número 9 nov., 2015 - iiLer - PUC-Rio

Transcrição

número 9 nov., 2015 - iiLer - PUC-Rio
número 9
nov., 2015
ISSN 2179-2801
Corpo editorial
Diretor do Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio
Alessandro Rodrigues Rocha
Editor
Alessandro Rocha — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)
Editores deste número:
Patrícia da Costa Pina (UNEB) e Maria Afonsina Ferreira Matos (UESB)
Editora assistente
Viviane Moreira — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)
Supervisão Editorial
Eliana Yunes (PUC-Rio)
Conselho editorial Brasil
Alberto Cipiniuk — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
André Moura — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Benedito Antunes — Universidade Estadual Paulista (UNESP)
César Pessoa Pimentel — Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense (SEFLU)
Daniel Coelho — Universidade Federal do Sergipe (UFS)
Evando B. Nascimento — Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Goiandira O. de Camargo ­— Universidade Federal de Goiás (UFG)
Helena Calone — Secretaria de Cultura do Acre
Leonardo Pinto de Almeida — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Marcelo Santana Ferreira — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Marly Amarilha — Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Patrícia Constâncio — Prefeitura Municipal de Blumenau/AMEL
Patrícia Kátia Costa Pina — Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Paula Glenadel Leal — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Ricardo Salztrager — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Rogério da Silva Lima — Universidade de Brasília (UnB)
Rosana Kohl Bines — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Rui de Oliveira — Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
Santinho Ferreira de Souza — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Sylvia Maria Trusen — Universidade Federal do Pará (UFPA)
Solimar Patriota Silva — Universidade do Grande Rio (Unigranrio)
Valéria da Silva Medeiros — Universidade Federal do Tocantins (UFT)
Vera Teixeira de Aguiar — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
Conselho editorial estrangeiro
Cecília Avenatti — Pontifícia Universidade Católica da Argentina (UCA – Buenos Aires)
David Acevedo Santiago — Secretaria de Educación Pública (México)
Ernesto Abad — Universidad de La Laguna (Canarias)
Fernando Avendaño — Universidad Nacional de Rosário (UNR – Rosário)
Jacques Leenhardt — L’École des Hautes Études en Sciences (EHESS – França)
Jorge Larrosa — Universidat de Barcelona (UB – Espanha)
Nicolás Extremeva Tapia — Universidad de Granada (Espanha)
Sumário
Editorial
Alessandro Rodrigues Rocha
7
Estudo teórico
A Literatura em Quadrinhos: textos em diálogos
10
Adilma Nunes Rocha
A literatura pode elevar a autoestima das crianças negras?
20
Luciete Bastos
A leitura, o leitor e vice versa: breves reflexões sobre parte do
Oitocentos Brasileiro
34
Nelson de Jesus Teixeira Júnior
O ato da leitura No Caminho de Swann, de Marcel Proust
41
Diógenes Buenos Aires de Carvalho
Monteiro lobato e a promoção da autonomia entre as crianças
50
Alana Santos Souza, Gizelen Santana Pinheiro, Maria Afonsina Ferreira Matos
Da literatura aos quadrinhos: possibilidades de leitura hoje
61
Patrícia Kátia da Costa Pina
Literatura infantil, narrativas identitárias e educação intercultural
74
Maria Antônia Ramos Coutinho
Relato de pesquisa
Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato - GPEL: 10 anos de pesquisa.
83
Maria Afonsina Ferreira Matos, Amanda Silva Cardoso
Páginas formando leitores: um projeto de incentivo à leitura
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo
95
Relato de experiência profissional
Diário de leitura em sala de aula: narrativas pessoais e sociais
106
Zélia Malheiro Marques - UNEB
Resenha
LAMOTT, Anne. Palavra por palavra: instruções sobre escrever e viver.
Tradução de Marcello Lino. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. 224p.
116
Maria Cristina Ribas
Entrevista
Joel Rufino dos Santos e o autoritarismo: palavras reais x palavras ficcionais
Maria Teresa Gonçalves Pereira
119
Editorial
Alessandro Rocha
É com alegria que tomamos a palavra para apresentar este número da LER. Ele é o nono produzido
pela equipe editorial da Cátedra Unesco de Leitura da PUC-Rio e do Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio, que busca mostrar o que a leitura pode ser ou o que pode nos proporcionar. Este
número também comemora nosso sexto ano de trabalho e por esse motivo escolhemos fazer uma
sessão de fluxo contínuo com a colaboração preciosa de pesquisadores da RELER (Rede de pesquisa
avançada em leitura).
Na seção de Estudos Teóricos temos seis artigos que articulam interdisciplinarmente a leitura ao
universo das ciências humanas. Em A Literatura em Quadrinhos: textos em diálogos encontramos
um breve com o propósito discutir a ocorrência do quadrinizações literárias - processo de tradução
do texto literário escrito para o formato de histórias em quadrinhos, originando este objeto híbrido
da cultura para leitura.
A literatura pode elevar a autoestima das crianças negras? discute a evolução da literatura infantil
no que se refere à utilização de personagens negras de 1970 aos dias atuais, assinalando a sua contribuição para a autoestima das crianças nas séries iniciais da Educação Básica. Numa perspectiva
da história A leitura, o leitor e vice versa: breves reflexões sobre parte do Oitocentos Brasileiro busca
refletir sobre o padrão de gosto predominante no Brasil, sobre a promoção da leitura enquanto
ações e práticas existentes no oitocentos e, ainda, acerca de outras formas de acesso à leitura existentes no país.
O artigo O ato da leitura No Caminho de Swann, de Marcel Proust analisa o processo de formação
do leitor protagonista da obra No Caminho de Swann, do escritor francês Marcel Proust, tendo em
vista que o romance apresenta aspectos da leitura e suas implicações na constituição processual do
ato de ler do jovem protagonista. Em Da literatura aos quadrinhos: possibilidades de leitura hoje
discute-se como os textos literários são traduzidos para quadrinhos no mundo contemporâneo, bem
como os processos epistemológicos e metodológicos que envolvem essa prática.
Por fim, em Literatura infantil, narrativas identitárias e educação intercultural, levanta-se como as
narrativas identitárias, enquanto uma linha e tendência da literatura infantil contemporânea, conformada, principalmente, em torno dos signos da memória e da ancestralidade, promovem o reconhecimento da alteridade e rasuram o discurso da igualdade como representativo da nação.
Na seção Relato de Pesquisa apresentamos duas narrativas que confluem para a formação de leitores. A primeira – Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato - GPEL: 10 anos de pesquisa – mostra
os resultados de pesquisas de campo do Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato – GPEL (entre os
2005-2015). Pesquisas desenvolvidas pelos projetos: Emília vai à escola: um estudo das condições e
práticas de leitura da obra lobatiana. A segunda – Páginas formando leitores: um projeto de incentivo à leitura – trata do projeto de extensão continuada, denominado Páginas formando leitores, na
UESB em Jequié/BA.
Na seção Relato de Experiência Profissional compartilhamos duas experiências importantes para a
formação de leitores críticos, tanto do público adulto, quanto do público juvenil. Em Diário de leitura em sala de aula: narrativas pessoais e sociais, discute-se a relação entre a prática pedagógica
do curso de Letras Vernáculas, no Departamento de Ciências Humanas, Campus VI, Universidade do
Estado da Bahia, UNEB/Caetité e, a realidade cotidiana de seus agentes. Já em Monteiro lobato e a
promoção da autonomia entre as crianças é apresentado o conjunto de textos lobatianos, estudados e trabalhados em forma de oficinas de leitura, dentro das ações do projeto de pesquisa Emília
vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no Ensino Fundamental I.
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
A Literatura em Quadrinhos: textos em diálogos
Adilma Nunes Rocha1
Resumo:
Neste breve estudo, temos como propósito discutir a ocorrência do quadrinizações literárias - processo de tradução do
texto literário escrito para o formato de histórias em quadrinhos, originando este objeto híbrido da cultura para leitura.
Para tal intento nos valemos dos estudos da sociologia da leitura de Stevan Roger Fischer no tocante a história da leitura;
das discussões de André Belo referentes a história do livro focando na situação da leitura na contemporaneidade; das
questões dos objetos culturais híbridos apresentados por Nestor Garcia Cancline e da desterritorialização das fronteiras
culturais de Homi Bhabha; das contribuições de Paulo Ramos e Emil Eisner acerca do texto visual quadrinístico ; e de
Boaventura Santos e Júlio Plaza referente tradução Tal condução nos assegura uma melhor compreensão da situação
da leitura no momento atual onde novos suportes de leitura são construídos frente às novas demandas da sociedade
tecnológica, destacando como uma das possibilidades a literatura em quadrinhos.
Palavras-chave: Literatura em quadrinhos; leitura contemporânea; tradução; desterritorialização cultural.
ABSTRACT:
In this brief study, have as purpose to discuss the occurrence of literary quadrinizações-translation process of literary
text written for the comic book format, creating this hybrid culture object for reading. For this purpose we are worth of
Sociology studies of Stevan Roger Fischer regarding the history of reading; the discussions of André Belo regarding history of the book focusing on the situation of reading in contemporary times; the issue of cultural objects hybrids introduced by Nestor Garcia Cancline and the deterritorialization of the cultural boundaries of Homi Bhabha; the contributions
of Paulo Ramos and Emil Eisner about visual text quadrinístico; and Boaventura Santos and Julio Plaza for translation
Such driving assures us a better understanding of the situation of reading at the moment where new read holders are
built facing the new demands of technological society, excelling as one of the possibilities the comic literature.
Keywords: literature in comics; contemporary reading; translation; deterritorialization culture.
I - Introdução
Pelo longo caminho percorrido da história da leitura e do livro, têm-se percebido que as crises da
leitura estão estreitamente relacionadas às transformações sócio-econômicas, as quais motivaram
surgimento de novos suportes textuais.
Do livro manuscrito para o impresso provocada pela invenção da imprensa por Gutenberg, do livro
impresso para o livro digital e do hipertexto motivados pelos rápidos avanços da tecnologia; dos
audiobooks e dos livros em linguagem de libras vislumbrando os portadores de necessidades – o
1 Possui Mestrado em Estudo de Linguagens pela UNEB, campus I, Salvador-BA. É professora do curso de
Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus XXI/ Ipiaú onde desenvolve atividades de docência, extensão e pós-graduação em torno dos eixos: literatura infanto-juvenil; crítica literária;
formação do leitor; interculturalidade; tradução intersemiótica.
10
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
processo de evolução dos suportes de leituras produtos das demandas sócio-econômicas influenciado pelo mercado globalizado, transnacional e transcultural sempre em expansão. Todas essas transformações, que tem como alvo o suporte textual, prolifera-se num misto de inovação tecnológica,
de acessibilidade cultural e de angústia nostálgica e conservadora frente ao futuro do antigo livro
impresso referendado pelo mundo letrado.
O surgimento e os avanços dos meios de comunicação de massa também nos colocaram frente a
frente com outras possibilidades de objetos culturais e consequentemente novas concepções de
texto. Na visão tradicional do mundo letrado, ao texto sempre se relacionaram as produções verbais
escritas tendo a palavra como instrumento único das estruturas enunciativas veiculadoras de sentidos. E à imagem, o primeiro texto que legou à humanidade as informações do homem pré-histórico
antes da tecnologia da escrita, recaiu uma astuta invisibilidade. O escrito era passaporte de circulação do conhecimento numa sociedade elitista letrada.
Assim, o surgimento das tecnologias das imagens no âmago das culturas massivas, como entretenimento para as massas por meio das revistas em quadrinhos, cinema e televisão, trouxe uma nova
dimensão de texto a ser alcança, muitas vezes sem o exercício da reflexão que se necessita. Neste
sentido, são textos as novelas televisivas, os filmes, as histórias em quadrinho, o vídeoclip. A popularização dos produtos audiovisuais tecnológicos como computadores, notebook, tablets, smartphones, ampliou a circulação dos textos virtuais como videogames, animações caracterizando-os
estruturas textuais dinâmicas e interativas.
Também as linguagens artísticas são redimensionadas e oferecidas não a uma única tradicional apreciação elitista. Ocorre a leitura observando as especificidades das linguagens da música, pintura,
escultura, dança, peça teatral e concomitantemente a percepção destas artes como textos.
Deste modo, o contexto pós-moderno é um ambiente de alargamento das fronteiras textuais e,
consequentemente, propiciador de mudanças frente à atividade de leitura, provocando novas percepções de formas de expressão e de visibilidade de objetos culturais antes marginalizados como
também o surgimento de outros produtos híbridos como o videogame, o vídeo clip, que forçosamente nos conduz à revisão das antigas concepções do que é texto. Assim, como leitores do século
XXI, “devemos também alargar o conceito de texto: um texto é qualquer sistema de signo dado a ler
e gerador de significados, não apenas a linguagem escrita.” (BELO; 2002, p.98).
Desta sorte o livro, suporte do texto escrito, ganha outros parceiros que demandam leitura não só do
signo verbal escrito, mas também do icônico, auditivo e também audiovisual. O ato de ler amplia-se
para além das palavras, alcançando o som, a imagem, o tato estimulando assim os variados sentidos.
Partindo destes novos paradigmas de texto e das atuais concepções de leitura que desterritorializam
a antiga ideia de texto exclusivamente para o verbal escrito, tomamos como objeto de nosso estudo
a literatura quadrinizada, que traz em sua constituição tanto o texto escrito oriundo da literatura clássica como também do icônico provenientes das histórias em quadrinhos. Nosso objetivo foi
discutir a relação literatura – texto escrito canônico – e os quadrinhos – texto que tem como base
comunicacional a imagem - para percebermos como se aglutinam em um só texto, duas linguagens
distintas.
11
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
II - Os textos na contemporaneidade: da tradição para tradução cultural
A leitura vem ganhando novas dimensões desde o século XIX graças ao processo de modernidade provocado pelo surgimento da impressa implementada pelos avanços tecnológicos da Primeira
Revolução Industrial. Tais dimensões foram ampliadas com a revolução tecnológica provocadas com
a criação da máquina fotográfica, do cinematógrafo e posteriormente das tecnologias de informação comunicacional impulsionadas pelo surgimento e popularização do computador que passou a
incorporar ao cotidiano da sociedade letrada uma gama de suportes de textos escritos, visuais e
audiovisuais. Tal avanço ganhou maiores proporções na segunda metade do século XX, visto que
Este período é caracterizado pela emergência de novas camadas de leitores que a escola e a urbanização
ajudaram a produzir. A era contemporânea coincidiu também com a perda da hegemonia do livro impresso na comunicação escrita. A produção do livro foi ultrapassada por objetos tipográficos mais baratos, a
começar pelos jornais diários de grande tiragem, revistas, brochuras, cartões de jogar, cartões de visita,
anúncios publicitários, e, na época do consumo em massa, todos os tipos de suportes e materiais passaram a receber texto impresso. (BELO, 2002, P.93)
Especialmente no campo da cultura de massa e indústria cultural, a leitura ganha novos espaços
mediante o surgimento de vários textos antes invisibilizados pela tradição do livro impresso que passam a ser vistos como objetos culturais também pela elite letrada. O romance passa a dividir espaço
com a revista de entretenimento, as histórias em quadrinhos, os filmes, as novelas, os videoclips, os
videogames. Neste panorama, reiteramos o que afirma Belo (2002):
Trabalhar sobre a leitura no período contemporâneo implica olhar para todas essas manifestações de
uma cultura tipográfica generalizada em que as solicitações ao leitor são as mais variadas, gerando uma
enorme quantidade de fontes e objetos de estudos possíveis. A enorme variedade das práticas de leitura
caracteriza a sociedade contemporânea. (Idem, p. 93).
A idéia de leitura de texto extrapola a palavra escrita impressa e ganha novos ambientes signícos
mediado pela tradução intersemiótica, uma vez que no texto passa a confluir diferentes signos,
como também a dialogar produzindo novos textos com signos de outra natureza, propiciando uma
nova releitura da própria História.
Nestas novas relações textuais, surgem muitos outros produtos culturais. Na realidade brasileira vislumbramos um grande acervo de traduções: poemas (Rosa de Hiroshima de Vinícius de Moraes, Via-Láctea de Olavo Bilac, José de Carlos Drummond de Andrade, Triste Partida de Patativa do Assaré...)
são musicalizados; romances (A Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo; Gabriela, cravo e canela
e Tocaia Grande de Jorge Amado; Olhai os lírios do campo de Érico Veríssimo, Senhora, Lucíola e
Diva de José de Alencar...) tornam-se novelas, minisséries televisivas (Memorial de Maria Moura de
Rachel de Queiros, Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato...) e filmes (Inocência de Visconde
de Taunay, O Guarani de José de Alencar, Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis;
O mistério de Feiurinha de Elias José...); músicas ( O Menino da Porteira de Sérgio Reis, Faroeste
Caboclo de Renato Russo...) ganham as telas como filmes; romances ( Ubirajara de José de Alencar;
O Cortiço de Aluísio de Azevedo; O Quinze de Rachel de Queirós; Grandes Sertões:veredas de Guimarães Rosa...), poemas (I Juca Pirama de Gonçalves Dias; A Cachoeira de Paulo Afonso de Castro
Alves...) e contos literários (O Alienista, A causa secreta, O Enfermeiro de Machado de Assis; Miss
Edith, O homem que sabia javanês de Lima Barreto...)transformam-se em literatura em quadrinhos;
12
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
poemas (Navio Negreiro de Castro Alves) são encenados ou tornam-se animações (Triste Partida de
Patativa do Assaré; Faroeste Caboclo de Renato Russo ...) na internet.
São novos textos que surgem em suportes diferenciado do texto-base2, ganhando ou não novos
elementos para seu desvendamento semântico. No poema musicalizado acrescenta-se ao poema
escrito a melodia e arranjos dos instrumentos musicais. Na novela, no filme, na animação da internet somam-se a imagem em movimento, ângulos e perspectivas, os efeitos sonoros como elementos instigantes para o novo texto. Na literatura em quadrinhos, o conto, o poema épico e o romance
enriquecem-se com imagem, pela incorporação dos elementos icônicos que são cruciais para a dinâmica e a interpretação do enredo. São todos objetos culturais híbridos3 que nascem da ressignificação dada por um leitor criativo (diretor, músico, criador de animações...) ao texto primeiro.
Ora chamados de adaptação pelos estudiosos da semiótica, ora de hibridismo e de tradução por
estudiosos dos estudos culturais, este texto surge da convergência de textos-base a diferentes linguagens, no qual o impresso e o verbal se entrecruzam com o icônico, o sonoro e o audiovisual no
cinema, na televisão, na música e na literatura em quadrinhos, ganhando atenção especial dos leitores da contemporaneidade.
Uma das relações dialógicas textuais que surgem do processo de hibridação entre textos específicos
é a literatura em quadrinho. Também denominada quadrinização literária pelos estudiosos da Literatura ou Grafic Novel ou Clássicos Ilustrados pelos pesquisadores da área da Comunicação Social,
trata-se de uma nova modalidade cultural que vem ganhando espaço no mercado e nas bibliotecas
das escolas.
Para além da composição semiológica do texto, é importante perceber o aspecto epistemológico
e cultural das traduções. Compreender o trabalho da tradução é buscar o porquê da retomada de
alguns modelos da cultura da elite dominante, espaço do saber monolítico que põe em evidência os
discursos e as experiências dos grupos que dominam socialmente, visto que a maioria das quadrinizações literárias são oriundas dos clássicos das literaturas, seja universal ou nacional, produtos da
cultura dominante.
Traduzir, nesta direção, significa, problematizar à luz de outras experiências, o sentido de vida ou
experiências que a leitura pode trazer, isto porque, conforme Boaventura(2006);
As expectativas são as possibilidades de reinventar a nossa experiência, confrontando as experiências
hegemônicas, que nos são impostas, com a imensa variedade das experiências cuja ausência é produzida
activamente pela razão metonímica ou cuja emergência é reprimida pela razão proléptica. A possibilidade
de um futuro melhor não está, assim, num futuro distante, mas na reinvenção do presente[...] (p.814)
Assim a tradução da literatura clássica (saberes socialmente referendados) em textos de linguagens
da cultura de massa aponta saberes e experiências secularmente invisibilizada ou marginalizada
(linguagem quadrinística dos produtos da cultura de massa) possibilita criar sentidos na releitura
de mundo que atenda a criação da justiça cognitiva a partir da imaginação epistemológica e assim
“[...] criar as condições de uma justiça social global a partir da imaginação democrática.” (BOAVEN2 Texto do qual se origina a tradução ou adaptação. Texto que vai motivar o surgimento de outro texto, uma vez que este
texto que surge não é cópia, podendo trazer ou não novos elementos , como também podem ocorrer supressões.
3 Conforme Cancline (Culturas Híbridas, 2002) entende-se por hibrido o objeto cultural que passa pelo processo de hibridação onde ocorrem intersecções e transações no qual convergem contatos interculturais e misturas modernas entre o
artesanal e o industrial, o culto e o popular e o escrito e o visual.
13
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
TURA,2006).
III - Quadrinizações literárias: outro espaço de leitura possível
É nesta condição de ampliação dos territórios da cultura, das representações e produtos culturais
antes contestados pela elite social e econômica, que se constata o crescimento da percepção e
experimentação de novas sensibilidades. Nesse contexto, se abre espaço para o desenvolvimento
das pesquisas relacionadas com objetos culturais híbridos, produtos de uma sociedade que se estrutura para além das noções de nacional e internacional, intentando chegar sempre ao transnacional,
o que representa o alargamento das próprias fronteiras. É o que constata Jesús Martín-Barbero
(2004, p. 258):
Há nas transformações da sensibilidade que emergem na experiência comunicacional um fermento de
mudanças no próprio saber, o reconhecimento de que por aí passam questões que atravessam por inteiro o desordenamento da vida urbana, o desajuste entre comportamento e crenças, a confusão entre
realidade e simulacro. As ciências sociais não podem ignorar então que os novos modos de simbolização
e ritualização do laço social se acham a cada dia mais entrelaçados às redes comunicacionais e aos fluxos
informacionais. O despedaçar-se das fronteiras espaciais e temporais que eles introduzem no campo cultural deslocaliza os saberes e deslegitima suas fronteiras entre razão e imaginação, saber e informação,
ciência e arte. Isso modifica tanto o estatuto epistemológico como o institucional das condições de saber
e das figuras de razão, que constituem os traços de mudança de época, em sua conexão com as novas
formas de sentir e as novas figuras da sociedade.
Amplia-se a visibilidade de objetos culturais, antes legada apenas aos produtos da elite, como a
música clássica, a escultura, a pintura, a literatura, para os produtos não seletos e não canônicos,
como música popular, artesanato, grafite, quadrinhos. Com essa transformação, fomenta-se, em
nome da comunicabilidade e da acessibilidade, a construção de diálogos entre objetos culturais
tidos como de elite com os considerados de massa (literatura, cinema, quadrinhos, música popular),
o que fará surgir novas possibilidades de comunicação, como a literatura em quadrinhos.
Martín-Barbero (2004) chama a atenção acerca da importância de se estar cauteloso para não
se permitir que a função do componente tecnológico se restrinja à questão mercadológica,
o que faria com que a questão cultural fosse reduzida a interesses econômicos. Tornase necessária a percepção de que a cultura está além deste patamar. Neste sentido, a
própria concepção de cultura seria ressignificada; ela se tornaria mais sólida, mais espessa,
cabendo-lhe o papel de expressar as novas sensibilidades e práticas do mundo tecnológico
que evidenciam não apenas a excelência das máquinas. Atentos a tais princípios, o sentido
de cultura passaria a englobar novas acepções, novas configurações, uma vez que:
[é preciso contemplar-se] o novo lugar da cultura na sociedade quando a mediação tecnológica deixa de
ser puramente instrumental para espessar-se, densificar-se e se converter em estrutural, pois a tecnologia
remete hoje não a novas máquinas ou aparelhos, mas a novos modelos de percepção e de linguagem, a
novas sensibilidades e escritas. (p.35)
14
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Em especial, chama-nos atenção como se renova a experiência do leitor diante da literatura. A arte
da palavra escrita, tradicionalmente expressa no suporte livro, passa a circular em outros instrumentos. Neste sentido, o texto literário se integra com outros meios de difusão e, com a utilização
da imagem, ampliam-se as possibilidades da linguagem, que agora dispõe de recursos de comunicação e de expressão, além do livro e da palavra. O acesso ao texto de Machado de Assis, Luiz de
Camões, Eça de Queiroz, José de Alencar, Clarice Lispector, Monteiro Lobato, entre outros, se torna
variado por intermédio da atuação de outros mecanismos e suportes técnicos, como o livro digital, a televisão, o cinema, os quadrinhos. Ganham espaços novos elementos culturais, produto das
transformações socioeconômicas e culturais do último século, reconhecido como tempo-espaço da
modernidade e da globalização.
Nosso interesse repousa na abordagem destas tendências contemporâneas, identificadas com a
revisão dos objetos culturais resultantes da desterritorização do texto escrito culto. Nesta direção, a
atenção se volta para as metamorfoses dos textos literários em diálogo com produtos da cultura de
massa, em seus variados suportes, priorizando-se aqui as histórias em quadrinhos. Ganha terreno, o
resgate da função da imagem na comunicação, elemento presente e determinante desde a era das
cavernas. A imagem deixa de merecer certa credibilidade a partir da instauração do texto escrito,
potencializado e valorizado na era Gutemberg entre as elites cultas. A partir da segunda metade do
século XX, com o crescimento da cultura de massa, o texto imagético passa a ser observado com
menos restrições pelo olhar elitista.
A literatura em quadrinhos configura-se, desta maneira, como objeto cultural híbrido, uma vez que
carrega em si a Literatura, arte sacralizada da palavra em sua articulação polissêmica, e os quadrinhos, tidos como produto da cultura de massa que busca sedimentação como objeto cultural artístico.
Perpassando a história do livro e da leitura fica evidente que novos espaços de informação, conhecimento e entretenimento surgiram para além do livro, o que forçou novas reflexões sobre o ato de
ler e de construir sentido e de pensar novos dinamismo para a imaginação.Isto porque
(...) o livro, como fonte principal de informações gerais, foi obrigado a dividir espaço com o rádio, a televisão, e, agora com o computador pessoal, é necessário que ele se atenha em outros ingredientes para que
consiga assegurar sua função na sociedade: a evasão proporcionada por romances de amor e de aventuras; o apoio aos recursos educacionais, referências e estudos; ou a inspiração dos clássicos. (FISCHER;
2006, p.281)
Nesta perspectiva, em projetos de algumas editoras como Peirópolis, Escala Educacional, Conrad,
Ática, Moderna entre outras, a obra literária (romances, poemas épicos e contos clássicos da literatura brasileira) passa a dialogar com a história em quadrinhos. Neste espaço de diálogo denominado
ressignificação, versão ou adaptação as duas linguagens (literária e quadrinística) se coadunam para
transmitir a nova interpretação/percepção/sentido de vida em outro texto misto, estando a mercê
da criação do leitor-autor que reconstrói a história.
Em seu livro intitulado A literatura em quadrinhos (2009), Vergueiro situa literatura em quadrinhos como uma antiga prática de transposição de importantes obras da literatura para a linguagem gráfica seqüencial, cuja origem remontaria ao ano de 1941, a partir de um empreendimento
do norte- americano Albert Kanter. O referido empresário acreditava que os quadrinhos poderiam
ter fins muito mais nobres que o entretenimento e, neste sentido, denomina-os de classic-comics.
Posteriormente, as quadrinizações tornam-se mais Cult e denomina a coleção de Classic Illustrated.
15
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
No Brasil, a quadrinização das obras literárias tem início em 1947 com O Guarani, de José de Alencar,
na série Clássicos Ilustrados da Editora Brasil-América. Perdura nos anos 1950 com as traduções da
literatura quadrinizada norte-americana e ganha certa posição de relevo na década de 1960 com
obras de Machado de Assis, Jorge Amado, Joaquim Manuel de Macedo, José Lins do Rego, Gastão
Cruls e Raul Pompéia, nesta mesma editora.
Nos anos posteriores, decresce a produção, só voltando a ganhar corpo na primeira década dos anos
2000, em função do aquecimento do mercado editorial das histórias em quadrinhos que passaram a
ser incluídas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), como forma de complementação didática do ensino formal. Destaca-se, nesse período, o Livro de contos em quadros com adaptações dos
contos “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, “O bebê de taratana rosa”, de João do Rio, e “O apólogo brasileiro sem véu de alegoria”, de Alcântara Machado. Em 2004, surge a obra Galves, o imperador do Acre, patrocinada pela Secretaria de Cultura do Pará. Diversas editoras passam a contemplar
a mesma proposta, como Ática, Agir, Escala Educacional, Top Books, Moderna, L&PM Editores, todas
embaladas pela adesão ao novo cliente, o governo federal.
A literatura em quadrinhos não se limita apenas a obras da literatura brasileira. A Editora Zahar
avança na seara de livros quadrinizados, publicando Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust;
a Peirópolis trouxe Dom Quixote, de Cervantes, e Os Lusíadas, de Camões; a Conrad lança as quadrinizações de A Metamorfose, de Kafka, e A Relíquia de Eça de Queirós, L&PM Editores apresenta As
mil e uma noites, Os Miseráveis de Vitor Hugo e Guerra e Paz de Leon Tólstoi, entre outras. As quadrinizações recriam obras da Literatura juvenil estrangeira c como Percy Jackson e o ladrão de raios
de Rick Riordan , Crepúsculo de Stephenie Meyr, além dos atuais best-seler A Guerra dos Tronos de
George R. R. Martin e O caçador de pipas de Khaled Hosseine.
Esta congruência do texto literário da tradição para os quadrinhos reincidente nas últimas décadas
do século XX aponta para a desterritorialização cultural, abrindo espaços para novos saberes e sentidos de vida, tanto do aspecto geográfico (obras de outros países), como dos produtos de culturas
diferentes (da cultura letrada da elite para a cultura imagética da cultura de massa), apontando
como uma nova reinvenção da tradição pela tradução, pois
A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento,
que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação
histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilegio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das
condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”.
(Bhaba,1998, p.21)
É na linguagem visual que vai se edificar a literatura em quadrinho, pois teremos um processo de
tradução do escrito para as imagens, sem, contudo abandonar o escrito. Tomamos o termo tradução
para nomear este novo processo de criação, este novo objeto cultural, este entre-lugar,Vale ressalta
o aspecto do “novo” deste objeto da cultura, conforme ideia de supracitado teórico:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de
passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não
apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético, ela renova o passado, refigurando-o
como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.( Idem, p.27)
16
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
A literatura em quadrinhos é um entre-lugar, que herda das histórias em quadrinhos além de uma
linguagem específica centrada na iconicidade, também o preconceito de ser um texto pronto, sem
desafios ao leitor e erudição, características estas que tradicionalmente são típicas da literatura. Na
perspectiva dos estudos culturais torna-se ela este gênero heterogêneo recebendo um novo olhar
- de objeto da cultura de massa, destinada ao massivo e conduzido pela indústria cultural, pois ela
como em todo processo de hibridação :
(...) surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio (fábrica, uma capacitação profissional,
um conjunto de saberes e técnicas) para reinscrevê-lo em novas condições de produção e mercado.(CANCLINE, 2008, p. 22)
Baseada na linguagem visual, a literatura em quadrinhos não se trata de uma mera mudança de
um texto para outro suporte, visto que o icônico não é uma mera cópia da escrita, mas um novo
caminho para leitura que acrescenta também novas informações no não verbal, como afirma Fischer
(2006, p.289):
O objetivo da linguagem verbal é transmitir idéias complexas de maneira simples e, assim, facilitar o processo perceptivo, eliminando a sobrecarga de informações, pelo menos é isso que se espera. A linguagem
verbal transcenderia a mera justaposição do texto escrito e imagens para alcançar, por meio de sua exclusiva sintaxe semântica e pictográfica, uma liberdade de expressão inédita na linguagem falada e escrita. As
imagens e seu posicionamento padronizado em texto seqüencial, ao contrário do texto escrito, substituirá
a escrita convencional abordando caminhos celebrais que, ao mesmo tempo, processam informações
verbais e não-verbais.
De quem seria então a prevalência neste novo objeto cultural? Do texto literário? Da arte seqüencial
(os quadrinhos)? Nesta leitura, ambos os componentes estão tão intrinsecamente ligados, um complementando ao outro na construção semântica do texto.
Temos um novo texto que vem oportunizar uma leitura cultural, de maior acessibilidade aos leitores,
independente de sua condição social, de seu domínio da erudição que é típica da literatura clássica;
teremos com acréscimo uma leitura empoderamento do texto quadrinístico antes discriminado propiciando grande atração para os leitores, indistintamente, refletindo condições de entendimento de
mundo e de vida, para além dos guetos que a diferença social buscou promover.
IV - Considerações finais
Torna-se claro que o ato de leitura na contemporaneidade não se encontra numa situação de definhamento, mas passa por um momento de retroalimentação por meio do ressurgimento de variados textos com suportes inovados.
Nesta condição, o livro não é o único meio de propiciar leituras. O filme, a música, a novela, a literatura em quadrinhos são novas práticas sociais de leitura que criam novos textos ou ressignificam
textos já existentes, especialmente da literatura.
A literatura em quadrinhos se apresenta como um texto que coaduna textos anteriores em outra
linguagem, tornando-se um objeto cultural híbrido. É um novo texto que é uma releitura, uma tradução do texto-base. Não se trata de um substitutivo, outra possibilidade de leitura que dialoga com o
texto que o precede, instigando ao leitor a alçar vôos em seu ato de ler, tanto pela palavra impressa
17
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
como pela iconicidade. Tal processo acaba por permitir experiências com novas sensibilidades,com
outros sentido de vida.
E assim a história da leitura e do livro ganha novas páginas com textos em variados suportes que
continuam a seduzir, a instigar e a desafiar ao leitor a novas experiências cognitivas.
18
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte; Editora da UFMG, 1998.
MARTÍN BARBERO, Jesús. Ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas da cultura na educação. Trad. Fidelina Gonzales. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
BELO, André. história & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
CANCLINE, Nestor Garcia. Culturas Híbridas; estratégias para entrar e sais da modernidade. 4. Ed.
São Paulo: Editora da USP, 2008.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de história. São Paulo: Moderna, 1997.
FISCHER, Stevan Roger. História da leitura. São Paulo: Editora da UNESP, 2006.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2008.
RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: ______. Conhecimento decente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências
revisitado. São Paulo: Cortez, 2006, p.777-807.
VERGUEIRO, Waldomiro. Literatura brasileira em quadrinhos. Disponível em: <http:// www.poppycorn.com.br>.Acesso em: 26 mar. 2010.
19
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
A literatura pode elevar a autoestima das crianças negras?
Luciete Bastos4
Resumo:
Este texto discute a evolução da literatura infantil no que se refere à utilização de personagens negras de 1970 aos dias
atuais, assinalando a sua contribuição para a autoestima das crianças nas séries iniciais da Educação Básica. Trata-se de
uma pesquisa, eminentemente, bibliográfica pautada na leitura, reflexão e no diálogo memorialístico com o contexto
profissional. Momento em que sugere alguns títulos interessantes para se trabalhar a temática, considerando-se as leis
10.639/2003 e 11.645/08. Para tanto, busca aporte teórico em Freire (1982), Grotta (2001), Zilberman(2003,)Proença
Filho (2004) e Munanga (2010), dentre outros.
Palavras-chaves: Leitura. Literatura. Personagem negro. Criança.
ABSTRACT:
This paper discusses the evolution of children’s literature with regard to the use of black characters from 1970 to the
present day, highlighting its contribution to the self-esteem of children in early grades of basic education. This is a survey,
eminently, guided reading, literature and memorialístico dialogue with the professional context. Moment that suggests
some interesting titles to work the subject, considering the laws 10,639/2003 and 11,645/08. To do so, search theoretic
contribution in Freire (1982), Grotta (2001), Zilberman (2003,) Proença Filho (2004) and Munang (2010), among others.
Keywords: reading. Literature. Black character. Child.
Preciso ser outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
(Mia Couto, 2001)
4 Professora assistente da UNEB-DCH- Campus VI/Caetité Bahia.
20
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Assim começo, precisando ser outro. Outros, para me reconhecer a mim mesma no mundo, em que
me ergui à deriva das descrições feitas. Eleitas por quem? Preconcebidas de pecado, nada original,
no preconceito de cores pretas e brancas edificadas, separação bicolor, como se possível fosse, os
seres humanos serem, assim apartados, se cores tantas são. Brancas, pálidas, hirtas, puras, orgulhosas, hegemônicas, bem nascidas, centralizadas, dispostas e predestinadas ao sucesso. Dos outros
lados, nos contornos das luzes do cerne, que reforça a (in)visibilidade das periferias e suas dores e
ausências, uma negritude que o centro clama crime de maior idade para menor, mais pequeno ainda, reconhecida e legalizada. Espanta tanto, não.
Para me reconhecer, preciso ser outro(s), assim como Mia Couto e tantos mais percorrem o caminho
de volta. É preciso retroceder ao passado, às origens das identidades que constroem as culturas e
nas quais me fortaleço pela evolução. É nessa evolução que encontro os motivos da luta e as razões
para renascer sempre e cada vez maior.
Não desanime, caro leitor(a), não se trata de uma história de vida lapidada na poesia prosaica. Apenas ensaio. Sou educadora, sou leitora. Sou leitora educadora, ou seria o inverso? O fato é que não
sei se seria, não fosse uma na outra. Volto ao início de tudo, quando ainda era professora na Alfabetização, lá para as bandas de Minas Gerais. No Sul, entre montanhas, muitas, perdidas, pequeninas
escolas edificavam. Acredito que minha história com esse mal estar com os contos de fadas tenha
nascido ali naquele ponto obtuso do passado.
Adoro ler e contar histórias desde sempre, mas, certa feita, quando contava a história da Rapunzel, a
princesa das tranças louras pelas quais o príncipe subia a torre para salvá-la da prisão a que fora confinada (lembra-se dela, leitor(a)?), Madalena, uma linda garotinha negra, minha aluna, uns seis para
sete anos, fita-me e diz: “A princesa é linda como a senhora”. Foi um espanto. A relação estabelecida
entre as características da personagem e minha aparência física e, pior, a referência a essas características como beleza, baseava-se no estereótipo eurocêntrico: branca, loira, olhos claros. Único
modelo veiculado nas histórias infantis naqueles idos de 1976. Príncipe ou princesa, fada, garoto(a)
protagonista, herói negro? De jeito nenhum, aos negros e aos mestiços eram delegados os papeis
negativos de escravos, órfãos abandonados à própria sorte, pequenos marginais, benzedeiras ou
cozinheiras, preto velho, negras idosas contadoras de histórias para crianças brancas.
No final do século XX, as personagens negras e indígenas surgem como partícipes da história nacional, no entanto, aparecem com uma visão simplificada sobre a cultura africana com elementos bastante primitivos, carregados de valor afetivo, associados à ingenuidade, estereotipia e simplificação,
próprios de uma perspectiva mítica e folclórica, alijada da realidade social, sem nenhum destaque
na literatura, a pospelo, nas raras aparições são descritas de forma jocosa e inferiorizada. O povo é
representado pela pobreza negra, ignorante e infantilizada, crédula e de poucas oportunidades, a
quem não adianta educar.
Não cabe neste texto discutir o mérito da obra lobatiana, inquestionável quanto à riqueza criativa.
Lobato é, sem sombra de dúvidas, o divisor de águas da literatura infantil brasileira, e todos sabemos que escreveu pós abolição, influenciado pelo contexto de seu tempo, tema que fomentaria
discussão para uma tese, todavia, o que aqui importa dizer é que a descrição de Tia Nastácia, em
Reinações de Narizinho(1956), não deixa dúvidas quanto ao lugar do negro na sociedade brasileira
no século: ‘preta com alma de branco’, uma vez que “todos sabem que ela é preta só por fora”, “
negra, beiçuda” e nessa linha de adjetivos vai se configurando o negro na visão branca desde aquela
época até nossos dias e assim representada na literatura que oferecíamos aos nossos alunos e filhos
até recentemente. O negro sempre esteve presente na construção deste país, mas “a presença do
21
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
negro na literatura brasileira não escapa ao tratamento marginalizador que, desde as instâncias
fundadoras, marca a etnia no processo de construção da nossa sociedade”. (PROENÇA FILHO, 2004,
p. 01)
Como as histórias para crianças eram maniqueístas o bem era representado por personagens estereótipos dos europeus; enquanto o mal se apresentava sob a pele negra. As cantigas infantis populares, vale ressaltar, cantadas pelas mães para assustar as crianças corroboram essa analogia, cito uma
delas para ilustrar: “Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de careta...”
Assim formadas, as crianças continuam a reproduzir a discriminação em vez de ajudar a desconstrui-la. Escreveu Oliveira (2010), em sua pesquisa, ao se referir às produções publicadas entre 1979 e
1989:
[...] se de um lado inovaram o cenário literário ao delinearem protagonistas negros, de outro reforçaram
predicativos pejorativos e os desumanizaram, aos situá-los em situações meramente depreciativas, nas
mazelas sociais. Em contrapartida, apresentam personagens brancos em papeis sociais variados, de destaque e sempre em meio a relações familiares. (p.18)
Naquela noite, pus-me a refletir nas razões pelas quais eu nunca pensara nessas relações entre a
cor (etnia??? naquele tempo, impensável) das personagens das histórias, seus papeis na sociedade
e a cor dos meus ouvintes e, principalmente, na naturalidade com que aquela criança relacionava a
minha aparência com a aparência da princesa e a beleza recorrente às características de ambas. O
que, naquele momento, incomodou-me, não me pareceu tão óbvio, como anos depois. Ocorre-me,
agora, que eu também naturalizara o paradigma etnocêntrico, aceitando-o como único, sem questionar, sem consciência e sem crítica. Naquela noite, todas as reflexões reduziram-se a quase nada.
Meu conhecimento sobre o assunto não me levou muito longe, porque negritude, representação,
identidade, afro-brasilidade, afro descendência, preconceito, discriminação, racismo e tantos outros
conceitos, fundamentais às relações humanas e ao respeito à diversidade cultural, hoje debatidos
em diferentes fóruns, naquele momento nem eram veiculados, a “pseudodemocracia” racial, em
que vivíamos, encobria o racismo com uma cortina de fumaça que nos impedia de ver a verdadeira
dor nos olhos de nossos colegas e de nossas crianças. A democracia racial existia apenas na cabeça
dos brancos? Talvez, mas creio que fosse pior, existia também na cabeça de alguns negros. Mas, discutir como se construiu o conceito de democracia racial na memória coletiva do branco brasileiro,
não é o mérito deste texto, deixo aqui a sugestão para quem desejar fazê-lo.
Lembro-me de que, no dia seguinte, levei o livro: A bonequinha Preta, de Alaíde Lisboa para a turma. A primeira edição é a de 1940, o enredo fala de obediência/desobediência e de bondade, traz
explicita uma mensagem pedagógica, própria à literatura infantil daquela década (apenas daquela
década?). Para alguém que não tenha lido a Bonequinha Preta, ela narra a história de uma bonequinha Preta muito amada pela dona, Mariazinha, que desobedece a sua dona e cai da janela e é raptada por um gatinho. O verdureiro, vendo a tristeza da menina, sai à procura da boneca e a encontra
trazendo-a de volta e também o gatinha que é adotado por Mariazinha. A história tem um final feliz
e a bonequinha promete nunca mais desobedecer.
Naquele momento, o livro prestou-se apenas para dar maior visibilidade para a bonequinha, pois
sua dona a achava linda e a amava. Era divertida, criativa, esperta e inteligente, suas peripécias o
demonstram, mas continuava sendo um objeto que pertencia a uma dona e esta era branca. Além
disso, o texto é refém da pedagogia burguesa e serve como instrumento de multiplicação da ordem
22
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
em vigor, submissão e obediência:
[...] seja pela atuação de um narrador que bloqueia ou censura a ação de suas personagens infantis; seja
pela veiculação de conceitos e padrões comportamentais que estejam em consonância com os valores
sociais prediletos; seja pela utilização de uma norma linguística ainda não atingida por seu leitor, devida à
falta de experiência mais complexa na manipulação com a linguagem. (ZILBERMAN, 2003, p. 23)
A crítica elenca algumas formas de veiculação da ideologia burguesa imiscuída no texto literário.
Mas a ficção, para além da pedagogia, possibilita invadir e recriar a visão de mundo, por meio de
símbolos e linguagem, que extrapola condicionantes de gênero, classe e da realidade circundante.
Neste sentido, o contato direto com o texto implica em alargamento da visão de mundo; que expressos pela (re)apropriação dos mitos, contos, fábulas, lendas ou pelo relato de aventuras é possível
perceber-se em que contexto se está inserido e com o qual pode vivenciar sua realidade, num processo de intercâmbio entre cognição e emoção.
Naquele momento, aproveitei as características da personagem da história para elevar a autoestima das crianças negras da turma. Hoje penso: em que medida elas se sentiram, de fato, crianças
bonitas se o estereótipo de beleza que tinham era exatamente o oposto? A reflexão toma novo e
mais profundo rumo. As histórias pessoais podem funcionar como espelho das histórias sociais de
onde se originam e se desenvolvem os sujeitos, pois “uma palavra que não representa uma ideia é
uma coisa morta, da mesma forma que uma ideia não incorporada em palavras não passa de uma
sombra.” (VYGOTSKY, 2007, p. 1). Assim, as linguagens dos alunos carentes da periferia refletem o
meio sociocultural e econômico em que vivem. Para além do discurso, representam suas histórias de
vida e suas perspectivas de futuro, reveladas, cotidianamente, nos atos escolares, marcados pelos
insucessos, evidenciados em suas trajetórias escolares, fortalecidas pela exclusão e pela compreensão de que estão no lugar errado. Concluindo que a escola não foi feita para eles, cabendo-lhes a
confirmação do veredicto a eles predestinado: as ruas, os subempregos, a pobreza e o círculo vicioso
do fracasso na vida e, se as histórias infantis reforçam essa história de vida, sua autoestima tende a
diminuir ainda mais.
Arroyo (2004), denuncia o mal estar docente com relação a esses alunos que sofrem de abandono e
de descaso e conclamam o encontro de novos paradigmas, pois para ele “reconhecer os educandos
(as) como habitantes legítimos da escola implica em criar condições estruturais para que a ocupem
como o seu território” (p. 27). Para que haja um ambiente de identificação da criança com a escola,
no qual ela se reconheça. Pensamos que são muitos os caminhos e que a literatura infantil pode se
apresentar como um deles nesse processo/propósito inclusivo, considerando seu papel mediador
entre o mundo real/imaginário, entre o material e o simbólico.
Mas de quais formas a literatura infantil pode contribuir para a modificação do equilíbrio sócio afetivo de alunos marcados pela inferiorização e por sentimentos de exclusão na sociedade? O que
estou a discutir é que a linguagem literária também pode possibilitar a inclusão dos alunos egressos
das camadas populares, nos espaços sociais pelo sentimento de pertencimento e identidade fortalecidos na escola via leitura de livros com os quais se identificam por se verem representados em
personagens e situações de conflitos. Conforme Zilberman (2003),
23
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Da representação da criança no livro infantil decorrerá o tratamento artístico de sua busca de identidade
e lugar social. Se o resultado ficcional pode apresentar caminhos comprometidos com o leitor, na medida
em que lhe propiciam o reconhecimento e a solução para seus dilemas internos, o contrário também pode
ocorrer. (p. 102)
Daí decorre a preocupação do docente em promover, politicamente, o encontro da criança com a
leitura, de forma a propiciar a ela o reconhecimento de seu lugar social de sujeito histórico. Como
alerta Zilberman, o contrário pode ocorrer, o texto literário pode ser um reforçador de paradigmas,
um criador de estereótipo, um instigador de preconceitos, vem daí a importância da seleção de bons
textos. Se naquele tempo a minha imaturidade política e docente impossibilitou-me de um trabalho
mais fecundo, também a falta de bons textos de literatura infantil, que tratasse com propriedade da
temática, também constituiu obstáculo.
Hoje, transcorridos mais de 30 anos, percebo o quanto a literatura infantil evoluiu. O mais interessante é que, ainda, podemos chamar de recentes os estudos sobre a temática. É possível perceber
uma ruptura com modelos socialmente impostos pela cultura burguesa para a literatura infantil
brasileira, a partir da segunda metade dos anos de 1970, fosse para passar lições moralizantes,
fosse para servir de pretexto para o ensino da gramática. Num e noutro caso, a linguagem, essência
literária, era preterida.
A partir da mencionada década, surgem nomes como os de Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo,
Lygia Bojunga; Sérgio Caparelli, Marina Colassanti, Lúcia Machado de Almeida, Maria Clara Machado, Elisa Lucinda, Cecília Meireles, Elvira Vigna, Lucília de Almeida Prado, dentre tantos outros, que
percebem o imaginário e o real frente a um processo emancipatório. Alguns desses escritores que
questionaram valores como preconceito, poder, individualismo, até mesmo a organização do próprio discurso utilitário, em alguns textos, acabaram por incorporar o “utilitarismo às avessas”5, uma
vez que conteúdos e formas do discurso utilitário foram apropriados e adaptados aos novos interesses. Oscilando entre discurso utilitário e discurso estético, a nova geração de escritores criou um
impasse não superado até a metade da década de 1980.
Segundo Perrotti (1986) em, O texto sedutor na literatura infantil, alguns textos são exemplos de
utilitarismo às avessas como Raul da ferrugem azul, de Ana Maria Machado, em que os personagens
são instrumento de defesa da tese da autora de que crianças tímidas devem se defender; O livro
Marcelo, marmelo, martelo de Ruth Rocha que questiona as relações de poder e a autoridade dos
adultos. A curiosidade premiada de Fernanda Lopes de Almeida uma narrativa comprometida com
a perspectiva de mundo da criança.
Entretanto, afirma o mencionado autor, que muitos textos literários primaram por seu caráter estético, como Bisa Bia Bisa Bel de Ana Maria Machado; O que os olhos não vêem de Ruth Rocha; Corda
Bamba de Lygia Bojunga Nunes; O misterioso rapto de Flor-de-sereno de Haroldo Bruno; Flicts de
Ziraldo; Asdrúbal de Elvira Vigna; Uma ideia toda azul e Doze reis e a moça no labirinto do vento de
Marina Colasanti e Caneco de prata de João Carlos Marinho. Este último, preferido de Perrotti que,
colocando em crise o caráter utilitário dos textos literários infantis, afirma que a década de 1970
vem anunciar uma nova geração de escritores de literatura infantil que reivindicava que suas obras
fossem vistas como objeto estético, abominando o papel de moralistas ou pedagógicos impostos às
gerações que os precederam.
5 Termo de Perrotti (1986)
24
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Vale ressaltar, também, a importância do próprio texto de Perrotti como referencial teórico para
a crítica literária que considera a especificidade da produção cultural para crianças, assim como
apresenta algumas categorias para o estudo de textos literários infantis. A partir da geração desses
escritores, o caráter de renovação da literatura para crianças (re)significou o discurso estético, houve um avanço no que diz respeito à renovação da linguagem e consideração do receptor do texto;
aproximação com o real, sem, contudo, perder as características de vanguarda quanto à forma,
estilo e meio. O grande desafio foi pensar para além da literariedade nas condições de recepção do
texto, como um objeto artístico numa sociedade de mercado e de consumo em que quem dita as
normas são os adultos.
A partir dos fins dos anos de 1980 o mercado livreiro começou a despertar para os valores culturais
e políticos que devem ser incorporados ao livro. Com as palavras de Ferreira (2009, p. 18), “novos
valores são agregados ao objeto cultural livro”. Mas, só recentemente, esse mercado começa a colocar o econômico ao lado do cultural e do político de forma mais explícita. O empresário do ramo não
vende apenas a mercadoria livro, mas tudo aquilo que se congrega no seu interior e em volta dele:
a importância do leitor, as consequências da leitura, o poder decorrente da leitura e a legitimidade
de certas práticas, a distinção/discriminação entre leitores e não-leitores e a necessidade da leitura
como um direito de todos.
A literatura infantil apresenta-se à criança como uma forma de descobrir o mundo, já o disse Freire
(1982) sobre a leitura, possibilita-lhe descortinar as ciências, as artes, a ética, sem aquela obrigatoriedade disciplinar imposta em sala de aula. Também possibilita a descoberta e compreensão de sentimentos de conflitos, dores, perdas, raiva, alegria, compaixão, solidariedade, generosidade, inveja,
tristeza, medo, insegurança e tantos outros sentimentos com os quais a criança, muitas vezes, não
consegue lidar no cotidiano. As soluções e alternativas apresentadas nas histórias ficcionais podem
servir de possibilidade para a solução de problemas reais da criança ao suscitar o imaginário e aguçar a criatividade infantil. Conforme Abramovich (1997), a literatura faz-se importante na vida das
crianças, porque principia seu aprendizado num “caminho absolutamente infinito de descoberta e
compreensão de mundo” (p. 16).
A leitura é um processo que reúne inúmeros elementos complexos e constitutivos da/na vida. É
relevante ressaltar que as crianças chegam à escola sabendo atribuir significados e valores às coisas
do mundo circundante a partir de suas experiências pessoais. Ademais, a leitura de um texto, de um
livro, ou de outra linguagem qualquer, modifica o sujeito, produzindo efeitos de sentido. Conforme
Grotta, “Implica considerar a relação com o outro, seja um texto, uma ideia, um objeto ou uma pessoa, como algo que nos possibilita uma experiência, que possibilita a modificação desse outro, produzindo sentido a partir dele, e a nossa modificação na interação com ele.” (2001, p.132) O mesmo
autor, citando Larossa, escreve que: “na leitura e na escrita, o eu não deixa de fazer, de se desfazer
e se refazer” (apud GROTTA, 2001, p.133). A leitura é, pois, uma relação entre as partes envolvidas,
em que , pela experiência, ocorre a transformação. A leitura possibilita, destarte, a constituição da
subjetividade dos sujeitos, nesse caso a criança, sujeitos em formação. Segundo Bettelheim (2006).
o processo da leitura de textos para a constituição do sujeito é o de encontrar um significado na vida,
pois a criança à medida que se desenvolve, deve aprender passo a passo a se entender melhor, com isso
torna-se mais capaz de entender os outros, e eventualmente pode-se relacionar com eles de forma mutuamente satisfatória e significativa. (p.12).
25
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Nesse sentido, a constituição de leitores não deve ser reduzida a eventos de letramento, mas abranger também o contexto que permeia as relações do sujeito com o contexto a partir de seu lugar
social. A leitura, conforme Orlandi, “é uma questão de condições, de modos de relação, de produção
de sentidos, de historicidade” (1988, p.9), ela requer (re)significação, pois é um processo de sentidos
na vida dos alunos, interação das vozes sociais, processo de significação do texto. Segundo o mesmo
autor, “Leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentidos se constituem simultaneamente, num mesmo processo” (p.10). Essa discussão fez-me lembrar de uma afirmação de Paulo Freire, interpretada
nesta citação de Marisa Lajolo (2003):
Para Paulo Freire, leitura boa é a leitura que nos empurra para a vida, que nos leva para dentro do mundo
que nos interessa viver. E para que a leitura desempenhe esse papel, é fundamental que o ato de leitura e
aquilo que se lê façam sentido para quem está lendo. Ler, assim, para Paulo Freire, é uma forma de estar
no mundo (p.5).
Para formar leitores, então, é preciso que o mediador seja também um leitor, participativo e atualizado, que se interesse por livros, estimule uma leitura diversificada e crítica, que compartilhe suas
descobertas e aprendizagens e que demonstre o prazer que a leitura desencadeia. Segundo Freire
(1982), “[...] você não ensina propriamente a ler, a não ser que o outro leia, mas o que você pode é
testemunhar ao aluno como você lê e o seu testemunho é eminentemente pedagógico (p.8). A leitura é ferramenta essencial para a prática profissional docente, por isso o professor precisa revelar-se
um leitor para que seja referência para seus alunos, cabe-lhe o papel de promover a aproximação
significativa entre alunos e o livro através do exemplo pessoal, demonstrando a importância da leitura para o desenvolvimento cognitivo, crítico, reflexivo e criativo.
Vale ressaltar também o papel da escola na sistematização e utilização das múltiplas linguagens. A
leitura chega por diversos meios, por essa razão é necessário refletir sobre as práticas e a promoção
da leitura que privilegie um trabalho interdisciplinar e que dê conta dos múltiplos meios. Não é propósito, deste texto, discutir outras formas de leitura como história em quadrinhos, desenhos animados, peça de teatro, imagens, dentre tantas possibilidades, mas a literatura infantil, entretanto, não
posso esquivar-me de citá-las, com o objetivo único de lembrar, você, amigo(a) leitor(a), de que há
inúmeras outras linguagens que se expõem à leitura como forma de conhecimento e transformação
humana.
A formação de cidadãos competentes para o mundo, exigência cada vez mais frequente da sociedade contemporânea, não é uma tarefa exclusiva do professor, mas um compromisso de toda a escola,
vale lembrar . Para que o texto dialogue com o universo do leitor é necessário que esse leitor mobilize conhecimentos prévios de seu contexto que possibilitem tornar o texto mais significativo, para
tanto, cabe ao professor resgatar leituras que fazem parte do cotidiano dos alunos e explorar esses
materiais e mostrar que a leitura é uma prática social, portanto, significativa em suas vidas.
Ao dominar a leitura, a criança abre a possibilidade de adquirir conhecimentos, desenvolver raciocínios, alargar a visão de mundo, do outro e de si mesma, participar ativamente da vida social, com
maiores chances de se tornar transformadora da realidade que respeita as diferenças e se apropriar
do conhecimento acumulado pela humanidade do qual também tem direito. O docente, por seu
turno, busca promover, nesse processo, uma ação pedagógica de qualidade.
A leitura é aqui tomada como um processo de produção de sentido que se dá a partir de interações
sociais ou do diálogo que ocorre entre leitor/texto/autor. Assim, não existe texto sem a presença do
leitor. É o leitor que dá voz e vida ao texto. É no cruzamento de vozes que os sentidos do texto vão
26
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
se formando. A história de vida do leitor, por conseguinte, é o condutor que possibilita o seu diálogo
com o texto, que lhe dá significado. O texto dialoga com a cultura de uma época e com a leitura de
mundo do sujeito que lê. Compreender isto é ler percebendo o contexto sócio-histórico-cultural.
Relembrando os ensinamentos de Freire (1982), “a leitura do mundo precede [...]” Por essa razão
escolher histórias que dizem da vida das crianças é o primeiro passo de inclusão pela leitura.
A formação educacional não deve ignorar, como ignora, o legado dos afro brasileiros e deve contribuir para que as crianças negras se (re)conheçam como brasileiras com direito a ter direitos, sobremaneira numa educação cidadã. Conforme Munanga:
As heranças culturais africana e indígena constituem uma das matrizes fundamentais da chamada cultura
nacional e deveriam, por esse motivo, ocupar a mesma posição das heranças europeias, árabes, judaica,
orientais etc. Juntas, essas heranças constituem a memória coletiva do Brasil, uma memória plural e não
mestiça ou unitária. Uma memória a ser cultivada e conservada por meio das memórias familiares e do
sistema educacional, pois um povo sem memória é como um povo sem história. MUNANGA (2010, p.50)
É necessário dar à criança compreender como a figura do negro, seus antepassados, imprimem
importância histórica ao país como meio de construção identitária. Como a literatura
institucionalizada não chegou às comunidades tradicionais, a literatura se deu pelas vias da tradição
oral nas comunidades negras. O sentimento de pertencimento e identidade foram/são transmitidos
de geração para geração através dos contos, das canções, das lendas e dos mitos que reforçam a
cultura do grupo e transmitem os sentimentos do povo. Estas manifestações representam, ainda
hoje, estratégias de luta. Os velhos anciãos são os guardiões da memória, detentores dos saberes e
fazeres da comunidade tradicional, que aprenderam com os antigos por contos e cantos a resistência
negra contra os colonizadores, que é passada às novas gerações. Em tais circunstâncias, a literatura
vem de certa forma, “assegurar o direito à fala, pois pela criação poética pode-se ocupar um lugar
vazio apresentando uma contra fala ao discurso oficial, ao discurso do poder”. (PROENÇA FILHO,
2004, p.01) construído por meio da memória coletiva.
Como os demais grupos étnicos, o negro é parte da comunidade que fez e faz o país. Se a luta em
que se empenha se tornou e continua necessária, isto se deve, ao fato de se ter tornado alvo de tratamento social e historicamente discriminatório. A falta de referenciais positivos, embora retratem
a realidade social, como heroi, princesa, fada, dentre outros, faz com que as crianças negras tenham
sua autoestima diminuída. O revezamento desses arquétipos literários positivos entre as crianças de
diferente etnia favorece a construção de uma imagem plural da sociedade, o que vem sendo reforçado nas produções para a infância na atualidade.
Durante o século XX foram inúmeras as reivindicações por educação para os afro-brasileiros e por
materiais que tratassem de suas culturas, através de suas organizações e representações políticas,
intelectuais e culturais. No final daquele século, foi possível encontrar boas publicações, mas poucas. As crianças são bastante exigentes, por isso, além de politicamente corretas, as histórias precisam apresentar literariedade, criatividade e boa ilustração, sem desejar parecer prescritiva, cito
algumas obras interessantes que foram publicadas antes de 2000: O Pássaro-da-Chuva(1990), Kersti
Chaplet; Menina Bonita do Laço de Fita (1996), Ana Maria Machado e a A cor da ternura(1998)
Geni Guimarães.
A partir do início do século XXI, ano 2000 até 2003 outros títulos surgiram na literatura infantil que reunia literariadade e temática afro-brasielira, dentre elas apresento as minhas escolhas: Luana, a Menina que Viu o Brasil Neném (2000), Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino; Que Mundo
27
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Maravilhoso!(2000), Julius Lester e Joe Cepeda; Fica comigo (2001), Georgina Martins; O Filho do
Vento (2001), Rogério Andrade Barbosa e Ifá, o advinho (2002), Reginaldo Prandi; O menino Nito
(2002), Sonia Rosa.
Mas o Boom da publicação de livros de literatura infantil com personagens e temática negra deu-se
mesmo após a publicação da Federal Nº 10.639/03 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da educação
Nacional, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática: História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana e estabelece para o calendário escolar o dia 20 de novembro como
o Dia Nacional da Consciência Negra, inserindo um de seus verdadeiros protagonistas da história
do Brasil na educação. Foi um grande avanço incluir os valores culturais africanos e afro-brasileiros
nos currículos escolares, pois demonstra o reconhecimento de uma dívida da sociedade para com
os africanos e seus descendentes. Cabe, agora, aos educadores, frente aos novos desafios decorres
“ [...] da necessidade de se desfazer os equívocos que deturpam as culturas de origem africana nas
áreas onde desenvolveram relações de trabalho escravo [...] (PEREIRA, 2008, p.8), desenvolver atividades de leitura com livros significativos dos valores africanos e afro-brasileiros para que as crianças
se sintam valorizadas e inseridas no contexto escolar.
Neste sentido, vale ressaltar que, segundo pesquisa sobre a presença do negro em livros didáticos,
realizada por Silva (2004, p.25), o negro, na maioria das vezes, apresenta-se de forma pejorativa,
muito inferior ao branco, são personagens tratados com desprezo, enquanto os brancos são referidos como os mais inteligentes. Embora os livros didáticos não sejam objeto de pesquisa, serve como
parâmetro pata inferir que a lei, por si só, não é garantia de mudança de postura, segundo Munanga: “Combinar a liberdade individual com o reconhecimento das diferenças culturais e as garantias
constitucionais [...] é uma questão que leva a uma reflexão sobre a educação, pois sabemos que a lei
sozinha com seu conteúdo repressivo não resolve todos os problemas.” (2010, p.42) Cabe, portanto,
aos professores, trazer para sala de aula sugestões de leituras atrativas que versem sobre o assunto
de forma literária, criativa, bem ilustrada, que aguce a imaginação e que, simultaneamente, propicie reflexão ao trazer para a história situações do contexto da criança, para que ela possa se sentir
representada e, nesse exercício, elevar a sua autoestima.
Algumas leituras que fiz sugerem esse trabalho prazeroso de diálogo entre a realidade e a literatura,
podendo servir de ponte para que as crianças consigam construir a sua identidade, sem se sentirem inferiorizadas, pois esses livros trazem personagens verdadeiras e que desempenham papeis
variados na sociedade, com as características físicas que lhes são peculiares, gostam de si mesmas e
ajudam outras pessoas a se perceberem como são. Ensinam sobre a África e suas culturas, sobre a
diversidade sem preconceitos, sobre a beleza negra, sobre as diferentes culturas, sobre a formação
do povo brasileiro e tantos outros temas e tudo numa linguagem rica e literária, com lindas ilustrações que darão prazer às crianças e também aos adultos que gostam de literatura infantil. Quando a
literatura é de qualidade vale a pena ser lida, pois ela transforma o leitor.
Esses títulos não são os únicos e também não posso chancelar que sejam os melhores, ratifico são
de excelente qualidade segundo o julgamento que emito: O Espelho Dourado (2003), Heloísa Pires
Lima; As tranças de Bitou (2004), Anna Sylviane Diouf; O chamado de Sosu (2005), Meshack Asare;
Tanto, tanto!(2006), Trish Cooke; Adamastor, o pangaré (2007), Marianna Massarani; Histórias da
Preta (2007), Heloisa Pires Lima; Entremeio sem bordado (2007), Patrícia Santana; Minhas contas (2008), Luiz Antonio; Princesa Arabela: mimada que só ela (2008), Milo Freeman; Omo-Oba:
histórias de princesas(2009), Kiusam Oliveira; Luiz Antônio; O comedor de nuvens (2009),Heloisa
Pires Lima; O super-herói e a fralda(2009), Heloisa Prieto; Menino parafuso (2009), Ângelo Abu;
28
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Betina (2009), Nilma Lino Gomes; Bruna e a galinha d´Angola (2010), Gercilga de Almeida; Meninas negras (2010), Madu Costa;A menina que tinha um céu na boca (2010), Júlio Emílio Braz; Obax
(2010), André Neves (prêmio jabuti); Uma ideia luminosa(2010),Rogério Andrade Barbosa; Princesa
Violeta (2010), Veralinda Menezes; Cabelo ruim? A história de três meninas aprendendo a se aceitar de Neusa Baptista (2010); Lendas da África Moderna de Rosa Maria Tavares Andrade (2010); O
cabelo de Lelê (2012), Valéria Belém; O Menino Marrom (2012), de Ziraldo; A Menina Transparente(2012), Elisa Lucinda; Amkoullel o Menino Fula (2014), Amadou Hampaâte Bâ. A esta lista, tenho
certeza, leitor, você agregará inúmeros outros, pois as editoras os gestaram à farta nos últimos anos.
E aqui não citei os escritos em países da África, na Europa e nem em outros da América Latina, como
podem perceber, há um universo enorme a ser desbravado por nós e nossas crianças.
Conforme escreveu Proença Filho (2004), o resgate dos mitos, a proximidade cultural com a África,
mas sem distorções nostálgicas, e com outros países em que a discriminação existe; o tempo escravo
repensado, as revoltas, a situação do negro e de seus descendentes na construção socioeconômica
do país e sua marcada participação nos tempos heroicos da formação da nacionalidade, as contribuições linguísticas colocadas em evidência na nossa língua portuguesa do Brasil, podem, entre
outros traços, contribuir, através da transfiguração na literatura, para o melhor conhecimento e o
redimensionamento da presença do negro na sociedade brasileira. São verdades e valores capazes
de se opor vigorosamente aos estereótipos e preconceitos ainda vigentes no comportamento de
muitos brasileiros e também em muitos livros de literatura e didáticos.
Engana-se aquele que crê que a literatura infantil é coisa para criança e numa linguagem simplista,
já mencionei acima que o texto feito para a infância também pode agradar ao adulto, quando é um
texto de qualidade. Como escreveu Yunes (2006):
A literatura dita infantil não é, como se pensa, uma linguagem reduzida à expressão comezinha do discurso; quiçá haja uma redução da extensão, por razões óbvias, mas não pode haver concessões quanto a imagens, pois a literatura está próxima dos recursos de seu inconsciente. Escrever para a leitura com deleite
de crianças não exclui o prazer do adulto, pois que a literatura infantil não é uma arte menor, senão maior,
uma vez que se estende e inclui como receptor de seu discurso o olhar da infância. (p. 272)
Entretanto, vale ressaltar, que a academia, seja por preconceito, seja por ausência de conceituação
precisa, o fato é que pouco avançou na produção científica sobre literatura infantil nessas últimas
décadas. Conforme aponta a produção acadêmica divulgada no Banco de Teses da Coordenação de
Pessoal de Nível Superior - CAPES, no período compreendido entre 2006 a 2010. O gênero literário
para crianças parece diminuído se vislumbrado pela perspectiva histórica. Embora Ceccantin tenha
feito essa afirmação, em 2004, a assertiva aplica-se aos dias atuais; segundo ele, a escassez de pesquisas sobre a literatura infantil deve-se “à volatilidade do objeto em causa, resistente ao enquadramento em definições precisas e à clara delimitação e definição, situando-se numa espécie de limbo
acadêmico” (p. 20). O que significa dizer que esta literatura, no Brasil, prossegue sem definição, é
uma gama enorme de conteúdos, grande diversidade de estilos e formas dos textos, além de um
público leitor direcionado por esse mercado para uma leitura-consumo. O forte apelo visual do livro
parece decisivo para despertar o público leitor, indicando que a imagem ocupa um lugar privilegiado
na literatura infantil brasileira contemporânea. Como tudo hoje em dia, a literatura para crianças é
mais mercadoria agregada a outros valores culturais e, nesse contexto, parece que o estético não é
pré-requisito para a publicação de textos destinados às crianças. Embora tenhamos uma produção
literária infantil cada vez maior e de melhor qualidade do ponto de vista das ilustrações e do acaba29
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
mento gráfico editorial, nem sempre o mesmo ocorre quanto à estética textual, muitas vezes, pobre
de conteúdo e perpassados de tatibitates. Mas é possível encontrar excelentes textos como aqueles
que citei acima.
A literatura infantil funciona como instrumento de conhecimento do mundo. Por ela a criança compreende a sociedade e resolve seus problemas emocionais, pois ela possibilita ao homem ampliar,
transformar e enriquecer sua experiência de vida, ela pode se tornar o vínculo entre a criança e o
mundo e introduzir o debate étnico em sala de aula. A tarefa em torno da leitura destes livros é
dupla e pode concomitantemente reconhecer bons/maus textos e imagens que possam de alguma
maneira favorecer/desfavorecer a construção positiva da identidade da criança negra. Identificando
livros adequados, fomentando boas práticas de leitura, capazes de questionar e desconstruir mecanismos e práticas racistas e discriminatórias para denunciar.
Trata-se, pois, de construir e promover espaços voltados à equidade social e étnico-racial, com condições favoráveis ao desenvolvimento de atitudes de respeito à diversidade, responsabilidade das
escolas com Educação Básica da qual não podem se esquivar, para que as crianças aprendam a
valorizar o diferente desde cedo e rotineiramente e não apenas em datas comemorativas. Uma das
possibilidades de fazê-lo é incluir a leitura de histórias vividas por variados grupos étnicos, desempenhando os mais diversos papéis, numa relação de respeito. Ler é um direito de todos; independentemente de classe, etnia ou credo. Proporcionar o direito à leitura é um dever da escola, pois, além
de possibilitar experiências significativas, permite que se quebrem as barreiras das desigualdades
sociais, culturais e intelectuais. Assim sendo, pensar e criar programas e políticas públicas de apoio
a projetos de leitura é muito importante para toda e qualquer sociedade que se pretenda equânime.
Referindo-se ao estudo freudiano, Yunes (2006) assim se expressa sobre o educar:
Eis porque Freud (1973) afirmava que educar está entre as tarefas impossíveis, pois não se trata de depositar a ciência em sua memória, mas de convocar a que o aprendiz se assuma como co-autor de seu processo de articulação na vida social; que realize etimologicamente o que diz a palavra ex-ducere, “conduzir(-se)
para fora”, ao encontro do(s) outro(s), com que se constrói sua identidade em permanente movimento,
pelo fato de que a intersubjetividade não se esgota, nem se fixa. Como a linguagem, como o sentido, como
o juízo, a palavra tem seus usos e seus contextos, sua enunciação para além do enunciado. (p.272)
Do lugar de educadora, em que me situo, aquém dos estudos de Freud, arrisco afirmar que não diria
impossível, mas conscientemente difícil, na medida em que envolvem dois sujeitos nesse processo:
de um lado alguém que deve estar disposto a ensinar e de outro alguém aberto e estimulado a
aprender e a reciproca se aplica nos dois vieses educador/educando.
Proença Filho (2004), escreveu que “o negro brasileiro não pode ser tratado como o outro, que
tanto trabalhou pela grandeza da nação e a quem se deve reconhecimento especial por isso, como
não cabe agradecer aos brancos portugueses ou aos índios, mas também não deve tratar-se como
o outro em nome de sua autoafirmação”. Em parte, discordo dessa afirmativa, por entender que só
é possível conhecer a nós mesmos na relação que estabelecemos com o Outro, qual seja, aquele
externo a mim, com culturaS diferenteS, isso mesmo no plural, para que possamos entender melhor
as culturas com as quais nos construímos como sujeitos históricos.
Convoco Verbena Cordeiro (2006) para elucidar essa opção de ensaio vida que anunciei, no início
desse texto, e que deixei o leitor academicizado meio incrédulo quanto à cientificidade do teor deste
texto:
30
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Há algo fundamental que não pode nem deve ser esquecido: o saber acumulado ao longo de um percurso
profissional e pessoal, que conforma a subjetividade singular e peculiar de cada um de vocês. A trajetória
profissional do professor é tecida com saberes e experiências, não tenham dúvida. Isso confere uma relevância social e afetiva a cada gesto e olhar do professor sobre seu campo de trabalho. É a partir desse
saber que você, professor, vai, com múltiplos e diversos olhares, ressignificando conceitos, reelaborando
ou reorganizando suas práticas de leitura e de escrita.( p.66)
E, assim, termino esse ensaio de vida, precisando ser Outro para chegar a ser quem sou, e buscar
melhor compreender aquele que me completa por ser diferente nas dores, nos amores, nos desejos,
nas conquistas, nas derrotas, nos anseios, nos gostos, nas inseguranças, nas lutas e, principalmente,
em ter não tendo direitos. Ao mesmo tempo, ser tão igual. Ser humano. E, com Fernando Pessoa
e com Mia Couto, ser leitor. Sermos, eu e você. Nós. Leitores de todas as etnias, gêneros, origem,
idade, opção sexual, portadores de deficiências, moradores de vilas/favelas e moradores de rua. A
leitura nos nivela e, simultaneamente, nos torna diferentes, na medida em que nos informa, forma
nosso conhecimento e também o nosso caráter, nos emociona, nos fazendo mais humanos e melhores para nós mesmos e para o(s) Outro(s) meu(s), nossos, espelho(s).
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou.
Quero ir buscar quem fui, onde ficou.
Fernando Pessoa ( 2007, p. 700)
31
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione, 1997.
ARROYO, M. Imagens Quebradas trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das
relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. [Brasília]:
[s.l], 2003. p.151.
BRASIL. Lei 11.645.10.mar.2008. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2008/lei/l11645.htm > Acesso: 03.01.2015.
CECCANTINI, João Luis C. T (Org.). Leitura e literatura infanto-juvenil: memórias de Gramado. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2004.
FERREIRA, Norma S. de A. Os livros infantis brasileiros que aqui circulam, não circulam como
lá. Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas 2009. Disponível em: <http://www.fe.unicamp.br/alle/pdf/relatoriopesquisanorma1.
pdf> Acesso em: 10/03/2015.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez,
1982.
FREUD, Sigmund. Psicoanálisis del arte. Madrid: Alianza, 1973.
GROTTA, Ellen Cristina B. Formação do leitor: a importância da mediação do professor. In: Alfabetização e Letramento: contribuições para as práticas pedagógicas. Sergio Antonio da Silva Leite
(org.) Campinas, São Paulo: Komedi: Arte Escrita, 2001.
LAJOLO, Marisa (Org.) A importância do ato de ler. Paulo Freire. São Paulo: Moderna, 2003.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense. 1956.
______. Histórias de Tia Nastácia. São Paulo: Ed. Nacional. 1937.
CADERNOS PENESB: discussões sobre o negro na contemporaneidade e suas demandas. MUNANGA, Kabengele. Educação e diversidade cultural. Cadernos Penesb–EdUFF Jan/Jun./2008/2010.
(Revista do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira Faculdade de Educação)
– UFF 08/2010, p. 1- 200.
COUTO, Mia. Raiz de orvalho e outros poemas. Alfragide-Portugal: Caminho. 2001.
CORDEIRO, Verbena maria Rocha. Cenas de Leitura. In: TURCHI ,Maria Zaira; TIETZMANN SILVA
,Vera Maria. (Org) Leitor formado, leitor em formação: leitura literária em questão. São Paulo: Cultura Acadêmica, Assis-SP: ANEP, 2006. p.54-74
OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. Personagens negros na literatura Infanto-juvenil no Brasil e em
Moçambique (2000 -20007): entrelaçadas vozes tecendo negritudes Tese de doutorado pela Universidade Federal de João Pessoa- UFPb-Paraíba, 2010.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis:
Vozes, 1988.
PEREIRA, Edmilson de Almeida. Valores culturais afrodescendentes na escola. São Paulo: Paulinas.
Diálogo, Revista de Ensino Religioso. nº 49, fev, 2008. p. 8-11.
32
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
PROENÇA FILHO, D. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estud. av.vol.18no. 50. São Paulo.
Jan./Apr.2004.
SILVA, Ana Célia. A discriminação do negro no livro didático. 2ªed. Salvador: EDUFBA, 2004.
SOUZA, Ana Lúcia Silva e CROSO, Camila (Coord.). Igualdade das relações étnico-raciais na escola:
possibilidades e desafios para a implementação da Lei 10.639/2003. São Paulo: Petrópolis: Ação
Educativa, CEAFRO e CERT, 2007.
TURCHI, Maria Zaíra; TIETZMANN SILVA, Vera Maria (orgs.). Leitor formado, leitor em formação
leitura literária em questão. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2006.
YUNES, Eliana. O tempo e os termos para uma ética: lei, literatura e infância. Revista Brasileira de
Direito Constitucional - RBDC n. 8 – jul./dez. 2006. p.267- 81.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11 ed. São Paulo: Global, 2003.
33
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
A leitura, o leitor e vice versa: breves reflexões sobre parte do Oitocentos Brasileiro
Nelson de Jesus Teixeira Júnior6
RESUMO:
No presente artigo buscaremos, por meio da história da leitura e do leitor no dezenove, refletir sobre o padrão de gosto
predominante no Brasil, sobre a promoção da leitura enquanto ações e práticas existentes no oitocentos e, ainda, acerca
de outras formas de acesso à leitura existentes no país.
Palavras-chave: Leitor, Leitura, Oitocentos no Brasil.
RESUMEN:
En este artículo vamos a buscar, por medio de la historia de la lectura y el lector en
el siglo XIX, reflexionar sobre el padrón del gusto imperante en Brasil en la promoción de la lectura de las acciones y prácticas existentes, mientras que en ochocientos y también sobre otras formas de acceso a la lectura existente en el país.
Palabras-llave: Lector, Lecturas, Ochocientos en el Brasil.
[...] cada leitor, cada espectador, cada convite produz uma apropriação inventiva da obra ou do texto que
recebe. (CHARTIER, A aventura do livro: do leitor ao navegador.)
6 Doutorando (2015 – 2019) do Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP,
campus de São José do Rio Preto – SP. Atua como professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus IX
em Barreiras-BA, lecionando o componente curricular Estágio em Letras.
34
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
A relação entre texto e leitor é marcada pelo diálogo, uma vez que aquele traz consigo sentidos que provocam a inserção
dele, o leitor, o qual lê e produz, de acordo com seu repertório, outros sentidos sobre a obra. Refletir sobre a leitura e o
leitor no oitocentos brasileiro é, também, trazer para a discussão uma série de acontecimentos que faziam parte dessa
época e que tinha relação bastante estreita com ambos. Refletindo acerca da aceleração das políticas de leitura no Rio
oitocentista, afinal de contas, não era só de jornal que vivia o povo fluminense, a política de leitura não tinha uma amplitude considerável, mas, a passos modestos, já começava a modificar o cenário que havia recebido a corte portuguesa.
Jorge de Souza Araújo (1999), em seu livro Perfil do leitor colonial tece algumas considerações acerca do assunto, entre
as quais, citamos a seguinte:
As grandes livrarias vão se formando da segunda para a terceira década do Oitocentos, em quantidade,
variedade e importância de títulos, autores e assuntos. [...] O século XIX, assim, irá ganhando foros de
interesse histórico, com a ampliação do ensino e com o desenvolvimento da tipografia entre nós (ARAUJO,
1999, p. 160).
Podemos entender que o “terreno” carioca começa a tornar-se favorável à formação de um público
leitor, ainda que as livrarias e bibliotecas ficassem sobre o poder de poucos e, também, que o acesso
fosse restrito, não podemos deixar de apontar para a importância dessas ações. É preciso lembrar
que os livros e manuscritos levados pelos que tinham acesso aos espaços de leitura poderiam ser
lidos por outros. E, além disso, lidos de várias formas como em voz alta, o que permitia o alcance
dos que não liam, mas ouviam, os chamados leitores ouvintes.
Claudino Piletti e Nelson Piletti (1985) apresentam, no livro Filosofia e história da educação, um
panorama das escolas existentes no oitocentos brasileiro, o que aponta para certa precariedade na
institucionalização da educação. A princípio, os referidos autores discutem sobre a sistematização da
educação, direcionada para os interesses da coroa, sem nenhum compromisso com o social coletivo:
Com a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil (1808) e com a independência (1822), a preocupação
fundamental do governo, no que se refere à educação, passou a ser a formação das elites dirigentes do
país (PILLETI e PILLETI, 1985, p. 176).
Com tais pretensões, não é de se assustar que a educação, bem como as políticas públicas de leitura,
evoluíssem a passos largos nas primeiras décadas do dezenove brasileiro. Esse princípio de educação apresentado pelos autores nos fornece pistas do “perfil” de leitor que começa a ser formado
nas primeiras décadas do dezenove brasileiro: o leitor comum, o qual era educado para estender seu
poder sobre a sociedade brasileira. Logo, a ideia de educação se estabelece como um mecanismo
instrucionista de domínio e, nesse caso, o ato de ler traduzia-se como o ato de decodificar o lido,
afinal, compreender o lido, ipsis litteris, era a forma de aprendizagem nesse tipo de educação que
se instalou no país.
Segundo os autores de Filosofia e história da educação, depois de várias leis e poucas ações práticas,
pouco a pouco a educação vai tomando ares de organização e:
Em 1854, o ensino primário foi dividido em elementar e superior. No elementar ensinava-se instrução
moral e religiosa, leitura e escrita, noções essenciais de Gramática, princípios elementares de Aritmética
e o sistema de pesos e medidas; no superior poderiam incluir-se dez disciplinas, desdobradas do ensino
elementar (PILLETI e PILLETI, Op. cit., p. 178).
35
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Pelo caráter do currículo, podemos inferir que se tratava de uma formação bem técnica, afinal, as
próprias instituições de ensino superior traziam cursos tradicionais como Direito, Medicina, Anatomia, Agricultura, Artes e Ofício etc. A exemplo da existência desses cursos, no Jornal a Gazeta de
Notícias, datado de 11 de maio 1888, encontramos o seguinte anúncio:
Lyceu de Artes e offícios – A aula de algebra, a cargo do Sr. A. Teixeira Pinto, abrir-se-há amanhã, 12 do
corrente, às 7 horas da noite, sendo por isso convidados a comparecer n’este estabelecimento os alumnos
n’ella inscriptos– Brasil (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional)
O trecho acima permite afirmar que a funcionalidade do jornal não era apenas a de veiculação de
obras literárias e informes, mas, também, a de contribuir para os serviços de utilidade públicos.
Dentre os quais não podemos deixar de fora a educação. É preciso esclarecer que essas escolas não
possuíam muitos recursos necessários para o desenvolvimento da aula, tais como o livro didático.
Por outro lado, a ausência do manual didático não inviabilizava a aula, afinal, o professor buscava
outros recursos como os manuscritos (os quais, futuramente, seriam impressos como livros).
Antônio Augusto Gomes Batista (2005) em seu texto “Papéis velhos, manuscritos impressos: paleógrafos ou livros de leitura manuscrita”, reflete sobre a presença e uso dos manuscritos no século XIX
do Brasil. Diante de suas muitas considerações o autor afirma, através das leituras realizadas acerca
do assunto, que os livros escolares eram desconhecidos nas primeiras décadas das escolas do Brasil
do século XIX, o que resultava no uso de manuscritos no espaço de ensino. Nessas condições imaginamos que, talvez, os próprios periódicos poderiam servir como recursos didáticos no uso desses
professores, afinal:
[...] deve-se acrescentar, a leitura de manuscritos, após a leitura de impressos ou concomitantemente a
ela, é uma prática de larga tradição pedagógica. Na Europa, desde as experiências de De La Salle, a leitura
de manuscritos, dispostos em ordem de dificuldade, constituía uma etapa final do aprendizado da leitura
e do desenvolvimento da alfabetização (BATISTA, 2005, p. 105 – 106).
Então, nessa ausência de livros didáticos, os manuscritos, o impresso e os livros de variada natureza
serviam para o processo de alfabetização e ensino no Rio oitocentista. Nessa época, havia a disciplina, concursos e toda sorte de requintes e fetiches relacionados ao culto à letra. Com essas reflexões,
podemos entender que a política de educação no país se apropriava dos mais variados bens impressos e manuscritos produzidos no Brasil e em outros países.
Muitas publicações nos impressos oitocentistas configuravam-se como um convite aberto ao leitor
da literatura, seja o da literatura que possuía o livro ou o impresso como seu suporte. Afinal, esses
textos literários configuravam-se, também, como uma janela para o mundo que estava à volta do
ledor. Vera Teixeira de Aguiar (1988), abordando a leitura literária, afirma que:
A atividade do leitor de literatura se exprime pela reconstrução, a partir da linguagem, de todo o universo
simbólico que as palavras encerram e pela concretização desse universo com base nas vivências pessoais
do sujeito (AGUIAR, 1988, p. 15).
36
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Conforme possibilita pensar o trecho acima, a ação leitora da literatura não se termina no contato
do sujeito com o texto, mas, se expande às interferências do leitor sobre o texto e, ainda, da relação
estabelecida entre o cotidiano, as experiências de quem lê e os próprios sentidos viabilizados pelo
texto.
Temos percebido que a literatura “acompanhou” o desenvolvimento do periodismo brasileiro e, ainda, se “desenvolveu”, também, no espaço jornalístico. Essa relação próxima nos possibilita pensar
no leitor literário que, mesmo que a escola não priorizasse sua formação, o jornal já alimentava seu
gosto pela leitura literária através de publicação de textos literários.
Entretanto, ainda que as ações concernentes à leitura estivessem evoluindo, o descontentamento
ainda imperava no oitocentos brasileiro. O próprio Machado de Assis se posicionou criticamente
frente ao recenseamento7 de 1872 no Brasil:
A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler, desses uns 9% não
lêem letra de mão, 70% jazem em profunda ignorância (ASSIS, 1985, p. 345).
Mesmo com a crítica machadiana, é preciso entender que esse período estava numa crescente considerável frente às condições sócio - educacionais das cinco décadas inicias do oitocentos brasileiro.
Afinal, não podemos deixar de pontuar o número de bibliotecas, escolas e outros locais de leitura
presentes no Brasil, em especial, no Rio de Janeiro que continuava crescendo.
Nelson Schapochnik (2005) em seu texto “A leitura no espaço e o espaço da leitura”, apresenta vários
gráficos e mapeamentos de bibliotecas e outras instituições que estavam voltadas para a prática de
leitura no oitocentos brasileiro. Dessas informações trazidas pelo autor, consideramos importante
refletir sobre a seguinte assertiva:
Embora integradas no cenário cultural oitocentista, estas novas bases institucionais da leitura implantadas no Império brasileiro tiveram uma existência errática. Submetidos a sucessivos deslocamentos, as
bibliotecas provinciais e municipais, os gabinetes de leitura e as bibliotecas populares ocuparam as mais
distintas instalações, que incluíram desde as dependências de um hospital, quartos de hotéis, até as residências particulares, quando não compartilharam seu edifício e seus funcionários com outras instituições
(SCHAPOCHNIK, 2005, p. 243).
Ainda que os números de espaços de leitura estivessem crescendo, não podemos afirmar o mesmo
quanto aos espaços físicos que eram ocupados. Falta de estrutura, certamente, terminava estragando parte do acervo dos livros, além de outros impressos e manuscritos, isso, por conta do encaixotamento e deslocamentos constantes.
Nessa mesma obra, Schapochnik apresenta dados importantes quanto aos números de espaços de
leitura no Rio de Janeiro no dezenove brasileiro, chegando a apresentar o aumento de 4 bibliotecas
(1810) para 23 bibliotecas (1880), chegando a aumentar mais 4 entre os anos de 1881 e 1900. As
condições de leitura já viabilizavam situações favoráveis (ainda que tímidas) ao aumento da alfabetização.
7 Essas informações acerca de recenseamento apresentado por nós foram retiradas de um dos seus textos.
37
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Adentrando nas crônicas machadianas que traziam para a sociedade carioca questões referentes à
leitura, na crônica machadiana datada de 1 de junho de 18888, o cronista trazia ao seu leitor alguns
acontecimentos que ainda estavam recentes naquela sociedade. Questões como a ideia de educação enquanto identificadora de classes, já que a maneira de se comportar, tratar ou mesmo conversar, separava o burguês daqueles que não possuíam o ar de “nobreza”. No entanto, antes de iniciar
o processo definitivo de atualização e discussão dos acontecimentos fluminenses, para estabelecer
um diálogo com seu leitor, o narrador de “Bons Dias” convida aquele que já era seu parceiro de leitura e que trazia consigo todas as informações cotidianas: o burguês, o qual ostentava certo orgulho
pela sua educação:
Agora fale o senhor, que eu não tenho nada mais que lhe dizer. Já o saudei, graças à boa educação que
Deus me deu, porque isto de criação, se a natureza não ajuda, é escusado trabalho humano. Eu, em menino fui sempre um primor de educação (ASSIS, 1985, p. 491 - 492).
O trecho citado representa bem o ar burguês da época, classe que fazia questão de exibir seu status
e conseguir os olhares de admiração. Entretanto o narrador, ao construir o foco narrativo, consegue,
sem perder os requintes da burguesia da época, seduzir a atenção desse tipo de leitor, o qual tinha
como traço marcante de sua leitura a rapidez, o descompromisso, a superficialidade e a parcialidade leitora, o que faz desse foco narrativo um convite à intervenção dele, o leitor burguês (o leitor
comum).
É preciso entender que a burguesia foi vista de formas distintas pelos olhares de cada época e,
no século XIX (o que mais nos interessa) da Europa, há um olhar que podemos aplicar ao cenário
oitocentista brasileiro:
O homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra ocupação senão correr ao encalço
da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido desde a juventude; aquele, enfim,
cuja única profissão é a elegância sempre exibirá, em todos os tempos, uma fisionomia distinta, completamente à parte (BAUDELAIRE, 2007, p. 51).
Nesse caso, chamamos atenção não apenas ao burguês enquanto sujeito que levanta seus recursos
pelo trabalho braçal do outro, mas, ainda, aos ares burgueses de ostentar seu status. Diante disso,
podemos afirmar que, embora muitos estudiosos não aceitem a existência de uma classe burguesa
(pelo simples de fato de não haver, nessa época um cenário industrial forte) no Brasil oitocentista,
pelo menos, os ares burgueses, com certeza, existiam.
A escrita machadiana, não apenas das crônicas, como nos romances e contos, convida ao leitor
“enxergar” cenas de leituras, personagens leitoras e formas de leituras, isso, reforçado por meio
de seus convites explícitos à intervenção do leitor sobre o lido, bem como sobre os vazios textuais
presentes nos seus escritos. Vale ressaltar o caráter educativo dos textos literários por trazerem para
discussão as questões do cotidiano, posto que essas narrativas, por meio da educação distensa,9
8 Em um outro artigo, intitulado de “Narradores machadianos em “Bons Dias”: atos performáticos em busca dos leitores
oitocentistas, tratamos da análise dessa mesma crônica. A discussão, aqui recuperada, encontra-se de modo mais extenso publicado na Revista Saberes, volume 9/2011. O referido artigo foi escrito e publicado tendo como co-autora Patrícia
Kátia da Costa Pina.
9 Patrícia Kátia da Costa Pina (2002), em Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro, especificamente na 1ª parte
do livro cujo título é “Em pauta a Oralidade”, trabalha a ideia de educação distensa enquanto um saber que transcende
38
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
alcançavam os mais variados tipos de leitores nos mais diversos tipos de locais e das mais variadas
formas. Isso, pela plasticidade enunciativa que o impresso tinha de, por meio da linguagem visual,
escrita ou oral (através de quem lia) levar um acervo de conhecimentos amplo à população carioca
em geral.
Esse tipo de educação possibilitada através do impresso permite-nos entender a importância que
teve o jornal na veiculação de saberes e, principalmente, para os mais variados tipos de leitores, os
quais, mesmo não tendo acesso ao espaço escolar, se atualizavam com as informações. Pina (2002),
no livro citado antes, aborda essa funcionalidade educadora:
[...] a educação distensa, repito, independendo diretamente de espaços escolares institucionais leva um
acervo de conhecimentos bem mais variado e amplo a população - qualquer um, mesmo analfabeto, pode
saber o que está escrito em um jornal (PINA, 2002, p. 36).
A autora sugere a importância que teve o jornal impresso enquanto veiculador de saberes, o qual
tinha alcance garantido para os mais variados tipos de leitores. Logo, ao refletirmos sobre a leitura
e o leitor no oitocentos brasileiro, deparamo-nos, também, com a própria história da educação, das
políticas de leitura, do acesso ao livro, do impresso enquanto recurso didático, das bibliotecas, dos
professores enfim, de nossa própria história. Esse percurso realizado, até aqui, possibilita pensar
que o desenvolvimento do Brasil se deu juntamente com o desenvolvimento da imprensa e do leitor,
logo, todos cresceram juntos.
o espaço e scolar tomando outros rumos como o esforço pessoal do interlocutor e a divulgação via mídias, como por
exemplo o impresso.
39
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
ARAUJO, Jorge de Souza. “No século XIX”. In.: ARAUJO, Jorge de Sousa. Perfil do leitor colonial.
Salvador: UFBA, Ilhéus: UESC, 1999.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985, V. 3.
_____________________________. Obra completa. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1970, V. 1 e 2.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes. “Papéis velhos, manuscritos impressos: paleógrafos ou livros de
leitura manuscrita”. In.: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson. (Orgs). Cultura letrada no Brasil:
objetos e práticas. São Paulo-SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São
Paulo-SP: Fapesp; 2005.
BAUDELAIRE, Charles. O dândi. In: Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira
Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
BONS DIAS!. Biblioteca Nacional do Brasil. Rio de Janeiro. 1888 – 1889.
CHARTIER, Roger. As aventuras do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp, 1998.
PILETTI, Claudino; PILLETI, Nelson. Filosofia e história da educação. São Paulo: Ática, 1985.
PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro. Ilhéus, BA: Editus,
2002.
SCHAPOCHNIK, Nelson. “A leitura no espaço e o espaço da leitura”. In.: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson. (Orgs). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. São Paulo-SP: Mercado de
Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo-SP: Fapesp; 2005.
40
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
O ato da leitura No Caminho de Swann, de Marcel Proust
Diógenes Buenos Aires de Carvalho10
RESUMO:
O presente artigo objetiva analisar o processo de formação do leitor protagonista da obra No Caminho de Swann, do
escritor francês Marcel Proust, tendo em que vista que o romance apresenta aspectos da leitura e suas implicações na
constituição processual do ato de ler do jovem protagonista, no qual pode-se verificar num primeiro momento as ações
dos mediadores de leitura, o pai e a avó, quanto às escolhas do repertório de leitura, e, num segundo momento, a interação entre o texto e o leitor revela as particularidades desse ato a partir da experiência do narrador. Para tanto, buscou-se
como fundamentação teórica os pressupostos da estética do efeito de Wolfgang Iser (1983, 1989, 1999, 1999a, 1999b,
1999c), e da estética da recepção de Hans Robert Jauss (1994), uma vez que tais perspectivas exploram em primeiro plano o processo de recepção e de efeito da leitura literária. O resultado da análise demonstra que o ato da leitura implica
em gestos, espaços e hábitos, exigindo do leitor uma participação ativa para a concretização da leitura.
Palavras-chave: Leitura; No Caminho de Swann; Marcel Proust
ABSTRACT
This research aims to analyze the process of educating the protagonist student as reader, so that one can be able to
read texts critically, in the work Swann’s Way, by the French writer Marcel Proust, considering that the novel presents
reading aspects and its implications in the constitution of the reading act of a young leading. At first, it was possible to
identify the participation of reading mediators, such as the father and the grandmother, concerning the choices about
what to read and, later, the interaction between the text and the reader reveals the peculiarities of this act, based on the
narrator´s experience. In order to achieve the goals, it was done the study of the theoretical foundations concerning this
subject, especially the Aesthetics of Effects, by Wolfgang Iser (1983, 1989, 1999, 1999a, 1999b, 1999c), and Aesthetics of
Reception, originated from the work of Hans Robert Jauss (1994), since these perspectives explore firstly the reception
process and the literary reading effects. As a result of the study, it is noted that the reading process implies in gestures,
places and habits, demanding of the reader an active participation to the reading consolidation process.
Keywords: Reading; Swann’s Way; Marcel Proust.
Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (1871-1922) publicou, em 1913, No Caminho de Swann
(PROUST, 1999), o primeiro dos sete volumes que compõem a sua obra Em busca do tempo perdido,
sendo os demais volumes: À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes, Sodoma e
10 Doutor e Mestre em Letras (PUCRS). Professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), atuando na
Graduação em Letras e no Mestrado em Letras. Autor dos livros As crianças contam as histórias: os horizontes dos leitores de diferentes classes sociais (Edufpi) - Selo Altamente Recomendável FNLIJ, e A adaptação
literária para crianças e jovens: Robinson Crusoé no Brasil (Edufpi/CRV).
41
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Gomorra, A prisioneira, A fugitiva e O tempo recuperado; os três últimos foram publicados postumamente. O primeiro livro, No Caminho de Swann, foi recusado a princípio por quatro editoras, tendo
sido posteriormente publicado pela Editora Grasset, cujos custos da impressão foram pagos pelo
próprio autor e passou inicialmente despercebido pela crítica francesa.
No Brasil, a primeira edição da obra do romancista francês é lançada nos anos 1950 pela antiga Editora Globo, sediada em Porto Alegre, traduzida pelo poeta Mario Quintana, que foi responsável pela
tradução dos quatro primeiros volumes da obra, Manuel Bandeira em parceira com Lourdes Sousa
de Alencar traduziu o quinto volume, Carlos Drummond de Andrade traduziu o sexto volume e Lúcia
Miguel Pereira, com o último volume. Após essa primeira publicação, a editora Globo editou mais
de vinte edições. O público leitor brasileiro volta a ter uma nova publicação, em 1992, após 15 anos
da obra entrar em domínio público com a tradução completa de Fernando Py, pela Ediouro, que foi
relançada em 2002.
No caminho de Swann está dividido em três partes: “Combray”, “Um amor de Swann” e “Nome de
terras: o nome”. Tais segmentos dão forma à narração da infância e da adolescência do narrador, o
qual não se autodenomina em quase toda a obra, mas em alguns momentos se nomeia Marcel. A
primeira parte de No Caminho de Swann, “Combray”, está dividida em dois capítulos, “Combray I”
e “Combray II”, em que o narrador toma como espaço central a pequena vila de Combray, que se
caracterizava pela tranquilidade opondo-se à efervescência da cidade de Paris do início do século
XX, onde o protagonista e sua família passavam parte do ano, especialmente, na casa de Tia Leonie.
No primeiro capítulo, o narrador começa a apresentar sua relação com a leitura, mediada inicialmente por sua avó, pois é ela quem compra alguns livros para dar lhe de presente de aniversário.
A entrega do presente é antecipada pela mãe do narrador no momento em que estão sozinhos no
quarto deste e encontram-se sem sono. Os livros presenteados são os romances campestres que
idealizam a vida nas províncias francesas, La Maré du Diable, François le Champi, La petite Fadette
e Les maîtres soneurs, de autoria de George Sand, pseudônimo de Amandine Lucie Aurore Dupin,
Baronesa Dudevant, uma das primeiras mulheres francesas a viver de sua produção literária, que em
virtude do contexto patriarcal usou um nome masculino como estratégia para se inserir no campo
literário daquele momento. Tal artifício de Sand explicita “as regras da arte”, de acordo com Pierre
Bourdieu, uma vez que não é somente a qualidade estética da obra literária o único critério para a
entrada e circulação no sistema literário.
Tais livros, contudo, não foram os escolhidos inicialmente pela avó materna. Os textos selecionados
anteriormente são as poesias românticas de Alfred de Musset, um volume de Jean Jacques Rousseau e o romance de amor, Indiana, de George Sand, que foram reprovados pelo pai do narrador. A
poesia de Musset aborda uma sobreposição da emoção sobre a razão e a narrativa de Sand, por sua
vez, advoga à mulher o direito de ter um amor sincero e dirigir sua própria vida. Ambos se conheceram quando do lançamento desse romance e estabeleceram uma relação amorosa, chocando a
sociedade da época por ele ser mais jovem.
A avó, diante da atitude do genro, cede porque nessa sociedade patriarcal a decisão masculina se
sobrepõe à da mulher, como também salienta para a filha, mãe do narrador, que “nunca seria capaz
de dar a esse menino qualquer coisa de mal escrito” (PROUST, 1999:44). Assim, especifica o critério
do que seria “bem escrito”, que se manifesta através da diversidade de gêneros, – a poesia, o ensaio
e o romance –, os quais apontam para distintos horizontes de expectativas, conforme concepção de
Hans Robert Jauss (1994), e o diálogo com diferentes perspectivas sobre o homem e a sociedade.
42
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Esse episódio sinaliza o processo de atuação dos mediadores de leitura (HAUSER, 1977), que nesse
episódio se configura pelo papel da família como agente social, o qual é explicitado pela seleção
de obras para a formação do pequeno leitor, Marcel, que se dá no embate entre as concepções de
literatura e de mundo da avó e do pai. Para Jauss (1994), essas diferentes posições resultam da distância estética entre os horizontes de expectativas das obras e o desses mediadores, uma vez que a
seleção do pai busca manter o jovem leitor num cânone literário já consolidado, que, em princípio,
não provoca nenhuma ruptura no receptor, ou seja, a escolha paterna pode resultar na fusão desses
horizontes sem que ocorra nenhuma alteração nas concepções estética e sociais do narrador; as
escolhas da avó, por sua vez, por sua diversidade de gêneros e temáticas consideradas “impróprias”
podem levar ao protagonista a romper com modelos tanto estéticos quanto sociais, consequentemente, numa ampliação dos horizontes de expectativas desse leitor jovem. Nesse embate, o “vencedor” é a figura paterna, que mantém o controle sobre o percurso educacional que o pequeno Marcel
deve “caminhar”, em face de uma submissão imposta tanto à mulher quanto às crianças.
Há nessa cena, portanto, uma preocupação com os possíveis efeitos da leitura no garoto, os quais
são acionados pelo ficcional, por conseguinte, trazendo à tona o imaginário desse leitor, consoante
Wolfgang Iser (1999c). Segundo o narrador, a avó
Jamais se resignava a comprar qualquer objeto de que não se pudesse tirar algum proveito intelectual e,
sobretudo, o que nos proporcionam as coisas belas, ensinando-nos a buscar deleite em outra parte que
não nas satisfações do bem estar e da verdade (PROUST, 1999:45).
Tal posicionamento da avó do narrador se coaduna com o tratamento dado pelo teórico alemão,
Wolfgang Iser (1999), à literatura e a arte em geral como forma de conhecimento, visto que a literatura/arte é uma forma que “não pode ser invalidada nem sobrepujada, acumulando-se, ao invés,
como memória cultural” (p.27).
Sendo a memória cultural constituída de conhecimento e experiência, cresce incessantemente em
contraposição ao conhecimento empírico e à experiência prática, os quais podem se tornar obsoletos. Essa característica da literatura é fruto da não relação direta com a realidade, que não é concebida como um reflexo do real, já que aquilo que ela afirma deve ser colocado entre parênteses. Na
obra literária retrata-se um mundo do “como se”, “cujo faz de conta não é suscetível de invalidação
quando mostrado como tal” (ISER, 1999: 28), que na visão da avó de Marcel “colocar entre parênteses” é buscar o deleite pelo lado avesso ao que está cristalizado como bem estar e verdadeiro. É
enxergar o mundo a partir de outros ângulos, saindo da zona de conforto para enfrentar um deslocamento pessoal e social, por conseguinte, modificando seu olhar sobre si e sobre o outro.
A compra dos livros é regida pelo caráter não utilitário que a literatura deve apresentar, o que evidencia uma preocupação em introduzir o narrador na leitura de textos que geram no espírito do
leitor “uma feliz influência, dando-lhe a nostalgia de impossíveis viagens pelo tempo” (PROUST,
1999:46). Assim, a leitura literária proporciona o redimensionamento da realidade através da ficção, uma vez que sentir saudades daquilo que não pode ser realizado concretamente só é possível
através da ficção literária, que é, segundo Iser (1999a), uma construção elaborada a partir de uma
desorganização e desestruturação dos campos referenciais extratextuais em face do desnudamento
da ficcionalidade. O leitor assina o contrato de leitura com o ficcional, mas não se porta como um
receptor ingênuo, pois entra no jogo literário empreendido pela obra de arte em que a ficção aciona
o imaginário, permitindo-lhe experimentar o não vivido.
43
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Dentre os livros que compõem o pacote, a mãe de Marcel escolheu François le Champi para iniciar
a leitura compartilhada. Antes da leitura, porém, a capa avermelhada e o título incompreensível
provocam no narrador a sensação de que aquele livro “lhe emprestavam, uma personalidade distinta e um misterioso atrativo” (PROUST, 1999:46), pois “ainda não tinha lido verdadeiros romances”
(PROUST, 1999:46) e “George Sand era tipo do romancista” (PROUST, 1999:46). A materialidade do
livro, a partir da cor da capa do livro, também interpela o receptor, sendo o primeiro signo a gerar as
impressões iniciais sobre o livro; o título, o gênero literário e a autoria, por sua vez, trazem a Marcel
uma espécie de ascensão na condição de leitor mais experiente, uma vez que passa a ser um leitor
de romances de verdade, o que pressupunha ser portador de competências e habilidades de leitura mais complexas, sobretudo, a maturidade para enfrentar as engenhosidades literárias que esse
gênero apresenta.
Tal reação do narrador diante do romance é uma expectativa promovida provavelmente por estar
inserido num ambiente em que a literatura é vista como um gerador de diversas emoções. Antes
mesmo de lê-lo já se “presdipunha a imaginar em François le Champi alguma dose de indefinível e
delicioso” (PROUST, 1999:46), o que indicia a atividade cognitiva do leitor no sentido de produzir
expectativas quanto ao conteúdo do livro. Sendo a natureza desse conteúdo indefinida, nota-se a
aceitação do contrato entre autor e leitor, em que uma das cláusulas é conceber a literatura como
fingimento (ISER, 1999a), o qual leva os leitores a certas reações mesmo sabendo que se trata de
ilusão.
O fingimento é concretizado através dos processos narrativos, que, de acordo com o narrador, são
“destinados a excitar a curiosidade ou a emoção” (PROUST, 1999:46), bem como por meio de “certas
maneiras de dizer que despertam sentimentos de inquietude ou melancolia” (PROUST, 1999:46),
que pareciam a ele como únicos, muito embora pudessem sugerir para um leitor mediano como
típico de romances, mas como estava sendo iniciado nesse tipo de leitura apresenta-se como novidade. Essa consideração do narrador sobre o romance de George Sand salienta a natureza ficcional
do texto literário, que, conforme Iser (1983), apresenta-se constituído por diversos atos de fingir,
os quais são concebidos como transgressões dos limites. Tais atos são a seleção, a combinação e o
desnudamento da ficcionalidade.
O resultado desse conjunto de atos é o estranhamento no leitor, como se observa em Marcel ao iniciar a leitura de François le Champi: “Naqueles acontecimentos tão cotidianos, naquelas coisas tão
comuns, eu sentia como que uma entonação, um estranho acento” (PROUST, 1999:46). O mundo
apresentado mesmo tendo referência o mundo real, já que retoma sistemas contextuais de natureza
sociocultural ou literária, não é mais esse mesmo mundo, pois a seleção desses sistemas os reorganiza de modo distinto, o que exige do leitor buscar compreende-los dentro de uma nova lógica e que
o obriga igualmente a redimensionar suas concepções, por isso a sensação explicitada pelo narrador.
Além de apresentar um momento de leitura compartilhada ao lado da mãe, o narrador, no segundo capítulo, conta outro episódio que tematiza o ato de ler, só que desta vez numa atitude leitora
individual. O ambiente é o seu quarto na casa de Tia Leonie, que deitado no seu leito, com o livro na
mão, prepara-se para a leitura sob uma claridade considerada suficiente para a concretização da leitura. Qualifica como “umbroso frescor” as condições climáticas dentro do quarto, que “se adaptava
bem ao meu repouso que (graças as aventuras contadas em meus livros e que acabava de agitá-lo)
suportava, semelhante ao repouso de uma mão imóvel no meio de uma correnteza, o choque e a
animação de uma torrente de atividade” (PROUST, 1999:85). O repouso do corpo no leito contrasta
com a efervescência que a leitura provoca na imaginação do narrador por causa da elaboração de
44
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
uma nova realidade manifestada através das estratégias narrativas contidas nos livros. A inquietação
é provocada pelo esforço que o leitor tem de fazer para compreender o jogo proposto pelo autor.
Para não interromper a atividade de leitura, o narrador muda de cenário, sendo agora o “jardim,
debaixo do castanheiro, em uma espécie de guarida de esparto e lona” (PROUST, 1999:85), assumindo a condição de oculto para os visitantes dos pais que, por ventura, passassem por lá. Nesse novo
espaço, Marcel descreve os processos de desenvolvimento no ato da leitura dos seus livros: “na
espécie de tela colorida de diferentes estados, que minha consciência ia desenrolando simultaneamente enquanto lia” (PROUST, 1999:86). Tal descrição evidencia o caráter virtual da obra literária e
que só se realiza no processo da leitura, pois, para Iser, “a obra de arte é a constituição do texto na
consciência do leitor” (1989:149). O narrador acrescenta que esses diferentes estados “iam desde
as aspirações mais profundamente ocultas em mim mesmo até a visão puramente exterior do horizonte que tinha ante os olhos” (PROUST, 1999:86). Vê-se, então, o quão forte é o movimento ativado
pelo ato de ler e mexe com o homem do âmbito mais concreto ao mais íntimo. Tudo isso pelo viés do
fingir, que joga o leitor em situações inusitadas, haja vista que o texto literário distancia-se das experiências reais do leitor, possibilitando outros ângulos e abre novas perspectivas, nas quais o mundo
empiricamente conhecido de nossa experiência pessoal apresenta-se mudado.
Marcel ressalta que só aceita o jogo proposto pelo autor, porque “o que havia de principal em mim,
de mais íntimo em mim, o leme em incessante movimento que governava o resto, era minha crença
na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, qualquer que fosse esse livro” (PROUST,
1999:86). Essa postura reforça a idéia da literatura como forma de conhecimento, que não se esgota no pragmatismo cotidiano, podendo ser considerada como uma atitude aprendida com a avó já
referida anteriormente. Outro aspecto a ser considerado é a perspectiva assumida pelo narrador de
estar aberto à leitura de qualquer livro, por conseguinte, aos diferentes jogos que a literatura pode
propor. Desse modo, a personagem se mostra disposto a dialogar com o “novo” e com as “mudanças” que a leitura literária traz em seu bojo.
O narrador acredita que a leitura implica a execução de incessantes movimentos de dentro para
fora, em busca da verdade. O processo da leitura envolve esse movimento de reflexão e, posteriormente, vêm as emoções que proporcionam a ação que Marcel afirma tomar parte enquanto leitor,
haja vista que tais ações apresentam um grande volume de acontecimentos dramáticos maiores do
que poderiam ocorrer numa vida inteira. Ao afirmar que toma parte das ações, o narrador confirma
a defesa de Iser (1999b) da participação ativa do leitor na configuração do sentido do texto literário,
já que este é pontuado por lacunas e hiatos que devem ser negociados no ato da leitura. É por meio
dessa negociação que o texto é transposto para a consciência do leitor. A necessidade de preenchimento dessas lacunas por parte do leitor ocorre porque o padrão textual assume a forma de um
jogo, que é a interação entre o expresso e o não expresso.
O narrador demonstra certa consciência desse jogo à medida que explicita saber que esses acontecimentos narrados nos seus livros, na verdade, atingem personagens que não eram “reais”. Assim,
Marcel denota dominar o caráter ficcional das suas leituras e não um mero devaneio que proporciona apenas uma forma de escapar ou evadir-se da realidade sem um domínio da leitura numa dimensão do “como se”. Vai mais além ao perceber que por meio da literatura é possível ter uma dimensão
maior dos sofrimentos humanos representados pelas personagens, pois a realidade só permite ter
noção de uma parte da totalidade do que é a vida. Nisso está, para Marcel, a grande engenhosidade
do romancista:
45
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Já não importa que as ações e emoções desses indivíduos de uma nova espécie nos apareçam como
verdadeiras, visto que as fizemos nossas, que é em nós que elas se realizam e mantém sob seu domínio,
enquanto viramos febrilmente as páginas, o ritmo de nossa respiração e a intensidade de nosso olhar
(PROUST, 1999:87).
Com esse comentário, o narrador ilustra a tese de Iser (1989) de que a obra literária se concretiza
na consciência do leitor. Entretanto, vale ressaltar que essa identificação entre o mundo do texto e o
leitor, conforme anunciada por Marcel, é falsa, pois o que ocorre é uma fusão singular porque é o leitor que, progressivamente no ato da leitura, se converte no sujeito das idéias produzidas pelo autor.
Assim, para Iser (1989), desvanece a cisão entre sujeito e objeto, divisão inerente a todo processo
de conhecimento e percepção. Com seu desaparecimento a leitura é uma possibilidade especial de
acesso à experiência de um mundo alheio, de contestar e redesenhar verdades já convencionadas,
de enxergar a si e ao outro com novas lentes, compreendendo o humano em sua diversidade.
Experienciar o mundo alheio é sentir as emoções duplicadas, levando o leitor a vivenciar em curto
espaço de tempo o maior número de sentimentos que levaria a vida inteira para senti-las. É sentir
a maior das dores, a do coração, que é uma dor que só se conhece pela leitura, em imaginação, de
acordo com o narrador. Isso acontece porque o texto é fictício, o qual pode ser caracterizado, conforme Iser, “por uma travessia de fronteiras entre os dois mundos que sempre se inclui, o mundo que
foi ultrapassado e o mundo-alvo a que se visa” (1999:68). A leitura configura-se, consequentemente,
como uma travessia e que o leitor deve estar disposto a enfrentar essa condição instável que é estar
entre fronteiras que o deslocam da sua zona de conforto para vivenciar o desconhecido.
Além da vida das personagens, projeta-se, igualmente em Marcel, a paisagem onde se desenrolavam as ações, que para ele exerce muito mais influência do que a que está à sua frente, a real. Isso
ocorre porque ele pode, ao mesmo tempo, sentir o calor do jardim de Combray no momento da
leitura e a nostalgia de um país montanhoso e fluvial, descrito no livro. Essa duplicidade de espaços remete a experiências distintas que a ficção possibilita ao leitor, consoante o narrador, sentir a
paisagem como “uma parte verdadeira da própria Natureza, digna de ser estudada e aprofundada”
(PROUST, 1999:88), contrapondo-se ao fato de que a realidade não permite essa sensação. É o fictício que possibilita o transitar entre duas fronteiras como foi referido anteriormente.
Assim como o romancista proporciona viver várias emoções, ao mesmo tempo também possibilita
visitar inúmeros lugares descritos no interior do romance. Visitar esses espaços, para Marcel, é dar
um passo inquestionável em busca da verdade, pois são essas paisagens representadas nos livros
que apresentam uma espécie de totalidade que o homem tanto busca alcançar. Tal idéia de encontro com o todo é repassada ao leitor porque o mundo vislumbrado pela ficção é virtual, tornando,
assim, visível esse todo, isto é, somente através do mundo ficcional que o leitor consegue perceber
as diversas possibilidades de organização do real, redimensionando o caos do seu próprio espaço.
O narrador explicita ainda que o envolvimento com a leitura não acarreta somente um desgaste
emocional, já que acompanhar o herói do livro também resulta em fadigas no corpo. A leitura não
se manifesta apenas como uma atividade mental/cognitiva, mas também corporal, o que pressupõe
um entregar-se marcado pela fusão entre corpo e mente do leitor no ato da leitura. Todavia, isso
não importa para ele, visto que as horas passam e o narrador não se dá conta, perdendo o controle
do tempo:
46
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
E, a cada hora, parecia-me fazer apenas alguns instantes que soara a precedente; a mais recente vinha
inscrever-se bem junto da outra no céu e eu não podia acreditar que sessenta minutos tivesse cabido naquele pequeno arco azul compreendido entre os dois marcos de ouro (PROUST, 1999:89).
O trecho demonstra o completo envolvimento do leitor Marcel, o que denota o mergulhar deste no
mundo virtual apresentado pela obra literária, contudo isso ocorre porque há uma participação ativa do narrador que aceitar jogar, ou seja, interagir com o texto e enfrentar todas as estratégias textuais preparadas pelo autor, tendo um caráter de armadilha ou não. A interação depende do como
o leitor consegue responder às regras propostas pelo jogo através do preenchimento das lacunas e
reconhecimento das negações presentes no texto. Vale ressaltar que as respostas dadas pelo leitor
podem ser diferenciadas nos diferentes momentos da leitura ou releitura, já que esse leitor se situa
na(s) fronteira(s) como já referido anteriormente.
Os dois trechos selecionados da obra proustiana revelam que o ato da leitura é um processo que
envolve, por um lado, “uma prática encarnada em gestos, em espaços e em hábitos”, como afirma
Roger Chartier (1999:13), uma vez que atuam diversos atores, como os mediadores de leitura que
definem o que deve ser lido pelo leitor em formação, os lugares onde se realizam a leitura e os distintos modos de leitura como a compartilhada e a individual. Por outro, depende da participação
ativa do leitor à medida que este se dispõe a interagir. Para tanto, deve colocar à disposição da obra
toda sua imaginação, o que implica acionar todos os seus conhecimentos prévios, tanto de natureza
sociocultural quanto literária, bem como estar interessado em dialogar com o novo mundo apresentado pela obra literária.
47
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e biblioteca na Europa entre os séculos XIV
e XVIII. Brasília: UNB, 1999.
HAUSER, Arnold. Sociologia del arte. Sociologia del público. Barcelona: Labor, 1977. v. 04.
ISER, Wolfang. El processo de lectura. In: WARNING, Rainer (org.). Estética de la recepción. Madrid: Visor, 1989. (Colección La balsa de la medusa, 31). p. 149-164.
ISER, Wolfang. Os atos de fingir ou o que é ficcional no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa.(org.).
Teoria da literatura em suas fontes. 2.ed. Rio de Janeiro Francisco Alves, 1983. p. 384-416.
ISER, Wolfgang. A indeterminação e a resposta do leitor na prosa da ficção. Tradução de Maria
Ângela Aguiar. Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS. Série Traduções. Porto Alegre, Volume 3, Número 2, Março de 1999b.
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. In: ROCHA, João Cezar de Castro. (org.). Teoria da ficção:
indagações à obra de Wolfgang Iser. Tradução Bluma Waddington Vilar e João Cezar de Castro
Rocha. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999c. P. 63-77.
ISER, Wolfgang. O que é antropologia literária? In: ROCHA, João Cezar de Castro. (org.). Teoria da
ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. Tradução Bluma Waddington Vilar e João Cezar de
Castro Rocha Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999a. p. 145-178.
ISER, Wolgang. Teoria da recepção: reação a uma circunstância histórica. In: ROCHA, João Cezar de
Castro. (org.). Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. Tradução Bluma Waddington
Vilar e João Cezar de Castro Rocha Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. P. 19-33.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática,
1994. (Série Temas, v.36)
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução de Mario Quintana. 20.ed. revista por Olgária
Matos. São Paulo: Globo, 1999. (Em busca do tempo perdido, 1)
48
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Monteiro lobato e a promoção da autonomia entre as crianças
Alana Santos Souza11
Gizelen Santana Pinheiro12
Maria Afonsina Ferreira Matos13
RESUMO:
O presente artigo é resultante da proposta de investigação com textos lobatianos, estudados e trabalhados em forma de
oficinas de leitura, dentro das ações do projeto de pesquisa Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da
obra lobatiana no Ensino Fundamental I. Tem por finalidade fazer um breve histórico acerca da trajetória de Monteiro
Lobato enquanto sujeito atuante, criativo e crítico, bem como destacar o seu papel na formação da literatura infantil
e juvenil para que se possa entender, em processo, como ele promoveu a autonomia entre leitores mirins. Nessa valorização da autonomia, verifica-se que ele vê a criança como um ser pensante, capaz de fazer suas próprias escolhas,
de participar ativamente na compreensão do mundo, mas sem deixar de viver também o mundo da imaginação. O
real e o imaginado se complementam e são indispensáveis na provocação que sua literatura, inovadora e prospectiva,
desencadeia nos leitores. Dessa maneira, o trabalho com os textos de Lobato potencializa a competência de observar
as condutas humanas de maneira sensível, reflexiva e crítica, vindo a somar com o jogo envolvente da criatividade, o
que torna sua obra capaz de motivar o aluno a desenvolver a sua capacidade imaginativa e seu poder de agenciamento
sobre a realidade que o circunda.
Palavras-chave: Monteiro Lobato; Literatura; Autonomia; Real; Imaginário.
ABSTRACT:
The present article is resultant from the investigation proposal of lobatian’s texts, studied and worked in reading
workshops form, according to research project Emília goes to school: experiments with pratices of reading of the work
of Monteiro Lobato in elementary school I. It has as achievement to do a brief history about the trajectory of Monteiro
Lobato as an active, creative and critical subject, and to highlight his role in children and youth literature shaping so that
can be understand, in process, how he promoted autonomy among young readers. On this autonomy’s valuation, it
turns out he sees child as a thinking being, able to make his own choices, to actively participate on world’s comprehension, without ceasing to live imagination world. The real and imaginary complement each other and are indispensable
on the provoking his literature, innovative and forward-lookin, triggers the readers. Thus, the work with Lobato texts
11 Bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo da Pesquisa do Estado da Bahia/FAPESB, graduanda do
curso de Letras Vernáculas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB, faz parte do Grupo de Pesquisa e
Extensão em Lobato/GPEL, atuou como bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência/PIBID/UESB
e como bolsista de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia/FAPESB.
12 Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB, é coordenadora de Relatórios e Projetos do Centro de Estudos da Leitura/CEL/UESB, atuou como bolsista de Iniciação Científica da Fundação de
Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia/FAPESB.
13 Orientadora do projeto Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobateana no
Ensino Fundamental I, mestre e doutora em Letras pela PUC/Rio, professora Pleno da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia/UESB, lotada no Departamento de Ciências Humanas e Letras Campus de Jequié,
coordenadora acadêmica do Centro de Estudos da Leitura/CEL.
49
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
potentializes the competence of observing human behaviors in a sensitive, reflective and critical manner, coming to add
to the immersive creativity game, which turns his work capable of motivating the student to develop his immaginative
capability and his agency power on the reality that surrounds him.
Keywords: Monteiro Lobato; Literature; Autonomy; Real; Imaginary.
Introdução
Este trabalho, discutindo o papel fundamental que Monteiro Lobato exerceu para a literatura infantil
e juvenil busca elementos sobre os quais se constroem a autonomia dos picapauzinhos no Sítio de D.
Benta e, por conseguinte, das crianças do plano real – os leitores. Para tanto, é imprescindível fazer
um breve panorama sobre a vida de Lobato, sobre algumas de suas obras e sobre a maneira como
era vista a literatura infantil antes do final do século XVII. O reconhecimento e evolução dessa literatura, nesse período, desencadearam a necessidade de união entre escola e literatura, o que suscitou
um olhar mais sensível para os textos destinados às crianças.
Por ser o precursor da literatura infantil no Brasil, promotor de leitura e incentivador do desenvolvimento social, econômico e cultural do país, Lobato deu liberdade ao indivíduo para pensar a realidade com todas as suas complicações, questões essenciais, a partir de uma viagem imaginativa. Assim,
com uma forma de escrever prazerosa, ao mesmo tempo carregada de informações oriundas de
uma vasta informação intelectual, este autor convida o leitor à reflexão, bem como a estar em lugares, enxergar coisas, criar soluções, mesmo que sejam apenas possíveis por meio do plano ficcional.
Trabalhar com a obra desse autor por meio de oficinas de leitura realizadas nas escolas, como propõe o projeto de pesquisa Emília vai à Escola, constitui-se como uma relevante iniciativa, visto que
oferece ao aluno uma viajem pelo conhecimento de maneira lúdica, repleta de imaginação e significados. Ao desenvolver o prazer pela leitura, a obra de Monteiro Lobato leva-os a uma reflexão do
meio que os rodeia, mas sem perder o brilho e encanto proporcionado pela fantasia.
I - Monteiro lobato: um sujeito do seu tempo
Em uma enorme biblioteca na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, crescia Monteiro Lobato
mergulhado nos livros do seu avô, o Visconde de Tremembé, num sítio que lhe serviu de inspiração
para ótimas e inesquecíveis histórias. Compreendia por meio das palavras, o mundo a sua volta;
vislumbrava a cada dia um novo horizonte, cujo aprendizado formava uma pessoa determinada e
sonhadora. Um menino que troca o próprio nome – José Renato para José Bento - para usar a bengala do pai. Crescia, assim, um intelectual, empresário e editor, firmando com o Brasil, terra onde
nasceu, um compromisso nacionalista: a busca pelo desenvolvimento, motivado por uma vontade
tamanha de ver a nação caminhar com as suas próprias pernas. Mas, inicialmente, era necessário
despertar em cada ser humano a capacidade de acreditar em si mesmo para realização de projetos
maiores, a fim de, consequentemente, se poder contribuir para o crescimento cultural, social e
econômico do Brasil.
Monteiro Lobato também sofreu com as imposições sociais de seu tempo: queria ter cursado Belas
Artes, mas sob a tutela de seu avô, depois da morte dos seus pais, o jovem promissor se viu obrigado
50
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
a estudar Direito, aos dezoito anos. Naquele tempo, ter um diploma de médico, advogado ou engenheiro representava carreiras extremamente superiores e, por isso, muito almejadas pela sociedade. Mas, Lobato sempre carregou em seu íntimo o imenso desejo de se dedicar às artes plásticas. Ao
ocupar o cargo de promotor efetivo da Comarca de Areias, segundo Azevedo, Camargos e Sacchetta
(2001), sua estada ali o leva a meditar sobre a situação social daquelas regiões, abandonadas pelas
mesmas culturas cafeeiras que impulsionaram seu florescimento a partir de meados do século XIX.
Depois da morte do seu avô em 1911, o Visconde de Tremembé, Lobato recebe como herança a
fazenda Buquira. Seduzido, desiste da carreira de promotor para dedicar-se à vida de fazendeiro,
juntamente com sua família. Mesmo com essa nova e atarefada vida, ele continuou a escrever e a
publicar em jornais e revistas. Produziu, em 1917, o artigo “A Velha Praga” - um protesto contra as
queimadas que os caboclos faziam no interior paulista. Em meio às dificuldades econômicas enfrentadas na administração da fazenda, medita sobre a situação do caboclo; é nesta observação que
surge o “Jeca Tatu”, o homem da roça destinado à decadência. A partir desse personagem, formula e
logo depois reformula conceitos para explicar a situação em que esse indivíduo se encontra e como
ele age em sociedade.
“Os artigos em torno de problemas nacionais estimulavam debates, enquanto crescia sua preocupação
em desvendar a realidade de um Brasil desconhecido a que a intelectualidade teimava em dar as costas”.
(AZEVEDO, CAMARGO & SACCHETTA, 2001, p. 63)
Um Brasil, que desde os tempos da colônia, ainda estava voltado à contemplação da literatura europeia: as minorias de intelectuais aderiam a livros estrangeiros, tendo-os como modelos incontestáveis de boa literatura. Ainda que os escritores brasileiros escrevessem e publicassem, a falta de uma
quantidade significativa de leitores para os seus livros era enorme, em uma sociedade em que 80%
das pessoas eram analfabetas.
Lobato percebe a urgência em resgatar o elemento nativo brasileiro. Nas páginas de O Estado de S.
Paulo, o escritor defende que elementos do folclore europeu, que nada tem a ver com a identidade
cultural do Brasil, precisavam ser substituídos por elementos do folclore brasileiro como a caipora, o
boitatá, a Iara, o Saci, entre outros. Assim, surge um inquérito sobre a figura do Saci, no qual todos
estavam convocados a participar, contribuindo para contar como esse ser era fisicamente e como ele
se comportava. Foi um sucesso. Muitas pessoas escreveram cartas descrevendo a figura do Saci para
o jornal; mais tarde, fruto dessa pesquisa tão significativa, Lobato escreveria um livro sobre o Saci.
A partir de 1917, Monteiro Lobato se preocupou, também, em editar livros seus e de seus amigos;
para tanto, no mesmo ano, vendeu a fazenda para dedicar-se ao ramo da indústria editorial.
“Monteiro Lobato era em 1918 um modesto investidor que, estimulado pela experiência economicamente
positiva da sua primeira produção, a edição do livro Saci, resolveu empatar um capital no ramo de produção de livros.” (KOSHIYAMA, 2006, p.68).
Para a expansão da literatura brasileira, o empresário teve a preocupação em sugerir aos escritores
contemporâneos brasileiros que adotassem um estilo de escrever caracterizado como “bárbaro”:
um português que retratasse o verdadeiro idioma do povo brasileiro, caracterizado por uma escrita
simples e, consequentemente, capaz de permitir maior compreensão dentro do campo perceptivo
da maioria da população. Assim, esperava-se que as imitações às letras francesas fossem expurgadas, enquanto deveria entrar em vigor uma ascendência para a verdadeira realidade linguística
51
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
daquela sociedade.
Num gesto de ousadia, inimaginado para a época, A Monteiro Lobato & Cia, em 1921, possuía uma
rede com mais de trezentos vendedores, um enorme investimento que proporcionava o acesso fácil
às obras, mesmo nos locais mais afastados, o que permitiu que os brasileiros tivessem a possibilidade de começar a vencer as dificuldades que existiam na difusão de livros no território brasileiro.
Mas, para atender a demanda social e garantir uma renda econômica promissora, Monteiro Lobato
e o seu sócio Octalles Marcondes Ferreira investiram com prioridade no gênero didático. Para dar
maior solidez à editora, venderam para as escolas públicas do estado de São Paulo cinquenta mil
exemplares do livro “Narizinho arrebitado”; um verdadeiro sucesso aprovado pela a crítica e pelo
corpo docente.
A fim de aumentar o maquinário e a produção, em 1924, a Monteiro Lobato & Cia transforma-se
em Companhia Gráfica-Editora Monteiro Lobato. Mesmo com as várias dificuldades econômicas
enfrentadas na época, decorrentes de problemas como a revolução dos tenentes, o racionamento
de energia, a grande seca, sendo esta última o estopim para decretar a falência em 1925, Lobato não
desistiu deste ramo empresarial, nem do desejo de possibilitar sonhos a partir das histórias contadas pelos livros. Assim, em 1925, nasce a Companhia Editora Nacional considerada um sucesso para
o público com livros bem impressos e muita qualidade editorial.
Em 1927, foi nomeado por Washington Luís, adido comercial nos Estados Unidos, onde permanece até 1931. Lá, Monteiro Lobato é ainda mais inspirado pelo mundo da indústria e dos negócios.
Acreditava que o Brasil poderia render muito mais frutos internos, principalmente petróleo; embora
as instâncias federais desacreditassem, ou melhor, não se interessassem e acreditar nas potencialidades que o país possuía, conformando-se com uma economia de subserviência. Lobato, entretanto, estava ali para provar o potencial desse enorme território. Dessa maneira, cria a Companhia
Petróleos do Brasil, fazendo irromper o primeiro poço, coincidentemente numa localidade chamada
Lobato, na Bahia. No seu livro, O poço do Visconde, publicado em 1937, os personagens do sítio,
principalmente o Visconde de Sabugosa, defendem a existência do petróleo no Brasil, participam
ativamente da descoberta e irrompem poços de petróleo dentro das terras petrolíferas do Sítio do
Picapau Amarelo. Essa experiência não foi diferente da vida concreta. Uma história puramente real
e instigante...
Em seu livro A chave do Tamanho (1942), Lobato se mostra sensibilizado com o que estava acontecendo com o mundo, a Segunda Guerra Mundial fazia milhares de mortos e distribuía tristezas.
Emília, a figura mais travessa do autor, decide acabar com a guerra. Para isso, ela vai até a casa das
chaves teletransportada pelo superpó – uma espécie de pó mágico – e retira do lugar a chave do
tamanho. Imediatamente os seres humanos diminuem de tamanho, ficando menores do que uma
formiga; isso significou que de predadores, todos os habitantes da Terra passaram a ser presas. Uma
solução voltada ao plano fictício, mas também intimamente ligada a aspectos da realidade. Monteiro Lobato projeta a sua voz na pequena protagonista Emília para tentar solucionar os problemas
do mundo. No fim, a chave volta para o lugar, todos voltam ao tamanho normal e a humanidade
consegue conduzir os caminhos a seu favor.
A sensibilidade nacionalista em observar o Brasil daquela época, de ter um olhar crítico para evidenciar e de alguma forma tentar solucionar os problemas que o país estava passando, isto é, a crise
pela falta de desenvolvimento, fez de Lobato uma figura necessária para os vários passos que o país
deu rumo ao crescimento, um crescimento econômico e, sobretudo, intelectual. Nesse sentido, seus
biógrafos afirmam:
52
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
“Militante da causa do progresso, Monteiro Lobato percebeu acertadamente que só através dos jovens
seria possível apressar a modificação do mundo. Assim, deduzindo que ao influir na formação da criança,
contribuiria para construir o Brasil do futuro, ele resolve dedicar-se definitivamente aos livros infantis”
(AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 2001, p. 311).
Monteiro Lobato, enquanto sujeito do seu tempo, defendeu a sua autonomia a partir do momento
em que decidiu escolher o seu próprio nome, seu próprio caminho, seguir compartilhando sonhos,
falando o que pensava e fazendo o que achava certo. Possibilitou o direcionamento de um novo
olhar sobre as crianças e os jovens, um olhar sensível, mas ao mesmo tempo revolucionário.
II - A literatura infantil e a educação das crianças
A literatura infantil, antes do final do século XVII, praticamente não existia, não havia nenhum tipo
de texto ou histórias destinados às crianças. Ao invés de lerem, as crianças ocupavam o seu tempo
trabalhando nas indústrias, trabalho este considerado explorador, pois viviam em condições verdadeiramente desumanas. Houve então uma necessidade de se escrever para as crianças, destinar aos
pequenos outros tipos de textos e livros de acordo com a sua faixa etária. De certo, uma proposta
pedagógica e visionária.
A urgência em se estabelecer uma nova concepção de família, proporcionou à literatura infantil
e à escola, uma ascensão conjunta para a aplicação de ideologias dominantes, concernindo aos
pequenos verdadeiros manuais literários, com regras de boa conduta, princípios morais a serem
seguidos, mas não entendidos. Sim, verdadeiras normas a serem seguidas, impregnadas na cabeça
das crianças e dos jovens.
‘‘A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação de suas emoções. Literatura infantil e escola, inventada a
primeira e reformada a segunda, são convocadas para cumprir essa missão’’ (REGINA ZILBERMAN, 2003,
p. 15).
A literatura e a escola, na verdade, têm como objetivo humanitário proporcionar a representação do
mundo e fazer com que o indivíduo reflita sobre a sua condição nesse mundo. É preciso estimular
nesse indivíduo a capacidade da reflexão crítica, de entender o porquê das condutas morais que
seguem na sociedade, dos papeis destinados, de pensar sobre a diversidade como um todo. Nesse
sentido, a literatura infantil carrega uma responsabilidade enorme. É primeiramente ela quem vai
direcionar a criança para o mundo adulto, para a compreensão do real, mas de um modo diferente.
Assim, o interessante nessa arte destinada às crianças é a junção que ela faz entre o real e o imaginado, certamente esse misto, se torna imprescindível para a formação cognitiva da criança. O que
adianta uma história cheia de realidade e vazia de imaginação? Seria um mundo tão distante da
“realidade” da criança, ela se afastaria tanto das possibilidades que só ela poderia criar, se privaria
da emoção, do desejo e da tão necessária inocência de saber que ela em tão pouco pode tanto com
a imaginação.
Autores de contos como CharlesPerrault com a “Chapeuzinho Vermelho”, “A Bela Adormecida”, “O
Barba Azul”, “O Gato de Botas”, “Pequeno Polegar’’, etc.; os Irmãos Grimm e “A gata borralheira”,
“Branca de Neve”, “João e Maria”, etc.; Andersen com o seu “Patinho Feio”; La Fontaine com “O
Lobo e o Cordeiro”, entre outros, uniram a realidade com a fantasia para proporcionar às crianças
um mundo encantado, cheio de bruxas, fadas, animais falantes, monstros, verdadeiros seres mági53
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
cos. Eles não deixaram de passar uma mensagem ética, de representar um sistema de valores, em
que opõem o bem e o mal, alertam sobre as consequências horríveis sofridas por quem pratica o
mal e o bem que sempre vence de alguma maneira. Embora com todos esses valores que regem a
organização humana dentro de uma sociedade, não deixaram também de brincar com a imaginação,
passaram e ainda passam a mensagem dessa preparação para a vida adulta de maneira fantástica.
A fantasia se faz presente na literatura infantil e tem papel importante na iniciação de leitores
mirins. A criança sente-se atraída mais facilmente por aquilo que ela não é acostumada a ver dentro
da realidade cotidiana: fadas que realizam desejos instantaneamente como num passe de mágica,
porquinhos que falam e constroem casas, bruxas que voam em vassouras, casas construídas de
doces, duendes com seu pote de ouro no fim do arco-íris; enfim, um mundo diferente do que estão
acostumadas a ter contato. A possibilidade de imaginar um lugar novo, onde todas as coisas podem
acontecer, determina um espaço para a criança, no qual está apta a viver com tranquilidade.
A figura do adulto, com toda a sua ideologia, sempre aparece na maioria das histórias infantis como
um condutor para as linhas da realidade. Ao mesmo tempo em que oferece à criança a capacidade
de ver o mágico, oferece também condutas a serem seguidas, o que se constitui numa forma de
situá-la e de não deixá-la se perder apenas no mundo da imaginação desconectada, isto é, para
lembrá-la que, no fim de toda a aventura, por mais fantástica que seja, sempre deverá voltar para
casa, ou seja, sempre deverá voltar para a realidade.
Assim, a literatura infantil tem esse papel mediador entre o pedagógico e fantástico. Em outras
palavras, ao mesmo tempo em que orienta, preparando a criança ou o adolescente para a vida em
sociedade, fazendo-os perceber o seu lugar real, transporta-os para lugares e situações inimagináveis, por meio das palavras e/ou das ilustrações presentes nas histórias. Certamente, um convite
para ultrapassar os limites da realidade e se aproximarem de outras possibilidades, incrivelmente
surpreendentes, que o mundo real não os garante.
III - O sítio e a promoção da autonomia
Monteiro Lobato foi o precursor da literatura infantil no Brasil, foi ele quem deu uma nacionalidade
a essa literatura para crianças e também para os jovens, antes puramente vindas da Europa. Um
incentivador do progresso, Lobato desejava mudar o seu país. Dentre outros feitos, o mais inspirador foi quando enxergou nas crianças a solução para a mudança de uma futura realidade econômica
e social. A falta de iniciativa da sociedade brasileira, percebida pelo escritor, encorajou-o a tomar
atitudes para, de alguma forma, tentar subtrair a falta do desenvolvimento. Ao criticar condutas, ao
apontar algumas das possíveis soluções, Lobato se faz um escritor crítico, um empresário otimista
e um editor para os sonhos. Um cidadão brasileiro exemplar, verdadeiramente comprometido com
os rumos da nação.
Autonomia, do grego “autonomía”, que significa liberdade para usar leis próprias, independência,
possui um grande significado nas histórias infantis e juvenis de Monteiro Lobato. Essa autonomia
que o escritor promoveu entre as crianças - por meio de personagens como Narizinho, Pedrinho e
a Emília - garantiu um novo e necessário papel para elas. Ao tratá-las como seres independentes,
capazes de fazer as suas próprias escolhas, de participar ativamente na compreensão do mundo,
destacou uma capacidade antes ignorada; uma competência em opinar sobre as coisas que acontecem em redor e de buscarem uma solução para alguma situação que desaprovam, mesmo que seja
no plano da imaginação.
54
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
O Sítio do Picapau Amarelo é um lugar onde tudo pode acontecer, um lugar onde personagens clássicos dos contos europeus se encontram com os próprios personagens autênticos do Sítio, em que
existem animais falantes como Rabicó (porco) e o Quindim (Rinoceronte). Há também a Emília, uma
boneca de pano que ganhou vida e fala tudo o que pensa e se aventura para diversos lugares com
Narizinho, Pedrinho e um sabugo de milho chamado Visconde, além de outros personagens.
A figura adulta é representada ativamente por Dona Benta - a avó de Pedrinho e Narizinho -, por Tia
Nastácia - a cozinheira - cuja presença possui grande significado para todos, além do Visconde de
Sabugosa. O Visconde entra na categoria adulta por sua intelectualidade, não por sua estatura, pois
é menor que as outras crianças do Sítio. O adulto em Lobato não possui a autoridade que costumamos ver tanto na vida cotidiana, como nos diversos livros infantis e juvenis. Dona Benta, por exemplo, exprime um papel de mediadora do conhecimento, mas não impede as opiniões dos seus netos,
não os proíbe de realizar as suas aventuras fantásticas, está aberta a aceitar dentro das porteiras do
Sítio os amigos mágicos da turma. Diferentemente de algumas histórias infantis e juvenis, em que é
possível perceber essa figura adulta com a sua autoridade em alta, apenas situada no plano realístico, fora do mundo da imaginação da criança, sem entendê-la ou até mesmo sem deixá-la vivenciar,
no Sítio, tudo é possível.
Em seu livro Histórias do mundo para crianças, edição 2004, Monteiro Lobato viaja pela história
contando aos picapauzinhos os acontecimentos mais marcantes da história da humanidade, desde quando tudo começou com a teoria do “big-bang” até o mundo moderno. De certo, Narizinho,
Pedrinho, Emília e o Visconde ouvem nessas histórias contadas por Dona Benta, as maravilhas e os
desastres que aconteceram. Todos capazes de compreender e discutir sobre o que gostavam e o que
desaprovavam na construção social do mundo. Narizinho é a figura na qual Lobato investe a maior
sensibilidade para observar as desigualdades, a falta de humanidade:
“– Que coisa triste, vovó! Tão bom que foi Jesus Cristo, a ponto de morrer no suplício por amor a nós – e
os seus seguidores, na própria cidade onde ele estava enterrado, diante do seu próprio sepulcro, a transformaram as ruas em riachos de sangue... Cada vez mais me horrorizo com a estupidez dos homens. Que
imensos desgraçados...” (HISTÓRIAS DO MUNDO PARA CRIANÇAS, 2004, p.112).
Lobato não suprime o direito das crianças e dos adolescentes de avaliarem, de serem críticos, de
possuírem uma capacidade em perceber as várias nuances que o ser humano ou os fatos podem
ter. É interessante observar que a figura mais crítica das obras infantis e juvenis de Monteiro Lobato é a Emília. Por estar vinculada à figura de uma criança, por “estar situada apenas no plano da
imaginação”, ela deveria estar isenta desse tipo de (in)formação. Mas, não está. De uma maneira
simplificada, segundo os tramites da vida adulta, ela deveria ser puramente inocente, não pensar
ou interferir demais. O que ocorre é exatamente o contrário: tem um modo próprio de pensar sobre
todas as coisas.
Em “A Chave do Tamanho” há uma relatividade na questão do olhar dos seres “tamanhudos” e dos
seres pequenos sobre o seu estar no mundo. Segundo Thiago Valente:
“O mundo que se apresenta é extremamente próximo, porém pouco conhecido, pois não é visível aos
olhos dos seres “tamanhudos”. [...] O espaço assume papel relevante na estrutura da obra, à medida que
a relação dos homens com o meio é radicalmente alterada pela “reinação” de Emília.” (A chave do mundo:
o tamanho. In: Monteiro Lobato Livro a Livro, 2009, p.460).
55
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Quando de maneira democrática o pessoal do sítio realiza o plebiscito, apenas as crianças votam
contra a restauração do tamanho original das criaturas. Um olhar de inocência, mas ao mesmo
tempo de provocação ao “status” adulto, pois se trata de conscientização das barbaridades que o
homem pôde fazer em seu tamanho normal. Ao serem reduzidos, eles não conseguiriam segurar
nas armas causadoras de milhares de mortes; teriam que se adaptar aos perigos do lugar antes
familiar, submetendo-se a algo maior que a sua humanidade. Enquanto os adultos pensaram de
maneira racional sobre essa nova condição – votando a favor do seu estado normal – as crianças
foram românticas e não pensaram em si mesmas, encontrando uma saída para essa nova situação.
O imaginário e o real mantêm uma relação intimamente complementada no Sítio do Picapau Amarelo. O Sítio é o lugar da imaginação, um lugar onde tudo pode acontecer, ele existe no plano real
com todos os atributos que uma casinha além da porteira possui, mas, sobretudo, o que existe realmente acrescenta-se muito mais por meio da imaginação de seus moradores e dos leitores. Um jogo
com dois ingredientes extremamente necessários, tanto na formação da criança e do adolescente,
quanto no avivamento da imaginação no adulto. O real e o imaginado se completam numa terceira
realidade. Na verdade, Monteiro Lobato não pensou somente em seu público infantil e juvenil, ele
mostrou que todos podemos realizar os sonhos, por mais desacreditados que sejam na realidade.
Segundo ele mesmo diz, em “Miscelanea”: “Loucura? Sonho? Tudo é loucura ou sonho no começo.
Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira – mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” ( 1972, p.111)
IV - Projeto “Emília vai à escola” no ensino fundamental i
O projeto Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no Ensino
Fundamental I, partiu de uma primeira fase do Projeto Emília vai à Escola, ocorrida em 2008/2009,
quando foi empreendida uma pesquisa diagnóstica sobre as condições e práticas de leitura da obra
de Monteiro Lobato na Escola Municipal Franz Gedeon, em Jequié/BA. Essas ações investigativas são
promovidas pelo Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato – GPEL, ligado ao Centro de Estudas da
Leitura - CEL/UESB – Campus de Jequié.
Desde 2005, o GPEL vem atuando com os objetivos de colocar em prática as teorias da leitura por
prazer e estudar a recepção da obra do escritor paulista. A etapa de experimentos, iniciada em janeiro de 2014, tendo sua conclusão prevista para agosto de 2015, é realizada nos limites da pesquisa
etnográfica/experimental, por meio de oficinas com práticas de leitura da obra de Monteiro Lobato,
entre alunos de 1º ao 4º ano do Ensino Fundamental. Ao investigar a recepção, o diálogo dos pesquisados com os textos lobatianos, a pesquisa quer contribuir para a redução do quadro de deficiência,
observado previamente, no que se diz respeito à leitura e à formação de leitores no município de
Jequié/BA.
A pesquisa fora subdividida em duas etapas/campos de pesquisa: em 2014.2 as oficinas foram realizadas na Escola Municipal Franz Gedeon; em 2015.1 estão acontecendo no Ginásio Municipal Doutor Celi de Freitas. Em ambos os campos de pesquisa, foi observado um conhecimento prévio de
algumas histórias infantis e juvenis do autor, tanto por parte dos alunos como também dos professores, o que se deu por meio de programas televisivos, em suma.
Essa etapa do projeto proporcionou o contato na íntegra com os textos lobatianos, apresentando
algumas obras que eram e não eram conhecidas pelos alunos e professores. Através desses textos,
discutiram-se questões referentes aos valores sociais e morais para a formação de um ser huma56
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
no crítico e participativo. Por apresentar um vasto conteúdo intelectual, o trabalho com a obra de
Lobato é de caráter interdisciplinar, contribuindo consequentemente, para uma formação de conhecimento sobre o mundo. De maneira criativa, adentrando no campo da imaginação, realiza-se por
meio dessa obra um feito indispensável para despertar o gosto pela leitura e desenvolver a criatividade. Trabalhar com Monteiro Lobato possibilita aos seus leitores uma construção de sentidos, seja
exteriormente ou interiormente, o que garante efetividade na formação de um ser pensante, capaz
de compreender, imaginar, opinar, e, sobretudo, agir.
Dentre as intervenções do projeto, vamos destacar duas para ilustrar a tese de construção da autonomia: “A pílula falante” e “A chave do tamanho”.
A primeira intervenção, “A pílula falante”, baseada no livro Reinações de Narizinho Vol.1, foi realizada na Escola Municipal Franz Gedeon. Nessa oficina, os alunos conseguiram refletir sobre a necessidade de expressar opiniões, os pensamentos sobre os diversos assuntos que envolvem a sua posição
enquanto agentes da história dentro de uma sociedade. Por esse viés de discussão, eles concluíram
que o silêncio, nem sempre, é a melhor alternativa para conseguir o que se deseja e que, por conseguinte, a comunicação é fundamental para entender o meio em que se vive e compreender a si
mesmo.
Fonte: Arquivos GPEL/CEL/UESB – 2015 – Oficina “A pílula falante”
Na oficina intitulada “A chave do tamanho”, realizada no Ginásio Municipal Doutor Celi de Freitas
com alunos do 3º ano do Ensino Fundamental. Os investigados refletiram sobre a importância da
democracia para a tomada de decisões em favor de um bem comum. Os alunos fizeram uma votação
para decidirem - dentro do contexto do livro A Chave do Tamanho (2004) de Monteiro Lobato - se
a humanidade continuava reduzida de tamanho tendo que se adaptar a uma “Nova Ordem”, cuja
vida implicava perigos maiores sem serem os próprios humanos, ou voltar ao seu tamanho normal e
continuar a fazer os seus feitos grandiosos tanto para o bem quanto para o mal. A maioria escolheu
pela volta do tamanho, poucos optaram pela pequenez da humanidade. Esse resultado se organizou
pelo pensamento racional sobre a condição que os seres humanos devem ocupar na sociedade,
garantindo a sobrevida da civilização. Em vez de optarem na prática pela a diminuição do tamanho
para por fim aos males que afetam o mundo, conseguiram decidir por alternativas reais, revelando
disposição para atuar ativamente no combate contra as situações que promovam o silêncio e o
desfalecimento do indivíduo.
57
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Fonte: Arquivos GPEL/CEL/UESB - 2015- Oficina: “A chave do tamanho”
As duas oficinas, como as demais realizadas com o mesmo público pelo referido projeto de pesquisa,
terminaram apontando para um significado: é imprescindível que todos emitam a sua opinião, reivindiquem os seus direitos e lutem pelo o bem comum... inspirados pelos picapauzinhos...
Considerações finais
Neste trabalho, foi possível fazer uma breve apresentação sobre o autor, Monteiro Lobato, e seu
papel como sujeito de sua história e como agente transformador no campo editorial, especialmente, na literatura infantil e juvenil. Nesse sentido, desfiou um novelo de significados e eventos que
apontam para o fato de que sua ação inovadora nesse campo proporcionou uma leitura diferente
da criança – deu-lhe asas à imaginação ao mesmo tempo em que deu voz aos seus pensamentos e
incitou-as à reflexão crítica.
Alinhado a essa concepção de criança como sujeito e agente, o projeto de pesquisa em questão
também considera importante apostar no futuro adulto através do investimento, desde a infância,
na sua formação. Para alcançar esse resultado, entende que é necessário que existam estímulos no
campo da leitura e da reflexão – maneira como esses leitores de hoje se habilitem para assumirem
o papel de seres pensantes e atuantes numa sociedade degradada.
Assim, realizar oficinas com os livros infantis e juvenis de Monteiro Lobato, como faz projeto Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no Ensino Fundamental
I, mobiliza a construção do conhecimento e promove a percepção autônoma entre a criança e o
jovem – pré-requisitos para se constituírem cidadãos e para se tornarem agentes do amanhã, isto
é, buscarem sempre um lugar melhor para se viver e compartilhar.
58
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KHÉDE. Sonia Salomão. Personagens da literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Ática S.A., 1990.
KOSHIYAMA, Alice Mitika. Monteiro Lobato: intelectual, empresário, editor. São Paulo: Edusp: ComArte, 2006. (Coleção Memória Editorial, 4).
LAJOLO, Marisa & CENCCANTINI, João Luís (Orgs). Monteiro Lobato: livro a livro. São Paulo. Editora
UNESP, 2008.
LOBATO, Monteiro. A Chave do Tamanho. São Paulo: Brasiliense, 2004.
_________________ Fábulas. São Paulo: Editora: Brasiliense, 50ª edição, 1994.
_________________ Histórias Diversas. São Paulo: Brasiliense, 16ª edição, 1994.
_________________ Histórias do mundo para crianças. São Paulo: Brasiliense, 2004.
_________________ O Picapau Amarelo. São Paulo: Brasiliense, 34ª edição, 1994.
_________________ Miscelanea. São Paulo: Brasiliense, 1972.
ZILBERMAN. Regina. A literatura Infantil na Escola. Ed. 11. São Paulo: Global, 2003.
59
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Da literatura aos quadrinhos: possibilidades de leitura hoje
Patrícia Kátia da Costa Pina14
RESUMO:
Traduzir ou adaptar textos literários para quadrinhos já uma prática intrínseca ao mundo contemporâneo, e, na procura pelo entendimento dos processos que envolvem essa prática, estudiosos consideram diferentes olhares epistemológicos e metodológicos. Sendo assim, o objetivo deste artigo é
realizar uma resumida revisão de literatura crítica dos principais estudos teóricos realizados na área
da tradução/adaptação, discutindo a adaptação como uma leitura, uma interpretação.
Palavras-chave: Adaptação. Quadrinhos. Leitura.
ABSTRACT:
Translating or adapting literary works for comic strips is already a cultural practice intrinsic to the contemporary world
and, in the search for the understanding of the processes involved in this practice, scholars take into account different
epistemological and methodological views. Therefore, this article aims at constructing a summary critical review of the
main theoretical criticism carried out in the area of translation/adaptation, discussing the adaptation as a lecture, an
interpretation.
Keywords: Adaptation. Comic strips. Lecture.
14 Doutora em Literatura Comparada (UERJ, 2000), com Pós-Doutorado em Letras Vernáculas (UFRJ, 2010).
Professora Titular de Literatura Brasileira, Departamento de Ciências Humanas, Campus VI e Professora do
corpo permanente do Mestrado em Crítica Cultural, UNEB, Campus II.
60
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Primeiras palavras
Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos
ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido.
PROUST, 2011, p.9
Em 1905, Marcel Proust, grande escritor francês, publicou um texto acerca da importância da leitura em sua vida – dele tirei a epígrafe. Quero iluminar um aspecto que se destaca no trecho acima:
Proust mostra a leitura como algo, simultaneamente, alheio à vida e construtor de experiências
inesquecíveis.
Quando lemos um bom livro, parece que não estamos fazendo nada, que não estamos vivendo.
Muitos professores afirmam, nas várias oficinas que venho ministrando, que não têm tempo para
ler textos diferentes daqueles que trabalharão em sala de aula. Vários estudantes, também nessas
oficinas, declaram que não têm dinheiro para comprar livros e que não têm tempo para ler obras
inteiras, nem as que os professores solicitam.
Tempo e dinheiro são fatores que realmente interferem na construção do prazer de ler. Mas a leitura
hoje não depende tanto assim de muitas horas livres, nem de verba extra para a compra de livros. A
web ajuda muito: no “Domínio Público”, pelo computador da escola ou em uma lan house, podemos
“baixar” gratuitamente obras completas, ou apenas poemas, contos, crônicas, textos dramáticos.
Blog’s, páginas do facebook, sites poéticos, sempre disponibilizam, gratuitamente, aquilo que chamo de “pílulas poéticas”: pequenos textos, de leitura rápida, para deleite e reflexão.
O que falta é, na verdade, que professores e estudantes percebam que, quando lemos, estamos
criando vivências afetivas muito fortes, que podem nos transformar e mudar nossa forma de ver o
mundo a nossa volta. Eliana Yunes, uma das maiores pesquisadoras brasileiras sobre leitura, e uma
apaixonada pela literatura, afirma:“...a leitura é como a memória, uma prática que dribla o esquecimento e provoca o discreto, e ainda contribui para imprimirmos uma marca pessoal e política a
nossos atos e qualidade à nossa assinatura.”(YUNES, 2009, p.26).
A leitura da literatura, quando feita prazerosamente, em exercício de liberdade imaginativa, produz
um vínculo emocional forte entre o leitor e o texto. De certa forma, a leitura de um bom poema,
conto ou romance pode fazer com que o leitor traga para si características e experiências que jamais
poderia ter, não fosse a leitura. Isso enriquece a identidade do leitor e lhe confere uma nova “assinatura”, isto é, mais autonomia, mais confiança, mais criticidade.
É muito importante que se construa uma cumplicidade entre professores e alunos, para que
a literatura se torne, outra vez, um instrumento de formação de leitores, de formação do gosto
pela leitura. Nesse processo, o professor, por ser mais experiente, precisa desenvolver estratégias
que aproximem o estudante do texto. Vejo nas adaptações quadrinísticas, abordadas em sua
artisticidade, um forte instrumento de potencialização e desenvolvimento de variadas habilidades
e competências de leitura.
Como “seduzir” uma criança ou um jovem para a leitura literária hoje? Os estudantes pertencem a
um universo – muitas vezes negado por nós – em que as sociabilidades são rápidas e fragmentadas:
ler um livro de duzentas páginas implica abrir mão de jogos, esportes, namoro, filmes, DIVERSÃO.
A Escola em geral não dá o exemplo: para a Escola a leitura não é prazer e entretenimento, é dever,
61
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
obrigação, às vezes, punição. Urge mudarmos essa situação.
Neste artigo, discuto as adaptações quadrinísticas de textos literários como formas dialógicas e movimentos transculturais, como processo e produto, como repetição e mudança. Abordo-as enquanto
subversão e, simultaneamente, interpretação contemporânea do cânone. Entendo-as como leituras
transversais e criativas.
Um primeiro ponto a ser discutido é a definição dessas adaptações como mídia e,ou linguagem distintas daquelas que caracterizam o texto literário. Outra questão relevante refere-se a uma possível
subalternidade do quadrinístico ante o literário.
As adaptações não são invenções contemporâneas. Para Hutcheon (2013, p.10), “[...] a adaptação é
(e sempre foi) central para a imaginação humana em todas as culturas. Nós não apenas contamos,
como também recontamos nossas histórias.” Enquanto dispúnhamos de mídias limitadas, como
nosso corpo, nossa voz, posteriormente manuscritos e impressos, o ato de contar e recontar era
“natural” e incorporava-se às práticas comuns de sociabilidade.
Nos últimos cem anos, pelo menos, os avanços técnicos e tecnológicos complexificaram as formas
de narrar nossas histórias. Fotografias narram concisa e rapidamente cenas que a pintura levaria
meses para fixar; o cinema acelerou as representações fotográficas e, no correr das décadas, incorporou inúmeros recursos transformadores ao ato de narrar; o rádio estabeleceu diferentes ordens
narrativas e viabilizou sua divulgação entre indivíduos letrados e iletrados; a TV releu (e ainda relê)
inúmeras e variadas formas de contar. Os quadrinhos nasceram com a reprodutibilidade do impresso e seu consumo amplificado, mesclando estratégias verbais e não verbais de interação com diferenciados segmentos de público e narrando visualmente variados tipos de histórias.
Se, até o século XIX, a voz humana e a literatura contavam histórias, no século XX, o cinema, o rádio,
a TV, os quadrinhos assumiram essa função, adaptando-a a suas peculiaridades. Hoje, as histórias
também são contadas pelo computador (facebook, blog, vlog etc.), pelo celular (torpedos, whatsapp
etc.), por games acoplados à TV ou ao computador (ou salvos no celular ou no tablet). São inúmeros
os meios para contarmos e recontarmos histórias.
Tais mídias funcionam através de linguagens específicas, que podem interagir entre si. Cada linguagem é marcada por estratégias de interação com variados segmentos de públicos, com repertórios,
competências e expectativas múltiplas e diferenciadas.
A literatura não acabou: ela continua contando suas histórias. Muitas vezes, tramas inicialmente
contadas pelo cinema ou pelos quadrinhos, por exemplo. Outras vezes, as histórias que ela conta
são recontadas por outras mídias, em outras linguagens. É que, no século XXI, a literatura não está
mais só na substituição do corpo do narrador (mídia primeira), sua voz participa de um concerto
maior, marcado pela diversidade e pela interação.
As adaptações quadrinísticas interagem com o cânone literário não na perspectiva de mídias diferentes: quadrinhos, romances, contos, poemas pertencem ao mesmo meio – o impresso, prioritariamente. Isso porque há quadrinhos na internet, como há narrativas, curtas e longas, e textos
poéticos, criados e lidos em ambiente virtual.
Neste artigo, me ocupo das adaptações quadrinísticas em mídia impressa. Tradicionalmente, a literatura também é veiculada por mídia impressa (não me refiro à literatura oral). Assim, lido não com
suportes e mídias diferentes, mas com linguagens diversas, consequentemente, com estratégias
artísticas distintas: embora os textos literários representem valores consagrados e a inovação qua62
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
drinística os ponha em xeque, não entendo sua comparação como instrumento de hierarquização. E
não busco na adaptação uma reprodução da literatura.
Aqui, a perspectiva sobre essas duas linguagens está direcionada a discuti-las enquanto objetos de
leitura. Assim, proponho uma abordagem da relação entre o texto adaptado e o texto adaptante na
perspectiva intertextual: “A intertextualidade e a dialogicidade ajudam a transcender os limites do
conceito de fidelidade.” (AMORIM, 2013, p.21). Por texto adaptado entendo aquele que é objeto de
leitura, interpretação; por texto adaptante, aquele que opera sobre outro sua ação interpretativa,
tradutora.
A adaptação é implicitamente comparativa: ela relaciona, confronta, tensiona, aproxima e afasta.
Mas ela não hierarquiza. Ela desmonta, mas não apaga. A adaptação é interação – enfrentamento,
mas conexão.
Caminhos para a reflexão
Há, em síntese, três abordagens possíveis para o estudo da adaptação hoje: a Tradução Intersemiótica (doravante TI), iniciada no século XX, com Jakobson; a Teoria da Adaptação (doravante TA), com
destaque para a perspectiva de Stam e Hutcheon e a Teoria da Adaptação Intercultural (doravante
TAI), com ecos da TA.
A perspectiva contemporânea da TI define adaptação como tradução e esta como uma apropriação
reconfiguradora da tradição. Apoiado em Peirce, Plaza (2003, p.30) afirma que a tradução recupera
o passado por afinidade eletiva: “[...] leitura, tradução, crítica e análise são operações simultâneas,
embutidas e/ou paralelas que serão sintetizadas na tradução.”
Traduzir, nesse prisma, é ler. E ler é bem mais que decifrar caracteres escritos ou impressos: é interpretar. É colocar em interação identidades e diferenças, é ter sobre o objeto uma perspectiva temporal, cultural.
Sendo o signo artístico um signo icônico – signo-em –, ele provoca semelhança, sua tradução lembra, por analogia: “A Tradução Icônica produzirá significados sob a forma de qualidades e de aparências entre ela própria e seu original. Será uma transcriação.” (PLAZA, 2003, p.93) Assim, a tradução
intersemiótica de natureza artítica, como é o caso das traduções quadrinísticas de textos literários,
atravessam os textos de partida, subvertendo-os, mas não os apagam, nem se subordinam a suas
semioses possíveis.
Para Plaza, cada sistema de sinais tem uma especificidade que interage com os sentidos humanos.
As linguagens organizam o olhar que as lê. E as traduções intersemióticas não apresentam sentidos
plenos, não são definitivas:
Cada sentido capta o real de forma diferenciada e as linguagens abstraem ainda mais o real, passando-nos
uma noção de realidade sempre abstrata que possibilita que as linguagens adquiram toda uma dimensão
concreta na sua realidade signica. (PLAZA, 2003, p.47)
As linguagens contactam, sintonizam e atualizam nossos sentidos e nossa capacidade de entrar na
cadeia de semiose. Ao interagirem entre si, as linguagens, associadas às características das mídias
que as suportam e veiculam, transformam e potencializam a cadeia semiótica.
As traduções, como resultados desse processo de transcodificação, multiplicam suas potencialida63
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
des nas relações signo-signo, viabilizando mudanças de consciência, ampliando as capacidades de
leitura – subversão, interpretação, enfrentamento.
Na perspectiva dos teóricos da TI, não há obras-fonte: há textos de partida e textos de chegada.
Além da nomearem os textos envolvidos no processo, situando-os de forma relacional, essas expressões descentralizam e relativizam as hierarquias tradicionais.
Partilhando a ideia de que o texto de chegada é uma leitura do texto de partida, a TA define as
adaptações como dialogismo intertextual: infinitude de possibilidades de disseminação dos textos
artísticos. Para Stam (2003, p.227),
A intertextualidade interessa-se menos pelas essências e definições taxonômicas que pela ‘interanimação’
processual entre os textos. [...]. A intertextualidade é mais ativa, pensando o artista como um agente que
dinamicamente orquestra textos e discursos preexistentes. Em terceiro lugar, a intertextualidade não se
limita a um único meio; ela autoriza relações dialógicas com outros meios e artes, tanto populares como
eruditos.
Alargando as margens da teoria dos gêneros, no âmbito textual, a intertextualidade lida com o potencial multidimensional das histórias contadas por diferentes mídias e linguagens. Mesmo as técnicas
de um dado texto podem apontar para a intertextualidade, o diálogo entre textualidades diferentes.
A “fidelidade” ao texto de partida é relativizada : “As adaptações localizam-se, por definição, em
meio ao contínuo turbilhão da transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um
processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação, sem um claro ponto de origem.”
(STAM, 2003, p.234)
A perspectiva acerca da definição de adaptação como transmutação, aqui, difere da descrita no
âmbito da TI: naquela, a transmutação refere-se à cadeia signo-de-signo; na ótica da TA, refere-se à
qualidade das transformações de um texto sobre outro. Stam discute de Bakhtin a Genette, enfocando adaptações cinematográficas e rechaçando sua desvalorização como menores e derivadas. Para
ele, “[...] uma adaptação não é tanto a ressuscitação de uma palavra original, mas uma volta num
processo dialógico em andamento.”(STAM, 2008, p.21)
De acordo com essa abordagem, a adaptação é leitura: interpretação que agrega questões de mídia
e de linguagem. Aproximando-se da TI, simultaneamente se afasta, por não se ocupar desse processo no âmbito do signo, mas por focar em múltiplos intertextos. Assim, Stam aponta que a arte tem
uma natureza palimpsestica e multifacetada. Sua discussão tem raízes desconstrutivistas.
Ecoando Stam, Hutcheon propõe o enfoque das adaptações sob três aspectos: produto formal, processo de criação e processo de recepção. Para a pesquisadora, traduções e adaptações são movimentos transculturais que implicam significados novos e diferentes, que repetem, sem replicar –
repetem mudando:
[...] a adaptação é uma forma de intertextualidade, nós experienciamos a adaptação (enquanto adaptação) como palimpsestos por meio da lembrança de outras obras que ressoam através da repetição com
variação. (HUTCHEON, 2013, p.30)
Stam e Hutcheon associam adaptações a palimpsestos. Na definição de Figueiredo (2010, p.1461),
palimpsesto é “Manuscrito em pergaminho, raspado por copistas da Idade-Média, para dar lugar
64
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
a nova escrita, debaixo da qual se tem conseguido modernamente avivar os primeiros caracteres.”
O ressoar do texto adaptado, aquilo que atesta ou insinua sua existência no texto adaptante, traz
uma nuance interessante para a discussão: coloca o adaptador como intérprete e agrega à intertextualidade a perspectiva de relacionamento de temporalidades e pertencimentos diferentes em
interação.
Assim, enquanto produto formal, a adaptação transcodifica, mas não apaga o código adaptado;
enquanto processo de criação, a adaptação situa-se como elo na cadeia discursiva; enquanto processo de recepção, o texto adaptante demanda a interlocução ativa com o leitor.
Para Hutcheon (2013, p.13-43), há três modos de interação entre textos: contar, mostrar, interagir. O
primeiro ocorre prioritariamente entre textos de mesma mídia – caso das relações entre quadrinhos
e literatura, que colocam em interação temporalidades e pertencimentos diversos.
O mostrar traz características performáticas, o interagir formata as relações midiáticas e intermidiáticas contemporâneas. Os três modos dependem da interlocução texto/leitor, de maneiras distintas.
A pesquisadora destaca que a identidade hermenêutica das adaptações está na relação intertextual
construída pelos variados tipos e segmentos de público, pois depende de repertórios e expectativas
individuais e coletivas.
Stam e Hutcheon anunciam relações interculturais no âmbito das adaptações. O primeiro o faz definindo a adaptação por uma “[...] natureza palimpsestica multifacetada[...]”(STAM, 2008, p.35): os
textos transitam por culturas, dialogam com elas. Hutcheon discute uma teoria da indigenização,
partindo do pressuposto de que o adaptador responde por um dado contexto, mas ressalta: “Para
uma adaptação, entretanto, o contexto de recepção é tão importante quanto o contexto de criação.”
(HUTCHEON, 2013, p.200)
Nessa perspectiva, a interculturalidade nas adaptações implica um trabalho que transcende as
amarras da palavra e demanda o concurso de múltiplos aspectos das diferentes linguagens. A indigenização pode ocorrer tanto entre culturas diferentes, como entre linguagens e mídias de temporalidades diversas:
Cada nova versão indigenizada de uma história compete com as demais – tal qual os genes – , mas agora
pela atenção do público, por tempo no rádio e na televisão, ou por espaço nas prateleiras de livros. Mas
cada uma delas se adapta ao seu ambiente e o explora, e assim a história vive, através de suas ‘crias’ –
iguais, porém diferentes. (HUTCHEON, 2013, p.224)
A comparação – sem hierarquização – entre textos adaptados e textos adaptantes é trabalhada
como instrumento de leitura, seja no ponto da criação, seja no da recepção. Amorim, ao discutir
Venutti, aponta que a TAI não considera a perspectiva comparativa, definindo tradução como comunicação transcultural: a cultura de chegada age sobre a cultura de partida, recontextualizando-a
(AMORIM, 2013, p.24-25).
Enquanto Stam e Hutcheon enfatizam a lateralidade dos textos adaptados e dos adaptantes, Venutti
centra sua reflexão nestes, sugerindo sua superioridade sobre aqueles. Mas é importante ressaltar
que, também sob o olhar da TAI, traduzir é ler.
Essa sumária e necessariamente redutora discussão acerca das formas de estudar as adaptações
mostra que os principais teóricos da área colocam o movimento tradutor ou adaptador como ato de
leitura, ato interpretativo. Textos de partida leem textos de chegada, textos adaptados são interpre65
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
tados por textos adaptantes, quaisquer que sejam as mídias e,ou as linguagens.
Situando minha abordagem, neste artigo, prioritariamente no âmbito da TA, proponho o uso da
distinção texto adaptado e texto adaptante: isso porque discuto a perspectiva da adaptação como
produto e processo. O processo da adaptação, em minha perspectiva, resulta em um texto adaptante. Faço essa ressalva, porque concordo com a ideia que a TI propõe: a tradução não é produto
acabado, é uma interpretação, um elo na cadeia semiótica. Ao propor, então, a nomeação dos textos
envolvidos no processo como texto adaptado e texto adaptante, quero discutir a perspectiva da TA
e enfatizar a relevância de se entender a adaptação como tessitura.
Casos em aberto: quadrinhos lendo literatura
Tessitura implica organização, contextura (FIGUEIREDO, 2010, p.1968). Os quadrinhos, ao se entrelaçarem à literatura, reorganizam-na, atravessam-na, por uma linguagem híbrida. A linguagem dos
quadrinhos não é uma junção genérica de verbal e não verbal: o verbal é configurado pelo não verbal e vice-versa.
As palavras impressas significam também como imagens: o tamanho das letras, a cor, o traço, o formato, a colocação no interior da vinheta, agregam sentidos variados e interferem na interlocução
com o leitor. Por outro lado, cores, traços, formas, intervalos entre vinhetas, focalização de cenas e
personagens, enriquecem o não verbal, complexificando suas potencialidades significativas.
No processo da adaptação quadrinística, o texto adaptante reconfigura o texto adaptado em níveis
e graus variados, o que resulta em um espessamento da relação texto adaptante-leitor. A adaptação
quadrinística de textos literários é uma forma de produção artística que se expõe como intervalar,
pois em sua própria denominação conjuga duas linguagens originalmente polarizadas.
A literatura pertenceu tradicionalmente aos segmentos sociais privilegiados, mais recentemente,
com as transformações sociais, políticas e econômicas decorrentes da Revolução Francesa em todo
o mundo ocidental, os textos literários ganharam novos públicos. Os quadrinhos, por sua vez, são
fruto da sociedade capitalista, industrial, podendo representar a “perda da aura” a que Benjamin(
1985, p.168-169) se refere:
[...] o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica
da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a
reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. [grifo do autor]
As obras poéticas, narrativas e dramáticas, mesmo sendo publicadas inúmeras vezes e em variadas edições, direcionadas a públicos diferenciados, mantém-se as mesmas. A reprodução gráfica,
dependendo dos protocolos de edição, pode, certamente, afetar de alguma maneira o texto, mas,
em geral, ele é preservado em sua integridade original (CHARTIER, 1996, p. 96). As edições podem
agregar valores e sentidos, mas não alteram a palavra impressa, a menos que se assumam como
adaptações, resumos, traduções.
Quando ocorre um processo de adaptação, os sujeitos nele envolvidos recriam o texto literário, de
acordo com suas perspectivas. No caso das adaptações quadrinísticas, geralmente o processo dialógico se amplifica: há roteiristas, desenhistas, coloristas etc. Alguns volumes apresentam somente
um adaptador, outros trazem um grupo, sem nomeação específica.
66
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Os quadrinhos partilham com a literatura algumas peculiaridades de linguagem: são narrativas ficcionais, logo, trabalham com personagens, ambiente/espaço, tempo, narrador, foco narrativo etc.
Mas esses elementos partilhados são adaptados para o hibridismo da linguagem quadrinística: são
construídos visualmente. É comum a perspectiva de que a linguagem da HQ mistura verbal e não
verbal. É mais que isso: na linguagem dos quadrinhos, o não verbal lê incessantemente o verbal.
Segundo Vergueiro (2009, p.22),
[...] a interligação do texto com a imagem, existente nas histórias em quadrinhos, amplia a compreensão
de conceitos de uma forma que qualquer um dos códigos, isoladamente, teria dificuldades para atingir.
Na medida em que essa interligação texto/imagem ocorre nos quadrinhos com uma dinâmica própria e
complementar, representa muito mais do que o simples acréscimo de uma linguagem a outra – como
acontece, por exemplo, nos livros ilustrados –, mas a criação de um novo nível de comunicação [...].
Esse novo nível de comunicação a que o pesquisador se refere aponta para aquela incompletude
permanente da adaptação, discutida acima. O texto adaptante, em sua densidade, intensifica suas
relações com o leitor: os quadrinhos trazem estratégias visuais de narrativa que encenam estratégias literárias e/ou cinematográficas, recursos fotográficos, de computação gráfica, mas que de tudo
isso se distinguem, mesmo lidando com o realismo, a observação, o naturalismo dos detalhes.
Essas ferramentas narrativas quadrinísticas correspondem a outras tantas ferramentas próprias de
outras linguagens, mas não nascem delas, nem delas dependem. As imagens quadrinísticas, por
serem estáticas, por colocarem em interação elementos diferenciados, captam e provocam mais
intensamente a atenção do leitor.
Para McCloud (2008, p. 3), “[...] o olhar do leitor é guiado de quadrinho em quadrinho e é como
sua mente é persuadida a dar importância ao que vê.” As marcas da linguagem quadrinística têm
função persuasiva, exatamente por estarem combinadas para criação dos efeitos desejados pelos
quadrinistas.
Cada linguagem é uma linguagem, cada obra tem sua natureza artística. Repetindo sem replicar,
repetindo e transmutando, as adaptações quadrinísticas de textos literários atraem as crianças e os
jovens para o mundo do impresso, fazem-nos manusear belas edições, levam-nos a usar seu tempo
percorrendo o papel com os olhos encantados pelas cores, pelos traços, pelos balões.
Segundo Zeni (2009, p. 141),
A adaptação é uma leitura que se transpõe em releitura e, com essa releitura, alguns elementos estruturadores do texto de origem ganham destaque e, por consequência, reapresentam a estrutura do texto
original e sua relação com o conteúdo e com a forma, trazendo uma nova, porém não definitiva, leitura
para a obra original.
O processo de releitura a que o pesquisador se refere confere ao texto adaptante o compromisso de
estabelecer a diferença: o olhar dos adaptadores é sempre seletivo, combinatório e auto expositivo
– a adaptação se expõe como tal desde a capa. Isso me remete às colocações de Hutcheon acerca da
intertextualidade das adaptações.
Para a pesquisadora, em fragmento anteriormente citado, para a relação entre o texto adaptante e
o leitor se efetivar como leitura de uma adaptação, este precisa ter consciência de que lê um texto
que também é uma leitura. E por ser uma leitura, esse texto adaptante é inovador, diferente autôno67
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
mo: “[...] os adaptadores são primeiramente intérpretes, depois criadores.”(HUTCHEON, 2013, p.43)
Interpretação e criação presidem o ato da leitura adaptante e também o ato da leitura da adaptação
pelo público.
Para situar as reflexões precedentes, proponho uma leitura: a da adaptação quadrinística do livro Os
sertões, de Euclides da Cunha, sob a perspectiva de um aspecto visual bastante importante para a
linguagem dos quadrinhos – as cores. Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa (2010), respectivamente roteirista e ilustrador, oferecem aos leitores de todas as idades e tamanhos a sua leitura da obra euclidiana. Escolheram a parte mais envolvente, porque concentra a ação do texto adaptado. Mas não
pararam aí. Mesclaram ao texto de Os sertões anotações do Diário de expedição, do mesmo autor.
Essa informação é muito importante para situar o leitor no diálogo com texto adaptante: além de
ser um recorte do texto adaptado, ele interage com outros escritos do autor – e é o primeiro ponto
em que o texto adaptante se expõe como tal, viabilizando o reconhecimento e o exercício da leitura
intertextual. Ou seja: nessa adaptação, o leitor entrará em contato com elementos fundamentadores e explicativos do texto adaptado, os quais subsidiam a apropriação feita pelo roteirista e pelo
ilustrador.
A imagem da capa é significativa quanto ao uso das cores. A paleta escolhida para a apresentação
do volume reúne amarelo, vermelho, roxo, marrom e preto. São cores fortes, que fecham a imagem.
Há uma remissão imediata ao universo sertanejo: o marrom e o vermelho terroso lembram o chão
gretado pela seca; o roxo e o preto na roupa do Conselheiro remetem a rituais religiosos católicos de
luto; o amarelo ao fundo aponta para o entardecer quente do sertão, ao sol que se põe.
Mas as cores trazem significações culturais que nos induzem a formas específicas de interação com
as imagens. O amarelo, por exemplo, tem uma simbologia tradicional de alerta – esse é seu uso nos
semáforos. Em muitas culturas, no entanto, o amarelo representa a loucura, a traição (GUIMARÃES,
2000, p. 89). Os adaptadores “acomodam culturalmente” o texto adaptado às perspectivas contemporâneas, indigenizando-o historicamente (HUTCHEON, 2013, p.200-224).
O preto, associado à escuridão da noite, suscita o medo e remete ao desconhecido – culturalmente,
pode ser relacionado a situações de protesto, transgressão. A cor é um instrumento de comunicação, sua escolha se propõe a um contato entre o repertório de conhecimentos e saberes do sujeito
que a usa e do sujeito a quem seu uso se destina. Assim, o uso parcial do preto nessa imagem da
capa, em situação de sombra, conduz a leitura da cena para o mistério, para um mundo inóspito.
Ao lado do preto, na representação do Conselheiro, aparece o roxo. Trata-se de uma cor obtida pela
mistura das cores primárias azul e vermelho. Sua simbologia está associada ao misticismo, ao luto
católico da Quaresma, à espiritualidade. Representa a transformação espiritualizada trazida pela
morte.
O vermelho, tradicionalmente associado à paixão e ao poder, no tom terroso com que aparece na
imagem da capa, traz a ideia de interdição, força, guerra. Politicamente, é a cor das revoluções.
A combinação dessa paleta de cores insere o leitor no universo místico, político e violento da guerra
de Canudos, ressignificando a prosa euclidiana. E o leitor já foi avisado, por elementos verbais da
capa, que lê um texto adaptante – ou seja, que lê uma releitura de um texto da tradição literária.
Os adaptadores não param aí. Quase todo o texto adaptante é construído a partir do contraste
preto-branco: desde as primeiras páginas, que representam a traição da esposa de Antônio Conselheiro, fato que o levou à vida mística e transgressora, juntando seguidores por todo o sertão, até a
68
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
página 67, quando é representado o início do massacre de Canudos, todas as vinhetas aparecem em
preto e branco.
Essa seleção cromática polarizada – o preto como a reunião de todas as cores; o branco como a
ausência de cores – traz uma simbologia específica: o bem e o mal entrelaçados em todas as situações. Da página 68 até a página final, as cores usadas na capa são desdobradas. Na página 68, o
marrom convive com o preto e o branco, lembrando o chão sertanejo.
Na página 69, os adaptadores introduzem o vermelho terroso, lembrando o sangue que se mistura
com a terra. As páginas 70 e 71 explodem em vermelho, preto e amarelo, representando a queima
da aldeia do beato. Daí em diante, predomina o vermelho, acompanhado de perto pelo amarelo,
marrom e preto. O fundo das páginas aparece em marrom claro, ainda remetendo o leitor à terra
seca do sertão. A última página do texto adaptante insere uma nova cor: o azul, das tropas governamentais.
Pelas cores, o leitor é inserido no mundo de coerção e violência em que viveram Antônio Conselheiro e seus fiéis seguidores. Como prendem de imediato a atenção de crianças e jovens, as cores
constroem ambientes e situações de forma bastante significativa. No processo da adaptação, esse
instrumento da linguagem quadrinística traz implícita a leitura prévia dos adaptadores e viabiliza o
processo de interpretação por parte dos leitores do texto adaptante.
Em geral, as adaptações de textos literários para os quadrinhos fazem uso desde a capa de paletas
de cores básicas significativas para a recriação do texto adaptado por elas propostas. Normalmente,
na capa, estão as cores que serão prioritárias para a leitura.
Outro texto adaptante a ser discutido: Jubiabá, de Jorge Amado, leitura feita por Spacca(2009),
joga com seis cores fundamentais para o desenvolvimento da trama adaptada: marrom, verde, azul,
rosa, vermelho e preto. A capa do volume apresenta um casal caminhando por uma rua, cujo chão
está parcialmente iluminado. Acima, a placa de um bar. Abaixo, no canto inferior, o título do texto
adaptante.
O texto adaptado conta a história de Balduíno, um menino pobre, negro, que nasceu em Salvador
no início do século XX, enfrentando as dificuldades da miséria e de sua origem étnica. Amparado por
Pai Jubiabá, o pai de santo que cuidava dos fiéis do Morro do Capa Negro, Baldo, após perder a tia
que o criava, é levado a viver com uma família branca e abastada, fora do morro. Na adolescência,
comete o “crime” de se apaixonar pela jovem filha de seus “benfeitores”, é posto na rua, entra na
marginalidade para sobreviver.
Mas Baldo cresce, transforma-se em um vitorioso lutador de boxe, estivador do Cais do Porto, grevista consciente dos direitos dos trabalhadores. Nesse meio tempo, faz muitos amigos e inimigos,
ama, trai e é traído, aprende bastante com Hans, seu amigo marinheiro.
O marrom da pele de Baldo faz parte da placa de seu bar predileto – o Lanterna dos Afogados. Além
de representar a marca étnica das populações afro-brasileiras baianas, o marrom é fruto da combinação de ciano, magenta e amarelo. É a cor da terra também. Representa no texto adaptante a
relação umbilical entre Baldo e o chão da Bahia.
O azul, cor do mar de onde vinham os navios, que traziam e levavam pessoas, histórias, mercadorias,
representa, de um lado, a proteção da Mãe Iemanjá, de outro, o lugar de sustento e a possibilidade da fuga. O rosa no vestido feminino traz os amores de Baldo. O verde em torno da placa do bar
opõe-se ao vermelho e expressa o destino, a sorte, o jogo, a esperança (GUIMARÃES, 2000, p. 116),
69
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
marcas da vida da personagem Baldo, experiências de paixão e esperança. Nessa capa, o verde e o
vermelho saltam aos olhos do leitor.
Em tom verde-limão ilumina-se a rua por onde caminha Baldo, abraçado a seu amor. Verde-limão é
sua calça, seu chapéu, parte de seu violão, parte de sua camisa. A luz da lua cria o tom da cor. A predominância do verde-limão, cortado pelo título em vermelho, simboliza a prioridade da esperança,
do destino que se constrói com os pés no chão, na vida da personagem.
O vermelho das letras que desenham o título e que trazem a assinatura do adaptador atravessa o
caminho de esperança de Baldo e simboliza os atropelos e as paixões pelas quais passou. É significativo que o vermelho fique para trás na caminhada da personagem.
O preto que o cerca representa os mistérios insondáveis da vida, suas ameaças, mas também lembra
os prazeres da noite no Lanterna dos Afogados. Essas seis cores se desdobram em nuances variadas
em todo o texto adaptante.
Nesse processo, o leitor é inserido no mundo tumultuado de Balduíno, acompanhando suas peripécias. A última cena do texto adaptante retoma as cores da capa, agregando o amarelo, e desenha um
Baldo forte, sorridente, maior que todas as dificuldades que enfrentou.
Essa adaptação, como todas as demais, não substitui nem esvazia de sentido do texto literário. O
processo de transmutação, na perspectiva palimpséstica, não apaga o texto adaptado, permite, ao
contrário, que ele ressoe no texto adaptante.
Outro recurso dos quadrinhos, interessante para esta discussão, é o traço, especificamente o traço
caricatural. Segundo Vergueiro (2009, p.93), “[...]pode-se imaginar que o desenho caricatural e a
utilização de elementos cômicos têm a grande vantagem de diminuir as eventuais resistências de
alguns leitores, colocando-os em uma boa disposição para assimilar o que se pretende transmitir.”
Esse traço caricatural foi escolhido por Lobo e Aguiar (2009), na leitura de Triste fim de Policarpo
Quaresma, de Lima Barreto e por Spacca, na adaptação de Jubiabá, lida acima na perspectiva das
cores.
A adaptação do romance barretiano feita por Lobo e Aguiar apresenta uma variedade de traços. As
cenas que envolvem Policarpo Quaresma são construídas em traço caricatural.
A magreza da personagem é exagerada pelo uso de traços finos e angulosos. Esses traços se repetem em cenas com outras personagens, como a representação de Lima Barreto, na página 22. No
entanto, nas cenas em que Ismênia enlouquece, o traço é suavizado, ganha nuances realistas, num
processo de respeito pela dor da personagem.
A delicadeza da cena e da personagem, para manutenção da coerência necessária, não pode ser
desenhada com um traço caricatural, anguloso, precisa ser representada com a doçura e a maleabilidade das curvas, com um quase realismo, que humaniza e universaliza a dor da traição sentida
pela moça.
Em Jubiabá, Spacca (2009) mistura traço caricatural e traço realista. O tom exagerado da caricatura
nem sempre tem exatamente um objetivo humorístico. Muitas vezes, os traços enfatizados nas personagens funcionam para revelar seus estados interiores.
Quando a personagem Baldo é desenhada, suas marcas fisionômicas étnicas são aumentadas. O
mesmo ocorre quando, já adulto, Baldo é representado com músculos excessivamente desenvolvidos.
70
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Em duas vinhetas da página 16, já vivendo na casa de Lindinalva, percebe-se a diferença no uso do
traço caricatural para desenhar as duas personagens. No caso de Baldo, há uma espécie de “exagero
respeitoso”: o arredondamento das linhas infantiliza a personagem, dando-lhe ares de inocência.
No caso de Lindinalva, o quadrinista direciona o olhar do leitor ao angular os traços que desenham
o rosto da menina. Ela é ridicularizada em sua imagem.
Ocorre uma inversão de valores no texto adaptante. A narrativa amadiana descreve as personagens
acima, destacando o desajuste de Baldo e a beleza de Lindinalva. No texto adaptante, ocorre o inverso: Lindinalva se torna risível pela feiura, Baldo cativa o leitor pelas formas arredondadas e infantis.
Adulto, Baldo impõe respeito pela força física. Mais uma vez, o traço caricatural está a favor da interpretação do desenhista, que conduz o leitor para uma situação de afeto e admiração pelo homem
em que Baldo se transformou, representando-o como boxeador campeão, com ênfase para os músculos que ganhou no treinamento e na vida.
No processo de adaptação para os quadrinhos, ainda que a mídia seja a mesma da literatura, as
linguagens interagem e o texto adaptante, mostrando-se em sua intertextualidade, convida o leitor
a atravessar o lido, a interpretar e criar, a partir dos jogos textuais. O texto adaptado não é apagado, ele permanece no texto adaptante. Mas este não se submete àquele: são textos diferentes, um
reconfigurado pelo outro, que não esconde essa marca, pelo contrário, se mostra exatamente como
transcriação, transmutação.
Considerações finais
As adaptações quadrinísticas superam, em minha perspectiva, o paradoxo que o pensamento tradicional pode lhe atribuir. Como afirma Paulo Ramos (2009, p.14), “Ler quadrinhos é ler sua linguagem[...]”, e sua linguagem, no caso dos textos adaptantes principalmente, é dialógica, instaura
a intertextualidade e reconfigura, recontextualiza, transmuta o texto adaptado, acomodando-o a
diferenças de tempo e lugar.
Os textos adaptantes atualizam os textos adaptados, agregam-lhes valores e sentidos. A sumária
abordagem do uso das cores e dos traços em adaptações quadrinísticas de romances brasileiros
feita acima mostra que, ao contrário do que o senso comum aponta, os textos adaptados não são
apagados pelos textos adaptantes. Mas vale ressaltar que estes não são trampolins para aqueles.
Como textos diferentes, com linguagens distintas, provocam processos de significação que não se
excluem, que se ligam numa cadeia infinita – a da leitura, da interpretação que não se fecha em si.
Na perspectiva da intertextualidade, adaptar é desdobrar, abrir caminho para o múltiplo.
O texto adaptante quadrinístico apela a vários sentidos do leitor: ao subverter o texto adaptado,
relativiza suas expectativas, reconfigura seu repertório, provoca sua imaginação. Ao se expor como
resultante de um processo de adaptação, promove a interlocução entre o que se conhece sobre o
texto adaptado e o que o novo texto pode dar a conhecer.
As adaptações quadrinísticas não enfraquecem a literatura, porque, embora bebam em suas páginas, matam sua sede na história, na cultura, nas práticas cotidianas e nas sociabilidades contemporâneas. Elas constroem um imaginário próprio, condicionado por sua linguagem híbrida.
São leituras e provocam leituras.
São arte e provocam a criatividade.
71
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, M. A. Da Tradução intersemiótica à teoria da adaptação intercultural: Estado da arte e
perspectivas futuras. Revista Itinerários, Araraquara, n.36, p.15-33, jan./jun. 2013.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. 1.ed. Tradução Sergio Paulo Rouanet. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1985.
CHARTIER, R. (org.). Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação
Liberdade, 1996.
FERREIRA, C.; ROSA, R. Os sertões de Euclides da Cunha: A luta. Rio de Janeiro: Desiderata, 2010.
FIGUEIREDO, C. Novo dicionário de língua portuguesa. Disponível em www.gutenberg.net . Acesso
em: 18 abr. 2014.
GUIMARAES, L. A cor como informação: a construção biofísica, linguística e cultural da simbologia
das cores. 3ed. São Paulo: Annablume, 2000.
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. 2ed. Tradução André Cechinel. Florianópolis: Ed. Da
UFSC, 2013.
LOBO, C.; AGUIAR, L. A. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 2010.
McCLOUD, S. Desenhando quadrinhos. Tradução de Roger Maioli dos Santos. São Paulo: M. Books
do Brasil Editora Ltda., 2008.
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.
SPACCA. Jubiabá de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
STAM, R. A literatura através do cinema. Tradução de Marie-Anne Kremer e Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Tradução Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.
VERGUEIRO, W. Quadrinhos e Educação Popular no Brasil. In: VERGUEIRO, W.; Ramos, P. (orgs.).
Muito além dos quadrinhos: análises e reflexões sobre a 9a arte. São Paulo: Contexto, 2009.
YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009.
ZENI, L. Literatura em Quadrinhos. In.: VERGUEIRO, W.; RAMOS, P. (orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009. p.127-165.
72
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Literatura infantil, narrativas identitárias e educação intercultural
Maria Antônia Ramos Coutinho15
RESUMO:
As narrativas identitárias, enquanto uma linha e tendência da literatura infantil contemporânea,
conformada, principalmente, em torno dos signos da memória e da ancestralidade, promovem o
reconhecimento da alteridade e rasuram o discurso da igualdade como representativo da nação. A
inserção de práticas pedagógicas no Ensino Fundamental que contemplem atividades de construção de sentido a partir de narrativas literárias em que são valorizadas a diversidade, as identidades
e as diferenças constitui-se um caminho importante para a educação intercultural e para a formação de uma sociedade plural que acolha processos de comunicação abertos e dinâmicos. A opção
por uma abordagem intercultural no campo da formação do leitor literário ampara-se nos aportes
das teorias pós-coloniais e da crítica pós-estruturalista e nas reflexões contemporâneas no campo
das ciências sociais e da educação, que enfatizam o caráter processual e relacional das identidades nacionais, e integra-se às discussões em torno das políticas afirmativas e dos movimentos
e lutas sociais que marcaram as últimas décadas do século XX e as primeiras deste século XXI. A
literatura infantil brasileira, examinada a partir dos eixos identitários da raça, da etnia, da relação
intergeracional e das diferenças que marcam os personagens que transitam pelo espaço ficcional,
configura-se como um projeto ao mesmo tempo ético, estético e político, que possibilita uma
reflexão mais ampla sobre questões fundamentais do debate contemporâneo, e privilegiado
instrumento para se pensar a infância em relação aos diversos contextos sociais e aos processos
de formação das identidades culturais.
Palavras chave: Literatura infantil. Narrativas identitárias. Educação intercultural
ABSTRACT:
The narratives of identity, while a line and trend of contemporary children’s literature, formed mainly around the signs of memory and ancestry, promote the recognition of otherness and the discourse of equality rasuram as representative of the nation. The insertion of pedagogical practices in elementary school covering construction activities of sense from literary narratives in which diversity is
valued, the identities and differences is an important path to intercultural education and for the formation of a plural society that embrace open communication and dynamic processes. The option for
an intercultural approach in the field of the formation of the literary reader supports in contributions
of postcolonial theories and poststructuralist critique and the contemporary reflections in the field
of social sciences and education, which emphasize character and national identity, relational and
integrates with discussions around the affirmative policies and movements and social struggles that
15 Maria Antônia Ramos Coutinho possui Doutorado em Literatura Comparada pela UFMG. Atualmente, cum-
pre Pós-Doutoramento na Universidade do Minho. É professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde desenvolve atividades de docência, extensão e pesquisa em
torno dos eixos: poética da oralidade; literatura infantil; formação do leitor; interculturalidade; abordagem
(auto) biográfica e formação docente.
73
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
marked the last decades of the 20th century and the first of this 21st century. The brazilian children’s
literature, examined from the axes of race, ethnic identity, the relationship between generations and
of the differences that mark characters that carried over by the fictional space appears as a project
at the same time ethical, aesthetic and political, which allows a wider reflection on fundamental
issues of the contemporary debate, and privileged instrument to think about his childhood in relation to social contexts and the processes of formation of cultural identities.
Key words: children’s literature. Narratives of identity. Intercultural education
Um mergulho no rio da memória...
O exame de um conjunto de textos de literatura infantil, corpus inicialmente constituído com vistas
à identificação do trânsito de sujeitos considerados “diferentes” pelo espaço ficcional, da tradição à
contemporaneidade, atividade desenvolvida no âmbito do projeto Literatura, educação e alteridade, no Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia, Campus I, em 2013, terminou por direcionar o esforço investigativo para as narrativas identitárias, enquanto linha e tendência
da literatura infantil contemporânea, conformada, principalmente em torno dos signos da memória
e da ancestralidade.
Nas narrativas identitárias, a trajetória do personagem cumpre-se como um processo de formação
da identidade cultural e de significados simbólicos, uma espécie de bildung, no sentido de o sujeito
se reposicionar e se constituir como representativo do seu grupo étnico. A narrativa orienta-se não
apenas para a construção da identidade do indivíduo, mas projeta-se para o campo do coletivo, do
grupo social a que pertence. A ancestralidade, o território de origem, a recuperação do passado
exercem uma função estética e ética no percurso formativo do protagonista e a figura do avô, ou da
avó, símbolo da sabedoria nas sociedades tradicionais, reveste-se de um particular sentido pedagógico na reconstrução de si pelo personagem, contribuindo para que se reconheça na sua historicidade diferencial e se integre ao sistema de significação ao qual pertence.
Nessas narrativas, geralmente escritas em primeira pessoa, há uma identidade entre autor, personagem e o narrador, que se reporta à infância e coordena um ponto de vista sobre a proscrita realidade, estabelecendo vínculos muito estreitos entre o discurso ficcional e o relato autobiográfico. O
texto literário revela-se, então, um artefato cultural que traz à cena da escrita crianças geralmente
invisíveis e a vulnerabilidade de sujeitos imersos em contextos sociais adversos.
A trajetória narrativa torna-se, então, um expediente discursivo de afirmação de um pertencimento
a espaços-tempos diferenciados da cultura nacional, integrando-se a outras práticas de resistência
que utilizam estratégias de representação do Outro. A narrativa literária oferece-se como produto
cultural que possibilita o conhecimento dos itinerários de formação de sujeitos ,figurados em personagens, qu se visibilizam na trama discursiva.
A literatura infantil brasileira, examinada a partir dos eixos identitários da raça, da etnia, da relação
intergeracional e das diferenças que marcam os personagens que transitam pelo espaço ficcional,
afigura-se como lugar da representação das relações afetivas, familiares e comunitárias da criança,
74
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
conformando-se como um projeto ao mesmo tempo estético e político, que possibilita uma reflexão
mais ampla sobre questões fundamentais do debate contemporâneo, e privilegiado instrumento
para se pensar a infância em relação aos vários contextos culturais e sociais, ou seja, para se pensar
a diversidade infantil.
Nessa direção, convoca-se, aqui, uma obra exemplar: Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da
(minha) memória, publicada em 2009, da autoria de Daniel Munduruku:
Na apresentação da história, o índio escritor informa ao leitor:
A história que vou contar não é sobre a minha pessoa. Ou melhor, é sobre a minha pessoa, mas não a
que sou hoje - porque já não sou o mesmo que fui ontem - e sim a pessoa que fui me tornando ao longo
dos poucos anos de convivência que tive com meu avô, um velho índio que se sentava de cócoras para
nos contar as histórias dos espíritos ancestrais a quem ele chamava carinhosamente de avós e guardiões.
Na verdade não sei muita coisa sobre meu avô porque o via muito pouco. No entanto, esse pouco de convivência marcou profundamente minha vida, formou minha memória, meu coração e meu corpo de índio.
(MUNDURUKU, 2009).
Da quarta capa da obra, extrai-se o seguinte comentário:
Daniel Manduruku mostra que a partir da saudade é possível abordar temas muito importantes: a construção da identidade, a busca da autoestima, o conflito entre as diferenças culturais, a diversidade de
pontos de vista a respeito da vida e do mundo e, ainda, a relação entre homem e natureza, quase perdida,
infelizmente, em nossa civilização, mas profunda, cotidiana e essencial em muitas outras culturas. (In:
MUNDURUKU, 2009).
O autor reconstrói o seu passado, trazendo à cena literária o universo de uma das minorias étnicas
fundadoras da nossa nacionalidade: a sociedade indígena. É importante destacar que o lugar do qual
emerge a história, que, certamente, incorpora, ao mesmo tempo, elementos de invenção, fruto da
imaginação do autor, no constante exercício de recriação do real, qualifica a narrativa em seu nexo
de pertencimento com indivíduos e grupos imersos no universo simbólico no qual é engendrada.
É a voz de um índio escritor ou de um escritor índio que reverbera pelo espaço ficcional e determina
o pacto biográfico da recepção da obra, a qual evidencia os conflitos e a tensão social das relações
interétnicas e os choques causados pela aparência do Outro, em uma nação ainda marcada por
hierarquizações étnicas, apesar da diversidade que a constitui, resultando em imagens negativas
de si para os sujeitos que se diferenciam dos aspectos fenótipos, das formas de pensamento e das
práticas sociais impostos pelo colonizador.
Só não gostava de uma coisa: que me chamassem de índio. Não. Tudo, menos isso! Para meu desespero,
nasci com cara de índio, cabelo de índio ( apesar de um pouco loiro), tamanho de índio. Quando entrei na
escola primária, então, foi um deus nos acuda. Todo mundo vivia dizendo: “olha o índio que chegou à nossa escola”. Meus primeiros colegas logo se aproveitaram para colocar em mim o apelido de Aritana. Não
preciso dizer que isso me deixou fulo da vida e foi um dos motivos das brigas de rua nessa fase da minha
história – e não foram poucas brigas, não. Ao contrário, briguei muito e, é claro, apanhei muito também
(MUNDURUKU, 2009, p.11).
Como se percebe, a voz de um escritor adulto , rasurando fronteiras entre o ficcional e autobiográfico, traz à cena da escritura a representação de uma infância geralmente esquecida: a infância indígena e a rejeição da condição étnica na sociedade branca. Os traços que permanecem na
75
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
memória reavivam sentimentos de desespero, de injustiça, de revolta. O que sente, pensa e sofre
uma criança, vítima do preconceito, pode ser capturado, em certo grau, a partir da produção literária concebida como uma escrita de si, na qual se manifesta o ponto de vista do autor-narrador,
organizador da narrativa
E por que eu não gostava que me chamassem de índio? Por causa das idéias e imagens que essa palavra
trazia. Chamar alguém de “índio” era classificá-lo como atrasado, selvagem, preguiçoso. E como já contei,
eu era uma pessoa trabalhadora que ajudava meus pais e meus irmãos e isso era uma honra para mim.
Mas era uma honra que ninguém levava em consideração. Eu ficava muito triste porque meu trabalho não
era reconhecido. Para meus colegas, só contava a minha aparência...e não o que eu era e fazia. (MUNDURUKU, 2009, p.11)
Consideram-se, aqui, narrativas ficcionais identitárias, no âmbito da literatura infantil, produtos estéticos de natureza verbal e imagética, que incluem a criança como receptora, e visam construir o
imaginário da identidade cultural , ética e racial, incorporando elementos ideológicos e partilhando
significados simbólicos que possibilitam afirmar as diferenças e criar laços identitários. Constituem
uma rede discursiva, que, pela via da ficcionalidade, permite conferir visibilidade a atores sociais
emergentes de grupos historicamente subalternos e fortalecer identidades culturais.
Trata-se, portanto, de um conjunto de histórias que, privilegiando uma linha temática cujo fio condutor deriva da matriz étnica, busca formar, no público infantil, orientações valorativas em relação a
determinado grupo étnico e racial, revelando elementos significativos para o processo de subjetivação, de construção da auto-imagem e de representação dos sujeitos leitores em relação à história, à
memória e às características identitárias, ou seja, às semelhanças na aparência física e nas práticas
socioculturais do seu grupo.
Os trabalhos da memória, com suas lacunas, suas incompletudes, seus esquecimentos e, ao mesmo
tempo, seus acréscimos e invenções, fazem as narrativas aderirem a diferentes visões de mundo
dos indivíduos, produzindo uma teia discursiva em conformidade com os lugares culturais de cada
sujeito enunciativo .
A força ancestral que nos move
No recorte aqui realizado, o esforço investigativo concentra-se, particularmente, em um conjunto
de narrativas inscrito na literatura infantil contemporânea, que se constitui espaço de representação
da diversidade cultural , da voz e do ponto de vista de populações historicamente excluídas, configurando-se como uma ferramenta de transformação social à medida que coloca em circulação novas
imagens e representações do Outro, enquanto desloca o imaginário que antes conferia estabilidade
ao mundo social. Como acentua Stuart Hall,
...as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo
surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.
A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que
está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de
referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. ( HALL,2003, p. 7).
Ao referir-se às identidades culturais, ou seja, ao pertencimento a culturas étnicas, de classe, religiosas, sexuais, regionais, e, sobretudo, nacionais, Hall reflete sobre os descentramentos e os deslocamentos operados pelas mudanças estruturais nas sociedades, a partir da segunda metade do século
XX, que abalaram a noção de sujeito com uma posição fixa e estável na paisagem cultural, antes
76
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
determinada por um sistema de representações culturais nacionais, que se pretendia unificado e
homogêneo. ( HALL, 2003, p.49).
Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade ( 2003) , discute três concepções de sujeito e de identidade nas sociedades modernas: o sujeito do iluminismo, visto como uma identidade
unificada, racional e coerente; o sujeito sociológico, formado na sua relação interativa com a sociedade , no interior das grandes estruturas, circunstanciado pelo alinhamento da sua subjetividade
às normas coletivas; o sujeito da pós-modernidade, cujas identificações são deslocadas, abertas
e continuamente transformadas em relação aos modos pelo qual os sujeitos são interpelados e
representados. Segundo Hall,
Assim, em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la
como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está
dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “prenchida” a partir do nosso exterior,
pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. (HALL, 2003, p.38).
Elege-se, aqui, como vertente teórica para as reflexões sobre a importância da literatura infantil, particularmente das narrativas identitárias, para uma proposta de educação intercultural, os
Estudos Culturais, que, entre outros aportes, utiliza-se do pós-estruturalismo, e, no caso específico,
adquire relevância a noção de différance de Derrida , por se tratar de um campo de estudos em
que se concebem as identidades e suas representações positivas ou negativas como resultantes do
ponto de vista do colonizador que inventa o Outro, estigmatizando-o como inferior e incapaz.
Conforme Morgado e Pires,
Falar em literatura infantil nestes termos só é possível após a viragem cultural dos estudos literários que
abriram a literatura infantil ( que nunca integrou bem o polissistema literário) a abordagens interdisciplinares e a factores históricos, sociais e ideológicos, no quadro de teorias pós-coloniais, estudos de género
ou crítica pós-estruturalista. (MORGADO ; PIRES, 2010, p. 13)
Postula-se uma articulação entre as contribuições dos Estudos Culturais, da Literatura Infantil
e da Educação, a partir do pressuposto de que não existe um lugar privilegiado de produção do
conhecimento, mas uma multiplicidade de saberes que se entrecruzam dentro de um largo espectro
para onde confluem relações de força e poder, de forma tensa e conflitiva. O interesse maior, na
perspectiva adotada, recai sobre as produções literárias representativas de sujeitos posicionados
às margens em relação aos estratos que detêm o poder econômico e social e cujas identidades têm
sido relegadas a uma condição de inferioridade por concepções discriminatórias, preconceituosas e
excludentes historicamente construídas .
Segundo Mozart Linhares da Silva (2009, p.29), ao se discutir a narrativa identitária , é necessário
enfrentar duas questões: a crença em uma identidade fixa, nacional , homogênea, quando as identidades são relacionais e historicamente construídas, e o mito da coexistência pacífica das três raças
fundadoras, uma vez que a sociedade brasileira é um espaço de tensões, preconceitos , conflitos, no
qual se movem os segmentos populacionais que a constituem.
Silva (2009, p.45) ressalta a necessidade de utilizar-se o termo interculturalidade “ para pensarmos
em uma ética da alteridade que construa pontes criativas entre as culturas e não apenas definições
77
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
de arenas de conflitos”. Esquivando-se de uma concepção dicotômica e binária, que opõe o Eu X o
Outro, em uma sociedade caracterizada pela miscibilidade, a educação intercultural implica no reconhecimento das diferenças e na criação de espaços de negociação, intersecção, troca e intercâmbio
entre os grupos identitários, de forma dinâmica e aberta, ainda que as tensões e as contradições
não sejam anuladas. Como postula Derrida, ao formular o conceito de diffèrance (1971), a identidade está sempre escapando e as suas fronteiras deslizam e se deslocam nos processos interativos
com o Outro.
As narrativas identitárias no campo da literatura infantil integram-se a outras formações discursivas que rasuram o discurso totalizante da identidade nacional e seus mitos fundadores, na medida
em que conferem visibilidade às formas de alteridade e de diferença e constroem outros lugares
da memória , articulando, por essa via, um tempo-espaço múltiplo na escrita da Nação. A sua
inserção em cursos voltados para a formação docente , com vistas ao trabalho de constituição do
sujeito leitor, nos espaços escolares ou fora dele, representa a possibilidade de se pensar as questões da identidade cultural no quadro educacional, e estreitar os vínculos entre literatura, política
e história, com vistas a uma abordagem pedagógica intercultural, ancorada no paradigma da diferença, que considere a variedade das experiências das crianças e adolescentes que frequentam os
espaços escolares e dos processos identitários das comunidades a que pertencem, estimulando formas de sociabilidade e estabelecendo pontes entre o conhecimento sistemático da educação formal
e as maneiras de ver, de pensar e de sentir de subjetividades inscritas em diversos contextos sociais.
A trajetória narrativa torna-se um expediente discursivo de afirmação de pertencimento a espaços-tempos diferenciados da cultura nacional, integrando-se a outras práticas de resistência que utilizam estratégias de representação do Outro , e dispositivo para a investigação de itinerários de
formação de sujeitos, figurados em personagens, na atividade interpretativa do sujeito leitor.
Nessa perspectiva, destaca-se o livro infantil Betina , de Nilma Lino Gomes:
Enquanto trançava, avó e neta conversavam, cantavam e contavam histórias. Era tanta falação, tanta gargalhada que o tempo voava! E, no final, o resultado era um conjunto de tranças tão artisticamente realizadas que mais parecia uma renda. (GOMES, 2009, p.6).
Ao final do livro, a autora Nilma Lino Gomes inclui um texto autobiográfico:
Gosto muito de ler e contar histórias. Aprendi com a minha mãe, uma sábia mulher negra nascida no
interior das Gerais. Depois que me tornei professora e passei a ter interesse sobre a cultura da população
negra no Brasil e na África, descobri que o contar histórias é uma prática ancestral. Uma forma de falar de
si, cultivar a memória dos antepassados e educar novas gerações. (GOMES, 2009).
Articula-se, assim, no campo literário, através dos elementos textuais e paratextuais, uma rede discursiva que permite conferir visibilidade a atores sociais emergentes de grupos étnicos e raciais
historicamente excluídos e construir sentimentos de pertencimento.
Acho que o mundo precisa conhecer as histórias de homens e mulheres negras que lutam por uma vida
melhor, mais digna, mais bonita. Precisamos olhar a vida de forma afirmativa por meio das ações e práticas dessas pessoas que nunca desisitiram dos seus sonhos. Muitas delas estão bem pertinho de nós. O
cuidado com a estética, a força dos penteados afros é uma forma de expressar beleza, divulgar a riqueza
do universo afro-brasileiro e a força ancestral que nos move no Brasil. Betina é um exemplo disso. Por isso
resolvi contar um pouco da sua história. (GOMES, 2009).
78
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Como artefato cultural, a literatura infantil congrega não só as práticas de significação dos grupos
identitários mas também as representações que a sociedade forja da criança, esta vista sob os signos da subalternidade e da diferença em relação ao mundo adulto , a partir de uma ideia de falta e
de falha, a quem se delega o desejo utópico de mudanças sociais. Talvez aqui resida o eterno dilema
da literatura infantil: através dos percursos figurativos aproximar-se do olhar do Outro – a criança,
capturando a perplexidade infantil diante do mundo , e, ao mesmo tempo, realizar a pretensão de
tornar-se instrumento de formação da consciência, orientando-se para o futuro.
O resultado é um conjunto de tranças
As discussões intensificadas na cultura, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX e início
do século XXI, em torno dos estudos multiculturalistas, dos movimentos sociais e étnicos e das políticas públicas de afirmação e reconfiguração das identidades, desvelando os inúmeros estereótipos
que marcam as relações raciais no Brasil, refletem-se no campo literário, engendrando uma estética
do Outro, através de narrativas identitárias que promovem o reconhecimento da alteridade e rasuram o discurso da igualdade como representativo da nação.
A inserção de práticas leitoras no Ensino Fundamental que contemplem atividades de construção
de sentido a partir de textos de literatura infantil em que sejam valorizadas a diversidade, as
identidades e as diferenças, constitui-se um caminho importante para a educação intercultural,
ancorada nos aportes das teorias pós-coloniais, da crítica pós-estruturalista e nas reflexões
contemporâneas, no campo das ciências sociais e da educação, que enfatizam o caráter processual e relacional das identidades .
Hall, baseando-se em conceitos psicanalíticos, reflete que “nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes dos nossos eus divididos numa unidade
porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado de plenitude”(HALL, 2003, p. 39).
A interação com as narrativas inscritas no paradigma da identidade e da diferença é indispensável aos percursos de aprendizagem e às trajetórias de formação de cada indivíduo, na medida
em que oferece aos leitores a possibilidade de adquirirem uma compreensão mais abrangente
das culturas e de si mesmos, e de vivenciarem a fantasia de uma identidade unificada, através de
processos inconscientes.
Disseminadas através da lnguagem escrita, sonora e visual, pela via das formas tradicionais ou dos
dispositivos tecnológicos contemporâneos, nos espaços formais da sala de aula , na família, nos
grupos sociais, as narrativas identitárias, no campo da literatura infantil, em suas várias maneiras
de narrar, se propõem como uma ferramenta para a construção da autonomia psíquica e cognitiva
os sujeitos, dos laços de pertencimento e para a ampliação do olhar crítico sobre o legado cultural
dos fundadores da nacionalidade brasileira, descortinando pontes criativas entre os universos que
a constituem.
São inúmeras as contribuições do campo literário, da tradição à modernidade, para se pensar as
relações entre os sujeitos nos diversos contextos sociais. O signo da identidade e da diferença transita, sobretudo nos dias atuais, por entre as malhas de uma rede discursiva, com vistas a novas
formas de convivência e de inclusão das populações historicamente colocadas à margem pela lógica
de estigmatização e de essencialização do Outro, imposta pela racionalidade do colonizador, reproduzida e legitimada ao longo do tempo na historiografia nacional.
79
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Laclau argumenta, que, na modernidade tardia, as sociedades são caracterizadas pela diferença
e atravessadas por divisões e antagonismos sociais que produzem diferentes posições do sujeito,
isto é - identidades- para os indivíduos , em um processo “às vezes descrito como constituindo uma
mudança de política de identidade (de classe) para uma política de diferença” (LACLAU apud HALL,
2003, p.17).
Acredita-se que a inserção das narrativas identitárias no trabalho pedagógico de formação do leitor
poderá promover uma leitura crítica da realidade, deslocando formas convencionais e padronizadas
de narrá-la, e fornecer elementos para a construção de uma sociedade plural enquanto um sistema
de representação das diferentes identidades culturais.
Na sociedade pós-moderna, em que o fenômeno da globalização produz “escalas indefinidas de
tempo-espaço” (GIDDENS, 1990, p.21, apud HALL, 2003, p. 16) e “ondas de transformação social
atingem virtualmente toda a superfície da terra ” ( GIDDENS, 1990, p.6, apud HALL, 2003, p. 15), a
literatura infantil , enquanto um sistema de representações do Outro, propõe-se como uma ferramenta de fundamental importância para a formação de uma sociedade que acolha processos de
comunicação abertos e dinâmicos, e promova um diálogo entre as sociedades tradicionais, em que
“ o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência
das gerações” (GIDDENS apud HALLL, 2003, p. 14), e as práticas da sociedade pós-moderna global,
trançando elos entre passado, presente e futuro.
80
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
GOMES, Nilma Lino. Betina. Ilustração Denise Nascimento. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira
Lopes Louro. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
MORGADO, Margarida; PIRES, Maria da Natividade. Educação intercultural e literatura infantil:
vivemos em um mundo sem esconderijos. Lisboa : Edições Colibri, 2010.
MUNDURUKU, Daniel. Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória. Ilustrações de
Rogério Borges. São Paulo: Studio Nobel,2009,
SILVA, Mozart Linhares da et alii (orgs.). Estudos culturais, educação e alteridade. Santa Cruz do
Sul: Edunisc, 2009.
81
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
82
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato - GPEL: 10 anos de pesquisa.
Maria Afonsina Ferreira Matos16
Amanda Silva Cardoso17
RESUMO:
Resultados de pesquisas de campo do Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato – GPEL, compreendendo um período de
dez anos (2005-2015). Pesquisas desenvolvidas pelos projetos: Emília vai à escola: um estudo das condições e práticas
de leitura da obra lobatiana, com alunos do ensino fundamental II (2006-2/2007-1), fundamental I (2007-2/2008-1) e
médio (2009-1/2010-2), procedendo a um diagnóstico da situação de leitura das obras de Monteiro Lobato em escolas
selecionadas; e Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana, com o público alvo das mesmas escolas selecionadas para a fase diagnóstica e nos mesmos níveis de ensino: fundamental II (2009/2010); médio
(2010-2/2011 e 2012/2013); fundamental I (2014-/2015). O objetivo do primeiro projeto foi fazer um diagnóstico do
quadro de leitura de obras do autor em questão: sua presença ausência em sala de aula. O objetivo do segundo, por
seu turno, foi investigar a recepção da mesma obra, segundo pressupostos da Estética da Recepção e da metodologia
– lúdica e dialógica - de trabalho empregada nas oficinas\experimentos realizados com os grupos de investigação. A
metodologia de pesquisa colocou em diálogo aportes da pesquisa etnográfica, etnopesquisa, pesquisa-ação e experimental: suas técnicas e instrumentos de coleta de dados. A análise de dados foi qualitativa com menção a quantitativos
quando os mesmos se tornaram relevantes para a discussão dos resultados. No primeiro projeto, verificou-se a ausência
de Lobato na escola e o segundo, contrariamente ao que muitos afirmam sobre as dificuldades de leitura de textos
lobatianos pelo estudante da atualidade, sua obra foi lida, atualizada e criticada pelos alunos da educação básica – que
se tornaram coautores da mesma.
Palavras chave: Pesquisa de Campo; literatura lobatiana; formação de Leitores.
ABSTRACT:
Field research results from Lobato Group Research and Extension – GREL (GPEL), covering a ten years period (20052015). Research developed by projects: Emília goes to school: a study about the condtions and habits of reading Monteiro Lobato’s work, with students from elementary school II (2006-2/2007-1), I (2007-2/2008-1) and high school (20091/2010-2), proceeding to a diagnosis of reading situation of Monteiro Lobato’s works in selected schools; and Emília goes
to school: experiments with the work practices of reading the work of Monteiro Lobato, with the target audience from
the same selected schools to the diagnostic phase and the same levels of teaching: elementary school II (2009/2010);
high school (2010-2/2011 e 2012/2013); elementary school I (2014-/2015). The first project goal was to do a diagnostic
16 Mestre e Doutora em Letras pela PUC/Rio; Professora Pleno do DCHL/UESB; Coordenadora acadêmica
do Centro de Estudos da Leitura – CEL/UESB; Orientadora do Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato –
GPEL; Membro efetivo da Academia de Cultura da Bahia; Pesquisadora do GT de Leitura e Literatura Infantil
e Juvenil da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-graduação em Letras e Linguística.
17 Graduada em Letras pela UESB; Ex-estagiária do Centro de Estudos da Leitura – CEL/UESB; Coordena-
dora do Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato – GPEL/CEL/UESB; Professora da Escola Municipal do
Curral Novo/Jequié-BA.
83
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
from the frame reading of author’s works in question: his presence and absence in classroom. The second’s goal was to
investigation of the same work’s reception, based on assumptions of Reception Aesthetics and of the work methodology
– playful and dialogic – employed on workshops/experiments realized with investigation groups. The research methodology put on dialog etnographic research inputs, etnoresearch, action-research and experimental: their techniques
and data colect tools. The data analysis was qualitative with mention to quantitative when the same become relevant
to results discussion. On first project, the absence of Lobato in school was verified and on the second, contrary to what
many affirm about the reading difficulties of lobatian texts by present students, his work was read, updated and criticized by basic education students – whose become co-authors of the same.
Key words: field research; lobatian literature; readers formation.
Projeto Emília vai à escola
Eu já disse não sei onde, que temos de ser ímãs, e passar de galopada pelos livros, com cascos de ferro
imantado, para irmos atraindo o que nas leituras nos aproveite, por força de misteriosa afinidade com o
mistério interior que somos. Ler não para amontoar coisas, mas para atrair coisas afins, que nos aumentem sem o percebermos (Monteiro Lobato, em: Carta a Hernani Ferreira, 07-04-1946)
É fato que os alunos da educação básica leem poucos livros, emparelhados a professores que não
conseguem estimular o gosto pela leitura. A situação se agrava ainda mais porque a maioria dos
espaços de leitura - como as bibliotecas públicas e escolares - se tornaram obsoletas e sem uma
dinâmica de interatividade.
Atento a esse problema, que também se evidencia em Jequié/BA e seu território, o Grupo de Pesquisa e Extensão em Lobato - GPEL, parte integrante do Centro de Estudos da Leitura/CEL-UESB/
Campus de Jequié, objetiva aprofundar-se no universo de Monteiro Lobato e executa pesquisas que
contribuem para o debate em torno desse quadro crítico por meio da pesquisa de campo Emília vai
à Escola, a seguir apresentada.
A fase diagnóstica – Emília vai à escola: um estudo das condições e práticas de leitura da obra lobatiana.
Em 2005, o projeto foi idealizado e, a partir de 2006, foi aplicado. Nessa etapa, foram realizadas reuniões com a comunidade envolvida na pesquisa (técnicos, diretores, coordenadores, professores,
estudantes) para uma sondagem sobre o lugar, as condições e práticas da leitura da obra de Monteiro Lobato no Colégio Estadual Luís Viana (ensino fundamental e médio) e Escola Municipal Franz
Gedeon (ensino fundamental I), ambas em Jequié/BA. Em seguida, foram aplicados questionários
impressos entre os alunos e professores das mesmas escolas para garantir a aquisição de informações não obtidas nos encontros iniciais.
Posteriormente, foram feitas observações diretas e registros de dados para confronto com o que foi
anteriormente coletado. O material destacado nesses instrumentos constituiu o corpus de análise
sobre as condições e práticas de leitura da obra lobatiana nos espaços pesquisados. A análise dos
dados se orientou pelo método qualitativo que buscou responder às questões relacionadas a: presença /ausência da obra lobatiana nas atividades de leitura escolar; se, o que, como, quando e para
84
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
que professores e alunos leem a obra lobatiana.
Assim pensado, procedeu-se da seguinte maneira: observação do modo como os professores trabalhavam com a literatura na sala de aula; verificação da ausência do texto lobatiano nas aulas de
português; coleta de opiniões dos professores e alunos sobre as condições e práticas de leitura da
obra lobatiana nos locais pesquisados; produção de material para publicação nessa área de estudos;
coleta de material para subsidiar a elaboração do projeto da segunda fase de intervenção - uma
pesquisa com práticas de leitura, através de oficinas/experimentos, com a finalidade de observar a
recepção dos textos e da metodologia de trabalho entre os alunos pesquisados.
Daí, foram realizadas atividades previstas no cronograma do projeto (produção de questionários,
folderes, cartazes e banner para divulgação do projeto; visita às Escolas). As escolas a serem observadas foram contactadas e autorizaram a execução da pesquisa. Foram realizadas em cada escola
uma reunião com a coordenadora, professores e técnicos para apresentação do projeto ao colégio
a fim de solicitar os Termos de Autorização de Uso de Imagens e Depoimentos bem como para a
aplicação dos questionários. Nesse momento, os responsáveis pelos alunos autorizaram a pesquisa.
Dessa forma, as observações tiveram início e foram descritas em diário de campo, onde era anotada
a sequência da aula do dia, a fim de registrar a utilização ou não da obra lobateana em sala de aula.
Durante esse período, foram observadas cerca de 23h/aulas em cada um dos três níveis de ensino.
Após as observações, foram distribuídos questionários para professores e alunos para fazer o confronto das respostas com o que foi observado. As professoras das escolas mostraram-se dispostas
a incentivar a leitura de textos lobatianos, entretanto, não o faziam. Com as observações e questionários aplicados para as coletas de dados, verificou-se que as escolas, durante o ano letivo de não
trabalharam efetivamente com a literatura de Monteiro Lobato.
Resultados da Fase Diagnóstica: o Projeto Emília vai à escola: um estudo das condições e práticas
de leitura da obra lobatiana obteve resultados importantes, dentre eles: mostrou que, apesar do
pouco conhecimento sobre a obra em questão no universo escolar investigado - limitado às informações que os pesquisados trazem da TV- e que, embora não tivessem oportunidade de ler Lobato
na escola, os pesquisados desejavam conhecer sua literatura, se interessam por ela; fez perceber
também que há necessidade de formação do professor para a atividade de mediação da leitura;
deixou evidente a necessidade de enriquecimento e dinamização de acervos das bibliotecas. Assim,
os resultados dessa fase de investigação diagnóstica apontam para questões importantes: o livro
deve se tornar objeto de desejo – sua apresentação na sala de aula será decisiva nos processos de
promoção da leitura e de formação de leitores.
A partir desses resultados a fase seguinte do estudo foi elaborada.
A fase experimental - Emília vai à escola: experimentos práticas de leitura da obra
lobatiana
Refletindo também sobre o quanto a leitura dos textos lobatianos têm lugar de importância para
aconstrução da leitura de mundo, o Projeto de pesquisa Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana foi executado. Essa pesquisa investigou a recepção das obras de
Monteiro Lobato e seu papel na formação de leitores, já que o autor escreveu, principalmente, no
intuito de ajudar na formação crítica do seu público. Durante os trabalhos, a recepção da metodologia de trabalho empregadas nas oficinas também foi objeto de atenção.
85
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Assim entendido, o Projeto objetivou desenvolver oficinas de leitura com as obras de Monteiro
Lobato entre turmas das escolas já citadas. Essa intervenção, sob forma de oficinas, teve como
mediadores pesquisadores e/ou colaboradores do CEL-UESB – Centro de Estudos da Leitura da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)/Campus de Jequié/BA, ao lado das bolsistas de
Iniciação Científica e IC júnior (FAPESB)..
Para alcançar os objetivos da proposta, as oficinas com a obra lobatiana foram orientadas por um
conceito amplo de leitura norteador. Conceito esse, defendido pelas teorias que entendem o ato de
ler para além da mera decodificação e tomado de empréstimo de Silva (2004, p.6) que afirma “(...)
a boa leitura é aquela que, depois de terminada, gera conhecimentos, propõe atitudes e analisa
valores, aguçando, adensando, refinando os modos de perceber e sentir a vida por parte do leitor”.
Na primeira fase do projeto, como mostrado no item anterior, foi constado que a obra lobatiana
não era trabalhada, tanto por falta de livros como pelo despreparo do corpo docente - que pouco
conhecia a importância do autor no cenário literário nacional – e que existia interesse dos alunos em
conhecer e ler as obras de Monteiro Lobato.
Desse modo, foi verificada a necessidade da realização da segunda fase do projeto, na qual se materializaram as oficinas com as obras do autor entre alunos de dos três níveis de ensino.
Materiais e métodos: as investigações foram realizadas segundo orientações de princípios metodológicos da pesquisa de campo, pinçando contribuições da pesquisa etnográfica, da pesquisa-ação, da etnopesquisa e experimental. Foi feito um trabalho de Documentação Direta, valendo-nos
da pesquisa de campo orientada por princípios da pesquisa-ação que, segundo Thiollent (1996),
“enfoca uma ação planejada de caráter social, educacional ou técnico”, ou, segundo Barbier (2007,
p.44-46) focaliza “experiências de vida construídas (...) por pesquisadores que dela não participam
diretamente” e que visa uma mudança entendida como “modificação de comportamento, de aprendizagem”.
Na sua execução, foram considerados aportes de outros tipos de pesquisa, como a etnográfica, a
etnopesquisa... Da etnografia, aproveitamos, por exemplo: a construção de um saber de observação (ocular); a predominância do método qualitativo de análise; o diário etnográfico de Malinowski
(1978), entrevistas, contato pessoal e temporário com o grupo pesquisado; a assunção do papel de
tradutores pelos pesquisadores, na expressão de Da Mata (1978); o tratamento dos pesquisados
como seres portadores de cultura; a atitude epistemológica de ir do concreto ao desconhecido nos
termos de Marcel Mauss (1974); a atenção às três fases do pesquisador em campo de que fala Da
Mata – preparação teórica, planejamento da inserção em campo (preparo de formulários e equipamentos para registro de dados); contato com os pesquisados e confronto da realidade observada
com as teorias estudadas... Da etnopesquisa, foi tomado de empréstimo o diário de campo (= etnográfico); a opção pelo discurso descritivo como modo de compreensão por excelência; a preferência
pela abordagem qualitativa; o envolvimento de seres humanos em estado de interação...
Com essa orientação metodológica, os projetos foram iniciados pela elaboração de material visual
como folders, banner, para contato inicial com coordenação pedagógica, professores e técnicos do
Colégio Estadual Luiz Viana Filho, Instituto Federal da Bahia – IFBA e Escola Municipal Franz Gedeon,
todas situadas em Jequié/BA, e já vinculadas à fase diagnóstica de investigação. Logo na primeira
reunião, foi apresentado o Projeto de Pesquisa Emília vai escola: práticas de leitura da obra adulta
lobatiana, quando foram decididos os horários para a realização das intervenções. Vale salientar
86
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
que, como foi verificado na fase diagnóstica da pesquisa, existia um interesse dos alunos em conhecer a literatura de Monteiro Lobato e por conta disso a entrada dos pesquisadores em campo foi
facilitada, justificando a execução das oficinas como parte constitutiva dessa segunda fase de investigação.
Nas solenidades de abertura dos projetos, nas escolas pesquisadas, estavam presentes: a diretora, a
coordenadora pedagógica, alguns professores e técnicos, a ex-bolsistas da etapa anterior do projeto,
a orientadora ou a co-orientadora da pesquisa, além dos bolsistas e colaboradores voluntários.
Feitos todos os atos preparatórios, a série de oficinas foi iniciada. Ao longo do período de intervenção, foram feitas observações acerca da recepção, motivação e percepção dos alunos/pesquisados
sobre o papel/significado das obras de Monteiro Lobato – a adulta no ensino médio e a infanto-juvenil no ensino fundamental -, além da relação dos mesmos com a metodologia de trabalho e a participação nas atividades propostas. Foram confeccionados os diários de campo, fichas de identificação
dos sujeitos, acompanhamento e avaliação das oficinas para anotações e coleta de dados “in loco”
por um pesquisador (a bolsista do projeto), além do registro fotográfico. Ao final das atividades do
dia, eram recolhidas produções dos alunos, ou coletados os depoimentos dos pesquisados ou feitas
entrevistas escritas com os mesmos. Constituído o “corpus”, foi realizada a análise qualitativa dos
dados, com vistas à elaboração do relatório de pesquisa. Como os dados quantitativos foram coletados apenas na última oficina dos projetos, eles foram usados apenas para ilustrar a descrição da
mesma, se tornando menos relevantes para as conclusões do projeto.
As Experiências e os Resultados: pelo projeto Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana foram realizadas as oficinas/experimentos, sendo três em cada turma pesquisada. Entretanto, nessa breve exposição, será apresentado apenas o relato de uma dessas oficinas
de cada nível de ensino a título de ilustração, sendo as demais apenas mencionadas na discussão
dos resultados, onde também ocorrerá o diálogo com os referenciais teóricos do Projeto.
Emília vai à Escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no ensino fundamental II - Oficina na Turma 5ª série/6º ano (2009): esse projeto foi financiado pelo CNPQ e no dia 23
de novembro de 2009, foi realizada, no auditório do Colégio Luiz Viana Filho, a sua última oficina/
experimento, com o tema: “Os doze trabalhos de Hércules”. Teve como ministrante a professora do
município Mara Rúbia Souza Machado e como pesquisadora a bolsista Elâne Francisca de Sousa. A
oficina contou com a participação de 09 alunos da 5ª série do Ensino Fundamental (hoje 6º ano). A
ministrante pediu que todos se sentassem no chão e iniciou a oficina com uma dinâmica de apresentação na qual cada um falava o nome e todos repetiam com voz forte cada nome. Logo em seguida,
perguntou quem conhecia “Hércules” e cada aluno falou o conhecia sobre o personagem. Muitos já
o conheciam de desenhos e filmes na televisão. Mas, o livro de Monteiro Lobato ninguém conhecia.
A ministrante o apresentou aos participantes, lembrando que hoje a história estava dividida em
dois livros. No segundo momento, mostrou um baú de madeira, que continha os doze trabalhos
de Hércules - réplicas feitas em “bisquit” - que eram tiradas um de cada vez, deixando os alunos
encantados. Cada aluno recebeu um pergaminho no qual tinha escrito os trabalhos de Hércules.
Todos participaram contando a história conforme eram tiradas as replicas do baú, que representava
um trabalho. Todos repetiam um estribilho retirado do livro de Lobato “– Hera! Hera! Era uma vez
uma vaca amarela Entrou pela porta e saiu por outra Quem quiser que conte outra.” (Lobato, 1984,
87
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
p.99). Terminada a história, a ministrante perguntou a cada aluno, se já vivenciaram uma atitude
heroica como a de Hércules. Nesse momento, eles relacionaram a história a fatos da própria vida,
construindo metáforas a partir do texto lido. A receptividade nessa oficina foi excelente, já que os
pesquisados se tornaram coautores na história.
Nesse projeto, além dessa oficina/experimento, foram realizadas também: “Memórias da Emília” e
“Teatro da Emília”. Todas elas mostraram a receptividade do texto literário de Monteiro Lobato, já
que a maioria dos alunos conhecia a obra por meio do programa da Rede Globo, Sítio do Picapau
Amarelo.
Além disso, foi possível identificar o papel da ludicidade no processo de formação do leitor e a
importância das práticas de leitura na escola. Isso foi observado ainda nas transcrições das entrevistas orais. As respostas dos pesquisados evidenciaram o papel da escola como formadora de leitores:
a todo o momento os sujeitos da pesquisa identificavam-se com os personagens da história, mostrando envolvimento com o texto literário.
Com a realização das oficinas verificamos que é possível sim trabalhar com as obras de Lobato na
atualidade. Fomos surpreendidos pelo envolvimento, o entusiasmo dos alunos da 5ª série nas oficinas. Ficou clara a importância de uma boa mediação na hora da leitura. Os livros de Lobato estavam
dispostos na biblioteca da escola, o que faltava era o incentivo.
Nas oficinas/experimentos, os textos foram trabalhados através de pinturas, produção textual, música, teatro, brincadeiras, por se saber que a leitura de um livro, deve ser um ato vivo. Na preparação
dos roteiros das oficinas, resgatamos elementos lúdicos para atrair a atenção do público leitor. Prova
disso, foram os depoimentos dos alunos nas entrevistas realizadas. A maioria deles afirmou gostar
das oficinas e da metodologia utilizada nas mesmas, como disse E. (12 anos, 5º série): gostaria que
a experiência continuasse na escola porque melhoraria a educação. Foi unânime também a opinião
de que as oficinas eram divertidas e legais e ajudavam no aprendizado, como informaram G. (11
anos, 5ª série): porque a gente aprende histórias novas e se diverte e M. (12 anos, 5ª série): a gente
aprende mais.
Pelo exposto, até o presente momento, esta pesquisa demonstrou possibilidades de leitura da obra
de Lobato pelos alunos do Ensino Fundamental II e confirmou as teses de que a metodologia lúdica
contribuiu para a descoberta do prazer de ler, mesmo quando o objeto de leitura já se distancia do
tempo histórico dos leitores.
Emília vai à Escola: experimentos com a obra lobatiana no ensino médio - Oficina na Turma 1 - 3º
Ano (2010): no dia 18 de outubro de 2010, foi realizada, na turma 1, a primeira oficina intitulada
“Vida e obra de Lobato”, ministrada pela Profª. Drª. Maria Afonsina Ferreira Matos (orientadora do
projeto). Nessa primeira intervenção pelo projeto, os pesquisados secundaristas se mostraram entusiasmados e curiosos por conhecerem as obras que seriam trabalhadas, além de já trazerem conhecimentos prévios sobre algumas questões, como: a discussão sobre o pré-sal, sobre meio ambiente...
e se interessarem por temas políticos e sociais. A oficina teve início com os rituais de apresentação
da professora à turma e entrega de pastas com materiais escolares e textos de Lobato, contos como:
“Negrinha”, “O Comprador de Fazendas”, “Urupês”, os artigos: “Velha Praga” e “De quem é petróleo
da Bahia?”, duas cartas a Getúlio Vargas, uma carta a D. Purezinha – esposa do escritor-, “A última
Entrevista com Lobato” e a biografia do autor elaborada pela bolsista Gizelen Santana Pinheiro,
além do folder do projeto. Depois, foram utilizados recursos visuais (slides) para uma exposição dos
resumos das obras lobatianas e distribuídos textos em forma de pergaminho pela professora /minis88
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
trante da oficina. Cada um desses textos falava sobre uma obra adulta de Lobato. Cada aluno se
apresentava dizendo o seu nome e lia o título e um fragmento da obra que tinha em mão. À medida
que a leitura era feita, a professora/ministrante ia abordando sobre a obra em questão, como, por
exemplo, quando um dos alunos lia o texto “De quem é o Petróleo da Bahia?”, a professora contou
a saga lobatiana pela exploração de petróleo no país e sua crença de que ele poderia garantir nossa
independência econômica. Ressaltou que, o primeiro poço de petróleo foi perfurado em lugar um
chamado Lobato na Bahia e eles verificaram no artigo em discussão que Lobato falava no ferro de
Jequié – que só agora vê a possibilidade de ser explorado. Causou espanto na turma o escritor ter
essa informação já em 1948 e o município não ter se beneficiado disso até hoje. Colocar os textos do
início do século passado em diálogo com a atualidade foi produtivo. Eles foram bastante atenciosos
durante a exposição da professora, fizeram diversos questionamentos e se envolveram ativamente
nas discussões durante toda a oficina. Foi feita também a leitura coletiva da biografia do autor. A
professora iniciou a leitura e cada aluno teve a sua parcela de participação, lendo uma parte do texto. E foi possível notar o interesse pelos temas expostos em sala, o que evidencia o seguinte fato:
apesar de as obras adultas lobatianas terem sido relegadas ao esquecimento dentro das escolas,
elas trazem questões muito atuais, o que chamou bastante a atenção dos alunos/pesquisados. Houve ainda, durante a oficina, uma encenação com base no texto da “Última Entrevista com Lobato”,
simulada pelos colaboradores do projeto, Elâne Francisca de Souza e Antonio José Maria Codina
Bobio. A ministrante mostrou aos alunos os livros teóricos e literários que seriam usados durante
a pesquisa. Esses livros foram passados de mão em mão. Foram apresentados ainda alguns slides
com imagens da infância, juventude, família, obras e personagens do autor. A professora encerrou a
oficina apresentando a equipe de trabalho, a bolsista do projeto, os colaboradores e divulgando as
próximas oficinas e com agradecendo a colaboração e participação dos alunos.
Além dessa oficina/experimento, foram realizadas ainda as intervenções: “A figura de Negrinha na
ficção de Lobato”, “Monteiro Lobato e a Academia” que apontaram para um resultado um pouco
diferente, o que autorizou o diálogo leitor/texto, o prazer foi à possibilidade de construção de significados nas práticas de leitura propostas. Assim, pode-se dizer que, nas oficinas desse projeto,
verificou-se que o sentido foi o destino (Hassan, 1988, p.52). Os pesquisados ficaram cheios de vontade (Iser, 1996,p.13), porque se viram capazes de atualização, atuando - como quer a primeira tese
de Jauss sobre o papel produtivo do leitor(1994) - como produtores, como agentes de significação.
No caso da turma 1/2010, a colaboração por parte dos leitores pesquisados - preconizada por
Umberto Eco (1994, p. 34) - para com os textos foi permitida a todo instante: desde o gesto da leitura compartilhada à atribuição de sentido a textualidades eleitas.
Nas oficinas da turma 1, os sentidos produzidos podem ser analisados à luz da sétima tese de Jauss
(1994, p.50) sobre a relação entre Literatura e Sociedade. Para esse teórico, “A função social somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra
o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo”.
Para esse autor, essa função se configura quando o leitor interage com as marcas da vida em sociedade evidentes no texto. Isso foi verificado nas oficinas da Turma 1/2010, quando, por exemplo, de
posse da história da exploração de petróleo no Brasil, pelo conhecimento da obra Ouro Negro e pela
leitura de artigos e cartas do escritor, os pesquisados se sentiram com poderes para criticar falas da
atual Presidenta da República, Dilma Russef, veiculadas na mídia. Eles tomaram textos de 1948 –
“De quem é o Petróleo da Bahia?” E “A Última Entrevista de Lobato”- e os colocaram na perspectiva
de hoje, verificando a atualidade das questões ali colocadas. Nesse sentido, um dos pesquisados
89
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
comentou durante a oficina: “– Tudo continua do mesmo jeito, né Professora? O que não interessa
a quem manda, não pode acontecer...”, “ – Por que é que só agora pensam e explorar o ferro de
Jequié?” - perguntou outro em tom irônico. Diante disso, pode-se dizer que as leituras sobre a vida
e obra de Monteiro Lobato deixaram marcas nos leitores, levando-os ao questionamento sobre a
realidade, sobre os possíveis motivos pelos quais não conheciam ainda as obras de Lobato e sobre
falas de autoridades, que, antes, eles tomavam como verdade.
Na mesma direção, aconteceu a leitura do conto “Negrinha” na segunda oficina. Os pesquisados
fizeram relações de comparação, colocaram o texto em diálogo com as discussões do momento
sobre a questão racial e surpreendentemente superaram os discursos do momento - que negam as
representações realistas - ao se recusarem a reescrever o final da história já que, segundo sua opinião, qualquer mudança desconfiguraria a denúncia social do texto, que entendiam ser necessário
preservar. Assim, eles se alinharam à sexta tese de Jauss pela qual se verifica como a obra se relaciona com um momento histórico específico.
Na terceira oficina, “Lobato e a Academia”, a leitura das Cartas - uma convidando o escritor para
integrar a Academia e outra registrando a sua recusa - já não surpreendeu tanto os leitores pesquisados. Eles já haviam construído uma imagem do escritor pelas leituras anteriores e, portanto,
traziam um conhecimento prévio do perfil deste. Por isso, eles realizaram o disposto na terceira tese
de Jauss, ou seja, confirmaram as expectativas em relação à obra, se identificando com ela.
Por tudo isso, pode-se afirmar que a turma 1-2010 sentiu o sabor da leitura lobateana. Eles sobrecodificaram os textos e fizeram a travessia de quem transforma tijolo em nuvem.
O segundo bloco de oficinas - turma 2/2011 – ocorreu na mesma direção que o primeiro. As leituras
atenderam à tese de Larrosa (1996, p.6), para quem devemos “Pensar leitura como algo que nos
forma... transforma”.
Nesse sentido, a oficina A figura de Negrinha na Ficção de Lobato atuou como possibilidade de: contextualização de fatos históricos relacionados aos negros no Brasil; remissão a outros eventos históricos sobre maltrato a crianças, como a Lei da Palmatória; relação com outras situações de falta de
efetividade das leis e garantias individuais dos negros; atualização das figuras de Inácia e Negrinha,
identificando-as com pessoas reais e atuais.
Nessas oficinas, é possível dizer que houve o que Jauss chama de fusão de horizontes de expectativas, que, na sua quinta tese, equivale a ver até que ponto uma obra é capaz de atualizar-se na interação com novos leitores. Nas intervenções acima, isso ocorreu: textos do início do século passado,
dois deles tratando de uma cultura milenar, foram lidos e se colocaram à escuta de leitores do início
desse século. Especialmente na última intervenção, o que se viu em cena foram as chaves mágicas
de Marcel Proust (1991, p.20), que “abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não
saberíamos penetrar...”.
Emília vai à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobateana no Ensino Fundamental I - Turma única, 3º ano do fundamental I (2014): a 28/11/14 aconteceu a oficina intitulada
“A pílula falante da Emília” ministrada pela a bolsista de iniciação científica Alana Santos Souza –
FAPESB - iniciou-se às 13h30 e teve como objetivo central trazer à tona aspectos relevantes na obra
do escritor infantil e juvenil, Monteiro Lobato. Primeiramente foi usado um recurso de áudio e vídeo
para que as crianças assistissem o episódio 5 do Sítio do Picapau Amarelo em desenho “A pílula
falante do doutor caramujo”. Logo em seguida foi feita a interpretação desse episódio pelas crianças
e a ministrante realizou a distribuição das pílulas falantes para que os alunos pudessem falar sobre
90
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
o que pensavam a partir de uma pergunta sorteada para cada um. Assim, a ministrante dividiu os
alunos em grupos de três para a confecção dos cartazes, o objetivo era colorir os personagens do
sítio e a casa onde eles viviam para montar no cartaz o Sítio do Picapau Amarelo da maneira que eles
preferissem. A imaginação, o sonho, o desejo e o poder da linguagem na construção de um mundo
permeado pelo irreal e pelo o sobre-humano foram, de maneira sublime, explorados e evidenciados
pela ministrante. Esses elementos foram inteligentemente discutidos e referenciados na explanação
de trechos da obra de Lobato. Os alunos se sentiram privilegiados com o presente de mergulhar no
mundo do Pedrinho, da Emília, da Narizinho, do sábio Visconde, da Tia Nastácia, e da Dona Benta.
Ficaram maravilhados com a grandiosidade da experiência de adentrar, mesmo que rapidamente,
no universo mais real da projeção imagética colocada ao lado da obra lobatiana, onde a criança e o
leitor realmente envolvidos encontram um lugar nada fácil de ser acessado no cotidiano: a imaginação... Essa experiência foi realizada com a história “A pílula falante” do livro “Reinações de Narizinho” de Monteiro Lobato e teve um rendimento considerável ao estimular a oralidade. Ela fez com
que os alunos falassem...
Além dessa oficina/experimento, em 2014, também foi realizada uma outra, “Caça ao Tesouro”, que
colocou em cena o livro “Fábulas” de Monteiro Lobato.
Nas oficinas realizadas em espaços de educação fundamental I, o que costuma garantir o diálogo
leitor/texto, o prazer de ler é ludicidade do trabalho. Isso também se verificou nesse projeto. Entretanto, também foi possível perceber que foi importante o entrelace entre os significados do texto e
os saberes pra a vida.
Na primeira oficina, foram focalizados temas referentes aos valores morais e éticos, enquanto atributos inerentes a formação de um cidadão, tendo como subsídio o livro “Fábulas” de Monteiro Lobato.
Na segunda oficina com “ Pílula Falante” foram trabalhados temas relacionados aos sentimentos,
abrindo espaço para que os alunos falassem sobre os seus pensamentos e opiniões a propósito dos
temas sorteados na pílula.
Nisso, se vê realizar o percurso freireano em que através da leitura, a escola promove a construção
de saberes, partindo do conhecimento de mundo, no qual o sujeito se insere, para o conhecimento
formal, ou seja, “O ato de ler o mundo implica uma leitura dentro e fora de mim. Implica na relação
que eu tenho com esse mundo.” (FREIRE, 1981, p. 34). No projeto em tela, as vivências dos alunos
foram levadas em conta de forma a permiti-los se criticar, criticar seu entorno e reelaborar seu mundo.
Algumas conclusões
Três oficinas apenas em cada turma não garante uma atuação produtiva no campo da Formação de
Leitores, mas, com certeza, o eco de uma voz anuncia: houve iniciação de leitores da obra lobateana! Um convite foi feito, com vida! O sentido se fez destino! A filiação foi alcançada e a emancipação prenunciada. Espaços se abriram para que os pesquisados possam, a partir de agora, uma vez
iniciados, desempenhar o papel do leitor que nada, alonga-se nas páginas, vence a solidão e põe
tento no desconhecido. Eles podem experimentar a trajetória do leitor/herói rumo à emancipação
em leitura, porque estão aptos para sucessivas gestas, infinitas gestas no e com o texto. Resta, pois,
a Escola aproveitar essa semente lançada em terra fértil...
91
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
No que se refere à leitura da obra de Monteiro Lobato na escola, foi constatado que todos os alunos
conheciam apenas o Sítio por conta da adaptação transmitida pela Rede Globo. Isso é preocupante,
já que a leitura estimula o raciocínio, aguça a sensibilidade e promove o espírito crítico. Nesse sentido, Silva (2002) confirma essa pesquisa, dizendo
[...] leitura, possibilitando a aquisição de diferentes pontos de vistas e alargamento de experiências parece
ser o único meio de desenvolver a originalidade e autenticidade dos seres que aprendem (SILVA, 2004, p.
43).
Nessa direção, as oficinas do Projeto de Pesquisa Emília vai à escola oportunizaram aos alunos das
duas turmas de 3º ano o conhecimento da obra escrita para adultos por Lobato e aos do ensino fundamental o acesso a sua literatura infanto-juvenil. Além disso, a leitura que foi possibilitada como
uma atividade essencial no espaço escolar foi a leitura gratuita, ou ler por ler, não sendo uma atividade sem resultado, mas sim de recuperação do prazer preconizado por Barthes (1977), por exemplo.
No que se refere à leitura da obra adulta de Monteiro Lobato, já a partir da etapa anterior do projeto Emília vai escola: uma pesquisa sobre condições e práticas da obra adulta lobateana no Ensino
Médio, percebeu-se a carência e quase nulidade da obra desse autor no espaço escolar. Isso pela
ausência de livros na biblioteca da escola e por falta de práticas que incentivassem a leitura de
tais obras. Essa realidade verificada aqui encontra ressonância em outras falas de pesquisadores de
outras regiões do país, a exemplo de Silva (2004, p.21): “as pesquisas ao nosso alcance mostram que
os depoimentos para a promoção da leitura nas escolas são extremamente precários (muitas vezes,
até inexistentes). É o caso das bibliotecas escolares”.
Com a proposta e execução das oficinas acima descritas, notou-se uma mudança nesse estado de
coisas: vimos crescer a curiosidade e o interesse dos alunos/pesquisados, e o despertar para uma
leitura mais crítica e participativa.
Dessa maneira, como os próprios pesquisados disseram nos depoimentos coletados ao final da
segunda oficina de 2011, é de extrema importância a realização e manutenção de projetos como
este, que viabilizam a promoção da leitura no espaço escolar, que promovam o prazer de ler e que
tratem o leitor como agente de sentido, como defende Isabel Solé (1998), quando ela supõe “que o
leitor seja um processador ativo do texto porque domina estratégias” de leitura.
Durante as oficinas, os pesquisados se mostraram receptivos à proposta de tratar o texto como objeto relacional e atuantes nas atividades de leitura: eles participaram ativamente das discussões, fizeram questionamentos e argumentaram em favor de suas idéias. Essa atitude de participação, essa
abertura para a relação dialética com o texto proporcionou o prazer de ler mais próximo da “fruição”
barthesiana e elevou a capacidade crítica/reflexiva dos educandos pesquisados acerca de situações
pertinentes à atualidade, mesmo na leitura de textos do início do século passado.
92
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBIER, René. “A pesquisa-ação. Tradução: LucieDídio. Brasília: Liber Livro Editora, 2007.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.
CAVALHEIRO, Edgard. Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Brasiliense, [s.d.]. V. 1 e 2.
DA MATA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter Antropological Blues. In:Nunes (Org.). Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FREIRE, Paulo – Abertura do Congresso Brasileiro de Leitura – Campinas, novembro de 1981.
HASSAN, Ihab. Fazer sentido: as atribuições do discurso pós-moderno. Revista crítica de Ciências
Sociais, nº 24, mar. 1988.
ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoriado efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996. V. 1.
______________. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução:
JohannesKretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
JAUSS, Hans. A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz Costa (seleção, coordenação
e tradução) A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
____________. A história da literatura como provocação da história literária. Tradução: Sérgio
Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho vol. 1. 1.ed. São Paulo: Globo, 2007.
_________________. Obras Completas. 14ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1972.
MAFRA, Midiam Almeida & MATOS, Maria Afonsina Ferreira. Relatório do Projeto Emília vai à escola: um estudo das condições e práticas de leitura da obra lobateana no ensino fundamental I. CEL/
UESB, 2007. Não publicado.
MALINOWISK, Bronislaw. Objetivo, método e alcance desta pesquisa.In: Desvendando máscaras
sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: “Sociologia e Antropologia”. São Paulo: EPU, 1974. Vol.
3. Pp. 212-33.
MOTA, Daiane Santos & MATOS, Maria Afonsina Ferreira. Relatório do Projeto Emília vai à escola:
um estudo das condições e práticas de leitura da obra lobateana no ensino fundamental II. CEL/
UESB, 2007. Não publicado.
PEREIRA, Thune de Almeida & MATOS, Maria Afonsina Ferreira. Relatório do Projeto Emília vai à escola: um estudo das condições e práticas de leitura da obra lobateana no ensino médio. CEL/UESB,
2010. Não publicado.
PINHEIRO, Gizelen Santana & MATOS, Maria Afonsina Ferreira. Relatório do Projeto Emília vai à
escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no ensino médio. CEL/UESB. 2011.
Não publicado.
PROUST, Marcel. Sobre leitura. 2ª Ed. Campinas: Pontes, 1991.
SANTOS, Aline Sousa & MATOS, Maria Afonsina Ferreira. Relatório do Projeto Emília vai à escola:
experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no ensino médio. CEL/UESB. 2013. Não
93
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
publicado.
SILVA, Ezequiel Theodoro. A produção na leitura na escola: pesquisas x propostas. 2ª Ed. São Paulo:
Editora Ática, 2004.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. 6ª Ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
SOUSA, Elane Francisca & MATOS, Maria Afonsina Ferreira. Relatório do Projeto Emília vai à escola:
experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no ensino fundamental II. CEL/UESB. 2010.
Não publicado.
SOUZA, Alana Santos & MATOS, Maria Afonsina Ferreira. Relatório Parcial do Projeto Emília vai
à escola: experimentos com práticas de leitura da obra lobatiana no ensino fundamental I. CEL/
UESB. 2014. Não publicado.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 1996.
ZILBERMAN, R. A leitura e o ensino da literatura. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1991.
94
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Páginas formando leitores: um projeto de incentivo à leitura18
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo19
RESUMO:
O projeto de extensão continuada denominado Páginas formando leitores atua há nove anos na UESB em Jequié/BA.
Diante da falta de acesso à leitura literária que atinge uma parcela da sociedade, ele busca sustentação em pressupostos
teóricos inspirados na estética da recepção para desenvolver, juntamente com estudantes do curso de Letras e a sociedade organizada, oficinas e círculos de leitura, minicursos e organização de salas de leitura, visando à formação de novos
leitores e mediadores de leitura. Uma síntese dessas ações, de sua metodologia e dos resultados alcançados é o que se
apresenta aqui, na certeza de que, através da divulgação do projeto, será possível trocar experiências e incentivar novas
iniciativas que compartilhem os objetivos do projeto.
Palavras chave: Leitores. Mediadores de leitura. Projeto. Extensão.
ABSTRACT:
The continuing extension project named Pages forming readers has been operating for nine years on UESB in Jequié,
Bahia. Given the lack of access to literary reading that reaches a portion of society, he seeks support on theoretical
assumptions based on reader-response criticism to develop, along with students of letters and the organized society,
reading circles, workshops and short courses and reading rooms, organization aiming at formation of new readers and
mediators. A summary of these actions, its methodology and results is what is presented here, in the certainty that,
through the dissemination of the project, it will be possible to exchange experiences and encourage new initiatives that
share the goals of the project.
Keywords: Readers. Read mediators. Project. Extension.
18 Texto publicado em 2013 nos Anais do XIII Congresso Internacional da ABRALIC – Internacionalização do Regional,
realizado de 08 a 12 de julho de 2013 na UEPB, Campina Grande, PB; revisto e atualizado.
19 Possui Mestrado em Estudo de Linguagens pela UNEB. É professora assistente da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB), onde desenvolve atividades de docência, pesquisa e extensão em torno dos
eixos: literatura brasileira; teoria da literatura, formação do leitor e ensino. É membro do Centro de Estudos da
Leitura (UESB) e da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).
95
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Para início de conversa
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
(Carlos Drummond de Andrade. A palavra mágica.)
Desencantar as palavras adormecidas nos livros à espera de leitores. Despertar leitores adormecidos. Formar mediadores de leitura. Ressignificar práticas de leituras. Sonhar e realizar. Como fazer?
Tal empreitada, é possível tecer sozinho, sozinha? João Cabral de Melo Neto (2008) nos alerta que
“um galo sozinho não tece uma manhã”. E, por não duvidar dos poetas, o projeto de extensão continuada Páginas formando leitores se constituiu.
É na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Jequié, que as ações do projeto,
vinculado ao Programa Estação da Leitura e ao Centro de Estudos da Leitura (Cel), ganham corpo
para tornar-se realidade. O Centro de Estudos da Leitura foi criado em 2005, mas as ações do Programa Estação da Leitura se vêm desenvolvendo desde 1991. Nesses mais de 20 anos, a iniciativa
floresceu com a adesão de professores pesquisadores, estudantes bolsistas de pesquisa e extensão,
monitores de disciplinas e voluntários que a ele se filiaram, dinamizando suas ações, em relação às
quais teceremos algumas considerações a partir das ações do projeto de extensão continuada Páginas formando leitores que, em 2015, completa nove anos de atuação na universidade.
Embora tenha sido implantado na UESB em 2006, o projeto teve início no final da década de 1990,
em colégios da rede pública estadual, onde lecionávamos literatura brasileira na educação básica.
Na oportunidade, pudemos constatar que os alunos oriundos das classes populares, quando tinham
acesso aos livros, liam e liam com muito entusiasmo textos literários escolhidos por eles e adquiridos em grupo, porque não podiam comprá-los individualmente. Assim, formamos nossa biblioteca.
Não tivemos sede nem prateleiras, porque os livros circulavam entre os estudantes, que trocavam
livros e experiências leitoras com colegas de classe e de outras turmas.
Essas experiências e outras, não tão animadoras, entre as quais recordamos depoimentos de professores descomprometidos com a formação leitora de seus alunos, impulsionaram seu redimensionamento, quando se firmou como projeto extensionista da UESB, mais precisamente no curso de Letras.
O projeto volta-se, nessa nova fase, para a constituição não só de leitores, mas de mediadores de
leitura. Entendemos que os discentes do curso de Letras têm um duplo desafio a vencer ao longo de
sua vida acadêmica: tornarem-se leitores e refletir a respeito das estratégias que lhes possibilitem
contribuir, como futuros educadores, para a formação de novos leitores. Entretanto, como atuar
conscientemente na constituição de leitores se lhes faltam experiências significativas com a leitura?
A situação parece agravar-se nos últimos anos da educação básica com a estruturação da disciplina
Literatura a partir de bases históricas e biográficas, como revelam currículos e livros didáticos. A
sucessão de estéticas literárias, a ênfase no cânone, em dados biográficos de autores são os pontos
centrais do estudo da literatura como disciplina escolar, em detrimento da leitura de obras literárias
e da recepção por parte do leitor. O texto literário, geralmente, aparece nos livros didáticos fragmentado, com o objetivo único de comprovar as características elencadas como pertencentes ao estilo
no qual autor e obra são “enquadrados”.
96
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
O estudante, que poderia tornar-se um leitor mais crítico, mais atento às possibilidades de uso da
palavra falada e escrita, com o ensino sistematizado de literatura, revela-se cada vez menos estimulado a ler textos literários, como comprovam pesquisas realizadas por Cyana Leahy-Dios (2004. p.
213): “os alunos brasileiros cuja experiência anterior de leitura fora positiva e satisfatória até o início
de ensino médio, à medida que iam se aprofundando no programa de estudos, sentiam decrescer
seu interesse na leitura para auto-satisfação ou prazer estético” e, em Leahy-Dios (2001. p.23): “Eu
lia muito, antes de estudar literatura na escola. Agora não leio mais. Estragou tudo” (depoimento de
aluno do segundo ano do ensino médio).
Reverter esse quadro de distanciamento do literário é o desafio que os cursos de Letras vivenciam.
As pesquisas do Programa Estação da Leitura, juntamente com as atividades de ensino e extensão,
buscam atuar na formação dos discentes em Letras, despertando-os para a leitura verbal e não verbal e instrumentalizando-os na realização das leituras literárias.
O projeto de extensão Páginas formando leitores, apesar das dificuldades enfrentadas, como o espaço restrito para o planejamento de ações e os escassos investimentos recebidos, é incentivado pela
“avidez dos leitores”, que o impulsionam a “adentrar pelas intricadas relações entre leitura, cultura
e sociedade e compreender que o ato de leitura, embora resulte de investimento individual, está
condicionado aos processos sociais, produzindo um sentido e se inserindo em uma dinâmica na qual
o leitor se modela” (CORDEIRO, 2006. p. 304).
É no contato com a palavra, com seu caráter polissêmico, que o aluno pode se constituir um sujeitoleitor, não só do texto escrito, mas também do inscrito nas páginas de sua história. Para isto, é
necessário redimensionar práticas e embasá-las em pressupostos teóricos que reposicionem o leitor
em outro patamar nos estudos literários. Quais as concepções de leitor e de leitura fundamentam
as ações do Páginas formando leitores? Quais conceitos de texto sustentam essas ações? Apresentaremos sucintamente essas noções antes de adentrar nos objetivos específicos do projeto e suas
ações.
Pressupostos teóricos norteadores
Trilhar os caminhos que valorizam o leitor não é tarefa simples. Para chegar a ele, foi preciso driblar
a pergunta “O que o autor quis dizer?” tantas vezes ouvida nas aulas de literatura. Nelas, era ensinado a dissecar o texto, sua estrutura e funcionamento. Decifrar os “enigmas” da linguagem literária e aceitar a crítica, se possível, sem maiores questionamentos. Tudo isso, para alcançar o título
de “bom leitor” dado pelos “mestres” do passado e do presente, que ainda insistem nas mesmas
práticas limitadoras. Era preciso também aceitar a imposição do romance a ser lido e encenado, do
poema a ser declamado, do escritor a ser aclamado. Todas estas imposições eram e são aceitas sem
questionamentos? Certamente não. Por isto existem leitores e estudos voltados para suas inquietações.
Historicamente, o leitor ganhou visibilidade a partir de estudos desenvolvidos, no final da década de
1960, pelo crítico Hans Robert Jauss, que resultaram na formulação teórica da estética da recepção.
Ele reconhece a necessidade de voltar-se para o leitor e colocá-lo como protagonista do processo de
construção de significados, pois “tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade a obra
literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre literatura e leitor” (JAUSS,
1994. p. 23).
97
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Jauss propõe que as tradicionais estéticas da produção e da representação sejam substituídas, ou
renovadas, a partir da estética da recepção. Ele busca “superar o abismo entre literatura e história,
entre o conhecimento histórico e estético” (1994. p.22). O teórico encontra em Hans Georg Gadamer, um de seus principais mestres, os pilares para erguer os pressupostos da teoria, sobre a qual se
mantém atento às críticas e aberto às correções e contribuições.
Essa discussão foi acirrada pela rebelião estudantil no final da década de 1950 e início da década
de 1960, na Alemanha, ampliando o conflito em torno do papel das universidades, através do questionamento dos currículos e cursos e da exigência de novas propostas para o ensino superior. O
ensino de literatura também foi abalado. A busca pela intenção do autor ou pela mensagem textual,
em detrimento do papel ativo do leitor, não poderia mais ser aceita passivamente. Sendo assim,
foi necessário voltar-se para o leitor e examinar, no lugar da intenção do autor, o impacto do texto
sobre o leitor e, no lugar da busca da mensagem textual, a relação estabelecida, no ato da leitura,
entre o autor, o texto e o leitor. O desenvolvimento de novos paradigmas para se pensar a relação
entre texto, leitor e o ensino de literatura nas academias acirrou a discussão teórica em torno dos
princípios da interpretação.
Reportamo-nos ao contexto contemporâneo, mais precisamente à pesquisa de doutorado realizada
por Leahy-Dios (2004). Ela analisa e interpreta dois paradigmas de ensino de literatura: o primeiro
modelo é o inglês, o segundo, brasileiro, um contexto mais próximo, no qual estamos inseridos. Os
resultados da pesquisa indicam que ainda vigoram na educação literária brasileira (e inglesa) os
princípios idealistas e positivistas. A ênfase dada ao conhecimento, à abordagem cronológica dos
movimentos literários, aos saberes canônicos, à “cultura do silêncio”, marcada pela ausência de discussões “de natureza social, cultural e política”, à leitura fragmentada e à falta de problematização
das temáticas textuais, entre outros aspectos, levaram a pesquisadora a concluir que, “sem instrumentos para pensamento, reflexão, troca e engajamento político, educar pela literatura continuará
sendo obrigação difícil, seletiva, desagradável e impopular (no Brasil)” (LEAHY-DIOS, 2004. p. 218).
Para a autora, a experiência literária em sala de aula deveria dar espaço ao “crescimento estético,
cultural, pessoal e sociopolítico, na real acepção do cruzamento de fronteiras cognitivas” (2004. p.
239). Entretanto, a herança positivista é ainda marcante, e a influência do modelo jesuítico de educação enciclopédica vigora aqui e ali. Os pressupostos teóricos da estética da recepção podem contribuir para o redirecionamento dos estudos literários em sala de aula. Para isto, os cursos de Letras
necessitam uma reordenação de seus princípios no que se refere à formação dos novos profissionais
de ensino e pesquisadores.
Nesse sentido, a concepção de leitor que deve embasar esse redimensionamento visando à constituição de novos leitores é a de leitor real, definido por Proust como aquele que “vai para o texto com
suas próprias normas e valores” e ao mesmo tempo, tem as suas normas e valores “modificados
pela experiência leitora” (COMPAGNON, 2010. p.146). Antoine Compagnon ao apresentar as ideias
de Proust, acrescenta:
Quando lemos, nossa expectativa é função do que nós já lemos – não somente no texto que lemos, mas
em outros textos –, e os acontecimentos imprevistos que encontramos no decorrer de nossa leitura obrigam-nos a reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos. (COMPAGNON, 2010. p.146).
Para que o leitor sinta-se aberto a reformular suas expectativas ou a reinterpretar suas leituras, é
necessário que ele esteja inserido em um ambiente que lhe possibilite a liberdade de colocar-se e
98
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
de vivenciar o texto, a ponto de poder participar da constituição do sentido, visto como “um efeito
experimentado pelo leitor, e não um objeto definido, preexistente à leitura”, como nos lembra Compagnon (2010. p.147) ao apresentar as ideias de Wolfgang Iser.
Sendo assim, o mediador de leitura, quer seja o professor da área de Letras ou de outra área, que
assuma o papel de contribuir para a formação de seus alunos nessa área, precisa expô-los a variadas
experiências leitoras, buscando, na temática e na estética veiculadas no texto, despertar-lhe o prazer
e/ou a fruição. Estes, prazer e fruição, são concebidos a partir das ideias de Roland Barthes, conforme ele define em O prazer do texto (2004):
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela,
está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe um estado de perda,
aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas
do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 2004. p. 20, 21, grifo do autor).
Indo além da noção de sentido como algo a ser experimentado pelo leitor, Barthes acrescenta à
noção de texto como “tecido”, “um véu todo acabado”, o que ele chama de “idéia gerativa de que
o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo” (2004. p. 74), do qual o leitor
participa ao interagir com o texto, deixando algo de si na constituição do tecido textual, cujas ideias
não estão totalmente acabadas, mas (re)constroem-se permanentemente na interação com novos
leitores.
A partir dessas noções teóricas, buscamos construir nossas ações, não perdendo de vista que o
acesso ao livro é outro elemento a ser considerado, quando se trata de formação de leitores. Se, por
um lado, há instituições de ensino desprovidas de bibliotecas, de acervo atualizado e diversificado,
de profissionais qualificados para orientar os alunos e desenvolver ações significativas de incentivo
à leitura, por outro lado, fora do espaço escolar, há crianças, jovens e adultos mais afastados ainda
de espaços onde a leitura de textos literários e não literários pode ser fomentada. As bibliotecas
públicas, quando existem, principalmente em cidades de pequeno e médio porte, não atendem às
necessidades da população, porque, além de apresentarem os mesmos problemas das bibliotecas
escolares, apresentam outros, como a distância entre elas e bairros populares mais afastados dos
centros urbanos.
Ao duplo desafio dos estudantes de Letras, formar-se leitor e atuar na constituição de novos leitores,
ao qual nos referimos anteriormente, soma-se outro: intervir na dificuldade de acesso aos textos
literários e não literários. Considerando esse contexto, o projeto de extensão Páginas formando
leitores constrói seus objetivos e desenvolve suas ações.
Traços metodológicos
Ao longo da execução do projeto, procuramos propiciar aos alunos a possibilidade de participar
de grupos de estudos, de pesquisa, minicursos, palestras, entre outras ações de formação leitora.
Destacamos, dentre essas ações, duas edições do Encontro Nacional de Leitura e Literatura
Infantojuvenil (ENLLIJ), a primeira em 2005 e a segunda em 2008, que tiveram a participação de
99
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
pesquisadores e professores de todo o Brasil, reunidos em torno da fomentação da leitura e da
literatura.
Outro objetivo do projeto Páginas formando leitores é proporcionar aos graduandos em Letras da
UESB (e outras licenciaturas) o contato com a comunidade externa à universidade, integrando-os a
ela através do desenvolvimento de ações que favoreçam o crescimento profissional e como pessoa
humana. Entre essas ações, incentivamos comunidades organizadas que já dispõem de espaço de
leitura, a ampliar e organizar seu acervo. Para tanto, campanhas de arrecadação de livros e periódicos são desenvolvidas na universidade. Buscamos incentivar os alunos de Letras a mediar, sob a
orientação de profissionais, ações de incentivo à leitura, como oficinas e círculos de leitura, em um
ambiente propício à constituição de sentidos, à troca de informações, à construção de conhecimento, em espaços escolares e não escolares.
Nessas ações, é importante vivenciar a literatura como veículo de interpretação da realidade e
expressão de sentimentos e emoções, favorecendo o desenvolvimento do senso crítico a partir do
contato com textos literários e não literários, verbais e não verbais. Visamos a integrar a comunidade
na busca pelo bem comum, desenvolvendo a cidadania e o espírito de cooperação, promovendo o
ser humano naquilo que ele tem de mais humano: o pensamento criativo, a imaginação e a emoção.
Inicialmente, o que determina as ações que iremos desenvolver é o tempo disponível do aluno
voluntário para participar do projeto. Em seguida, o público com o qual pretende interagir e o espaço no qual pretende se inserir – escolar ou não escolar. Definida sua disponibilidade, conhecidas
suas experiências como leitores e conhecimentos prévios, é necessário delimitar o campo de atuação, bem como o definir o público com o qual iremos interagir.
Antes de elaborar subprojetos de leitura, uma das possibilidades é a realização de pesquisa, junto
aos estudantes da educação básica, visando ao levantamento de temas que gostariam de ver contemplados nas oficinas e/ou círculos de leitura, bem como conhecer suas experiências leitoras, seus
incentivadores do ato de ler e como se dá o acesso aos textos. Dentre os temas sugeridos nas pesquisas realizadas, destacamos os que envolvem a sexualidade, o meio ambiente, as relações familiares, o uso de drogas, o abandono de menores, a prostituição, a violência, a relação entre o jovem e
o mercado de trabalho, o racismo e a homofobia. Todos estes já foram temas de oficinas de leitura.
Após a análise dessas informações, os estudantes de Letras elaboram seus subprojetos de leitura,
definindo o tema gerador, a(s) obra(s) literária(s) a ser(em) lida(s), outros textos verbais e não verbais que podem ser relacionados com ela(s), além de traduções de obras literárias para outras linguagens: fílmicas, quadrinizações, composições musicais, etc. Nesse planejamento, são contemplados momentos de constituição de sentidos considerando o contexto de produção e de recepção dos
textos lidos e possíveis atualizações da obra pelo leitor real, ao interagir com os textos selecionados.
A partir das leituras propostas, debates e discussões, são propostos momentos de expressão (interação) escrita, quer seja a partir da produção de textos argumentativos, narrativos e/ou poéticos, quer
seja através da elaboração de cartazes, panfletos e cartilhas. São possibilidades, das quais fazemos
uso, considerando, como dissemos, o grupo com o qual estabelecemos relação e suas expectativas.
Quanto às ações em espaços não escolares ou comunitários, estas são desenvolvidas a partir do contato inicial, realizado por algum discente da universidade, morador do local, ou por um membro da
comunidade que entra em contato conosco para estabelecer parceria. Auxiliamos na organização de
salas de leitura, na ampliação e organização do acervo e no desenvolvimento de ações de incentivo
à leitura. Buscamos atender às suas necessidades, quanto ao acesso à leitura. Já atuamos em asso100
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
ciações de moradores, salões comunitários e salas situadas em espaços religiosos. Desenvolvemos
também ações em cursos preparatórios para vestibulares mantidos pela comunidade, cujos professores são voluntários moradores dessas localidades. Apoiar iniciativas sociais e inserir discentes
de Letras nesses contextos amplia suas possibilidades de atuação, suas experiências formadoras e
desenvolve sua cidadania.
Ao longo dos quase dez anos de atuação do projeto Páginas formando leitores, foram desenvolvidas
dezenas de oficinas de leituras, cuja carga horária varia entre três e vinte horas. Os círculos de leitura
duram aproximadamente duas horas e os minicursos de formação de mediadores de quatro a oito
horas. Estes são ministrados por profissionais da instituição e convidados, que se dedicam à formação de leitores e mediadores de leitura. Destacamos a seguir algumas experiências vivenciadas, na
intenção de compartilhar com os nossos leitores e fomentar ações de incentivo à leitura.
Experiências de leitura e resultados
A primeira experiência do projeto, na UESB, foi a realização de três oficinas de leitura na comunidade
religiosa do bairro São José Operário, no primeiro semestre de 2006, cada uma delas com 20 horas
de duração. Nessa comunidade, reúne-se um grupo de convivência formado por pessoas da terceira
idade e, como convidamos os jovens para participar da oficina de (re)leitura de contos infantis e
outros da oficina teatral, um estudante de Letras propôs desenvolver uma oficina de leitura com os
idosos, tendo como tema a festa junina de São João (que estava próxima), com leituras sobre a festa
no passado e nos dias atuais. Para isto, cada idoso levaria um jovem (neto, sobrinho ou amigo) para
juntos poderem ler e reler as festas juninas.
Foi uma experiência significativa, com narrativas orais e escritas, com a presença de contadores de
histórias, cantores populares, repentistas e depoimentos de jovens e idosos sobre suas experiências
e participações nas referidas festas. No encerramento, realizamos uma festa junina diferente, em
que cada oficina de leitura encenou para as demais as leituras realizadas, com músicas, danças,
dramatizações e comidas típicas.
Outra experiência mais recente foi a comemoração antecipada do centenário de nascimento do
escritor Jorge Amado, quando realizamos oficinas de leitura no colégio quilombola Dr. Milton Santos, no segundo semestre de 2011. Os romances do autor foram escolhidos pelos formandos em
Letras, com os quais desenvolvemos parceria no Estágio Supervisionado de Extensão. Inicialmente,
os formandos demonstraram certo preconceito em relação à produção amadiana, não por conhecê-la como leitores, mas por conhecer críticas desfavoráveis à obra desse escritor. Foi preciso (re)ler os
romances e ler outras críticas sobre eles, conhecer pesquisas com base nos estudos culturais, que
trazem novos parâmetros de leitura e de avaliação de produções culturais não canônicas. Sendo
assim, os preconceitos foram diluídos e os estudantes de Letras puderam se identificar com as obras
escolhidas e propor ações de leitura a partir delas.
As oficinas de leitura foram desenvolvidas com jovens do ensino fundamental e os livros escolhidos
foram aqueles avaliados pelos formandos em Letras como os mais apropriados à idade dos novos
leitores, por abordarem temas voltados à experiência de jovens, como O menino grapiúna (2010),
Capitães da areia (2008), O gato Malhado e a andorinha Sinhá (2008) e outro, que não se enquadra
na mesma abordagem, mas que estava em evidência no momento, Gabriela, cravo e canela (2012),
101
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
por causa da novela veiculada numa rede aberta de televisão. As leituras e discussões em sala de
aula, com os alunos que se dispuseram a participar das oficinas em turno oposto ao de estudo, foram
desafiadoras e surpreenderam os formandos. Para exemplificar, a fábula O gato Malhado e a andorinha Sinhá provocou discussões a cerca da homofobia e gerou depoimentos; a leitura de Gabriela,
cravo e canela suscitou debates sobre os papéis sociais desempenhados pela mulher, comentários
sobre nossas conquistas e uma avaliação sobre a sociedade patriarcal, além de despertar nos jovens
leitores o desejo de conhecer outros romances do escritor Jorge Amado.
Além dessas ações, destacamos outra experiência. O projeto atuou com jovens do programa Projovem, no Centro de Referência e Assistência Social (Cras), em dois bairros de Jequié. Esses jovens,
considerados como em situação de risco, eram atendidos em turno oposto ao que estudavam e o
Projovem desenvolveu várias ações, dentre as quais participamos com os círculos de leitura e com a
organização de sala de leitura nesses dois espaços. As salas dispunham de obras literárias e revistas
culturais, além de livros didáticos. Os jovens recebiam orientação de leitura, tomavam emprestadas
as obras disponíveis e participavam também de oficinas de leitura. As obras literárias e não literárias
lidas nas atividades de leitura eram sugeridas por eles, pelos mediadores de leitura e coordenadores
do projeto. Uma bolsista do projeto atuava semanalmente nesses espaços, além de outros alunos
voluntários. Inauguramos uma sala de leitura em 2009 e a outra em 2011. Nelas desenvolvíamos
ações contínuas, apesar das dificuldades em atuarmos em espaços mantidos pelo poder público.
As trocas constantes dos coordenadores do Cras, o redimensionamento do Projovem pelo poder
público e a troca dos espaços de atuação deste programa provocaram o fechamento das salas de
leitura que organizamos, bem como o afastamento dos jovens atendidos pelo Cras. É lamentável a
falta de comprometimento e continuidade de projetos organizados pelo poder público municipal em
parceira com outros poderes.
Tal ação devastadora provocou na equipe executora do projeto Páginas formando leitores a necessidade da buscar novas parcerias e concentrar esforços em espaços mantidos pela comunidade através das associações de moradores e afins. Assim, em 2014, firmamos parceria com a Associação Cultural Arte Viva mantida pela comunidade organizada, localizada em bairro popular de Jequié. O que
mais nos motiva nessa nova parceria é a iniciativa da associação em construir no espaço de sua sede
uma biblioteca, já que o bairro localiza-se distante do centro da cidade onde fica a única biblioteca
pública municipal. Nessa sede os jovens tem acesso a cursos de teatro, de dança, de música e agora
também podem participar das ações de leituras que desenvolvemos no local. Apesar das dificuldades encontradas pela comunidade para construir a biblioteca, as obras já iniciaram e nela teremos
um longo trabalho de construção de ações de leitura tendo como parceiros a população que se faz
protagonista na resolução de seus problemas.
Entretanto, não é fácil despertar o interesse pela leitura em jovens que não tiveram experiências leitoras significativas na família e na escola. Alguns têm dificuldades com a decifração do código escrito, mesmo cursando séries finais do ensino fundamental. Os avanços vêm lentamente, por outro
lado, as dificuldades tornam cada conquista uma vitória a ser comemorada. Por isso aceitamos o
desafio constante de atuarmos em espaços não acadêmicos, reafirmando continuamente o compromisso social e acadêmico, revitalizados pelos depoimentos colhidos ao final de cada ação: “Eu
aprendi sobre Jorge Amado, sobre sua história, cultura e até mesmo pelo seu sonho que era combater o preconceito” (L. O.). “[...] consegui vencer minha timidez ao exercitar a leitura em voz alta e em
público” (A. R.). “Achei muito interessante o trabalho em equipe, que mostrou o quanto precisamos
uns dos outros em nossa vida” (J. R.). “O que foi mais importante, foi [sic] os textos que lemos e as
102
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
dramatizações que fizemos em sala de aula, assim aprendemos a ler melhor e aprendemos coisas e
palavras que desconhecíamos” (A. T.). “Foi muito legal, pois eu aprendi que não devemos ter medo
e vergonha de expressar sentimentos” (R.).
Nesses nove anos de atuação na UESB, em Jequié, foram doados ao projeto cerca de 1.600 títulos,
entre livros, periódicos e cadernos de cursos preparatórios para vestibulares, que ajudaram a compor o acervo do projeto. Além disso, fizemos doações de obras aos cursos comunitários e à biblioteca Jorge Amado, da UESB, campus de Jequié (principalmente de livros em braile). Todo esse material
foi doado pela comunidade acadêmica e não acadêmica, fomentando, assim, a responsabilidade
social com a formação leitora e contribuindo para o fortalecimento do projeto. Não podemos deixar
de registrar que anualmente concorremos ao financiamento interno da universidade para projetos
extensionistas e sempre fomos contemplados. Já tivemos oito alunos bolsistas de extensão, que
auxiliaram a auxiliam diretamente nas ações, além de alunos que atuam de forma voluntária e esporádica, condizente com suas disponibilidades.
Considerações finais
Acreditamos que, nos nove anos de atuação, mobilizamos discentes da UESB a aceitar o desafio de
atuar na formação de novos leitores, constituindo-se também como leitores críticos e conscientes
de sua função profissional e social. Embora não seja fácil ultrapassar os muros acadêmicos, que por
vezes nos afastam das necessidades das comunidades que nos cerca, conseguimos vencer algumas
barreiras, propor alternativas de leitura de mundo a partir da palavra escrita, oral e outras experiências leitoras, indo ao encontro das ideias difundidas por Paulo Freire.
Nesse sentido, não podemos perder de vista as relações intrínsecas entre a pesquisa, o ensino e a
extensão acadêmica. A extensão é alimentada pela pesquisa e pelo ensino, e estes são revitalizados
por experiências extensionistas, dando sentido ao fazer acadêmico, reavaliando práticas e impulsionando novas ações. Sendo assim, reafirmamos a necessidade aos que se propõem a atuar como
mediadores de leitura embasar-se em teorias que coloquem o leitor como protagonista no processo
de constituição de sentidos, promovendo o debate de ideias, a expressão de sentimentos e a interação verbal. O aprofundamento em torno das especificidades do literário surgirá naturalmente,
quando as discussões evidenciarem a necessidade do leitor em enveredar por caminhos teóricos
melhor constituídos.
Do profissional de Letras em processo de formação espera-se o compromisso de constituir-se leitor
e pesquisador, de fazer-se leitor e mediador de leitura, difundindo a arte literária, promovendo a leitura de textos verbais e não verbais, literários e não literários, pois estes interagem na constituição
de leitores dos textos e do mundo que nos cerca. Por fim, na escuta do que dizem as novas gerações,
precisamos aceitar novos desafios e nos apropriar de novas tipologias textuais, para não perdermos
de vista os jovens leitores em processo de formação.
103
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia da Letras, 2008.
______. Gabriela, cravo e canela. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2012.
______. O gato Malhado e a andorinha Sinhá. São Paulo: Companhia da Letras, 2008.
______. O menino grapiúna. São Paulo: Companhia da Letras, 2010.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A palavra mágica. Rio de Janeiro: Record, 2003.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
COMPAGNON, A. O leitor. In.: ______. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 2. ed.
Tradução Cleonice P. B. Mourão e Consuelo F. Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p.
137-161.
CORDEIRO, Verbena Maria R. Os bastidores da leitura: práticas e representações ou do lixo à biblioteca. In: SOUZA, E. C. (Org.). Autobiografia, histórias de vida e formação: pesquisa e ensino. Porto
Alegre: EdiPUCRS; Salvador: Eduneb, 2006.
JAUSS, Hans R. A história da literatura como provocação da história literária. Tradução: Sérgio
Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
LEAHY-DIOS, Cyana. Educação literária como metáfora social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
LEAHY-DIOS, Cyana; LAGE, Claudia (colab.). Língua e literatura: uma questão de educação? Campinas, SP: Papirus, 2001.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Alfaguara, 2008.
104
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Diário de leitura em sala de aula: narrativas pessoais e sociais
Zélia Malheiro Marques - UNEB20
RESUMO:
Este texto está relacionado à prática pedagógica do componente curricular Estágio Supervisionado, curso de Letras Vernáculas, no Departamento de Ciências Humanas, Campus VI, Universidade do Estado da Bahia, UNEB/Caetité – Bahia.
Como as ementas indicam a construção de projeto, no ano 2014, elegendo temas como a formação e a leitura, após
pensar o projeto de trabalho, a produção de diário cotidiano, foi proposta para pesquisar a própria história de leitura,
a qual passou a ser apresentada, livremente, pelos alunos, em roda de leitura nas aulas. Para cada texto escrito, houve
uma questão que buscou indagar as narrativas pessoais e sociais. Desta ação realizada, surgiu a exposição “Álbum de
Leitura”: narrativas pessoais e sociais, que foi apresentada pelos alunos, no pátio do campus, no evento PIBID e ESTÁGIO: entrelaçando caminhos entre a Universidade e a Escola. Pela abordagem autobiográfica, estudiosos como Nóvoa
(1992), Souza e Cordeiro (2007), Lacerda (2003), Chartier (2001), Abreu (2007), Yunes (2009), dentre outros, deram o
suporte para a necessária discussão da leitura imbricada com a memória, entrelaçando com cultura e sociedade. Assim,
os alunos puderam pensar e produzir suas histórias de leitura e organizaram diário, cujos textos, verbais ou não, foram
registrados, de forma criativa e ilustrativa. A experiência desenvolvida indicou o prazer de trabalhar com as leituras
memorialísticas, revelando, de forma geral, um leitor mais distanciado dos impressos, em sua história leitora, mas,
igualmente, guardião dos livros, pois todos falaram em projetos de leitura e em biblioteca pessoal para constituição leitora. Com vínculo infantil de quem pertenceu muito mais à leitura oral pela contação de histórias, brincadeiras, vivência
comunitária, as narrativas revelaram a valorização de si e do lugar em que o leitor se encontra inserido, demonstrando
pertencimento pela história de vida de quem vive na região.
Palavras–Chave: Constituição leitora. Abordagem Autobiográfica. Narrativas de Leitura.
ABSTRACT:
This text is related to the pedagogical practice of the subject Estágio Supervisionado, in the course
of Letras Vernáculas, from the Departament of Human Sciences, Campus VI, in the State University
of Bahia, UNEB/Caetité. As the contents indicate the construction of the project in 2014, choosing
topics such as training and reading, after thinking about the work project, the production of a
daily diary was proposed to research the history of reading, which has become presented freely by
students in reading circles during the classes. For each written text, there was a question that aimed to investigate the personal and social narratives. From this action, it was possible to create the
exhibition “Reading Album”: personal and social narratives, which was presented by the students
from the Campus VI in the event: “PIBID e ESTÁGIO: entrelaçando caminhos entre a Universidade
e a Escola”. Through the autobiographical approach, researchers such as Nóvoa (1992), Jones and
20 Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação e Contemporaneidade - PPGeduC/UNEB, E-mail: [email protected].
106
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Lamb (2007), Lacerda (2003), Chartier (2001), Abreu (2007), Yunes (2009), among others, gave support for the necessary reading discussion intertwined with memory, connecting culture and society. Thus, students could think and produce their own reading stories and organized dairies, whose
texts, verbal or not, were registered in a creative and illustrative way. The experience developed
indicated the pleasure of working with memorialistic readings, showing, in general, a reader more
distant from printed texts, in his/her reading history, but also the guardian of the books, because
everyone talked about reading projects and personal library for the reader constitution. With the
children’s link of whom belonged much more to the oral reading through the storytelling, games,
community living, the narratives revealed the reader appreciation of himself/herself and of the
place where they belong, demonstrating the belonging through the life history of those who live in
the region.
Keywords: Reader Constitution. Autobiographical Approach. Reading Narratives.
O trabalho com a memória é quase sempre catártico [...] (LACERDA, 2003, p. 31).
Se o trabalho memorialístico é, assim, tão significativo para cada leitor, em formação, por que não
incentivá-lo, cada vez mais, como condição de contribuirmos com as leituras e os leitores?
A catarse referida, em ações com a memória, epígrafe escolhida, é, de fato relevante no processo de
constituição leitora. Pensar frustações, transgressões, preconceitos, revelações e tudo o que atrapalha o leitor, leva-o a assumir melhor sua experiência formativa, conhecer-se melhor: “[...] Se eu
fosse uma planta, seria um cacto, forte, resistente, e apesar dos obstáculos, estar sempre firme. Mas
como ninguém é perfeito, teria meus espinhos, meus medos [...]”.
Com situações semelhantes, os colaboradores da pesquisa se apresentaram, ora de forma objetiva,
ora metafórica, colocando-se em lugares outros, a exemplo dessa ideia de ser “um cacto”, fazendo-nos pensar a condição sertaneja, ser frágil, ser forte, firme.
Daí, a ideia de imbricar formação e leitura, através da vivência pedagógica, cuja experiência tem
mostrado o quanto é gratificante fazer esse entrelaçamento possível, uma teia discursiva em que
texto verbal ou não, história leitora do autor, leitor, lugares e marcas de significado estão se juntando
para constituir diversos elementos que se unem para revelar leituras pessoais e sociais.
Com esse campo alargado, nessa diversidade leitora, o diálogo com teóricos, como Nóvoa (1992),
Chartier (2001), Lacerda, (2003), Abreu (2007), Souza e Cordeiro (2007), Yunes (2009), dentre outros,
foi de relevância, um suporte para discutir o processo formativo e investigativo deste trabalho.
Está inserido, em cenário baiano, alto sertão, lugar de práticas culturais reveladoras do modo de
viver do povo sertanejo, suas memórias e histórias, pessoas em movimento pela atuação em diversas épocas. Com essas leituras, vemos que o lugar nunca esteve isolado, sobretudo para o olhar
econômico de quem buscou a região para explorar reservas naturais: “No decurso do século XIX,
verifica-se uma vida econômica dinâmica na região. Alternativas econômicas regionais lograram, em
muitas ocasiões, [...]” (PIRES, 2009, p. 286).
As histórias de leitura, pela pesquisa autobiográfica, trazem, também, referências deste cenário:
107
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
“[...] lugar tranquilo, bonito e bem acolhedor, além de ter uma história riquíssima. É considerada
berço da educação, além de ser referência em cultura e nomes ilustres e importantes para o país
[...]”.
Essa forma de falar do lugar, como quem decanta, é bem comum na região. Nossas leituras fazem-nos pensar, se essa não é uma estratégia de sensibilizar o leitor a fazer parcerias e, assim, assumir
cumplicidade. Tem dado certo e, cada vez mais, vemos novas leituras, propostas de quem quer ser
mais um a entrar nesse mundo de possibilidades: “[...] levaria o teatro para as escolas de crianças
carentes, uma vez que este estimula a concentração da criança, abre caminhos para a imaginação,
encanta, desperta a curiosidade e faz a criança viajar para mundos diversos”.
Em contato com essas narrativas, estamos criando práticas pedagógicas mais prazerosas e relacionadas às atividades do cotidiano do aluno, ao favorecer diálogo com as complexas relações e com
os desafios do mundo contemporâneo. Para isso, mecanismos antigos de leitura e produção textual,
como o uso do diário, estão com outras maneiras de apresentá-los.
A escrita de diário é prática muito antiga, quatro ou cinco séculos atrás, como acena Hess (2006),
mas há várias maneiras de usá-lo. Dentre essas práticas de utilização do diário, podemos destacar
o uso para registros íntimos ou pessoais que, na época, desenvolveu-se com fins de registro íntimo,
aquele onde colocamos tudo o que vivenciamos e estamos sentindo. O diário íntimo tem como foco
as experiências vivenciadas por uma pessoa e é busca interior, a descoberta e construção de experiências de si. Frequentemente, os adeptos desse tipo de escrita são os adolescentes e estudiosos.
Além deste, no entanto, existem também outras formas de escrita de diário, como os prontuários
hospitalares que são escritos por várias pessoas e vários profissionais da saúde para acessar informações contidas nele e poder acrescentar outras informações de acordo com a necessidade. Há
diário de viagem, que se limita ao período de viagem e está mais voltado para experiências vividas
por pessoas que fazem uso deste instrumento de registro, podendo fazer relação com determinada
comunidade, como intensifica Hess (2006, p.98) quando vem dizer que:
O diário é uma forma de cercar um campo de coerência. Este é uma pesquisa individual e coletiva. Quando
se consegue identificar um novo momento, a descrever, faz-se um progresso na consciência de si mesmo,
mas também na consciência do grupo e na consciência do mundo.
Sendo uma escrita do momento, ela se dá, de forma processual, diária, contínua, um procedimento
de acumulação, que é escrito no presente. Não é uma escrita posterior, mas do momento, como
a produção de diário cotidiano, proposta desta pesquisa, quando sugeriu produção da história de
leitura de cada um, buscando, também, contribuir para intensificar o gosto pelas leituras impressas
tão importantes para um leitor em formação: “[...] No Século XX, mais especificamente a partir dos
anos de 1960, a publicação da literatura memorialística feminina, inclusive sob a forma de diários,
cresce significativamente [...]” (LACERDA, 2003, p. 46).
Assim podemos deduzir que o uso da memória sempre esteve e está presente na vida das pessoas
desempenhando função, muito além de guardar história:
108
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
[...] pode se dizer que à memória é dada os atributos da fixação, que tem a ver com o armazenamento, o
da reprodução que diz respeito à possibilidade de sua multiplicação e o do tempo/espaço, que está ligado
ao distanciamento, ao afastamento da forma simbólica de seu contexto de reprodução (BARRETO, 2006,
p. 23).
Não sendo somente processo de recepção e armazenamento de dados, lembranças e histórias, a
memória é, também, meio de interação, uma ponte entre presente e o passado, como o que acontece com a escrita de diário, uma autobiografia, que engloba as experiências pessoais e sociais,
ressaltando que há um interesse ao que representa a constituição de si e o do social, ao que está
guardado na memória das pessoas e o que vem com marcas e acontecimentos do cotidiano das pessoas, buscando compreender o processo do que foi para guardar as experiências de outras pessoas.
A memória, assim, aparece como forma para confrontarmos realidades e visões diferentes de determinado tempo e a possibilidade de experiências que compõem o presente, a nossa realidade, o
momento que vivemos, podendo entrar em contato com o outro e assim analisar e entender a existência humana, condição significativa para as relações sociais.
Desta forma, entre o conhecimento de si e do social, podemos compreender a constituição leitora,
distinguindo o que é particular de cada um e a maneira como cada lida com as suas lembranças.
Nessa situação, considera-se o que é pessoal e que é social, discutindo práticas de reflexão e de
mudanças.
Esse tipo de escrita traz o sujeito à tona, pois evidencia aquilo que ele é, fazendo com que ele faça
um mergulho profundo dentro de si, configurando-se, numa reaprendizagem, ou seja, o sujeito sai
da sua posição de comodidade onde se manteve durante muito tempo e passa, assim, a expressar
suas experiências, revelando o que aprendeu com estas vivências, podendo acompanhar sua formação: “[...] o sujeito desloca-se numa análise entre o papel vivido de ator e autor de suas próprias
experiências, sem que haja uma mediação externa de outros” (SOUZA, 2006, p.138).
Assim sendo, o enfoque autobiográfico abrange as circunstâncias que fazem parte do percurso traçado, ao longo da vida, e que constitui a sua contínua formação, pois o procedimento de constituição do sujeito está decisivamente interligado às meditações que ele faz na experiência da vida,
podendo ser ator da sua própria história.
Nas experiências de leitura atuais, cabe, portanto, a diversidade das práticas desenvolvidas, podendo utilizar uma tipologia textual bem diversa. No caso específico dessa experiência, estamos identificando gosto pela proposta em desenvolvimento pela condição de poder cada leitor trabalhar a
escuta de si e associá-la ao social em que está inserido.
Assim, mediante textos a serem elaborados, questões têm norteado a sua escrita. São algumas delas:
“quem sou eu, por que me chamo fulano (a), como me fiz leitor, qual sua biblioteca familiar, em sua
comunidade, que história de vida está imbricada com a sua, que pessoa comunitária deixou legado, para que sua comunidade ficasse melhor, você tem um cantinho de leitura, onde, como, quais
instrumentos leitores, pensa em desenvolver projeto de leitura, onde, como e com quais leituras”.
Para pensar essas memórias, textos de teóricos da leitura foram trabalhados no sentido de que o
aluno ampliasse sua visão leitora: “[...] Uma história abrangente de leitura e dos leitores deve, assim,
considerar a variação, de acordo com o tempo e o local, das condições de possibilidade e das operações e efeitos de tal invenção e criação [...]” (CHARTIER, 2007, p. 31).
Com discussões dessa natureza, fomos pensando na força que há no trabalho dos mediadores da
leitura e favorecendo essa abrangente forma de ler, inclusive pelo investimento à compreensão da
109
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
cultura impressa. Por que esse tipo de leitura esteve somente para poucos?
Em pensamento, estamos agarrando esse processo inventivo e criativo em que, muito além dos
depoimentos, as histórias e memórias se entrelaçam: “[...] Para que nossa memória se auxilie com a
dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha
cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as
outras [...]” (HALBWACHS, 1990, p. 34).
Com a memória que favorece lembranças, como, no caso em estudo, em que, pelas narrativas leitoras, estamos identificando propostas de expansão de instrumentos leitores, inventamos práticas culturais e, com histórias de pessoas e de lugares estamos pensando que nós, leitores, seremos guardiões das leituras, impressas ou não: “[...] Penso em comprar uma sapateira, mas não para sapatos,
para os meus livros, visto que esta não vai ser uma sapateira qualquer, mas a sapateira literária [...]”.
Uma sapateira literária é uma possibilidade de contribuir com a leitura, como muitas outras pequenas ideias para expansão da leitura. Como vemos, mesmo não pertencentes a histórias de quem
teve herança de grandes bibliotecas, a leitora que quer começar seu projeto organizando sapateira
literária, vive, em ambientes rurais da região e, mesmo em meio a muitas dificuldades, sinalizou
caminho para contribuir com a formação de leitores.
Na memória dos colaboradores da pesquisa, há sinalizações de quem, apesar do pouco contato com
impressos, não viveu uma infância sem leitura: “[...] quando vinha a cidade, na enorme Biblioteca
Anísio Teixeira, ficava encantada. Em meio a muitos livros, literatura, romance e até conto de fada
[...]”.
Acompanhamos a leitora que dá pistas de como seu conhecimento sobre o mundo dos livros é norteador de novas leituras. Menciona a Biblioteca Anísio Teixeira, evidenciando suas práticas leitoras,
o apoio de quem favorece livros a quem não tem, fazendo-nos pensar o quanto é importante mediar
leituras, levando-as pelos diversos lugares, para que haja interação e associação do lido com sua realidade para, assim, conhecê-la: “[...] A leitura é o instrumento mais eficaz para formarmos sujeitos
capazes de interferir na ordem da vida hoje. Ler literatura ou literatura em quadrinhos pode abrir
caminho para que o indivíduo leia a política, a economia as sociabilidades [...]” (PINA, 2012, p. 148).
Em um meio marcado por leituras diversas, como não abraçar essa importante teia de constituição
leitora? Ler como se faz possível, mas ler sempre, tanto para o bem pessoal, quanto para o social,
como estamos acompanhando com as narrativas leitoras em estudo. Em grande parte, como já
dissemos, há ausência de livros, sobretudo na infância, no entanto as leituras possíveis foram conduzindo o leitor ao encontro de outras leituras. Nesse caso específico, o curso de letras, as leituras
impressas e as eletrônicas.
É a leitura que exerce função relevante por desvendar novos mundos: “A leitura tem um privilégio
que é o de apresentar o mundo do desnudado das ovelhas, das ideologias marcadas na sua produção, desnudado da letra morta, da escrita paralisante, [...]” (YUNES, 2003, p. 48).
A cada leitura, uma nova pessoa, uma nova surpresa, pois toda vez que lemos algo, mesmo que seja
o texto que tivemos a oportunidade de ler, em momentos distintos, nos deparamos com algo novo,
nos surpreendemos a cada instante e esse exercício de reeleitura é uma prática revigorante, propiciadora de mudança, pois, a cada leitura que fazemos, ampliamos a visão do mundo, sem perdermos
o que já aprendemos.
Entre teoria e prática, entre o ato de ler e de registrar narrativas de si e do social, os leitores vêm
110
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
organizando suas práticas culturais, algumas encontradas na própria trajetória de leitura: “[...] sentava eu e meus primos para ouvir as histórias de vovô Raimundo, foi assim que me fiz leitora [...]”.
“[...] Não exatamente de uma biblioteca de livros, mas de uma biblioteca de histórias, casos e acontecimentos guardados na memória [...].
A leitura dos diários desses colaboradores da pesquisa vem nos indicar que leitura não se associa, somente, a livros, nem a biblioteca. Faz-se possível conceber uma biblioteca alternativa, por
exemplo, a que abriga as histórias leitoras. Na primeira página do diário lido, uma fotografia de um
senhor, o avô da autora é apresentado como o contador de histórias. Outras desenhos contidos
nesses diários são bem sugestivos e nos ajudam a compreender melhor esses anseios leitores. Sentimos a força que há nesse contador de histórias, o avó da leitora. Sua falta de escolaridade não o
impossibilitou de ser um mediador de leituras: “Contar histórias é uma prática ancestral, contudo,
depende do preparo e da habilidade de quem conta” (YUNES, 2009, p. 17).
Mais uma vez vemos a leitura que nem sempre se associa ao mundo escolarizado. Esse mediador
da leitura era preparado pela experiência da vida, pôde difundir leituras pela contação de histórias
guardadas na memória.
Numa sociedade em que as leituras eletrônicas são possíveis, necessárias e estão bem procuradas,
entrelaçar as muitas outras formas, como a de ouvir e contar histórias é ação desafiadora, porque
nem sempre há o contador da história e nem tampouco o que se dispõe a ouvir, mas é de suma
importância. Parece que há muitos outros interesses. No entanto, estamos visualizando o quanto
vale a pena insistir nessa tarefa e os que têm consciência disso não devem medir esforços para
ampliar essa rede discursiva.
Há muitos aparelhos disponíveis, mas nem sempre a figura do mediador da leitura, levando-nos
a perceber a relevância do trabalho memorialístico em que o leitor poderá trazer outros tempos
e confrontar com os atuais, ajudando o leitor dos textos eletrônicos a, também, perceber outras
leituras, como as da oralidade e dos impressos: “Quando criança, sempre tive vontade de ter historinhas. Mas não tive oportunidade. A vida lá em casa era difícil. Muita dificuldade. Pai e mãe muitas
histórias contava. Não tinha livros. Mas só de ouvi-los meus olhos brilhavam [...]”.
Essa leitora, hoje, é uma professora que associa seus trabalhos de sala de aula com apresentações culturais. Dramatiza bem. Ao incorporar personagens do mundo dos livros, parece nos indicar
que chegou o momento de conhecer as histórias que estão nos livros. Recebeu como herança uma
biblioteca que expressou as leituras orais, mas fez leituras. Eis que surgiu uma leitora que é guardiã
das histórias familiares e que está conhecendo outras formas de ler de uma maneira formidável, já
levando para outros leitores o quanto o ato de ler faz muito bem.
Importante essa sucessão de narrativas, nem sempre para a alegria, pois muitas são causadoras de
choro, tristeza, também de cumplicidade: “[...] Mas, segundo os médicos, este corte foi consequência da queda da minha mãe, bateu barriga na parte trazeira. E assim eu cresci, fui muito discriminado
por colegas na escola, ou mesmo na rua [...]”.
Ao conhecer essas singularidades, pensamos o processo de sofrimento do leitor, mas também a
superação vinda pela possibilidade única que havia para esse menino leitor, a leitura. Identificamos
o cuidado de si e dos outros, compreendendo as experiências de leitura socializadas e que foram
contagiando, parecendo dizer que cada um não era somente o que eles já conheciam e sim pessoas
com histórias singulares, necessárias.
A questão surgiu: Por que tanto tempo juntos e ninguém conhecendo essas leituras? Fomos com111
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
preendendo o quanto foi acertada essa escolha de integrar leitura, memória, cultura, sociedade e
vimos que essas narrativas não eram somente textos verbais que falaram de um percurso leitor.
Eram muito mais que isso, um diário que alguns queriam revelar e que outros, contrariamente,
preferiram utilizar chave para não serem abertos pelo leitor. Não forçamos nada. Cada um foi livre o
suficiente para agir como quisesse e todos indicaram a relevância da ação realizada.
1. O diário em formação: narrativas pessoais e sociais
Com prática pedagógica em desenvolvimento, cada dia era uma novidade. Começávamos sempre
com a roda de leitura. Entre narrativas dos próprios alunos, socializávamos outras histórias de leitura
de escritores da literatura canônica ou não e intercalávamos com outros textos literários que, previamente, escolhíamos. No momento, buscávamos, também, conhecer melhor o autor e só depois da
tão esperada “roda de leitura” que ficávamos liberados para fazer outras ações necessárias do dia:
[...] Este é onde gosto de ler, viajar por mundos diferentes, ser rainha, ser princesa, uma mulher, um homem, uma teórica, uma narradora, uma admiradora, ser uma leitora. Foi no meu quarto que suspirava
com as histórias de Sherazade. Lá que conheci a luta, o sofrimento e o desespero de uma família que viveu
na seca, foi nesse meu cantinho que vivi aventuras do Meu pé de laranja lima, ali que em alguns momentos queria está em Uma ilha perdida, foi ali que perguntei Quem mexeu no queijo? No meu quarto, neste
meu cantinho, refletia, lia meus livros, concordava e discordava, foi no meu quarto que conheci a história
da Moreninha, de Senhora, que me diverti com O Cortiço, ali que me apaixonei e sofri com o Seminarista.
Conheci Iracema, O Guarani, me diverti com Dona flor e seus dois maridos, encantei-me e sofri com Capitães da areia. Viajei com o Pagador de promessas, senti o peso daquela cruz que Zé do burro carregou.
Chorei, sofri e também sorri. Sorri com Chicó e João Grilo, me diverti com o auto da compadecida. Enfim,
li um pouco no meu cantinho especial e apesar da vida, sempre leio [...].
Narrativas assim, faziam parte da abertura das aulas e, a partir desse movimento, outras práticas
culturais foram criadas, a exemplo do espetáculo infanto-juvenil “Leitura em Cena: luz, câmera e
diversão”. Esta proposta leitora foi apresentada para crianças nas escolas municipais da cidade e
buscou associou histórias leitoras com textos clássicos.
Como nosso foco, nesse texto, são os diários, importante trazê-los, falando dessas mediações, como
forma de constituir leitura e leitores. Dessa necessária associação, instrumento de leitura e o leitor
foram nos indicando que não é suficiente adquirir livros, mas se faz necessário colocá-lo em leitura,
como aborda a leitora, em seu diário:
[...] quando comecei a lecionar na zona rural... Percebi a grande necessidade que é a leitura na vida de
muita criança. Porém, falta muita oportunidade e acesso a livros. Então, planejo desenvolver um projeto
de leitura em minha comunidade. Todo domingo a tardezinha, reunir os pequenos e viajar com eles no
fantástico mundo da leitura. Será um incentivo para eles. Vou compartilhar minhas leituras. Levar leituras
novas para eles. Quero tardes maravilhosas [...].
A colaboradora da pesquisa nos indicou possibilidades, falou de seu projeto de vida. Na falta de biblioteca, ao invés de lamentações, optou pela ação de realizar o que se possível, buscando favorecer
112
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
“tardes maravilhosas”. Que venham essas tardes, manhãs e noites em companhia de bons textos,
associando o lido com o vivido, fazendo inferências, questionando e criticando de acordo com as
leituras do mundo, como acena Freire (1986), não apenas a decodificação pura da escrita ou da
linguagem escrita.
Quem sabe, assim, esses leitores não irão cobrar para a região políticas públicas, maior assistência
ao povo do sertão? Consideramos, pois, a iniciativa deste trabalho. É, sim, propiciadora do necessário intercâmbio entre leitura, memória, cultura e sociedade por ser proposta de formação e de
pesquisa. Vem revelando o leitor em estudo, suas histórias de leitura de quem pertenceu muito mais
à leitura oral pela contação de histórias, brincadeiras, vivência comunitária, que propiciou narrativas
pela valorização de si e do lugar em que se encontra inserido.
O diário em sala de aula, podemos dizer, é proposta de leitura e de produção textual, mas seu contorno diferente indicou ações do prazer. Com essa ideia, que consideramos instigante, há “pés na
estrada”, propostas de quem busca apoiar leitores e é sensível ao processo de constituição leitora,
não somente os que apreciam os impressos, mas também os da oralidade e os eletrônicos, um
entrelaçamento pela leitura que vem demonstrando pertencimento pela história de vida de quem
vive nesse Alto Sertão da Bahia.
Assim, entre narrativas memorialísticas, outras literárias, clássicas ou não, este diálogo com tempos
atuais e com outros anteriores, é teia discursiva pelas experiências formativas, expressando subjetividades dos diversos espaços de mediação do saber nessas terras sertanejas.
113
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ABREU, M.. (Org.). Percursos da leitura. In: ABREU, M. Leitura, história e história da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 2007 , pp. 9-15.
BARRETO, A. M. Memória e leitura: as categorias da produção de sentidos; prefácio de Vanda
Angélica da Cunha, Salvador: EDUFBA, 2006.
CHARTIER, R. (org). Do livro à leitura. In: _________. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, pp. 35-73.
________________. As Revoluções da leitura no ocidente. In: ABREU, M. Leitura, história e história da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 2007 , pp. 9-15.
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 37. ed. São Paulo:
Cortez, 1999.
HALBAWAHS. M. A memória coletiva. São Paulo: Vértices, 1990, 189p.
HESS, R. Momento do diário e diário dos momentos. In: SOUZA, E.C. e ABRAHÂO, M.H. M.B. (Org.)
Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p.89 – 103.
LACERDA, L. de. Álbum de leitura; memórias de vida, histórias de leitura. São Paulo: UNESP, 2003,
498p.
PINA, P. K. da C. Literatura em quadrinhos: arte e leitura hoje. – 1 ed.. Curitiba: Appris, 2012.
PIRES, M. de F. N. O crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia (1830 -1888). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003.
SOUZA, E. C. de; CORDEIRO, V. M. R. Por entre escritas, diários e registros de formação. Revista de
educação PRESENTE, Centro de Estudos e Assessoria Pedagógica, Salvador, Ano 15, n. 2, p. 44-49,
jun/2007.
SOUZA, E. C. de. Pesquisa narrativa e escrita (auto) biográfica: interfaces metodológicas e formativas. In: SOUZA, E. C.: ABRAHÃO, M. H. M. B. (orgs). Tempos, narrativas e ficções: invenções de si.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
YUNES, E. e OSWALD, M. L. (orgs.). A experiência da leitura. Edições Loyola, São Paulo, 2003.
YUNES, E. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009.
114
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
LAMOTT, Anne. Palavra por palavra: instruções sobre escrever e viver.
Tradução de Marcello Lino. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. 224p.
Marta Morais da Costa21.
Provavelmente vocês já leram ou ouviram a máxima pedagógica e verdadeira que só se aprende a
ler, lendo; assim como só se aprende a escrever, escrevendo. Pois bem, Anne Lamott, professora de
redação da Universidade da Califórnia, resolveu aproveitar sua experiência em sala de aula, somou
com leituras teóricas e literárias, boas pitadas de humor e muita vivência da escrita para construir
um livro delicioso: Palavra por palavra: instruções sobre escrever e viver. (Sextante, 2011). Em inglês,
o título é muito mais provocante: Bird by bird. Não vou me dar ao trabalho de traduzir: já que temos
adotada e instituída no Brasil a língua inglesa, espalhada pela indústria, comércio, música, informática, escolas e até em palavras cruzadas.
Recentemente chegaram ao Brasil as “Oficinas de criação literária”, presentes em universidades e
instituições culturais e destinadas a incentivar (não a ensinar) escritores inéditos (alguns já veteranos, outros com livros editados às próprias custas) a escrever com maior eficiência, eficácia, estética
e expressividade. Os resultados têm sido louvados em jornais, entrevistas, relatos e relatórios.
O livro de Anne Lamott vem se somar a essa atividade crítico-pedagógica trazendo exemplos, reflexões e associações que extrapolam a questão de escrita e entram no terreno do viver. Nada de considerar o texto a ser produzido como obras-primas de autores desconhecidos, desprezados e marginalizados. Nada de considerar a escrita desses textos como uma atividade regida por entidades que
atuam por empatia: simpáticas a alguns eleitos, elas fazem derramar sobre as páginas palavras em
fluência e exatidão imediatas; antipáticas, elas fazem sofrer, sangrar, chorar os desejosos escritores
que são atirados a contragosto ao abismo do fracasso escritural e editorial.
Anne Lamott vai insistir no trabalho difícil com os operadores literários (personagens, tramas, diálogos, argumentos, cenários, estruturas narrativas e poéticas). Considera a necessidade do exercício
e do descarte. Eleva a altas potências as situações de conflito com as palavras, com a elevação do
edifício textual, muitas vezes resultante de um trabalho árduo de “palavra a palavra”.
Acima de tudo, o livro insiste na carnadura da escrita, na vivificação dos relatos, na capacidade
imaginativa do escritor em preparo, na força da vida para dar substância ao texto. Os exemplos são
abundantes, a instigação é constante, os resultados são comoventes em sua beleza, construída em
tempos de sofrimento e superação.
O livro faz questão de acentuar a necessidade intrínseca, experimentada por qualquer aventureiro
e desbravador de palavras, de ajuda, seja em formato de fichas, anotações, primeiros rascunhos,
reescritas, julgamentos e avaliações continuados. Finalmente, o caminho expressivo encontrado, o
novel escritor se depara com a pergunta crucial: o que pretendo ao publicar meu livro?
21 Mestre e Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Federal do
Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 116
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Não se pode esquecer que, aproximadamente, um milhão de novos títulos de livros surgem em
nosso planeta a cada ano, impressos ou não. É publicação demais para o contingente, sempre reduzido, de leitores. Escrever para quê? A resposta vem num parágrafo primoroso: “A escrita e a leitura
reduzem nossa sensação de isolamento. Aprofundam, alargam e expandem nossa noção da vida:
alimentam a alma (...) É como cantar em um barco durante uma terrível tempestade no mar. Você
não faz com que a tempestade pare, mas, cantando, pode mudar o coração e o espírito das pessoas
que estão a bordo.”
Penso que seja uma parte mínima e generosa de nossa marca na Terra. À leitura e à escrita pois. À
palavra que deprime mas explica. À palavra que conforta e lança luzes. À palavra.
117
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Joel Rufino dos Santos e o autoritarismo: palavras reais x palavras ficcionais22
Maria Teresa Gonçalves Pereira23
Gênero literário desenvolvido principalmente a partir do século XVII com a expansão dos serviços
postais, a epistolografia se constitui um sucedâneo da oralidade, desempenhando relevantes funções comunicativas.
O interesse “literário” das cartas depende de quem as redige. As de Byron são consideradas modelos
de estilo. As escritas por Proust mostram a mesma sutileza psicológica encontrada em À la recherche du temps perdu (1913-1927). As eróticas, de Joyce, à mulher, despertaram interesse biográfico.
Rousseau, Voltaire, Victor Hugo, Gide, Keats, Mozart e Flaubert, dentre outros, escreveram cartas
memoráveis deixadas à posteridade. Reconhece-se o padre Antônio Vieira pelo alto nível cultural de
sua correspondência baseada nas características conceptistas de sua prosa.
As cartas são consideradas um gênero ancilar da biografia, semelhante às memórias e ao diário.
Quando há, então, um escritor na retaguarda, a atividade muda de perfil, revelando-se um gênero
à parte.
O prazer das cartas decorre, em boa medida, da sua franqueza, da sua incontinência verbal, da natural intimidade de que se cercam.
Nessas circunstâncias, Monteiro Lobato e Mário de Andrade, na literatura brasileira, representam
o que há de mais instigante, como fontes permanentes de estudos. Liga-os apenas a contemporaneidade, já que pertencem a correntes literárias opostas. Mário as redigiu, acalentado pelos ideais
da modernidade, propositadamente deixando transparecer um certo “descompromisso” com uma
escrita “artística”. As de Lobato, para muitos um escritor “acadêmico”, revelam tal espontaneidade,
tal agudeza na análise de obras, de autores e de pessoas, tal envolvimento com o mundo das artes,
que diferem pouco das de Andrade.
No início de 1973, ao faltarem poucos meses para Frei Betto cumprir pena no presídio Tiradentes,
chega ao Hipódromo, outro cárcere paulistano, o preso político Joel Rufino dos Santos. Esse período
de reclusão resultou em conjunto muito particular de cartas dirigidas ao filho Nelson. Não pertencem a um cânone literário específico e nem revelam exercícios de alta densidade psicológica. Apesar
de escritor conceituado, com obra de excelência no que tange à historiografia e à literatura, as cartas
de Joel se destinam a uma criança de oito anos. Constituem mensagens de um pai, em condições
físicas e emocionais adversas, que se empenha em manter aberto um canal de comunicação com o
filho, para a ausência não apagar – ou atenuar – a figura do pai amoroso. O texto denso, poético e
22 Nota do editor – Este artigo da professora Maria Teresa Gonçalves Pereira não é inteiramente uma entrevista, mas
contém uma entrevista realizada com o escritor Joel Rufino dos Santos realizada por email para figurar no escopo do
artigo.
23 Professora Titular de Língua Portuguesa Instituto de Letras da UERJ.
119
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
emocionado atinge plenamente os objetivos. Vazado em linguagem simples, despojada e até repetitiva, surpreende, entretanto, pelas incontestáveis ideias subliminares.
O interesse reside em que propriamente não abordam de forma explícita o autoritarismo exercido
pelo regime brutal vivido pelos brasileiros num, infelizmente, largo tempo de nossa história. Testemunham sua consequência no quotidiano de uma família comum.
Antes de nos determos no texto de Joel Rufino dos Santos, parece-nos relevante refletir sobre o tipo
de autoritarismo que perpassa as cartas. O autoritarismo do Estado nas vidas dos cidadãos.
Para Boris Fausto (2001, 8), “o regime autoritário – produto de condições políticas vigentes no século
XX – caracteriza-se, negativamente, por menor investimento em todas as esferas da vida social; pela
inexistência de uma simbiose entre Partido e Estado, sendo o primeiro, quando existente, dependente do último; pelas restrições à mobilização das massas. Um dos traços básicos do autoritarismo
consiste na relativa independência que preserva a sociedade em relação ao Estado: a autonomia
de algumas instituições, em especial as religiosas, e de uma esfera privada de pensamento e de
crença, embora apenas tolerada. O autoritarismo tende a ser mais conservador, ligado às tradições
do passado”. O regime autoritário deveria assumir uma face repressiva para garantir a segurança
nacional, diante de inimigos externos e internos. A ameaça subversiva, superdimensionada, arrastou os liberais a contraditar o núcleo de suas ideias, apoiando práticas atentatórias à democracia em
vários momentos da história brasileira, como ocorreu entre 1935-37 e, especialmente, na eclosão
do movimento militar de 1964. De qualquer forma, é preciso distinguir: enquanto pensadores, os
políticos liberais contraditaram suas ideias em nome de considerações pragmáticas e conjunturais;
os autoritários defenderam a implantação de regimes de força, como uma necessidade histórica, em
decorrência de suas convicções. O regime militar, cuja duração (1964-85) foi bem mais longa que a
do Estado Novo (1930-45), representou uma retomada das práticas autoritárias.
Fausto (2001, 69/70) lembra ainda que, “em muitos aspectos, assemelhou-se ao Estado Novo, mas
em um novo contexto em que, apesar da guerra fria, os regimes autoritários, justificados como forma de combate ao comunismo, hesitavam em reconhecer explicitamente as supostas virtudes do
autoritarismo. A repressão, a violência e a tortura contra os inimigos ou adversários do regime, a
suspensão de direitos civis e políticos, a censura aos meios de comunicação ocorreram em um grau
de extensão inédito na história brasileira”.
A autoridade, o poder do indivíduo em fazer-se respeitar pelos atos, pela competência, pelo percurso trilhado, pela capacidade inerente que propicia eloquentes testemunhos, passa longe do autoritarismo.
As cartas de Joel a Nelson evidenciam o que o autoritarismo desencadeia, o que causa ao ser humano: a influência maléfica na vida das pessoas, cortando-lhe ou adiando-lhe os sonhos, trazendo
insegurança e aflição; ao final e ao cabo, invadindo o mais íntimo do indivíduo, abalando crenças e
convicções, desestabilizando a própria humanidade.
O título Quando eu voltei, tive uma surpresa é bastante instigante, se considerarmos que o conteúdo
do livro ainda permanece desconhecido para o potencial leitor; uma surpresa geralmente remete
a algo agradável, o que se configura total falácia. Ao retornar de uma viagem ao norte do Brasil, a
trabalho, Joel é preso.
Há no livro uma espécie de prefácio de Teresa Garbayo dos Santos, esposa de Rufino, que escreve
sobre a reação traumática de Nelson à prisão do pai. Como se pode depreender, a notícia provoca
alteração no comportamento do menino que, conforme as palavras da mãe, recorre à terapia para
120
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
suportar a nova situação. Ela lembra das visitas ao Presídio do Hipódromo, em São Paulo, em viagens de ônibus com a tia Bena ou com a avó Felícia, das revistas minuciosas antes do encontro com
o pai. Ressalta que as cartas materializam os sentimentos paternos que, mesmo de longe, pretende
acompanhar os detalhes do crescimento do filho.
Ativista da Aliança Libertadora Nacional, organização clandestina que defendia a luta armada, Joel se
arroga considerável missão: convencer um menino de oito anos de que a prisão, naquele momento
da história do país, não era só lugar de bandido, mas de homens e mulheres cujos crimes se resumiam em pensar diferentemente dos governantes.
A primeira carta, datada de julho de 1973, narra um fato insólito: aulas dadas, histórias contadas,
livros escritos com pensamentos próprios causaram a prisão. Joel compara o juiz do governo ao juiz
de futebol: ambos decidem quem tem razão. Reafirma a certeza quanto às idéias. Conta que mais
quarenta pessoas se “hospedam” com ele, também por defenderem suas convicções: médicos, professores, estudantes, operários; homens e mulheres.
A rotina da prisão se desvela para o menino: jogos de futebol, leituras, estudos. O pai cozinha e vê
televisão, as novelas. Orgulha-se de seus trabalhos manuais: bolsas, colares, canetas, chinelos.
O leitor se comove com os pedidos recorrentes para que o filho escreva, fale sobre sua vida, o que
faz e o que pensa, em casa e na escola; solicita fotos, cadernos antigos, desenhos. Qualquer objeto
diminui a distância, aproxima quem está longe, conferindo-lhe existência real. São relatos pungentes, plenos de amor e de carinho.
Rufino desenha, aperfeiçoando-se com o tempo. As canetas coloridas que Nelson leva numa visita,
bem como colagens de diferentes tipos, deixam as cartas alegres, cheias de vida e calor humano,
isentas de amargura.
Há reiterações constantes de amor ao filho, da imensa saudade, da vontade de vê-lo, dos planos
para o futuro. Em nenhum momento escapa qualquer palavra que traduza desânimo ou que revele
descrença de que aquela situação vá perdurar.
Joel constrói pequenas histórias, principalmente, com elementos folclóricos. Ficcionaliza fatos da
realidade, tornando-os atraentes aos olhos da criança. Escreve em “capítulos” a saga do Quilombo
dos Palmares. Apresenta os personagens aos poucos e, mesmo com o final trágico, povoa de encantamento o relato, exaltando a bravura e a coragem na defesa de uma causa. Por meio de imagens
ilustradas, deixa os acontecimentos mais concretos, mais próximos do menino.
Junta fotos sobre o faroeste americano, conta casos, “anima” as cartas como um “mestre-de-cerimônias”, buscando sempre a comunicação bem humorada. Pequenos e simples trechos em inglês
são introduzidos, menções a espetáculos de Disney, referências ao mundo infantil. Até elabora poesias de “pé quebrado” quando o filho quebra o pé
Enaltece as belezas do Rio, desenhando-as. Lembra do Rio Antigo, dos bondes, das festas de São
João, na casa da tia, em Realengo. A memória afetiva trabalha para enriquecer Nelson com experiências que ele não vivenciou, partilhando lembranças. Menciona a avó Maria, filha de índios, que o
menino não chegou a conhecer. Contadora de histórias das boas, todos ficavam enfeitiçados quando
se punha a desfiá-las. Recupera algumas nas cartas. Discorre também sobre as grandezas do Brasil,
ressaltando a exuberante natureza.
Compartilha a lembrança de tempos de camaradagem, ocasiões em que compravam carrinhos, na
rua do Catete, no Largo do Machado. Confessa que adorava brincar de Forte Apache no tapete. Res121
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
gata, assim, ao trazê-lo para o presente, um passado feliz.
Rufino constrói um universo mítico na prisão e procura repassá-lo à criança por meio das cartas.
Causa certa estranheza os elementos que lhe dão forma e consistência porque correspondem aos
fatos do quotidiano de uma família comum. A situação em que se entrelaçam propicia, entretanto,
uma aura encantatória que o distanciamento alimenta e transfigura. Mistura realidade e fantasia. O
pai, na verdade, não se serve de recursos lingüísticos e literários específicos. Movem-no as emoções
e os sentimentos gerados pelas agruras daquele tempo.
Em muitas cartas reitera a importância dos amigos que se ajudam, transformando o espaço pela
força da amizade. A união permite que mantenham a sanidade, lhes dá a medida da grandeza do ser
humano em situações extremas. São iguais na saudade dos filhos, no trabalho, nas habilidades. À
medida que cada um é libertado, todos se regozijam.
Para a primeira visita, enche de expectativas o menino, antecipando a vontade dos amigos de conhecê-lo, pelo que ouviram falar dele. Joel (2000, 35) se preocupa com a opinião do filho: “Nelson, não
sei o que você achou daqui. Quando você me escrever, diga qual foi a sua impressão. Eu gostaria,
naturalmente, de não ter de ficar aqui. Mas, também, não é um lugar tão ruim. Os amigos são muito
bons. Como você viu, aqui a gente trabalha e estuda e joga bola e vê televisão e faz tantas coisas,
enfim, que o tempo parece voar. Breve, estaremos juntos outra vez”. No fragmento se patenteia a
tentativa de humanizar a prisão, atribuindo-lhe um caráter de normalidade. Não há lugar para comiseração, fraqueza, medo ou vergonha. O amor próprio e a dignidade sem mantêm intactos. Prevê
um mundo melhor, sem guerras e prisões, com homens diferentes. Mesmo ao se render à utopia, é
fundamental nutrir esperança ao imaginar o futuro.
Inquieta-se também com os filmes para adultos a que o menino assiste na televisão. Mesmo do cárcere, deseja preservar a infância do filho, conspurcada pela violência da sua prisão.
Outros assuntos enchem as páginas das cartas: cometas, estrelas, planetas, viagens a países distantes. Experiências vividas efetivamente ou planejadas para depois. A cela não limita o espaço. O
pensamento é livre para lembrar, para fantasiar ou para se lançar. Até O velho e o mar, de Hemingway, é adaptado para o entendimento da criança. Merecem destaque a perseverança e a bravura
do pescador.
Aqui e ali, em meio às conversas epistolográficas, emergem recados endereçados à mãe Dedé, na
maior parte das vezes, sobre as dificuldades do menino. Nessas linhas, entremeadas no texto, irrompe a aflição do pai, mas também o cuidado para não transmiti-la ao filho, já que praticamente só
menciona as coisas boas.
Joel se assume como contador de histórias verdadeiras ou inventadas. Alegra-se por Nelson gostar
de histórias. Por ocasião do Natal, apresenta sua versão sobre o nascimento de Jesus em linguagem
verbal e não verbal, apropriando-se da narrativa de domínio público e enxertando-a com originais
contribuições pessoais. Não hesita, em outra carta, a falar sobre Iemanjá, com ilustrações dos rituais, enfatizando a grande penetração no imaginário popular. As vertentes não se chocam, antes se
harmonizam naturalmente. São ancestrais e duradouras histórias, com as quais procura interagir.
Para Moraes (2005), as narrativas de Rufino lhe conferem uma dimensão de Sherazade, a das Mil e
Uma Noites, pois, ao dividi-las em várias cartas, busca sustentar a atenção da criança, permanecendo vivo em sua lembrança e vencendo a separação imposta. Ao mesmo tempo em que a diverte, lhe
incute pensamentos libertários, com exemplos de heróis nacionais como Zumbi. Irrompem, então,
os valores que ele tanto preza.
122
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
Aproveita as oportunidades para comentar sobre tudo o que o tempo passado na prisão lhe ensinou, principalmente em relação às pessoas; isso, entretanto, não diminui as proporções da violência
perpetrada contra um cidadão cujo único “erro” foi divergir da autoridade constituída.
Apesar das tentativas de manter um clima positivo e repelir a depressão ao ancorar-se com firmeza
nas cartas dirigidas ao filho, para olhos perspicazes, as consequências do autoritarismo da abominável ditadura se descortinam: na limitação a três páginas da correspondência, na falta de coisas básicas para a sobrevivência, nas pequenas humilhações impostas pelas negativas dos carcereiros. Joel
(2000, 59) escreve numa das cartas: “Nelsinho, estou maluco pra você vir. Algumas coisas não dá
pra contar por carta, pois exigem gestos e sons”. Como, por exemplo, abraçar (e ser abraçado) pelo
filho. Há uma violência à integridade do indivíduo, à sua intimidade, latente em todo o livro. O leitor
atento se depara com um contraste entre a forma e o fundo, principalmente pelo sobre-humano
esforço de Joel para permanecer saudável de corpo e de espírito naquela situação. O teor das cartas
e os desenhos, assim, podem soar disparatados, considerando-se a situação do microcosmo em que
vivia, sem mencionar o macrocosmo do país em 1973/1974.
Ao final da obra, há uma cronologia sobre os acontecimentos desde 1961, quando Jânio Quadros
renuncia à Presidência da República até 1985, quando Tancredo Neves é eleito pelo Colégio Eleitoral, iniciando-se, assim, a redemocratização. Paralelamente há, também, uma cronologia sobre Joel
Rufino dos Santos, desde 1964, quando ele se casa com Teresa, até 1982, quando se reintegra à
UFRJ, pela lei de Anistia, pondo fim à sua odisséia particular.
Em uma época na qual virou moda a relativização de conceitos e de comportamentos, convém
enfatizar o caráter antidemocrático, racista e elitista dos pensadores autoritários. Não nos parece,
porém, que se deva ignorar seu significado histórico, assim como o valor de algumas de suas percepções e de seus desdobramentos; muito menos considerá-los simples relíquias do passado.
Quando eu voltei, tive uma surpresa mostra-se absolutamente oportuno, propiciando ao leitor compreender o que significa uma ditadura, para valorizar cada vez mais a democracia.
Na literatura infanto-juvenil contemporânea, os autores abordam de várias maneiras o tema do
autoritarismo, camuflado, às vezes, pelo tema da autoridade. Autoritarismo e autoridade se alternam em muitas obras. Preferimos escolher o autoritarismo no Estado pela sua contundência e por
até hoje se refletir na vida do país em diferentes instâncias e situações. Há obras que tratam magistralmente do assunto. Selecionamos algumas.
Os “reis” de Ruth Rocha, por exemplo, são marcos na literatura infantil. Ela se utiliza da alegoria e da
fábula política para revelar o estado autoritário brasileiro da época, recursos ideais para estruturar
as histórias, considerando o momento político devastador. Critica o despotismo e os abusos cometidos pelos detentores do poder, simbolizados na figura do rei e dos que exercem funções na corte.
Assim, aparecem O Reizinho Mandão (1978), O Rei que não sabia de nada (1980), O que os olhos
não vêem (1981), Sapo vira rei vira sapo, cujo subtítulo é A Volta do Reizinho Mandão (1982). Ruth
Rocha, na contramão da figura arquetípica do rei, que geralmente encarna a perfeição humana, os
trata como seres muito longe do padrão ideal, ressaltando o seu caráter desumano e cheio de falhas.
Ana Maria Machado, por sua vez, continua a saga dos donos do poder, se servindo do símbolo, da
fantasia, do imaginário, do poético, para apresentar Era uma vez um tirano (1982). Na resistência
popular ao Tirano, unem-se as culturas de todas as etnias que constituem a nação. A autora aposta
na formação crítica das consciências das novas gerações para decidirem seus destinos. O livro questiona os limites do poder, o momento em que a autoridade cai no autoritarismo. Alerta, ao final,
123
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
sobre o Tirano: “Dizem que vive percorrendo outras terras, procurando um canto para outra vez
tiranizar. Por isso é bom ter olho vivo, e não deixar ele tomar conta da nossa. Mesmo porque pode
ser até que agora ele esteja mais esperto” (1982, 25).
A República dos Argonautas (1998), de Anna Flora, é um exemplo interessante do aproveitamento
do tema do autoritarismo na literatura juvenil. A história se desenvolve em três planos: o primeiro,
extraído da mitologia grega, lembra os heróis que embarcaram no navio Argo e realizaram façanhas
incríveis; o segundo recria como ficção a história recente do país, à época da ditadura, que, à sua
maneira, revelou pessoas capazes de grandes feitos e o terceiro narra as mudanças ocorridas em um
bairro de São Paulo.
Em 1979, ainda havia uma ditadura no país. Os militares que ocupavam o poder ora aceitavam
melhor as regras democráticas, ora mandavam e desmandavam, segundo obscuros critérios (ou a
falta deles), sem dar a menor satisfação ao povo.
Uma menina de 14 anos teve sua vida mexida, como qualquer brasileiro daquele tempo: jornalzinho da escola censurado por abordar temas políticos, filho da vizinha exilado para não ser preso ou
desaparecer, medo de enfrentar o desconhecido, ao encarar manifestações políticas pela Campanha
da Anistia ou pela salvação da pracinha do bairro. Anna Flora, ao misturar tantos elementos sem
conexão aparente, constrói uma narrativa instigante, repleta de intertextualidade, magia e espírito
crítico.
A adolescente cresce emocionalmente, aprendendo que se deve encarar a realidade do mundo, sem
abrir mão dos sonhos. Assim, um governo autoritário deflagra as mudanças e até as acelera.
Antonio Skármeta, autor de O Carteiro e o poeta, em que poeticamente oferece ao leitor material
de reflexão sobre o papel da poesia na vida quotidiana, escreveu A Redação (2003), obra pela qual
recebeu o prêmio UNESCO 2003 de Literatura Infantil e Juvenil em prol da Tolerância. O livro em
questão fala sobre a ditadura militar na Argentina. A partir da prisão do pai de um amiguinho da
escola, Pedro começa a entender melhor as atividades do seu próprio pai e de seus amigos, em reuniões ouvindo rádio, em casa. Um dia, na escola, os militares chegam e anunciam um concurso de
redação: “– Bom – disse o militar – Agora peguem seus cadernos... Estão com os cadernos prontos?
Bom. Agora peguem os lápis... Prontos? Anotar! Título da redação: ‘O que minha família faz todas as
noites’... Compreenderam? Quer dizer, tudo o que vocês e seus pais fazem quando chegam da escola
e do trabalho. Os amigos que vêm visitá-los. O que conversam. O que comentam quando vêem televisão. Livremente. Com toda liberdade. Pronto? Um, dois, três... Começar” (2003, 22).
Os militares incitam, com o disfarce do concurso, os jovens a delatarem os pais, que se opunham à
ordem estabelecida. Trata-se do paroxismo da violência o expediente arquitetado para se apropriarem dos segredos dos que lutavam contra a ditadura.
Pedro percebe a armadilha, livrando-se dela com astúcia. Após descrever acontecimentos banais,
termina a redação: “E eles continuam jogando xadrez até a hora de dormir. E depois, depois eu não
posso contar porque já estou dormindo”(2003, 35).
Muitas obras existem que tratam do tema do autoritarismo na literatura infantil e juvenil; umas mais
sutilmente, outras, de forma mais “escancarada” e/ou incisiva. O estilo literário do autor determina
a diferença na abordagem. Todas, contudo, apelam à consciência ética e/ou crítica do leitor, estimulando-o a refletir. Não estou certa de que livros influenciem cabeças ou sensibilizem corações e
mentes, deflagrando ações ou atitudes. Outros fatores são relevantes para que as mudanças efetivamente ocorram no sentido de alertar, conter ou evitar a vigência do autoritarismo em quaisquer de
124
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
suas manifestações. É fundamental que se ofereçam oportunidades para discutir opiniões e ideias;
assim, a leitura de Quando eu voltei, tive uma surpresa se configura como excelente sugestão.
As palavras do autor complementam este artigo. Joel Rufino dos Santos respondeu por e-mail às
perguntas que lhe fizemos sobre o livro. Seu depoimento ilumina o texto, materializando uma experiência que, embora traumática, rendeu frutos saudáveis. Ratifica também a necessidade de expurgar o pensamento autoritário, cada um de nós permanecendo atento aos sinais de perigo. Sem
nenhuma espécie de tolerância.
MT - Em que momento você pensou em publicar as cartas? Por quê?
JR - Quem pensou em publicar foi Teresa, minha mulher, mãe de Nelson. Ela me convenceu (e
eu ao editor) que interessariam a pais e filhos separados, por qualquer circunstância. Sem falar
que são um testemunho da luta contra a ditadura militar.
MT - Qual o sentimento que o movia ao escrevê-las? E a ilustrá-las? Como (e se) “escolhia” os
assuntos?
JR - Ao escrever as cartas, desde o presídio do Hipódromo, São Paulo, fui movido por saudade
e medo de ser esquecido por meu filho. As ilustrações eram um texto a mais, comentando,
ilustrando o escrito. Os assuntos nasciam do cotidiano de uma prisão, de fatos da família, de
temas de revistas e livros.
MT - Você acha que os jovens de hoje são mais alienados que os de ontem? A leitura ajuda a mobilizá-los, torná-los mais críticos? Há alguma leitura mais “eficiente” que outras nesse despertar de
consciências? Um determinado livro “muda cabeças”?
JR - Jovens de qualquer época são, ao mesmo tempo, politizados e alienados. Não é possível
qualquer generalização, nesse terreno. A maioria dos jovens dos anos 60 nada soube da luta
contra a ditadura e/ou pelo socialismo. A leitura é eficiente para estimular a consciência crítica
se o que se lê é crítico; se for leitura de lixo literário, não. Lixo literário existe em todas as épocas; a peculiaridade de hoje é a sua dimensão gigantesca. Um livro pode mudar cabeça, mas
um filme, uma música, um quadro, uma amizade também podem.
MT - Para você, qual a importância do jovem conhecer seu passado (recente)?
JR - O conhecimento do passado imediato (que é imediato, 30, 50, 100 atrás?) é necessário à
autonomia do homem, à sua desalienação diante das forças do capital, do Estado, da natureza,
da religião, da ideologia – de tudo, enfim, que o rebaixa. Um exemplo é a tortura, um recurso
da ditadura para aniquilar seus adversários. Diversos tribunais internacionais declararam a tortura crime contra a humanidade, imprescritível. Quando um jovem toma conhecimento desse
crime, sua generosidade de jovem é despertada para o horror que jovens como ele sentiram
numa câmara de tortura. A punição aos torturadores brasileiros, objeto de ações judiciais atuais, aqui e no exterior, depende desse conhecimento.
MT - Qual o limite entre autoridade e autoritarismo? As fronteiras são facilmente demarcadas?
JR - Não, não são. A verdadeira autoridade é serena, crítica, fraternal, compassiva, se exerce às
claras. O autoritarismo apenas pertence ao seu campo semântico, mas, ao contrário, é nervosa, não admite crítica, é inamistosa e se esconde dos outros e de si mesma; O autoritarismo se
disfarça, com frequência, sob a autoridade.
125
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
MT - O exílio, a prisão: como afetaram a sua vida pessoal e profissional?
JR - Desorganizaram minha vida pessoal e profissional por um tempo. Esse é um curioso, e
explicável, viés de classe: quem era pequeno-burguês em ascensão, como eu, retomou a vida
num patamar socialmente superior, ou igual; quem era pobre, não: pagou pelo resto da vida
o preço imposto pela ditadura.
126
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.9, nov., 2015
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FAUSTO, Boris. O pensamento nacionalista autoritário. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro,2001
FLORA, Anna. A república dos argonautas. Companhia. das Letras. São Paulo, 1998
MACHADO, Ana Maria. Era uma vez um tirano. Salamandra. 5ª ed. Rio de Janeiro, 1982
MORAES, Marcos Antonio de (org. e apres). Me escreva tão logo possa:Antologia da carta no
Brasil. Salamandra. Rio de Janeiro, 2005
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. A Barca de Gleyre: ponto ou vírgula para o (re)conhecimento
de Monteiro Lobato. Pesquisa de pós-doutoramento. PUCRS. 2008
ROCHA, Ruth. O reizinho mandão. Pioneira. São Paulo, 1978
______. O rei que nao sabia de nada. Cultura Editora. São Paulo, 1980
______. O que os olhos não vêem. Salamandra. Rio de Janeiro, 1981
______. Sapo vira rei vira sapo ou A volta do reizinho mandão. Salamandra. Rio de Janeiro.
1982
SKÁRMETA, Antonio. A redação. Record. Rio de Janeiro, 2003
SANTOS, Joel Rufino dos. Quando eu voltei, tive uma surpresa. Rocco. Rio de Janeiro. 2000
127

Documentos relacionados