elecs2011-enff_fau

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elecs2011-enff_fau
Sustentabilidade sócio-ambiental na construção civil: produção do
espaço sem exploração do meio e do ser humano
Érica Yoshioka (1), Andreas Guimarães (1), André Falleiros (1), Bárbara Améstica (1),
Fernando Minto (1), Francisco Barros (1), Gabriel Fernandes (1), Ion Fernandez (1), Júlia
Tranchesi (1), Mariana Pinheiro (1), Paula Noia (1), Rafael Borges (1), Cristiano Czyczia
(2)
(1) Departamento de Tecnologia da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (AUT-FAU-USP)
(2) Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)
Resumo: Este artigo descreve um conjunto de experiências obtidas a partir de uma parceria realizada entre um
Coletivo de Ação Universitária da FAUUSP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo) e a Escola Nacional Florestan Fernandes no sentido de promover o planejamento, construção, ampliação e
reforma dos espaços desta última, nos quais incorporam-se princípios de sustentabilidade sócio-ambiental.
Procura-se com isto argumentar que ações e práticas que evocam a sustentabilidade só se justificam caso
incorporem a necessária reflexão não apenas sobre o uso racional e não predatório dos recursos naturais como
também a não exploração do trabalho humano. Tal argumentação se dá tanto pela apresentação sintética da
história da construção da ENFF (produzida com materiais e técnicas de baixo impacto ambiental) quanto pela
descrição de trabalhos que vem sendo realizados pelo Coletivo. Apresenta-se detalhadamente o processo de
construção de uma casa de teto verde que se deu ao longo do ano de 2010 e na qual buscou-se a superação da
tradicional divisão social do trabalho nos canteiros de obras. Por meio dos trabalhos realizados pelo Coletivo na
ENFF, apresentamos uma conceituação de sustentabilidade que incorpore o problema do trabalho livre (entendido
ao mesmo tempo como um objetivo e como método de práticas que busquem a construção de um mundo mais justo
e sustentável).
Palavras-chave: sustentabilidade material e social, trabalho livre, métodos e técnicas de construção inovadoras,
dialogicidade.
Abstract: This paper showcases a group of experiences related to a partnership set up between an University Action
Collective at FAUUSP (Architecture and Urban Planning School of São Paulo University) and the Florestan
Fernandes National School regarding the planning, construction and retrofit of the spaces and buildings of the
latter, in which social and material sustainability are incorporated. It is therefore aimed to point that sustainabilityevocating practices are only justified if they incorporate a necessary reflection not only on the rational, nonpredatory use of nature resources, but also on the human labour exploitation. This argumentation is accomplished
by both presenting a brief history of the ENFF headquarters building process (built with environment low-impacting
materials and techniques) and by describing the works been done by the Collective. It is described the building
process of a green-roof house that took place along 2010 and in which it was tried go beyond the traditional social
division of labour in the building sites. Through the works made by the Collective at ENFF, we present a concept of
sustainability that incorporates the problem of the free labour (understood at the same time as both a objective and
a method to practices that look for the building of a more sustainable and fair world).
Key-words: material and social sustainability, free labour, innovative building techniques and methods, dialogicity
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho descreve e avalia um conjunto de experiências realizado no contexto de uma parceria entre estudantes,
professores e pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) —
apoiados pelo Fundo de Cultura e Extensão Universitária da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, pela FUPAM
(Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente) e pela diretoria da FAUUSP — e a Escola Nacional
Florestan Fernandes (ENFF), localizada no município de Guararema, nos limites da Região Metropolitana de São
Paulo. Tal parceria, cuja construção ao longo do tempo e cujos resultados obtidos até o momento são objeto de
reflexão deste artigo, tem como objetivos a formação de uma brigada permanente de construção, responsável pela
manutenção, ampliação, projeto e construção dos espaços e estruturas presentes na ENFF. Os trabalhos desta
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parceria entre um coletivo da FAUUSP e a ENFF estão formalizados no projeto de extensão FAU-ENFF:Diálogos,
aprovado pelas instâncias da universidade no segundo semestre de 2010 (internamente na Comissão de Cultura e
Extensão Universitária — CCEU — da FAUUSP e nas instâncias superiores da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão).
O artigo descreve experiências de construção coletiva, nas quais o diálogo entre os diferentes interlocutores
(técnicos, construtores, moradores) se dá a partir da intermediação dos fatos concretos a serem enfrentados e
propiciando o diálogo entre os vários saberes. Em tais experiências busca-se introduzir nos processos de projeto e
construção conceitos próprios do universo da sustentabilidade. Trata-se, porém, de uma apropriação crítica de tais
conceitos, adaptados à situação concreta do local e com a consciência de que não é possível produzir um ambiente
de vida humana sustentável a partir da exploração predatória tanto dos recursos naturais quanto do trabalho humano.
Este será o argumento central a ser trabalhado neste artigo: não há sustentabilidade de fato quanto o trabalho
humano é explorado, para haver tal sustentabilidade plena, são necessários o respeito tanto à matéria física quanto
ao ser humano que a trabalha. Para tanto recuperaremos conceitos desenvolvidos pelo educador Paulo Freire e pelo
arquiteto Sérgio Ferro a respeito da importância do diálogo e do material nas obras humanas. Os trabalhos que
realizamos na ENFF serão ainda utilizados para ilustrar tal argumento. Por se tratar especificamente de uma
experiência de ação universitária (em que busca-se a necessária integração entre ensino, pesquisa e extensão), tratase de um momento propício à reflexão sobre o papel do diálogo na construção de um habitat melhor e mais justo
(portanto, sustentável). Buscamos com o artigo, portanto, defender uma noção de sustentabilidade que nos é peculiar
e que tratamos como princípio de nosso trabalho: é falacioso qualquer discurso a respeito da sustentabilidade que
incorpore, contraditoriamente às suas supostas boas intenções, processos autoritários de condução dos trabalhos. A
superação das condições estruturais do atual capitalismo que produzem um mundo de injustiças e devastação só
pode ser obtida caso os processos que levem a tal superação sejam, eles próprios, coerentes, solidários, dotados de
liberdade, pois não pode haver contradição entre fins e meios: os fins são os meios usados para atingi-los.
1.1.
Escola Nacional Florestan Fernandes: breve descrição
A ENFF é uma escola de formação técnica e política dos militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
(MST) e de outros movimentos sociais, brasileiros e estrangeiros. Nela são oferecidos cursos de variados campos do
saber, como agroecologia, técnicas agrícolas, ciências políticas, permacultura, entre outros.
FIGURA 1. A marca "•" indica o município de
Guararema e a marca "*" indica a posição da
capital. Fonte: Acervo cartográfico do
Wikimedia Commons
<http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sao
Paulo_Municip_Guararema.svg>.
A escola foi inaugurada em 2005 após um longo processo de construção baseado no trabalho rotativo e voluntário de
brigadas voluntárias oriundas de diversos locais do país e do mundo. Utilizaram-se métodos de construção com
terra, entre os quais a taipa de pilão e o uso de tijolos de solo-cimento produzidos no próprio canteiro de obras: havia
desde o início a preocupação com o uso de técnicas e materiais de baixo impacto ambiental.
A escola é composta por uma estrutura de vivência central (que constitui o seu edifício mais emblemático, no qual
encontra-se o refeitório e os espaços para exposições e celebrações), por um conjunto didático (com salas de aula e
dois auditórios) e por um conjunto de moradia estudantil. Todos estes edifícios foram construídos com taipa de pilão
e blocos de solo-cimento. Durante sua construção ocorreram no canteiro de obras cursos de alfabetização dos
brigadistas, assim como sua capacitação para lidar com tais técnicas alternativas de construção: desde antes de usa
inauguração a ENFF constitui-se como espaço de formação da classe trabalhadora.
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FIGURA 2. Refeitório da ENFF em
construção (JUSTO, 2005: Anexo F, 15)
Ao longo dos anos a escola adquiriu lotes contíguos a fim de melhor comportar suas atividades. Em tais lotes foram
incorporadas à escola as edificações existentes, normalmente pequenas casas destinadas à moradia da Brigada de
militantes que atua na manutenção da ENFF. Após cinco anos da inauguração da ENFF, a escola já conta com um
conjunto construído razoável e heterogêno, o que leva à necessidade de sua melhor articulação e da definição de um
plano para estruturar todos os seus espaços, assim como de obras civis de ampliação, reformas e manutenção.
2. ESCOPO E OBJETIVO DOS TRABALHOS
A definição de um coletivo de estudantes e pesquisadores na FAUUSP — que, desde o início de 2011, contam com o
apoio institucional do Fundo de Cultura e Extensão Universitária — que estabeleceu uma parceria com a ENFF no
sentido de colaborar na discussão e condução dos projetos de ampliação da Escola se deu em decorrência de uma
experiência-piloto desenvolvida, ainda sem vínculo burocrático com a universidade, por arquitetos recém-formados
e estudantes: a reforma de uma das casas da brigada permanente da ENFF, cujo resultado assimilou a execução de
uma cobertura verde. Desta experiência inicial (que foi incorporada pelo coletivo universitário, quando formalizado,
como tendo sido seu primeiro “produto” de fato) surgiram novos convites feitos pela ENFF aos arquitetospesquisadores-estudantes. Entendeu-se, entretanto, ser necessário embasar melhor as futuras ampliações da escola a
partir de uma discussão ampla sobre o seu espaço, o que levou o grupo a entender que seu objetivo principal no
momento é a definição, por meios participativos e dialógicos, de um Plano de Desenvolvimento da ENFF, prevendo
para as futuras construções, reformas e ampliações dos edifícios da ENFF um conjunto de diretrizes. Um dos
objetivos deste Plano é o da definição de uma arquitetura condizente com princípios de sustentabilidade social e
ambiental.
Desde o início entendeu-se que a relação entre as duas escolas não seria a de uma mera prestação de serviços, mas
de um diálogo rico entre conhecimentos diferentes (e afastados pelo capital: o acadêmico e o popular). Um diálogo
não abstrato, mas intermediado por problemas concretos e com a perspectiva de construir um habitat melhor,
ensaiando uma sociedade mais justa. Em princípio, uma escola voltada a formar trabalhadores rurais, outra a formar
arquitetos e urbanistas. Se tivessem como objetivo a formação de profissionais que operassem segundo a divisão
social do trabalho regrada pelo Capital, estariam a formar profissionais operadores de atividades antagônicas:
executores rurais a alimentar, alienados, a fome de outros e pensadores urbanos a comandar a construção de cidades
injustas e desiguais. Mas, a partir da relativa autonomia conquistada, ambas as escolas buscam outra formação por
meio do diálogo crítico, a experimentar caminhos para a superação do antagonismo e construção de outra forma de
produção, quiçá mais integrada e harmônica: mais sustentável!
1.2.
A “casa do teto verde” e o diálogo
Este trabalho ocorreu entre maio e dezembro de 2010, tendo ainda algumas pendências construtivas sanadas nos
primeiros meses de 2011. Por se tratar de uma experiência pioneira na escola (e de um trabalho inédito para quase
todos os envolvidos), a avaliação de sua construção e de seus resultados ainda encontram-se em curso e reparos na
obra final estão atualmente em andamento.
Trata-se do projeto e construção de uma casa para os militantes da Brigada Permanente da ENFF, que residem na
escola durante um período de alguns anos. A ENFF, após adquirir uma pequena chácara que era vizinha à sua sede
original, considerou viável reformar uma antiga casa presente em tal chácara e incorporá-la ao conjunto de casas que
servem de moradia à brigada. Para tanto, mobilizou-se uma brigada de construção composta por militantes e foi
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efetuado um convite ao arquiteto Francisco Barros para acompanhar a obra. O arquiteto, por sua vez, convidou
outros arquitetos e estudantes para colaborarem, o que levou à composição de um núcleo que seria o articulador do
futuro Coletivo formalizado pelo apoio concedido pelo Fundo de Cultura e Extensão da Universidade.
Pela força expressiva do resultado final, no qual o teto verde, a depender do ponto de vista, domina a apreensão da
totalidade da arquitetura da casa pela forma como ela está implantada junto a um talude, e pela cultura que o teto
criou no cotidiano dos moradores e visitantes (que o veem como eventual espaço de estar e mesmo como um
símbolo), a construção passou mesmo a ser identificada como “a casa do teto verde”.
A estrutura original encontrava-se em situação bastante precária, mas aparentava alguma estabilidade. Tratava-se de
pequena construção de alvenaria de tijolos assentados com barro (fato que mostrou-se problemático posteriormente,
ao demandar o refazimento do revestimento original, agora armado com tela-de-galinheiro): uma casa simples, de
pequenas aberturas e pequenos cômodos, localizada junto à estrada que margeia a ENFF. Sua adaptação às
necessidades dos futuros moradores, portanto, envolvia a configuração de um bom projeto de ampliação.
O desenvolvimento do projeto de reforma procurou se dar a partir de métodos horizontais de encaminhamento de
decisões projetuais. Instituíram-se reuniões (“assembleias de projeto”) em que as várias alternativas eram discutidas
em suas várias dimensões: avaliavam-se implicações como o custo de tais decisões, a quantidade de trabalho
envolvida, o esforço necessário, a quantidade de material necessária, as dificuldades de transporte e aquisição de tais
materiais, a beleza do resultado do trabalho.
Ao longo dos meses, buscou-se a constituição de uma cultura construtiva comum entre os vários interlocutores, e
sobretudo a superação da figura do arquiteto como detentor único da verdade sobre o objeto arquitetônico, da
verdade sobre a estética da arquitetura e das formas de fazê-la. Segundo o arquiteto Francisco Barros, de início os
membros da Brigada de Construção sequer levantavam a cabeça quando conversavam: a cultura opressiva dos
canteiros tradicionais ainda estava presente nos primeiros dias, como memória constitutiva de um jeito de construir
que parecia não ter alternativa. Os processos horizontais de projeto e obra pareceram constituir, utilizando-se do
diálogo como ferramenta da arquitetura, um meio de superação desta cultura. O resultado é mais do que a
materialização de um desejo comum: trata-se mesmo da constituição de uma cultura de produção livre de
conhecimentos compartilhados, cuja constituição se dá pelo choque de diferentes experiências de vida. Neste
sentido, a obra passa a ser um espaço de aprendizagem coletiva, assumindo uma condição política relevante: o
conhecimento nela gerado passará a ser multiplicado na medida em que for replicado em outras experiências, em
outros locais do país, pelos que dela participaram.
O projeto final foi acordado entre os futuros moradores, construtores e arquitetos. Constitui-se da demolição de
trechos da casa original, da reforma de alguns de seus cômodos e da sua cobertura e da construção de uma nova ala,
separada da original por um espaço central que funciona como espaço de estar, junto à cozinha que surgiu da
ampliação da casa original. Por questões de praticidade e custos, decidiu-se pela utilização de sistemas
convencionais de construção: vigas e pilares de concreto armado na ampliação acompanhados de paredes de
alvenaria de blocos cerâmicos furados (“tijolo baiano”). Tratam-se de processos e materiais tradicionalmente vistos
como pouco “sustentáveis”, mas a aplicação neste momento de processos mais arrojados e com menor consumo de
insumos industrializados levaria talvez a uma exploração excessiva do trabalho: um equilíbrio cuja discussão se verá
adiante a respeito da construção do teto verde. A ENFF possuía um orçamento reduzido para conduzir a reforma da
casa1, levando a uma necessária racionalização dos custos e materiais disponíveis.
A decisão de produzir um telhado coberto com terra não ocorreu a priori. Originalmente, por restrições de custos,
decidiu-se pelo uso de telhas onduladas de polietileno reciclado do tipo “TetraPak.” A construção de uma laje plana
com lajotas e viguetas pré-fabricadas estava descartada não só pelo custo mas pelo péssimo desempenho do sistema.
A construção de um telhado composto por telhas cerâmicas também foi descartada pelo custo e pelas implicações do
madeiramento demandado por tal solução. A decisão pelo uso das telhas onduladas desagradou a todos: era de
conhecimento comum o péssimo desempenho térmico que as coberturas compostas por tais telhas possuem. Além
disso, tais telhas remetem às antigas e opressivas telhas de fibrocimento, as quais remetem a um imaginário
construtivo marcado não pela busca do conforto e da beleza, mas pela necessidade de sobrevivência dos moradores
das periferias urbanas. Do impasse relativo à resistência ao uso de material consensualmente tão ruim, surgiu em
algum momento, nas rodas de conversa que construtores, futuros moradores e arquitetos faziam sobre o objeto sendo
construído, casualmente, a menção ao uso de materiais locais, disponíveis no território da escola, para constituir um
telhado com terra. Sabia-se da qualidade térmica de ambientes cobertos com terra: não era preciso falar em “massa
térmica”, em “coeficientes de transmissão térmica” para passar uma ideia bastante intuitiva.
1
A construção da casa recebeu apoio financeiro de entidade internacional.
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A obra passou por uma reviravolta e firmou-se a decisão em construir com terra: assumiu-se de modo geral o
compromisso com a experimentação, com a aventura de produzir algo que ainda não havia sido feito por nenhum
dos presentes. Realizaram-se contatos com pessoas que já haviam trabalhado com telhados verdes para colaborarem
no projeto, mas a composição da Brigada de Construção permanecia a mesma.
Procedeu-se então ao desenvolvimento do sistema construtivo utilizado: decidiu-se que seriam usados como peças
de sustentação da lona que receberia a terra os bambus já existentes no terreno da ENFF. A decisão é consistente:
seria incoerente utilizar-se, por exemplo, de placas de madeira compensada compradas apenas para tal uso.
FIGURA 3. Instalação da
trama de bambus usada para
receber a lona impermeável.
A camada de terra seria depositada sobre uma lona impermeável. Esta, por sua vez, seria sustentada pelos bambus. A
trama de bambus seria posicionada transversalmente aos caibros (madeiras roliças cortadas ao meio), os quais eram
suportados por vigas de madeira construídas no local. Entre a camada de terra e a lona foi instalada uma manta
permeável2 para evitar o contato direto de raízes e pedregulhos com a lona. Pela escassez deste material presente na
escola, foram a ela doados velhos tapetes, com função similar, cuja reutilização na obra foi bastante adequada em
substituição à manta no que se refere ao cumprimento de sua função.
A inclinação ideal para este tipo de telhado era de 15%: para evitar o escorregamento da terra nas bordas do telhado
foi construída uma espécie de platibanda com blocos cerâmicos estruturais, reaproveitados de outros obras, mas que
permitiam o escoamento da água para as calhas lindeiras 3.
As vigas principais (“terças”) do telhado, para resistirem à carga ampliada da terra, foram produzidas no local pelo
acoplamento (com cola e pregos) de quatro caibros a uma prancha de madeira, constituindo uma espécie de viga
com perfil “I.”
FIGURA 4. Base para o recebimento
da terra.
O desenvolvimento deste sistema foi de fato resultado de trabalhos experimentais em que o diálogo entre os vários
conhecimentos (técnico e vernacular) conduziu a um conhecimento coletivo materializado. Além disso, por se
discutirem previamente à realização dos trabalhos os processos a serem aplicados, chegava-se a um consenso sobre
as dificuldades a serem enfrentadas, evitando-se assim o uso de técnicas nocivas ao trabalhador: algo oposto à
2
3
Do tipo “Bidim.”
As quais devem levar a água a um cisterna, a fim de ser reaproveitada. Esta etapa da obra ainda está em curso.
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tradicional “ordem de serviço” expressa nos desenhos de execução produzidos longe dos canteiros, em que o esforço
necessário em cada trabalho, por mais indigno que seja, é desconsiderado.
Ao longo dos meses de obra, colaboraram em algum momento na construção os estudantes Pedro Nakamura,
Manoel Alcântara, Gabriel Fernandes, Rafael Borges, Paula Noia, Diego Kapaz, Ion Fernandez, Júlia Tranchesi,
Mariana Pinheiro, Andreas Guimarães, William Itokazu, André Falleiros, Bárbara Améstica, entre outros.
Contribuíram ainda o arquiteto Fernando Minto e o militante Cisco, experientes na construção de tetos verdes.
Compuseram a Brigada de Construção os militantes Cocó, Tom, Rafael e o arquiteto Francisco Barros e trabalharam
na obra ainda os militantes Heron, Eridan, entre outros.
Ilustração 5. Cobertura com terra
concluída.
Apesar de tudo, a obra não de fato um “canteiro-festa” marcado por um trabalho efetivamente livre em todo o
tempo: nela existiram ainda resquícios de dominação (seja pelo uso de determinados materiais impregnados de
exploração do trabalho, seja por decisões que se tomaram, pelo pragmatismo do momento, fora dos espaços mais
horizontais). No entanto, entende-se que se tenha promovido, na medida do possível, um combate ao trabalho
alineado: cada um dos que colaboraram tinham a consciência de participar de um trabalho coletivo, iniciado e
concluído por outros, mas em uma dinâmica de trabalho não conduzida pela via da imposição de processos e
produtos.
1.3.
Da prática à definição dos objetivos do grupo
Para o Coletivo, esta obra constitui uma primeira reflexão, um primeiro resultado dos trabalhos a que nos
propusemos fazer e que portanto foi relevante na definição dos objetivos do grupo. Enseja, portanto, algumas
anotações para a prática futura:
Primeiramente, o uso de materiais e técnicas de baixo impacto ambiental (teto verde) apresenta implicações
econômicas relevantes, na medida em que significa — mesmo que residualmente, mais como força simbólica e
programática do que efetivamente como um protesto ou boicote de impacto — a recusa à transmissão de capital aos
produtores dos insumos tradicionalmente empregados na construção civil, sobretudo na recusa à aplicação
indiscriminada de areia, cimento e aço. A produção de areia é reconhecidamente uma atividade econômica de alto
impacto ambiental, sobretudo na região do Vale do Paraíba onde a ENFF está instalada. O cimento, por sua vez, é
reconhecidamente um produto cuja elaboração joga na atmosfera variados poluentes. O mesmo vale em certa
medida para a produção de aço para construção civil, apesar da possibilidade de sua reciclagem. Além disso, são
materiais industriais (ou semi-industriais, no caso da areia) em que há alta extração de mais-valia ao longo de seu
processo de produção. Um primeiro objetivo do grupo é o da necessidade de redução, na medida do possível, do uso
de commodities na construção e na transferência de mais-valia ao grande capital do setor da construção civil.
Em segundo lugar, coloca como um objetivo claro para o grupo a busca de processos de projeto e construção
democráticos, pois eles propiciam a construção de um conhecimento arquitetônico novo, comum às várias culturas
diversas. A busca deste conhecimento novo implica em questões metodológicas no campo da participação, da
dialogicidade e da pesquisa-ação que serão abordados na seção seguinte. Tratam-se, porém, de temas intimamente
relacionados com o problema da sustentabilidade, como se verá: seria incoerente produzir exploração e alienação do
trabalho para se chegar a resultados “sustentáveis.”
Finalmente, retomando o problema da relação “sustentabilidade x trabalho”, é preciso ter em mente que a aplicação
de processos e métodos de baixo impacto ambiental não se deve apartar da aplicação de processos e métodos de
“baixo impacto no trabalho humano”. Em outras palavras: não se justifica a imposição do trabalho pesado e
opressivo em substituição a trabalhos menos impactantes, porém menos “sustentáveis.” Apesar da alta qualidade
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alcançada pelo teto verde construído, quando comparado a soluções tradicionais (como uma laje pré-moldada que
poderia ser executada em um único dia), deve-se reconhecer a grande quantidade de trabalho aplicada. Tratou-se
aqui, porém, de um trabalho minimamente acordado e cuja decisão foi coletiva, mas este equilíbrio é difícil e deve
estar na base das reflexões para qualquer outra situação.
2. ASPECTOS METODOLÓGICOS E TRABALHOS FUTUROS
Da finalização da casa do teto verde à definição dos atuais trabalhos do Coletivo ocorreu a formalização
institucional do grupo junto à universidade, materializada pelas supracitadas bolsas concedidas pelo Fundo de
Cultura e Extensão. Atualmente o grupo está trabalhando na definição do Plano de Desenvolvimento da Escola, o
qual será brevemente discutido adiante.
2.1.
Material e diálogo na constituição de uma cultura construtiva popular
As reflexões promovidas com a “casa do teto verde” permitiram a definição de algumas referências metodológicas
relacionadas à busca de um trabalho horizontal, participativo e dialógico. Cabe neste momento uma breve retomada
de autores que suscitam questões relevantes na definição das bases metodológicas com as quais vimos trabalhando.
Primeiramente é preciso recordar a conceituação que Sérgio Ferro faz da ideia de material. Para Ferro, o material
não se restringe à matéria, mas inclui o trabalho nele realizado. Parte do conceito de material de Adorno, muito mais
amplo e relacionado a tudo o que influencia na composição musical, e o enquadra melhor às necessidades de uma
reflexão sobre o ato de construir. Segundo Ferro (2006: 236–237):
Os materiais, para nós, são aquilo que concretamente sustenta o construído. De Adorno extraímos
principalmente a ideia de sua determinação social e histórica. O material é a matéria mais os homens
que a trabalham. É o suporte ativo do trabalho de concepção e de realização. A formação (no sentido
do Das Bilden de Hegel) insere aí tesouros de possibilidades que esperam para se manifestar através
do projeto. A maioria das camadas da produção — escamoteada com frequência pela crítica parcial —
grava seu pathos em sua resistência.
Também é preciso recordar a conceituação que Paulo Freire faz da dialogicidade como ferramenta pedagógica
essencial.
Segundo Freire (1977):
O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o 'pronunciam', isto é, o
transformam, e transformando-o, o humanizam para a humanização de todos.
Trabalhamos com o possível cruzamento dos dois conceitos: o material passa a ser objeto de intermedição do
diálogo, seja pela apropriação da matéria trabalhada, seja pelas características do trabalho a ser realizado. Buscamos
com isto a constituição de uma cultura construtiva comum. Segundo Arantes (2004:209):
Se os arquitetos estiverem motivados a construir obras com invenção e não apenas reproduzir com
correção técnica a autoconstrução, quais argumentos devem utilizar, por exemplo, para rechaçar os
balaústres ou as janelas arqueadas coloniais? Para isso o arquiteto não pode apenas lançar mão de sua
razão técnica, afirmando, por exemplo que são elementos construtivos antieconômicos, pois estaria
assim impedindo o diálogo franco e restituindo sua ‘autoridade’ inquestionável de técnico de nível
superior. Se é preciso criar uma cultura arquitetônica comum entre arquitetos e mutirantes, ela deve ser
francamente debatida e experimentada até consolidar um novo imaginário do que seja o habitat
popular numa grande cidade.
2.2.
Plano de Desenvolvimento: por que participativo?
O Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE) constituir-se-á em um documento apontando para como, quando e
onde a Escola ampliará suas estruturas construídas, a partir de uma consciência de integração racional ao meio
físico, integração ao seu plano político pedagógico e de produção de um espaço recusando a exploração dos seres
humanos e o trabalho alienado. Incorpora, portanto, os objetivos enunciados no item 2.2.
Como já ressaltado, chegou-se à conclusão da necessidade de produção de um documento que enumerasse tais
diretrizes quando do término da construção da “casa do teto verde” e da verificação de novas demandas espaciais, as
quais seriam melhor encaminhadas caso obedecessem a um planejamento prévio de mobilização de recursos.
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Aproveita-se a oportunidade para promover uma discussão mais ampla sobre os espaços da escola e sobre os
princípios que devem reger sua construção e ampliação.
O Plano, quando concluído, deve descrever princípios, diretrizes e ações para a manutenção e ampliação da escola
nos próximos anos. Deve ainda descrever uma espécie de “plano de massas”, indicando as futuras novas estruturas e
a forma como elas estarão integradas ao meio, como será o consumo de recursos naturais e seu aproveitamento,
incorporando portanto uma discussão sobre o uso racional de recursos como água potável, águas pluviais,
saneamento, além da integração das estruturas produtivas ao espaço da escola (hortas, pomares, etc).
Neste momento, porém, cabe refletir sobre o papel da participação e do diálogo na construção do plano (e das
futuras construções), a partir das colocações presentes na seção anterior. Trata-se da base metodológica de nosso
trabalho.
Entendemos que uma proposta efetiva de produção de um habitat sustentável envolva necessariamente a apropriação
do território, da paisagem e do lugar pelos seus habitantes, de modo a conduzir a uma consciência da presença dos
sujeitos junto ao meio físico. Propomos um plano “participativo” pois o pretendemos dialógico, fruto do
enfrentamento de saberes diversos e propiciador de uma reflexão coletiva, horizontal, que leve à transformação das
várias consciências (nossas, inclusive). Mais uma vez, ressaltamos: por se tratar de uma parceria entre escolas,
buscamos processos horizontais de encaminhamento de decisões técnicas, nais quais todos aprendamos em um
processo amplo de formação, não de imposição de ideias baseadas em critérios meramente técnicos. Não se trata
ainda de uma participação “ingênua” — visto que o discurso participativista, como se sabe, foi há muito incorporado
pelo capital e hoje é recomendado por organismos como o Banco Mundial — mas da definição de um processo em
que os vários saberes possam dialogar. O desenvolvimento do plano — atualmente em curso — significa portanto,
em outra escala, um ensaio de como podem ser os trabalhos futuros de construção na ENFF (ou mesmo fora dela), a
partir das reflexões que surgiram com a experiência da “casa do teto verde.” Propomos o diálogo como base da
participação. Segundo Paulo Freire (1996:119–120):
Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no
sentido aqui discutido, significa a possibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a
abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isto não quer dizer, evidentemente,
que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao que o outro fala. Isto não seria escuta, mas
autoanulação. […] é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar do
ponto de vista das ideias. […] Precisamente porque escuta, sua fala discordante, em sendo afirmativa,
porque escuta, jamais é autoritária.
Delineamos um calendário dividido em: leitura dos espaços, proposições e síntese/conclusão. A cada uma destas
etapas correspondem um conjunto de atividades (oficinas, círculos de debate, etc) realizados com públicos ora
ampliados (envolvendo toda a escola) e ora reduzidos (envolvendo grupos de trabalho da Brigada Permanente da
ENFF). Na primeira etapa (leitura dos espaços) trabalhamos com modelos volumétricos do território da ENFF
produzidos nas oficinas da FAUUSP e nas oficinas da própria ENFF, juntamente dos seus militantes, assim como
com a produção de mapas mentais e seu rebatimento na realidade concreta. Buscamos assim um diálogo contínuo
entre a realidade e as abstrações realizadas para compreendê-la: parte-se da realidade concreta (vivida
cotidianamente na ENFF) para uma abstração dela e sua reflexão, e voltando àquela realidade surgem possibilidades
de proposições futuras. Nas etapas seguintes trabalharemos com oficinas de tempestades de ideias, conversas com
especialistas externos, oficinas relacionando às ideias à realidade concreta, entre outras atividades. A definição final
do Plano se dará em reuniões em que serão apresentadas a síntese das discussões realizadas.
O Plano representará, portanto, uma tentativa de negação do trabalho alienado: todos aqueles que vierem a trabalhar
na ampliação dos edifícios da escola terão contato com um registro das discussões realizadas e das decisões
tomadas, dos caminhos que se decidiram traçar no futuro.
2.3.
O contra-desenho na definição de um habitat sustentável
Segundo o já citado Sérgio Ferro, podem ser enunciados alguns princípios relativos a uma arquitetura produzida a
partir dos pressupostos do trabalho livre. Ferro argumenta que:
O desenho só conta quando se perde na matéria e volta outro, transformado pelo trabalho que o
redescobre transubstanciado. Querer enfiar vibrações estéticas no desenho leva obrigatoriamente à sua
perda. Pela milésima vez: arte é manifestação de alegria no trabalho. Para que esta alegria seja
autêntica, o trabalho tem que ser livre. Se for realmente livre, autônomo, o trabalho terá em si mesmo
todas as razões para ser o que é, sem depender de nada exterior, é o necessário. (2006: 429)
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Neste sentido, deve-se buscar uma metodologia para nossos trabalhos futuros de construção e arquitetura que
contemple a devida apropriação das técnicas e processos pelos construtores. Mais do que isto, esta apropriação deve
se dar por meio da efetiva interação entre construtor e obra, intermediado pelo trabalho e não pela interferência de
um desenho regulador dos mínimos detalhes, autoritário em suas determinações tectônicas e estéticas. Ao risco de
um resultado “kitsch” Ferro argumenta que “se kitsch é a degradação de conceitos plásticos respeitáveis, os nossos
elegantes critérios formais talvez sejam ainda mais kitsch: derivam de uma produção martirizada, não são em nada
respeitáveis.” (Id.: ibid.)
Ferro então enumera algumas possíveis orientações para o contra-desenho, para um projeto que incorpore o
problema do trabalho livre e da manifestação da alegria na produção da arquitetura (do espaço habitado pelo
homem, enfim):
1.
Adotar como fundamento de sua própria constituição o diagrama da lógica da sequência produtiva
manufatureira. Imprimir no a-fazer a estrutura dinâmica do fazer. Reduzir assim a hegemonia do fim
estático sobre a mediação operacional. Rever o fim através do meio.
2.
Em cada etapa, determinar o esquema, o diagrama do que fazer — o mais simples, racional e
autônomo possível. […]
3.
Reduzir ao máximo, contornar mesmo as interfaces, os lugares de cruzamento das equipes, lugares
de limitações à autonomia. […]
4.
Detalhamento dos esquemas parciais pelas equipes — não por técnicos, tão separados do canteiro
hoje como os arquitetos.
5.
Respeito pelo rastro (“trace”) específico do trabalho de cada equipe. Se o diagrama guia a
concepção, o índice, a marca do trabalho hábil e racional é indispensável na produção: não só
atualiza, dá carne ao diagrama, mas é a única passagem para o “sujeito”, para a aparição do produtor
no produto, do trabalhador coletivo, a essência, na forma de sua obra.
6.
Deixar o resultado do trabalho de todas as equipes o mais possível aparentes. Ainda uma vez: se a
essência é respeito à integridade do corpo produtivo, todos devem aparecer.
7.
Se tudo o que procede ficar inscrito no resultado, sua plástica será outra, evidentemente. Não a dos
volumes, da geometria própria a reforçar a fetichização — mas a da produção livre.
8.
Se assim for, a obra atingirá valor pedagógico, ensinará como construir com autonomia. Para
reforçá-lo, por que evitar a retórica do ornamento autêntico, ampliação harmônica (em sentido
musical) do gesto produtivo adequado — o signo da alegria na produção livre.
(Id.: 430–431)
Entendemos que a construção de nossos pressupostos metodológicos, dos princípios que dão base à condução de
nossos trabalhos estejam em constante discussão e reavaliação (ressaltando sempre que trata-se de uma parceria
entre duas escolas, portanto o componente pedagógico e de formação é fundamental a qualquer discussão sobre
metodologia).
As observações de Sérgio Ferro nos são relevantes em vários sentidos: primeiramente, ao retomar criticamente o
processo de construção da “casa do teto verde” (item 2.1), notamos que é possível cruzar vários dos princípios que
fundamentaram aquela experiência com a reflexão de Ferro sobre uma arquitetura baseada no trabalho livre. Não se
tratou de uma aplicação rigorosa, sistemática, dos pressupostos enumerados por Ferro, mas de um primeiro contato
entre tais ideias e a realidade local: enseja questões próprias para serem discutidas no contexto do Plano de
Desenvolvimento da Escola e que foram brevemente ensaiadas na seção 2.2.
Em segundo lugar, as reflexões citadas indicam o necessário caminho do diálogo — não o da imposição — na
definição do habitat humano: trata-se de uma proposta de efetiva sustentabilidade material, pois incorpora o respeito
não só pelos recursos naturais envolvidos no ato da construção (pela apropriação que se faz deles, pela identidade
que propiciam), como o respeito pelo trabalho, pelos saberes locais, variados, por uma definição múltipla, coletiva,
alegre do que seja o espaço destinado às nossas futuras atividades. Trata-se portanto de uma proposta de uma nova
relação entre o ser humano e o meio: de uma identidade entre o sujeito e o espaço que este habita (assim como com
a paisagem com a qual interage, o território que domina, os lugares a que dá significado) intermediada pelo trabalho.
Este, por sua vez, foi incorporado de reflexões (ensejadas pela prática, pelo contato direto com os problemas da
realidade) outras sobre o meio original, sobre os recursos necessários à sua transformação. Esta relação que
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propomos entre o trabalho livre e uma proposta de sustentabilidade que reconheça a necessidade de respeito pelo
mesmo trabalho serão desenvolvidos adiante. Por ora, as inquietações metodológicas que propomos e levantamos
levam à perspectiva de constituição de uma cultura construtiva nova, resultado da síntese do diálogo realizado entre
os vários saberes.
3. O DESAFIO DO TRABALHO LIVRE
Entendemos que os trabalhos que temos realizado no contexto do projeto de extensão FAU-ENFF:Diálogos
constituem antes uma experiência para refletir sobre o trabalho livre do que propriamente uma experiência de pleno
trabalho livre. Apesar do caráter excepcional da ENFF, de sua peculiar posição libertária dentro de uma sociedade
violentamente desigual, apesar mesmo de sua constante tentativa de combater o trabalho alienado, ainda assim há
barreiras à plena implementação de uma situação de trabalho livre (e portanto de manifestação de uma arte popular,
alegre e resultado do diálogo). Trata-se, no entanto, de uma excepcional experiência que aponta os caminhos para
alcançar este objetivo.
Entendemos portanto que o trabalho livre seja ao mesmo tempo um princípio do trabalho, o seu objetivo último,
assim como uma diretriz metodológica, apesar de toda a contradição que esta assertiva representa ao trabalho
científico tradicional.
Nosso objetivo não é uma sociedade sustentável. Objetivamos, ao contrário, uma sociedade justa, na qual o material
(no sentido que Ferro dá a ele) não seja objeto de exploração — e, justamente por isto, objetivamos portanto uma
sociedade “sustentável”. “Sustentável” pois ambos os componentes do material (a matéria e o trabalho, a matéria e o
ser humano) devem ser objeto de nosso respeito e de nossa consciência. Desta forma, enquanto trabalho de extensão
universitária, o projeto FAU-ENFF:Diálogos tem a potencialidade de se constituir em práxis transformadora
(sobretudo no contexto das faculdades de arquitetura, nas quais o debate sobre a sustentabilidade tem assumido um
viés claramente pró-mercado, portanto conservador).
Discutir a sustentabilidade de nossos espaços não significa aplicar a eles selos do tipo “LEED” ou implantar
mecanismos de uso racional de recursos utilizando-se de trabalho explorado. Discutir o que seja “sustentabilidade”
no campo da arquitetura significa antes de tudo refletir sobre a forma como esta é produzida. Os trabalhos de que
temos participado parecem produzir oportunidades para que esta discussão ocorra. Concluímos, portanto, lembrando
da necessidade de valorização destas iniciativas.
Enfim, se os fins são os meios pelos quais os atingimos, devemos lembrar, como ressaltado na introdução, que os
meios para atingir uma sociedade sustentável devem eles próprios serem sustentáveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANTES, Pedro. Arquitetura Nova. São Paulo: Editora 34, 2004.
FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac e Naify, 2006.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
PIZETTA, Ana Justo. A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes: um processo de
formação efetivo e emancipatório. Juiz de Fora: UFJF, 2005 (mimeo)
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos aqueles que participaram da construção da ENFF, da “casa do teto verde” e aos que
colaboraram na formalização do Coletivo na FAUUSP.
Agradecemos aos órgãos que contribuíram com o desenvolvimento do trabalho: ao Fundo de Cultura e Extensão da
Universidade de São Paulo; à Fundação para Pesquisa em Arquitetura e Ambiente (FUPAM); à Diretoria da
FAUUSP e à sua Comissão de Cultura e Extensão Universitária e ao Laboratório de Culturas Construtivas (LCC).
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