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Jimmy Morales: o cômico (se não fosse trágico) na Guatemala Fabetz1 Em um de seus filmes mais famosos, Jimmy Morales, humorista guatemalteco, interpreta um sujeito ingênuo e bem-intencionado, que por reviravoltas na política, se torna presidente da república. Na vida real, Jimmy Morales, humorista guatemalteco, nada ingênuo e tão pouco bem-intencionado, por reviravoltas na política, se tornou o mais novo presidente da república centro-americana. Para uns, é a vida imitando a arte. Para outros, o resultado do triste sistema político guatemalteco, que tem passado por grandes provações nos últimos tempos. A Guatemala aparece nos jornais do mundo em duas situações: desastres naturais (como as centenas de mortos nos deslizamentos de terra em Santa Catarina Pinula) ou problemas políticos. Nesse último caso, as grandes manifestações que depuseram o ex-presidente Otto Pérez Molina – acusado de corrupção – colocaram em destaque a situação da Guatemala. Porém, é preciso ir mais profundamente na análise para compreender como um movimento popular que promove a queda de um presidente resulta na eleição de um humorista com conexões escusas para o posto de principal mandatário do país. A queda de Otto Pérez Molina e o esquema La Línea: aparência. A situação política na Guatemala se complexificou a partir dos escândalos de corrupção denunciados pela CICIG (Comisión Internacional Contra la Impunidad en Guatemala) e o Ministério Público local. A CICIG é uma comissão prevista pelos Acordos de Paz firmados na Guatemala em 1996 (que ao menos oficialmente pôs fim a 36 anos de guerra entre exército e forças insurgentes). No esquema de corrupção denunciado, uma estrutura chamada La Línea operava permitindo a sonegação de impostos das importações através do pagamento de subornos por parte de empresários. Os volumes sonegados são imensos, já que a Guatemala é um país altamente dependente de importações. Otto Pérez Molina e Roxana Baldetti (sua vice) seriam as figuras centrais do esquema, os chefes máximos, recebendo cerca de 50% de todos os subornos obtidos nas diferentes alfândegas do país. As denúncias aumentaram a insatisfação popular com o já debilitado sistema político guatemalteco, e desataram manifestações exigindo punição de todos aos responsáveis por La Línea. Como avanço das investigações (com a divulgação de gravações telefônicas tratando das negociatas do esquema), Roxana Baldetti renunciou (maio) e foi presa (agosto), sob acusação de associação ilícita, suborno e fraude, sendo enviada ao presídio feminino de Santa Teresa. Outros cinco ministros do governo renunciam, após comprovação de envolvimento com La Línea. Porém, faltava o presidente Molina, que gozava de imunidade presidencial. A pressão da 1 Coletivo de Relações Internacionais (CRI), do MST, Brasil. 1 sociedade nas manifestações (as maiores da história do país), juntou setores populares, políticos, industriais e comerciais de tal modo que o Congresso aprova a quebra da imunidade de Molina (2 de setembro), que renuncia e é detido no mesmo dia, sendo enviado para o quartel militar de Matamorros. Depois de um dia sem presidente, assume provisoriamente Alejandro Maldonato, indicado pelo próprio Molina depois que a vice-presidenta Baldetti renunciou. Tudo isso faltando 3 dias para o primeiro turno das eleições. Aparentemente, a pressão popular ajudou a CICIG e o MP a desvendar um esquema de corrupção e punir os responsáveis. Aparentemente… A queda de Otto Pérez Molina e o esquema La Línea: essência. O esquema de La Línea é peça de uma estrutura muito maior na Guatemala, muito mais ramificada e enraizada, articulando grandes interesses dos EUA, aos quias se somam interesses do agronegócio, grande mineração e narcotráfico, que são as bases reais do modelo econômico perverso imposto à Guatemala. Muito do ocorrido na Guatemala pode ser visto como um reordenamento de peças, uma “mudança social conservadora”, uma “solução dentro da ordem” (para utilizar conceitos de Florestan Fernandes), cuja finalidade é preservar o caráter autocrático do Estado guatemalteco. As diretrizes e compromissos dos Acordos de Paz de 1996 nunca foram cumpridas por parte dos sucessivos governos, que atuaram para aprofundar ainda mais a situação econômica, política e social que justamente foram as causas da insurgência popular. Esses governos ainda forjaram uma estrutura institucional descaradamente antidemocrática, marcada pela corrupção e pelo alinhamento permanente aos interesses geopolíticos dos EUA e grandes interesses econômicos lícitos e ilícitos. A penetração sistemática do narcotráfico na economia, sociedade e política guatemaltecas se articulou simbioticamente com a ampliação do agronegócio e, nos últimos anos, com os grandes projetos de mineração no país. Com a consolidação dos cartéis de narcotraficantes (em especial Los Zetas) no México (retirando o “primeiro lugar” dos cartéis colombianos), a Guatemala cumpre um papel-chave no chamado “triângulo norte” da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador), como zona de passo do tráfico de narcóticos, de armas e de pessoas rumo aos EUA, o maior mercado consumidor (e mais rentável) para no narcotráfico mundial. O agronegócio e os grandes projetos de mineração cumprem dois papéis fundamentais nesse modelo. Por um lado, possibilitam o controle de imensos territórios, conectando as rotas ilegais rumo aos EUA (principalmente, mas não apenas, as plantações de cana-de-açúcar e de palma africana). Por outro lado, também permite a lavagem de dinheiro com o investimento em gigantescos projetos mineiros e hidroelétricos (o Estado, falido e sem recursos, não possui capital para investir nas obras, atua mais na isenção fiscal e “facilidades” jurídicas). E esse modelo não se sustenta sem apropriar-se das instituições políticas do país. Segundo a 2 própria CICIG, se pode comprovar que 25% de todas as campanhas eleitorais são financiadas pelo dinheiro no narcotráfico. Os mecanismos de fiscalização estatais são praticamente inexistentes. Essa porcentagem é ainda maior nas alcaldías (prefeituras) das regiões fronteiriças do país, que são mais fortemente controladas pelas duas principais maras (facções criminosas) que atuam no país: a MS13 (Mara Salvatrucha) e a M18 (Mara Barrio 18)2. Somado a isso, há o papel do exército guatemalteco, igualmente corrupto e um agente econômico considerável nos negócios lícitos e ilícitos do país. Desde a chegada de Moliana presidência, a Guatemala vive um forte processo de militarização da sociedade, com muito militares colocados em postos-chave do governo. O próprio ex-presidente Molina é acusado de receber uma propina de 1,5 milhão de dólares de “El Chapo” Guzmán, atualmente o maior traficante do México. A acusação é que no ano de 1993 (ainda durante a guerra na Guatemala, quando Molina era general do exército) “El Chapo” ofereceu o dinheiro para que não fosse entregue às autoridades mexicanas. Molina já assumiu que recebeu a proposta do narcotraficante, mas diz que não aceitou. Entre prisões e fugas desde então (uma delas com um túnel de mais de 1,5 km de extensão), “El Chapo” segue foragido. As investigações apontam que ele esteja em algum lugar na fronteira entre México e Guatemala. Assim que La Línea é uma pequena parte de um sistema mais amplo de controle das fronteiras, enraizado nas instituições guatemaltecas, que cumpre o papel de sonegar impostos de importações, porém também cumpre o papel de ampliar a circulação e acumulação de capital ilícito. Se dá na Guatemala o mesmo processo de consolidação de um Narco Estado, tal qual se materializa cada vez mais no México, Honduras e mais explicitamente, na Colômbia. A CICIG não se propõe a investigar a fundo a questão do narcotráfico e sua conexão com La Línea: se reduz apenas a denunciar os esquemas de sonegação de impostos. E isso não é à toa. CICIG, Molina e os EUA Os atritos entre a CICIG e Molina são anteriores ao caso La Línea. Criada em 2007, resultante de parte dos compromissos assumidos nos Acordos de Paz, a CICIG seria um “órgão independente de caráter internacional”, vinculado à ONU, cujo mandado se encerraria em 2 anos. Porém, desde então, a cada dois anos o mandato da CICIG é prorrogado. Durante seu mandato, Molina deixou claro que não lhe interessava renovar o mandado da CICIG, que segundo ele é “um instrumento de ingerência dos Estados Unidos”. Porém, a pressão foi grande – principalmente com as declarações de Joe Biden, vice-presidente dos EUA – e o mandato da CICIG foi prorrogado. Não muito depois, a Comissão começa a divulgar a vinculação de Molina e seu governo com o esquema La Línea. 2 Tanto a MS13 e a M18 forma criadas nos EUA, e ampliaram suas ações a partir do retorno de refugiados de guerra que viviam nas zonas pobres de Los Angeles quando se firmam os Acordos de Paz em El Salvador (1992) e na Guatemala (1996). 3 Em algum momento do governo de Molina, os interesses dos Estados Unidos, do narcotráfico, dos setores empresariais, do agronegócio, da mineração e do exército da Guatemala entraram em atrito, se desencontraram. As análises atuais apontam dois elementos. Por um lado, a burguesia guatemalteca exigia “maior autonomia” e uma “fatia maior” da acumulação capitalista na Guatemala. Isso pode estar vinculado com a conformação de uma “burguesia comercial moderna” que se configura no país nos últimos anos. O CACIF 3, maior entidade patronal do país, já há algum tempo demonstra insatisfação e pequenas tensões com alguns elementos do exército, e exercem sobre eles uma imensa pressão. A grosso modo, se pode dizer que na Guatemala as tensões e disputas interburguesas se dão entre um setor industrial e comercial por um lado, e por outro, setores da oligarquia agrícola tradicional, junto com exército, com o capital do narcotráfico circulando em ambos os “grupos”. Nessa disputa por “uma fatia maior”, a situação do exército cobrando subornos do setor empresarial certamente gera tensões. Ainda mais com o projeto dos EUA chamado de “Plano Aliança para a Prosperidade”, que planeja uma nova onde de investimentos comerciais e industriais na região. Outro elemento é que a política anti-imigração da Guatemala é extremamente ineficiente, o que não está de acordo com os interesses dos EUA. E se trata inclusive de uma ineficiência proposital: as remessas em dólares dos quase 2 milhões de guatemaltecos que vivem nos EUA e enviam para a Guatemala são responsáveis por cerca de 10% do PIB do país. É a segunda maior fonte de entrada de divisas para o país, maior até que os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED), ficando abaixo apenas das exportações. Assim que, enviar guatemaltecos para os EUA é um bom negócio (além dos impactos na economia oficial, há também os lucros dos coiotes e máfias que operam a imigração ilegal e o tráfico de pessoas). Durante o governo de Molina, houve uma explosão do movimento migratório rumo aos EUA. Só no último ano, as remessas de dólares para a Guatemala tiveram um aumento de 10,7% e devem ultrapassar os 6 bilhões esse ano. A falta (proposital) de uma política anti-imigração eficiente por parte da Guatemala também é um elemento do “descompasso” com os interesses dos EUA (um dos principais discursos da “Aliança para a Prosperidade” é reduzir o fluxo de imigrantes de México, Guatemala, El Salvador e Honduras para os EUA). E quando seus interesses são afetados, os EUA atuam utilizando de todos os meios possíveis. Ao que tudo indica, Molina pode ser visto como um Noriega guatemalteco: por um período, serviu aos interesses dos EUA, porém foi descartado na medida em que seu poder cresceu ao ponto de exigir uma “fatia maior” dos lucros das atividades econômicas lícitas e principalmente ilícitas operadas pelos EUA. No caso do Panamá, houve uma invasão militar estadunidense para “retirar” Noriega do poder. Na Guatemala (que já viveu também uma invasão estadunidense em 1954), a solução foi outra. Porém, para compreender melhor o cenário guatemalteco para o próximo período, ou a aposta de reestabelecer a 3 Comité Coordinador de Asociaciones Agrícolas, Comerciales, Industriales y Financieras. 4 hegemonia dos EUA no país, é fundamental analisar um elemento que não estava nos planos em dos EUA, nem da burguesia guatemalteca: as mobilizações populares e seu caráter no último período. Indignação, mobilização e propostas: o movimento popular na Guatemala O movimento popular guatemalteco passa por um processo longo e dinâmico de rearticulação e acúmulo de forças que, de maneira geral, pode ser colocado em perspectiva desde 2005. Essa data é marcada pela ratificação, pelo Congresso da Guatemala, do Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA. Simboliza o abandono definitivo dos compromissos (nunca cumpridos) do Estado com os Acordos de Paz, aplicando uma radicalização do receituário neoliberal e aprofundando ainda mais os problemas sociais, políticos e econômicos que foram as causas dos levantamentos armados. A partir dessa data, o movimento popular guatemalteco retoma gradualmente a massividade e contundência de suas ações (que tiveram grande força nos anos 70, início e finais dos 80), depois de muitos anos determinados pelos discurso de reconciliação e negociação, e pela incidência perversa das centenas de ONGs que traziam o horizonte pós-moderno, buscando direcionar (através de financiamentos) as lutas das organizações guatemaltecas para pautas específicas e corporativas sem nenhum vínculo com a luta de classes e lutas por mudanças estruturais. É também a partir desse período que começam os grandes investimentos em mineração e hidroelétricas, ampliando os impactos e a conflitividade desde os setores camponeses e, em especial, indígenas. Desde a chegada de Molina ao poder, em 2012, o processo de militarização, criminalização, perseguições e assassinatos, que já era grande, se amplia, se aprofunda e se consolida. O exército é convocado todo o tempo para intervir a favor dos interesses das grandes empresas e corporações transnacionais. O Estado de Sítio se torna uma realidade cotidiana no país, assim como a ampliação dos destacamentos militares em “zonas de conflito”, muitas vezes utilizando da desculpa de combate ao narcotráfico. Setores militares que não estavam públicos desde a firma dos Acordos de Paz reaparecem, como a infame Fundación Contra el Terrorismo, liderada pelo genocida Ricardo Mendez Ruíz e outros, sempre buscando definir as lutas populares como atos terroristas. E, embora foi um período marcado pela ampliação da conflitividade, as organizações pouco conseguiram avançar em constituir uma unidade de projeto e demandas, com exceção da Marcha Indigena, Campesina y Popular, que desde os primeiros meses de 2012 conseguiu articular várias organizações, principalmente das áreas rurais. A Marcha Indigena, Campesina y Popular foi um sujeito político importante para pautar os debates de uma Lei de Desenvolvimento Rural Integral (construída desde os movimentos camponeses e indígenas, mas ainda não aprovada), assim como também foi importante para a derrocada da Lei Monsanto, que criaria mecanismos de privatização das sementes e aprovação das variedades transgênicas. 5 A partir das acusações e denúncias feitas pela CICIG e o MP da Guatemala, esse movimento popular voltou a apresentar-se de maneira unitária na conjuntura. A insatisfação com o cenário político do país se tornou o ponto central de aglutinação da diversidade de organizações e forças políticas. Esse processo, que se foi gestando ao longo de 5 meses, foi lento, algumas vezes contraditório e bastante complexo. No início, as manifestações contra a corrupção eram encabeçadas por setores médios da sociedade, sendo realizadas nos sábados pela tarde, principalmente para não prejudicar o trânsito, o trabalho e a economia. Para os setores empresariais, essa era uma massa a ser instrumentalizada. A “luta contra a corrupção” poderia garantir respaldo contra alguns elementos militares da burguesia. Porém, ao passo em que as manifestações avançavam, e os setores camponeses e indígenas do interior organizavam sua insatisfação somando à pauta anticorrupção outras críticas da ineficiência geral do governo – e dos governos. As demandas do movimento apresentavam um processo de tomada de consciência que há muito tempo não se via. Até mesmo o Movimento Estudantil, há tempos marginalizado das grandes lutas, retomou fôlego com o movimento “USAC es Pueblo”4. Se constituiu a Asamblea Social y Popular, aglutinando praticamente todas as principais forças populares. O foco dos protestos já não era apenas a “luta contra a corrupção”, mas avançaram para a exigência de renúncia imediata de Molina e, ainda mais além, para o questionamento do modelo eleitoral 5 e do Estado guatemalteco como um todo. Vão surgindo debates a respeito da urgência de uma refundação do Estado guatemalteco. Com a ampliação dos fechamentos de rodovias por todo o país, exigem a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. As manifestações se ampliam em uma grande jornada nos dias 24, 25 e 26 de agosto. E no dia 27 mostram sua maior força, com mais de meio milhão de pessoas mobilizadas. As elites, que a princípio apoiavam as manifestações quando essas se restringiam à luta “contra a corrupção”, começa a pensar alternativas para “frear” a radicalidade do movimento popular. Os interesses interburgueses se colocam de acordo, junto com os EUA, em um ponto: a reorganização do poder político na Guatemala precisa ser feita dentro da ordem burguesa institucional. A rearticulação da hegemonia burguesa: surge Jimmy Morales Uma das demandas centrais surgida na Asamblea Social y Popular foi o cancelamento das eleições presidenciais previstas para 6 de setembro e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, com o horizonte de refundação do Estado. Frente a isso, a burguesia (e seu conjunto de interesses) opta por sacrificar a Molina (2 de setembro) por um lado, e por outro reafirmar a legitimidade do processo eleitoral 4 Universidad de San Carlos de Guatemala, a única universidade pública do país e grande protagonista do movimento popular dos anos 70 e 80. 5 Um modelo eleitoral viciado como o brasileiro, principalmente no que diz respeito ao financiamento privado de campanhas. Nas estimativas, do financiamento das campanhas, 25% corresponde ao narcotráfico, 25% aos setores empresariais em geral e 50% as empresas com contratos com o do Estado. 6 do dia 6. Com a renúncia e posterior prisão de Molina, alguns setores dos manifestantes (classes médias e alguns setores empresariais) dão sua tarefa “por cumprida”. Além disso, no âmbito da esquerda eleitoral guatemalteca (pequena, sem muito prestígio e bastante fragmentada), a previsão das eleições era vista como um potencial para se ganhar espaço. Não há consenso dentro do movimento popular sobre as eleições do dia 6. Assim que num clima tenso e de muita confusão se realizam as eleições. Surge Jimmy Morales, o comediante, como candidato mais votado. Já passada uma semana das eleições, o Tribunal Supremo Eleitoral ainda não tinha oficializado quem estaria no segundo turno com Jimmy (não havia uma postura oficial do TSE entre Manuel Baldizón e Sandra Torres, devido a um grande número de papeletas de votação que foram destruídas no dia das eleições). Baldizón, denunciando fraude, renuncia à sua candidatura. O segundo turno das eleições fica definido pela disputa entre Jimmy Morales e Sandra Torres. Sandra Torres, ex-Primeira Dama durante do governo de Alvaro Colóm (2008-2012), apoiava-se principalmente no discurso de programas sociais e, claro, de combate à corrupção. Fundadora do partido ao qual concorreu às eleições (UNE – Unidad Nacional de la Esperanza), foi coordenadora do Conselho de Coesão Social, criado no mandado de Colóm, num governo que se caracterizou por uma grande abertura ao capital internacional e por dar início ao processo de militarização (criação de destacamentos militares, Estados de Prevenção e Estados de Sítio) que foi ampliado e aprofundado por Pérez Molina no mandato seguinte. Tentou ser candidata a presidência em 2011, mas havia impedimentos legais por ser PrimeiraDama. Divorciou-se de Colóm, porém mesmo assim a Corte de Constitucionalidade negou sua candidatura, alegando “fraude de lei”. O vice-presidente proposto em sua candidatura foi Mario Roberto Leal Castillo, ex-Secretário de Assuntos Específicos do governo de Molina, (empresário e dono de usinas no país, Castillo foi o principal financiador da campanha que levou Molina e Baldetti ao poder em 2012). Jimmy Morales se apresentou como “ator, diretor de cinema, produtor, empresário, docente universitário, comunicador, acadêmico, filantropo e político”. Porém, é unicamente conhecido na Guatemala por seus papéis humorísticos na televisão e cinema. Não possui nenhuma trajetória política considerável (uma tentativa de ser prefeito na cidade de Mixco em 2011, no qual foi amplamente fracassado) e, no contexto dos escândalos de corrupção que resultaram na queda de Molina, surgiu como um paradigma da antipolítica. Seu slogan, “nem corrupto, nem ladrão” cai muito bem numa sociedade que manifesta seu rechaço pela política tradicional, assim como sua famosa frase: “Durante 20 anos eu fiz vocês sorrirem. Prometo que se chego a ser presidente, não vou fazer vocês chorarem”. Porém, na construção da imagem que busca expressar uma “nova política” está seu partido, Frente de Convergência Nacional (FCN), criado em 2008 por um grupo de ex-militares que representam a linha mais dura e reacionária do exército. Os fundadores da FCN são acusados por muitas organizações de 7 direitos humanos como responsáveis de inúmeras violações durante o conflito armado (são setores que inclusive se opuseram às eleições diretas em 1985 e aos Acordos de Paz de 1996, também estiveram fora o governo do também militar Pérez Molina). Também já declararam apoio a Jimmy as associações de ExPatrulheiros de Defesa Civil (que foi o braço civil paramilitar contra a insurgência nos anos 80). Assim, por trás do “novo” que Jimmy tenta representar, está o velho exército guatemalteco, que desde a invasão estadunidense de 1954, nunca deixou de ser ator político e econômico de peso. Desde a saída do milionário Manuel Baldizón da corrida eleitoral, o empresariado guatemalteco em grande parte passou a apostar em Jimmy, ao mesmo tempo em que surgem mais denúncias de financiamentos do narcotráfico à sua campanha. Com o discurso de “fomentar o desenvolvimento comercial” agrada aos interesses das transnacionais e do Plano Aliança para a Prosperidade dos EUA. Ao redor da figura de Jimmy, pouco a pouco vão se colocando exército, empresários, narcotráfico e transnacionais. A hegemonia burguesa vai se reconstituindo na Guatemala, apesar de algumas mudanças de peças. No campo popular, a esquerda não conseguiu criar uma unidade frente ao que fazer do segundo turno entre Jimmy e Sandra. Para alguns, era necessário não votar, para não legitimar um sistema tão criticado nas manifestações; para outros, era necessário votar e votar nulo, para reduzir a legitimidade daquele que ganhasse; para outros, era preciso escolher o “menos pior”, votando em Sandra Torres para frear uma possível onda de militarização que poderia significar a vitória de Jimmy; para outros ainda, o foco não deveria ser as eleições, mas a construção de um plano de lutas com a pauta da Assembleia Nacional Constituinte. De qualquer modo, independente da confusão das forças populares, se deu o segundo turno com a vitória de Jimmy Morales (com 67,44 % dos votos válidos, contra 32,56 de Sandra Torres). O dado interessante: quase metade da população apta não foi votar (43,68 % de abstenção), um componente que reafirma o rechaço da população ao sistema político vigente. Lutas no horizonte Embora o movimento popular não tenha conseguido alcançar seus principais objetivos (como o cancelamento das eleições de setembro e a Assembleia Constituinte), é importante dizer que a pressão popular foi elemento central na queda de Otto Pérez Molina. Há tempos a Guatemala não passava por mobilizações tão contundentes e massivas, capazes realmente de questionar o poder das elites historicamente constituídas, e forçá-las a uma resposta. Se, por um lado, os interesses dos EUA e de setores da burguesia também foram responsáveis pela solução da saída de Molina, por outro o movimento popular conseguiu avançar em termos de unidade (com a Asamblea Social y Popular) e, principalmente, em termos de um objetivo comum entre as principais forças políticas: a Assembleia Nacional 8 Constituinte. Esses dois elementos (unidade e projeto), mesmo que ainda em processo de consolidação, mesmo que ainda buscando seus rumos, é de suma importância para o movimento popular guatemalteco. Principalmente porque abre um novo momento, no qual se dão condições para superar muitos dos limites das organizações que marcaram as dificuldades da luta popular desde a assinatura dos Tratados de Paz. De certa forma, as jornadas de lutas significam também uma retomada da dignidade dos setores populares guatemaltecos. Molina era, além de presidente, um ex-militar responsável por inúmeros massacres (em especial na região de Nebaj). Ministros nefastos como Lopéz Bonilla, além de principal responsável pela repressão no governo Molina, era membro do Conselho Assessor do ditador Efraín Ríos Montt durante a política de terra arrasada e o genocídio indígena dos anos 80. Ao lograr a queda de personagens como esses, o movimento popular guatemalteco também vai acertando as contas com o passado, ainda muito recente e de mil feridas abertas. E o mais importante: não o faz desde uma postura conciliadora e pacifista como adora a ONU e muitas ONGs, mas sim desde uma prática de luta concreta que é muito importante para as novas gerações. Para os EUA, com a saída de Molina e outros, é o momento de criar um ambiente estável e pacífico para todos investimentos que norteiam o “Plano Aliança para a Prosperidade”. Os militares e empresários precisam se colocar de acordo, e se contentar com a “fatia que lhes toca”. Além disso, o governo de Jimmy Morales já começará como fruto de um sistema desacreditado. Dois elementos podem ajudar e pensar nos cenários possíveis do próximo período na Guatemala. 1) A falta de experiência política de Jimmy deixará mais às claras o nível de solidez do pacto interburguês, assim como seus limites. As contradições entre os diversos interesses vão surgir em diferentes graduações, de acordo com diferentes contextos e conjunturas. Se é certo que o personagem “político da nova política” que Jimmy tenta encarnar não durará muito, ainda nãos se sabe qual será a “cara” ou “as caras” de seu governo. O papel dos EUA nisso será fundamental, mas contém em si mesmo uma contradição: criar uma zona de “segurança e tranquilidade” para os negócios (lícitos e ilícitos) implica em uma política que gera o próprio conflito que atenta contra essa “segurança e tranquilidade” que almeja a acumulação capitalista. 2) Ao compreender a experiência das lutas pela renúncia de Molina como o ponto de partida para um salto de qualidade, o movimento popular tem diversos desafios. Um deles é a solidez do projeto da Nova Assembleia Constituinte, pois se é verdade que muitas organizações estão de acordo, isso não significa que todas estejam colocando esforços na construção dessas lutas, ou tomando-as em conta em suas projeções táticas e estratégicas particulares. Passadas as manifestações, pode ser que as organizações retornem cada uma a seus afazeres cotidianos e se encerrem nisso. Por isso vai ser determinante a capacidade do movimento popular de encontrar pautas unificadoras não apenas no discurso, mas na capacidade de mobilização (como, por exemplo, a luta pelo direito a água que vem se desenhando no 9 horizonte...). Outro elemento será a capacidade de formação política e projeção de militantes capazes de articular as lutas específicas e particulares com as transformações estruturais, principalmente como forma de reduzir o abismo que existe entre diferentes gerações no interior das organizações guatemaltecas, mas também para forjar uma geração que seja capaz de dar respostas aos movimentos dinâmicos, sofisticados e muitas vezes sedutores do inimigo. A luta pela renúncia de Molina foi um avanço. Agora, o inimigo se rearticula. As ruas serão o território por excelência da disputa que se projeta para o próximo período. A luta na Guatemala nunca foi fácil. Os EUA fazem de tudo para manter o país em sua zona de influência direta. Ainda mais com contexto de ofensivas do capital chinês e russo na América Central. E nessa terra de tantos vulcões, os povos em luta ficamos na expectativa de quando há de ser a próxima erupção. Ciudad de Guatemala, 26 de outubro de 2015 10