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1 2 CONIC Um detetive, playboys e marginais 3 4 Alencar Soares de Freitas CONIC Um detetive, playboys e marginais 5 © by Alencar Soares de Freitas – 2010 Programação Visual Victor Tagore Finalização Cláudia Gomes Arte da capa Gustavo Fernandes de Araújo Revisão João Carlos Taveira F868c Freitas, Alencar Soares de Conic: um detetive, playboys e marginais / Alencar Soares de Freitas – Brasília : Thesaurus, 2010. 232p. 1. Literatura, Brasil 2. Ensaio I. Título CDU 82-3(81) CDD 869.3B ISBN 978-85-7062-969-2 Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou informação computadorizada, sem permissão por escrito do Autor. THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG Quadra 8, lote 2356 – CEP 70610-480 – Brasília, DF. Fone: (61) 33443738 – Fax: (61) 3344-2353 * Endereço Eletrônico: [email protected] * Página na Internet: www.thesaurus.com.br Composto e impresso no Brasil Printed in Brazil 6 Ao meu amor, Maria Augusta 7 8 CAPÍTULO I S exta-feira... sempre sexta. A cabeça rodando... o malestar na garganta. O resto do gosto do tira-gosto do bar do Afonso, da farra de ontem – hoje, subindo e descendo pelo pescoço, piorando quando o fusquinha fazia curvas. Saindo da SQS 409, onde Pedro morava, indo pela L2, entrando na grande curva para a Ponte Costa e Silva, saindo dela e pegando a longa via do Lago Sul que leva à Escola Fazendária. Indo depois para a Agrovila São Sebastião e, finalmente, para o seu rancho querido: o Arezona (ar e zona), “onde os homens se encontram”, mas sempre acompanhados de mulheres, porque lá não tem lugar pra bicha. Aquela sexta-feira foi especial. Os amigos no bar do Afonso estavam animados. A turma toda estava lá: Cide, Carlinho, Rubens, Ivan, Mendes Campos, este último, irmão do famoso cronista brasileiro... No momento, todos encostados no balcão. Os barranqueiros, como Pedro os chamava (lembranças dos barrancos de Minas Gerais, que serviam para tantas coisas quando ele era menino, principalmente para encostar as éguas da fazenda). Lugar onde um autêntico frequentador de botequim que se preza não pode deixar de ocupar. Ali eles eram os 9 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S primeiros a pegar o tira-gosto quentinho, saído do forno, a conseguir a cerveja mais gelada, tudo sob o comando do Argeu, o filho do Afonso. Alguns frequentadores, mais especiais, ficavam do lado de dentro do balcão, próximos do comandante. O bar era bem grande, com mesas na parte dos fundos do prédio e, também, do lado de fora, na calçada. Nelas ficavam os “convidados”, gente mais ou menos conhecida que aparecia de vez em quando. A farra continuou noite adentro. Não dava para sair. Era uma daquelas noites quentes de outubro. As mesas cheias, quase todo mundo conhecido. No bar era proibido cantar. Lá ninguém cantava ou, melhor, os mais chegados cantavam. Depois das onze, o Argeu, do lado de dentro do balcão e a moçada do lado de fora, com o seu grande corpo e a sua enorme simpatia, puxava um samba-enredo das escolas de samba do Rio de Janeiro. Argeu era mangueirense e vascaíno. Ninguém é perfeito! A coisa certa é, e sempre foi, ser portelense e fluminense, devoto de Nossa Senhora Aparecida e de São Jorge, um para cada situação. Nossa Senhora para as coisas boas, doces e meigas, do coração: amor, paixão, filhos, música e poesia. São Jorge para as coisas fortes, perigosas: trabalho, dinheiro, briga, acerto de contas etc. Com os dois fica-se com o corpo fechado, protegido. O bar estava no clima ideal. Estava “no ponto”, todo cheio de fumaça. Risos altos. Estava fervendo. Para melhorar as coisas chegou a Marinalva, a loira bonita e de boa voz que todos paqueravam – poucos tiveram a felicidade de beber daquelas águas. Já estava perto da meia-noite. Ela entrou, meio bêbada... ou bêbada e meia!? Andava como que flutuando, balançando aquele 10 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S corpão pra lá e pra cá. Ficou todo mundo aceso. Ela chegou junto da mesa da diretoria – a mais perto da extremidade do comprido balcão –, comandada pelo Conde Mixirica, e sorriu. A cadeira apareceu do nada – encantamento. Ela sentou-se e o copo com cerveja, sua bebida predileta, surgiu mais rápido que a próxima prestação da televisão. Ela ria e jogava seu charme. Começou a ensaiar umas notas, umas palavras, na sua voz meio rouca, que deixava a turma ensandecida. “De noite, eu rondo a cidade pra te procurar...” é isso aí bicho! Foi criado o momento. Parou tudo. Ficamos escutando e fomos chegando mais perto, rapidinho. Ela sentada em cima de uma das mesas centrais, com as pernas cruzadas, como ioga em meditação. Pernas morenas, lisas, grossas. A gente ouvia, cantando baixo, segunda voz, para não atrapalhar e, mais que isso, olhava aquelas coxas gostosas, procurando ver mais no fundo e dando asas à imaginação. A cabeça funcionando a mil, acrescentando magia onde já existia o encanto. A noite passando, os novatos da boemia se retirando e os profissionais ficando, ficando... A turma do Pedro saiu de lá perto das três da madrugada. Saída do bar, mas não da noite. Ficaram ainda andando pelas quadras, conversando, procurando chifre em cabeça de burro, até o sol aparecer. Já era hora de Pedro ir para o sítio. Sem dormir mesmo, que é melhor. Em São Sebastião, onde muitos bares abriam bem cedo ou, melhor, raramente fechavam, principalmente o do Zé Barranco, Pedro tomaria uma branquinha especial, com seiva de carqueja ou outra porcaria qualquer e botaria o estômago no lugar. Cedo ainda, eram sete horas, muito 11 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S cedo; mas, até chegar na Vila o Zé, caso tivesse tirado a noite pra dormir um pouco, já teria acordado. Naquela manhã, no conjunto Pedro-fusca, só mesmo o segundo funcionava bem. Ia macio, rosnando que nem gato satisfeito. Beleza. No embalo, Pedro já estava até esquecendo o enjôo. Passa pela QI 11, vai tocando. Quando começa a passar pela QI 15 percebe, à distância, um ajuntamento de pessoas. Poucas, mas incomum para aquela hora do dia. Aproxima-se, curioso. As pessoas olham para alguma coisa no chão. Ele também olha. Algo estava errado – pressentiu. Seu velho pressentimento: alguma coisa que aperta o estômago e o coração e avisa que tem algo errado, que vai afetá-lo diretamente. Sensação estranha que, durante os seus quase cinquenta anos de vida, sempre o avisou, alertou, anunciou coisas que não iam bem. Foi reduzindo a velocidade do fusca, que no momento estava a incríveis noventa quilômetros por hora, e olhou para o grupo, agora apenas a uns cinco metros de distância. Notou que havia algo no chão. Pensou logo: um corpo. Fixou a visão e percebeu alguma coisa que lhe era vagamente familiar. Uma cor azul-escura. Sua visão escureceu de repente quando se levantou do banco do carro. Foi chegando, sem vontade, assim como uma vaca caminhando para o matadouro. Lembrou-se de sua infância, quando ia ver o abate das vacas no matadouro do seu tio, em sua cidadezinha natal lá em Minas. O olhar derradeiro e triste da vaca no corredor nunca mais saiu da sua cabeça. Chegou perto e olhou. Era o corpo de uma moça. Olhou e viu, não querendo ver. Seu estômago virou de vez; lágrimas saíram dos seus 12 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S olhos, sem querer. Era ela, a sua musa, a sua Sílvia. A moça de São Sebastião que ele adorava. Empurrou alguns curiosos e foi pedindo “licença, licença, detetive, detetive”. Enfiava a mão no bolso de trás e ameaçava tirar a carteira para mostrar “seus documentos”. Uma carteira de detetive particular, em que se atestava que ele tinha sido devidamente aprovado no Curso de Detetive Particular, por correspondência, do Instituto Educacional Brasileiro – aquele que forma gerações. Ainda bem que ninguém botou resistência, algumas vezes quando Pedro mostrava a sua carteira provocava a gozação dos presentes – um vexame. Agachou-se junto do corpo da moça. Ela estava com o vestido azul, que realçava a sua beleza. A brancura dela, de que tanto gostava, estava mais branca ainda. Seus cabelos pretos, lisos e pesados, que voavam como asas de pássaro-preto, estavam mais pretos ainda. Sua expressão era serena, os olhos fechados por seus grandes cílios negros, como que dormindo. Viu um jornal cobrindo seu peito, usava uma blusinha simples, branca – um fio de sangue corria por baixo do jornal e fazia uma pequena poça ao lado. Levantou o jornal e viu... viu o que não devia ter visto nunca. Era um talho grande, feio, que ia do fim do pescoço até perto do estômago. Um talho largo que deixava ver dentro do peito, em uma parte onde era mais largo, uma parte do coração da moça. Foi demais, caiu sentado para trás, vomitando, com a cabeça rodando, num quase desmaio. Controlou-se o mais que pôde, engoliu sua saliva amarga, quase bílis, fez diversas caretas e começou sua volta para o carro; reparando, de relance, as expressões de espanto e deboche com que as pessoas olhavam para 13 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S ele. Entrou no carro e ficou quieto por vários minutos e, finalmente, colocou o fusca em movimento. A cabeça rodava. Ele, que normalmente era desligado, estava agora completamente nas nuvens. Lembrava... lembrava a primeira vez que viu Sílvia. Ele, passando com o fusca pela principal rua de São Sebastião, e ela, com umas amigas, vestindo uma bermudinha curta e apertada, atravessando a rua. O rosto perfeito, nem magra nem gorda, as pernas grossas bem feitas... caminhando... Foi um ato de encantamento, de pura poesia. Lembrou-se da Vila de São Sebastião. Tão pequena quando a conheceu alguns anos atrás: eram três ou quatro ruas. Teve sua origem na exploração do solo argiloso ali existente. Foram montadas, na região, pequenas olarias que produziam tijolos e telhas para a construção das moradias que iam surgindo por lá e em regiões vizinhas. As pessoas sentavam nas portas das suas casas, ao entardecer. Todos se conheciam. Ele saía do Arezona à tardinha e ia pro bar do Zé Barranco e iniciava, com ele, uma conversa gostosa e comprida, entremeada por silêncios, às vezes, prolongados... era como as pessoas, na sua infância, conversavam lá na sua cidade mineira. Agora estava se tornando um lugar perigoso. Dessa vez foi a sua Sílvia, a menina que o ajudou tanto a superar o trauma da sua separação: a sua presença lhe enchia de uma alegria besta, lembrando-lhe que a vida é bela. Agora morta! Mas isso não ia ficar assim. Mesmo que fosse a última coisa que fizesse em sua vida, ele pegaria o filho da puta que matou a moça. Emocionouse. Enxugou as lágrimas com as costas da mão, encolheu a barriga e adotou o ar durão do detetive Pedro Lamas, o Lobo do Cerrado. 14 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S O dia custou a passar no sítio. Nem os seus galos de briga, que ele gostava tanto e que tanto o preocupavam, prenderam a sua atenção. Pensou o tempo todo na Sílvia e nas circunstâncias que cercaram a sua vida e provocaram a sua morte. Tentava encontrar o fio da meada que orientasse a sua investigação. A moça era gamada no Caburé. Um mulato claro, magro e cheio de malemolência. Era considerado o garanhão da Vila São Sebastião. As mocinhas corriam atrás dele e ele fazia charme. Tinha muitos casos e a Sílvia era um deles – mas ela não se conformava com isso, levava a coisa a sério, queria exclusividade. O Caburé gostava de moto e de carro. Tinha uma oficina mecânica e uma loja de peças usadas, conjugadas. Todo mundo sabia, ou desconfiava, que a maior parte das peças vendidas ali eram produtos do desmonte de carros roubados pelo Caburé e por seus amigos. Pedro pensava: “Tenho que encontrar o puto do Caburé hoje a noite. Vou dar umas voltas pela cidade e parar nos bares que o cara frequenta. Começo pelo bar do Zé Barranco e depois vou para o Feitiço da Vila, num desses lugares ele vai estar. Vou dar um aperto naquele cara. Se não conseguir informações, pelo menos ficarei sabendo onde andou a Sílvia ontem à noite”. M Às sete horas, São Sebastião começava a se movimentar, a se aprontar para a noite. As pessoas saíam para as ruas – principalmente as menininhas novas, catorze, quinze aninhos. Pedro gostava de ficar olhando as mocinhas ensaiando o charme. Muitas delas saíam 15 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S de salto alto e era engraçado ver como elas ficavam equilibrando-se sobre eles, desajeitadas. Ele via poesia nisso e também promessas futuras. Sentado no bar do Zé, o detetive, como de costume, tomava devagar uma cerveja grande, a primeira de muitas. Tinha noite que chegava a beber dez daquelas “loiras”, até ficar de porre. Tinha uma necessidade danada de beber, pois toda vez que atingia um certo estado de embriaguez tudo lhe parecia absolutamente correto nesse mundo, até nos mais tristes acontecimentos ele encontrava um lado bom, feliz. Pedro funcionava como um atrativo a mais no bar do Zé Barranco, aliás, em qualquer outro em São Sebastião, onde estivesse bebendo. Quando tinha dinheiro não se importava em pagar cerveja para quem quer que fosse, gostava de ter alguém ao seu lado para jogar conversa fora. O Zeca, um negrão alto e forte, volta e meia sentavase na mesa com o Pedro. Todo mundo sabia que ele já tinha encaminhado duas ou três almas deste para o outro mundo e que também não respeitava muito a propriedade alheia. Ele não falava no assunto, era calado. Pedro o chamava: vem cá, Zeca, chega aqui, vamos tomar uma loira. Ele vinha calado, um andar duro quase de robô: e aí doutô, tudo bem? Vou tomar um golinho com o senhor, mas tenho obrigação de dizer que não posso ajudar na conta. Sentava e ficava rindo, ouvindo Pedro falar pelos cotovelos. De vez em quando pronunciava uma frase ou duas e voltava a ficar quieto. Pedro lembrou-se de uma noite de sábado, em que tinha que voltar à cidade, ao “Plano” – como dizia a turma 16 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S da Vila, referindo-se ao Plano Piloto. Era tarde, quase quatro da madrugada. Entrou no carro e se mandou. Ele tinha uma confiança no seu fusquinha como se ele tivesse compreensão, alma. Nunca tinha batido, nunca tinha quebrado em lugar onde não houvesse quem ajudasse a tirar o carrinho do prego – nem mesmo pneu furava, em lugares ermos. Pedro acreditou que o fusquinha o levaria mais uma vez para casa. Mas daquela vez não deu. Sentiu que não conseguiria. Assim que tomou a reta da saída da Vila, parou o carro no acostamento, para melhorar do porre e dormiu, no ato. Acordou com o Zeca em pé, ao lado da porta, olhando para ele. Meio sorridente, disse: – Eh, doutô, cê não sabe que aqui, a essa hora, a barra é pesada! Tá arriscando muito doutô, tá arriscando muito! Firma que ocê já dormiu muito – tô um tempo aqui te esperando acordar. Firma e vai pra casa. Pedro tomou coragem, já estava melhor. Agradeceu ao Zeca, deu partida no fusca e tocou pra casa, chegando mais uma vez são e salvo. A lembrança do ocorrido ficou suave na sua mente. O Zé finalmente apareceu no salão. Ele tinha o costume de tomar banho lá pelas sete horas da noite, se perfumar, botar pulseira e colar de ouro e sentar para contar suas estórias. Era um empreendedor nato. Chegou em São Sebastião com muito pouco dinheiro e agora já tinha o melhor bar da Vila. Fez de tudo, negociante rico, fugido da justiça, por crime de morte; garimpeiro bamburrado; novamente, negociante rico; falido – era uma rotina de coragem e de persistência. Estava longe de sua cidade, era mineiro também, o que constituía um elo entre os dois. Como um bom mineiro, foi contando suas 17 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S estórias para o Pedro devagar, bem devagarinho, ao longo do tempo – daquele jeito que o mineiro tem de contar as coisas para os amigos – que se vê logo que ali só tem verdade, enfeitada, mas verdade. O papo começou devagar. O Zé contou das meninas que estavam no bar na noite anterior; do cantor que estava dando show lá; das discussões que aconteceram no bar e da sua família, que acabou vindo também morar em São Sebastião perto dele, embora ele e sua esposa estivessem separados há muito tempo. Depois de um pequeno intervalo, Pedro perguntou: – Zé, você viu o Caburé ontem? – Vi, teve aqui, bebendo com uns amigos. – Saiu cedo? – É... saiu, não era nem nove horas, acho. Lembrome que a Lenita gritou da mesa, quando ele ia saindo: “já vai, seu safado, ocê não disse que ia ficar comigo hoje?” Caboclo de sorte esse merda. – É de sorte mesmo! Mas me diga uma coisa, e a Sílvia, você viu? – Não, não vi. Não estava aqui. É, Pedro, você não esquece essa moça, mesmo, hem! – Vou esquecer, Zé, vou esquecer. Ela foi assassinada ontem, à noite. Zé se assusta e fica triste. Emocionou-se, tentou consolar Pedro. Pedro papeou mais um pouco e, mais ou menos às dez horas, saiu de lá e foi para a sorveteria da Pedrinha. Uma mulata bonita, beirando os quarenta anos, simpática, cheia de sorrisos. Sempre tratava Pedro bem. Parecia de vez em quando uma mãezona, preocupada com sua criança, apesar da idade do detetive. 18 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S Chegou e olhou da porta para o salão cheio de mesas. Não viu o Caburé por lá. Lembrou-se, claro como se fosse naquele momento, de um dia não muito distante. Chegou naquele mesmo lugar e, olhando do mesmo jeito, viu a Sílvia conversando com um conhecido de ambos, o Roberto. Olharam os dois para ele. Nos olhos do Roberto estava escrito: esse coroa não se manca, porra! Será que ele não vê que não tem para ele com essa garota? Os olhos dela, grandes, cílios longos, olhos tristes, estavam dizendo: esse cara gosta de mim, quem me dera que ele (sei lá quem, provavelmente o Caburé) gostasse de mim assim também. Aquele momento foi mágico e marcou o início do relacionamento dos dois. Ela tinha se tornado o seu anjo, sua inspiração. Quantas e quantas vezes, Pedro, amargurado pela separação recente e a distância dos filhos que tanto amava, pensou naquela moça para esquecer suas mágoas. Sílvia o tratava bem, tinha consideração. Roberto era uma pessoa conhecida, moreno-claro, vistoso. Sua mãe tinha um companheiro, um amigo, com quem morava. Os dois se desentendiam muito e o homem batia na mulher. Um dia, Roberto, embriagado, matou o padrasto com trinta e tantas facadas. Poucos dias depois, ele foi assassinado com quatro tiros nas costas, por alguém que ninguém viu, embora o crime tivesse ocorrido à tarde, numa praça pública – ou coisa parecida. Mais um dos vários crimes ocorridos na Vila. “Zôio e zovido bem fechados, que é pra num marcá bobeira” – esse era o lema do lugar. O ambiente da Vila – a pequena cidade era chamada tanto por Vila como por São Sebastião – era propício à 19 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S violência. Nela já se aglomeravam milhares de famílias e milhares de desempregados. Desemprego antes de tudo, embora os intelectuais da moda procurassem encontrar outras explicações para a violência e o estado caótico que começavam a ameaçar a maior parte das cidades brasileiras. Explicações que, sem tocar no cerne da questão, os fizessem bem aceitos e bem remunerados pelos que têm dinheiro, principalmente o governo, que tem a chave do cofre público. Pedro nunca se esqueceu de quando leu afixado no quadro de aviso do Banco Central – onde trabalhou uma parte boa de sua vida, como funcionário de nível médio – a convocação para a palestra de um figurão. “Um economista bem pago, que alternava sua vida profissional entre um alto cargo no governo e uma consultoria bem remunerada, também pelos cofres públicos”. O tema a ser explorado pelo sabidão era uma proposta de estudo, logicamente a ser financiada pelo governo, para pesquisar se, no Brasil, é o campo que expulsa o homem, principalmente o pequeno produtor, ou se é a cidade que o atrai – estava escrito lá, no papel de convocação! Pedro ficou estarrecido diante de tanta estupidez. Gostaria de poder resolver esta questão com um bom chute na bunda gorda do conferencista. Pedro continuava sua peregrinação pelos bares de São Sebastião. Caminhava em direção ao Feitiço da Vila, bar e pizzaria da moda. Lá, depois das onze horas, comparecia a nata da Vila. As meninas mais bonitas, os garotos mais arrumadinhos e os eventuais paqueradores das gatinhas: gente que vinha de longe, muitos com situação tranquila e até mesmo gente rica, muitos coroas. Vinham em busca de carne nova, fresca... e novas emoções. 20 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S ‘São muitas emoções’... Roberto Carlos. Sentou à uma mesa vazia e ficou olhando a moçada chegar. Lá estava o Neném, dono de um caminhão, com o qual ganhava a vida fazendo carretos os mais diversos. Pedro já tinha sido amigo dele, até que uma disputa por uma garota atrapalhou o relacionamento. Depois a garota sumiu e os dois ficaram na mão. Nenen se aproximou, pediu licença e sentou em uma das cadeiras vazias. Conversaram sobre diversas coisas, até que Pedro perguntou: – E aí Neném, viu o Caburé por aí, ontem? – Ontem, não... vi na quinta-feira, tava aqui conversando com o Troló e sua turma toda. Conversaram um tempão, parece que falavam de negócios. – Mas que negócio!, disse Pedro, meio despeitado, você já viu um cara como aquele falar em negócio – ele fala é em sacanagem. Passado pouco tempo, Neném falou: – Sabe quem teve aqui, sexta-feira: o JO. “JO, o João Olinto, cinquentão, bem apessoado, magro, forte e bem falante, todo mundo o conhecia. Sujeito esperto, fez sua vida como advogado que não exercia a profissão. Seu talento era agradar as autoridades – em outras palavras, puxar saco – e procurar brechas e molezas nos serviços públicos para se enriquecer. JO, além dessa sua especialidade maior, era também construtor. Dono da JO – Empreendimentos, empresa que construía, de vez em quando, uns prédios que eventualmente desabavam – tudo como deve ser, para se enriquecer rápido, sem muito trabalho. Era muito vivo, defendia publicamente seus princípios de amor aos pobres, com uma convicção e tenacidade de fazer inveja a qualquer Che Guevara. Pedro 21 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S esteve, duas ou três vezes, conversando, em turma, com o JO e admirava a capacidade do cara dizer coisas que não combinavam com a sua atitude perante a vida. Ele era um dos ricos do Plano que andavam, de vez em quando, pela Vila em busca de aventura e de carne fresca.” A sequência do seu pensamento foi interrompida pela barulheira que se fazia no bar. O som estava no último volume. Uma música americana quente, aquele ritmo que mistura o jazz e o gingado crioulo, deixando todo mundo doido. Olhou e viu uma turma de rapazes e moças que tinham saído para fora do bar e que dançavam, em fila, de mãos dadas. Tava bonito. Mas, bonito mesmo era ver, no meio deles, um dos chacareiros da região dançando, de mãozinhas dadas, com uma menina de um lado e, do outro, com um crioulão de quase dois metros – tava pra lá de porre, com um sorriso besta nos lábios, balançando os seus quase cem quilos. Tinha uma lata de cerveja enfiada no bolso de trás da calça. De vez em quando, ele tirava a lata e tomava um gole e também dava de beber ao crioulão, que agradecia com um sorriso de metro e meio. Fazia rir até quem perdeu a santa mãezinha, naquele mesmo dia. Pedro olhou, cismando. “Taí, o jeito é este mesmo, brincar, deixar pra lá! Esta vida é assim mesmo. Não adianta querer consertar essa porra de mundo.” Sentiu um calor bom no corpo, resultado da cerveja e da filosofada. Ele entrava na sua fase de filósofo hindu, cujo principal lema é: “deixa que é assim mesmo, vai dar tudo certo!” Esta sua atitude – ele achava – era a sua defesa intima contra tanta infelicidade que a vida lhe reservara. A elas, possivelmente ele não tivesse resistido, não fossem esses momentos de nirvana tocados à steinhäger e cerveja Skol – sua mistura preferida. 22 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S Nesse estado de beatitude, Pedro não quis pensar em mais nada sério, muito menos em assassinato. Levantou e pegou a primeira morena que estava na mesa ao lado, para quem já tinha lançado uns olhares pidões... e foi mostrar sua técnica no salão. Embora um pouco gordo, dava uns passinhos maneiros na pista. Dançou até cansar e depois pegou o seu fusquinha e foi para o Plano dormir. A ida para casa era um episódio de romance de aventuras. Ia devagar, com o carrinho a cerca de quarenta, no máximo, cinquenta quilômetros por hora. Pedro dizia que era o fusca que o levava para casa. Era seu amigo, dele dependia. Uma noite, de madrugada, ia devagar, olhando atento à estrada – tão atento quanto consegue um bêbado. Estava quase em frente à Escola Fazendária, quando ouviu uma pancada forte na frente do carro e, firmando a vista, viu uma sombra à frente. Tentando firmar mais ainda a sua vista, percebeu claramente uma vaca-preta – de noite todo bicho é preto – sentada em cima do capô do fusquinha. Lá estava ela, sentadinha, com os dois chifrinhos para cima, perfeitamente recortados num céu enluarado. Continuou andando e logo a bichinha caiu para o lado. Ele seguiu em frente, como se nada tivesse acontecido. Só se lembrou do ocorrido no outro dia de manhã, quando viu o amassado no capô do carro. 23 24 CAPÍTULO 2 A cordou, no início da tarde do domingo, com um gosto terrível de guarda-chuva velho na boca. A cabeça pesava duas toneladas. Apressou-se a cumprir a cerimônia de ressuscitamento, tão familiar: engov, cocacola, caminhada devagar pelo apartamento, até que o organismo desse sinal inequívoco de vida. Logo, logo voltou-lhe a imagem da Sílvia morta, sozinha lá no chão, com aquele rosto branco... branco, seus longos arcos de sombrancelhas e seus cílios compridos... e o sangue, o sangue. Veio-lhe subindo do estômago, pela garganta, uma bola de quase fogo, que chegou inevitavelmente à garganta e explodiu, para fora, atingindo a parede branca em frente à poltrona em que estava sentado. Tinha lágrimas nos olhos e uma vontade fodida de morrer, de acabar com aquela merda toda. A sensação ruim passou um pouco e ele já estava melhor. Retomou seu fraco – naquele momento – desejo de continuar a luta e renovou sua promessa para si mesmo de descobrir o filho da puta que matou sua deusa. Levantou-se e apanhou o livro de detetive que estava lendo. Pedro lera um monte de livros de detetive americano e assistira a quase todos os filmes policiais 25 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S americanos que passaram no Brasil, desde o final da década de cinquenta. Sabia falar, com um sotaque horrível, quase todas as frases utilizadas pelos grandes detetives do país do norte. O livro era sobre um detetive americano, bonitão, fortão, decidido pra caralho. Dava porrada a torto e a direito e, volta e meia, caíalhe na mão uma tremenda loira, que ele faturava sem qualquer problema. Isso é que era vida, isso é que era país. Hollywood. Tudo grande, colorido e bonito. Não é como aqui, onde as coisas parecem meio encardidas, pequenas, e essa gente cada vez mais mal tratada vai enchendo as cidades deste País. Sua imaginação voou longe. Maike Ramer entrava no Blue Cat, um bar grande, cheio de espelhos e de lustres. Terno cinzaescuro, bem ajustado, chapéu preto, jogado pro lado, um olhar de desprezo calculado, a boca larga, num sorriso cínico, de quem conhece muito a vida. Pediu um scotch para o garçom que, de dentro do balcão, olhava para ele com ares de poucos amigos. O copo veio rodando pelo comprido balcão e parou bem à sua frente – perfeito! O garçom, de smoking branco e gravata-borboleta, olhou para ele com ar de expectativa: gostou? – parecia perguntar. Ele, durão não disse nada; levando o copo aos lábios, fez com ele um pequeno cumprimento para o garçom. Logo chegou a loira por quem estava esperando. Usava um vestido branco, comprido, aberto do lado esquerdo, desde baixo até em cima, por onde aparecia uma longa perna branca, lisa como cetim. Mais para cima o decote generoso, mostrando duas semiluas brancas, 26 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S duas maçãs, de dar água na boca – Laura... Laura X... mistério e tentação... “Maike Ramer é o caralho!... tenho que pensar é na merda da Lola, mulher do meu atual cliente. Aquela mulher, certamente anda dando. Não pode ser outra coisa, afinal ela tem um marido idiota, pequeninho, careca, uma besta. Ele quer ter certeza do chifre. Não sei pra quê. Uma coisinha daquelas não tem coragem nem de se separar da mulher. Mas amanhã tenho que dar duro, vou conseguir tirar a foto da vadia saindo com algum vagabundo.” Fez um sanduíche frio com restos encontrados na geladeira e foi ver televisão. M Segunda-feira, às três horas da tarde, entrou no fusquinha, deu um soco na almofada da porta esquerda, que estava dependurada, enfiando-a para dentro. Faltava parafuso. Deu partida no carro, que saiu cantando o pneu ou, melhor, rangendo. Parou e olhou... tinha um osso preso debaixo do pneu – cachorro filho da puta!... vai comer osso na casa do cacete! Chegou ao Conjunto Nacional e parou o carrinho no estacionamento da parte de trás – dali era mais fácil fazer uma saída rápida. Sentou nos bancos do andar térreo do edifício e ficou esperando um pouco, lendo jornal. Já tinha feito uma averiguação anterior e sabia que todas as segundas-feiras Lola ia ao dentista do Conjunto. Ligou as pontas: dentista e corneação sempre andam juntos. Pedro achava até que noventa por cento das saídas para chifradas usam como desculpa a ida ao dentista! 27 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S Cansou de esperar a entrada da moça por aquele lado e resolveu dar um giro para ver se ela estava por lá. O relógio marcava quase quatro horas. Esta era a hora. Subiu e foi para a praça da alimentação, no terceiro andar. Ali se reunia a nata das pessoas que não tinham o que fazer à tarde: filhinhos de papai, coroas aposentados, garotas de programa, vagabundos etc. Observou com seu olhar de lobo do cerrado e viu a Lola sentadinha em uma das mesas, tomando um chope. Deu uma volta e sentou-se às suas costas, numa mesa não muito distante. Viu que ela brincava com o copo de chope, passando seus longos dedos, finos e brancos, pela bordas do copo. Era uma mulher bonita. Loira legítima, corpo esguio, olhos meio cinzentos, que pareciam mudar de cor, e longos cílios. Parecia que olhava meio distraída a multidão que andava por lá. De repente, Pedro notou que ela estava era olhando, insistentemente, um grupo de catarinas, que, fardados, jogavam vídeo–game numa loja que dava para a praça. Seu olhar era correspondido por um catarina magro e alto, meio espinhudo que, volta e meia, olhava para a moça. O Lobo do Cerrado ficou curioso. Sua cabeça de detetive, seu arguto raciocínio policial, ficaram sem saber que merda era aquela... só por um instante! Não demorou muito, o catarina saiu do grupo e se aproximou da mesa da moça. Começaram a bater papo e ele notou que Lola estava toda assanhada. Logo o Catarina sentou-se com ela e começaram aquele bate-papo besta que sempre acontece entre pessoas em flerte. Não ficaram muito tempo conversando. Levantaram-se e saíram. 28 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S Pedro não acreditava no que via. A dona Lola, esposa adorada do Dr. Berenício, alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores, saindo com um reco do Glorioso Exército Nacional – herói da Grande Guerra do Paraguai, vindo de Santa Catarina. “Puta que pariu, o que esses merdas desses catarinas vêm fazer aqui em Brasília – comer nossas mulheres?!” Pedro sabia que muita gente boa, mulher e homem também... – homem não, bicha – iam paquerar os catarinas no Conjunto Nacional. – Mas a mulher do Dr. Berenício, não – porra! “Mas espera, Pedro, espera. Não tire conclusões apressadas – pode ser outra coisa”. Pensava e caminhava atrás dos dois que iam descendo pelas escadas rolantes do segundo e primeiro andar. Saíram do Conjunto e caminharam para o estacionamento da parte traseira. Sorte! Se ela fosse para o da frente do Conjunto ele não teria chance de pegar seu fusca em tempo. Dona Lola caminhou em direção ao seu carro, sempre com o catarina, abriu a porta e entrou num opala verdão. Que sensação! Saiu acelerada do pátio em direção à torre de televisão. Pedro mal teve tempo de entrar no seu carro e ver ao longe o opala verdão. Acelerou o bicho o tanto que pôde e começou a seguir a dupla. “Cacete, essa porra de carro não anda!” Desculpe fusquinha. Não sei o que seria de mim sem você. O fusquinha lhe coube na partilha dos bens na separação – a mulher ficou com o carro melhor. Mas aquele carro tinha lhe salvado a vida, algumas vezes, nessa fase que ia passando – naufragado na cachaça – há uns bons cinco anos, depois da sua separação. Não pode 29 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S se esquecer e nem deixar de agradecer o jeito sereno e calmo com que o fusquinha o levava para casa, nos fins de semana, nunca bateu! Era como se a “coisa” soubesse o caminho de casa – que ele mesmo, naquelas horas, mal sabia qual era. O que ele sabia é que no outro dia ele estaria na sua cama e o fusquinha estaria lá em baixo. Algumas vezes com a porta aberta – sorte ou ninguém queria roubar um fusca com, pelo menos, um de seus para-lamas sempre amassado?! “Para de pensar, seu detetive de merda! Presta atenção na porra do serviço!” O opalão verde tinha feito o balão na Torre e pegado a W3 em direção à Asa Sul. O fusquinha atrás. Andou um bom tempo pela avenida e entrou à esquerda, em direção às 400. “Ai, cacete, lá vão os dois merdas para as 400 – é nas 400 que se encontra, mais fácil, quarto pra trepar.” Quando estava acreditando que a coisa ia dar certo, Pedro sentiu, o que não queria nem pensar, a direção ficando pesada e puxando para o lado. “Caralho, pneu furado, caralho!” Jogou o carro em cima da área verde mais próxima e, numa tremenda presença de espírito, tentou ver para onde o carro perseguido estava indo. Com a ajuda do Espírito Santo, conseguiu. Desceu do carro e continuou correndo atrás do opala. O verdão entrou em uma das quadras 400 e dirigiuse ao Bloco Z – Z, de zona, e lá não era outra coisa. O Bloco era conhecido pela sua fauna variada: tava cheio de puta, viado e sacanagem. Ali também se alugavam quartos para casais, em situação interessante. Pedro ficou pasmo. “A Dona Lola! Esposa do Dr. Berenício, alto funcionário do 30 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S Ministério das Relações Exteriores! É... mas tá certo... não há mais relação exterior do que esta que eu estou vendo, interior é que não é. Se fosse, era tudo dentro de casa, com o marido, direitinho. Esse mundo tá virado.” Lembrou-se, de repente, que não tinha qualquer evidência do crime. “Ô detetive cagão. Puta merda!” Voltou correndo para o fusca e pegou a sua laika – máquina russa de tirar retrato, com o mesmo nome da cachorrinha que pela primeira vez foi ao espaço, dentro de um sputinik. Sensação! Sua parte comunista tinha vibrado com o feito dos russos – todos os esquerdinhas do Brasil vibraram. Viva a Rússia! Ele nunca se acostumava a falar União Soviética, isso para ele era abstração, coisa de intelectual. O que sempre existiu é Rússia e pronto... Rússia! Na época do sputinik, Pedro estudava num Colégio Salesiano, em sua pequena cidade natal. “Dom Bosco, seus filhos, encantos de amor....” Os padres eram dinâmicos e avançados, muitos deles vibraram com a conquista dos tovarichis. Ele admirou o júbilo contido do padre-reitor que, na manhã do dia seguinte da subida de Gagarin aos céus, leu na fila de entrada para a sala de aula – jornal na mão – o extraordinário feito. O padre emocionou-se quando leu, talvez pela quinta vez, que o astronauta disse que a terra era toda azul (amor!). Azul, azul e branca, como as cores de Nossa Senhora Aparecida padroeira do colégio, cuja igreja Pedro ajudou a construir, com os outros alunos, fazendo campanha de arrecadação de fundos pela cidade. Os dois entraram no bloco e Pedro não pôde fazer nada. Ficou esperando a saída do casal, lendo o jornal que tinha comprado de manhã e do qual, até àquela hora, ele 31 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S só tinha lido as grandes manchetes. “Presidente diz que o carro brasileiro é uma carroça.” “Velhinhos e velhinhas penam com o confisco da poupança”. “Porra!” Pensou Pedro: “Se esse carrão que está alí parado é uma carroça, o que é o meu fusquinha 75, um monte de merda? Merda é esse presidente de bosta.” Quando estudante, Pedro tinha classificado as coisas por ordem crescente de ruindade: cocô, merda e bosta. “Tô cagando e andando pra carro. Mas a minha poupança congelada foi uma sacanagem. Levaram o dinheiro que eu tinha juntado penosamente por três anos para investir no meu Arezona. Todos os meus planos foram pro cacete. Mas, lá vem a Dona Lola e o catarina. Atenção!” Os dois saíram satisfeitos, com sorrisinhos safados nos lábios – “é!.... a trepada deve ter sido boa” – click, click, click... a laika funcionando, fotografando – maravilha comunista. Sentiu-se como que realizado naquele dia. Tinha a prova da traição nas mãos. Agora era só levar para o Dr. Berenício. Quando... ele ia decidir – afinal um detetive que se preza não resolve um caso tão depressa! Onde fica a emoção? E o que é mais importante: a cobrança do trabalho feito? Resolve-se o caso depressa e o idiota pensa que a gente não fez nada. Dando por findo mais um caso, voltou ao seu escritório: uma salinha pequena no Conic. O Conic, um edifício que mais parecia um navio perdido no meio do cerrado, um navio doido que navega nas poeiras do DF. Sem estilo definido, ou melhor, com um monte de estilos, e cheio de entradas e saídas. O Conic, onde à noite se abrigava a fauna exótica da capital 32 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S federal: prostitutas, bichas, drogados, gigolôs etc. Tinha quatro boates no edifício, sendo duas de bichas e duas de frequência variada; e dois cinemas, um deles passava filme “cabeça”, frequentado por gente sabida, com papos intricados e coisa e tal. Pedro gostava do edifício, não sabia bem porquê. Andava pelos seus corredores e sentia-se participando de um filme “noir” americano. Viajou!... encurvado sobre a sua mesa de trabalho, com os cotovelos sobre ela e a cabeça apoiada em uma das mãos. Andou procurando por mim, Maike? Perguntou a loiraça. – Yes. – E o que quer o neném? Maike Ramer começou a se emputecer. “Neném ela ia ver por entre suas pernas, between her legs.” – Ô Laura, não faz sarcasmo que a última mulher que fez isto comigo ficou sem tomar sopa uma semana. – Eh, meu bem, você levou o dinheiro dela, deixando a coitada sem money pra comprar comida? – Vamos parar, vamos parar! Falou sério, cara fechada. Laura, preciso falar com seu marido, onde anda o sacana? – Escuta aqui, ô mister Ramer, sacana é você. O Bleke é o cara mais honesto deste Brooklim, desde menino. – Honesto, honesto o caralho, ainda pequenininho o sacana roubava maçãs das bancas dos coitados dos vendedores, todo mundo sabe. Well 33 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S mas isto não importa, você vai dar o serviço ou não? Tenho que falar com o Bleke. Laura vira as costas para o detetive e leva seu navio para longe dele. O garçom olhava zombeteiro ... um sorriso americano nos lábios. Maike olhou, através dos vidros cristalinos das grandes portas do bar, as ruas escuras. Chovia de leve e as pessoas passavam devagar com pesadas capas, com golas viradas para cima. Maike Ramer desistiu de encontrar o Bleke no bar de propriedade do bandido. Bebeu um último trago de seu drink, jogou uma moeda em cima do balcão, que também saiu rodopiando, como antes o seu drink, e quase caiu no chão. O garçom, com um gesto brusco, segurou a moeda na mão e olhou feio para o detetive, que nem se importou. Bateu a mão na aba do seu chapéu preto, deu um olhar desafiador para o garçom e saiu. A noite de Nova Iorque esfriava rapidamente. Gotinhas de água gelada descia sobre o chapéu e os ombros do detetive. Ele levantou a gola do paletó e apressou o passo, chegou no seu plimouth e abriu a porta com a chave. Por incrível que pareça, ele percebeu, mais que viu, de relance no espelho da porta do lado do motorista, um brilho rápido. Mais rápido ainda, ele jogou-se para o lado e viu passar raspando por seu braço esquerdo o brilho de uma arma preta. A rapidez de sua ação equiparou-se a de um gato. Pulou de lado e viu o Bleke, que ainda não tinha voltado sua mão para trás, olhar para ele incrédulo. Ainda meio caído, Maike levantou o braço como um raio e aplicou um gancho de direita no queixo do cara. Embora 34 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S grandão, do mesmo tamanho do detetive, Bleke cambaleou. Maike não perdeu tempo, mandou um chute com seu sapato grande, bico quadrado, sola grossa, americana, na barriga do filho da puta. O cara era esperto, mesmo tombado, desviou-se e, com a mão esquerda, aplicou um gancho na costela do detetive. De repente ouviu-se, não longe, a sirene da viatura policial – sirene conhecida por todos, principalmente pelos marginais. Bleke sai correndo e vira uma esquina... sumiu. “O Brooklim... como seria o Brooklim! Escuro, cheio de ruas pequenas, de entradas e saídas. Será que eram iguais às entradas e saídas do Conic? Lógico que não, sua besta, coisa igual ao Conic só na terra “brazilis”. Lá por pior que seja, a coisa não tem esse elemento de absurdidade – etéreo e desconfortável, como se não existisse – que paira sobre quase tudo neste País – inclusive ou especialmente sobre as cabeças das pessoas”. Pedro voltou à realidade. Anoitecia e o Conic começava a ser povoado pela sua fauna costumeira: pessoas bebendo pelas mesas dos bares, bichas chegando com suas roupinhas coladinhas, prostitutas enfeitadas e pintadas, guardas noturnos que andavam de dois em dois. Gritos, risos, xingamentos. Pedro continuava divagando: quantas coisas tinha visto!... “Lembrou-se de quando, muito jovem, saiu de sua cidadezinha mineira e nunca mais voltara – senão para passar férias. A cidade tinha ficado incômoda para ele. Seu tio, bem de vida no Rio de Janeiro, estava pagando-lhe os estudos em um colégio famoso por consertar malandros 35 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S precoces, localizado numa pequena cidade paulista, perto da divisa do seu Estado. Pedro estava abatido, tinha passado por problemas de saúde de certa gravidade, que o deixaram fraco por alguns meses. Devagar foi se recuperando. Estudava e pensava. Pela primeira vez na vida, questionava um monte de coisas – inclusive a razão da porcaria da vida. Nos primeiros dias no colégio interno viu uma fauna diversa e curiosa chegando de várias cidades vizinhas: Ribeirão Preto, Jardinópolis, Bebedouro, Sertãozinho, Araguari, Uberaba. Outros vinham de bem longe, de Goiás, Mato Grosso, Paraná etc. Entravam num dormitório comprido: uns trinta metros, por dez de largura. Quatro longas fileiras de camas. Ao lado de cada uma delas um pequeno armário de ferro, pintado de azul, onde os internos guardavam suas roupas e objetos particulares. No final do corredor uma enorme porta de madeira, com duas grandes folhas, com quadrados envidraçados e uma grande maçaneta no centro. Era o banheiro: do lado esquerdo, uma longa fileira de privadas brancas em cubículos fechados e, no lado direito, uma fileira de chuveiros, sem portas, todo aberto. Só água fria, mesmo nos frios invernos paulistas daquela época. Os alunos que chegavam escolhiam os leitos ainda não ocupados e se instalavam. Amigos de anos anteriores procuravam ocupar leitos próximos uns dos outros, para continuar seus papos que, de vez em quando, entravam, em sussurros, pela noite adentro. O Delegado, o Pezinho, o Vovô, o Marmelada, o Roca e muitos outros. Dentro do Colégio dividiam-se em turmas: os mineiros, os paulistas, os mato-grossenses etc. 36 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S Naquele ambiente, Pedro foi testemunha de um caso muito estranho para ele, na época, e interessantíssimo: o amor, quase paixão, de um interno por outro: o Roca e o Juquinha. O primeiro de vinte anos e o segundo de uns treze anos. Um, na divisão dos maiores, e o segundo, na dos menores: as duas separações por idade que existiam no colégio. O Roca era apaixonado pelo garoto, amor platônico, já que, parecia, nunca tiveram contatos físicos íntimos. Pedro era confidente do Roca. Ele simpatizava com o cara, meio caipira, caladão, mas que com ele se abria, dizendo da sua fixação. Paixão igual a que um jovem de vinte anos teria por uma moça mais jovem. O Roca vigiava o garoto, protegia, trazia presentinhos da rua para ele, tinha ciúmes e outras coisas mais. Conversando com Pedro, levantava conjecturas sobre a possibilidade de Juquinha gostar dele. Pedro perguntava: mas cara, o que é que você quer com o menino, quer comer ele ou o quê?! O cara disfarçava, dizia que era só uma grande amizade, e continuava a lengalenga. Nas últimas conversas que tiveram sobre o caso, o Roca confessou que sentia pelo menino um amor quase de homem para mulher, mas que nunca tinha dito nada sobre isso para ele e coisa e tal. Pedro achava o negócio estranho, não conseguia entender bem.” Pam!... o barulho de uma garrafa quebrando, lá em baixo, tirou o detetive do ambiente cinza e morno de suas lembranças. Era hora de descer e comer alguma coisa e tomar uma ou duas e, por que não, três cervejas? Caminhando pelas vielas – ou seriam ruelas e por que não arruelas? – do Conic, foi para o Café Belas Artes que, naquelas horas, quase dez da noite, estava cheio. Fauna 37 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S intelectual: tudo brilhando. Mulher de saias indianas compridas e coloridas, barbudinhos de toda a espécie, discutindo, com alto nível de confiança neles mesmos, as próximas mudanças políticas do mundo: todas, é claro, favorecendo a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – gloriosa e luminosa senda para o brilhante destino de toda a humanidade que, naquele momento mesmo, estava fazendo água por todos os lados, tal qual um navio velho e cansado. A moçada estava divertida. A maior parte das pessoas era conhecida. Naquela época, Brasília não era grande e a turma que frequentava o bar “cabeça” era pequena. Reparou nos músicos que tocavam nas boates do Conic – calibravam os pneus para o show. Professores da Universidade de Brasília, de barbinha, óculos e prosa vagarosa, concentrada – gênio puro! A turma do PT: barbudinhos, acanhados, magrinhos como se tivessem recém-saídos de uma pneumonia grave. Uma risada alta. Lá estava o JO – João Olinto – numa mesa, sempre bem vestido, porte atlético. Pedro não simpatizava muito com ele. JO, sempre que via o detetive, tentava cumprimentá-lo, mas ele respondia apenas com um aceno da cabeça, sério. Não dava moleza para o cara. Preocupava-se quando percebia que antipatizava um pouco com ele. Ficava cismando se era por ter ouvido tanto falar mal dele, que roubava, pilhava e empilhava, essas coisas que sempre se diz dos ricos, ou se era por inveja. O brasileiro tem mania de julgar que todo rico é bandido e esse julgamento vai sendo aceito, de graça, por todos, ou quase todos – é uma merda! Pedro senta-se a uma mesa, onde está um seu conhecido: um advogado, sem muita expressão 38 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S profissional, que enriqueceu de repente. Meio de porre, o advogado diz que ia dar uma dica para o Pedro ficar rico, rapidinho. O detetive, é claro, interessou-se. O cara, então disse que o negócio era fraudar o INPS, a previdência pública do País. Explicou que era mole, era só procurar nomes de falecidos, inventar nomes e outros expedientes, juntar dados fictícios e mandar para o INPS. Lá dentro, uma parte da quadrilha cuidaria de registrar e “matar” oficialmente o ex-nunca-segurado. A aposentadoria do infeliz seria devidamente apropriada pela quadrilha. Centenas de milhares de falsos aposentados. Centenas de milhões de cruzeirinhos. Pedro só não sentou a mão na cara do filho da puta porque foi pego de surpresa – quando pego de surpresa, numa conversa, ele não reagia rápido – e a ficha demorava um pouco para cair. Essa tendência lhe atrapalhara muito a carreira de valente Lobo do Cerrado. Acalmou-se e tentou saber mais sobre o negócio, o interesse dele era o de detetive – imaginou-se prendendo a quadrilha, saindo nos jornais, grandes manchetes: “desbaratada a quadrilha do INPS. O intrépido detetive Pedro Lamas prende quadrilha milionária. Todos na cadeia etc, etc.” Procurou saber mais, queria o nome dos principais responsáveis. Depois de falar o nome de uns três ou quatro vagabundos de dentro e de fora do Instituto, seu amigo chegou finalmente no nome mais importante: João Olinto, o JO. – Puta que pariu, gritou Pedro. – Tô fora, cara, tô fora. Não disse mais nada. Pediu licença ao seu, já agora, ex-amigo e foi se sentar em outra mesa. Estava 39 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S puto, sentia-se na obrigação de fazer alguma coisa, de reprimir o ilícito, dos piores possíveis, uma vez que se tratava de dinheiro público. Mas, como mexer com um figurão daqueles. Além de empresário bemsucedido, ele sempre tinha um cargo eletivo, ora na Câmara Legislativa do DF, ora no Congresso Nacional. Se quisesse, o homem acabava com ele da noite para o dia. Vocação pra presunto ele nunca teve, nem nunca haveria de ter. JO, lá longe ria alto, queixo quadrado, dentes brancos – olhou para o Pedro. Ele sempre olhava para o Pedro. “Que merda aquele cara tinha, pra ficar me olhando assim – filho da puta!.” A noite avançava, as estrelas apareciam no pequeno retângulo que ficava entre as marquises do Conic. A lua lá de cima brincava de barquinho – fininha, clarinha, igualzinha à lua lá da sua cidadezinha mineira de há muitos anos atrás. Pedro, triste e de porre, levantouse de sua cadeira, deu tchau para uns dois outros caras que estavam sentados por perto e foi em direção ao estacionamento do prédio pegar o seu amigo fusquinha, que o aguardava, tranquilo e impassível, no sereno da noite, que ia cobrindo-o com uma camada de orvalho fria, fria. M Outra sexta... sempre sexta – o dia internacional da cerveja – no bar do Afonso. Mas, antes, ele foi encerrar o caso Berenício-Lola. – Aqui, doutor Berenício, as provas! – Provas?! que provas? 40 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S – Do caso, seu Berenício, do caso da sua esposa. – Bem e daí? – Vê aqui as evidências!? Pedro estendeu para o cliente as fotos tiradas. O Doutor Berenício se recusa a pegar as fotos. O detetive insiste. – Olha as provas. Toma! Doutor Berenício pega e olha. Na cara, uma quase careta. Parece que não quer acreditar. O homem está sofrendo. Ofega. – Não acredito! Não acredito! Essas fotos não provam nada. – Não provam nada, como?! São fotos tiradas com a minha laika... legítima. – Que laika, que nada... merda comunista, merda pura! Não prova nada. Você não provou que houve a consumação do coito. “Ah, a consumação do coito! Palavra difícil e besta pra caralho. Quem não quer não acredita mesmo. É um corno consumado, quer a mulher de qualquer jeito. Talvez esteja certo – quando a gente se dá bem com uma vagabunda, tem que segurar, seja ela o que for”. – É, seu Berenício! não se pode, mesmo, ter certeza que o cara meteu o ferro na sua mulher. – Respeito, seu Pedro, respeito!... minha mulher não é qualquer uma, para andar na boca de boçal. Tá encerrado seu trabalho – tá aqui o seu dinheiro. Joga um bolo de notas para ele, em cima da mesa. – Passar bem. “Passar bem é o cacete.” Pensou: “seu corno manso, viado, filho da puta” – continua pensando e contando o dinheiro. “Assim não dá – não se pode ser detetive nesta 41 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S merda de País. Se fosse nos States haveria vingança, morte, acerto de conta, o caralho a quatro. Ali sim eu teria o que fazer, ser um detetive de verdade”. – Obrigado seu Berenício. Precisando é só me procurar! – Espero que não, seu Pedro – espero que não! M O dinheiro estava no bolso e a goela estava seca pra burro. O jeito era tomar umas cervejas. Várias, para apagar o gosto do desgosto. Pedro estava triste. Mas triste por que, Meu Deus? Por tudo, pelo Brasil – puta que pariu! –, pelo Berenício, pela Lola e pela Sílvia – lá na grama, branca e linda como sempre. Aqueles cílios grandes e negros quase retos no rosto, aqueles cabelos negros e lisos caídos, pesados, soltos pelos lados. Triste por ter-se separado, triste por não estar com seus filhos, triste por tudo! – E aí, Argeu, e o Vasco, hein?!... vai ganhar o campeonato? Argeu passeava a sua simpatia e seus mais de cem quilos ao longo do balcão, de quase dez metros de comprimento; do lado de dentro, cumprimentando quem chegava. Ele sempre tinha uma palavra simpática para todos: velhos amigos ou novatos. – Tá no papo, Pedro. Tá no papo. Este ano ninguém tira o campeonato do Vasco. – As gozações correram o balcão – que mané Vasco, que nada! Não tá vendo o Flamengo, o Fluminense, o caralho a quatro, blablablá... A discussão ia longe. Falar de futebol, a paixão nacional. Quase só se falava em futebol, 42 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S não tinha mais nada, o país do esporte único – que saco! Pedro, não. Pedro tinha sido boxeador – amador é claro – jogara vôlei, e sabia torcer: Fluminense, sempre Fluminense. Fluminense sem paixão, mas com fidelidade. Fluminense o pai do Flamengo. Fluminense, sobre o qual seu querido tio do Rio sempre comentava e falava com ele, desde que era pequenino. Falava e encantava. Contava do clube, de seu gramado verde, verde, dos seus títulos – o maior número de títulos do futebol brasileiro. Dizia das mulheres lindas que frequentavam o clube das Laranjeiras. Pedro sonhava acordado com o clube – um dia iria lá e veria tudo isso... e, até mais, desfrutaria de todas aquelas maravilhas. A noite estava especialmente quente, uma lua do tamanho de um pneu – de fusca, é claro. A turma estava agitada, conversando alto. Discutindo sobre tudo: futebol, amor e casos, mulheres e putaria, emprego, amigos e safadezas... O Argeu corria, pra lá e pra cá, e de vez em quando parava de frente do imenso pernil assado sobre o balcão e cortava fatias para a moçada. Do lado de fora do balcão, de pé, no lugar preferido dos mais chegados – bem de frente do pernil –, Pedro pagava, com o dinheiro do Berenício, do Ministério do Exterior, a cerveja para os amigos. – Vamos gastar o dinheiro do corno – falou alto para os amigos. Contou o seu último caso... solucionado. – Quem é o corno, dessa vez. Quem é o corno? – perguntaram os amigos mais chegados. – Não falo, é segredo profissional, porra! Do lado de dentro, o Alemão, professor da Universidade de Brasília, loiro e grandão, já estava puxando óleo quarenta. Comia e bebia que era uma 43 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S maravilha. Falou alto: hoje tô fervendo, vou pegar uma puta e chupar a bicha todinha. Risadas! O Cide, carioca, falava baixinho e manso e ficava puto com os rompantes de Pedro. Ele reclamava: passa a bola, cara, passa a bola. Pedro fazia que não entendia e continuava a explicar suas teorias sobre a razão das coisas e os segredos últimos da vida etc., etc. – ninguém queria saber. Queria-se conversar sobre mulher, futebol, o caso do último corno e a política – sempre a política, desde que se falasse mal do governo, o que no Brasil é coisa muito fácil. Com a noite avançada, chega o Nego, um mulato, maneiro, que fazia o quê... ninguém sabia! Baiano, cheio de ginga, falando manso. Existia uma simpatia entre ele e Pedro. Dessas mudas, que se sabe sem falar – coisa de macho. O Nego chega e, logo, logo, puxa o papo para o lado das machezas. Diz que – poucos sabem – existe uma tradição de luta com facas no mundo; que tem gente que viaja longe para ver e participar desses combates; que tem calendário e tudo e que eles ocorrem mais ou menos como as brigas de cães: escondidas e proibidas. Nego mostra uma faca, dessas de abrir, como um grande canivete: uma sevilhana, na realidade está meio velha, mas grande, perigosa. Diz que é bom de briga e coisa e tal. Pedro diz que ele não é de nada. Pedro também tem uma faca, faz parte do seu instrumental de serviço, como costuma dizer. A dele é uma buck americana – a melhor faca de combate do mundo. A faca de Pedro é nova e reluzente. Os dois se olham e Pedro, provocante, diz: vamos lá pra fora ver se você sabe usar essa merda ai. A coisa começa a ficar feia. Os amigos ficam calados, preocupados, sem saber o que fazer. 44 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S Os dois vão andando para o gramado da quadra da frente do bar. Param e ficam se olhando. Quase todo mundo para de beber, olham para eles – ar de temor e expectativa. Os dois, com as facas abertas, começam a se balançar de um lado para o outro, dançando com as armas nas mãos. Tentam atingir um ao outro, mas os dois, embora um pouco gordos, fora de forma, são ágeis. É difícil o vacilo. Estão rindo, rindo, não existe raiva – e por que existiria? De repente, Pedro para, puxa o outro e lhe dá um abraço. Todo mundo ri, aliviado. Acabou a braveza – coisa de gente quase de porre. Madrugada de sábado. Começa a clarear o dia e a turma do Pedro – ele, Carlinhos, Cide e Rubens – ainda anda pelas quadras da Asa Sul. Foram ao Clube dos Previdenciários e dançaram com umas gatas, com média de idade lá pelos quarenta anos. Agora estavam naquele estágio em que o porre já estacionou e não vai nem pra diante nem pra trás – fica como uma névoa em volta das pessoas, fazendo com que esse mundo pareça mais humano, mais habitável, quase bom. – Tenho que ir para o Arezona, ô putada, os meus galos de briga estão esperando por mim, tenho que tratar deles! Se deixo por conta do caseiro, os coitados morrem de fome. A paixão de Pedro: galo de briga. Nele se refletia e nele buscava coragem para enfrentar a vida. Ficava horas vendo o bicho brigar, com aquela força e determinação espantosas. “Êta bicho macho! quisera ser assim” – pensava Pedro, na busca disparatada de semelhanças entre coisas tão diferentes. Mas ajudava, ah... que ajudava, ajudava! Quantas e quantas vezes os galos faziam com que ele 45 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S se sentisse melhor, com mais coragem para enfrentar o mundo, que de vez em quando se mostrava horrível. – Vamos nós todos? – diz Cide. – Vamos nós todos? Só o Rubens não quer ir. Pedro, Cide e Carlinhos voltam para a quadra do bar do Afonso para pegar o fusquinha. A viagem é uma aventura. O fusca anda macio. É coisa do anjo da guarda – parece que anda sozinho. Lá vai ele na espantosa velocidade de cinquenta por hora. Param em São Sebastião, bebem mais umas cervejas, compram outras para levar e vão embora. Ah! compram também alguma ração para os animais e, principalmente, vacina anti-aftosa para as vacas – que ninguém é de ferro, nem mesmo as vacas. Chegam ao sítio e vão logo aplicar as vacinas em todas as cinco vacas do Pedro. Todas com nomes e tratadas como gente de casa. Os três estavam ainda de porre... leve. Pedro inicia os trabalhos. Laça a vaca, amarra suas patas traseiras e dá o laço para o Carlinho segurar. Dá volta pelo lado e alcança a parte posterior do animal. Prepara a seringa. Estica o braço. Quando vai aplicar a injeção na bunda do ruminante, a vaca dá um passo pra frente. O Carlinho fica olhando, com cara de bocó. – Filho da puta, eu falei pra você segurar essa merda, filho da puta! Tenta de novo. Segura a vaca, pega no laço e dá agora para o Carlinho e o Cide segurarem juntos. Os dois, mais ou menos tontos, seguram a ponta do laço. Pedro se aproxima. Aplica a injeção. Antes de injetar o líquido, a vaca anda, de novo, pra frente e Pedro cai no chão. 46 CONIC - U M D E T E T I V E , P L AY B O Y S E M A R G I N A I S Molha-se todo na lama misturada com bosta e xixi de vaca. Levanta puto e quer dar porrada. Mas quando olha pra cara de babaca dos dois, desiste. Desiste, inclusive, de bancar o mocinho e passa o serviço pro caseiro que olhava para os três com ar de gozação – o merda. – Vamos embora seus putos, vamos tomar umas, que é o que a gente sabe fazer mesmo. – Cada um com uma latinha de Skol na mão, resolvem passear. Pedro na frente – é o líder da perigosa caminhada. Vão andando devagar e entram na capoeirinha que corre pelo meio do sítio. Matinha rala, sem viço. Lá vão os três. Pedro, na frente, vê à beira da trilha que seguem uma cobra de duas cabeças. Daquelas que parecem um minhocão e que têm duas cabeças, nas extremidades do corpo, com bocas de serrinha – uma coitadinha, sem veneno e que nem pica. Vem na hora a vontade de sacanear. Dá um pulo pro lado e grita: “cuidado, uma cobra!” Cide, que vinha em segundo lugar na fila indiana, olha e tenta pular, mas escorrega e cai. Cai e começa a gritar: socorro, socorro! Uma figuraça. Meio gordinho, no chão, com uma barba cerrada e a latinha na mão, que não larga de jeito nenhum. Juscelino, o caseiro, que já tinha vacinado a grande manada de cinco vacas e vinha caminhando atrás, pega a cobra-minhocão na mão e, rindo, diz: “isso aqui num é cobra não, isso aqui é minhocão, não vale nada”. Cide fica puto com a sacanagem de Pedro, fica bravo, quer brigar. Grande figura o Cide. Quando vai ficando bêbado, começa a falar baixinho, com sua voz grossa e seu sotaque de carioca. “Vamo botá uma bala na agulha e mandá vê. Vamo mandá vê”. A única “bala na agulha” que se via era um copo de cerveja e uma cachacinha pra rebater. Mandar vê mesmo, ninguém nunca viu. 47 A L E N C A R S O A R E S D E F R E I TA S O Juscelino era outra “glória” do sítio. Mineiro – isso sempre tornava Pedro emotivo. Para Pedro, ser mineiro já era ter meio caminho andado – ainda que não soubesse para onde. Juscelino era chegado numa preguiça. Só trabalhava em último caso. Tinha um facão comprido que carregava na cintura e ia arrastando pelo chão. Ele bebia com frequência – igual ao dono do sítio –, o que tornava impossível exigir sobriedade naquele “recinto de trabalho.” Pedro criava galinhas num galpão grande e comprido, dividido ao meio. De um lado as galinhas de briga, as índias, e do outro as galinhas comuns. Pedro começou a notar que só as galinhas poedeiras ficavam gordas, as índias emagreciam sistematicamente. Um dia chamou Juscelino às falas, perguntou o que estava acontecendo, vez que tinha sempre milho para dar para os bichos. Ele respondeu sorridente: “Eh, doutô Pedro, ocê nem queira saber, essas galinha de briga num gosta de milho, não”. É, não dá pra argumentar com a lógica cabocla! Depois, Pedro soube que um galo de briga gaúcho, que estava com as galinhas de raça, tinha tacado a espora na canela do Juscelino – sendo esta a verdadeira causa da raiva do homem e o motivo da sua discriminação alimentar. Terminada a “luta” na fazenda – que segundo Pedro era o que lhe dava coragem para continuar a vida ingrata – e já sentindo passar o gosto da cachacinha, os três concordaram em ir para a Vila, para ver como andavam as coisas por lá. O bar do Zé Barranco ficava na curva da rua central, que nem nome tinha. Os amigos do Zé, quando chegavam mais cedo (fora do expediente), colocavam cadeiras na porta do bar, levavam para fora a cervejinha e por lá 48