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> clinicando Oscar Manuel Miguelez A escolha de Sofia. Questões sobre luto e narcisismo pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 clinicando > p. 36-43 É a partir do caso de Sofia que pretendo levantar algumas questões relativas ao luto e ao narcisismo. Em “Luto e melancolia” (Freud 1915), o narcisismo está do lado da melancolia e não do luto. Ainda assim, sugiro que poucas outras vivências além do luto exprimem de forma mais cabal o vaivém do narcisismo. A estabilidade enganosa com que, pelo menos os neuróticos, enfrentamos o fluxo imprevisível do viver vê-se interrompida frente à perda. Mesmo assim, o narcisismo presente no luto pouco tem a ver com aquele da melancolia e também da paranóia. Nessas, o que há é indiscriminação, confusão. O eu e o objeto não conseguem distinguir-se um do outro. Não há luto possível. >Palavras-chave Palavras-chave: Luto, narcisismo, melancolia, caso clínico, econômico, ambivalência, passividade. >36 Several questions related to mourning and narcissism are raised in this article, based on the case of Sophie. In “Mourning and melancholy” (Freud, 1915), narcissism is not on the side of mourning, but of melancholy. Nonetheless, I suggest that few experiences are so expressive of the ups and downs of narcissism as is mourning. The misleading stability with which neurotics, and perhaps others, face the unpredictable flow of life is suddenly undone by a loss. But the narcissism present in mourning is basically unrelated to that found in melancholy and that seen in paranoia, to the extent that confusion and indiscrimination play a major role in these latter. The Ego and the object are indistinguishable, with the result that no mourning is possible. >Key words: Grief, narcissism, melancholy, case report, economic, ambivalence, passivity, loss Sofia é uma mulher de meia-idade, de aspecto cuidado e elegante. Seu rosto é duro e seus cabelos perfeitamente arrumados. Sua fala é fluída, muito articulada. Parece escolher suas palavras de um amplo repertório que denota uma preparação universitária e uma vasta cultura. Sua atitude é controlada, fria. clinicando de tirar seu carro da garagem do meu consultório (que é um corredor de fato não muito largo, paralelo à casa), muito nervosa e desorganizada, pede meu auxílio: ”— Dirijo muito mal e acho que não vou conseguir sair sozinha, pode me ajudar?”. É a partir de Sofia que pretendo levantar algumas questões relativas ao luto e ao narcisismo. Seguindo a tradição inaugurada por Freud em seu artigo de 1915, a melancolia será também incluída, já que, para Freud, luto, melancolia e narcisismo se vinculam. Para ser mais preciso: Freud compara o luto com a melancolia e encontra no narcisismo a forma de operar a diferença entre ambos. O luto é, desde Freud, “um afeto normal”, uma reação à perda de um ser amado ou de um equivalente (pátria, liberdade, etc.). Ele se caracteriza por um estado profundamente doloroso que faz o sujeito em luto perder seu interesse pelo mundo exterior, ver-se diminuído em suas capacidades e aberto quase que com exclusividade às lembranças que o ligam ao objeto perdido. Essa atenção concentrada na perda é produto de um esforço (um trabalho, disse Freud) a partir do qual a pessoa em luto procura pouco a pouco retirar a libido de todas as representações que a ligam ao objeto perdido. Essas questões estavam presentes quando recebi Sofia pela primeira vez e predispunham-me a esperar ver nela as manifestações da dor e do sofrimento de alguém em pleno processo de luto. Embora um pouco chocado pelo seu controle, ao escutá-la, lembrei-me da diversidade desses processos, a quantia de vezes que o luto fica como “congelado” à espera de pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 Alentada por um amigo, consulta-me pois perdeu recentemente sua filha de quinze anos vítima de câncer. Eu já sabia disso antes de recebê-la, entretanto, vendo-a lá na minha frente, tive a impressão que a morte devia ser algo ocorrido havia mais tempo do que eu tinha imaginado. Minha surpresa foi grande quando contou que o enterro da sua filha tinha acontecido decorridas apenas três semanas. Seu amigo tinha lhe dado meu telefone uns meses antes, mas ela preferiu esperar “que a filha morresse” (sic) para iniciar o contato. Raquel, assim chamarei sua filha, tinha adoecido havia pouco menos de um ano de um câncer que, dada a sua curta idade, avançou rapidamente tornando-se incontrolável. Quimioterapia, radioterapia e por último analgésicos descrevem uma seqüência que ela narra sem muitos detalhes e com objetividade doída, mas sem lágrimas. Tem um outro filho mais velho que Raquel e um casamento de quase 25 anos que ela sente desmoronando. A doença de Raquel afastou-a ainda mais do seu marido e ela pensa que a separação de ambos é uma “questão de tempo”. “Não nos separamos ainda pois parece estranho fazê-lo em momentos como esse”. Mesmo assim, não dormem mais juntos no mesmo quarto e apenas falam o indispensável. Pedro, chamarei assim seu marido, tinha loucura por Raquel e não conseguiu aceitar a morte da sua filha até o último minuto. Sempre pensava que poderia surgir alguma droga de última geração que a salvasse. Uma vez terminada sua primeira entrevista, surge um único sinal de fraqueza: depois de alguns minutos e várias tentativas >37 clinicando pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 >38 um momento no qual o “trabalho” resulte menos devastador. Algumas das expressões do seu discurso marcaram-me com especial ênfase. “Preferi esperar que ela morresse para consultá-lo”. Esse “que ela morresse” me fez pensar que o subjuntivo é uma das formas que a linguagem oferece aos sujeitos para expressar o desejo e isso, a sua vez, me levou longe, para a zona obscura da hostilidade, da ambivalência, da rivalidade presente com freqüência na relação mãe-filha. Aos poucos, fui compreendendo que se Sofia estava sentada frente a mim era menos pela recente perda da sua filha e mais pela iminência da separação do seu marido. As preocupações com a partilha dos bens comuns, da venda de objetos “difíceis de serem divididos” ocuparam rapidamente suas falas. Mesmo assim, e isso foi comprovado depois, é freqüente que os conflitos de casal que se seguem à morte de um filho reflitam a complexidade de elaboração de tamanha perda. Também impressionou-me sua couraça, sua aparente frieza. Perguntei-me várias vezes se conseguiria atravessá-la e foi nesse sentido que o final dessa primeira entrevista pareceu-me esperançoso. Medo, insegurança e angústia surgiram “em ato”. Quando finalmente partiu senti-me pesado. Se por um lado sua demanda pareceu-me promissora como quebra da auto-suficiência e frieza, por outro lado também tinha algo de imposição, algo de “ajude-me”, em imperativo. Voltando a Freud. Em seu trabalho de 1915, o narcisismo está do lado da melancolia, não do luto, embora ele mesmo afirme que é “pela soma das satisfações narcisistas que deriva de estar vivo que o eu decide abandonar o objeto perdido”. Na melancolia, segundo Freud, o narcisismo está presente como identificação narcisista, produto a sua vez de uma anterior escolha narcisista de objeto. O objeto perdido não pode ser abandonado e no lugar do abandono surge uma identificação narcisista com ele. “A sombra do objeto caiu assim sobre o eu” (Ibid.), célebre frase cunhada por Freud que por muito tempo orientou a leitura psicanalítica da melancolia: o ataque que o melancólico efetua em si mesmo é um ataque ao objeto com o qual está identificado, ou, em uma versão posterior: o supereu ataca o eu. Não é, porém, a melancolia meu interesse aqui, o luto é o que pretendo enfocar. Se na melancolia a escolha de objeto foi de caráter narcisista, como teríamos que pensar o objeto no caso do luto? O narcisismo que se faz presente como “opção pela vida” no luto é da mesma natureza que aquele presente na melancolia? Como pensar o luto pela morte de um filho sendo que o mesmo Freud aponta como um dos tipos de escolha narcisista de objeto a escolha de quem foi parte de si mesmo? A morte de um filho é capaz de produzir um dos sofrimentos mais intensos que o ser humano pode experimentar. Uma outra paciente que tinha perdido recentemente seu filho apontou-me que essa experiência nem nome tem. Com efeito, quando perde-se o cônjuge fica-se viúvo, quando perdem-se os pais fica-se órfão, mas não há palavra que indique a morte de um filho. Qual é a natureza dessa relação pais-filhos? O que faz que a perda de um filho seja potencialmente capaz de provocar tanto sofrimento? Em “O narcisismo; uma introdução” Freud nos diz: clinicando Nessa página brilhante, plena de sugestões e convites à reflexão fica mais do que clara a natureza narcisista da relação pais-filhos. Mesmo assim, em nenhum momento Freud utiliza os mesmos termos que usa no caso da melancolia. Ele fala de “revivescência”, “reprodução”, “atribuição”. O que acontece parece algo da ordem do deslocamento, do transvasamento. O narcisismo passa de um lugar a outro. Nessa relação há também uma renúncia. Os pais renunciam à satisfação narcisista direta encontrando um substituto no filho. Parece isso muito diferente do que Freud descreve a propósito da melancolia. Lá nada há de renúncia, não há luto possível. O eu e o objeto não conseguem distinguir-se um do outro. O que há é indiscriminação, confusão. Pode Freud empregar a mesma palavra (narcisismo) para denominar ambos os processos, mas eles são de estruturas diferentes. O narcisismo presente nas psicoses, na melancolia e também na paranóia, não é o mesmo que se permeia transvasado na relação pais e filhos. A atribuição majestática é produto de finas discriminações entre o “eu” e o “outro”, nela há renúncia, reconhecimento dos próprios limites, carência (castração, dirá Freud mais tarde), características essas ausentes nas psicoses. Tampouco aquele narcisismo da “opção pela vida” tem a ver com o da melancolia. É curioso também como Freud inicia a descrição dessa relação: “Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos”. Nos “bons pais”, parece querer dizer-nos Freud, afeto, cuidado e narcisismo se misturam. E os que não o são? A realidade nos ensina que nem sempre os pais conseguem transvasar seu narcisismo e que as conseqüências dessa ausência costumam ser graves para a vida psíquica dos filhos. É desse interesse narcisista dos pais pelos filhos que Freud vai fazer depender o surgimento do “eu ideal”, condição para a construção do “ideal do eu” que a sua vez é condição para o sujeito fazer laço com o social. Como vemos, o narcisismo aqui desdobra-se e se faz estrutura. Mas não vou me deter nisso agora. O que acontece quando a doença e a morte atingem um filho? Esta é uma pergunta que é melhor não responder na universalidade, aliás, como a maioria das perguntas que um psicanalista se formula. É por isso que me deixarei levar ainda por Sofia. Sofia nunca foi uma mãe das mais afetuosas. Demorou bastante em querer ter outro filho e o fez mais empurrada pelo fantasma negativo do filho único que pela sua própria vontade. Entretanto, nunca arrependeu-se. Raquel foi sempre uma filha carinhosa que deu poucos problemas. A sua entrada na adolescência acirrou as pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. (...) Assim eles (os pais) se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho (...) Além disso, sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar (...) A doença, a morte,, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – ‘Sua Majestade, o Bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos”. >39 clinicando pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 >40 hostilidades entre elas, mas nada que chamasse a atenção em demasia. A notícia da doença da sua filha foi uma bomba. No início não acreditou no diagnóstico. Não era possível que sua filha estivesse doente, “sempre foi tão sadia”. Precisou-se de vários médicos, vários diagnósticos para que a cruenta realidade terminasse por impor-se. A partir daí, a relação entre elas mudou. Tornou-se difícil compartilhar longos períodos. Logo Sofia percebeu que Raquel morreria. A realidade da morte dificultou a ligação com a filha ainda viva. Era difícil conversar. Qualquer coisa que falasse com ela parecia-lhe um rodeio, um desvio. Algo parecido repetia-se agora nas sessões: era difícil falar-me dela, mas ao mesmo tempo qualquer outro assunto parecia preâmbulo. Sempre que surgia o tema vinha acompanhado de um “para que relembrar?”, “nada pode ser mudado” embora tudo convergisse para o mesmo assunto. Foi aos poucos que Sofia conseguiu falar-me da sua filha. Algumas conversas que tivera com ela vieram à luz. Numa dessas longas e difíceis tardes discorrendo com ela, nas quais a morte surgia como evidência, Sofia decidiu não alentar mais falsas esperanças como fazia seu marido. Falou-lhe então de morte, com crueza. Sem rodeios. Ela sentiu que sua filha tinha direito de saber e poder escolher. Mas escolher o quê? Qual podia ser a escolha? Não foi de uma vez que ela chegou ao fim de seu relato. Primeiro falou de dignidade, depois de opção, no fim a escolha era entre ”morrer com lentidão e sofrimento ou com rapidez e sem dor”. Mas como? A clínica surpreende-nos sempre. A parte mais difícil do relato estava por vir. Ela foi longe mesmo: ofereceu a Raquel um “veneno” (esta foi a palavra que ela utilizou) que deixou no criado-mudo para “que ela pudesse escolher”. Sua filha rejeitou a idéia, de fato não era sua, nunca formulara pedido algum, e não o utilizou. A partir daí tendeu ainda mais para seu pai. Pedro algo soube dessa história, não sei se toda, e ela estava no centro dos desentendimentos que levavam ao divórcio. Muito se fala da neutralidade do analista. Muito se diz da transferência e da contratransferência, mas momentos como esses que acabei de descrever produzem no analista algo da ordem do econômico que não pode ser contido por conceitos. No caso, eu senti horror. Talvez esse seja um dos motivos de estar escrevendo hoje, passados longos anos, a respeito de Sofia. Como poder entender uma atitude como essa? Como transformar a confissão em algo da ordem de uma análise? Qual era a escolha que Sofia pretendera oferecer para sua filha? Voltemos ao narcisismo. Sofia, como aqueles pais afetuosos de que Freud falava, acreditava na imortalidade da sua filha. “Eu pensava que os filhos da gente não morressem”. Não dava para acreditar na veracidade dos diagnósticos. O narcisismo transvasante do qual falava logo acima estava aí. Não obstante, a realidade da morte acabou por impor-se e, com ela, também o desamparo: a outra cara da moeda da onipotência narcisista. Numa primeira aproximação, poderia pensar-se que Sofia quis dar à sua filha o direito que ela própria gostaria de ter em uma situação semelhante. Isso foi, por outro lado, o que manifestamente ela pensava. Entretanto, suas convicções, suas necessidades, só por uma confusão va como fria. É curioso quanto os processos de luto chamam, para ser melhor entendidos, a intervenção do narcisismo. Poucas outras vivências além do luto exprimem de forma mais cabal o vaivém do narcisismo. Magistralmente plasmado na comparação que Freud realiza com a vida dos protozoários (corpo celular, eu; pseudopódes, objetos) esse vaivém da libido é posto em evidência pela perda. A estabilidade enganosa com que, pelo menos os neuróticos, enfrentamos o fluxo imprevisível do viver vê-se interrompida frente à perda. Mas o que se perde? Qual é a natureza daquilo que em psicanálise chamamos de objeto. Nos “Três ensaios para uma teoria sexual” (1915), Freud afirma: O objeto é então, objeto de pulsão e desde muito cedo Freud sustentou a relativa contingência do objeto. Com a introdução do narcisismo, o eu é visto como competindo com o objeto para ser depositário da libido. Assim, afrouxa-se ainda um pouco mais o laço que une o sujeito a seus objetos. O processo do luto não é outra coisa que trabalho de descolamento da libido, trabalho doloroso pois a libido esta fixada e ninguém renuncia às posições da libido sem esforço e sem sofrimento. Voltando a Sofia. O que a terá levado tão longe? Haveria na sua oferta tanática querido poupar sua filha da dor e do sofri- clinicando ... há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto. pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 grosseira, puderam parecer-lhe as mesmas que as da sua filha. Raquel pedia que Deus a levasse, mas nunca falou em suicídio. Ela preferiu o acalento das falsas esperanças que seu pai guardava e o renascimento da fé religiosa em vez da realidade crua e nua que sua mãe lhe oferecera. Seria a oferta materna produto da hostilidade, do ódio? Queria matá-la? Seria esta uma relação marcada pela ambivalência tal como Freud a descreve no seu trabalho de 1915? Diz Freud: “A perda de um objeto amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva e manifesta. Onde existe uma disposição para a neurose obsessiva, o conflito devido à ambivalência empresta um cunho patológico ao luto, forçando-o a expressar-se sob forma de auto-recriminação, no sentido de que a própria pessoa enlutada é culpada pela perda do objeto amado, isto é, que ela a desejou.” É claro que a relação de Sofia com Raquel adolescente estava carregada de ambivalência. Poderia então pensar-se que o discurso eutanásico funcionava como formação reativa. Ainda assim, não conseguia entrelaçar seu ódio de uma forma que me resultasse convincente. Estava com raiva, mas uma raiva do tipo: “como é que esta menina veio a me fazer essa maldade”, “uma doença como essa”. Não terminava de acreditar que fosse preponderantemente ódio o que a levara tão longe e muito menos desejos assassinos. Não havia auto-recriminação, não havia tampouco havia culpa. Sentia-se injustamente acusada pelo seu marido, incompreendida pela sua família que a enxerga- >41 clinicando pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 >42 mento ou a quem precisava preservar era a ela mesma? Algo da ordem de uma aceleração artificial dos processos pareceulhe necessária. Queria que houvesse “escolha”: para sua filha ou para ela mesma? Um descolamento prematuro da libido tinha sido operado com a aceitação da realidade da morte. Essa aceitação a condenava a um estado de tal passividade, a uma experiência de tamanha impotência que a idéia de “poder fazer” algo foi crescendo dentro dela. Ter uma “escolha” para sua filha e para ela. Em “Além do princípio do prazer” (1920), Freud analisa o papel do brincar nos processos de elaboração. Nos diz que é através do brincar (ele toma em particular a brincadeira com um carretel) que a vivência traumática da perda que afeta ao sujeito de forma passiva encontra um caminho de ab-reação na reprodução ativa. É pelo brincar que a criança pode dominar a excitação que a invade traumaticamente. Ação e palavra são as vias que permitem a transformação da passividade em atividade. Ele diz: “No início, achava-se numa situação passiva, era dominada pela experiência; repetindo-a, porém, por mais desagradável que fosse, como jogo, assumia papel ativo. Esses esforços podem ser atribuídos a um instinto de dominação que atuava independentemente de a lembrança em si mesma ser agradável ou não. Mas uma outra interpretação ainda pode ser tentada. Jogar longe o objeto, de maneira a que fosse “embora”, poderia satisfazer um impulso da criança, suprimido na vida real, de vingarse da mãe por afastar-se dela. Nesse caso, possuiria significado desafiador: “Pois bem, então: vá embora! Não preciso de você. Sou eu que estou mandando você embora.” Quanto dessas questões não está presente na “escolha” de Sofia? Quanto da sua racionalização eutanásica e do ato da entrega do veneno não condensa, também nela, domínio e vingança como na criança que brinca de jogar e apanhar o carretel analisada por Freud? Todo luto convoca, para ser interpretado, algo da ordem do traumático. É talvez o traumatismo o que explica o caráter compulsivo, obsessional do luto. A pessoa em luto não pode subtrair-se à memória do perdido. Isso acontece não só nas perdas súbitas nas quais a surpresa e o despreparo fazem com que as intensidades irrompam de modo avassalador. Também no caso de perdas esperadas, até desejadas. Lembro-me de uma paciente que, havendo esperado por anos a morte de seu pai, vítima de uma doença terminal, percebeu, no dia em que ele finalmente morreu, que de nada tinha servido a longa anunciação. Estava ela ainda despreparada, perplexa, sem saber o que fazer, o que pensar, só podia chorar. Com efeito, a morte, como bem apontara Freud (1926), é algo da ordem do irrepresentável. Não há vivência possível da morte e por isso mesmo é sentida como desamparo, como perda da ilusória proteção do supereu, enfim como castração. Aqui de novo o narcisismo mostra outro dos seus rostos, o rosto no qual ele se trama, articula-se com o falo e com a castração. Se todo luto supõe uma reacomodação, um rearranjo narcisista, o de Sofia, foi construído tendo como base uma suposta aceitação da realidade da morte, uma “objetividade” que a fez descartar qualquer ilusão (“falsa esperança”, “droga de última geração”, “fé religiosa”). Encastela- tico os permitisse. Um último assunto. Sofia, depois de um tempo, interrompeu sua análise e mandou-me um presente significativo: era uma caixa preta com um laço de cordão de seda que enfeitava o tampo. A idéia de que se tratava de uma urna funerária fez que nunca soubesse o que fazer com ela. Como dizem os franceses: “dommage”. Referências FREUD, S. (1905). Tres ensayos de teoría sexual. Obras Completas . Buenos Aires: Amorrortu, 1976. v. VII. _____ (l914). Introducción al narcisismo. O.C. Op. cit. v. XIV. _____ (l915). Duelo y melancolía. O.C. Op. cit. v. XIV. _____ (1920). Más allá del principio del placer. O.C. Op. cit. v. XVIII. _____ (1926). Inhibición síntoma y angustia. O.C. Op. cit. v. XX. Artigo recebido em junho/2002 Aprovado para publicação em junho/2002 A Livraria Pulsional possui mala direta eletrônica com 6.300 endereços da área psi. Divulgue suas atividades pela nossa mala. Consulte-nos GA L U DIV FONES: (11) 3672-8345 / 3675-1190 / 3865-8950 e-mail: [email protected] pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 159, jul/2002 clinicando da em uma fria superioridade de “razões” e supostas “percepções objetivas”, negou o abalo da perda da sua filha amada, abalo esse que deixou para ser enfrentado pelos outros: seu marido, seu filho, eu. Se nada podia fazer para salvá-la, algo podia fazer para salvar-se: fechar-se sobre si mesma, enrijecer seus sentimentos, fortalecer seu falicismo, tentar matar a morte. Sua couraça valeu-lhe a condenação de seus familiares. Inúmeros convites ela fazia para que eu unisse minha voz a esse coro acusatório. Porém, e talvez baseando-me nesses convites, no meu trabalho com ela, preferi referir a hostilidade à impotência, falar-lhe de dor sufocada, de morte matada, de onipotência ferida. Preferi resgatar sua ligação amorosa encoberta pelos ódios e pela gélida couraça. Por trás dela, Sofia estava em frangalhos. Ela, agora, estava necessitando do cuidado que não pôde brindar à sua filha. O luto e a verdadeira despedida viriam depois e estavam como à espera que o contexto protetor do setting analí- >43