Tolerância zero, o remédio para o trote.

Transcrição

Tolerância zero, o remédio para o trote.
Laboratório de Leitura
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Tolerância zero, o remédio para o trote.
A morte de um estudante em São Paulo revela o nível de barbárie a que se chegou.
Edison Tsung Chi Hsueh, um brasileirinho filho de imigrantes, poderia ter se convertido num
símbolo das oportunidades que, apesar de tudo, o Brasil oferece. De família pobre, desimportante,
chegada há menos de três décadas ao país, filiada a uma colônia (a chinesa) mais do que minoritária e
uma religião (budista) idem, e ainda por cima tímido e desenturmado, mesmo assim conseguiu entrar na
Faculdade de Medicina da USP, uma das melhores do Brasil. Em vez disso, virou símbolo da barbárie
brasileira. O brasileirinho Edison, de 22 anos, não passou do primeiro dia de aula. Morreu de trote.
O caso tem sido noticiado na imprensa. No dia 22 de fevereiro, primeiro dia de aula, houve, como
é costume na faculdade, trote e churrasco à beira da piscina do centro acadêmico. Mais de 200
estudantes compareceram, entre veteranos e calouros. No dia seguinte, quando um funcionário foi limpar
a piscina, toda manchada da tinta com que tinham sido pintados os calouros, descobriu um corpo no
fundo. Edison, que não sabia nadar, não sobrevivera à festa. Era seu, o corpo lá no fundo. Afogamento,
diz o laudo do Instituto Médico Legal. Como? Por quê? Homicídio ou acidente? Mistério. Mudez. Entre os
200 estudantes presentes, ninguém sabia de nada, ninguém viu. Ou, se soube e viu, não se dispôs a
revelá-lo.
O caso é intrigante a mais de um título, um dos quais a hipótese, apavorante, de um pacto de
silêncio, versão tupiniquim e estudantil da omertà mafiosa. Na semana passada a promotora Eliana
Passarelli, com base no laudo do IML, disse ter concluído que houve homicídio e ameaçou indiciar pelo
crime a totalidade dos presentes. O diretor da faculdade, Irineu Velasco, veio por sua vez a campo para
afirmar que o laudo não conduzia, necessariamente, à tese de homicídio. A meio caminho entre uma
promotora talvez apressada na condenação e um diretor talvez apressado na absolvição, extraem-se
duas premissas e uma conclusão. Primeira premissa: ninguém, não sabendo nadar, e não possuído por
alguma urgência suicida, se joga numa piscina. Segunda: custa imaginar um acidente que passe
despercebido num ambiente onde se encontram 200 pessoas. Donde se conclui, estando afastadas, pelo
laudo, as hipóteses de colapso cardíaco, consumo de drogas ou bebedeira, que, seja por ação, seja por
omissão, seja pelo clima geral de prepotência e intimidação, típico dos encontros entre veteranos e
calouros, o brasileirinho Edison, como se afirmou no primeiro parágrafo, morreu de trote.
O que nos leva a outra conclusão – a de que chega de trote. Já cansou. Acumularam-se
escândalos demais. Torturas contra calouros, à moda do regime militar (Cruz das Almas, BA, 1991).
Estudante morto a tesouradas (Osasco, SP, 1991). Queimaduras por nitrato de prata (Campinas, SP,
1994). Espancamentos, humilhações para todos os gostos. No ano passado, em Sorocaba (SP), dois
estudantes de medicina e um médico já formado (que há com as faculdades de medicina?) puseram fogo
num estudante mais jovem que dormia, causando-lhe ferimentos atrozes. Diante de tal panorama, alguns
clamam contra o "trote violento". É um equívoco. Como definir onde termina a brincadeira e começa a
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violência? A proibição tem de ser geral e irrestrita. Contra o trote, e ponto. Tolerância zero – este é o
remédio.
Mesmo porque "trote violento" é redundância. Todo trote é violento. É uma violência cortar o
cabelo, ou pintar o corpo, de quem não quer. Mesmo para quem quer, é violência. Pois, embora talvez
não tenha consciência disso, está se submetendo a um jogo de dominação que reforça um dos piores
traços da sociedade brasileira. Esta é a sociedade, não nos esqueçamos, do "sabe-com-quem-estáfalando?". A sociedade do "sou superior porque sou rico e você é pobre", "porque sou branco e você é
preto", "porque moro no centro e você no subúrbio", "porque ando de carro e você é pedestre". Em suma,
a sociedade da prepotência como prática contumaz de um grupo sobre outro. No trote, joga-se o jogo do
"sou superior porque sou veterano e você calouro". Com isso, reforçam-se os maus instintos numa
sociedade já de si antidemocrática e antiigualitária. E faz-se isso logo com a juventude.
Os estudantes universitários costumam alardear ideais democráticos e são loucos por uma
passeata contra o poder. Quem pratica o trote não tem moral para isso. As faculdades deviam proibir o
trote em qualquer de seus graus e versões. Não fazê-lo é abrir mão da função de educadoras, anterior à
de transmissoras de conhecimento. Penas duras deviam ser previstas para os transgressores. Processos
contra as faculdades que não o fizerem, e onde venham a ocorrer trotes, devem ser incentivados. Caso
algo se mova nessa direção, em conseqüência do episódio do brasileirinho de olhos puxados que se
chamou Edison Tsung Chi Hsueh.... bem, claro que isso é pobre consolo, agora que está tudo perdido
para ele, mas vá lá o lugar-comum: caso isso ocorra, seu sacrifício terá servido para alguma coisa.
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Séculos de violência no campus
Um filósofo gaúcho estudou a história do trote universitário, as suas consequências e hoje é um
crítico mordaz do ritual
Paulo Denisar Fraga escapou do trote quando entrou no curso de Filosofia da Universidade
Federal de Santa Maria, em 1988. Veterano, mergulhou no assunto. Em 1993, escreveu A Violência
no Escárnio do Trote Tradicional, uma pesquisa alentada sobre o tema da humilhação dos calouros.
Época: Por que o senhor é contra o trote?
Paulo Denisar Fraga: Eu sou contra a violência. Os rituais têm o papel de preservar a cultura
existente nas sociedades, mas o trote é o avesso disso. Ele não conserva a cultura, a ciência e a
razão, as bases da universidade. Também perverte o sentido da alegria. O trote inicia na
barbarização e contraria a essência da relação pedagógica, que é educar os novatos. Eles são
execrados, sofrem o escárnio e o deboche.
Época: Quando surgiu o trote?
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Fraga: Talvez na Antiguidade, mas na Idade Média teve seu momento de glória. Os estudantes que
vinham da área rural eram batizados pelos do mundo urbano. O primeiro caso violento registrado no
Brasil é de 1831. O calouro de Direito Francisco Cunha e Menezes foi morto a facadas no Recife.
Em Portugal, sempre foi uma tradição. O grupo Rancho da Carqueja ficou famoso no século 18, na
Universidade de Coimbra. Depois se transformou num bando de criminosos. O trote é um batismo de
fogo.
Época: Por que ele sobrevive?
Fraga: Porque é a expressão e o reforço da estratificação social. Como nós vivemos num mundo em
que o trabalho intelectual vale muito mais que o manual, mesmo um calouro vestido de palhaço pode
exibir na praça seu novo status. Um universitário é supostamente superior ao cidadão que não teve
essa oportunidade. O trote sobrevive porque os calouros aceitam e repetem as idéias dos
veteranos.
Época: Qual é a relação entre o tipo de curso e a violência?
Fraga: Os trotes mais violentos ocorrem nos cursos que têm mais status na universidade. O tributo é
mais alto para entrar nesses feudos.
Época: Ele sempre foi agressivo?
Fraga: A violência é ocultada pelo peso da tradição. No nosso país, nos anos 60, com o movimento
estudantil, o trote foi uma forma de contestação social. Os calouros eram convidados para
manifestações a favor das reformas de base ou em defesa da universidade pública. Em 1968,
quando o AI-5 fechou o Congresso, o trote foi reprimido. Houve a degeneração de sua versão
cultural para a violência de hoje.
Época: Qual a semelhança entre o trote e a iniciação nos quartéis?
Fraga: Pode-se supor que a vida universitária é diferente da dos quartéis. Quando os soldados ficam
em forma e gritam palavras de ordem, estão desenvolvendo sua agressividade. No trote, a
universidade fica próxima dessa experiência. Os veteranos também colocam os calouros em filas e
gritam ordens, sustentando sua superioridade.
Época: Por que os diretores das universidades fazem vistas grossas ao trote?
Fraga: Porque ele está escorado num lastro de tradição histórica. As autoridades se colocam acima
do problema. Tem havido uma extraordinária dificuldade de saber o que aconteceu no caso do
Edison Hsueh, calouro morto no trote da Faculdade de Medicina da USP. O temor de falar da morte
de um colega, de um igual, mostra o quanto o trote é violento. Ele se sustenta na ameaça e promove
o terror.
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Referências:
http://epoca.globo.com/edic/19990510/soci2.htm
http://oglobo.globo.com/cidades/sp/mat/2010/02/02/alunas-dizem-policia-que-foram-obrigadas-tirar-calcinhadurante-trote-em-fernandopolis-em-sp-915765841.asp
http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI4242664-EI5030,00Mais+alunas+afirmam+ter+bebido+combustivel+em+trote+em+SP.html
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL14738975605,00CALOURO+E+AGREDIDO+E+VAI+PARAR+NO+HOSPITAL+NO+DIA+DE+AULA+NA+ESPM+EM+SP.htm
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