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Aspectos da identidade na experiência da deficiência física:
um olhar socioantropológico *
José Alves Martins1
Reni Aparecida Barsaglini2
MARTINS, J. A.; BARSAGLINI, R. A. Aspects of identity in the experience of physical
disabilities: a social-anthropological view. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15,
n.36, p.109-21, jan./mar. 2011.
This article analyzed the experience of
physical disability by focusing on
individuals’ identity, which was discussed
through the categories “being and
feeling deficient” and “stigma”, guided
by self-concept as a sociocultural
construction that is updated daily and
entered into a singular trajectory. This
was a qualitative study of socialanthropological nature based on
phenomenology. Eight men and five
women with acquired physical deficiency
were interviewed using a semi-structured
interview plan, and the data were
subjected to thematic analysis. Being and
feeling deficient involved an ambiguity in
relation to the reductionist concept that
guides the system legitimizing this
condition, which is faced with a more
comprehensive meaning expressed in
everyday performance. Identity was
reaffirmed as a self-concept (re)
constructed in subjective and
intersubjective interactions, without
detachment from a historically, culturally
and socially contextualized biography.
O artigo analisa a experiência da
deficiência física enfocando a identidade
das pessoas, discutindo-a pelas
categorias “ser e sentir-se deficiente” e
“estigma”, balizadas pelo autoconceito
como construção sociocultural,
atualizadas cotidianamente e inscritas em
uma trajetória singular. Trata-se de
pesquisa qualitativa de cunho
socioantropológico fundamentada na
fenomenologia. Foram entrevistados oito
homens e cinco mulheres com deficiência
física adquirida, guiando-se por roteiro
semiestruturado, cujos dados foram
submetidos à análise temática. Ser e
sentir-se deficiente comporta uma
ambiguidade diante do conceito
reducionista que orienta o sistema
legitimador dessa condição, confrontado
com um significado mais englobante
expresso no desempenho cotidiano.
Reafirma-se a identidade como
autoconceito (re)construído nas
interações subjetivas e intersubjetivas,
não descolada de uma biografia histórica,
cultural e socialmente contextualizada.
Keywords: Physical disability.
Anthropology and health. Stigma.
Experience of illness.
Palavras-chave: Deficiência física.
Antropologia e saúde. Estigma.
Experiência da enfermidade.
* Elaborado com base em
Martins (2009); pesquisa
aprovada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa
da Secretaria de Estado
de Saúde de Mato
Grosso, sem conflitos
de interesse.
1
Secretaria de Estado de
Saúde de Mato Grosso.
Centro Político
Administrativo, Palácio
Paiaguás, Bloco D.
Cuiabá, MT, Brasil.
78.049-902.
[email protected]
2
Instituto de Saúde
Coletiva, Universidade
Federal do Mato Grosso.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.109-21, jan./mar. 2011
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ASPECTOS DA IDENTIDADE NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA FÍSICA ...
Introdução
A deficiência física integra o quadro das condições crônicas (Brasil, 1998), às
quais os princípios preconizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) pressupõem
atenção, sendo crescente a sua importância na Saúde Pública, expressa pelas
iniciativas governamentais de descentralização dos serviços, incluindo os de
reabilitação, por força da criação dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família –
NASF3. Como as condições crônicas constituem problemas de saúde que requerem
autogerenciamento permanente ou por um longo período, os modelos de atenção
em saúde baseados na abordagem comunitária devem instituir, no cotidiano de
suas práticas, aspectos importantes da vivência dessa condição fornecidos pelos
seus portadores, o que reforça a necessidade de pesquisas sensíveis à escuta do
outro nessa área.
Considerando que as pessoas possuem legitimidade natural para transmitir seus
significados às instâncias que lidam direta ou indiretamente com elas, é pertinente
abordar a deficiência em primeira pessoa e, para tanto, são oportunas as
contribuições dos estudos da experiência da enfermidade (Rabelo, Alves, Souza,
1999) e das condições crônicas (Canesqui, 2007) que enfatizam as interações na
sua vivência, dando voz aos adoecidos que a interpretam nas situações concretas
do mundo da vida.
Os estudos sobre a experiência da enfermidade desenvolveram-se, sobretudo,
no contexto norte-americano a partir da década de 1950, como reação ao
medicocentrismo presente nas teorias sociológicas orientadas pelo funcionalismo, e
tendo como marca a ênfase no processo subjetivo da vivência da enfermidade
(Canesqui, 2007). Tais estudos assentam-se, basicamente, na interpretação e
significados da enfermidade, seus impactos na vida e seu gerenciamento diário,
com sutis variações nas abordagens, mas que concordam ser a experiência
construída socialmente, diferenciando-se quanto ao peso atribuído ao indivíduo ou
aos elementos externos naquelas construções (Canesqui, 2007).
A corrente filosófica da fenomenologia, sob influência do pensamento de
Edmund Husserl e Max Weber e sistematizada por Alfred Schutz no âmbito da
sociologia, mostrou-se oportuna à compreensão da experiência, ainda que se
verifiquem variações nas abordagens propriamente empregadas nestes estudos, ora
mostrando-se originais, ora combinadas ou relidas.
No contexto nacional, na área das ciências sociais e saúde, destaca-se a
discussão teórica sobre a experiência, empreendida por Alves (1993), com a
relevante publicação da coletânea organizada sobre o assunto (Rabelo, Alves,
Souza, 1999), em que a fenomenologia esteve fortemente presente na orientação
dos trabalhos e cujas contribuições à análise da experiência foram, mais
recentemente, rediscutidas por aquele mesmo autor (Alves, 2006).
Para a análise da experiência da deficiência física proposta, retém-se, da
fenomenologia de Schutz, o enfoque na vida cotidiana e a interpretação do mundo
que surge dela (Schutz, 1979). A interpretação, aqui, envolve o plano subjetivo e
intersubjetivo na ação de atribuição de significados à realidade, dotando-a de
sentido e tornando-a, portanto, um mundo coerente que pressupõe a existência
de uma relação entre as experiências.
Embora este autor reconheça a existência de outras dimensões da experiência,
advoga a preponderância do mundo da vida cotidiana na sua constituição. Admite a
singularidade da interpretação, apoiando-se no conceito de situação biográfica que
particulariza/personaliza a experiência, mas que ocorre no mundo da vida, ou seja,
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1
Constitui Estratégia do
Ministério da Saúde para
o fortalecimento da
Atenção Básica por meio
da ampliação das equipes
mínimas da Saúde da
Família, com a inserção
de novos profissionais de
saúde (fisioterapeuta,
psicólogo,
fonoaudiólogo,
educador físico, Médico
especialista etc). Apesar
de não ter caráter
exclusivo para a
reabilitação, dentre as
várias competências e
responsabilidades de
todos os profissionais
que compõem o NASF,
estão descritas várias
metas e ações em
prevenção, reabilitação e
inclusão social da pessoa
com deficiência (Brasil,
2008).
MARTINS, J. A.; BARSAGLINI, R. A.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.109-21, jan./mar. 2011
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na esfera das experiências cotidianas, que existia muito antes do nosso conhecimento, vivenciado e
interpretado por outros. São estes significados anteriores acessíveis pelas interações sociais que
constituem o estoque de conhecimentos à mão transmitido por nossos pais, professores, predecessores,
o qual funciona como um código de referência para interpretar a experiência atual em curso (Schutz,
1979).
Berger e Luckman (1985) trarão à cena a dimensão objetiva envolvida no processo interpretativo no
mundo da vida cotidiana, influenciando-a num contexto de ordem, direção e estabilidade. Estes
elementos mais estáveis colocarão, em certo grau e simultaneamente, limites à plasticidade da
existência humana, mediando a ação.
Todavia, será com Hunt, Jordan, Irwin (1989), Hunt, Valenzuela e Pugh (1998) e Hunt e Arar (2001)
que se encontrará um equilíbrio entre as dimensões micro e macrossociais, ao tratarem da experiência
da enfermidade crônica, o qual se transpôs para a deficiência física, ressalvando-se que esta não
constitui necessariamente uma doença. Os autores entendem a experiência da condição crônica
influenciada pelo seu próprio curso; pela persistência de construtos prévios (ideias, crenças) referentes
àquela condição, levando a constantes explicações e reinterpretações ao longo do convívio com ela; e
pelo ambiente social expresso pelas circunstâncias da vida diária dos sujeitos e na sua inserção na
estrutura social (Hunt, Valenzuela, Pugh, 1998).
Acrescenta-se que a vivência de determinadas condições crônicas pode constituir uma experiência
estigmatizante (Canesqui, 2007), como no caso da deficiência física. Recorre-se, aqui, ao estudo
clássico, de cunho interacionista, desenvolvido por Erwing Goffman (1988) sobre o estigma, que
consiste de marcas corporais que informam sobre o status moral, afetando e deteriorando a identidade
do seu portador ao diferenciá-lo de forma depreciativa, podendo gerar comportamentos sociais
defensivos (que amenizam a identificação da sua condição) ou, mesmo, o isolamento social. Trata-se de
um julgamento antecipado sobre a identidade da pessoa em detrimento do restante de suas qualidades
(Goffman, 1988) e, portanto, de uma classificação cujos parâmetros encontram-se nos valores
construídos e compartilhados em um dado tempo e espaço. Goffman explica que isso ocorre porque a
sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados comuns e
naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Reafirma-se, então, a identidade como
autoconceito, construído e reconstruído nas interações subjetivas e intersubjetivas, não descolada do
contexto histórico e social mais amplo; e, o estigma, como uma marca que informa sobre a identidade.
Na deficiência física, a visibilidade dessa condição, e suas consequências, podem ser exacerbadas,
pois considerável parte dos sinais está corporificada na aparência, forma, tamanho e funcionalidade,
denunciando a diferença. Lembramos que as experiências corporais ocorrem em e por particulares
situações de vida e em um corpo socializado.
Se as teorias auxiliam a compreensão da realidade, suas limitações nos levam a tais composições para
não incorrer numa inversão, em que os fatos são enquadrados às possibilidades teóricas.
Assim é que, para além da introspecção, na experiência da deficiência física, considera-se que o
sujeito em ação lida com as contingências da vida diária atribuindo sentido aos acontecimentos, a partir
da diversidade de matrizes de significados e práticas potencialmente disponíveis, mas que tem também,
como pano de fundo, elementos macrossociais que podem constranger ou viabilizar a conformação das
interações e interpretações. Enfim, visando relativizar os “determinismos” na experiência da deficiência
física, admitem-se múltiplas influências, numa relação de circularidade entre elementos objetivos,
subjetivos e intersubjetivos, materiais e simbólicos, a serem considerados numa biografia
contextualizada - daí o caráter socioantropológico desta abordagem.
Diante disso, este artigo analisa a experiência da deficiência física, enfocando a identidade das
pessoas, discutindo-a pelas categorias “ser e sentir-se deficiente” e “estigma”. São aspectos simbólicos
centrais da experiência dessa condição, na qual se articulam o conceito e os significados da deficiência,
a noção e a relação com o corpo, balizados pelo autoconceito como construção sociocultural atualizada
cotidianamente e inscrita em uma trajetória singular contextualizada.
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ASPECTOS DA IDENTIDADE NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA FÍSICA ...
Procedimentos metodológicos
Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a experiência da deficiência física como uma
condição crônica (Martins, 2009), para a qual os dados foram coletados junto a oito homens e cinco mulheres
com deficiência física adquirida, pertencentes a segmentos populares, empregando-se entrevista com roteiro
semiestruturado, realizadas nas respectivas residências. Entre os informantes, há predominância de: idade
acima de cinquenta anos; deficiência adquirida por doenças crônicas ou causas externas (violências e acidentes);
separação após período de união estável; no máximo, primeiro grau completo; aposentado(a) ou com
acesso ao benefício continuado do governo federal e com renda familiar abaixo de três salários-mínimos.
São usuários de serviço público de saúde de um bairro periférico do município de Várzea Grande, MT.
A entrevista orientou-se pelo relato oral (Queiroz, 1987), que a pressupõe, mas constitui
procedimento distinto, verificando como o sujeito situa o evento da deficiência física adquirida na
totalidade de sua vida. De acordo com esta autora, ao discorrer sobre um evento específico (solicitado e
dirigido pelo pesquisador), o que é transmitido ultrapassa o caráter individual e se insere nas
coletividades das quais o sujeito faz parte. Isso quer dizer que, o evento é focalizado, mas não se
ignoram as influências que nele se cruzam e, por isso, sua organização em relato sintetiza informações
pertinentes às suas diferentes relações (objetivas, subjetivas, intersubjetivas).
As entrevistas foram gravadas, transcritas e submetidas à análise temática, não sob a influência da
análise de conteúdo na sua forma tradicional, contando a frequência das unidades de significados, mas
por meio da presença de determinados temas que podem denotar o pensamento coletivo expresso no
discurso individual, ou seja, os núcleos de sentido cuja presença ou frequência signifiquem alguma
coisa para o objeto analítico visado (Minayo, 2006).
Outros dados emergiram de momentos “informais”, expressos nas manifestações verbais e não
verbais, e, sobretudo, da observação do ambiente comunitário e doméstico por ocasião das entrevistas,
registrados em diário de campo.
Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde de
Mato Grosso, e os sujeitos foram identificados por nomes fictícios.
Ser e sentir-se deficiente
A experiência da deficiência física transita pelos estados de “ser” e “sentir-se” deficiente, que
envolvem o conceito e os significados sobre esta condição e incidem sobre a identidade. O esforço dos
setores oficiais de saúde para definição e padronização de uma terminologia da deficiência ganha
sentido no momento em que se dá voz a essas pessoas e permite-se perceber que os termos para se
referir à deficiência são carregados de significados decorrentes de um processo interpretativo acerca
dessa condição.
Assim, para alguém reconhecer-se como uma pessoa com deficiência, levam-se, em consideração,
conceitos que se reportam à capacidade para o desempenho dos “papéis sociais”, e, no conforto moral,
conforme os respectivos papéis e compromissos sociais são cumpridos e honrados. Nesse sentido,
aproxima-se do significado de doença, verificado junto aos segmentos populares (Queiróz, 2003),
quando suas limitações físicas se tornam obstáculos ao desempenho de atividades cotidianas. Neste
sentido, ambas podem significar a perturbação de uma certa ordem social mediante uma discordância
entre a capacidade individual de desempenho frente as suas próprias expectativas ou do seu grupo
social. Essa noção de “ser” e “sentir-se” deficiente se expressa nos depoimentos de um ex-carpinteiro,
vítima de acidente de trabalho, e de uma dona de casa com sequela de poliomielite, cuja deficiência
significou a quebra ou a ameaça às rotinas diárias:
“Eu acho que qualquer pessoa que fazia tudo e depois perde dez ou vinte por cento da capacidade
de trabalhar é deficiente. Não sou mais cem por cento, porque cem por cento faz de tudo, então eu
já não faço. Então esse é meu problema, não sou mais completo”. (Apolo, 56 anos, amputação)
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MARTINS, J. A.; BARSAGLINI, R. A.
artigos
“Eu não me acho deficiente, porque eu faço minhas coisas. Eu lavo minha louça, faço minha
comida. Deficiente é aquele que está entrevado em cima da cama e não consegue fazer nada [...] as
coisas da casa faço com as muletas porque se eu não fizer nem isso, aí eu fico doida! Se nem uma
louça, nem uma comida eu fizer, o que é que eu sou? Você tem que fazer alguma coisa pra sair
aquilo da cabeça senão a gente se sente pior”. (Afrodite, 38 anos, poliomielite)
Essas pessoas podem sentir-se deficientes ou não, pelo potencial residual para desempenhar
atividades laborais que, em geral, em segmentos populares, requerem uma movimentação excessiva do
corpo pela demanda da força física que é essencial para sua sobrevivência e da família. Assim, entre
trabalhadores braçais, o que primeiro define se a pessoa é deficiente físico, é a sua incapacidade para o
desempenho das atividades laborais (físicas), não recaindo no “defeito” em si, mas na expectativa que o
grupo social tem desse “defeito” (Camargo, 2000), expressando as dimensões subjetiva e intersubjetiva
da experiência da deficiência física.
Além disso, os recursos socialmente alocados para a pessoa com deficiência dependem do papel
antecipado que a mesma poderá desempenhar como adulto, e podem influenciar na forma como esta
condição é vivenciada (Groce, 1999). Nesse sentido, pode haver um enfraquecimento moral pela
impossibilidade em desempenhar algumas atividades especificas do seu cotidiano, apontando que
elementos objetivos, expressos pelo trabalho e pelo biológico, também impõem limitações ao social. É
oportuna a observação de Shakespeare (2005), para quem a deficiência “advém da interação entre
corpos comprometidos e ambientes excludentes”.
Como estratégia de ajuste, nestas condições, as pessoas podem buscar um abrandamento da sua
diferença, não na tentativa de equacionar a falta de uma parte ou função do corpo, mas pelo
comportamento capaz.
No momento em que rompe as próprias limitações na realização de tarefas cotidianas, a pessoa com
deficiência, institui, para si, um sistema de compensação moral, revelado no esforço para suprir a
desigualdade física, resgatando sua dignidade e facilitando sua inclusão nas relações sociais, embora, no
caso, a responsabilidade pareça recair exageradamente na vontade individual, descurando-se de fatores
externos que condicionam tal processo. Tal significado é percebido no depoimento de um informante
de 18 anos com amputação de membro superior:
“[...] mas depois do acidente muita coisa muda, porque a pessoa com dois braços é mais
fácil pra arrumar emprego. Como só tenho um fica mais difícil [...] antes era tudo fácil, agora
vou ter que correr atrás! Terei que ser mais forte! Vou ter que ser bom em dobro, estudar o
dobro, se não pode ter falação”. (Orfeu, 18 anos, amputação)
O excerto acima expressa um significado da deficiência vinculado a uma “falta” que deve ser
compensada de alguma forma. Amaral (1992) estudou o fenômeno da compensação entre as pessoas
com deficiência e a definiu como sendo uma tentativa de negação da deficiência, que é uma das
formas de rejeição à mesma. É um esforço para alcançar uma meta por caminhos diferentes,
substituindo os meios para realizar uma tarefa com êxito. Todavia, não se desconsideram, nestes casos,
que as possíveis barreiras materiais ou não (arquitetônicas, atitudinais, institucionais, organizacionais)
podem favorecer ou constranger tal desempenho.
No relato de uma informante com sequelas motoras decorrentes de poliomielite, foi identificada a
relação direta entre o sistema de compensação moral da deficiência perpassado pela questão de gênero
no cumprimento dos papéis sociais, bem como interpreta Sarti (2003), para quem a distribuição da
autoridade na família se fundamenta nos papéis diferenciados do homem e da mulher, cuja
centralidade, neste último caso, recai sobre a maternidade. Nesse sentido, a reafirmação do
desempenho ideal da condição de mulher, expresso pela insistência na consumação da maternidade
(em que o social pressiona os limites colocados pelo biológico), suaviza o significado de “limitação”
imposta pela deficiência, como expressa:
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“[...] eu não podia ter filhos por causa da minha deficiência. Eu já tinha perdido cinco crianças
[...]. O doutor me falou “você não pode ter filho porque seu útero não se fortaleceu e é arriscado
você morrer”; mas eu disse a ele que queria dar um filho pro meu marido [...] Fiz tratamento os
nove meses sem poder sair da cama, tomava injeções e comprimidos pra segurar a criança [...]
depois que eu ganhei minha filha peguei infecção hospitalar e quase morri! Fiquei muito tempo
na UTI, mas graças a Deus estou aquí”. (Afrodite, 38 anos, sequela de poliomielite)
Em certa medida, há uma “imposição” social, à pessoa com deficiência, de padrões ideais como
mediadores da aceitação social. A sociedade estabelece os meios pelos quais se categorizam as pessoas
e os atributos considerados comuns ou “naturais” aos membros pertencentes a cada grupo social (Silva,
2003). Assim, sentir-se deficiente dependerá do contexto social e da trajetória pessoal na construção da
experiência com a deficiência, na qual a identidade é formada, refutando ou aceitando alguns atributos.
Não obstante, o termo deficiente, fruto dessa construção social, é uma expressão depreciativa
carregada de significados negativos. Segundo Amaral e Coelho (2003), em qualquer sociedade, os
valores culturais se concretizam no modo pelo qual ela se organiza, e refletem uma imagem do e no
pensamento dos homens. Uma das principais características dos valores é a de poderem ser expressos
na forma de adjetivos. Para esses autores, o termo “deficiente” é um adjetivo que adquire valor cultural
de acordo com as regras, padrões e normas estabelecidas nas relações sociais, constituindo uma
categoria capaz de agrupar, numa identidade comum, diferentes tipos de pessoas. Portanto, reafirma-se
a necessidade, também, de se considerar o contexto estrutural no qual os significados são moldados,
para se explorar como as pessoas com deficiência atribuem sentido à sua fisicalidade e corporeidade, e
como isso tem impacto na sua identidade (Mulvany, 2000) e na sua experiência.
Uma deficiência física adquirida pode significar uma crise imediata de identidade, pois as diferenças
que agora se apresentam no corpo rompem com o referencial de identificação durante as interações
sociais. Como verificado no fragmento de depoimento de uma pessoa com amputação de braço:
“[...] sei que sou encostado no INSS, mas não me sinto um deficiente, me sinto uma pessoa
como qualquer outra. Com braço, sem braço pra mim é a mesma coisa [...] o corpo não é o
mesmo, mas na minha cabeça não mudou nada. [...] a realidade é essa, penso que seria
deficiente se eu tivesse ficado cego, aí alguém iria ter que andar comigo. [...] Graças a Deus
eu saio, viajo e dirijo pra todo lado. Então eu não me sinto deficiente! Só não posso
trabalhar, mas é porque eu estou encostado no benefício, agora por lei eu não posso fazer
nada”. (Aquiles, 52 anos, amputação)
Neste caso, o conceito reducionista de deficiência, pelo qual se pauta o sistema (externo) que
legitima essa condição, é confrontado com um significado mais englobante, expresso em sua
experiência. Este embate de ser e sentir-se deficiente conflui para a ambiguidade do conceito, comum
em condições crônicas (Barsaglini, 2007). No depoimento anterior, o informante é oficialmente
reconhecido como deficiente (pensionista), mas não se sente como tal – fato que se evidencia ao fazer
uma classificação das deficiências (visual e física) e que é marcada pelo grau de dependência ao
desempenho de atividades cotidianas básicas (andar).
Nesta ambiguidade se estrutura a identidade social da pessoa com deficiência física, integrando a
experiência dessa condição. Assim, procura (re)traduzir, em seus próprios termos, um novo sentido para
a deficiência física, refutando ou aceitando alguns atributos, fortalecendo ou enfraquecendo o
sentimento de pertença a esse segmento, estando presente, nesse processo, elementos objetivos,
subjetivos e intersubjetivos.
O estigma na deficiência física
Embora encontrado não exclusivamente na pessoa com deficiência física, o estigma pode estar
presente nestes casos (Cavalcante, Minayo, 2009; Ortega, 2009; Soares, Moreira, Monteiro, 2008;
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Pereira, 2006; Bastos, Deslandes, 2005; Moukarzel, 2003; Camargo, 2000), constituindo uma das
grandes marcas da experiência dessa condição no grupo estudado, e potencialmente gerador de
sofrimento.
O corpo é susceptível às influências socioculturais (inclusive da ciência moderna), portanto é
impossível restringi-lo a um único aspecto de análise; mas a categoria estigma é central, por se tratar de
uma condição que expõe visivelmente a diferença física, interpondo-se nas interações sociais. É a partir
dessa diferença que as pessoas com deficiência constroem sua imagem, baseando-se na existência do
estigma e considerando-o como desabilitador à aceitação social plena (Costa, 2008). O “estar em
público”, faltando uma parte ou uma função, foi uma frequente preocupação expressa pelos
informantes, alterando o ritmo de suas vidas pela iminência constante da exposição que evidencia a sua
condição. O estigma está implícito no termo “preconceito”, e a sua consequência manifesta pela
vergonha, como relatam:
“[...] mas sei que as pessoas ficam olhando pra minha perna. Tem pessoa que não está
preparada pra viver junto! É o preconceito, porque tem pessoa que olha do jeito normal pra
gente e a gente percebe quando a pessoa olha pra você diferente”. (Íris, 23 anos,
amputação)
“[...] eu fico com vergonha, porque todo mundo fica olhando pra gente, até pra cadeira de
rodas quando eu passo na rua as pessoas ficam olhando [...] eu acho que as pessoas têm
preconceito, é a coisa pior do mundo porque as pessoas olham mesmo!”. (Ártemis, 62 anos,
paraplegia)
A deficiência física impõe a presença do corpo, dando-lhe visibilidade, como nos casos da gestação e
da velhice, que constituem momentos de crise nos quais o corpo volta à consciência do homem (Le
Breton, 1995). E, sendo assim, as pessoas com deficiência podem empreender esforços para ocultarem
sua diferença, manipulando o estigma por meio de estratégias de controle da informação social sobre a sua
condição, no intuito de passarem por “normais” (Goffman, 1988).
Diante de uma deficiência adquirida recentemente, a consciência de vir a ser “uma pessoa com
deficiência” traz consigo a possibilidade de estigmatização, conflito e sofrimento, embora se perceba que,
nessa fase, há uma dificuldade para expressar claramente os sentimentos. Ao encontrarmos um ex-carpinteiro,
no mesmo mês em que sofreu a amputação da mão por acidente de trabalho, ele preocupava-se em como
conseguir uma “tipóia” que, ao tempo em que imobiliza, esconde o membro afetado, ou seja, esconde o
que, na sua percepção, lhe diferencia.
Qualquer posição assumida pela pessoa com deficiência física não a isenta de ter sua autoimagem
corroída pelo esquema comparativo, no sentido de que, em público, ela - como desvio da norma, tornase mais evidente. Assim, a visibilidade ou invisibilidade da diferença podem definir a dinâmica das interações
sociais na vida da pessoa com deficiência física, sendo que, ocultar tal diferença, ao mesmo tempo em que
a protege da exposição, conserva o temor pela iminência constante de ser descoberta – similar à incerteza
dos acontecimentos que as condições crônicas carregam. É válido lembrar que, em meio a essa autovigilância
constante, a revelação de um atributo passível de estigmatização pode se orientar pela ponderação de para
quem / quando / como revelar, sobretudo para aqueles que têm informações adicionais sobre a pessoa em
questão (Goffman, 1988).
Outra manifestação de estigma refere-se à categoria “piedade”, agrupando distintos termos como:
pena, dó, caridade, coitado, inválido etc. Todos entendidos no sentido de imagem maculada, associada
a um sentimento de compaixão por um infortúnio ou infelicidade na vida. A expressão desse
sentimento é interpretada, pela pessoa com deficiência física, como uma atribuição de valor que remete
à imperfeição, à incapacidade e, sobretudo, à desvantagem, levando a um conceito socialmente
desvalorizado. Como postulam Paiva e Goellner (2008), as relações sociais alteram-se na medida da
alteração do corpo, pois esta produz um novo lugar social, um modo diferenciado de estar no mundo.
Essa aparência física, permanentemente modificada na pessoa, provoca sentimentos perturbadores,
rejeitando suas formas de expressão, como relatam alguns informantes:
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ASPECTOS DA IDENTIDADE NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA FÍSICA ...
“[...] não tem coisa pior que você estar na rua e ficar todo mundo olhando, sentindo “dó”.
A coisa que mais odeio é chegar ao ponto de ônibus e ter que esperar todos os ônibus
passarem, pra esperar o ônibus adaptado pra que ninguém me pegue no colo pra por
dentro do ônibus, porque sei que ficam todos olhando com “dó” da gente”. (Ícaro, 19
anos, paraplegia)
“[...] eu odeio, não gosto que ninguém tenha “dó” de mim. Sinto-me mal mesmo. Nem sei
o que mais eu sinto. Não gosto mesmo”. (Íris, 23 anos, amputação)
Pereira (2006) destaca que essa categoria de sentimentos citados anteriormente surge da ideia de
que a deficiência é uma condição que inviabiliza a vida da pessoa, tornando-a triste, limitada, lenta,
improdutiva, incapaz de cuidar de si mesma, sendo, por tudo isso, digna de pena, carente da ajuda e da
piedade alheia. Compreende-se que essas manifestações incomodam por serem atitudes generalizantes
diante das pessoas com deficiência, ou seja, todas passíveis do mesmo sentimento e necessidades.
As atitudes piedosas também refletem uma faceta do estigma, sendo aversivas aos informantes
quando se materializam no cotidiano, ao serem abordados em espaços públicos por pessoas oferecendo
algum tipo de auxílio, antecipando ajuda antes de acreditarem na sua capacidade. Tal atitude carrega a
concepção da incapacidade na deficiência (Pereira, 2006), além de um componente assistencialista.
Uma antecipação sobre a identidade, portanto, como declaram os informantes:
“[...] eu mesmo não gosto de ser ajudado por pessoas estranhas. E acho que nem um
cadeirante deve gostar. As pessoas deviam esperar a gente pedir ajuda. Quando vem uma
pessoa me ajudar sem que eu peça, eu não gosto. Essas pessoas ajudam pensando que a
gente é coitado, entendeu? Não gosto mesmo [...] se precisar eu peço ajuda!”. (Ícaro, 19
anos, paraplegia)
“[...] se a gente gastava meia hora pra fazer uma coisa agora você gasta uma hora ou mais,
mas não há problema, desde que você faça devagar, sem ter pressa! Não precisa ajudar, é só
esperar”. (Aquiles, 52 anos, amputação)
Para alguns informantes, há, de certa forma, um enquadramento “natural” e “tipificado” da
estigmatização, pois em seu cotidiano, antes da deficiência, era comum esse sentimento ao se
depararem com pessoas deficientes, já que esse mundo reflete normas, concepções e valores que
permeiam a sociedade que, como estoque de conhecimentos à mão, são comunicados/ativados nas
interações. Dessa forma, o estigma não representa apenas um atributo pessoal, mas uma forma de
designação social, com as respectivas expectativas típicas em contextos típicos. Os extratos seguintes
mostram estes conhecimentos prévios:
“[...] não é mole não! Eu já tinha visto amigos faltando um braço ou uma perna, isso já tinha
visto, e já dava pra sentir que era uma coisa pesada mesmo. Aí acontece isso comigo! Não é
mole ter que enfrentar tudo isso”. (Apolo, 56 anos, amputação)
“[...] todo mundo olha, mas isso também já acontecia comigo antes do acidente. Quando eu
passava por um cego, um cara de cadeira de rodas, de muleta, eu também já olhava assim”.
(Aquiles, 52 anos, amputação)
Reafirma-se a força do mundo social sobre a pessoa, no entanto, os valores e significados são
reinterpretados em situação, ou seja, por ocasião da experiência própria com a deficiência, as pessoas
ressignificam (reproduzindo ou não) a forma como o seu grupo percebe e lida com a diferença corporal.
A questão das tecnologias assistivas (próteses, órteses, acessórios, adaptadores etc), usadas nos
processos de reabilitação física, também pode ter uma interface com o estigma. Verifica-se certa
ambiguidade em relação a essas tecnologias, que não eliminam a fonte do estigma por meio das
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artigos
“correções” pelos recursos técnicos - fato, muitas vezes, desconsiderado nos processos de
desenvolvimento de tais dispositivos. Em alguns casos, o uso de próteses mecânicas, cadeira de rodas,
tutores etc, tornou-se fonte de estigma em face das aparições públicas, devido à visibilidade que dão à
sua diferença, exacerbando-a.
Tais subsídios deveriam estar na base do desenvolvimento dessas tecnologias, pois, embora parte do
grupo entrevistado tivesse facilidade de acesso a tais recursos (pela concessão e dispensação por
programas específicos do sistema público de saúde), não fazia uso contínuo dos mesmos, sendo
comum, ao visitá-los, encontrar órteses deixadas em um canto da casa. As justificativas para a nãoutilização contínua vão desde dificuldades de adaptação, decepção com o que esperavam, até vergonha
pelo aspecto “robótico” aparente, como evidenciam os relatos:
“[...] eu andaria na rua com pernas mecânicas desde que os ferros não aparecessem [...]
usaria uma “saiona” até lá embaixo pra não aparecer!”. (Afrodite, 38 anos, poliomielite)
“[...] eu já vi esses aparelhos de ferro que botam pra tentar andar, mas não sei, acho que
todo mundo ficaria olhando pra gente porque até pra cadeira de rodas, quando eu passo na
rua as pessoas ficam olhando! Eu não gosto dessas coisas de ferro! Queria minhas pernas!”.
(Artemis, 62 anos, paraplegia)
Assim, o sucesso de uma prótese, órtese ou qualquer tipo de tecnologia assistiva está na extensão
com que essa tem adesão por parte da pessoa com deficiência, e não somente pelo potencial em suprir
a falta física do membro ou da função. A adesão ou aderência se refere ao grau de concordância entre
as recomendações/prescrições e o comportamento adotado pela pessoa em situações terapêuticas
(Luftey, Wishner, 1999), o que é extensível, no caso, à compreensão do uso de tecnologias assistivas. A
adesão a estas, porém, não se orienta por fatores exclusivamente racionais, mas é permeada por
elementos simbólicos. Não obstante, o preparo dos profissionais de saúde para apoiar a pessoa com
deficiência nesse processo não pode ser negligenciado nem reduzido ao seu aspecto técnico.
Nesse sentido, se para os informantes, num primeiro momento, a protetização é a melhor opção nos
casos de amputação, pelo potencial em promover a reconfiguração do corpo físico funcional, mantémse a simbologia da incompletude pelo significado do objeto artificial, ainda que a incompletude do
corpo não seja uma exclusividade das pessoas com amputação (protetizadas ou não), como verificaram
Iriart, Chaves e Orleans (2009) nos estudos sobre o culto ao corpo entre fisiculturistas.
A experiência do corpo amputado e protetizado comporta uma ambiguidade por ter sido completo
em sua materialidade orgânica (Paiva, Goellner, 2008), como sugere o depoimento de uma informante
de 23 anos com amputação de perna há cinco anos e usuária de prótese, referindo lembrar-se,
constantemente, de algo que queria esquecer. Contudo, a sua falta lhe causa estranhamento ainda
maior, como se já fizesse parte de sua identidade. Em suas palavras:
“[...] fiquei um ano sem colocar a prótese porque não me adaptava, não gostava, não queria
aquilo. Mas agora também não fico sem ela! Não tiro pra nada. Deus me livre de sair sem
ela! Nem saio de casa”. (Íris, 23 anos, amputação)
O caráter ambíguo do uso das tecnologias assistivas, sobretudo aquelas de difícil camuflagem, pode
estar associado ao que Goffman (1988) chamou de símbolos estigmatizantes que, como as marcas
corporais, transmitem informações sociais que são, especialmente, efetivas para despertar a atenção sobre
a diferença, com uma redução consequente na valorização da pessoa. Neste sentido, pode-se citar a
cadeira de rodas como o principal deles, incluindo ainda: bengalas, muletas, coletes, andadores, carro/
ônibus adaptado, o benefício de prestação continuada e o próprio logotipo oficial da deficiência (que exibe
uma pessoa numa cadeira de rodas) exposto em para-brisa de automóveis, vagas reservadas, banheiros
adaptados etc. Vivemos em um mundo de sinais e símbolos (Berger, Luckman, 1985), presentes no
cotidiano, que, embora possam desempenhar uma função prática, no caso da deficiência física, refletem a
informação sobre a identidade dos seus usuários, como sugerem os fragmentos de discursos:
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ASPECTOS DA IDENTIDADE NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA FÍSICA ...
“[...] há um monte de lugares que eu não gosto de ir porque as pessoas olham. Eles ficam
olhando pra muleta. Se pudesse ir sem a muleta era melhor, mas eu não consigo”. (Atena,
50 anos, hemiplegia)
“[...] de manhã você olha pra cadeira é muito ruim [...] a primeira vez que minha mãe veio
com essa cadeira eu não aceitei, falei pra ela tirar do quarto. Demorou, mas fui aceitando aos
poucos [...] é muito ruim sair de casa. A cadeira de rodas chama a atenção das pessoas.
Todos já te olham daquele jeito [...] no início eu odiava sair na rua por causa da cadeira de
rodas. Tinha ódio de me ver na cadeira [...] uma vez sai de casa e caí da cadeira na rua, me
deu ódio, tive vontade de colocar álcool e botar fogo na cadeira ali mesmo”. (Ícaro, 19 anos,
paraplegia)
Os sinais permanentes, usados para transmitir informação social, podem ou não ser empregados
contra a vontade do informante, mas quando o são, tendem a ser símbolos de estigma (Goffman,
1988). A força universal dos símbolos de estigmas da deficiência se manifesta por serem generalizantes,
incorporados e introjetados mesmo em culturas separadas no tempo e no espaço, perpetuando a
experiência de gerações, sendo sempre alusiva à depreciação físico-moral dos seus portadores, e que
pode ser visível a todos.
Assim, no universo pesquisado, o estigma se revelou como uma faceta da experiência da deficiência
física e um tipo especial de sofrimento, sendo preciso registrar, contudo, que entre os informantes, um
caso apresentou uma singularidade, divergindo nesse aspecto, ao afirmar que “todos já me viram, já
me conhecem e sabem que sou desse jeito! Viajo por todos os lugares e todos me olham, mas não
ligo! Quem não quer ver que feche os olhos!” (Glaucos, 70 anos, sequelas motoras por doença
reumática). Esse caso mostra que as interações heterogêneas permitem uma avaliação mais realística das
qualidades da pessoa com deficiência (Goffman, 1988), o que pressupõe tempo e contato constantes,
além de ressaltar que nem sempre as pessoas com deficiência aceitam as mesmas normas sociais que os
desqualificam (Adam, Herzlich, 2001).
Considerações finais
A análise do aspecto da identidade, integrante da experiência da deficiência física, aponta que o seu
caráter socialmente construído é legitimado pela diversidade de significados que pode assumir dentro
de um mesmo grupo social, que extrapola a dimensão física, e se apóia em padrões culturais de
referência, postos em interação na vida cotidiana. Neste contexto, a partir de parâmetros
compartilhados, o sentir-se deficiente pode ou não coincidir com o fato de ser reconhecido como tal,
imprimindo flutuações na vivência dessa condição, ora sendo oportuna, ora inconveniente tal
correspondência. Não obstante, quanto uma deficiência física pode levar a uma incapacidade e/ou
desvantagem social decorre, sobretudo, de fatores históricos, culturais, políticos e sociais (Shuttleworth,
Kasnitz, 2004), articulados no plano objetivo, subjetivo e intersubjetivo – daí a adequação do caráter
socioantropológico da análise.
Assim, as distintas posições e concepções frente ao estigma, por exemplo, são influenciadas por
valores sociais, pela visão de mundo e, sobretudo, pela trajetória pessoal, sendo todos fatores inscritos
numa biografia, não havendo homogeneidade na sua vivência. É prudente, então, antes de análises
reducionistas e generalizantes, levar em conta a trajetória, as reais circunstâncias e a localização
particular e concreta de cada pessoa dentro do seu grupo e contexto imediato e mais amplo.
Enfim, aprender com as pessoas com deficiência física sobre a experiência dessa condição pode
contribuir para a construção de formas alternativas do cuidar em saúde, que sejam coerentes com a
diversidade sociocultural e contextual desse segmento social.
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MARTINS, J. A.; BARSAGLINI, R. A.
artigos
Colaboradores
José Alves Martins desenvolveu a pesquisa, elaborou a primeira versão do manuscrito
na sua idealização, realizou análise e organização dos dados e a redação da versão final
do artigo. Reni Aparecida Barsaglini responsabilizou-se pela orientação da pesquisa,
participou da análise e organização dos dados, da redação e revisão da versão final do
artigo.
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deficiencia física: un enfoque socio-antropológico. Interface - Comunic., Saude, Educ.,
v.15, n.36, p.109-21, jan./mar. 2011.
El artículo analiza la experiencia de la deficiencia física enfocando la identidad de las
personas discutiéndola por las categorías “ser y sentirse deficiente” y “estigma”,
orientadas por el auto-concepto construcción socio-cultural, actualizadas
cotidianamente e inscritas en una trayectoria singular. Se trata de investigación
cualitativa socio-antropológica fundamentada en la fenomenología. Fueron
entrevistados ocho hombres y cinco mujeres con deficiencia física adquirida cuyos
datos se sometieron a análisis temático. Ser y sentirse deficiente comporta una
ambigüedad ante el concepto reduccionista que orienta el sistema legitimador de esta
condición, confrontado con un significado más generalizado expresado en el
desempeño cotidiano.
Palabras clave: Deficiencia física. Antropología y salud. Estigma. Experiencia de la
enfermedad.
Recebido em 11/01/10. Aprovado em 16/08/10.
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