Dogville - Faculdade de Educação da UFMG

Transcrição

Dogville - Faculdade de Educação da UFMG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ROTEIRO DE ANÁLISE DO FILME – DOGVILLE
TRABALHO REALIZADO POR HERBERT GLAUCO DE SOUZA* PARA A DISCIPLINA
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO II, SOB A ORIENTAÇÃO DA PROFESSORA ROSEMARY
DORE HEIJMANS.
* Aluno de graduação do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UFMG e
monitor de Filosofia da Educação do Departamento de Ciências Aplicadas à
Educação/DECAE/FAE/UFMG.
NOVEMBRO DE 2007
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ROTEIRO DE ANÁLISE DO FILME – DOGVILLE
ÍNDICE
1. OBJETIVO DO TRABALHO ........................................................................01
2. O FILME ................................................................................................01
3. FICHA TÉCNICA ..................................................................................... 02
3.1 O AUTOR DE DOGVILLE ......................................................................... 04
4. ANALISANDO O FILME:
4.1 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DE DOGVILLE ........................................... 04
4.2 UMA CIDADE CHAMADA DOGVILLE ......................................................... 07
4.3 O FILÓSOFO ........................................................................................ 09
4.4 GRACE ................................................................................................ 12
4.5 O GRANDE PROBLEMA HUMANO – A ACEITAÇÃO ...................................... 13
4.6 A ESCRAVIZAÇÃO ................................................................................. 14
4.7 RELAÇÕES DE PODER EM DOGVILLE ....................................................... 16
5. CONCLUSÃO .......................................................................................... 17
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1. OBJETIVO
Este trabalho de análise de filmes, em correlação com bibliografias
examinadas na disciplina Filosofia da Educação, é um subsídio didático e
conseqüentemente acadêmico que visa a proporcionar aos estudantes ferramentas
que os auxiliem a refletir os conceitos ministrados nessa disciplina. Deixamos claro
que este trabalho de análise é apenas uma interpretação elaborada sobre o enredo
do filme, o qual também permite outras interpretações.
2. O FILME
Dogville é um cinema de arte, em que teatro e sétima arte se confundem. O
palco é o local onde o cenário do filme é criado, recheado por grandes diálogos (o
que diferencia
um grande
filme de
apenas um
filme),
interpretações
fortes e uma
mensagem
aguda.
Dogville é
uma
cidadezinha
entre as
Montanhas
Rochosas, nos
Estados
Unidos da América, e a trama do filme se desenrola no conturbado período da
Grande Depressão Americana. As tomadas de câmera em Dogville, a fotografia
provocam o expectador, o impacto estético de Dogville é certeiro e inevitável até
mesmo no mais insensível dos homens. Esse impacto estético é devido à força
estética do filme, elaborado a dedos pelo seu criador. Lars Von Trier combina
elementos que se contrastam e chocam o público, suave e agudo é este filme.
Grace, a personagem central do filme, está fugindo de um bando de
gângsteres. Ela ega à isolada Dogville, onde é acolhida por Tom, um morador da
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cidade, que intercede em seu favor junto à comunidade local: eles a ajudam a se
esconder e, em troca, ela se compromete a prestar-lhes pequenos serviços. O
problema é que os bandidos intensificam a busca de Grace, o que faz com que os
habitantes da cidade supostamente se sintam ameaçados. Em nome dos riscos aos
quais a cidade estaria exposta, seus “dóceis” moradores passam a exigir mais e
mais serviços pessoais de Grace e acabam por escravizá-la, revelando os pequenos
“monstros” neles embutidos.
3. FICHA TÉCNICA

Título Original: Dogville

Gênero: Drama

Tempo de Duração: 177 minutos (duas horas e 57 minutos)

Ano de Lançamento (França): 2003

Distribuição: Lions Gate Entertainment / California Filmes

Produção: Vibeke Windelov

Fotografia: Anthony Dod Mantle

Desenho de Produção: Peter Grant

Figurino: Manon Rasmussen

Edição: Molly Marlene Stensgard

Estúdio: Canal+ / 4 1/2 / Alan Young Pictures / Det Danske Filminstitut /
Edith Film Oy / Film i Väst / Hachette Première / Isabella Films B.V. / J&M
Entertainment
/ KC
Medien
AG
/
Kushner-Locke
Company
/
Kuzui
Enterprises / Liberator Productions / MDP Worldwide / Memfis Film &
Television / Pain Unlimited GmbH Filmproduktion / Q&Q Medien GmbH /
Sigma Films Ltd. / Slot Machine / Something Else B.V. / Summit
Entertainment / Sveriges Television / Trust Film Svenska / Zoma Ltd. /
Zentropa Entertainment / What Else? B.V.
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5
Elenco

Nicole Kidman (Grace)

Harriet Andersson (Gloria)

Lauren Bacall (Ma Ginger)

Jean-Marc Barr (Homem de chapéu grande)

Paul Bettany (Tom Edison)

Blair Brown (Sra. Henson)

James Caan ("Pai de Grace")

Patricia Clarkson (Vera)

Jeremy Davies (Bill Henson)

Ben Gazzara (Jack McKay)

Philip Baker Hall (Tom Edison Sr.)

Siobhan Fallon (Martha)

John Hurt (Narrador)

Udo Kier (Homem de casaco)

Chloë Sevigny (Liz Henson)

Stellan Skarsgard (Chuck)

Miles Purinton (Jason)
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dogville, acesso em 13/11/07.
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O AUTOR DE DOGVILLE
Lars Von Trier é o roteirista, diretor e idealizador de Dogville e o cenógrafo do
filme. Baseando-se nas idéias do poeta e teatrólogo Bertolt Brecht, o dinamarquês
Trier inova, choca e consegue retomar o bom cinema, aquele que está enfocado
nas grandes atuações dos atores e numa mensagem reflexiva forte.
Um dos primeiros signatários do manifesto denominado
“Dogma 95” surgido em Copenhague em 1995, foi Lars
Von Trier. O manifesto procurava contrariar algumas
tendências do “cinema comercial” e recuperar um cinema
que consideravam estar morto. O Dogma 95 opunha-se ao
conceito de autor, de cinema individual e efeitos especiais.
Segundo
tal
manifesto
“A
tarefa
‘suprema’
dos
realizadores decadentes é enganar a audiência. É disso
que estão tão orgulhosos? Foi isso que ‘100 anos’ nos
deram? Ilusões a partir das quais as emoções podem ser
comunicadas? (...) Uma ilusão da dor e uma ilusão do
amor”. (Fonte: VALIM, Alexandre Busko. O dogmatismo de
Dogville. Revista Espaço Acadêmico. Nº 38, julho de 2004. Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br/038/38cult_valim.htm)
4. ANALISANDO O FILME
Analisaremos
como
o
filme
se
desenvolve,
sua
mensagem.
Nossa
interpretação toma como ponto de partida possíveis vínculos entre o enredo do
filme e a bibliografia estudada, a qual nos orientará a discutir o filme. Inicialmente,
apresentaremos a textura onde se desenvolve o filme Dogville - seu contexto sóciohistórico -, em seguida, apresentaremos Dogville como analogia de comunidades
retrógradas, o papel do filósofo em Dogville, Grace como ilustração ou exemplo
para a filosofia de Tom, e finalmente o grande problema filosófico do qual Dogville
é uma metáfora: o problema humano da aceitação.
CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DE DOGVILLE
Um dos grandes marcos da história mundial no século XX foi o fenômeno
conhecido como A Grande Depressão (1925-1934). É quando ocorre uma das mais
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graves crises do sistema capitalista, um sistema intrinsecamente contraditório. Os
Estados Unidos da América, vindo de uma grande euforia por causa de seu
estupendo desenvolvimento econômico e social imediatamente posterior à Primeira
Guerra Mundial, em que entrou como coadjuvante e saiu como protagonista,
expandindo sua influência por toda a parte do globo, entram numa terrível
depressão econômica.
A grande recessão econômica americana, que teve início na metade da
década de 20 do século XX e culminou com o colapso da bolsa de valores de Nova
York em 29 de outubro de 1929, tem seu alicerce no grande desenvolvimento e
superprodução do sistema capitalista americano. Como assim?
Os Estados Unidos produziram mais mercadorias do que a existência de
demanda pelas mesmas, o que se somou ao alto índice de desemprego, causado
pela mecanização das indústrias, que trouxe uma queda ainda maior do consumo
das mercadorias e do poder aquisitivo dos americanos, ajudando a iniciar uma
recessão jamais vista até então. Com mercadorias sem mercado consumidor, caiu a
lucratividade do
capital, levando
os
empreendedores
capitalistas
a
demitir
funcionários a fim de corrigir os prejuízos. Esse conjunto de fatores levou a uma
crise de padrões sociais muito grande entre os americanos. (Ver: Grande
Depressão,
21/11/07,
disponível
em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Depress%C3%A3o).
A crise econômica que vinha se instalando nos Estados Unidos, desde a
metade da década dos anos vinte, levava os grandes proprietários rurais e grandes
capitalistas a contraírem empréstimos a fim de responderem aos problemas
gerados pela falta de demanda para o excedente de produtos.
Contudo, a situação de crise explodiu. No dia 29 de outubro de 1929
(conhecido como a quinta-feira negra), a bolsa de Nova York entra em colapso.
Então, os valores das ações dos grandes aglomerados capitalistas despencaram,
causando a perda de fortunas pelos empresários e levando à retirada de capitais
norte-americanos investidos na América Latina, bem como na Europa para ajudar a
sua recuperação no Pós-Guerra. Esses fatores levam a um efeito dominó na
economia mundial.
O reflexo da crise da Grande Depressão sobre os habitantes norteamericanos é variado, mas tem um aspecto em comum: a degeneração social.
(Ver:
Grande
Depressão,
21/11/07,
disponível
em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Depress%C3%A3o)
Devido à escassez de empregos no período em que se dá a Grande
Depressão, ocorre um crescimento do setor clandestino ou economia informal,
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como também da prostituição, de roubos e assaltos, da criminalidade, dos índices
de alcoolismo, dentre outros graves problemas. O aparecimento da “lei seca” nos
Estados Unidos em 1919, introduzida pelo presidente Wilson para controlar a
produtividade dos trabalhadores, também contribuiu para a proliferação do
contrabando de bebidas, de drogas, etc. Esse é o período conhecido como a “era
dos gangsteres” nos Estados Unidos, dentre os quais Al Capone. O crime
organizado se espalha pelas grandes cidades se constituindo em uma espécie de
“Estado Paralelo”. (FONTE: OLIVEIRA, Adriano; Narcorede Institucional Pública e o
Estado
Paralelo
Ilícito,
maio
de
2002,
disponível
em:
http://www.urutagua.uem.br//04pol_narco.htm)
Fome,
miséria,
desemprego,
subemprego,
migrações
em
busca
de
alimentos e roupas, de habitação; esse é o triste quadro histórico em que se
desenrola Dogville. Uma página amarga da história americana e mundial, onde o
Estado perde momentaneamente o controle e se transforma em coadjuvante das
organizações
Pública
e
criminais.
o
Estado
(FONTE:
OLIVEIRA,
Paralelo
Ilícito,
Adriano; Narcorede
maio
de
2002),
Institucional
disponível
em:
http://www.urutagua.uem.br//04pol_narco.htm)
A fotografia Migrant Mother, uma das fotos
americanas mais famosas da década de 1930,
mostra Florence Owens Thompson, mãe de sete
crianças, de 32 anos de idade, em Nipono,
Califórnia, março de 1936, em busca de um
emprego ou de ajuda social para sustentar sua
família. Seu marido havia perdido seu emprego
em 1931, e morrera no mesmo ano.
A Grande Depressão causou pobreza geral
nos Estados Unidos e em diversos países do
mundo. Aqui, família desempregada, vivendo
em condições miseráveis, em Elm Grove,
Califórnia,
Estados
Unidos.
(Ver:
Grande
Depressão, 21/11/07, Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Depress%C3%A3o).
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UMA CIDADE CHAMADA DOGVILLE
É interessante perceber o isolamento em que se encontra Dogville, em
relação ao restante do país. Não digo geográfica ou fisicamente, mas social e
politicamente. Dogville se isola, se fecha para o exterior, ignora a realidade em que
está irremediavelmente imersa, como se estivesse, nesse seu isolamento, imune às
mudanças e transformações de seu tempo ou às vicissitudes do momento.
As pessoas em Dogville são exemplos claros dessa resignação política. Esse
é o caso de Thomas Edison pai, que só ouvia músicas no seu rádio e, no momento
do noticiário, procurava desligar o rádio ou sintonizar em outra estação. A política é
uma relação de poder. Vivendo relações políticas nas suas relações sociais, os
cidadãos precisam ter consciência dos interesses de seu grupo, cuja defesa
depende da participação e do engajamento na atividade política de diversos tipos
(associações, partidos, etc.). Esse é o sentido amplo do exercício da cidadania. Não
são cidadãos, no sentido estrito do termo, os habitantes de Dogville, uma vez que
se alienam, se escondem atrás das Montanhas Rochosas, preferem tampar os olhos
com algo que é transparente. A melhor metáfora para exprimir a vida dos
habitantes de Dogville é a do senhor Mckay, que finge enxergar, quando na
verdade é cego; ou seja, esquiva-se da realidade, prefere a farsa a encarar os fatos
de frente. E os homens de maior elevação intelectual de Dogville (como o pai de
Tom e o próprio Tom) não contribuem para o esclarecimento dos demais
habitantes, pelo contrário, alienam-se também. E é em relação a esses tipos de
pessoas que Antonio Gramsci chama de intelectuais tradicionais, ou seja, homens
que se sentem superiores aos demais, contemplam-se como auras quase divinas,
imunes às vicissitudes de seu tempo, além do bem e do mal.
“Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com “espírito de
grupo” sua ininterrupta continuidade histórica e sua “qualificação”, eles se põem a si
mesmos como autônomos e independentes do grupo social dominante.” (GRAMSCI,
2004, pag. 17)
E uma pseudo autonomia e independência reflete imaturidade dessas pessoas como
também pode proporcionar conseqüências nada positivas para esses intelectuais e
a sociedade na qual estão inseridos.
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A farsa de Dogville é típica de grande parte das cidadezinhas, onde a falsa
hospitalidade é uma isca, onde o amor entre os habitantes e a comunhão entre eles
também são falsos. Cidades como Dogville têm como principal característica a
alienação em relação ao mundo “vivo”, como se seus moradores pairassem sobre
tudo e todos e fossem inatingíveis. A mentalidade da população costuma ser
arcaica, fechada, atrasada. A inveja é um outro grande veneno dessas cidades, em
que o atraso intelectual restringe a ação dos poucos que tentam fugir à regra. Os
moradores não crescem nem deixam os outros crescerem, se desenvolverem.
Vivem na sua auto-suficiência como se realmente fossem auto-suficientes; por isso,
sucumbem sem perceber. As pessoas têm muito tempo para se preocupar com a
vida dos outros, o ópio da resignação e da acomodação é o principal meio de
alienação.
Os poderes locais de mando, os acordos espúrios (pactos corruptos) que
envolvem os pobres miseráveis que os aceitam para manter um mínimo de
sobrevivência, o distanciamento de centros intelectuais, o controle do voto e das
formas de participação da comunidade, enfim, a falta de canais de participação
política, de uma sociedade civil são marcas dessas várias Dogvilles espalhadas por
todo canto.
A manutenção da miséria e da ignorância por uma elite dominante atrasada, até
mesmo com a ajuda da igreja, os costumes e as crenças como elementos de uma
moralidade que mantém o atraso e a ignorância: são todos aspectos presentes
nessas cidades, aspectos que reproduzem desigualdades sociais e políticas.
Existem milhares de Dogvilles espalhadas pelo mundo. E passa-se a
imagem dessas Dogvilles como sendo lugares considerados paraísos na terra, o
sossego, a paz, a tranqüilidade, a qualidade de vida. Na verdade, porém, esses
supostos
atrativos
servem
para
esconder
a
mesquinhez
de
mentalidades
retrógradas. Dogville é assim. Atraente por sua aparente tranqüilidade e segurança.
Leva-nos a pensar que os seus residentes são pessoas generosas, dóceis e até
meio ingênuas. Por trás dessa “inocente” aparência se esconde a violência, a
sagacidade traiçoeira, sentimentos vis. A aceitação de um novo habitante não é
algo simples. Seria a aceitação um dos grandes problemas humanos? Aceitação em
toda sua plurivocidade: no sentido de aceitar a diferença, de aceitar que somos
humanos, de aceitar que todos somos iguais e padecemos dos mesmos temores e
sentimentos, eis um problema humano. E um cidadão de Dogville procurou
entender o problema da aceitação. Antes de vermos como isso se deu, é necessário
entendermos e analisarmos Thomas Edison Jr (que foi quem procurou entender o
problema da aceitação) e o seu papel na comunidade de Dogville.
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4.3 O FILÓSOFO
Quando as pessoas não são autônomas, tendem a buscar líderes, pessoas
que pensem, que organizem a coletividade. A situação de heteronomia – o
contrário de autonomia – resulta do domínio de grupos cujo objetivo é o de manter
a subserviência da comunidade, em vez de emancipá-la. Aliás, essa é a tendência
que predomina em muitas comunidades. Contra essa tendência, há o ideal
socialista, que propõe a emancipação de todos os indivíduos dos grilhões da
dominação. Para isso, seria necessário que todos conquistassem a capacidade de se
auto-dirigirem. Até que esse ideal seja alcançado, contudo, é necessária a
fundamental ajuda de indivíduos sensíveis às mudanças de seu tempo, aos
problemas humanos de seu grupo, enfim, são necessárias mentes que sejam guias
na busca de uma vida autônoma.
O dirigente que propõe estratégias de emancipação social e política para o
grupo social ao qual está organicamente vinculado é conceituado por Gramsci como
intelectual orgânico. Quem são os intelectuais? Não são aqueles que têm grande
bagagem de conhecimento. São aqueles que formulam concepções de mundo em
consonância com os interesses dos grupos sociais que representam. Podem existir
os intelectuais “orgânicos” e os “tradicionais”. Intelectuais “orgânicos” são aqueles
que representam, no campo das idéias, os interesses de um grupo social ao qual
estão organicamente vinculados, grupo social este que tem uma fundamental
importância na estrutura da sociedade, ou seja, atuam com grande importância na
dimensão econômica da sociedade contemporânea - um grupo social de um bloco
de poder existente. Já os intelectuais “tradicionais” são os que pertenceram a um
mundo que não existe mais, como o feudalismo, em que o poder era exercido com
o trabalho intelectual do clero. Assim, o clero – os padres – atuava como
“intelectuais orgânicos” em favor da aristocracia feudal. Contudo, quando foi
destruído o mundo feudal, o clero continuou a existir no mundo capitalista. Não
mais como “intelectual orgânico” e sim como “intelectual tradicional”. Adotando o
conceito gramsciano de “intelectual tradicional” para caracterizar certo tipo de
procedimento intelectual no mundo contemporâneo, Semeraro (2006) diz que eles
ficam
“(...) espalhados dentro de um mundo antiquado, permaneciam fechados em abstratos
exercícios cerebrais, eruditos e enciclopédicos até, mais alheios às questões centrais da
própria
história.
Fora
do
tempo,
os
intelectuais
tradicionais
consideravam-se
independentes, acima das classes e das vicissitudes do mundo, cultivavam uma aura de
superioridade com seu saber livresco. A sua ‘neutralidade’ e o seu distanciamento, na
verdade, os tornavam incapazes de compreender o conjunto do sistema de produção e
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das lutas hegemônicas, onde fervia o jogo decisivo do poder econômico.” (SEMERARO,
2006, p. 377)
Em Dogville, Thomas Edison Jr, filho de um médico que possuía uma
razoável aposentadoria, pode ser considerado um “intelectual tradicional”. Tom
observava profundamente a sua cidade, pensava seus habitantes e conhecia todos
os seus defeitos (só não descobrira ainda que ele próprio era igual a todos os
outros de Dogville). Ele conhecia também as crises de sua sociedade. Por isso,
queria armá-la moralmente, para que não sofresse uma degeneração devido à sua
vulnerabilidade em face da crise. No entanto, ele tenta proteger sua cidade dos
infortúnios causados pelas condições sociais de sua época, mantendo-a na
alienação. Tom não procura estimular as mentes retrógradas da sua comunidade a
alcançar um pensamento superior. A alienação política dos habitantes de Dogville
fica clara numa cena em que, em assembléia, eles discutem as eleições. É quando
o pai de Tom exibe o seu desdém com as eleições. Tom permanece inerte, como se
as eleições não fossem modificar sua existência, seu futuro.
Nesse sentido, vale a pena conhecer o poema “O analfabeto
político” do teatrólogo e poeta alemão Bertold Brecht (10.02.1898 04.08.1956):
O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem
participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de
vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do
remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a
política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o
menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra,
corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais (Brecht, O Analfabeto
político, Disponível em: http://www.consciencia.net/2004/mes/01/brechtanalfabeto.html, Acesso em: 26/11/2007).
Se Tom desejava livrar sua comunidade de uma degeneração social, era
necessário colocá-la a par das mudanças de seu tempo, das dificuldades. Era
necessário conscientizá-la. E isso não poderia ser feito com discursos vazios,
alienados e sim com discursos que levassem à prática política, ao engajamento em
busca de uma transformação social. Dogville não estava imune às circunstâncias de
seu tempo. Pelo contrário. As barreiras físicas não são suficientes para que uma
cidade possa estar protegida em relação à dominação e à influência política de uma
classe que detém o poder. Dogville tinha no setor primário (agricultura) a sua fonte
de renda, produzindo maçãs e groselhas que eram vendidas nos grandes centros
urbanos. Se a compra desses produtos fosse afetada por um problema maior da
economia, Dogville entraria em colapso. Portanto, a cidadezinha não estava imune
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ao resto do país como Tom pensava. Ao tentar resguardar a cidade, cercá-la com
seus discursos vazios, ele não atuava como um intelectual orgânico. Se assim o
fosse, buscaria alertar a população para o perigo da alienação política em relação
aos interesses do grupo social que representa. Como afirma Semeraro (2006),
“(...) os intelectuais “orgânicos” são aqueles que fazem parte de um organismo vivo e
em expansão. Por isso, estão ao mesmo tempo conectados ao mundo do trabalho, às
organizações políticas e culturais mais avançadas que o seu grupo social desenvolve
para dirigir a sociedade.” (SEMERARO, 2006, p. 377)
O intelectual orgânico procura envolver os membros do grupo social que
representa nas mudanças que ocorrem na sociedade mais ampla, para que seus cocidadãos estejam aptos a participar das lutas de poder, que podem culminar com o
aperfeiçoamento moral, econômico, social e político do grupo ao qual o intelectual
pertence. Essa é a perspectiva da qual compartilham Parisi e Cotrim quando dizem:
“(...) não existe sociedade tão perfeita a ponto de não precisar mais evoluir. É por isso
que uma sociedade necessita de indivíduos conscientes, cujas atitudes não estejam
enquadradas no comportamento vulgar e estereotipado, de indivíduos que se apaixonem
por grandes causas e que sonhem com mudanças. O homem consciente da sua
existência reflete sobre o sentido dos seus atos. Obedece às determinações gerais, mas
sempre procura aprimorá-las.” (PARISI; COTRIM, 1980, p. 165).
A despeito das reuniões que Tom fazia para discutir os problemas da cidade,
os habitantes de Dogville não lhe davam muita confiança. O que fazer para adquirir
o respeito de sua comunidade, de seus iguais? Era necessário algo para comprovar
sua teoria, era necessário colocá-la na prática. Era necessário um exemplo.
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4.4. GRACE
Uma chegada abrupta à pacata Dogville causa um impacto nas mentes
arcaicas dos habitantes. Uma linda mulher trajando roupas caras em tempos
difíceis, mãos delicadas e um coração misericordioso, uma doçura que escondia um
passado não muito distante que não era convidativo conhecer. O nome dessa
estranha:
Grace. Ela
queria
mudar de
vida, dar-lhe
um novo
rumo, fugir
de seus
laços
sociais, de
seu
determinismo de grupo. Grace estava perdida, queria um caminho.
Filha de um chefão gângster, ela não queria ser conivente com os atos de
seu pai e buscou refúgio em Dogville. Grace pensava em se redimir. Dogville
parecia o lugar perfeito. Seus cidadãos eram vítimas do sistema que os oprimia, a
pobreza, a escassez, assim eram aquelas pessoas que resolvem dar-lhe uma
chance de recomeçar. Não lhe parecia assustador dedicar-se a trabalhos que
pudessem contribuir para melhorar a vida daqueles miseráveis, em troca de sua
permanência no lugar. Pelo contrário, parecia ser justo provar que realmente era
digna da confiança dos habitantes daquela cidadezinha. Mas do relacionamento
amigável inicial que cativa a forasteira, passando pelo momento em que os
habitantes de Dogville mostram a verdadeira face da cidade, até o desfecho dessa
história, Grace perceberá que aquela comunidade não estava à altura de seu gesto.
A violência ali escondida, camuflada em rostos aparentemente pacíficos e
generosos, era muito pior, mais degradante até que a brutalidade fria e crua dos
gângsteres.
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4.5 O GRANDE PROBLEMA HUMANO – A ACEITAÇÃO
Gostaria de iniciar a minha explanação sobre o problema da aceitação com
um trecho do romance de Irvin D. Yalom, intitulado Quando Nietzsche chorou
(2005). Trata-se de um diálogo em que, tentando convencer um famoso psiquiatra
austríaco a tratar o desespero do filósofo alemão, a protagonista diz algo muito
verdadeiro a respeito do preconceito, da aceitação da diferença: “É importante que
saiba que Nietzsche se importa somente com a verdade. Ele detesta a mentira do
preconceito, de todos os preconceitos.” (YALOM, 2005, p. 39)
A idéia da aceitação é a primeira questão que identifiquei no filme. Refere-se
à dificuldade de aceitar o diferente, o estranho. Nesse sentido, quando Grace chega
àquela cidade em que residem apenas 16 adultos, com duas ruas e um cachorro,
trajando roupas diferentes, trazendo do incógnito exterior sabe-se lá o quê, ela
causa um impacto. A comunidade faz especulações e lhe dá duas semanas para lhe
conhecer.
As
duas
semanas
passam, o caráter
da
moça
é
mostrado,
é
compreendido. No entanto, o novo é rechaçado. O preconceito mascara a realidade,
forja
pensamentos
perversos
e,
principalmente,
esconde
os
defeitos
do
preconceituoso, transferindo suas próprias falhas e fraquezas para outros, para
“bodes
expiatórios”.
Nestes
últimos,
são
revelados
todos
os
desejos
do
preconceituoso. É isso que vejo acontecer com Grace, ao ser violentada várias
vezes por homens da cidade, mesmo depois que as próprias mulheres do local
tomam conhecimento do fato. Essa era uma forma de desviar a atenção e a tensão
daqueles tempos tormentosos, jogando-as em alguém de fora. Foi isso o que fez
Hitler com os judeus, usando-os como bodes expiatórios para canalizar as falhas do
sistema capitalista, em vez de enfrentar os próprios problemas do sistema. Assim,
os habitantes de Dogville deveriam lidar com seus próprios problemas, seus
temores e suas falhas e repensar a sociedade em que viviam.
O segundo aspecto que identifiquei no filme se refere ao medo, ao medo de
admitir-se que se é humano, o grande medo de ser tão humano. Medo que se
manifesta em Tom e Grace.
Tom achava-se numa posição superior em relação aos demais habitantes de
Dogville e, por isso, sentia-se na obrigação de moralizá-la. Contudo, a trama
desenvolvida no filme mostra que ali, em Dogville, todos são iguais, sujeitos às
mesmas falhas e erros, às mesmas paixões. Tom era membro de Dogville e,
portanto, não era diferente.
Grace também pensava que era diferente em relação aos habitantes de
Dogville. Por isso, fez um pacto corrupto com os habitantes daquela cidade.
Desempenha um papel semelhante àquele da “titia”, abordado por Dore Soares
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(2001) com relação aos papéis desempenhados na escola: «A “Titia”, por sua vez, é
a imagem da professora sempre maternal, sempre “família”, sem nenhum
profissionalismo.» (DORE SOARES, 2001, p. 99). Grace expressa muito bem a
figura da “Titia” ao ser condescendente com as atitudes dos cidadãos de Dogville,
em vez de elevá-los a uma forma de pensar superior, principalmente devido às
suas experiências de vida, tal como propõe Gramsci, abordado no texto de Dore
Soares (2001)
A elevação do “senso comum” ao nível de saber científico exige um trabalho ativo do
professor, como intelectual que realiza a mediação entre a prática e a teoria. Exige do
professor que esteja consciente dos contrastes entre o tipo de sociedade e cultura que
ele representa e o tipo de sociedade e cultura representado pelos alunos. (DORE
SOARES, 2001, p. 103).
As atitudes de Grace lhe custaram caro, como o filme revelará. Grace ao ser
condescendente
com
determinadas
atitudes
dos
moradores
de
Dogville
proporcionou um ambiente propício para a proliferação de ações que lhe
prejudicaram. A condescendência dela era justificada para ela mesma através de
pensamentos em relação ao contexto sociocultural degradante pelo qual não só
Dogville passava, mas toda a sociedade americana. Mas tal contexto justifica
barbáries? O pai de Grace lhe diz ao final do filme que ela é uma pessoa muito
arrogante, Grace aceita os erros dos outros como sendo algo comum, mas não
aceita os seus próprios, não perdoa as suas fraquezas.
4.6 A ESCRAVIZAÇÃO
Grace provavelmente não esperava o que lhe sucederia. No início, os
habitantes de Dogville a aceitam com enorme amabilidade e carinho. Grace traz
alegria para Dogville. Ela pretende começar uma nova vida, deixar para trás o seu
passado. Dogville (embora receosa) lhe aceita. No decorrer da trama, porém, as
pessoas da cidade começam a tratá-la diferente. Além de aumentarem a sua
jornada de trabalho, acrescentam outros tipos de trabalho ao preço que Grace teria
que pagar para permanecer em Dogville, cortando também parte do seu salário.
Os homens de Dogville começam a estuprá-la em troca do silêncio a
respeito da hospedagem de Grace na cidade. Os estupros viram rotina. Grace se
sente impotente. Mais do que a exploração do trabalho humano, a comunidade de
Dogville escraviza Grace. Tom sabe de tudo. Supostamente, tenta produzir alguma
estratégia que pudesse tirar Grace da cidade. Suas sucessivas e fracassadas
estratégias, contudo, mostram-se um malogro ainda maior com a mal-sucedida
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fuga de Grace. A cidade inteira entra em comunhão e decide acorrentar Grace, por
considerar que ela representa um perigo para os habitantes. Mas não é uma
escravização simples. Ela é refinada. E até o mais estúpido dos habitantes do local
se mostra suficientemente “sábio” para inventar um sofisticado e “eficaz”
mecanismo para aprisionar e torturar Grace, dando materialidade ao mandato de
bárbara escravização da forasteira.
Se os habitantes de Dogville queriam que Grace se tornasse um membro da
cidade, ou mesmo compartilhasse de seus sentimentos comuns, isso não seria
obtido através da sua escravização. Isso dependeria da educação. É verdade que o
ato educativo requer uma ação coercitiva, para o domínio dos instintos. Nossos
instintos mais impulsivos estão em contradição com exigências da vida coletiva, em
comunidade, com as necessidades postas pela integração social. Pensar no outro,
no bem comum, por exemplo, não é algo que trazemos instintivamente. É algo que
aprendemos. É algo que resulta da educação. Nesse sentido, há uma ação
coercitiva para inibir instintos egoístas e desenvolver uma perspectiva voltada ao
bem comum. Mas é uma coerção que jamais se confunde com a escravização. Não
é uma coerção para nos manter heterônimos, subalternos, escravos. E sim para nos
possibilitar a conquista da autonomia, da ética. É isso o que mostra o texto de Dore
Soares (2001) quando aborda a reflexão de Gramsci sobre as diferenças entre
coerção e escravização no ato educativo de um povo ainda imaturo.
“O fato de que um povo ou grupo social atrasado tenha necessidade de uma disciplina
exterior coercitiva a fim de ser educado para a civilização, não significa que deva ser
reduzido à escravidão. Existe uma coerção de tipo militar (mesmo para o trabalho) que
pode ser aplicada inclusive à classe dominante, e que não é “escravidão”, mas sim a
expressão adequada da pedagogia moderna dirigida para a educação de um elemento
imaturo (que é seguramente imaturo, mas muito próximo de elementos já maduros, ao
passo que a escravidão é organicamente a expressão de condições universalmente
imaturas).” (DORE SOARES, 2001, p. 103).
A conquista da disciplina, que é necessária à conquista da autonomia, nunca
poderia ser confundida com a escravidão. Dogville era imatura e Grace foi
escravizada para se equiparar a uma situação mais atrasada do que aquela da qual
ela vinha. Na “cidade do cachorro” ela foi convertida em animal (e nem mesmo um
cachorro tem tantos grilhões). Não era um povo civilizado que educava uma pessoa
imatura. Mas era o contrário: uma cidade imatura que brutalmente reduzia uma
pessoa à animalidade.
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4.7 RELAÇÕES DE PODER EM DOGVILLE
Como uma cidadezinha aparentemente tão pacata se torna um monstro?
Infelizmente, em Dogville todos compartilhavam dos mesmos sentimentos. Tom
pensava ser uma exceção. Quando todos faziam visitas rotineiras para abusar
sexualmente de Grace, Tom aparentava sentir-se mal. Mas jamais moveu um dedo
para modificar a situação. Com isso, mostrava seu acordo efetivo com o que se
passava. Grace sabia bem disso. Mas Tom tentava se esconder em lençóis
transparentes. Julgando-se o único lúcido em Dogville, acha-se também no direito
de fazer sexo com Grace. É chocante ouvir da garota que, para ela, fazer sexo com
ele seria diferente e, por isso, não poderia ser naquele momento. Revoltado, Tom
tenta forçá-la. E, mais uma vez, mostra que seus sentimentos e desejos são tão
mesquinhos e pequenos como os de todos os outros habitantes da cidade.
Finalmente, Tom desiste do ato. E mesmo acorrentada, sexualmente explorada pela
cidade, brutalizada, Grace mantém um elevado nível de lucidez. Faz uma reflexão
cuja profundidade deixa Tom desnorteado. Ela lhe mostra que, não obstante suas
veleidades filosóficas, ele era igualzinho aos demais habitantes de Dogville. Mas
tinha medo de assumir as próprias fraquezas, de perceber que era tão desumano
como os demais, tão pequeno e vulgar como todos os outros em Dogville. O
discurso em voz entrecortada de Grace joga tanta luz que inicialmente chega a
ofuscar a pequena mente de Tom. A “filósofa”, de fato, era Grace. Não Tom. Se a
filosofia é a busca da verdade, ali estava Grace a mostrá-la. Revolvendo sua vida,
suas ações e sentimentos Tom é obrigado a se colocar diante de si mesmo e a
enxergar sua estatura anã. E por ser tão miúdo Tom não quer que a verdade
prevaleça. Não quer que a verdade seja vitoriosa. Isso significaria reconhecer sua
própria derrota. Por isso, escolhe derrotar a verdade. Derrotar Grace. Tinha
chegado o momento de se impor perante a sua comunidade. De mostrar que
deveria ser respeitado pelos seus companheiros de Dogville. E a estratégia para
ganhar a confiança que nunca obtivera de seus iguais será a denúncia de Grace.
No início da trama, Tom dizia representar os interesses de Dogville. Ele
pretendia armá-la moralmente, defender os interesses da cidade. Quando Grace
chega, Tom media a relação entre a cidade e a forasteira. Procurou mostrar os
aspectos que os habitantes de Dogville tinham em comum com a forasteira e os
benefícios que poderiam advir da relação a ser iniciada com Grace. Depois, Tom
passa a, supostamente, defender os interesses de Grace contra a sua própria
cidade. Embora não fosse completamente aceito como “filósofo” pelos habitantes
da cidade, Tom tinha certo poder em Dogville, o que é demonstrado quando ele
tenta persuadir a pequena população a aceitar Grace. No entanto, Tom se mostra
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pequeno demais para reverter o processo de escravização de Grace. Ao contrário:
seus sentimentos e suas ações mostram-se em harmonia com a pequeneza da
cidade. Grace lhe fez encarar-se a si próprio e ver-se tão medíocre e estúpido como
os demais, jogando pelo ralo todas as suas veleidades de filósofo. Em lugar de
confrontar-se com a verdade, sente-se agredido e passa a planejar o fim de Grace.
E, mais uma vez, suas espantosas estratégias se mostram um completo malogro.
Só que, desta vez, Tom pensava ter elaborado um plano que de fato teria sucesso.
Nunca jogara fora o bilhete do gangster que queria matar Grace e agora tinha
certeza de que a garota seria destruída. Com o fim de Grace, seria enterrada a
verdade sobre si mesmo e sobre sua pequena Dogville.
5. CONCLUSÃO
Que lição é possível tirar de Dogville? Ao reencontrar seu pai, Grace tenta,
mais uma vez, justificar as atitudes dos habitantes de Dogville. E lhe pergunta:
“(...) se os cães obedecem à sua própria natureza, por que não merecem perdão?”
Seria o caso de perdoar todas as atrocidades que a humanidade já
presenciou? Os genocídios no holocausto, as segregações raciais e a escravização
de um homem por outro somente porque a humanidade é fraca?
No final do filme, repensando a situação que viveu em Dogville, Grace
resolve perdoar apenas Moses (o cão). Para ela, somente o cachorro da cidade não
poderia ter os instintos educados. Já os humanos, embora também sejam natureza,
tal como o é o cachorro, são diferentes porque podem ser educados e superar a si
mesmos. Ao final, o próprio pai de Grace diz: “(...) podemos ensinar muitas coisas
úteis aos cães, mas não se lhe perdoarmos sempre que obedeçam a sua própria
natureza.”
Os homens podem, pela educação, alcançar um nível mais elevado de civilização.
Isso, contudo, não era o caso de Dogville. Seus habitantes estavam abaixo do nível
do cachorro. Esse é o juízo que leva ao extermínio de Dogville, sobrando apenas o
Moses. Uma cidade do cachorro: “Dogville”. Até os cães não eram tão vis.
A lição do filme é que existem milhares de cidades como Dogville em toda
parte, existem Graces sendo escravizadas, humilhadas e abusadas. E existem
também muitos Toms, que se acreditam éticos, filósofos, fazendo o bem para os
outros, mas jamais podem olhar de frente para dentro de si mesmos. Quantos
Toms acabam “matando” a verdade para que sua própria farsa possa sobreviver,
como se eles
fossem a “consciência ambulante”,
personificadas?
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a bondade
e a justiça
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Nas relações que acontecem no nosso cotidiano, na escola, na família, nas
associações de bairro, nos sindicatos, nos partidos políticos, existem relações de
poder que não podemos desconsiderar. Elas são atravessadas de contradições.
Muitos Toms, pintando-se de “bonzinhos”, formulam estratégias corruptas para
destruir a verdade e nos manter na ignorância. Por isso, precisamos ter clareza das
contradições que estão em torno de nós. Também é assim na nossa relação entre
professores e alunos. Devemos recusar pactos corruptos que não estimulam os
educandos a construírem um espírito crítico que possa dar um novo rumo à
sociedade. É necessário procurar elevar civilmente as massas populares para que
elas superem os instintos brutais, para que não reproduzam Dogvilles. Enfim,
precisamos de educadores que procurem formar dirigentes, na mais concreta
acepção da palavra, pois se trata de um objetivo difícil de ser alcançado, como
assinala Dore Soares (2001), ao afirmar que
“(...) a formação de dirigentes é muito mais complexa do que a maior parte de
professores bem intencionados pode supor. Ela requer uma ampla reforma da cultura
escolar, da cultura acadêmica, em que têm esbarrado as tentativas de superar
problemas vinculados ao déficit cultural acumulado em nossa sociedade.” (DORE
Soares, 2001, p. 104).
É nesse sentido que a autora destaca as contribuições da reflexão de
Gramsci para se pensar a importância da disciplina na aquisição de competências
para exercer a atividade de dirigente em nossa sociedade.
“As reflexões de Gramsci sobre a importância da disciplina na aquisição da técnica de
pensar são importantes como princípio orientador. Não se trata de legitimar os métodos
disciplinares hoje predominantes. Mas se são eles que, da escola infantil à superior,
ajudam a organizar um sistema de comportamentos para a aquisição da cultura, não se
pode querer suprimi-los apenas no ensino superior, em nome de uma pretensa atitude
progressista, sem ter havido um preparo do estudante para isso. O questionamento de
metodologias para se exercer aquela “coerção” externa da qual fala Gramsci,
assinalando
sua
necessidade,
precisa
vir
acompanhado
da
discussão
e
do
estabelecimento de novas metodologias que cumpram aquela função exaltada pelo
autor: a de criar condições para permitir o confronto e a superação de elementos
imaturos, presentes na cultura dos estudantes, no sentido de lhes possibilitar o alcance
de premissas para a autonomia moral e intelectual.” (DORE Soares, 2001, p. 103-104)
Essa é a direção em que se torna possível construir sujeitos autônomos, um
povo diferente do de Dogville. É o significado presente no texto de Semeraro
(2006) quando escreve sobre os intelectuais:
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Os intelectuais orgânicos aos dominados, ao contrário, estão convencidos de que “a
verdade é revolucionária”. Portanto, não abdicam a formar consciências críticas e a
construir um “bloco histórico” (uma articulação dialética) entre estrutura e superestrutura
(economia e cultura), entre sociedade civil e sociedade política, de maneira a superar a
relação vertical entre governantes e governados e a separação entre intelectuais e
massa. (SEMERARO, 2006, p. 385).
BIBLIOGRAFIA:
DORE Soares, Rosemary. Ensino e novas tecnologias: situação atual e novas perspectivas In:
Caminhos da história. Montes Claros, v. 6, n. 6, 2001, p. 69-98.
SEMERARO, Giovanni. Intelectuais “Orgânicos” em tempos de Pós-Modernidade. Caderno
Cedes, Campinas, vol. 26, n. 70, p. 373-391, set./dez. 2006.
PARISI, Mário; COTRIM, Gilberto. Trabalho Dirigido de Filosofia. Belo Horizonte: Saraiva,
1980, 4ª edição.
YALOM, Irvin D. Quando Nietzsche chorou. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, 26ª edição.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, 3ª
edição.
SITES DE APOIO:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Depress%C3%A3o
http://www.urutagua.uem.br//04pol_narco.htm
http://www.espacoacademico.com.br/038/38cult_valim.htm
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