tempo” (p.35). A defesa de certa continuidade, não generalizável, entre
agricultura familiar tradicional e a agricultura familiar moderna, sem esquecer da sua crescente vinculação ao mercado e da transformação, a partir daí, de muitos dos valores existentes
é destacável.
A existência de um território familiar, definido como “um lugar de vida e de trabalho,
capaz de guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações posteriores”
(Wanderley, 1999, p. 43) foi percebida entre os agricultores entrevistados, apesar da
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instabilidade que vivenciam em decorrência da localização de suas terras no interior de uma
Unidade de Conservação Ambiental. Nesse território está localizado o patrimônio familiar,
que é repassado pela herança. A constituição de um patrimônio, a partir do trabalho, garante
a perpetuação da família por meio da transmissão de bens materiais e simbólicos.
Paulilo (2003) relata a dificuldade encontrada de se falar sobre herança com diferentes
membros de famílias de agricultores. Tanto Paulilo quanto Seyferth basearam seus argumentos em contextos de colonização européia, no sul do Brasil, Seyferth enfatizando os
descendentes de alemães. Essa autora (1985) aponta as estratégias adotadas pelas famílias
rurais para a manutenção das pequenas propriedades rurais, entre elas a exclusão de parte
dos herdeiros, o que acontece primordialmente com as mulheres. Paulilo (2004) menciona
que em muitos casos os homens são privilegiados nas heranças de terras e as mulheres têm
acesso a ela por meio do casamento.
Seyferth (1985) afirma que “as variações do sistema de partilha são muitas, e vão desde
a herança impartível, na qual um dos filhos herda toda a propriedade, até a partilha entre
todos os herdeiros” (p. 1). Durante a pesquisa foram encontrados casos em que um dos filhos
teve acesso à terra antes da partilha da herança por meio de sua compra por um valor simbólico e mulheres que só conseguiram alcançar o bem por meio do casamento. Também foi
constatado o recebimento, pelos filhos, da moradia e de um pequeno terreno ao se casarem.
A autora ainda ressalta os arranjos feitos no interior das famílias rurais quando se deparam com as questões de herança. A possibilidade de “um pagamento apenas simbólico que
não cobre o valor das terras” (Seyferth, 1985, p. 16) por um dos herdeiros, já que os outros
beneficiários não possuem interesse direto sobre a terra, é uma das alternativas utilizadas.
A formação de uma associação possibilitou o retorno de alguns e a permanência de
outros agricultores em suas terras. A possibilidade de cultivar a própria terra foi bastante
enfatizada pelos agricultores entrevistados. Woortmann e Woortmann (1997) destacam que
“ser sitiante, ser dono da terra é condição básica de ser liberto, juntamente com o domínio
tanto cognitivo quanto simbólico do saber que orienta o processo de trabalho” (p. 44).
A reunião dos filhos em uma associação envolveu o questionamento da hierarquia familiar
tradicional, em que o pai opera todas as decisões. Como afirma Woortmann (1990), sobre o
significado do pai na campesinidade: “é por ser dono do saber que ele é dono do sítio e pai de
família. Ele não é um velho, mas um sábio”. A constituição da associação também mobilizou a
realização de um acordo definindo a partilha das terras, antecipando a divisão que ocorreria
com o falecimento dos pais. O usufruto das terras, que posteriormente serão recebidas como
herança (com as porções referentes a cada filho já definidas), se dá via pagamento de aluguel.
Além disso, os filhos compraram todo o maquinário pertencente aos pais em prestações. A
transformação da terra e dos instrumentos para trabalhá-la em mercadorias negociáveis, valores contrastantes com a campesinidade, permitiram a continuidade da família na agricultura.
Talvez se perceba aí um exemplo da ambigüidade relatada por Woortmann (1990).
Wanderley (1999) afirma que “a agricultura assume atualmente uma racionalidade moderna; o agricultor se profissionaliza; o mundo rural perde seus contornos de sociedade
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parcial e se integra plenamente à sociedade nacional” (p. 35). A chegada de novas tecnologias
no campo, em relação às quais o patriarca apresentava resistência, impulsionou os filhos a
romperem com certas características da ordem tradicional, como a direção da produção
indicada exclusivamente pelo pai.
A dialética entre raízes e opções culturais que nos propõe Souza Santos (1997), na qual
permanências e mudanças estão relacionadas, demonstra como a relação entre tradições e
inovações transcorre com contradições não necessariamente excludentes, contribuindo na
compreensão das vinculações entre os sujeitos e as mudanças no meio agrícola. A importância da família é novamente ressaltada, articulada à terra e ao trabalho mas agora, sob a forma
de uma associação em que o contexto exterior tem uma importância fundamental na tomada
de decisões.
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de cooperação agrícola e agroecologia. In: GUIVANT, Julia; SHEIBE, Luiz; ASSMANN Silvino (orgs.). Desenvolvimento e conflitos no ambiente rural. Florianópolis: Insular, 2005.
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Mulheres em ocupações
tradicionalmente masculinas:
sentidos do trabalho
Marly Terezinha Perrelli
CENÁRIO DAS MULHERES NA ESFERA DO TRABALHO
Q
ual é o espaço que as mulheres ocupam no mundo do trabalho? Como modificou
o mundo “cor-de-rosa”, no qual a delicadeza da mulher estava acima de qualquer igualdade?
A “rainha do lar” perdurou nas homenagens às mulheres. Hoje, de que cenário estamos
falando? Homens e mulheres executando as mesmas tarefas: é uma realidade possível? Em
que bases e com quais características? Estas perguntas permearam a trajetória dessa pesquisa
construindo suas respostas.
Investigou-se inicialmente nos bancos de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) o perfil das mulheres responsáveis pelos domicílios no Brasil, com o propósito
de levantar os dados existentes sobre essa temática. Do total de 48,2 milhões de famílias
existentes no país, 26,7% estão sob a responsabilidade de uma mulher, o que corresponde a
12,8 milhões de famílias. No censo de 1991, elas eram responsáveis por 7,7 milhões de
famílias, ou 20,5% do total de 37,5 milhões. O crescimento de famílias chefiadas por mulheres pode ser explicado por dois fatores principais: a elevada expectativa de vida da mulher,
aproximadamente oito anos mais alta que a do homem, e a maior autonomia econômica
adquirida nas últimas duas décadas (IBGE/PNAD, 2000). Visualizando assim o crescimento
quantitativo e progressivo das mulheres em ocupações formais de trabalho.
Devemos destacar que a consulta realizada na Síntese de Indicadores Sociais 2002, lançada
pelo IBGE, mostra que o traço mais marcante da sociedade brasileira é a desigualdade social.
Na desigualdade por gênero, as mulheres ganham menos que os homens em todos os estados
brasileiros e em todos os níveis de escolaridade. A trajetória das mulheres segundo as variáveis demográficas, é marcada por uma crescente participação no mundo do trabalho (IBGE/
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PNAD, 1999) e pela permanência de uma marcante desigualdade entre homens e mulheres
em cargos e tarefas executadas nas organizações, bem como entre salários recebidos no exercício da mesma função.
Segundo Michelle Perrot (1998), em tempos de guerra na Europa, os homens estavam
na frente de batalha e as mulheres, na retaguarda, executando tarefas tradicionalmente
masculinas, se inseriram em espaços que antes não ocupavam. Essas representações atravessam o tempo e assumem várias formas conforme a época, desenhando quadro a quadro
dos acontecimentos da história. Ao contrário do que diz o senso comum, as mulheres
sempre trabalharam, e muito. Concordando com Cristina Bruschini e Fúlvia Rosemberg
(1982), as mulheres constituem uma força de trabalho, mesmo que sem remuneração formal, pois contribuem financeiramente para a sobrevivência da família ao realizarem as
tarefas domésticas diariamente.
As mulheres então, progressivamente começam a superar as diversas representações
pejorativas acerca do feminino, até então associado a características vistas como inferiores
e com menos valor do que os atributos associados ao mundo masculino, por exemplo: o
forte se sobrepõe ao frágil, o corajoso ao covarde, o alto ao baixo, o arrojado ao tímido
(Amaral, 1999).
Ao pesquisar a intensificação do crescimento da participação feminina no mercado de
trabalho brasileiro, Cristina Bruschini (1995) chama atenção para a sua diversificação, sobretudo no espaço urbano. O marco desse crescimento mostra-se desde a década de 1970,
quando os primeiros estudos sobre a mulher foram influenciados pelos movimentos feministas. Bruschini e Rosemberg (1982) contribuem para a discussão e compressão sobre o trabalho
da mulher, ao argumentarem que uma grande parte da população considerada “inativa”
encontra-se efetivamente ocupada, ou seja, trabalhando na produção doméstica não remunerada e, entre as trabalhadoras formais, fica evidente que cumprem diariamente uma dupla
jornada de trabalho. As atividades domésticas não eram classificadas como atividades produtivas e, por este fato, deve-se ter cautela ao analisar os dados estatísticos relacionados ao
número de trabalhadoras mulheres na esfera do mercado de trabalho, pois alguns desses
dados não foram revelados pela desconsideração do trabalho doméstico.
AVANÇOS HISTÓRICOS
A inserção das mulheres no sistema produtivo formal é fato historicamente comprovado. No entanto, se cresce a oportunidade, com ela cresce, também, a desigualdade. Para
amenizar as diferenças que se aceleram no decorrer do tempo surge a necessidade de construir meios legais para frear o processo deficitário da disparidade no trabalho.
A Constituição de 1988 dispõe que “homens e mulheres sejam iguais perante a lei”; essa
lei possibilitou a abertura de espaço às mulheres nos concursos públicos para cargos anteriormente destinados apenas aos homens. No caso da empresa pesquisada, a primeira mulher na
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história da Petrobras a ocupar o cargo de operadora foi em 1989, ingressando por meio de
concurso público. Mesmo com a oportunidade e o acesso a esse cargo, as mulheres ainda são
a minoria.
Também a OIT – Organização Internacional do Trabalho – em 2003 lançou o primeiro
relatório global sobre discriminação no trabalho, contendo um panorama mundial. O relatório alerta que negligenciar ações que possam impedir “as crescentes desigualdades
sócio-econômicas” no mundo do trabalho podem ter efeitos desastrosos na coesão social
nacional, estabilidade política e no crescimento econômico nos próximos anos.
Entre os avanços históricos é importante ressaltar as discussões em torno dos estudos de
gênero que selam e edificam um processo que aprofunda a construção de novas pesquisas
sobre mulheres e trabalho. As relações de gênero nos espaços organizacionais contemporâneos possibilitam visualizar no grupo investigado, que elas buscam a oportunidade no trabalho,
bem como se inserir em cargos nos quais o domínio era masculino. Esse ingresso das mulheres em organizações não se reduz a tentativas, contemplando participações efetivas de concursos
abertos que determinam resultados reais do aumento do público feminino no mercado formal de trabalho. Esse aumento provoca modificações nas culturas empresariais, sustentadas
na diversidade entre homens e mulheres compartilhando o mesmo espaço de trabalho.
AS RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESPAÇO ORGANIZACIONAL
O termo gênero desvincula-se da polaridade do masculino e feminino, e se encontra
além das questões biológicas entre os sexos, sendo sim o estudo das relações humanas. Gênero é uma construção social que visa significar as relações de poder, de forma que
“Masculinidade e feminilidade passariam, a ser encaradas como posições de sujeito, não
necessariamente restritas a machos ou fêmeas, biológicos” (Scott, 1990, p. 14).
Essa pesquisa fundamentou-se nos eixos teóricos discutidos por Joan Scott (2000), a
saber: 1) As relações de gênero possuem uma dinâmica própria, mas também se articulam
com outras formas de dominação e desigualdades sociais (raça, etnia, classe); 2) A perspectiva de gênero permite entender as relações sociais entre homens e mulheres, o que pressupõe
mudanças e permanências, desconstruções, reconstruções de elementos simbólicos, práticas,
comportamentos, normas, valores e representações; 3) A condição de gênero legitimada
socialmente se constitui em imagens, referências pessoais que ocorrem de maneira particular; 4) As relações de gênero, como as relações de poder, são marcadas por hierarquias,
obediências e desigualdades, onde estão presentes os conflitos, tensões, negociações, alianças, sejam através da manutenção dos poderes masculinos, sejam na luta das mulheres a se
desvincular desses domínios.
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MÉTODO
A pesquisa foi desenvolvida em uma unidade da Petrobras, localizada no sul do Brasil.
Foram realizadas entrevistas individuais, semi-estruturadas, que seguiram um roteiro elaborado a partir da revisão da literatura e da descrição de cargos.
Os sujeitos entrevistados foram quatro mulheres e quatro homens, com idades entre 23
e 40 anos, sendo duas casadas com dois filhos, cada uma delas, com residências próprias e
duas solteiras sem filhos, residindo com os pais. Em relação ao tempo de empresa a média
dos entrevistados variavam entre 6 meses a 11 anos, sendo esse um fator importante, pois
revelou as opiniões dos participantes que estavam ingressando na empresa, bem como as
opiniões dos sujeitos que há tempo desempenhavam o cargo de operador. No que se referem
à escolaridade, todas elas têm o nível superior completo. Foram utilizados nomes fictícios
para que os sujeitos da pesquisa não fossem identificados.
Para a escolha das mulheres foi realizado um levantamento da quantidade de operadoras
que trabalhavam na empresa, executando tarefas anteriormente desempenhadas pelos homens. Após esse mapeamento, fez-se contato com elas para a realização das entrevistas. O
critério de escolha dos homens foi estarem dividindo espaços de trabalho com as mulheres
no exercício do mesmo cargo, esses eram indicados pelas mulheres para a realização das
entrevistas. Essa estratégia de escolha teve como intenção verificar a convivência entre pares
e a diversidade de opiniões dos sujeitos. Foram utilizados também, documentos e dados da
biblioteca da empresa, onde foi retirado as atribuições do cargo de operador e o diário de
campo com as observações dos sujeitos no local das entrevistas.
No decorrer das entrevistas1 um fato marcante foi a preocupação manifestada pelas
mulheres com o sigilo das informações que estavam fornecendo. Várias vezes questionavam:
“Será que posso falar mesmo?”, “O que você vai fazer com o que vou dizer agora?”, “Veja
bem o que você vai fazer com essas informações!”, “Posso falar tudo?”. O fato de os homens
e as mulheres terem conhecimentos sobre o tema facilitou as respostas, pois repetiam e voltavam à pergunta de pesquisa, faziam localizações históricas, perguntavam sobre o tema e
ressaltavam a importância da pesquisa, principalmente no caso das mulheres. As entrevistas
com os homens procederam de maneira peculiar. Não havia as mesmas preocupações que as
mulheres apresentaram sobre o sigilo das informações. Para eles, responder as perguntas
sobre as mulheres em postos de trabalho é algo presente no avanço do desenvolvimento das
competências das mulheres no contexto organizacional.
Os locais da realização das entrevistas foram agendados pelos próprios sujeitos e ocorreram de forma diversificada. Algumas foram realizadas na empresa e outras na residência dos
informantes, com datas e horários compatíveis e de acordo com a sua disponibilidade, com
duração em média de uma hora e meia.
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Os sujeitos foram orientados sobre a ética e o sigilo das informações coletadas. Solicitou-se a assinatura no termo de consentimento
livre e esclarecido, bem como permissão para o uso do gravador.
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O procedimento de análise das informações baseou-se na análise do discurso, que
transpassa a linguagem como sistema abstrato, mas considera os processos e as condições de
produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida pela fala dos sujeitos e a situação
em que se produz, construindo assim sentido próprio, pessoal e único, a sua história (Orlandi,
2002).
A análise do discurso tem a finalidade de investigar os valores e as ideologias, entre
outros aspectos. Os conteúdos foram analisados por meio de categorias elaboradas a partir
das falas dos homens e das mulheres que participaram da pesquisa. Resgatando assim nos
depoimentos dos informantes da pesquisa, informações sobre o espaço conquistado pelas
mulheres na Petrobras, os avanços em aspectos legais (como a Constituição de 1988), e
também a sua trajetória e adaptação aos novos modelos organizacionais tendo como participantes dessa interação, as mulheres.
DISCUSSÃO
Igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no mundo do trabalho seria uma
realidade possível? Didice Delgado, et al. (2000) apresentam um balanço do cenário internacional a respeito da desigualdade de oportunidades no trabalho e das estratégias que objetivam
corrigi-la, denominadas ações afirmativas. Essas políticas têm como meta corrigir antigas e
novas discriminações entre pares no mundo do trabalho, e colocar em ação atores sociais
distintos, como os movimentos das mulheres, as organizações sindicais e as instituições do
poder público, convergindo em modelar os primeiros princípios de igualdade entre homens
e mulheres no corpo jurídico/legal e no cotidiano das relações democráticas.
Sobre a igualdade de oportunidade das mulheres e homens, Delgado, et al. (2000, p.
37), revelaram fatos importantes construídos no Fórum Europeu, onde havia discussões sobre as ações dessa natureza. Essas ações mundiais remeteram a um programa de ação previsto
para 1996 a 2000 a serem efetivadas. Esse programa tem seis objetivos:
1. Promover a integração da dimensão da igualdade de oportunidades para homens e
mulheres em todas as políticas e atividades;
2. Mobilizar todos os atores da vida econômica social no sentido de alcançar a igualdade de oportunidade entre homens e mulheres;
3. Fomentar a igualdade de oportunidade numa economia em mudanças, especialmente
nos campos da educação, treinamento profissional e mercado de trabalho;
4. Harmonizar trabalho e família na vida de mulheres e homens;
5. Promover o equilíbrio entre gêneros no processo decisório;
6. Criar condições mais favoráveis ao exercício da igualdade de direitos.
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Demonstra-se que, no cenário mundial, debates dessa ordem têm avançado para agregar
novas estratégias de políticas sociais no âmbito do trabalho. Portanto, investigar os sentidos
que homens e mulheres atribuem à participação das mulheres no cargo de operadora (função
anteriormente ocupada exclusivamente por homens), contribuem para ampliar as pesquisas
dessa ordem. Os informantes da pesquisa demonstram que compartilham o interesse nas
conquistas das mulheres no ingresso do trabalho da Petrobras, tendo consciência que estão
participando dessa transformação.
Os homens relatam que as características do grupo modificam com a convivência das
mulheres, como a organização do local de trabalho com seu toque feminino. As mulheres,
por sua vez, tenderam a valorizar aspectos relacionados à satisfação pessoal de trabalharem
na Petrobras, expressando “orgulho” por desempenharem suas atividades profissionais no
cargo de operadora.
Outro fato que aparece nos discursos dos homens é sobre as mulheres estarem dividindo
os mesmos espaços de trabalho que antes se destinava somente aos homens e as mudanças
provocadas por essa inserção. Toni inicialmente revela que ouve dos homens que não há
problemas em trabalhar com as mulheres, pois alega que as diferenças entre eles se completam no grupo de trabalho: “Elas dão características diferentes e quando você trabalha em um
regime de grupo, isso é até bom porque as diferenças se complementam” (Toni).
Os homens alegam que a participação feminina gera mudanças no grupo, como o exercício de boas maneiras nas relações de trabalho.
Eu acho normal né, vamos dizer assim, os homens estão se educando mais é bom isso [risos]. Antes a
gente era meio largadão, né, só homens. Por causa da presença feminina né, dá um diferencial ali né, um
respeito maior você que cuida mais no que falar, fica mais educado, boas maneiras mesmo (Rogério).
A experiência de dividir as tarefas com Sandra deu certo, percebe-se o carinho e a admiração quando retratam particularidades de seu trabalho.
Eu acho que se fosse pra escolher, nós escolheríamos ela, se fosse pra escolher um homem ou ela, nós
escolheríamos a mulher. Porque ficou legal no grupo, ficou diferente, entrou bastante pessoal novo junto
com ela, nós ficaríamos com ela não trocaríamos por outra pessoa (Erlon).
Desse modo, os sentidos que atribuem ao trabalho feminino demonstram constituir
“modos de viver”, “modos de conviver” e “modos de sobreviver”, ultrapassando concepções
degenerativas, intensificando as relações favoráveis e saudáveis, onde homens e mulheres
dividem o mesmo espaço de trabalho.
No percurso da busca do sentido do trabalho, ao perguntar aos informantes da pesquisa
sobre o que ouvem dos homens a respeito de as mulheres trabalharem no cargo de operador,
antes exclusivamente ocupado por homens, as considerações tanto dos homens como das
mulheres foram diversificadas, incluindo piadinhas no ambiente de trabalho, dúvidas de que
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a mulher realmente consegue trabalhar nesse cargo, como atua nas emergências e enfrenta os
horários noturnos (zero hora). Os diálogos dos homens a respeito das mulheres são revestidos de expectativas da capacidade de desempenhar as atividades no trabalho. Algumas dessas
crenças são desvendadas muitas vezes pelos próprios homens.
Ah, comentam sempre com aquelas piadinhas sobre as mulheres e tal [Pausa] eu diria assim, e estou
tentando lembrar alguma coisa, né porque faz tempo, tipo: pode mandar mulher que mulher pra nós que
mulher é com nós mesmo [risos] nós cuidamos bem, coisas assim desse tipo” (Rogério).
Rogério comenta também que os homens falavam que as “companheiras de trabalho”
(mulheres) ingressaram no cargo de operador pelo fato da constituição de 1988, decretar
que, perante a lei, todos são iguais. Surpreende-se quando ouve essas afirmações de pessoas
superiores a ele hierarquicamente:
No começo parecia mais aquela coisa uma obrigação constitucional, né com a constituição de 88 que
estabeleceu essas igualdade. No começo parecia isso, escutei (...), escutei inclusive aqui dentro de pessoas
num escalão maior comentaram. Estavam (...) admitindo mulheres por causa da constituição.
Erlon ouvia questões relacionadas com a capacidade das mulheres em desenvolverem o
trabalho principalmente em situações de emergência. Escutava dos homens que teriam que
trabalhar dobrado, pois teriam que executar o trabalho deles e delas. Erlon acredita no trabalho das mulheres e diz que elas atuam como qualquer outro operador:
Tem homem que fala, quero ver na hora que o bicho pegar, o bicho pega é a hora que der emergência no
caso, se ela vai corresponde. Tem gente que diz, não vai, nós vamos ter que trabalhar por dois, vamos ter
que fazer o serviço dela alguns fazem esse comentário, esse comentário maldoso. Eu acho que não, eu
acho que a hora que ela tive que trabalhar ela vai trabalhar tão bem como qualquer outro (Erlon).
Essa fala de Erlon retrata situações de discriminação no trabalho das mulheres, elegendo
lugares de domínio masculino, subestimando sua capacidade de efetuar tarefas previstas em
sua função.
As ocupações existentes no universo do trabalho não determinam uma classificação de
ser feminina ou masculina, superiores ou subordinadas. As diferenciações, hierarquização,
agrupamento e divisão, acontecem do modo de pensar e agir, criar preceitos da diferença
(Fonseca, 2000).
Nas entrelinhas é possível perceber que mesmo que historicamente tenham mudado os
conceitos vigentes sobre a incapacidade das mulheres em determinados postos de trabalho,
aparecem dúvidas sobre a capacidade delas em exercer tarefas que eles habitualmente executavam. O interessante é que os homens que emitem esses discursos são aqueles que ainda não
tiveram oportunidade de conviver com as mulheres em seu ambiente de trabalho.
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Em relação ao que as mulheres ouvem dos homens sobre trabalhar em cargo anteriormente exclusivo masculino, destacam as dúvidas mencionadas pelos homens a respeito da
atuação das mulheres no desenvolvimento de suas tarefas.
Bia examina a procedência das comparações entre homens e mulheres, pois se sente
irritada quando ouve as opiniões comparativas no sentido de que as mulheres seriam como
os homens:
É o que eu digo ou a pessoa critica ou a pessoa apóia e elogia demais, né o que eu vejo assim, que é mais
estranho é esse tipo de colocação de comparar como homem como se eu fosse um homem, eu sou mais
eu do que você pensa. Eh! pare de pegar no meu pé, que eu vou sair sabe, porque é uma coisa que me
irrita sabe, me irrita mais isso do que dizer que tô de noite ali, entendeu” (Bia).
Nadia ouvia dos homens que, com o ingresso das mulheres no grupo, o ambiente de
trabalho modificava-se tornando a convivência agradável. Achavam que as mulheres impõem
respeito, no sentido de que não tem bagunça, referindo-se à organização do local de trabalho.
Falava também, que não havia tanta conversa de homens, “besteiras” (palavrões, comentários
sobre mulheres) que ocorriam antes de as mulheres estarem no grupo:
O que eles sempre diziam pra mim, aí que uma mulher era bom, essas palavras deles uma mulher é
sempre bom no grupo porque impõe respeito. Não tem aquela bagunça, aquelas conversas de homem
(Nadia).
Existem semelhanças nos diálogos de Erlon, Murilo e Márcia. Eles falavam das analogias
do que ouviam em relação ao questionamento do desempenho das mulheres, ressaltando que
não concordavam com os comentários relacionados que o ambiente onde trabalham seriam
somente para homens.
Márcia falou sobre as perguntas que eram feitas a ela sobre como consegue trabalhar no
cargo de operadora. Disse que essas indagações vêm principalmente de operadores antigos
que estão se aposentando e acham que aquele lugar não é para mulheres:
Nossa... mas você consegue. Oh! O que você faz, não é muito bruto pra você trabalhar num lugar desses?
Eles já estavam acostumados pela Luiza (que está de licença maternidade), que trabalhava com eles antes,
já estavam habituados, então não senti. Existem pessoas mais antigas, assim que estavam para se aposentar você sente que estão um pouquinho mais difícil a aceitação deles. Até na época eu tava entrando a
gente fez um churrasco na casa de um antigo operador, e ele já estava aposentado e falou para mim olha
meus parabéns, mais ainda acho que não é lugar pra você [risos] trabalhar. E disse: – eu que tive trabalhando lá, eu acho que não é lugar pra mulher (Márcia).
O questionamento da eficiência no trabalho é uma situação com a qual as mulheres têm
que lidar no decorrer de sua vida profissional, muitas vezes explicando que ao conviver em
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espaços de trabalho comuns, homens e mulheres, encontram meios para se adequar uns aos
outros. A legitimidade da reorganização produtiva e os novos ventos da globalização propiciam a inclusão de forma linear da presença das mulheres à igualdade oportunidade de emprego
em todos os setores (Delgado et al, 2000).
Portanto, o avanço da inserção das mulheres na Petrobras coincide com a pesquisa da
Fundação Carlos Chagas (2004), que demonstra a participação de mulheres no trabalho
formal ocorria de forma restrita, entre 1985 e 2002, apresenta-se um panorama crescente,
de forma lenta, mas persistente. Entre 1992 e 2002, as empresas informaram a abertura de
2.968.779 novos postos de trabalho para os homens, e de 3.423.024 para as mulheres. Completando essa análise, Lena Lavinas (1999) demonstra que, desde 1980, a taxa anual de
emprego das mulheres mostra-se mais elevada que a masculina, levando a um forte aumento
do sexo feminino entre os ocupados. A absorção da mão-de-obra feminina tem sido, portanto, superior à masculina em todas as fases recentes da economia brasileira.
Com esse demonstrativo promissor, aparece além do crescimento sustentado da taxa de
atividade feminina, outra tendência interessante que diz respeito ao melhor desempenho das
mulheres na disputa por postos de trabalho. A importância do desempenho está focada na
competência que permite concentrar a atenção à pessoa, mais do que sobre o posto de trabalho, possibilitando assim, associar as qualidades requeridas para o cargo com as formas de
cooperação com a equipe de trabalho (Lavinas, 1999).
A questão da representação e da participação das mulheres no trabalho, na análise de
Perrot (1998), remete à idéia de que “o presente sempre coloca reflexões para a história não
por ela ter a resposta, mas porque ela pode, pelo menos, fornecer instrumentos de compreensão” (p. 117).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compõe-se um cenário no século XXI, em que as funções não seriam pautadas em
diferenças entre os sexos feminino e masculino e sim em competências e habilidades no
desempenho no trabalho. Os impactos da economia brasileira constituíram e construíram
processos que mobilizaram o avanço do trabalho feminino, onde o interesse possibilitou
melhorar as condições socioeconômica das famílias.
Lugares proibidos para mulheres, comportamentos não aceitáveis socialmente, mãe protetora do lar, mulher direita não trabalha, essas frases estruturaram adjetivos reducionistas
no sentido de não considerarem as mulheres parte do sistema produtivo no trabalho (Perrot,
1998). Assim, a participação da mulher na esfera produtiva social condiciona, de um lado,
apreensão do significado daquela participação, reproduzindo a posição subalterna da mulher. De outro, apesar da manutenção desta posição, o caráter coletivo da nova condição de
trabalhadora, partilhada num estreito e contínuo convívio, numa permanente troca de experiências, queixas, aspirações, satisfações, considerações sobre problemas comuns, constitui-se
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um espaço de reflexão e de possibilidades de ação e organização nos limites estreitos do reino
doméstico.
As fronteiras da igualdade e desigualdade rodearam as mulheres em sua trajetória ao
assumirem cargos predominantemente masculinos. Esse cenário de avanço em ocupações
antes inacessíveis, a taxa de participação das mulheres no Brasil é de 55%, superior à média
latino-americana, mas ainda inferior aos níveis de muitos paises desenvolvidos, como mostra
o primeiro relatório da OIT – Organização Internacional do Trabalho – (2003).
Embora as transformações ocorram lentamente, esse espaço vem sendo construído, permitindo formulações de reivindicações específicas das mulheres, numa demonstração de que
é possível às mulheres ocuparem cargos anteriormente destinados aos homens, sem que a
condição seja a superação do trabalho como forma de competição entre ambos.
O lugar que ocupam as mulheres no trabalho na Petrobras abrange posicionamentos
competitivos, sendo igualitários o salário, a jornada de trabalho, os benefícios; enfim, a igualdade impera no que tange aos procedimentos. Ultrapassando as fronteiras do passado
destacam-se essas mulheres (sujeitos da pesquisa) na inserção no mercado de trabalho rumo
ao século XXI, no qual as transformações de oportunidades de trabalho crescem no País.
Evidencia-se, também, que os homens fazem referências a respeito do cargo predominantemente masculino, partindo da concordância da participação feminina em locais e cargos
considerados de domínio dos homens. Portanto, na empresa pesquisada observou-se a aceitabilidade
das mulheres em postos tradicionalmente masculinos, apesar de algumas diferenciações nas relações de gênero, especialmente entre os homens que trabalham há mais tempo na empresa, se
mantêm a idéia de que não se trata de local de trabalho adequado para as mulheres.
Com todas essas mudanças, uma nova roupagem se anuncia nas organizações; a Petrobras
e o grupo pesquisado, representam as transformações históricas que a literatura aponta:
ingresso em atividades predominantemente masculinas, exercício dos direitos à maternidade, salários e benefícios equiparados.
Destacam também que os avanços tecnológicos contribuem como fator facilitador para
a igualdade de desempenho entre homens e mulheres, pois minimizam a necessidade da
força física. Aparece como vilão do trabalho de revezamento, o turno, responsável pelo
afastamento da família e do convívio social regular.
O grupo pesquisado evidencia o esforço mútuo em concretizar a parceria entre homens
e mulheres em ocupações tradicionalmente de domínio masculino, sendo que as mulheres
inserem-se no contexto da igualdade de oportunidades profissionais. Há que se reconhecer,
entretanto, a inconstância das relações de poder que influenciam a articulação das relações
de gênero, o que leva a inferir que o futuro depende da capacidade e da possibilidade que
homens e mulheres terão para defenderem e negociarem seus interesses, construindo relações na busca da criação de um espaço, de um “saber conviver”, a partir de ambigüidades,
inerentes à realidade em que vivem (Campelle, 2001).
Homens e mulheres apagam-se e recompõem uma paisagem de diferenças. Qual será a
paisagem do século que se anuncia?
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Autoras e Autores
Adriana Poci Palumbo ([email protected])
Jornalista (PUC-SP) e mestre em Psicologia pela UFSC. Atua como professora das Faculdades Integradas
UNIVEST – Lages, SC.
Adriana Rodrigues ([email protected])
Psicóloga pela Universidade Estadual de Maringá e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Pesquisadora do Núcleo MARGENS/UFSC.
Adriano Henrique Nuernberg ([email protected])
Psicólogo, mestre em Psicologia, doutor em Ciências Humanas (UFSC) e professor adjunto do Departamento
de Psicologia da UFSC.
Alan Índio Serrano ([email protected])
Médico especialista em psiquiatria pela Universidade Federal de Santa Maria (RS). Mestre em Psicologia e
doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Professor de Psiquiatria no curso de medicina e professor de Saúde
Pública no mestrado em Saúde e Gestão do Trabalho, da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Preceptor
da residência médica em psiquiatria de Florianópolis.
Aline Drews ([email protected])
Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFSC. Vinculada ao núcleo MARGENS/UFSC.
Carolina Andaló Fava ([email protected])
Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFSC, psicodramatista; especialista em Reich. Atua como psicóloga
clínica e como professora do curso de Naturologia Aplicada da Unisul.
Edmilson Antônio Dias ([email protected])
Psicólogo, mestre em Psicologia pela UFSC, doutor em Engenharia de Produção pela UFSC. Atua como professor
associado no Departamento de Psicologia da UFSC, onde também exerce atividades de supervisor clínico em
Psicanálise, além de coordenador de estágios da graduação em Psicologia.
Giovana Ilka Jacinto Salvaro ([email protected])
Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFSC, doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Ciências Humanas da UFSC, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa MARGENS – Modos de vida, família e
relações de gênero, do Departamento de Psicologia/UFSC e professora de Psicologia do Centro Universitário
Barriga Verde/UNIBAVE.
Juliana Perucchi ([email protected])
Psicóloga, doutoranda e mestre em Psicologia pela UFSC. Atua como professora da Faculdade de Psicologia de
Joinville e consultora de projetos de responsabilidade social coorporativa e do terceiro setor. Pesquisadora do
Núcleo MARGENS/UFSC.
Luiz Fernando Neves Córdova ([email protected])
Psicólogo, mestre em Psicologia e doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Atua como psicólogo da Delegacia
da Mulher de Florianópolis.
Mário Ferreira Resende ([email protected])
Psicólogo, doutorando e Mestre em Psicologia pela UFSC. Pesquisador do grupo MARGENS – Modos de
Vida, Família e Relações de Gênero – da UFSC.
Marly Terezinha Perrelli ([email protected])
Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFSC. Atua como professora e coordenadora do curso de Psicologia da
UnC – Universidade do Contestado, psicóloga clínica e psicóloga organizacional. Pesquisadora do Núcleo de
Pesquisa MARGENS – Modos de Vida, Família e Relações de Gênero, UFSC.
Patrícia de Oliveira e Silva Pereira Mendes ([email protected])
Psicóloga formada pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; especialista em Educação Sexual pela
UDESC; mestre em Psicologia pela UFSC; docente da UDESC e membro dos Grupos de Pesquisa: MARGENS
– Modos de vida, Família e Relações de Gênero e Formação de Educadores e Educação Sexual.
Raquel de Barros Pinto Miguel ([email protected])
Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFSC e doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Ciências Humanas – área de concentração: Estudos de Gênero (UFSC). Atua desde o ano 2000 como psicóloga
clínica no atendimento de crianças, adolescentes e adultos.
Renata Orlandi ([email protected])
Psicóloga, doutoranda e mestre em Psicologia pela UFSC, especialização em curso em Psicologia Sistêmica.
Rosane Maria de Godoy ([email protected])
Pedagoga, especialista em Educação Sexual e mestre em Psicologia pela UFSC. Atua como professora no curso
de Pedagogia da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Educação São José e Assistente Técnica Pedagógico
da EEB Porto do Rio Tavares, Florianópolis/SC.
Sonia Biehler da Rosa ([email protected])
Juíza de direito aposentada/RS, psicóloga, mestre em Psicologia pela UFSC, especialista em Direitos Humanos
pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos (IPEJUR) – Passo Fundo, RS em parceria com Complexo de
Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC). Colaboradora voluntária no Instituto de Acesso à Justiça (IAJ/
Oscip-RS).
Tito Sena ([email protected])
Psicólogo, graduado pela UFSC, mestre em Psicologia e doutorando do Programa de Pós-graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, especialista em Educação Sexual pela UDESC, Especialista
em Psicologia Escolar e Educacional pelo CFP. Atua como psicólogo clínico e professor universitário do
Departamento de Fundamentos da Educação na UDESC. Pesquisador do IEG/UFSC.
Zuleica Pretto ([email protected])
Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFSC. Atua como professora do curso de Psicologia da UNISUL e da
UNIVALI e como psicóloga clínica.
Organizadores
Mara Coelho de Souza Lago ([email protected])
Professora Titular Departamento de Psicologia UFSC. Mestre em Antropologia UFSC, Doutora em Psicologia
da Educação UNICAMP. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia e do Programa de Doutorado
Interdisciplinar em Ciências Humanas UFSC. Co-coordenadora do Núcleo de Pesquisa MARGENS. Cocoordenadora do Instituto de Estudos de Gênero IEG. Co-editora da seção “Dossiê” da Revista de Estudos
Feministas.
Maria Juracy Filgueiras Toneli ([email protected])
Psicóloga, mestre em Educação, doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP;
docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia/UFSC; Pesquisadora do CNPq; Co-coordenadora do
Núcleo de Pesquisa MARGENS, Co-editora da seção “Debates” da Revista Estudos Feministas.
Adriano Beiras ([email protected])
Psicólogo, mestre em Psicologia pela UFSC. Pesquisador do núcleo MARGENS – Modos de vida, família e
relações de gênero do Departamento de Psicologia da UFSC, onde atua em projetos de pesquisa e extensão
universitária.
Mariana Barreto Vavassori ([email protected])
Psicóloga, Mestre em Psicologia pela UFSC. Pesquisadora do núcleo MARGENS – Modos de vida, família e
relações de gênero do Departamento de Psicologia da UFSC
Rita de Cássia Flores Müller ([email protected])
Psicóloga, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC. Pesquisadora do Núcleo
MARGENS – Modos de Vida Família e Relações de Gênero do Departamento de Psicologia da UFSC.