sobre o fornecimento de remédios off-label - ESAPERGS

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sobre o fornecimento de remédios off-label - ESAPERGS
SOBRE O FORNECIMENTO DE REMÉDIOS
OFF-LABEL
Sumário
JULIANO HEINEN
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul
Mestre em Direito pela UNISC
Introdução
1. Dos medicamentos off-label;
2. Do perigo do uso dos medicamentos off-label;
3. Deferimento contraria a legislação e as decisões do Supremo Tribunal
Federal
Conclusões
Referências.
Resumo
Defende-se a impossibilidade de se deferir judicialmente o fornecimento de
medicamentos sem eficácia comprovada, o que se nomina de “medicação offlabel”. Os fármacos não aprovados pelos órgãos de saúde competentes ou sem
eficácia comprovada possuem um alto grau de risco à saúde, por possuírem
potencialidade suficiente a causar reações adversas graves ou à morte. A
dispensação judicial de fármacos desta natureza privilegia os interesses
econômicos da indústria farmacêutica, que lucra em três frentes, como será
percebido. Estes fatores são suficientes para se defender pela impossibilidade
de o Estado custear o tratamento de pacientes por meio de drogas off-label.
Introdução
O uso da medicação off-label para os quadros clínicos apresentados
em demandas judiciais consiste em um tratamento experimental, sem
comprovação de sua eficácia. A prescrição um medicamento desta natureza
causa riscos alarmantes à saúde dos pacientes. Além disso, a possibilidade
de se comercializarem remédios ditos off-label vai ao encontro dos interesses
econômicos da indústria farmacêutica.
A comercialização de medicamentos desta natureza aumenta
significativamente os lucros deste segmento econômico. O financiamento de
testes prévios à dispensação possui um custo intenso, o que não é feito no caso
da medicação off-label. Esta situação permite com que as companhias produtoras
de remédios não gastem com estes testes, que, no mais das vezes, revelam
os riscos e as limitações dos fármacos. De quebra, a indústria do ramo ainda
lucra por testar, literalmente, os fármacos na população, auferindo, pois, cifras
astronômicas.
Além disso, a ampliação dos testes pode revelar os efeitos adversos ou
a ineficácia do fármaco, o que, para as empresas do ramo, seria um dado
completamente indesejado. Por fim, é nítido que a comercialização off-label
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atinge uma gama muito maior de consumidores, dado o fato de não se terem
restrições de público, posologia, CID e efeitos colaterais.
Dessa forma, evidencia-se um interesse da indústria farmacológica na
dispensação de medicamentos off-label, contando, quiçá, com a tutela judicial.
Por exemplo, a fluoxetina é um antidepressivo fornecido judicialmente em larga
escala no Estado do Rio Grande do Sul. Contudo, em muitos casos, já foi prescrito
para controle de obesidade, tendo esta indicação sido condenada veementemente
pelo organismo norte-americano responsável por fiscalizar e aprovar a
dispensação comercial de medicamentos, ou seja, a Food and Drug Administration
(FDA). Da mesma forma, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
não aprova este fármaco quando ministrado como controlador de apetite. O uso
do medicamento para emagrecer pode causar tendências suicidas, ansiedade e
hemorragia abdominal1.
Sendo assim, por inúmeros motivos, defende-se a impossibilidade de se
deferirem medidas judiciais visando a compelir os entes públicos a fornecerem,
com recursos estatais, medicamentos desta natureza.
1. Dos medicamentos off-label
A expressão “label” pode ser traduzida como “rótulo”. Em termos
farmacêuticos, por “bula”. No caso específico, quando o FDA aprova a prescrição
de um medicamento, ele referenda a comercialização de um label, ou seja, de
uma determinada bula. Ali se demonstra todo o processo de desenvolvimento
do fármaco, as pesquisas realizadas, as reações adversas, como ele deve ser
ministrado, em que dose e frequência, quem pode recebê-lo, etc. Toda medicação
prescrita fora destes padrões é considerada off-label, ou seja, “fora da bula”, “fora
do rótulo”.2
Uma droga é usada off-label quando, por exemplo, ministrada para uma
doença diferente ou para outra condição médica que não aquela descrita no
rótulo aprovado pelo FDA (no Brasil, pela ANVISA). Ou, ainda, a medicação
pode ser considerada off-label, no momento em que é dispensada para uma
diferente rota (protocolo clínico), ou em uma dosagem diferente, ou mesmo
quando não tenha comprovação científica de sua eficácia. O fármaco “Off-label”
é também conhecido como “não aprovado” ou “não indicado” ao uso3.
Qualquer outra forma de se utilizar uma droga é considerada uma nova droga, que
deverá/deveria passar por todos os testes e ser aprovada pela ANVISA, por
exemplo4. Então, quando um experto ministra ao paciente um remédio para outra
doença (CID) que não aquela estabelecida ao fármaco, ou em outra dosagem,
enfim, está, em verdade, determinando que o paciente consuma um remédio
nunca antes testado. Tal fato pode gerar um alto risco à saúde do paciente.
1 CARLINI, E. A; NOTO, A. R; NAPPO, S. A; SANCHEZ, Z. V. D. M; FRANCO, V. L. S; SILVA L. C. F; SANTOS, V. E. ; ALVES,
D. C. Fluoxetina: indícios de uso inadequado. Jornal brasileiro Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 58, n. 2, p. 97-100, jan. 2009.
2 DRESSER, R.; FRADER, J. Off-Label Prescribing: A Call for Heightened Professional and Government Oversight. J Law Med
Ethics, Boston, v. 37, n. 3, p. 476-486, 2009.
3 TURNER et al. Op. Cit., entendem que o medicamento off-label é aquele aprovado, mas ministrado em condições não
aprovadas, por exemplo, em desrespeito ao protocolo clínico, à idade, à dose, à frequência de administração etc, não se
englobando neste conceito os remédios não aprovados. Em sentido contrário, conceito que será adotado neste trabalho, como
exposto, tem-se a posição de: GAZARIAN, M.; KELLY, M.; McPHREE, J. R., et al. Off-Label Use of Medicines: Consensus,
Recomendations for Evaluating Appropriateness. Medical Journal of Australia. v. 185, n. 10, p. 544-548, 2006. E também de:
DUNNE, J. The European Regulation on Medicines for Paediatric Use. Paediatric Respiratory Reviews. v. 8, n. 2, p. 177, ago. 2008.
4 Conferir: GOPAL, K. S. Santhan. Off with the label and on the Avastin bandwagon: Why now and how far?. Disponível em: <
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2712692/?tool=pmcentrez> . Acesso em: 12 jan. 2010.
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Conforme as Resoluções nº196/96 e nº 251/97, oriundas do Conselho
Nacional de Saúde (CNS), um medicamento, para poder ser ministrado, deve
passar por quatro tipos de testes, ou seja, por quatro fases de experimentação5.
Não é um procedimento simples. Mas deve ser destacado o fato de que as
resoluções determinam que qualquer prescrição de medicamento já autorizado,
mas que esteja fora dos limites para os quais foi aprovado, deve ser considerada
uma nova medicação, não autorizada, portanto.
No âmbito do FDA, uma prescrição de medicamento fora dos protocolos
clínicos reclama, claro, uma nova avaliação e autorização do organismo6. Veja o
que Adriane Fugh-Berman e Douglas Melnick7 relatam sobre a matéria:
Uso off-label de medicamentos tem sido associada a efeitos
adversos graves. Por exemplo, Duract (Bromfenac), um analgésico,
só foi aprovado para o tratamento da dor aguda, e apenas para uso
a curto prazo (menos de dez dias). No entanto, alguns médicos
receitavam off-label de maior duração. Duract causou insuficiência
hepática, e foi retirada do mercado, menos de um ano após a
homologação. O Pondimin supressor de apetite (anorexígenos),
aprovado para uso a curto prazo, foi amplamente prescritos com
fentermina e usado a longo prazo. A combinação offlabel “fenphen” causou doença valvar. Nas crianças, o uso off-label de drogas
está associado a um aumento do número e gravidade dos efeitos
adversos.8
Afirmam, ainda, complementando seus estudos, que:
Do ponto de vista empresarial, aumentou o uso off-label significa
maiores receitas de grandes populações de usuários, especialmente
para os produtos com indicações estreito. Por exemplo, uma empresa
que sabe que um medicamento para leucemia aprovado reduz rugas
faciais poderia financiar um ensaio de eficácia em pessoas com
rugas, a fim de angariar uma nova indicação. No entanto, os ensaios
clínicos são caros, e os resultados poderiam diminuir as vendas,
mostrando que a droga é ineficaz, ou tem problemas de segurança
significativas. Uma empresa de financiamento de longo prazo
experimental para testar a eficácia do Vioxx (rofecoxib) em pólipos
do cólon apareceram os riscos cardiovasculares, que resultou na
droga que está sendo retirado.9
5 Em síntese, as quatro fases podem ser divididas da seguinte maneira: primeiro, testa-se se o fármaco possui segurança ao
ser aplicado em seres humanos. Após, testa-se os fármacos que se mostraram seguros em alguns pacientes. Em uma terceira
etapa, avaliam-se os efeitos adversos e se refazem os testes, com novas correções. Por fim, o medicamento somente pode ser
ministrado com autorização administrativa, em pacientes específicos, juntamente com o teste do placebo.
6 NIGHTINGALE, S. L. Off-Label Use of Prescription Drugs. American FamilyPhysicians, Washington , v. 68, n. 3, aug. 2003,
p. 500.
7 Adriane Fugh-Berman é do Departamento de Fisiologia e Biofísica, Georgetown University Medical Center, Washington,
DC, Estados Unidos. Douglas Melnick é um médico de medicina preventiva que trabalham em North Hollywood, Califórnia,
Estados Unidos da América.
8 FUGH-BERMAN, Adriane e MELNICK, Douglas. Off-Label Promotion, On-Target Sales. Disponível em: <http://www.
ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2573913/?tool=pmcentrez> . Acesso em: 12 jan. 2010. No original, lê-se: “Off-label use
of drugs has been associated with serious adverse effects. For example, Duract (bromfenac), an analgesic, was approved only
for treating acute pain, and only for short-term use (less than ten days). However, some physicians prescribed Duract offlabel for longer durations. Duract caused liver failure, and was withdrawn from the market less than a year after approval.
The appetite suppressant Pondimin (fenfluramine), approved for short-term use, was widely prescribed with phentermine
and used long-term. The off-label combination “fen-phen” caused valvular heart disease. In children, off-label use of drugs is
associated with an increased number and severity of adverse effects.”
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O uso off-label de medicações mostra-se geralmente vantajoso somente para
as empresas que comercializam estes fármacos, porque vai ao encontro dos
objetivos dos laboratórios. Ao aplicar os medicamentos na população sem
custear testes prévios, as empresas farmacêuticas lucram em dobro, porque, de
quebra, ganham também altas somas pela venda de seu produto. Em verdade, as
empresas lucram absurdamente: não só pelo fato de se negarem a custear os testes prévios
necessários, mas também em uma segunda oportunidade, ao colocarem no mercado o
medicamento, que será literalmente testado nos pacientes.
Por exemplo: apesar da falta de evidência robusta para a segurança e para
a eficácia do misoprostol em obstetrícia, o fabricante, talvez por não querer ser
associado com uma droga do aborto, não foi buscar a aprovação da E.U. Food and
Drug Administration (FDA) para todos os usos de saúde reprodutiva10. Estudos
independentes foram finalmente realizados e publicados, concluindo-se pelo
alto risco que o fármaco representava11.
O marketing farmacêutico tem distorcido o discurso sobre uso off-label,
incentivando o consumo de medicamentos potencialmente perigosos aos
pacientes, para os quais os riscos e os benefícios são desconhecidos. Uma longa
história de comercialização de drogas provou a agressividade causada nos
pacientes e, por vezes, resultou na promoção de usos questionáveis, como o nível
de mortalidade. Sem os devidos testes, não há garantias para a integridade da
informação que é gerada, e os pacientes podem ser submetidos a medicamentos
que podem ser ineficazes ou mesmo prejudiciais para as suas condições clínicas12.
Especialmente no campo pediátrico, o uso de medicação off-label é alarmante.
Estima-se que 7 a 20%13 das reações adversas causadas pelo uso de drogas desta
natureza são consideradas graves14.
As empresas farmacêuticas utilizam inúmeros mecanismos, legais e ilegais,
para inserir no mercado, remédios sem as comprovadas eficácia ou segurança.
Muitas vezes, pesquisas com um baixo padrão técnico são divulgadas, servindo,
de quebra, como marketing15.
As evidências desta prática são inúmeras. Por exemplo, tem-se o caso da
empresa farmacêutica Eli Lilly que, no começo 2009, foi multada em quinhentos e
quinze milhões de dólares, por promover o antipsicótico Zyprexa® (olanzapina)
sem qualquer aprovação do organismo responsável. Segundo ficou provado, além
de ter sido confessado pela empresa, a Lilly praticou vendas deste psicotrópico
para tratamentos clínicos cuja aprovação não existia. Enfim, para patologias
9 Idem. No original, lê-se: “From a business standpoint, increased off-label use means larger revenues from larger user
populations, especially for products with narrow indications. For example, a company that knows that an approved leukemia
drug reduces facial wrinkles could fund an efficacy trial in people with wrinkles in order to garner a new indication. However,
clinical trials are expensive, and the results could decrease sales by showing that the drug is ineffective, or has significant
safety problems. A company-funded long-term trial that tested the efficacy of Vioxx (rofecoxib) for colon polyps turned up
cardiovascular risks that eventually resulted in the drug being withdrawn.”
10 O debate sobre o uso off-label da droga por ser encontrado em: MUIR, H. Medical roulette: Dicing with death. New Science.
n. 191, 2006, p. 38-41. Os resultados sobre o uso a droga são assustadores.
11 FUGH-BERMAN, Adriane e MELNICK, Douglas. Op. Cit. 12 FIELD, Robert I. The FDA’s New Guidance for Off-Label
Promotion Is Only a Start. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2730097/?tool=pmcentrez>.
Acesso em: 12 jan. 2010. Originalmente, tal artigo foi publicado na P & T, a Food and Drug. O Dr. Field é PhD em saúde pública e
faz parte do Departamento de Política de Saúde e Saúde Pública, ministrando a matéria de Política de Saúde, na Universidade
das Ciências, em Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos.
13 Percentagem completamente inaceitável sob o ponto de vista médico.
14 WEISS, J.; KREBS, S; HOFFMANN, C., et al. Survey of Adverse Drug Reactions on a Paediatrics Ward: A Strategy for Early
and Detailed Detection. Paediatrics. v. 110, n. 2, p. 254-275, 2002.
15 Uma referência interessante na matéria pode ser encontrada em: ANGELL, M. A Verdade Sobre os Laboratórios Farmacêuticos.
Tradução de: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 2008. O autor denuncia, inclusive, a criação e publicação de artigos de
autores fantasmas pela indústria farmacêutica, com o intuito de fomentar uma “pseudo-verdade científica” sobre o fármaco
que se quer vender. Isso sem falar nos casos de patrocínio de cientistas para, em congressos, dar um relato benéfico sobre o
medicamento. Ou mesmo o fomento econômico de todo o tipo de evento que possa divulgar o produto. Outra denúncia pode
ser encontrada no prestigiado filme “O Jardineiro Fiel”, do diretor brasileiro Fernando Meirelles.
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que não foram objeto de pedido de autorização junto ao FDA16. Este organismo
somente tinha aprovado o uso do Zyprexa® para tratamento agudo e de longo
prazo do transtorno bipolar I e para o tratamento da esquizofrenia. Contudo, o
laboratório agenciou tratamento nas patologias leves. E mais, confessou que fez
campanha para que o fármaco fosse ministrado em doenças como a demência e
a Alzheimer17, para as quais, como visto, o uso da medicação mencionada não
tinha testes prévios de segurança/eficácia, ou mesmo aprovação.
Os seguintes medicamentos, todos produzidos pela Pfizer, são comercializados
no Brasil: o antipsicótico Geodon® (cloridrato de ziprasidona monohidratado); o
antiinflamatório Bextra® (parecoxibe sódico); o antibiótico Zyvox® (linezolida),
e o anticonvulsivante Lyrica® (pregabalina). Contudo, a Pfizer pagou uma
multa de mais de dois bilhões de dólares por promovê-los de forma off-label nos
Estados Unidos18.
No Brasil, a publicidade e prescrição de medicamentos fora dos limites da
autorização junto à ANVISA são proibidas. Em 2008, pela via da Resolução
nº 1255, tal ente proibiu a publicidade do medicamento alfapeginterferona,
produzido pela Schering-Plough, porque anunciava uma posologia diferente
daquela que fora autorizada.
2. Do perigo no uso dos medicamentos off-label
Um dos sítios mais respeitados do mundo no âmbito da medicina, o
National Center for Biotechnology Information (NCBI), referência mundial na
matéria médica, publica teses e pesquisas sobre os avanços da ciência e da
saúde, proporcionando o acesso à informação biomédica e genômica19. Neste
sítio virtual, pode ser encontrados inúmeros artigos assinados pelas maiores
autoridades do mundo na matéria, os quais condenam veementemente o
uso das drogas off-label, ou seja, dos medicamentos sem comprovação de sua
eficácia. Estudos empíricos mostram que o uso off-label de medicamentos (leiase: medicamentos sem comprovação de sua eficácia científica) é conectado com
um aumento significativo do risco de uma reação adversa à droga.
Em importante pesquisa com quase mil paciente foi detalhado que:
[...] comum encontrar em suas prescrições dosagens e indicações
inadequadas, interações medicamentosas, associações e redundância
uso de fármacos pertencentes a uma mesma classe terapêutica e
medicamentos sem valor terapêutico. Tais fatores podem gerar
reações adversas aos medicamentos (RAM), algumas delas graves
e fatais.20
16 Conferir a exposição feita em: CURTISS, F. R; FAIRMAN, K. A. Contradictory Actions on Off-label Use of Prescription
Drugs? The FDA and CMS Versus the U.S. Justice Department. Journal of Managed Care Pharmacy. United States, v. 15, n. 2, p.
161-165, mar. 2009.
17 Foi tão gritante esta conduta, que o medicamento nem sequer apresentava eficácia se comparado com o placebo
(SPIELMANS, G. I. The promotion of olanzapine in primary care: An examination of internal industry documents. Social
Science & Medicine, v. 69, n. 1,p. 14-20, mai. 2009).
18 CURTISS; FAIRMAN. Op. Cit.
19 Em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov>.
20 Tal artigo é de autoria de Gabriela B G Mosegui, Suely Rozenfeld, Renato Peixoto Veras e Cid M M Vianna, que pertencem
ao Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ - Brasil (GBGM), Escola Nacional
de Saúde Pública/FIOCRUZ. Rio de Janeiro, RJ - Brasil (SR), Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do
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A conclusão do trabalho é alarmante:
A indústria farmacêutica e seu marketing poderoso são
responsáveis pela prescrição e consumo de medicamentos sem
eficácia estabelecida e desvinculados da realidade nosológica da
população. Como a decisão médica a respeito do medicamento
envolve, além dos fatores supracitados, as opções de medicamentos
existentes no mercado, os organismos responsáveis pela aprovação
de “novos medicamentos” devem assegurar a oferta de produtos
seguros e eficazes já no registro. A utilização de medicamentos
genéricos deveria ser levada em conta por qualquer sociedade que
desejasse vivenciar uma política racional de uso de medicamentos.21
Tem-se visto, porém, solicitações médicas para liberação de medicamentos
ainda de uso experimental (off-label), permitindo-se que sejam ministradas drogas
sem eficácia comprovada. Em casos tais, os riscos são alarmantes, pelo simples
fato de que a doença não estará, necessariamente, sendo curada, bem como pelo
fato de que tais fármacos podem causar reações adversas preocupantes. Estimase que 60% de medicamentos off-label sejam responsáveis por reações adversas a
medicamentos (RAM) em crianças22.
O uso irracional dos medicamentos é um dos maiores desafios a ser enfrentado
pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Este organismo internacional
possui estudos estatísticos que apontam que 75% dos antibióticos são prescritos
inapropriadamente. Quanto aos pacientes, estima-se que somente metade tome
corretamente os fármacos. Tais fatos paulatinamente fazem com que se aumente
a resistência dos germes e dos demais organismos vivos infecciosos.
Um bom exemplo de medicação ministrada de forma indiscriminada consiste
no famoso caso do fármaco “Talidomida”. A indústria farmacêutica que o
desenvolveu acreditou que o medicamento era tão seguro, que era propício
para prescrever a mulheres grávidas, a fim de combater enjoos matinais, à
revelia de estudos científicos seguros. O laboratório promoveu altas campanhas
publicitárias, sendo que a Talidomida foi rapidamente prescrita a milhares de
mulheres e espalhada para todas as partes do mundo (46 países), inclusive para
o Brasil.
No final da década de sessenta, foram descritos na Alemanha, Reino Unido
e Austrália os primeiros casos de malformações congênitas, onde crianças
passaram a nascer com gravíssimas sequelas, que incluíam desde a má-formação
cerebral, à deformação ou ausência de membros (braços, pernas, etc.). Em 1962,
quando já havia mais de 10.000 casos de defeitos congênitos a ela associados em
todo o mundo, e, claro, muitos deles no Brasil, a Talidomida foi removida da
lista de remédios indicados.
Na história, a Talidomida foi associada a um dos mais horríveis acidentes
médicos, justamente por ter sido prescrita sem comprovação científica segura. A
pergunta necessária a ser feita é: podemos fazer parte deste engodo? Fomentar,
com decisões liminares, os interesses nitidamente econômicos da indústria
farmacêutica?
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ - Brasil (RPV, CMMV). O artigo pode ser acessado em: “Avaliação da qualidade do uso de
medicamentos em idosos. In: Revista de Saúde Pública n. 5, v. 33. São Paulo: out. de 1999. Disponível em: <http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101999000500002>. Acesso em: 24 out. 2009.”
21 Idem.
22 TURNER, S. N.; NUNN, A. J.; FIELDING, K., et al. Adverse Drugs Reactions to Unlicenced and Off Label Drug on Paediatric
Wards: A Prospective Study. Acta Paediatrica. v. 88, p. 965-968, 1999.
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Exemplos outros não faltam, especialmente no campo pediátrico. O
desenvolvimento de kernicterius, um dano cerebral grave, advindo pela
associação de hiperbilirrubinemia neonatal, foi causado pelo uso indiscriminado
de sulfonamidas sem pesquisas sérias ou sem a aprovação pela agência sanitária
competente. A “síndrome do bebê cinzento” (Gray baby syndrome) foi causada,
em larga escala, por ter sido ministrado cloranfenicol no período neonatal, claro,
sem as devidas pesquisas.
Em um período recente, a cisaprida23 foi responsável por levar pacientes
a arritmias gaves. Tal medicação não tinha os mínimos testes ou sequer era
aprovada pelos órgãos federais competentes24.
O problema é altamente complexo. As indústrias farmacêuticas, por exemplo,
não comercializam derivações de seus produtos em dosagens menores ou
em forma líquida/sólida, o que induz os enfermos a consumirem drogas em
dosagens inadequadas. Adultos com problemas de deglutição ou que necessitam
de uso de sondas acabam por ter a prescrição certas medicações comprometida.
A maioria dos remédios em forma líquida não possui concentrações adequadas
para prescrições rigorosas, obrigando a diluição25.
O FDA americano possui normas rígidas disciplinando as pesquisas de
medicamentos experimentais, a fim de permitir sua comercialização. Como
exemplo de regras claras na aprovação da comercialização das drogas tem-se: a
Food and Drug Administration Modernization Act (FDAMA), FDA Paediatric Rule,
etc. No âmbito da União Europeia, o organismo de saúde responsável, no caso
o EMEA, especialmente a partir de 2007, adotou regras ainda mais intensas para
permitir a prescrição de qualquer medicamento, na linha das normas do FDA26.
Para se ter uma ideia da gravidade do problema, até 2003, somente 20 a 30%
dos medicamentos submetidos à avaliação do FDA foram aprovados. Em 2007,
uma nova rodada de estudos foi feita sobre os fármacos em circulação (outrora
aprovados), sendo que estas pesquisas geraram a alteração da bula de inúmeros
produtos, inclusive no que tange à dosagem27.
Na União Europeia, de 1995 a 2005, somente 33% dos medicamentos
submetidos ao crivo do órgão de saúde competente receberam autorização para
serem ministrados em pacientes. Ressalta-se que, deste percentual, metade dos
remédios teve de ser submetido a exames adicionais.
Segundo estimativa feita pela Organização Mundial da Saúde, a prescrição
incorreta de medicamentos é responsável por cerca de 7.000 (sete mil) óbitos por
ano, nos Estados Unidos. Já 58% dos danos advindos de medicamentos advêm
daqueles fármacos com alto potencial de risco28.
Em pesquisa específica acerca do uso off label do medicamento Paracetamol®
em crianças, percebeu-se um risco 2,4 (dois vírgula quatro) vezes maior de
ocorrência de efeitos colaterais graves ou danosos à integridade dos infantes29.
23 Droga utilizada para tratamento de refluxos.
24 A literatura médica é pródica em explicitar com mais detalhes os casos citados. Por todos: SHIRKEY, H. Therapeutic
Orphans. Paediatrics. v. 104, n. 3, p. 583-584, 1999.
25 NAHATA, M. C.; ALLEN, L. Extemporaneous Drug Formulations. Clinical Therapeutics. v. 30, n. 11, p. 2112-2119, 2008.
26 CONROY, S. e McINTYRE, J. The Use of Unlicenced and Off-Label Medicines in the Neonate. Seminares in Fetal & Neonatal
Medicine. v. 10, n. 1, p. 115-122, 2005.
27 MEADOWNS, M. Drugs and Ressearch and Children. FDA Consumer Magazine, 2003. Disponível em: <www.fda.gov/cder/
paediatric>. Acesso em: mar de 2010.
28 CADWELL, S. M. Paediatric Medication Safety in Emergency Departament. Journal of Emergency Nursing. v. 34, n. 4, p.
375-377, 2008.
29 SANTOS, D. B.; CLAVENNA, A.; BONATI, M.; COELHO, H. L. L. Off-label and unlicensed drug utilization in hospitalized
children in Fortaleza, Brazil. Eur J Clin Pharmacol, v. 64, n. 11, p. 1111–1118, aug. 2008.
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Em oncologia, M. R. Gillick30 afirma que em cinquenta por cento dos casos há
o uso de medicação off-label, o que é altamente preocupante, ainda mais em se
tratando de drogas que causam uma agressividade intensa à saúde humana.
Poder-se-ia questionar os benefícios do uso de medicamentos desta natureza.
O ácido acetil salicílico foi amplamente usado no tratamento de doenças cardíacas
de maneira offlabel, antes de ser aprovado. O uso do propanolol é um outro bom
exemplo, porque aprovado para o tratamento de angina, mas, após, percebeu-se
sua eficácia no tratamento de hipertensão.
Quanto a este aspecto, três ponderações devem ser feitas: (a) tais exemplos
poderiam ter resultado em uma catástrofe clínica, correndo-se o risco de se ter
mais uma síndrome, tal qual ocorreu com a Talidomida; (b) o uso off-label, ou
seja, para outra indicação que não aquela para o qual o remédio foi aprovado,
deve passar por todos os testes que seriam exigidos à aprovação de uma droga
nova; (c) o Estado lato sensu não pode ser obrigado a custear31 os tratamentos
experimentais. O medicamento, neste caso, deve ser custeado pelo particular,
calcado no livre consentimento (no consentimento informado), salvo quando
uma política pública seja suficientemente bastante para impingir que o Poder
Público fomente a pesquisa na cura de uma moléstia (por exemplo, cura do vírus
HIV, ou, mais recentemente, do vírus H1N1 – popularmente conhecido como a
“gripe suína”)32. Este último item será adiante melhor desenvolvido.
3. Deferimento contraria a legislação e as decisões do Supremo
Tribunal Federal
À vista dos fundamentos transcritos, em se tratando de medicamento sem
estudos comprovados para o fim a que foi receitado, compete exclusivamente
ao particular arcar com seus custos e com a responsabilidade do seu uso. Isso
porque, embora o ente público possua o dever de prestar assistência médica aos
necessitados, este dever se faz presente somente quando preenchidos os requisitos
médicos, técnicos e legais necessários e exigidos para o fornecimento da medicação
pleiteada. Não pode o Estado lato sensu simplesmente fornecer medicamentos
sem a devida avaliação, podendo até mesmo vir a ser responsabilizado pela
administração inadequada que venha a causar danos à saúde dos pacientes33.
O Poder Público, como é notório, está adstrito ao princípio da legalidade
estrita (art. 37, “caput”, da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 – CF/88), ou seja, só pode atuar ante as permissões legais. Eventual decisão
que condena o Poder Público no fornecimento de tratamento sem a comprovação
de sua eficácia mostra-se contrário à Lei nº 6.360/76. O próprio Código de Ética
Médica (Resolução CFM nº 1.246/88) determina que a prescrição de remédios
siga as seguintes diretrizes:
É vedado ao médico:
Art. 44 - Deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou
30 GILLICK, M. R. Controlling Off-label Medication Use. Annals of Internal Medicine. United States, v. 150, n. 5, p. 344-347,
mar. 2009.
31 Entregar o medicamento via judicial, por exemplo.
32 Neste ultimo caso, enfrentar-se-ia típico caso de discricionariedade administrativa.
33 BEERS, M. H., STORRIE, M., LEE, G. Potencial adverse drug interactions in the emergency room: an issue in the quality of
care. Ann Intern Med, n. 112, 1990, p. 61-64.
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infringir a legislação pertinente.
Art. 124 - Usar experimentalmente qualquer tipo de terapêutica,
ainda não liberada para uso no País, sem a devida autorização
dos órgãos competentes e sem consentimento do paciente ou de
seu responsável legal, devidamente informados da situação e das
possíveis conseqüências.
O Poder Público possui o dever de fornecer medicamentos previstos na
política nacional de saúde. No entanto, deve-se obedecer à legislação da política
nacional de saúde.
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, com o intuito de regularizar e criar um
parâmetro correto e justo no que tange aos pedidos de antecipação de tutela de
saúde, convocou organismos responsáveis pelo segmento para uma audiência
pública, que se realizou a partir do dia 5 de março de 2009. Ainda não há um
julgamento definitivo acerca da matéria. Mas, em recente julgado, definiram-se
algumas premissas. Nesse sentido o Ministro Gilmar Mendes observa;
A Lei Federal nº 6.360/76, ao dispor sobre a vigilância sanitária
a que ficam sujeitos os Medicamentos, as drogas, os insumos
farmacêuticos e correlatos, determina em seu artigo 12 que “nenhum
dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá
ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes
de registrado no Ministério da Saúde”. O artigo 16 da referida Lei
estabelece os requisitos para a obtenção do registro, entre eles,
que o produto seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a
que se propõe. O Art. 18 ainda determina que, em se tratando de
medicamento de procedência estrangeira, deverá ser comprovada
a existência de registro válido no país de origem (BRASIL, 2010)34.
Enfim, o Supremo Tribunal federal (STF) reconheceu a necessidade de que
se comprove a eficácia do fármaco para ser fornecido judicialmente. A decisão
judicial extrapola os limites legais ao impor à Administração Pública a obrigação
de fornecer todo e qualquer tratamento, mesmo aqueles não comprovados
cientificamente.
Em verdade, trata-se de cumprir os pré-requisitos necessários e exigidos para
o fornecimento de qualquer medicação, os quais encontram fundamento na real
necessidade de utilização e na proteção da saúde dos pacientes. Ademais, impõese reconhecer que as considerações do médico do paciente podem ser superadas
na instrução do processo. O controle da saúde pública impõe ao ente estatal
responsável pelo fornecimento dos medicamentos um controle sobre aquilo que
fornece, podendo negar-se, de forma legitima, a custar uma medicação off-label.
Como afirmado no item precedente, os fármacos não podem ser utilizados
como experimentais, perfazendo os pacientes como cobaias. Esta questão acaba
sendo mal encaminhada ao ser enviada para o Poder Judiciário. Os médicos que
optarem por um medicamento não-padronizado, devem esgotar as alternativas
existentes, bem como devem fundamentar tecnicamente a escolha por um
tratamento off-label. Isso inclui, entre outros requisitos, a apresentação de estudos
científicos que comprovem a eficácia do medicamento no tratamento da doença
em questão. Não pode o erário ficar arcando com verdadeiras experiências
34 Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 175– CE (STA nº 175-CE).
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laboratoriais.
A Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler, do Tribunal Regional
Federal (TRF) da 4ª Região, pondera que:
[...] Nesse quadro, o postulado constitucional da eficiência
impõe ao magistrado a busca de um maior conhecimento sobre a
matéria; caso contrário, no louvável propósito de contribuir com
uma solução, pode acabar por desorganizar a prestação do serviço
público de saúde. (...) É fundamental também verificar quais os
medicamentos ou procedimentos são disponibilizados pelo serviço
público de saúde e verificar da real necessidade do pedido feito.
Não é possível desconhecer o trabalho de publicidade empreendido
pelos laboratórios e indústrias de fármacos junto à classe médica.
São oferecidos patrocínios e financiamento de pesquisas, o que
pode levar os profissionais a uma preferência por alguma marca
de medicamento. Por outro lado, há um novo aspecto a considerar:
os laboratórios procuram agora influenciar os próprios pacientes,
financiando grupos portadores de doenças crônicas. Os conselhos
de saúde também começam a ser alvo de investidas publicitárias.
Vemos, então, que não podemos desconhecer as diversas forças que
interagem no setor. (...) Há aqueles que nos casos difíceis optam pela
solução mágica do mero decisionismo, na certeza de que a decisão
judicial resolverá o problema individual sem maiores indagações do
que ocorre no aspecto do Sistema de Saúde, na dimensão comunitária
ou coletiva.35
Com efeito, tratamentos experimentais, contra-indicado, controvertidos
na literatura médica, alternativos ou sem comprovação científica de êxito não
se coadunam com a isonomia na prestação. Quem pretender optar por tais
terapias, que o faça às próprias expensas. O Estado (gênero) deve selecionar
e proporcionar somente tratamentos comprovadamente eficazes e compatíveis
com o seu nível de desenvolvimento.
Por conseguinte, a Administração Pública não pode deixar de cumprir com as
exigências legais e regulamentares relativas ao fornecimento de medicamentos,
ou seja, deve verificar se um medicamento possui aprovação na ANVISA antes
de ser dispensado. E assim também ao Judiciário não é dado obrigar o Executivo à
entrega de fármaco independentemente da verificação dos requisitos necessários
à sua colocação o mercado. Em suma, obrigar a Fazenda Pública a fornecer um
tratamento off-label, extrapola o dever estatal de propiciar acesso igualitário no
âmbito das prestações de saúde.
O custeio de todo e qualquer tratamento, como é notório, transpassaria
qualquer capacidade financeira que os entes estatais possam ter. Além disso,
dessa forma, o Estado estaria sendo obrigado a “testar” (literalmente) remédios
na população, à revelia das necessárias avaliações clínicas que deveriam ser feitas
previamente. E o que é mais grave, estaria pagando pelos testes que deveriam
ser custeados pelos laboratórios.
Ainda, a dispensação judicial de remédios off-label pode causar um efeito
nefasto, ou seja, lesionar parcela da população que mais necessita da prestação
deste serviço. Ressalta o Ministro Gilmar Mendes que;
35 TESSLER, Marga Inge Barth. O juiz e a tutela jurisdicional sanitária. In: Revista Interesse Público, n. 25, p. 27-57, 2004. Grifos
não constantes no original.
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[...] não se pode esquecer de que a gestão do Sistema Único de
Saúde, obrigado a observar o princípio constitucional do acesso
universal e igualitário às ações e prestações de saúde, só torna-se
viável mediante a elaboração de políticas públicas que repartam os
recursos (naturalmente escassos) da forma mais eficiente possível.
Obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de
saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao
comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento
médico da parcela da população mais necessitada.36
Os pedidos de deferimento de tutela antecipada, que buscam obrigar o poder
público a fornecer medicamentos à população, devem ser analisados caso a
caso, para se evitar que, futuramente, o coletivo não venha a sofrer prejuízos
não venha toda a sociedade como um todo a arcar com prejuízos causados pelo
deferimento desregrado de antecipações de tutela. Portanto, os medicamentos
que não tenha eficácia comprovada não podem ser concedidos via judicial.
Este paradigma ficou claramente definido pelo STF. O presidente do supremo
tribunal federal conclui;
Portanto, independentemente da hipótese levada à consideração
do Poder Judiciário, as premissas analisadas deixam clara a
necessidade de instrução das demandas de saúde para que não ocorra
a produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças
processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades
do caso concreto examinado, impedindo que o julgador concilie a
dimensão subjetiva (individual e coletiva) com a dimensão objetiva
do direito à saúde.37
Segundo os dados oriundos da Secretaria de Saúde gaúcha, o Estado do Rio
Grande do Sul dispensa R$ 150 milhões por ano na compra de medicamentos
especiais. Do total, 70% deste montante custeia remédios sem eficácia
comprovada, por conta de ordem judicial ou bloqueio nas contas do erário.
Os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro apresentam uma situação muito
parecida. São obrigados a dispensar, judicialmente, remédios sem eficácia
comprovada, o que pode ser considerada uma “inovação tecnológica” e até
mesmo um risco ao paciente. As medicações são entregues em reiterados casos
sem o respeito aos protocolos clínicos ou mesmo à revelia da aprovação prévia
pela ANVISA38. A interferência do Poder Judiciário, neste aspecto, vem ao
encontro dos interesses econômicos dos laboratórios.
A confirmação desta premissa pode ser visualizada com muita clareza na
pesquisa feita por Vieira e Zuchi39. No ano de 2005, foram analisadas cento
e setenta ações judiciais que possuíam como objeto a tutela de saúde, todas
promovidas contra o Município de São Paulo. Em 75% dos casos, dispensaramse medicações que não tinham eficácia comprovada. Muitos medicamentos
oncológicos nem sequer precisavam ser fornecidos via judicial, porque
36 Idem.
37 Ibidem.
38 MESSEDER, A. M.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S.; LUIZA, V. L. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do
acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 21,
n. 2, p. 525-534, Mar.-abr. 2005.
39 VIEIRA, F. S.; ZUCCHI, P. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista de Saúde
Pública, São Paulo, v. 41, n. 2, p. 214-222, 2007.
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poderiam ser conseguidos gratuitamente pelos Centros de Alta Complexidade
em Oncologia (CACON’s). Percebeu-se o deferimento de fármacos com alto
custo, privilegiando-se, assim, uma minoria.
Em Santa Catarina, a dispensação off-label era corrente já em 2004, tendo se
disseminado nos anos que se seguiram. O desespero dos médicos e de familiares,
por vezes, perfaz um câmbio da racionalidade pela emoção. Em melhores
termos, perfaz uma substituição das evidências científicas pelas expectativas
esperançosas de uma cura de risco.
Diante deste contexto, defende-se que, quando se trata de medicamentos que
não possuem prova de propriedades médicas de cura, o Poder Público deve ser
preservado de concedê-los, para que seja evitado um colapso do Sistema Único de
Saúde, bem como não sejam fornecidos fármacos com duvidosa potencialidade
e, não raras vezes, prejudiciais aos pacientes. Aliado ao fato de que se estaria
privilegiando os interesses da indústria farmacêutica, como provado em item
prévio.
Conclusões
Por todo o exposto, defende-se que:
1. os medicamentos experimentais ou não aprovados pelos órgãos de saúde
competentes40 são considerados off-label, e possuem um grau de risco inaceitável
aos pacientes, por terem uma potencialidade de levar o paciente à reações
adversas graves e à morte;
2. em remédios desta natureza, o Poder Público deve ser preservado de
concedê-los, para que seja evitado um colapso do Sistema Único de Saúde, bem
como não sejam fornecidos fármacos com duvidosa potencialidade e, não raras
vezes, prejudiciais aos pacientes;
3. tal fato, para além disso, estaria privilegiando os interesses da indústria
farmacêutica;
4. do ponto de vista médico, estes riscos são considerados altos e inaceitáveis;
5. caso o Poder Judiciário permita o fornecimento da medicação, defende-se
que seja invertido o ônus da prova, ou seja, cabe ao paciente provar cientificamente
a eficácia do fármaco postulado;
6. caso não se inverta o ônus da prova, é importante que as Procuradorias
das Fazendas Públicas tragam aos autos elementos científicos (laudos médicos,
estudos farmacológicos, etc.) sobre a medicação pleiteada judicialmente, quando
de natureza off-label;
7. as empresas farmacêuticas que comercializam os medicamentos off-label
lucram em comercializar os medicamentos experimentais: pelo fato de se negarem
a custear os testes prévios necessários; e uma segunda vez, por colocarem
no mercado o medicamento, que será literalmente testado nos pacientes; por
aumentarem sua clientela, uma vez que não há restrições bastantes quanto à
posologia, CID, faixa etária, etc.;
8. os fármacos não podem ser utilizados como experimentais em pacientes,
salvo se este, de forma consciente, resolva se submeter a um tratamento desta
natureza (consentimento informado);
40 No Brasil, o ente responsável seria a Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA).
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9. neste caso, o Poder Público não está obrigado a custear um tratamento de
alto risco, sendo que esta questão acaba sendo mal encaminhada ao ser enviada
para o Poder Judiciário.
10. os médicos que optarem por um medicamento não padronizado, devem
esgotar as alternativas existentes, bem como devem fundamentar tecnicamente
a escolha por um tratamento off-label. Isso inclui, entre outros requisitos, a
apresentação de estudos científicos que comprovem a eficácia do medicamento
no tratamento da doença em questão, bem como, repita-se, deve ser colhida
autorização expressa e escrita do paciente, o qual toma ciência dos riscos que
este tratamento possa causar.
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