a função focalizadora de estruturas "desgarradas" - SIMELP

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a função focalizadora de estruturas "desgarradas" - SIMELP
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 5 – O Português popular do Brasil, Portugal e África: aproximações e distanciamentos.
A FUNÇÃO FOCALIZADORA DE ESTRUTURAS “DESGARRADAS” NO
PORTUGUÊS FALADO E ESCRITO: UM ESTUDO FUNCIONALISTA DE
ORAÇÕES EM SUA OCORRÊNCIA COMO ENUNCIADO INDEPENDENTE
Maria Beatriz Nascimento DECAT (UFMG)1
RESUMO: Discuto, neste trabalho, o uso, em português, de estruturas que ocorrem de
forma sintaticamente independente, sem oração-matriz, isoladas, à maneira de um
enunciado independente. Esse tipo de construção,
a que tenho atribuído
metaforicamente o nome de “desgarrada”, já foi alvo de vários estudos, em que
examinei orações relativas apositivas (tradicionalmente rotuladas de orações
subordinadas adjetivas explicativas) em diferentes gêneros textuais escritos. Numa
abordagem funcionalista norte-americana, amplio, aqui, a discussão dessa ocorrência
também no português falado, no caso das relativas apositivas; e estendo o estudo para a
ocorrência isolada de orações adverbiais, participiais e aquelas iniciadas por verbo no
gerúndio. Parto da hipótese de que o uso dessas estruturas, juntamente com os
mecanismos de topicalização e de clivagem, constitui estratégia eficaz para atribuição
de foco a partes do enunciado, com vistas a reforçar a argumentação, em decorrência
dos objetivos comunicativos do usuário da língua. Será examinado, por um lado, o
estatuto informacional dessas estruturas/construções na perspectiva de seu uso no
português falado e escrito. Por outro lado, pretendo mostrar a função pragmática do uso
‘desgarrado’ dessas estruturas para atender à estratégia de focalização. Importa, aqui,
portanto, a finalidade comunicativa dessa função focal, no intuito de demonstrar que o
uso ‘desgarrado’ desses tipos de estruturas serve a objetivos comunicativos, com
funções textual-discursivas como avaliação, retomada, especificação, recapitulação,
rotulação, dentre outras. Finalmente, pretendo mostrar o papel interacional dessas
estruturas ‘desgarradas’, revelando a integração sintaxe/pragmática, quando será
mostrada a força ilocucionária de argumentação atingida pelo “desgarramento”. A
análise dos dados aponta para a natureza focalizadora dessa estratégia, que contribui
para a organização do fluxo informacional, colocando-se, portanto, a serviço da
produção textual. Para fundamentar a noção de “desgarramento” utilizo, inicialmente, a
noção de “unidade de informação” ou, no caso de dados de língua falada, “unidade
entonacional”. Trata-se de “blocos de informação” que o usuário da língua pode
focalizar de uma única vez. Os parâmetros para identificação desses blocos, neste
trabalho, são a curva entonacional de início e fim de enunciado (para os dados de língua
falada), bem como a pausa ou hesitação que separa a estrutura do restante dos
enunciados no fluxo informacional, além de sua caracterização como cláusula única e à
parte, ou seja, independente, como unidade de informação por si mesma, não anexada à
estrutura que a antecede.
PALAVRAS-CHAVE: estruturas “desgarradas”; focalização;
funções textual-discursivas; estatuto informacional.
1
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Estudos
Lingüísticos. Endereço para correspondência: Rua Via Láctea, 94 – aptº 402, Bairro Santa Lúcia. CEP
30360-270, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. [email protected]
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Introdução
Este trabalho discute o comportamento, em português, de estruturas que se
apresentam “desgarradas”, ou seja, em ocorrência de forma sintaticamente
independente, sem a oração matriz, isoladas, à maneira de um enunciado independente.
Esse tipo de ocorrência, muito comum no português escrito, já foi examinado por Decat
(1993, 1999, 2001a, 2001b, 2004[2005] ) a respeito de orações relativas apositivas
(tradicionalmente rotuladas de orações subordinadas adjetivas explicativas) em
diferentes gêneros textuais escritos, tanto do português brasileiro (PB) quanto do
português europeu (PE).
Numa abordagem funcionalista norte-americana, amplia-se, aqui, a discussão
não só para a ocorrência “desgarrada”, no português falado (inicialmente, no português
falado brasileiro), das relativas apositivas como também para a ocorrência de orações
adverbiais, participiais e aquelas iniciadas por verbo no gerúndio, como já tratado
inicialmente em Decat (2008), incluindo dados do português brasileiro falado. Parte-se
da hipótese de que o uso dessas estruturas, juntamente com os mecanismos de
topicalização e de clivagem, constitui estratégia eficaz para atribuição de foco a partes
do enunciado, com vistas a reforçar a argumentação, em decorrência dos objetivos
comunicativos do usuário da língua.
A noção de “desgarramento” aqui utilizada fundamenta-se, inicialmente, na
noção de “unidade de informação”
— doravante UI (Idea unit,
ou “unidade
informacional”), dada por Chafe (1980), e que é utilizada para a análise de dados
escritos. Já Chafe (1994) adota o termo “unidade entonacional”, para tratar dos dados de
língua oral. Ambos os termos referem-se a “blocos de informação” que o usuário da
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língua pode focalizar de uma única vez, os quais são identificados de diversas maneiras.
Aqui interessam, como parâmetros para essa identificação, sua curva entonacional de
início e fim de enunciado, a pausa ou hesitação que separa a estrutura “desgarrada” de
outra unidade e sua caracterização como cláusula única e à parte. Esses três fatores não
têm, necessariamente, de estar todos presentes quando da caracterização da unidade de
informação. Em segundo lugar, o termo “desgarramento” refere-se, aqui, à ocorrência
desgarrada de uma estrutura, produzida pelo falante/escritor já como uma estrutura não
anexada sintaticamente ao que a antecede, e não, numa leitura gerativista, como uma
estrutura que teria se desgarrado, se desprendido de uma ‘estrutura-mãe’.
Observem-se as estruturas a seguir:
(1) Foi nos velhos tempos. Quando Zé Ramos Filho formava zaga com o Glagê no
Terrestre. Priscas eras, diria o sempre elegante José Cabral. Idos dos anos 30,
enfatizo. (Plínio Barreto – Com todo respeito – ESTADO DE MINAS, Caderno
Cultura, 24/07/04, p.2)
(2) A mulher dá à luz de cócoras, de pé, deitada — no fundo, como lhe aprouver. O
que demonstra que hospitais e clínicas de maternidade podem, também,
oferecer às mulheres um ambiente tão seguro quanto gostoso. (Maria Cadaxa,
PAIS & FILHOS, n. 11 – Lisboa, Abril/00, p.8 – Carta do Leitor) - PE
(3) Mas se os maus passos eram de tradição, também era costumeiro as mães
ralharem e surrarem as filhas erradas. Se bem que Maizé não chegou a apanhar
da mãe. (CT – apud NEVES, 2000, p. 879 . Grifo meu)
Tais estruturas constituem evidência dessa ocorrência isolada no português
escrito, brasileiro e europeu, sejam elas estruturas subordinadas adverbiais, sejam
relativas apositivas (como a estrutura em itálico em
(2) acima, conhecida
tradicionalmente como oração subordinada adjetiva explicativa).
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O presente estudo pretende apresentar, a partir dos resultados obtidos da
análise no português escrito (brasileiro e europeu) e no português falado (brasileiro)2,
uma descrição da forma como tais estruturas se realizam na língua, procurando
explicitar a gramática dessas estruturas que são, dentre outras, usadas para fins de
focalização de partes do texto.
Na presente pesquisa foi levado mais em consideração o critério da pausa
(representada pelo ponto final na escrita, ou equivalente) e a caracterização como uma
oração única (no caso em estudo). Além disso, foi considerada, para os dados de língua
oral, a curva entonacional da estrutura3, equivalendo a um enunciado independente. No
entanto, foi necessário, para identificar UI, examinar as funções textual-discursivas e
pragmáticas, que vão complementar, assim, os critérios de Chafe.
A seguir, algumas estruturas-tipo ilustram a identificação de UIs:
(4) a. [Pedro disse que comprou um carro] = uma UI
b. [Pedro gosta de carro], [embora não possa dirigir]. = duas UIs
c. [Pedro joga futebol], [que é um de seus esportes favoritos]. = duas UIs
d. [Pedro joga futebol]. [Que é um de seus esportes favoritos]. = duas UIs
Finalmente, a noção de “desgarramento” baseia-se, neste trabalho, nas
postulações de Ono e Thompson (1994) ao tratarem de unattached noun-phrases — NPs
(portanto, NPs (ou ‘sintagmas nominais’) ‘não anexadas’ à estrutura que as antecede).
Segundo eles, são NPs que não estão relacionadas gramaticalmente com nenhum
2
A análise dos dados do português falado europeu ainda está em fase de realização.
Cumpre esclarecer que, no presente trabalho, está-se considerando somente o reconhecimento auditivo,
para o caso das estruturas de língua oral. A análise dos dados orais com o auxílio de um programa mais
apurado, como o PRAAT, já está sendo realizada mas não será discutida aqui. De qualquer forma, os
dados submetidos até agora a esse tipo de ferramenta de análise já confirmam muito do que se percebeu
apenas auditivamente.
3
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predicado. Esse tipo de NP corresponde a uma unidade entonacional. Por serem
unidades de informação por si mesmas, podem ocorrer “desgarradas”, em forma
oracional, da maneira também exemplificada a seguir:
(5) Qual é o peso que o telemóvel tem na sua vida? São exatamente 88 gramas.
O que faz com que o Mimo Ultra Leve seja o mais leve telemóvel dos que já
vêm com cartão recarregável. (VISÃO – n. 342, 30/09/99, p. 133) - PE
(6) ...apartamento com vista pra favela [vídeo interrompendo o fluxo da fala] de
onde já partiram balas (Jornal Nacional, Rede Globo de Televisão, 24/02/07)
(7) Em razão da grande quantidade de visitas no dia do lançamento da Brasiliana
Digital (16.6.2009), o sistema ficou lento. Muito lento. De modo que
impossibilitou alguns acessos. Lamentamos o ocorrido e estamos trabalhando
para melhorar a navegação. (www.brasiliana.usp.br; Acesso em 19/6/09)
(8) mas foi bom...o mais difícil foi com meu pai...porque meu pai ele é muito
afe/muito afetuoso comigo e tal (NDO3M, 481-484)
(9) Agora você já sabe, para manter o seu cão de raça pequena com a energia de um
grande campeão, faça como eu: dê a ele PEDIGREE Pequenos Campeões
(Marina Vicari Lerario).
Desenvolvido por veterinários. Recomendado pelos melhores criadores.
(Revista CLÁUDIA, ano 38, nº. 6, junho/1999, p. 253)
(10)Os textos que mandei de Nova York foram publicados pelo Globo num caderno
especial sobre os atentados, mas não foram distribuídos pela agência. Levando
alguns dos meus 17 leitores a suspeitarem que eu estava num processo
patológico de rejeição da realidade, o que não é o caso. Ainda. (F. Veríssimo,
Fundamentalismos, Opinião, ESTADO DE MINAS, 18/09/2001, p. 7)
As ocorrências destacadas em (5) e (6) são orações relativas apositivas, sendo
(5) do português escrito europeu e (6), do falado brasileiro; em (7) e (8) trata-se de
oração adverbial, tanto no português escrito, (7) — uma adverbial consecutiva —,
quanto no falado, (8) — uma adverbial causal; já (9) exibe estruturas “desgarradas” com
o verbo no particípio, ao passo que em (10) observa-se a ocorrência de uma estrutura
com gerúndio.
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Assim, as NPs ‘soltas’, “desgarradas” (estejam elas em forma nominal ou
oracional) vão servir, segundo os autores acima citados, para caracterizar, designar,
rotular, resumir, recapitular, avaliar, identificar, classificar, abreviar ou especificar uma
SITUAÇÃO ou um REFERENTE.
Essas estruturas “desgarradas” têm ocorrido, no português, com SNs ‘soltos’,
com orações adverbiais, com orações relativas apositivas, com orações iniciadas por
particípio e com orações iniciadas por gerúndio.
São examinadas, aqui, as quatro materializações lingüísticas dessas
estruturas desgarradas em forma oracional, plena ou reduzida, quais sejam: as orações
adverbiais, as relativas apositivas (orações subordinadas adjetivas explicativas, na
gramática tradicional), as iniciadas por particípio e as de gerúndio.
O objetivo central do trabalho, como já foi dito acima, é o de apresentar,
num tratamento funcionalista, uma análise que leve mais em conta a função pragmática
do uso ‘desgarrado’ dessas estruturas, para atender à estratégia de focalização que,
conforme aponta Braga (1999, p. 281), fundamentada em Dik (1989), tem a ver “com a
saliência ou importância do que dizemos a respeito das coisas.” Importa aqui, portanto,
a finalidade comunicativa dessa função focal, no intuito de demonstrar que o uso
‘desgarrado’ desses tipos de estruturas serve a objetivos comunicativos, com funções
textual-discursivas como avaliação, retomada, especificação, dentre as arroladas acima.
Em outras palavras, a oração relativa apositiva, por exemplo, considerada como um dos
recursos ou mecanismos sintáticos para dar relevo, ênfase ao que é dito, ao ocorrer
‘desgarrada’ vem comprovar a sua força argumentativa.
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Essa função focal das orações relativas apositivas, das adverbiais e das
estruturas iniciadas por particípio e por gerúndio apresenta-se de maneira semelhante à
que é exercida por sintagmas nominais (SNs/NPs) que ocorrem ‘soltos’ — unattached
NPs, conforme Ono & Thompson (1994), ou ainda floating NPs, conforme Thompson
(1989) — , constituindo o que a gramática tradicional costuma chamar de ‘frases
nominais’, como evidenciam as estruturas destacadas no exemplo do gênero horóscopo,
a seguir:
(11) PEIXES
Preocupação com pessoas próximas. O dia poderá ser um tanto estafante,
cansativo. Repare se você não está escolhendo os caminhos mais difíceis e
penosos para se sentir merecedor do que tem ou do que deseja.
Susceptibilidade muito alta à opinião das outras pessoas. (R. Alvarenga,
“Horóscopo”, ESTADO DE MINAS, Caderno Cultura, 12/06/04, p.2)
Nos exemplos apresentados até aqui, em (11) as duas estruturas marcadas
constituem SNs (NPs) ‘soltos; em (1) e (3) ocorrem orações subordinadas adverbiais
“desgarradas”, ‘soltas’; em (2), do português europeu, há uma oração relativa apositiva
“desgarrada”. O exemplo (12), a seguir, evidencia o desgarramento com gerúndio,
levando a oração até mesmo a constituir um outro parágrafo:
(12) Para retirar o seu prêmio em uma das nossas lojas, faça o download clicando
no botão logo abaixo. Com o arquivo prviamente salvo, abra o formulário,
preencha seus dados e imprima uma folha do vale-compra.
Lembrando que o mesmo é único e intransferível. (grifo do original)
(Excerto de propaganda de O Boticário, UOLMail, acesso em 21/01/2009)
A estratégia de atribuição de relevo a partes do enunciado (ou do texto), ou
seja, a focalização, serve, de acordo com os objetivos comunicativos do usuário da
língua, para, por exemplo, reforçar a argumentação, como no caso dos SNs ‘soltos’ do
horóscopo — exemplo (11) — bem como no caso do texto propagandístico dado
acima, em (12).
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Finalmente, pretende-se, neste trabalho, mostrar o papel interacional dessas
estruturas “desgarradas”, revelando a integração sintaxe/pragmática, quando será
mostrada a força ilocucionária de argumentação atingida pelo “desgarramento”. A
análise dos dados aponta para a natureza focalizadora dessa estratégia de
“desgarramento”, que contribui para a organização do fluxo informacional, colocandose, portanto, a serviço da produção textual.
Orações relativas apositivas desgarradas: formato e função.
A partir dos dados escritos examinados, do PB e do PE,
foi possível
estabelecer uma tipologia (provisória, certamente) da forma de materialização dessas
estruturas “desgarradas” (que foram examinadas também, em outro trabalho
—
DECAT (2001a) — inclusive com corpus do Português europeu).
As orações relativas apositivas “desgarradas” têm, portanto, na escrita
(ocorrendo depois de uma pausa representada por um ponto final), um FORMATO (ou
Formatos), como se segue:
A) FORMATO [ . QUE ]
(13) Olhar, ouvir, conhecer e reagir; algo bem diferente da hipocrisia dos que têm
voz, influência, poder e posições importantes [...]. Que se divertem com nosso
assombro ao ouvir que estamos chegando à perfeição em setores nos quais
enxergamos ruína e decadência. (Lya Luft, Quebrar o silêncio – Ponto de
Vista, VEJA, 3/5/06)
B) FORMATO [ . O que/qual ]
(14) O que muitos temiam e outros ansiavam aconteceu: dezembro chegou. O que
significa: o ano começou a acabar. (Affonso R. Sant’Anna, De repente,
dezembro – ESTADO DE MINAS, 28/11/04)
C) FORMATO [ . N (prep) que ]
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(15) É preciso dizer que os amigos que brigaram com doenças e as venceram
deram novo alento e fizeram 2008 ser visto como um ano milagroso! Um ano
que valeu a pena! (MLMS – 2009 chegando... E-mail, 31/12/08)
(16) São pequenos passos, eu sei. Coisas que passam quase desapercebidas aos
olhos do mundo grande. (Editorial, PAIS & FILHOS, Abril 00, nº 111)
(Português europeu)
D) FORMATO [ . N + Esp + que ]
(17) Um sujeito deve ser entendido a partir de uma contextualização.
Contextualização essa que prevê o correlacionamento de diversos fatores (...)
(F.C.B.C. , trabalho acadêmico, UFMG, 2003)
E) FORMATO [ . Onde ]
(18) Para essas pessoas — para si — existe um banco especial: o Banco 7. Onde
tudo é tratado pelo telefone ou pela Internet. Onde a moderna tecnologia
existe para servir as suas necessidades. (VISÃO, n.343, 7 a 13 de outubro de
1999) (Português europeu)
(F) FORMATO [ . Cujo ]
(19) Para completar este segmento e antes de voltar aos dois filmes citados, vou
me permitir a fazer algumas considerações a respeito daquilo que aprendi na
minha passagem pela crítica de cinema. Cujo espectador é, normalmente,
otimista, forrando-se não apenas do chamado happy end. (Cyro Siqueira –
Tiradentes, a imagem de um País – ESTADO DE MINAS, 28/04/01 ,
Caderno CULTURA, p. 10)
Quanto à FUNÇÃO, as estruturas “desgarradas”, sejam elas SNs (NPs) ou
orações relativas apositivas, vão servir a funções textual-discursivas , motivadas
pragmaticamente, conforme os objetivos comunicativos. Conseqüentemente, a
ocorrência das estruturas desgarradas não se atém a um gênero textual específico; mas
as estruturas se materializam lingüisticamente, de diferentes maneiras, toda vez que a
necessidade de focalização e argumentação aflora no texto como resultado das intenções
e dos objetivos sociocomunicativos do produtor do texto. Sendo assim, a ocorrência
desgarrada das orações relativas apositivas (e dos SNs soltos) está atrelada a um
conjunto de funções que vão servir para aumentar a focalidade pretendida pelo escritor.
Uma oração relativa apositiva desgarrada pode exercer, dentre outras, a função de:
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a) Avaliação, materializada em diferentes formatos, como mostram (20) e
(21), que são orações relativas, e (22), que exibe um SN ‘solto’:
(20) Este o teor da carta recebida do leitor Aresio Marques, pescador que acredita
na existência do caboclo d’água. Um direito que lhe assiste. (Plínio Barreto,
Caboclo de novo, ESTADO DE MINAS, 12/06/04, p.2)
(21) Na sua santa burrice, os propagadores do estreitamento, da separação e do
isolamento, do nivelamento por baixo, ao que parece desejam que não sejamos
continente, mas uma ilha no meio da civilização ocidental. Que talvez nem seja
lá grande coisa, mas é o que temos. (Lya Luft, Ponto de Vista – Revista VEJA,
Ano 38, Nº. 6, 09/02/05, p. 21)
(22) No Lancia Lybra, tudo foi pensado para melhorar a sua qualidade de vida. A
começar pelo acolhimento que lhe reservamos, quando pedir para o
experimentar. Uma vida de qualidade. (VISÃO – n. 343, Lisboa, 7 a 13 de
outubro de 1999, p. 4) - PE
b) Retomada, postulada por Givón (1992) — e utilizada em trabalhos
anteriores à presente pesquisa (DECAT,1993 e 1999) — para explicar o
comportamento simultaneamente anafórico e catafórico, como ponte de
transição, de orações adverbiais em início de período, funcionando como o
que Chafe (1988) chama de guia (guidepost) para a interpretação pelo leitor.
A função de retomada consiste, portanto, em reaver, de alguma forma, uma
informação que foi dada anteriormente no texto, conforme também postulam
Ono & Thompson (1994), sob o rótulo de recapitulação. Essa retomada
pode-se materializar nas orações relativas apositivas ‘desgarradas’, como
mostrado a seguir pelo exemplo (23):
(23) Um dos itens do último censo que mais provocaram comentários de especialistas e
palpiteiros em geral foi a queda da “popularidade” da Igreja Católica no Brasil. Queda
que vem se acentuando de censo a censo e que aparentemente coloca a chamada Nau de
Pedro à beira do naufrágio no encapelado mar da modernidade. (Carlos Heitor Cony, O
gênero e o grau, FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno Opinião, 26/05/02, p. A2)
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c) Adendo (ou mesmo parentético) - Nessa função a estrutura desgarrada
veicula uma informação que é dada tardiamente, como um acréscimo. O
exemplo (24), cujo referente está explícito no texto (“amigo”), evidencia
essa função:
(24) Na hora agá, ela fraquejou. Não apareceu. Não pulou a janela com a trouxa.
Ele acabou se afastando desiludido, mas começou a mandar cartas para ela
através de um amigo. Que não as entregou. Ao contrário, guardou-as,
começou a namorar a moça e logo casou-se com ela. (Affonso Romano de
Sant’Anna – Fugir por amor, ESTADO DE MINAS, Caderno Cultura,
14/11/04, p. 8)
Desgarramento de orações adverbiais, de particípio e de gerúndio
Da mesma forma que as apositivas, orações adverbiais — tidas como
dependentes e subordinadas pela gramática tradicional — ocorrem, em português, de
maneira “desgarrada” — não anexadas (unattached), segundo Ono e Thompson (1994)
— à estrutura que as antecede e consideradas, no presente estudo, unidades de
informação por si mesmas, podendo, por isso, ocorrer “desgarradas”.
No caso das orações adverbiais, não há um formato específico, como foi
encontrado para as relativas apositivas. Em princípio, qualquer oração de caráter
adverbial pode ocorrer isoladamente, por força da estratégia de focalização e, nesse
caso, com funções textual-discursivas e pragmáticas diversas. De modo geral, elas vão
servir a funções decorrentes de relações lógico-semânticas de expansão por realce, nos
termos de Halliday (1994 [1985]), da mesma forma que as orações relativas apositivas
mantêm, com o discurso antecedente, uma relação lógico-semântica de expansão por
elaboração, introduzindo, muitas vezes, informação suplementar.
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Nos exemplos abaixo, as estruturas desgarradas exibem relações adverbiais
diversas.
(25) Minha intenção não era a televisão e, sim, o cinema. Apesar de que, a
experiência com A pedra do reino me pareceu mais com o cinema do que com
qualquer outra coisa. (Sérgio R. Reis – Mergulho no campo dos sonhos – trecho
de entrevista com o ator Irandhir Santos, ESTADO DE MINAS, Caderno TV,
10/06/07, p. 12) - (relação concessiva)
(26) Estar entre as melhores empresas para se trabalhar, [...], é motivo de orgulho
para qualquer empresa. Para nós, da AmBev, é um motivo de comemoração.
Porque comemorar é nossa especialidade. (Revista ÉPOCA, 27/08/07, p. 84)
(relação causal/motivação/justificativa)
Interessante é notar como o ‘uso desgarrado’ de estruturas em textos
propagandísticos, que têm no convencimento seu objetivo central, constitui uma forma
de focalizar a argumentação. Os exemplos (27) e (28) corroboram o efeito desse uso:
(27) Almoço Vecchio Sogno.
Para você sentir o sabor de
um excelente negócio
(Propaganda do Vecchio Sogno Ristorante, Belo Horizonte/MG)
(28) Visite já os escritórios da GreiMed e realize o seu sonho. Enquanto pode.
(VISÃO, n. 343, Lisboa, 7 a 13 de outubro de 1999, p. 13) - PE
Da mesma forma que, quando antepostas, as orações adverbiais servem à
função tópica, quando “desgarradas” (e, portanto, pospostas) elas servem à função
focalizadora.
Observe-se a força argumentativa da ocorrência desgarrada das orações
adverbiais concessivas nos dados abaixo:
(29) Já estou mais bem-humorado, pode ficar tranqüila. E deixe de ser chata, pois
você escreveu apenas quatro palavras no último e-mail. EMBORA
ESTIVESSEM EM DESTAQUE!!! (G.F., e-mail de 13/01/08 – destaque em
caixa alta feito pelo autor do e-mail)
(30) Mas, como é domingo, a gente tem obrigação de aproveitar. Sem falar que o
jornal de hoje é imenso. (Cláudio Paiva, Tempo, JORNAL DO BRASIL,
OPINIÃO, 03/10/99, p. 9)
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SLG 5 – O Português popular do Brasil, Portugal e África: aproximações e distanciamentos.
A natureza essencialmente argumentativa das orações concessivas torna-as
estruturas de freqüente ocorrência desgarrada, pois assim elas estão, de alguma forma,
focalizando algum aspecto do discurso que se coloca em contraste com algum outro
aspecto. Essa freqüência pode ser evidenciada em propagandas, em que a necessidade
de convencimento leva à focalização.
Muitas vezes a estrutura adverbial desgarrada vem iniciada por um
advérbio modalizador, como em (31):
(31) [...] Apesar de eu ter um certo receio da [...], já que lá há muitas cartas
marcadas, vou tentar também. Especialmente porque a área é sintaxe e muito
me interessa. (SC, e-mail de 07/05/08)
Também constituem casos de ‘desgarramento’ orações iniciadas por uma
forma verbal no gerúndio, em que também se evidencia a força argumentativa desse
destaque. Observem-se, por exemplo, (32) e (33) abaixo:
(32) Informo que o sistema de avaliação das atividades de extensão entrará no ar
para acesso aos usuários nesta segunda-feira (08/10) e deve permanecer no ar
até segunda ordem da Pró-Reitoria. Lembrando que a data limite para a
entrega dos documentos nos Cenex das unidades é dia 15/10, de acordo com o
Edital. ( E-mail enviado em 09/10/07 pela Pró-Reitoria de Extensão da
UFMG)
(33) Os textos que mandei de Nova York foram publicados pela Globo num
caderno especial sobre os atentados, mas não foram distribuídos pela agência.
Levando alguns dos meus 17 leitores a suspeitarem que eu estava num
processo patológico de rejeição da realidade, o que não é o caso. Ainda. (F.
Veríssimo, Fundamentalismos, ESTADO DE MINAS, OPINIÃO, 18/09/01,
p. 7)
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Também nas propagandas a ocorrência desgarrada de oração iniciada por
gerúndio fortalece a argumentação, como mostra (34) a seguir, retirado de um folder
publicitário:
(34) TRATAMENTO DA DOR CRÔNICA
[...] O tratamento é individualizado, dispondo de grande arsenal terapêutico,
como medicamentos, bloqueios de nervos, infiltrações, eletroestimulação,
acupuntura e laser, entre outros.
Alcançando hoje altos níveis de aprovação entre familiares e equipe médica)
(Folder publicitário)
Da mesma forma que as orações adverbiais e aquelas introduzidas por
gerúndio (tradicionalmente conhecidas como reduzidas de gerúndio), estruturas
iniciadas com a forma verbal no particípio costumam realizar-se de forma
sintaticamente independente, na língua escrita, desgarradas, sem a oração-matriz. Assim
apontam o exemplo (35) — repetição de (9), dado anteriormente — e o exemplo (36) a
seguir:
(35) Agora você já sabe, para manter o seu cão de raça pequena com a energia de
um grande campeão, faça como eu: dê a ele PEDIGREE Pequenos Campeões
(Marina Vicari Lerario)
Desenvolvido por veterinários.
Recomendado pelos melhores criadores.
(Revista CLÁUDIA, ano 38, nº. 6, 06/99, p. 243)
(36) Chegou Fiat Línea.
Conectado com você. ( Propaganda da Fiat, Revista ISTOÉ, Ano 31, nº. 2030,
1º/1º/08, p. 46)
O ‘desgarramento’ na língua oral
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Falar de ocorrência ‘desgarrada’ de estruturas na língua oral pode causar
certa estranheza, uma vez que essa modalidade já tem sua cadeia sonora ‘recortada’
pelas inúmeras pausas, hesitações, falsos começos e vários outros elementos de
descontinuidade. Entretanto, é possível detectar uma estrutura desgarrada na língua oral
a partir da consideração do parâmetro “curva entonacional”, também apontado por
Chafe (1980), juntamente com a pausa, para a identificação de unidades informacionais
(chamadas por Chafe, 1994, de “unidade entonacional”).
Assim, será considerada um caso de ‘desgarramento’ uma estrutura que seja
precedida, no português brasileiro, por uma pausa (mas não necessariamente) e que
tenha um contorno entonacional de princípio e de fim de unidade, aspectos esses
percebidos auditivamente.4 Os exemplos abaixo ilustram essa ocorrência:
(37) porque o problema que acontece ( ) é que eu não vou chegar em Belo
Horizonte no mesmo dia...vou ter que dormir ou em Campinas ou dormir na
divisa...ou em Teófilo Otoni... se o tempo der (SSA/D2-98, apud SOUZA, G.C.,
UNESP/IBILCE, 2003)
(38) e tinha o parto... que era outro risco... porque eu tenho uma queda de
pressão::violentíssima né? (NDO4F, 15, 277-280 – apud DECAT, 2001b, p.
125)
(39) eu quero::... trabalhar... com o... cotidiano do corpo na escola... de primeiro
grau... principalmente porque é o meu trabalho né? (NDO3M, 2, 57-59, apud
DECAT, 2001b, p. 142)
(40) mas realmente então está encerrado... mas gostaríamos demais de mais filhos...
embora eu fique quase biruta... (D2-SP-360:90-94)
Ou, ainda, (6), aqui repetido:
(6) ...apartamento com vista pra favela [ vídeo interrompendo o fluxo da fala] de
onde já partiram balas (Jornal Nacional, Rede Globo de Televisão, 24/02/07)
4
Ver nota 3 neste trabalho.
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O exemplo (6) evidencia um tipo muito recorrente em falas televisivas, por
exemplo, em que se tem a inserção de vídeos explicativos na notícia veiculada. Ao
término do vídeo, o locutor retoma a fala, começando por uma oração ‘desgarrada’,
muitas vezes iniciada por uma forma verbal no gerúndio. Também a estrutura dada em
(41) — que constitui um dado de introspecção construído com base em inúmeras
ocorrências ouvidas na rede televisiva brasileira — exemplifica esse uso em português:
(41) chegou o Cirque du Soleil... o maior espetáculo de dança e acrobacia dos
últimos tempos...[VÍDEO]... lembrando que as apresentações começam no
próximo mês...no Rio de Janeiro (frase-tipo: telejornais e rádios)
Procurou-se mostrar, aqui, que a ocorrência, na língua oral/falada, dessas
estruturas é precedida de pausa (na maior parte das vezes), também seguida de pausa.
Além disso, têm um único contorno entonacional, com entonação descendente no final,
característica de final de frase/período/enunciado, constituindo um único “jato de
linguagem”, nos termos de Chafe (1980), funcionando como “adendo” e possuindo
caráter remático, tudo isso contribuindo para a força argumentativa que caracteriza essas
estruturas.
Desgarramento, clivagem e focalização
À vista do que os dados mostraram, torna-se possível afirmar que a
ocorrência ‘desgarrada’ —
seja de orações relativas apositivas, seja de orações
adverbiais ou orações de particípio e de gerúndio — é mais um dos recursos que
servem à focalização, juntamente com a clivagem e
com a topicalização. O
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desgarramento vai funcionar, pois, como um mecanismo sintático a serviço da
estratégia de focalização, destacando a relação semântica mais frouxa entre os
enunciados, permitindo considerar-se a estrutura “desgarrada” como correspondendo a
um ato de fala por si, como se observa em vários casos apresentados aqui. Assim, parece
ser possível dizer que estamos diante de uma estratégia de focalização que provém, além
da necessidade de ressaltar o rema, da ligação frouxa entre os enunciados. Decorre, daí,
a posposição, na língua oral, ou a ocorrência desgarrada, na língua escrita, a serviço
também da interatividade permitindo, inclusive, uma produção textual conjunta, como
mostra o exemplo a seguir, retirado de Neves (1999, p.567), em que se pode perceber o
desgarramento funcionando na organização do fluxo informacional.
(42) L1: é, a cachoeira é bonita
L2: Muito bonita
L1: Se bem que agora você não vê...
(D2-SSA-98; 1.22, p.25 e 1.1-2, apud NEVES, 1999a , p. 567)
Há que se reconhecer a produtividade cada vez maior desse recurso na
produção textual do português escrito ( brasileiro ou europeu), assim como no português
oral,
evidenciando não uma ‘falha’ de organização do texto, como querem os
prescritivistas, mas uma tendência da língua para a construção textual. Constitui,
também, um mecanismo importante para a organização das informações no texto, o qual
se caracteriza como mais um recurso sintático para a atribuição de relevo a partes do
enunciado. Em primeiro lugar, as orações relativas apositivas “desgarradas” exibem uma
estrutura, ou uma materialização/realização lingüística semelhante à de estruturas de
clivagem, mais especificamente a pseudo-clivagem. Comparem-se as estruturas dadas
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em (a) e (b) abaixo — tiradas de Oliveira e Braga (1997, p. 209) — com as estruturas
destacadas no texto dado em (43):
a) É dinheiro que João quer (clivada)
b) O que João quer é dinheiro (pseudo-clivada)
(43) Assim, fomos nos transformando numa multidão que rejeita o sentido e exige o
espetáculo. Já vamos para o quinto Big Brother Brasil. O que significa que
quem melhor monitora o desejo humano hoje é a mídia televisiva. O fascínio
hoje é se vender no “mercado da carne”, onde jazem corpos
dessubstancializados. A lógica é trocar a mensagem por signos e estereótipos.
O que temos é uma massa que rejeita a dialética e exige a simplificação do
espanto, do terror e do gozo. (Inez Lemos – psicanalista – A hegemonia do afeto
- ESTADO DE MINAS, Caderno PENSAR, 12/06/04, p. 3)
Em (43), a primeira estrutura destacada é uma oração relativa apositiva
“desgarrada”, ocorrendo isoladamente como uma UI à parte e tendo como referente não
um sintagma nominal específico, mas um fato, ou, mais precisamente, uma situação. Já a
segunda estrutura destacada é uma pseudo-clivada, iniciada por um segmento
materializado lingüisticamente de maneira idêntica ao que inicia um dos formatos de
oração apositiva “desgarrada”, ou seja, o formato [.O que] .
Em segundo lugar, as orações “desgarradas”, de qualquer um dos tipos vistos
aqui, se assemelham a estruturas pospostas que atuam como afterthought, ou adendo.
Ora, o fato de terem essa atuação decorre do caráter de informação suplementar que
muitas vezes as “desgarradas” têm, por força de objetivos argumentativos que se
materializam na focalização, no realce.
Finalmente, é importante ressaltar o papel interacional dessas construções, o
que acaba por revelar a integração da sintaxe com a interação. Penso que se pode dizer,
no caso das orações relativas apositivas, que se trata de um SN ‘solto’ complexo, com
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força ilocucionária /pragmática maior que a de uma oração complexa. Comparem-se as
estruturas a seguir, em que a força argumentativa se mostra muito mais evidente em (44)
do que em suas possíveis paráfrases dadas em (45):
(44) “Nada de menino na varanda!”
X
(45) É proibido menino na varanda
Eu não quero menino na varanda
Vocês estão proibidos de ficar na varanda
etc.
Ou, ainda, no exemplo (46), com sua possível paráfrase em (47), com
orações desgarradas cujo verbo está no infinitivo, que não está sendo discutido aqui mas
que tem, na oração apositiva desgarrada, uma função resumitiva, reforçando a
argumentação.
(46) Valeu pelas viagens, encontros, desencontros. Ver argentinos em seu habitat
natural, suportar Brasília, rever Curitiba, Ribeirão Preto, Piracicaba, Belo
Horizonte algumas vezes...parar até em delegacia de Jacarepaguá! Movimento
que faz a vida. (MLMS, 2009 chegando... E-mail, 31/12/08)
(47) Valeu pelas viagens, encontros, desencontros. Valeu para ver argentinos em seu
habitat natural, para suportar Brasília, para rever Curitiba, Ribeirão Preto,
Piracicaba, Belo Horizonte algumas vezes... valeu para parar até em delegacia
de Jacarepaguá! Movimento que faz a vida.
Considerações finais: uma proposta para a descrição da gramática do português
O comportamento das estruturas “desgarradas” encontradas no português,
escrito e oral, permite-me, a partir da análise empreendida, afirmar a natureza
focalizadora do “desgarramento” com vistas à organização do fluxo informacional
dentro dos objetivos comunicativos do usuário da língua. E é por força dessa
característica que propõe-se, aqui, considerar, de ora em diante, o “desgarramento”
como um mecanismo/recurso sintático que serve à estratégia de focalização, ao lado
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da topicalização e da clivagem. Assim, será possível expandir a descrição da gramática
da focalização em português, e tornar o “desgarramento” como um de seus mecanismos
a serviço da produção textual. Dessa forma, no exercício de produção textual, oral ou
escrita, a função focalizadora é que irá determinar a ocorrência de uma oração como um
enunciado independente, seja ele de estruturas coordenadas ou de subordinadas; e irá
determinar, também, a ocorrência dos SNs ‘soltos’ com objetivos comunicativos de
reforçar a argumentação, de realçar ou dar destaque a determinado elemento ou a
determinado fato ou situação.
No trecho abaixo, retirado de uma crônica de Maria Antonieta Cohen, a
estrutura grifada ilustra bem o que foi apresentado neste trabalho:
Os trilhos continuaram mesmo com o asfalto. Ficaram ali como um sinal do
passado. O bonde serviu de deboche dos cariocas para nós mineiros:
- “Mineiro compra bonde, diziam”, pois parece que realmente foram
comprados bondes por nós, quando ninguém mais os queria! E sempre que
vejo um carioca, com aquele ar superior de quem tem mar, me sinto uma
compradora de bondes! Que viraram museu em Belo Horizonte. O barzinho
“Trem Bão”, que funcionava no antigo vagão de um trem de ferro nos anos
1970, nos lembrava nostalgicamente do bonde. (M.A.A.M. Cohen, Nos
tempos do bonde, s/d – Grifo meu)
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