A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA MENTAL: ESTIGMA E
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA MENTAL: ESTIGMA E
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA MENTAL: ESTIGMA, PRECONCEITO E FRACASSO ESCOLAR Marilza Pavezi (UFAL) [email protected] RESUMO: Este trabalho é um recorte da pesquisa de mestrado intitulada “Alunos com diagnóstico de deficiência mental leve, falam sobre sua vida escolar”. Trata-se de um estudo exploratório, que investiga as concepções de alunos com diagnóstico de deficiência mental leve quanto ao fracasso escolar a partir da análise da fala destes sujeitos. O aporte teórico para esta análise encontra-se na teoria Vygotskyana sobre a deficiência secundária, aquela que surge em função dos processos de significação em torno do defeito orgânico. Foi possível perceber evidencias da marca negativa do estigma de pessoa com deficiência mental e do preconceito que dele decorre, e inferir que o critério “talento individual” continua sendo considerado no meio escolar como definidor do sucesso ou do fracasso do aluno. PALAVRAS-CHAVE: Deficiência Metal, Preconceito, Fracasso Escolar. 1. INTRODUÇÃO O desenvolvimento do ser humano se dá pela interação com o outro, portanto a acentuação dos problemas decorrentes da deficiência primária pode ser analisada a partir das relações que se dão no meio social. Fatores como o estigma, o preconceito e as exigências do mundo moderno podem trazer grandes prejuízos para o desenvolvimento e a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade. Esta pesquisa privilegia a teoria vygotskiana no estudo do desenvolvimento humano comprometido pela deficiência mental considerando-a como não resultante do defeito orgânico em si, mas sim dos processos de significação que dele decorrem no meio cultural. 2 A abordagem deste assunto intenciona alertar educadores para a naturalização do fracasso de alunos com algum tipo de deficiência como resultado de sua própria condição, ou seja, que tanto o fracasso como o sucesso acadêmico resultam da capacidade cognitiva do aluno, do seu “talento individual”. 2. CONTRIBUIÇÕES CIENTÍICAS ACERCA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO COMPROMETIDO PELA DEFICIÊNCIA MENTAL Esta temática será abordada com enfoque nas obras de Vygotsky por ter este autor se dedicado ao estudo do desenvolvimento humano tanto nos indivíduos “normais” quanto nos indivíduos com comprometimento por alguma “deficiência”. A ênfase será dada aos resultados de suas investigações que se voltaram para a criança deficiente mental, mais especificamente o deficiente mental leve, que na classificação aceita por Vygotsky (1989), recebia a denominação de “débil”. A descrição deste quadro da deficiência mental revela o grau leve de retardo que possibilita a esta criança, no processo educativo, ser submetida a um currículo relativamente rico em conteúdos (p.164). Esta classificação aceita pelo autor passou por inúmeras alterações. O manual DSM-IV-TR (2002) apresenta a classificação da deficiência mental em quatro níveis de gravidade a partir do desenvolvimento cognitivo destes sujeitos assim denominados atualmente: QI 50-70 – Deficiência mental Leve (Educável); QI 35-50 – Deficiência Mental Moderada (Treinável); QI 20-35 – Deficiência Mental Severa e QI 0-20 Deficiência Mental Profunda. O autor não nega que as funções superiores apresentam uma atividade reduzida, e reconhece a lentidão no ritmo de desenvolvimento desta criança, portanto, destaca a necessidade de uma educação especial que atenda às particularidades/peculiaridades deste quadro. Seus estudos trazem proposições tão 3 atuais que efetivamente contribuem para a reflexão e ação em prol do atendimento pedagógico destas crianças. Tomando sua obra como base, serão incorporadas idéias e resultados de pesquisas de outros autores que venham a corroborar com suas principais proposições. Sendo as funções psicológicas superiores, consideradas por Vygotsky (1988, 1989, 1990, 1991, 1996), de origem cultural, terão sua evolução vinculada e, até certo ponto condicionada pela cultura peculiar em que o indivíduo se insere. Nos casos de deficiência, que de acordo com o autor, não se caracteriza tanto pelo defeito biológico, mas sim pelos processos de significação que este defeito desencadeia no meio cultural, o desenvolvimento das funções superiores esta condicionada aos conteúdos culturais. Estes conteúdos culturais irão definir o que a pessoa com defeito pode ou não pode ser e fazer, na medida em que estas possibilidades sejam admitidas tanto pelo meio social, quanto aceitos pela pessoa com defeito, numa relação dialética. São as experiências sociais da criança, que inicialmente se constituem no âmbito familiar, suas interações, que darão origem às formas superiores de sua atividade intelectual. Isto confirma a origem cultural das funções psicológicas superiores. Partindo de formas culturais mais elementares da conduta e acrescentando a elas uma regulação voluntária do comportamento, que evolui pela realização dos processos psicológicos de maneira consciente e pela influência social e mediação semiótica, chega-se à caracterização das funções psicológicas superiores. Contribuindo para a evolução e desenvolvimento das funções psicológicas superiores, está o domínio dos meios externos da cultura e do pensamento, como a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho, e o aperfeiçoamento interno das funções psíquicas superiores especiais como a atenção voluntária, a memória lógica, o pensamento abstrato, a formação de conceitos, etc. Esta evolução se dá pela internalização que pode ser ilustrada com o processo de desenvolvimento da linguagem. Esta, surge inicialmente como meio de comunicação, depois se transforma em meio de 4 pensamento, servindo inicialmente à interação social e depois como organizadora interna. Este exemplo serve também para ilustrar a afirmação deste autor quanto ao fato de que qualquer função aparece primeiro como categoria interpsicológica em decorrência da interação social, e depois a nível intrapsicológica como um processo psicológico interno. O psicólogo israelense Feurstein apud Beyer (1996), desenvolveu um método de ensino baseado na “aprendizagem mediada” que se fundamenta teoricamente na ênfase aos processos interpsicológicos como elementos qualitativamente diferenciais para o desenvolvimento infantil, isto é, as experiências de interação de cada criança com o meio (social, círculo de relações interpessoais) são fator diferencial na qualidade do desenvolvimento cognitivo-intelectual das mesmas. Esta posição de Feuerstein também reforça as conclusões de Vygotsky (1991), quanto à manifestação interpsicológica ou interpessoal de qualquer função antecedendo sua manifestação intrapsicológica ou intrapessoal. O método Feuerstein aliado à teoria de Vygotsky aponta para a necessidade de prestar um atendimento educacional às crianças deficientes mentais, pautado em propostas metodológicas que priorizem a mediação, principalmente a semiótica. Estas sugestões quanto a oportunizar situações de brinquedo, incentivar a expressão verbal e fazer uso da mediação para promover a aprendizagem do deficiente mental surgem da análise dos estudos de Vygotsky (1989) sobre o desenvolvimento humano comprometido pela deficiência mental, que buscaram alcançar objetivos opostos aos da avaliação e classificação destas crianças O referido autor realizou várias investigações na área da defectologia, que pode aqui ser entendida como o estudo sobre os defeitos. Seu principal objetivo ao estudar o desenvolvimento das crianças com deficiência mental era encontrar as melhores formas de ações práticas para resolver a tarefa histórica da superação real do retardo intelectual, considerado um infortúnio social. É importante esclarecer que ele, em momento algum 5 desconsiderou a origem biológica da deficiência mental e suas conseqüentes limitações quanto ao desenvolvimento e a cura. Sua preocupação voltou-se ao meio social, ao coletivo enquanto responsável ou não pelo desenvolvimento das funções psicológicas superiores na criança deficiente mental. Segundo ele, as funções psicológicas superiores são mais educáveis em relação às funções elementares, pois a educação coletiva da criança é a fonte de desenvolvimento da estrutura das funções psicológicas superiores. Para tanto, seus estudos basearam-se na caracterização destas crianças em seus aspectos positivos, especialmente no que se refere aos processos compensatórios. Partiu da idéia da unidade das leis do desenvolvimento da criança normal e da criança deficiente mental, porém, sem negar o fato de que as leis do desenvolvimento da criança deficiente mental adquirem uma expressão específica, qualitativamente peculiar. O reconhecimento de que as leis do desenvolvimento são comuns tanto na esfera normal como na patológica, é considerada por Vygotsky (1989, p.173), como a pedra angular em estudos comparativos da criança, mas reconhece e enfatiza que o conjunto de condições em que se desenvolve a criança normal e a anormal são responsáveis por distinções qualitativas que apresenta o desenvolvimento infantil da criança anormal não como uma cópia exata do desenvolvimento infantil típico. O meio desfavorável e a influência que surge no processo do desenvolvimento da criança deficiente mental a conduzem freqüentemente, e com mais intensidade aos momentos negativos complementares, que além de não a ajudarem a vencer a deficiência, acabam agravando e aumentando sua deficiência inicial. Na criança deficiente mental, segundo este autor, ocorre um desenvolvimento insuficiente das funções psicológicas superiores que em geral se apresenta como um fenômeno secundário, ou seja, surge sobre a base das particularidades primárias do quadro, dadas pelo defeito biológico/orgânico. Se a insuficiência se apresenta nas funções psicológicas superiores, então são elas que necessitam ser desenvolvidas, e realmente é nesta esfera que se encontra o caminho para a nivelação e atenuação das 6 conseqüências do defeito, e aí estão as maiores e melhores possibilidades para a influência educativa. A pesquisa de De Carlo (1999) comprovou a possibilidade de superação do funcionamento psíquico elementar, e atribuiu às interações sociais e atividades coletivas a função de promover o funcionamento psíquico complexo. Sua investigação, realizada com internas e profissionais de uma instituição asilar para deficientes mentais, revelou como principais fatores a colaborar com o estancamento das funções psicológicas superiores: a cotidianidade da instituição asilar, que programa e executa atividades baseadas no treino das funções elementares; o pessimismo dos profissionais que atuam com estas pessoas no que se refere às suas possibilidades, e um fator que se destaca que é a retirada destas pessoas do coletivo, a ruptura de seu convívio familiar e social que provoca uma queda qualitativa em suas interações. A este afastamento da criança deficiente mental do seu meio, Vygotsky (1989, p.182) chama de “desaparecimento da criança anormal do coletivo”, e explica como e por que isto acontece. Geralmente o defeito (origem biológica) na criança acaba criando impossibilidades para o desenvolvimento normal de sua relação coletiva, da colaboração e interação com as pessoas que a rodeiam. Este desaparecimento do coletivo se dá pela dificuldade que se apresenta em seu desenvolvimento social, e consequentemente vai condicionar o insuficiente desenvolvimento das funções psicológicas superiores que se realizam sob pressão da necessidade. Se a criança é afastada ao primeiro sinal de necessidade com que se depara, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores fica reduzido. Seu afastamento do meio cultural circundante a relega ao abandono “da alimentação” que o meio oferece, logo, esta criança não experimenta oportunamente as influências do meio. Como se pode perceber, este mesmo meio que é considerado a fonte do desenvolvimento cultural traz em si complicadores que levarão a criança deficiente 7 mental a acumular dificuldades de segunda ordem. Isto se deve ao fato de que todo o aparato da cultura humana está posto para atender à organização psicofisiológica do homem que possui todos os órgãos em pleno funcionamento. Todos os instrumentos, as técnicas, os signos e símbolos estão dispostos para um tipo normal de homem. Isto dificulta a conversão das formas naturais em culturais, e leva a criança deficiente mental a depender de uma educação especial, que disponha de signos e símbolos culturais adequados às particularidades de sua organização psicológica. A criança deficiente mental, até mais que a normal, precisa permanecer inserida em seu meio social e cultural, e ser sujeito em situações de mediação constantes, para que alcance um desenvolvimento social e cultural ótimos. É no processo de desenvolvimento cultural que a criança assimila o conteúdo da experiência cultural e os procedimentos da conduta cultural e do pensamento. Assim, passa a dominar os meios culturais particulares criados pela humanidade no processo de desenvolvimento histórico, como o idioma, os símbolos matemáticos, etc. A relação entre intelecto e afeto foi objeto de análise por Vygotsky (1989, p.215) em seus estudos sobre a natureza da deficiência mental. Acredita na dependência que existe entre os processos intelectuais e afetivos, e que no curso do desenvolvimento estes processos e a relação entre eles variam e se aperfeiçoam, possibilitando ao ser humano agir racional e livremente. As possibilidades da atividade racional e livre do homem são a marca que o distingue dos animais, e só o homem, ao contrário de qualquer outro animal, consegue deixar impressa na natureza a sua vontade, como já o dizia Engels apud Vygotsky (1989, p.222). Portanto a importância do intelecto está em seu vínculo com as novas possibilidades da atividade, e só se desenvolve no contexto e de acordo com as condições da vida real e da atividade humana específica. Isto corresponde a dizer que a vida determina a consciência, que é o todo que se constitui na unidade do intelecto e do afeto, e que a consciência determina a atitude do homem, sua conduta e suas ações em prol de libertá-lo do poder da situação concreta. Nas palavras 8 de Vygotsky apudr Riviére (1985, p.41), a consciência é o “...contacto social com uno mismo.” Na criança deficiente mental, o que ocorre, segundo VYGOTSKY (1989, p.223), é uma rigidez e uma mobilidade reduzida nos sistemas dinâmicos que consequentemente diminuem e até eliminam a possibilidade da abstração e dos conceitos. Isto condiciona o pensamento a um caráter concreto e objetivo que por sua vez condicionam a rigidez e a mobilidade reduzida dos sistemas dinâmicos, e para o bom desenvolvimento psicológico da criança é imprescindível a variação das relações entre o afeto e o intelecto. O que diferencia a criança deficiente mental da normal são as particularidades desta relação e das vias de desenvolvimento por elas estabelecidas. Tanto o pensamento (intelecto) pode ser escravo das paixões (afeto), seu servidor, mas também pode dominá-las, ser seu dono. As relações entre o intelecto e o afeto precisam ser analisadas enquanto processo que prescinde do meio social para serem desencadeadas, o que reforça a importância e influência das mediações com o meio nos processos gerais do desenvolvimento da criança deficiente mental. Diante desta exposição percebe-se que a tarefa histórica da superação real do retardo intelectual é difícil, mas é possível. No entanto a deficiência mental continuará sendo um infortúnio social enquanto o meio social, o coletivo, não forem tomados em sua responsabilidade no desenvolvimento das funções psicológicas superiores e enquanto não ocorrer uma mudança de mentalidade que desmistifique os preconceitos sobre o deficiente mental e ressignifique seu papel na sociedade. 3. O PRECONCEITO DIAGNOSTICADO COMO SOCIAIS À SUA INCLUSÃO. E A ESTIGMATIZAÇÃO DEFICIENTE MENTAL: DO SUJEITO IMPEDIMENTOS 9 As diferenças ou as desigualdades entre os homens existem e são objeto de reflexões desde os primórdios da humanidade. O próprio Aristóteles (1966) não conseguiu encontrar uma solução para justificar a existência dos pensadores em geral, senão pela existência de escravos que realizassem as tarefas pesadas. As desigualdades se mantiveram em todos os momentos da evolução histórica da humanidade em função de normas estabelecidas pela sociedade que funcionam como “mecanismos de controle social” (GLAT, 1995, p.20). Aqueles com atributos ou comportamento desviante do que foi estabelecido como normal pela sociedade, são estigmatizados. Há, porém uma diferença quanto à estigmatização dos grupos classificados como “minorias”, e a estigmatização das pessoas com alguma deficiência: Assim, enquanto outros grupos de desviantes podem, por diversos mecanismos, tentar se conformar com as normas sociais (por adesão ao padrão ou encobrimento de suas diferenças), os deficientes --- por suas características intrínsecas -- representam, na maioria dos casos, uma violação crônica do padrão humano de normalidade, independente da cultura ou momento histórico específico. (GLAT, 1995, p.20) O que a autora transmite nesta idéia é a crença social na condição de irreversibilidade da deficiência, logo, reforçadora da condição permanente de estigmatização destes indivíduos, privando-os do convívio social, das relações sociais, etc. Para que se compreenda esta condição permanente de estigmatização das pessoas com deficiência é importante que se retome o conceito e a produção social do estigma. O estigma, de acordo com Goffman (1988), refere-se a um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, considerando atributo enquanto conjunto real das características morais, físicas e ocupacionais do indivíduo, que definem sua identidade social real. E, considerando estereótipo enquanto o conjunto destas mesmas 10 características, porém criadas socialmente para um determinado tipo de indivíduo, que define a identidade social virtual deste indivíduo. O estereótipo é então uma determinação social do que o indivíduo deveria ser para corresponder à identidade social criada para ele. Sendo o indivíduo possuidor de um atributo profundamente depreciativo, como por exemplo, a capacidade intelectual reduzida dos sujeitos diagnosticados como deficientes mentais, sua estigmatização se dá por possuir esta marca que o acompanha. Este indivíduo passa a ser percebido socialmente em função deste atributo negativo, desta marca, deste estigma. De acordo com Omote (1994), é no cenário das relações sociais que emergem e são confirmados os status de normal e desviante, não-deficiente e deficiente, nãoestigmatizado e estigmatizado. Sendo a família o primeiro ambiente em que se dão estas relações, parece estar nela a origem e confirmação destes status. O fato do nascimento de uma criança com algum tipo de deficiência, ou a descoberta de uma deficiência mental no percurso escolar da criança gera um problema de aceitação por parte da família. Em muitos casos ocorre que “Aqueles que tem relações com ele não conseguem lhe dar o respeito e a consideração que os aspectos não contaminados de sua identidade social os haviam levado a prever e que ele havia previsto receber; ele faz eco a essa negativa descobrindo que alguns de seus atributos a garantem.” (GOFFMAN, 1988, p.18) A família, no entanto, não pode ser totalmente responsabilizada por suas atitudes em relação ao membro deficiente que a integra. A família é composta por pessoas que reconhecem, aceitam e vivem de acordo com as normas estabelecidas socialmente, e se um membro seu é desviante, suas atitudes em relação a ele, inicialmente podem refletir a postura do coletivo. No contexto das relações sociais mais amplas a estigmatização do individuo deficiente evidencia mais claramente o extremo apontado anteriormente por Goffman 11 (1988) quanto a não consideração dos aspectos não contaminados da identidade social destes indivíduos, o que reforça o foco da visão do coletivo social sobre o defeito, o estigma. Esta postura negativa com relação aos deficientes, que lhes dificulta e até impede de ocuparem sua condição humana, revela que o estigma de deficiente se construiu baseado no desconhecimento sobre o deficiente, suas limitações e suas potencialidades. Desconhecimento este engendrado pelo poder e dominação com apoio da mídia enquanto reforçadora de estereótipos do deficiente, que levam os indivíduos que estão sob esta influência a criarem preconceitos sobre os deficientes. De acordo com Ross (1999, p.161): A maior ou menor incidência de preconceito está relacionada com o modo de organização da estrutura econômica de cada sociedade na qual sejam oportunizadas ou limitadas as alternativas para o exercício da atividade profissional e da participação política por parte das pessoas com deficiência. Com efeito, preconceito é um juízo antecipado, sem fundamento. É um conjunto de atitudes que provocam, favorecem ou justificam medidas de discriminação. Esta colocação de Ross (1999, p.161) aponta para um fator importante que ele mesmo reforça quanto ao preconceito ser “...expressão socialmente construída dos limites impostos a essas pessoas.” E, se o que os preconceitos expressam se efetivam então confirma-se o que Omote (1994) chama de “construção social da deficiência”. Este autor afirma que a deficiência é “...produzida e mantida por um grupo social na medida em que interpreta e trata como desvantagens certas diferenças apresentadas por determinadas pessoas...” (OMOTE, 1994, p.68-69). Portanto os critérios que levam um grupo social a rotular alguns indivíduos como deficientes, são os mesmos critérios que afirmam a normalidade dos não-deficientes. Esta produção e manutenção da deficiência pelo grupo social é analisada por Ross (1999) do ponto de vista dos diferentes modos de produção na evolução histórica 12 da humanidade. Com relação à deficiência mental, este autor ressalta sua condição de insignificância no período “... em que os homens produziam sua existência a partir da natureza.” (ROSS, 1999, p.230), uma vez que a atividade física predominava sobre a intelectual. No modo de produção capitalista esta relação se altera pela necessidade de um trabalho teórico que organize e gerencie o trabalho prático, com o objetivo de elevar a produtividade. As características da sociedade moderna, segundo Ross (1999, p.231) é ...que determinam a elaboração da categoria da deficiência mental, como forma excepcional em ralação aos homens livres, iguais e proprietários, ainda que abstratos, da modernidade. A produção intelectual passa a constituir-se em requisito, exigência e expectativa do homem moderno, tendo em vista, encontrar-se despido de dogmas e sentir-se autônomo, movido pela razão. A pessoa com deficiência mental não responde satisfatoriamente a este requisito, exigência e expectativa do homem moderno, logo, sua limitação intelectual é tratada pelo grupo social como desvantagem. O diagnóstico que afirma que determinada criança possui uma deficiência mental, o faz em função de uma análise comparativa entre as respostas dadas pela criança e as respostas esperadas pelos avaliadores. As respostas esperadas pelos avaliadores correspondem às respostas apresentadas pelas crianças normais cuja produção intelectual responde aos requisitos, exigências e expectativas do homem moderno. Isto reforça a definição do anormal a partir do normal como dizia Durkheim (1983, p.110) “...aqueles que são o que devem ser e aqueles que deveriam ser diferentes daquilo que são,...” Esta determinação ou definição do anormal a partir do normal confirma ao mesmo tempo estes dois estados, porque à medida que um homem é definido pelo outro, o outro também é definido por este, como dizem Larrosa e Lara (1998, p.8): Somos nós que definimos o outro (…). E a alteridade do outro permanece como que reabsorvida em nossa identidade e a reforça ainda mais (…). À partir deste ponto de vista, o louco confirma a nossa razão (…); a criança a 13 nossa maturidade; o selvagem, a nossa civilização; o marginalizado, a nossa integração; o estrangeiro, o nosso país; e o deficiente, a nossa normalidade. Isto indica um caminho para que se expurgue da sociedade e da mente das pessoas o preconceito e a estigmatização do deficiente, este caminho foi claramente captado e exposto por Ross(1999, p.228-229) que aponta a necessidade da deficiência constituir-se como norma da seguinte maneira: ...para a deficiência constituir-se como norma, é necessário mostrar-se possível através de movimentos de organização, contestação da norma vigente, reivindicação de novas liberdades e apresentação de idéias, propostas e alternativas que possam construir não apenas uma nova norma, mas, fundamentalmente, um novo sentido e uma nova direção à sociedade. Nem doença, nem desvio da média, a deficiência deve ser simplesmente, humanizada. Seja um estado, seja uma condição, seja uma necessidade, importa mesmo, que o indivíduo seja humanizado no compartilhar dos bens materiais, simbólico-culturais e sociais, próprios do seu tempo, quer nas dimensões locais, quer universalmente. Para que se consiga chegar ao que foi proposto por este autor é necessário tornar a pessoa deficiente familiar à sociedade, uma vez que ela passou a ser uma desconhecida devido aos preconceitos e estereótipos criados a seu respeito. São necessárias algumas mudanças de atitudes que: mostrem a pessoa com deficiência em situações sociais cotidianas; admitam a curiosidade natural; incluam a pessoa com deficiência como parte da população; a retratem independente de estereótipos; a descrevam no mesmo estilo multifacetado; mostrem tanto êxitos como dificuldades; 14 É difícil indicar por onde estas mudanças devam ou possam começar, mas talvez seja possível encontrar uma luz na obra em que Morin (1999) propõe Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. A educação pode e deve iniciar esta transformação de mentalidades, e um bom começo pode estar no conteúdo do terceiro saber proposto por este autor que sugere o ensino da condição humana, levando os seres humanos a reconhecerem a sua humanidade comum e sua diversidade cultural. À Educação do Futuro cabe promover a compreensão da unidade na diversidade, e, da diversidade na unidade nas esferas individual e social. Adquirir a condição humana ou a hominização é uma aventura descontínua e contínua baseada num princípio biofísico e num princípio psico-sóciocultural. Na Educação do Futuro, que deve iniciar agora, pode estar um dos principais caminhos para garantir a inclusão real das pessoas com deficiência. 3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A análise dos dados coletados nesta investigação revelou que os sujeitos da pesquisa interiorizam uma condição de inferioridade, que os leva a naturalizar o fracasso como próprio de sua condição. Isto leva a inferir-se que os significados culturais em torno da deficiência mental, presentes no meio social em que se inserem (escola, família), foram aceitos pelos sujeitos. Vale ressaltar que os significados culturais em torno da deficiência mental, que irão definir o que estes indivíduos podem ou não podem ser e fazer existe numa relação dialética, à medida que são admitidos tanto pelo meio social, quanto aceitos pelos sujeitos com deficiência mental. Esta interiorização de uma condição de inferioridade contraria um dos princípios da compensação em sujeitos com deficiência mental, abordado por Vygotsky (1989, p. 101-105). Quanto a este princípio, o autor, com base nos resultados de 15 pesquisas de E. de Greef, por ele citado, afirma que nos indivíduos com deficiência mental a compensação não é desencadeada a partir do reconhecimento de seu estado de inferioridade, porque estes indivíduos não assumem uma atitude crítica em relação a si mesmos. Levanta-se então a dúvida quanto à condição de deficiência mental, mesmo que leve, dos sujeitos investigados. Uma vez que os alunos admitem que o fracasso escolar é culpa sua, também aceitam que seu sucesso depende do “talento individual” (PATTO, 1996, p. 21), reafirmando o papel da escola no processo de exclusão daqueles que não estão aptos a freqüentá-la. Portanto o critério “talento individual”, ainda é considerado no meio escolar como definidor do sucesso ou do fracasso do aluno. Isto se deve ao contexto social em que educandos e educadores constituem-se enquanto sujeitos, onde impera a competitividade, o individualismo, e os princípios da meritocracia. Uma postura otimista dos educadores em relação aos alunos pode mudar este quadro e traduzir-se em viabilização de recursos de toda ordem para atender às necessidades educativas dos alunos. Os recursos por si só não garantem o sucesso na aprendizagem, são necessárias “mediações deliberadas” (DA ROS, 2002, p.126), aquelas intencionalmente planejadas, que criam contextos de ensinar e aprender voltadas à promoção do desenvolvimento dos processos superiores. A deficiência mental leve, dos sujeitos desta pesquisa, que foi diagnosticada a partir de avaliação psicoeducacional, é questionável, uma vez que no decorrer das entrevistas demonstraram que suas funções psicológicas superiores estão presentes e desenvolvidas. Fizeram uso do pensamento hipotético, da atenção voluntária, do pensamento abstrato e principalmente de conceitos bem elaborados. É importante deixar claro que não é da competência da pesquisadora elaborar diagnósticos à partir de avaliações psicoeducacionais, no entanto, esta pesquisa subsidia este questionamento, que pauta-se na hipótese de que uma condição de privação cultural pode ter mantido o 16 desenvolvimento intelectual destes sujeitos num grau de primitivismo que levou à concluir-se que o quadro era de deficiência mental leve. A redução no desempenho intelectual dos sujeitos desta pesquisa, constatado na avaliação psicoeducacional, conduz à inferir-se que estariam sofrendo da “Síndrome de Privação Cultural”. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Hemus, 1966. BEYER, H. O . O método Reuven Feuerstein: Uma abordagem para o atendimento psicopedagógico de indivíduos com dificuldades de aprendizagem portadores ou não de n.e.e. (p79-89). Revista Brasileira de Educação Especial. Vol. II, n. 4, 1996. BEYER, H. O . O fazer psicopedagógico. 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