Motivação em Watchmen

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Motivação em Watchmen
"Who Watches the Watchmen": Motivação e organização em Watchmen
Rafael Senra1
RESUMO: Pretendemos analisar quais as motivações e como se organizam os personagens do filme
Watchmen. Para isso, utilizamos de conceitos da psicologia junguiana que ajudam a explicar a
dinâmica de cada personagem; em seguida, valemos de idéias de Chomsky e Enriquez para
entender suas motivações e como se organizam em torno delas.
PALAVRAS-CHAVE: Watchmen – Psicologia Analítica – Terrorismo – Motivação - Organização
No presente artigo, analisaremos como se organizam as motivações e a interação
dos personagens do filme Watchmen. Lançado em 2009, o filme é a adaptação de uma
revista em quadrinhos (mais precisamente, uma graphic novel) publicada entre 1986 e 1987
pela editora americana DC Comics. Guardadas as diferenças entre as duas mídias, percebese que houve um impressionante grau de fidelidade à obra original – pelo menos quando
comparada a maior parte de adaptações de livros e quadrinhos para o cinema (Nota: O final
do filme acabou sendo bem diferente dos quadrinhos, por pressão dos estúdios da Warner
Bros. e da Paramount. Contudo, boa parte do início e metade do filme, sobretudo os
diálogos e a fotografia, é todo inspirado na HQ). Optamos por analisar o filme, dada a
temática do presente evento; porém acreditamos que a análise feita por nós cria ressonância
também com a narrativa original de Watchmen em quadrinhos.
A obra parte da premissa, comum nos quadrinhos em meados dos anos 80, de
subverter o gênero de super-heróis. Watchmen se insere na linhagem de obras como O
Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller – ambas contém tramas estreladas por heróis mais
velhos, decadentes, e que abandonam o ostracismo para uma missão derradeira. Entretanto,
a graphic novel escrita por Alan Moore e desenhada por David Gibbons leva essa proposta
às últimas consequências, tanto em sua forma multimídia, que atrela aos quadrinhos
elementos literários, cinematográficos e outros; quanto nas reviravoltas de sua longa trama,
que oscilam entre o grotesco e o sublime.
Após essas breves considerações estéticas de Watchmen, retomamos o objetivo de
estudar a motivação e a interação de seus personagens dentro da trama. Apesar da obra
1
Doutorando em Letras pela UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato:
[email protected]
apresentar uma infinidade de figuras, alguns personagens aparecem com maior destaque, e
é a eles que vamos nos ater. São eles: Comediante, Ozymandias, Rorschach, Coruja,
Espectral e Doutor Manhattan.
Para entendermos melhor esses personagens e o papel que cada um deles ocupa na
trama, iremos nos valer do conceito de tipos psicológicos abordado na psicologia analítica
junguiana. Em seu livro Tipos Psicológicos, Jung diferencia duas formas de atitude e
disposição pelas quais todas as pessoas se orientam. De um lado, os "extrovertidos", que se
deixariam guiar pelos objetos, fatos, e pelo mundo externo; enquanto que de outro lado, os
"introvertidos" focam mais em si mesmos, no subjetivo e no mundo interno. A forma como
o senso comum categoriza essas características, atribuindo extroversão à habilidades sociais
e introversão à timidez, não tem a ver com os mesmos significados na psicologia analítica.
Um introvertido pode ser desenvolto socialmente, e um extrovertido pode ser tímido. Os
termos se referem mais a visões de mundo, a maneiras pelas quais diferentes pessoas se
relacionam com o mundo: prestando mais atenção nos detalhes externos, ou na
subjetividade interna (JUNG, 1967).
Nessa divisão dos tipos psicológicos, podemos compreender a motivação de cada
personagem mais profundamente, uma vez que a energia psíquica e a libido de cada pessoa
é direcionada para suas propensões mais aguçadas. Para Jung, essas características não são
inatas, mas até certo ponto, adquiridas e estimuladas: "ambas as atitudes existem dentro
dele, mas só uma delas foi desenvolvida como função de adaptação; logo podemos supor
que a extroversão cochila no fundo do introvertido, como uma larva, e vice –versa" (JUNG,
1971, p.48).
O que move cada um desses personagens, portanto, pode ser alimentado tanto por
alguma coisa no ambiente externo quanto por alguma inquietação interna, já que "um
encarrega-se da reflexão; o outro, da iniciativa e da ação prática" (JUNG, 1971, p.47).
Assim, por mais que um indivíduo se creia soberano sobre seus desejos e suas ações no
plano consciente, existe toda uma estrutura inconsciente agindo por detrás de suas
motivações e sua interação com o mundo. Para Jung, mostrar disposição por alguma coisa
quer dizer "estar disposto para algo determinado, ainda que esse algo seja inconsciente"
(JUNG, 1967, p.493).
Além dessa categoria dos dois tipos psicológicos como introvertido e extrovertido,
Jung identificou quatro funções psíquicas atuando sobre os indivíduos, no que seria um
segundo nível de diferenciação psíquica. Tal constatação lhe veio quando observara que
mesmo pessoas de um mesmo tipo psicológico guardavam diferenças consideráveis entre
si; ou seja, um extrovertido não tem atitudes e idéias iguais as de outro extrovertido, e vice
versa.
São as quatro funções psíquicas: Pensamento, Sentimento, Sensação e Intuição.
Pensamento e Sentimento são um dos polos das funções, sendo o outro formado por
Sensação e Intuição. O primeiro polo é racional, e o segundo irracional. Pessoas que
compreendem o mundo tanto pelas reflexões e ponderações (Pensamento) quanto pela
percepção de seus sentimentos (Sentimento) atuam de modo racional. Por sua vez, pessoas
que se fixam nos fatos e detalhes sensoriais (Sensação) ou nos lampejos intuitivos que
brotam do inconsciente (Intuição), atuam no polo irracional (JUNG, 1967).
A forma como elas atuam é semelhante a de um crucifixo. Na parte superior do eixo
vertical, acima, se situa a função dominante; e no polo oposto vertical logo abaixo, a função
inferior. No eixo horizontal que corta o vertical, estão situadas as funções auxiliares. A
título de exemplo, uma pessoa que tem a função Pensamento como dominante (consciente)
terá necessariamente a função Sentimento como inferior (inconsciente), e Sensação e
Intuição serão suas funções auxiliares.
Percebemos em Watchmen que a dinâmica de seus principais personagens funciona
como o tipo psicológico de um indivíduo, sendo que cada personagem ocuparia o espaço de
uma das funções psíquicas. Antes de traçarmos esse diagrama, precisamos definir os
conceitos junguianos de Anima e Animus, sobre os quais repousam outros personagens.
A Anima é o lado feminino presente em todo homem, enquanto que o Animus
representaria a porção masculina presente em cada mulher. Sobre a anima, Jung diz:
Na Idade Média, muito antes de os filósofos terem demonstrado que
trazemos em nós, devido a nossa estrutura glandular, ambos os
elementos - o masculino e o feminino -, dizia-se que "todo homem traz
dentro de si uma mulher". É a este elemento feminino, que há em todo
homem, que chamei "anima". Este aspecto "feminino" é,
essencialmente, uma certa maneira, inferior, que tem o homem de se
relacionar com o seu ambiente e, sobretudo com as mulheres, e que ele
esconde tanto das outras pessoas quanto dele mesmo. Em outras
palavras, apesar de a personalidade visível do indivíduo parecer
normal, ele poderá estar escondendo dos outros — e mesmo dele
próprio — a deplorável condição da sua “mulher interior'' (JUNG,
p.31).
Uma vez expostos esses conceitos da psicologia analítica, demonstramos abaixo o
diagrama da dinâmica entre personagens que propomos para Watchmen:
No topo, temos Ozymandias como a função dominante (Pensamento). Toda a trama
de Watchmen gira a partir de seus atos, e grande parte dos outros personagens se vêem
inconscientes do que ele faz. Suas funções dominantes (representadas por Comediante e
Doutor Manhattan) são ameaças à consciência, que ele já inibe logo de início: na primeira
cena do filme, temos o assassinato do Comediante (2009, 5min) (que havia descoberto
todos os seus planos), enquanto que Doutor Manhattan tem seus poderes de previsão do
futuro inibidos por radiação de táquions, e não desconfia de nada até o pior acontecer
(2009, 2h20min).
A motivação e as ações de Ozymandias antecedem até mesmo o presente da
narrativa. Esta se inicia de fato com as motivações de Rorschach (que representaria o
inconsciente no diagrama), e que desconfia de que algo ruim está prestes a acontecer. É
desse inconsciente que brota a iniciativa de unir todo o organismo, tentando impedir sua
destruição.
Nos personagens Coruja e Espectral, que propomos como sendo Anima e Animus,
seu desenvolvimento se dá de uma forma diferente dos demais. Para explicar essa
dinâmica, recorremos ao conceito junguiano de Sombra. A Sombra é o espaço "marginal"
da psique de todo ser humano, é o acumulo de energias que deveriam ser vivenciadas, mas
que por algum motivo, foram reprimidas pela pessoa ou sociedade (nesse caso,
considerando a idéia de inconsciente coletivo e cultural). Quando esses conteúdos sofrem
tal mecanismo de repressão,
a sua energia específica desaparece no inconsciente com incalculáveis
conseqüências. Esta energia psíquica que parece ter assim se
dispersado vai, de fato, servir para reviver e intensificar o que quer que
predomine no inconsciente — tendências, talvez, que até então não
tivessem encontrado oportunidade de expressar-se ou, pelo menos, de
serem autorizadas a levar uma existência desinibida no consciente.
Estas tendências formam no consciente uma "sombra", sempre presente
e potencialmente destruidora. Mesmo as tendências que poderiam, em
certas circunstâncias, exercer uma influência benéfica, são
transformadas em demônios quando reprimidas (JUNG, p.93).
A princípio, uma forte relação de Coruja e Espectral com outros personagens
acontece de modo inconsciente, para depois ser levada a consciência e, por fim, integrada.
No início da trama, ambos ocupam o lugar da Sombra, para somente depois assumirem um
papel de protagonistas.
Coruja estaria à Sombra de Doutor Manhattan: este representa o mais alto poder
jamais alcançado por um herói, e seu status é quase que divino; Coruja, por sua vez, é um
humano sem poderes, que vive no anonimato uma vida sem nenhuma contingência
significativa. Ambos disputam a mesma mulher, Espectral, que se vê dividida ao longo de
toda trama, e acaba escolhendo Coruja, uma vez que Manhattan foi banido da Terra. Assim,
a integração entre Coruja e Espectral ocorre devido a negação da mulher em querer viver ao
lado de um ser extra-humano: ao aceitar as limitações do humano e valorizá-las, ela cumpre
o que Jung chamava de Processo de Individuação, que seria a mais alta etapa da caminhada
psíquica; a união entre masculino e feminino.
Porém, a própria Anima (representada por Espectral) teve que passar pelo seu
processo sombrio. No início de Watchmen, encontramos a personagem vivendo apática e
discretamente ao lado de Doutor Manhattan. Este ser de poderes incalculáveis era
considerado o grande trunfo do governo americano na Guerra Fria: uma arma viva, capaz
de dizimar os russos caso eles decidissem investir contra os Estados Unidos. A princípio, o
espectador entende que Espectral vive à sombra de seu namorado Manhattan (o que, de
fato, se dá), contudo, é desconhecida qual a verdadeira e maior Sombra que paira sobre a
personagem.
Em um mundo tomado pela desilusão e pela violência desenfreada, o Comediante é
considerado um herói nacional – sua luta, ao lado do Doutor Manhattan, foi essencial para
que os EUA vencessem a guerra contra o Vietnã. Entretanto, o personagem passa por cima
de qualquer limite ético, sem o menor indício de compaixão e consideração pelas pessoas.
Principalmente pelas mulheres, que trata como verdadeiros objetos de seus caprichos
sexuais. Devido a esse histórico, Espectral se deprime ao saber que é filha de Comediante –
principalmente porque sua mãe, Sally Jupiter, foi estuprada por ele; fato que desencadeia
seu próprio nascimento.
O Comediante tem seu acerto de contas com a própria consciência antes de morrer,
arrependendo de seus crimes: "Fiz coisas terríveis a mulheres, atirei em crianças. (...) Mãe,
me perdoe" (2009, 49e50 min). A menção às mulheres, sobretudo o apelo à mãe, mostra
que o Comediante se dá conta do aspecto sombrio de sua Anima. Porém, o que desencadeia
sua crise é descobrir sobre os planos de Ozymandias antes de todos. Isso lhe obriga a
encarar suas motivações da vida toda, só para perceber que nunca fez nada de nobre ou que
fosse digno de orgulho.
Espectral, por sua vez, consegue sua redenção através de Doutor Manhattan, que
poeticamente desvenda um sentido por detrás de todo o episódio envolvendo o Comediante
e sua mãe Sally, que ele entende ser um milagre:
As possibilidades são extremamente pequenas, como: Oxigênio se
transformando em ouro. Há muito tempo desejo presenciar um evento
desse tipo. Contudo, ignorei que na procriação humana, milhões de
células competem para criar vida. De geração em geração, até...
Finalmente, sua mãe amar um homem, Edward Blake, o Comediante.
Um homem que ela teria todas as razões para odiar. Mas a despeito da
contradição, e incalculáveis improbabilidades, foi você, somente você,
que surgiu. Em uma forma tão específica. De todo o caos. É como
transformar ar em ouro. Um milagre. (2009, 2h08min)
Apesar das fissuras e dos desencontros entre figuras tão diferentes dentro do
universo de Watchmen, todos abrem mão de suas peculiaridades e se unem por uma
motivação em comum: impedir os planos de Ozymandias. Para Enriquez (citado por
Kramer e Faria), a ameaça de inimigos internos ou externos é algo capaz de unir pessoas
diferentes em prol de uma motivação comum:
A construção ou delimitação de inimigos, externos ou internos, é um
processo frequente nas organizações, não raro, necessário. A existência
de inimigos fortalece os vínculos interpessoais, reforçando os
sentimentos de identificação e de pertença e a consciência de que há
um projeto comum a ser realizado. Numa organização empresarial, o
inimigo externo pode ser uma pessoa, um grupo, um setor, que passa a
carregar o fardo pelos fracassos da organização.
A existência de uma organização, assim como sua permanência, está
relacionada à construção de inimigos. Esse ambiente de luta contra
algo ameaçador consolida os laços de reciprocidade entre os membros
da organização (ENRIQUEZ. Apud: KRAMER, FARIA, 2007, p.92).
A motivação dos super heróis envolve um inimigo interno, que é um dos colegas
super heróis. O oposto do plano de Ozymandias, que visa culpar o Doutor Manhattan por
um cataclisma nuclear (causado pelo próprio Ozymandias) que devasta Nova York. A idéia
é que toda a humanidade se uniria contra Manhattan e os super seres, e assim uma era de
prosperidade e paz mundial se tornaria o contexto soberano. Assim, sua motivação é criar
um inimigo externo à humanidade.
A motivação de Ozymandias segue a mesma lógica do significado original por trás
de terrorismo de Estado. Noam Chomsky discute sobre como essa idéia originalmente se
referia aos atos de violência cometidos pelo Estado, no fim do século XVIII, para que as
camadas populares atendessem aos seus desígnios. Posteriormente, vários imperadores
convencionaram que o termo terrorismo era mais adequado para a violência localizada,
perpetrada por pessoas ou grupos pequenos (CHOMSKY, 2006, p. 259).
O princípio que justifica essas motivações de Estado (semelhantes as de
Ozymandias) é o de que "quando alguém pratica o terrorismo contra nós ou contra nossos
aliados, isso é terrorismo, mas, quando nós ou nossos aliados o praticamos contra outros,
talvez um terrorismo muito pior, isso não é terrorismo, é antiterrorismo ou guerra justa"
(CHOMSKY, 2005, p.78). Assim, a nomeação de uma ameaça externa seria o catalizador
para a união de toda uma comunidade em prol do inimigo comum. Em Watchmen, as
motivações do vilão se revestem de uma aparente nobreza, quando se descobre que a culpa
imputada ao Doutor Manhattan seria uma forma de unir toda a humanidade contra ele
(nota: nos quadrinhos, o inimigo é um monstro alienígena, o que nos parece mais afinado
com o plano do vilão. Discutimos esse fato no início do presente artigo).
Conclusão
Percebemos que em Watchmen, temos uma gama variada de personagens, todos
imbuídos de motivações pessoais bem diferentes. Contudo, o plano de Ozymandias é capaz
de realizar um fenômeno nesses dois espectros: das motivações dos heróis, por um lado,
que se unem contra o vilão; e das motivações da humanidade (aqui entendida a grosso
modo como os "não-super heróis") que se unem contra os super heróis (no caso do filme).
No primeiro caso, a união é contra um inimigo interno, enquanto que na segunda trata-se de
um inimigo externo. Além disso, a teoria de Jung dos tipos psicológicos, bem como seus
conceitos de Anima, Animus e Sombra nos ajudaram a entender a dinâmica pessoal de cada
personagem, podendo assim aprofundar os vínculos que sustentam a organização de tais
grupos.
Referências
Livros e artigos:
CHOMSKY, Noah. Piratas e imperadores, antigos e modernos. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006.
CHOMSKY, Noah. Poder e terrorismo. Rio de Janeiro: Record, 2005.
JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de Psicologia Analítica. Petrópolis: Editora Vozes,
1971.
JUNG, Carl Gustav (org.) O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, s/d.
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. São Paulo: Zahar Editora, 1967.
KRAMER, Gustavo Garcez. FARIA, José Henrique de. Vínculos Organizacionais. In:
Revista de Administração Pública. 41 (1). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007.
págs. 83-104.
Filme:
Watchmen. 2009. Direção: Zack Snyder.

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