l`o sse rvator e romano - Paróquia Nossa Senhora da Conceição
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y(7HB5G3*QLTKKS( +.!"!.!?![! Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL EM PORTUGUÊS Unicuique suum Non praevalebunt Cidade do Vaticano Ano XLVII, número 24 (2.418) quinta-feira 16 de junho de 2016 Ao Programa alimentar mundial o Papa recordou que a falta de alimentos deriva da distribuição iníqua dos recursos Não se acostumar com a fome E convidou a remover os obstáculos que impedem as ajudas e os planos de desenvolvimento A falta de alimentos não é «fruto de um destino cego», mas de uma «distribuição egoísta e mal feita dos recursos», recordou o Papa durante a visita à sede do Programa alimentar mundial (Pam), onde foi na manhã de segunda-feira, 13 de junho, por ocasião da abertura da sessão anual do conselho executivo da agência da Onu comprometida na luta contra a fome. No discurso pronunciado em frente dos representantes de diversos governos do mundo, Francisco convidou com força a não se acostumar com as tragédias que atingem a humanidade e a não considerar a pobreza «como um dado da realidade entre tantos», esquecendo, ao contrário, que «a miséria tem um rosto: tem o rosto de uma criança, o rosto de uma família, o rosto de jovens e idosos», mas também «o rosto da falta de oportunidade e de trabalho de muitas pessoas», o rosto «das migrações forçadas, das casas abandonadas e destruídas». O Pontífice voltou a afirmar com clareza que a subnutrição «não é algo natural, não é um dado óbvio nem evidente». Pelo contrário, é a consequência de uma «mercantiliza- ção dos alimentos» que causa exclusão e leva a «habituar-se ao supérfluo e ao desperdício quotidiano de alimentos». Todavia «far-nos-á bem recordar que o alimento que se desperdiça é como se o roubássemos à mesa do pobre, daquele que tem fome». Um convite a «refletir sobre o problema da perda e do desperdício de alimentos, a fim de identificar soluções e modalidades que, enfren- E 11 Pastoral da escuta A discriminação das pessoas com deficiência mental é algo muito feio, sobretudo quando acontece numa paróquia. Ajudado pelos leigos, o sacerdote deve ao contrário acolher e ouvir todos — sem desculpas — ajudando cada um a compreender a fé, o amor e a aproximar-se dos sacramentos para que todos possam conhecer Deus, afirmou o Papa Francisco dialogando com um A Igreja rejuvenesce PÁGINA 3 PÁGINAS 10 No congresso da Cei sobre os deficientes o Pontífice recomendou o acolhimento Carta da Congregação para a doutrina da fé É errado contrapor uma «Igreja da caridade» a uma «Igreja da instituição», porque os «dons carismáticos» e «os dons hierárquicos» provêm do mesmo Espírito e são «dados a fim de contribuir, de maneiras diversas, para a edificação da Igreja» — lê-se na carta da Congregação para a doutrina da fé Iuvenescit ecclesia, apresentada na manhã de 14 de junho, na Sala de imprensa da Santa Sé. tando seriamente este problema, sejam veículo de solidariedade e de partilha com os mais necessitados». Do Papa veio também um firme apelo a «desburocratizar a fome», removendo os obstáculos que impedem que os planos de desenvolvimento e as iniciativas humanitárias realizem os seus objetivos. O Pontífice denunciou em particular o «estranho e paradoxal fenómeno» devi- do ao qual as ajudas às vítimas da guerra e da fome são estorvadas ao passo que as armas «circulam com uma arrogância e quase absoluta liberdade em muitas partes do mundo». Deste modo, afirmou, «quem se nutre são as guerras e não as pessoas». E assim «as vítimas multiplicam-se, porque o número das pessoas que morrem de fome e exaustas se acrescenta ao dos combatentes que morrem no campo de batalha e ao dos numerosos civis falecidos durante os conflitos e nos atentados». Daqui o pedido dirigido aos Estados, solicitados a incrementar «decididamente a vontade efetiva de cooperar com o Programa alimentar mundial» para poder assim permitir «que se realizem projetos sólidos e consistentes e programas de desenvolvimento a longo prazo» a fim de debelar aquela que Francisco — no sucessivo encontro com o pessoal da agência — definiu «uma das maiores ameaças à paz e à serena convivência humana». grupo de deficientes que na manhã de sábado, 11 de junho, na sala Paulo VI, participaram no congresso promovido pela Cei. Posto de lado o texto do discurso preparado e respondendo de forma improvisada às perguntas, Francisco convidou as comunidades cristãs a praticar «a pastoral do ouvido», fazendo com que seja garantida uma preparação adequada para os sacramentos com uma linguagem compreensível a cada pessoa, para que todos tenham a mesma possibilidade de receber os sacramentos. E recordou que Pio X deu indicações para distribuir a comunhão às crianças, transformando assim a diversidade em igualdade, porque sabia que a crianças compreendem, talvez de outro modo: com efeito, cada um, afirmou o Papa, tem uma forma diferente de conhecer as coisas, mas todos podem conhecer Deus. Por esta razão, acrescentou, um pároco não pode rejeitar um deficiente dizendo que não entende. Todos somos diferentes, realçou ainda, contudo muitas vezes temos medo das diversidades porque são sempre um desafio. Na realidade, seria mais fácil ignorar as diversida- des e desenrascar-se dizendo hipocritamente «somos todos iguais», deixando de lado quem não é. Ao contrário as diversidades são uma riqueza, um desafio que não deve assustar. O segredo é reunir o que temos. Para expressar esta atitude, o gesto mais bonito e profundo é precisamente o aperto de mão, que está a indicar uma troca recíproca de dons. PÁGINA 5 A dignidade da vocação médica Mais coração nas mãos PÁGINA 7 Santa Maria Madalena Primeira testemunha da ressurreição PÁGINA 9 L’OSSERVATORE ROMANO página 2 quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 Apresentação da Iuvenescit ecclesia na Sala de imprensa da Santa Sé Como águia GERHARD MÜLLER m antigo mito — do qual encontramos um eco nos salmos (103, 5) e em santo Ambrósio (Hexameron, V, 18) — descreve a capacidade que as águias têm de se renovar, de rejuvenescer e assim de viver mais prolongadamente, desafiando o desgaste do tempo. O salmo 103 diz expressamente que, quando segue Deus, o homem «renova como a sua juventude a águia». Ao contrário, santo Ambrósio identifica esta ave majestosa — que seria capaz de se regenerar sozinha — com Jesus Cristo, «que renova a sua juventude ressuscitando da morte». Com efeito, diante da constatação de que tudo está destinado irremediavelmente a envelhecer e acabar, o homem procurou desde sempre algo ou alguém que o pudesse ajudar a permanecer jovem. É precisamente este o desafio que devem enfrentar todas as instituições que desejam perdurar na história: ser jovens com o passar do tempo, ou seja, renovarse, permanecendo elas mesmas, sem mudar a sua identidade nem se adulterar. Exatamente esta capacidade de desafiar o desgaste do tempo e a morte pertence à fascinação originária com que o Evangelho, desde os primórdios, soube atrair milhares de homens. A este propósito, um célebre padre da Igreja, Irineu de Lião, convida-nos a preservar com esmero «a fé que recebemos da Igreja» porque, se ela for conservada íntegra, «sob a ação do Espírito de Deus, como um depósito de grande valor fechado num vaso precioso, rejuvenesce continuamente e faz rejuvenescer até o recipiente que a contém» (Adversus Haereses, 3, 24, 1). A este respeito, também o Evangelho se refere ao «vinho novo» que deve ser conservado em «odres novos» (cf. Mc 2, 22). A fé cristã — quando é realmente acolhida e conservada — graças à ação do Espírito Santo, tem esta capacidade singular de trazer a novidade humana e de fazer rejuvenescer. Inclusive o Santo Padre Francisco já nos recordou muitas vezes que «a novidade do Evangelho é algo novo na própria lei, ínsita na história da salvação. E trata-se de uma novidade que vai além das nossas pessoas e renova as estruturas» (Homilia na Capela da Domus Sanctae Marthae, 6 de julho de 2013). É esta a perspetiva adequada para compreender a carta aos bispos da Igreja católica Iuvenescit ecclesia (Ie), sobre a relação entre dons hierárquicos e carismáticos, que constitutivamente são postos ao serviço da vida e da missão eclesial. U O próprio título, que retoma o íncipit do documento, fala-nos desta capacidade que o Espírito Santo tem de levar a rejuvenescer a Igreja e, juntamente com ela, todas as pessoas, as relações e os lugares que decidem aceitá-lo. Foi o Concílio Vaticano II que nos voltou a propor esta bonita verdade: «O Espírito conduz a Igreja à verda- O símbolo da águia miniaturizado no «Book of Kells» (séc. IX) de total (cf. Jo 16, 13), unifica-a na comunhão e no ministério, enriquece-a e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos, adornandoa com os seus frutos (cf. Ef 4, 11-12; 1 Cor 12, 4; Gl 5, 22). Pela força do Evangelho Ele rejuvenesce a Igreja e renova-a continuamente, levando-a à união perfeita com o seu Esposo» (Lumen gentium, 4). O nascimento de tantas agremiações, associações e movimentos ecle- L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt GIOVANNI MARIA VIAN diretor Giuseppe Fiorentino vice-diretor Cidade do Vaticano [email protected] www.osservatoreromano.va siais, assim como de tantos institutos de vida consagrada, depois do Concílio Vaticano II, levou-nos a redescobrir concretamente o alcance eclesial desta afirmação conciliar. Em particular, pudemos constatar que «a forte capacidade agregativa de tais realidades representa um testemunho significativo de que a Igreja não cresce por proselitismo mas por atra- Redação via del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano telefone +390669899420 fax +390669883675 ção» (Ie, 2). Pois bem, para todas estas agregações eclesiais já chegou o tempo da «maturidade eclesial» (Ie, 2). A tal propósito é preciso dizer que, se «nunca faltou a manifestação de diferentes carismas ao longo da secular história eclesial» (Ie, 9), durante o período pós-conciliar assistimos a um florescimento inesperado e impetuoso de muitas destas realidades, favorecendo também o difun- TIPO GRAFIA VATICANA EDITRICE L’OSSERVATORE ROMANO don Sergio Pellini S.D.B. diretor-geral dir-se de uma reflexão sobre os carismas, como nunca se tinha visto antes na história da Igreja. Com efeito o texto atual, que já alcançou a sua fisionomia definitiva depois de muitos anos de reelaboração — o estudo começou no ano 2000 — tenciona inserir-se no âmbito desta consideração dos carismas, como momento importante que traça algumas linhas fundamentais para relançar de modo correto e adequado a sua reflexão. Em particular, pareceu necessário oferecer aos pastores e aos fiéis uma consideração certa e encorajadora da relação entre estes dons, que estimulou a vida da Igreja, de modo especial com o nascimento, no passado recente, de novos «movimentos» e de novas comunidades eclesiais. Como se evoca de maneira explícita na introdução, esta carta tenciona relevar «os elementos teológicos e eclesiológicos que podem favorecer uma participação ordenada das novas agregações na comunhão eclesial, para o pleno compromisso missionário da Igreja inteira». A finalidade do presente documento consiste em favorecer — através de uma aprofundada consciência acerca dos elementos essenciais relativos aos dons hierárquicos e carismáticos, e para além de oposições ou justaposições estéreis — uma sua ordenada comunhão, relação e sinergia, em vista de um renovado impulso missionário eclesial e daquela «conversão pastoral» à qual o Papa Francisco nos exorta continuamente (cf. Evangelii gaudium, 25). Neste sentido, o texto concentra a sua atenção nas principais problemáticas teológicas, sem a pretensão de abordar demasiado as numerosas questões pastorais e práticas que muitas vezes surgiram. Ele gostaria de apresentar uma visão de conjunto, oferecendo ao mesmo tempo critérios básicos para enfrentar as mencionadas questões e, em particular, para favorecer um «discernimento das novas agregações eclesiais» em vista do seu «reconhecimento eclesial» (Ie, 17). O quadro inspirador direto do projeto em exame — como dissemos mais acima — é o trecho conciliar de Lumen gentium (n. 4), onde se se afirma que o Espírito, que vive no corpo eclesial e no coração dos fiéis comum num templo, introduz a Igreja na plenitude da verdade, unificando-a na comunhão e no ministério, enriquecendo-a e guiando-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos, adornando-a com os seus frutos, de tal forma que a própria Igreja se configure como «um povo que deriva a sua unidade da união do Pai e do Filho e do Espírito SanCONTINUA NA PÁGINA 3 Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África, Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: 162.00 - U.S. $ 240.00. 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A publicação do documento — a 15 de maio, solenidade de Pentecostes — foi determinada pelo Papa Francisco no dia 14 de março na audiência concedida ao cardeal prefeito Ludwig Müller, que assinou o texto juntamente com o arcebispo secretário Luís Francisco Ladaria Ferrer. A carta é dirigida aos bispos e analisa «a relação entre dons hierárquicos e carismáticos para a vida e a missão da Igreja». Os primeiros são os conferidos pelo sacramento da ordenação (episcopal, sacerdotal, diaconal), e os segundos são distribuídos livremente pelo Espírito Santo. Em particular, o texto aprofunda as questões teológicas que derivam da relação entre instituição eclesial e novos movimentos e agregações, insistindo sobre a harmoniosa conexão e acerca da complementariedade dos dois sujeitos, sempre no âmbito de uma «participação fecunda e ordenada» dos carismas à comunhão da Igreja. Portanto, não se trata de «dons que autorizam a evitar a obediência à hierarquia eclesial» nem «conferem o direito a um ministério autónomo». Por conseguinte, «dons de importância irrenunciável para a vida e a missão eclesial», os carismas autênticos devem visar «a abertura missionária, a necessária obediência aos pastores e à imanência eclesial». Por isso, uma sua «contraposição ou justaposição» com os dons hierárquicos seria um erro. Com efeito, não é preciso opor uma Igreja «da instituição» a uma Igreja «da caridade», porque na Igreja «até as instituições essenciais são carismáticas», e «os carismas devem institucionalizar-se para ter coerência e continuidade». Deste modo, ambas as dimensões «concordam juntas a tornar presente o mistério e a obra salvífica de Cristo no mundo». Portanto, as novas realidades devem alcançar a «maturidade eclesial» que inclui a sua plena valorização e inserção na vida da Igreja, sempre em comunhão com os pastores e em atitude de constante atenção às suas indicações. De facto, a existência de novas realidades — frisa a carta — enche o coração da Igreja de «alegria e gratidão», mas chama- as também a «relacionar-se positivamente com todos os outros dons presentes na vida eclesial», a fim de que sejam «promovidos com generosidade e acompanhados com vigilante paternidade» pelos pastores para «concorrer ao bem da Igreja e à sua missão evangelizadora». De resto, «a dimensão carismática nunca pode faltar à vida e à missão da Igreja». Mas como reconhecer um documento carismático autêntico? O documento evoca o discernimento, tarefa que é de «pertinência da autoridade eclesiástica», e indica alguns dos seus critérios específicos: ser instrumento de santidade na Igreja; comprometer-se na difusão missionária do Evangelho; confessar plenamente a fé católica; testemunhar uma comunhão praticável com toda a Igreja, acolhendo com leal dispo- Intervenção do cardeal Müller CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 2 to», segundo a célebre expressão de Cipriano de Cartago (cf. De oratione dominica, 23). Um dos pontos fulcrais deste documento é, sem dúvida, a afirmação da coessencialidade entre os dons hierárquicos e carismáticos, uma coessencialidade que pertence à «constituição divina da Igreja fundada por Jesus» (Ie, 10). Além disso, «na Igreja até as instituições essenciais são carismáticas e, de resto, os carismas devem de certo modo institucionalizar-se para ter coerência e continuidade. Assim ambas as dimensões, derivadas do mesmo Espírito Santo pelo próprio Corpo de Cristo, concorrem juntas para tornar presentes o mistério e a obra salvífica de Cristo no mundo» (Ie, 10). Tal coessencialidade encontra a sua raiz última na relação inseparável entre o logos divino encarnado e o Espírito Santo (cf. Ie, 11), testemunhando que, na mesma perspetiva revelada pelos planos de Deus, não é lícito opor uma «Igreja do Espírito» a uma «Igreja da instituição», porque os dons hierárquicos e carismáticos estão sempre inseridos uns nos outros, e sempre relacionados reciprocamente, embora de modo hierárquico. Isto não impede que, por causa da natural fragilidade humana — e das inevitáveis infidelidades aos planos de Deus que dela derivam — efetivamente a na- tural tensão dialógica entre estes dons se tenha muitas vezes transformado, e possa sempre transformar-se, em dialética. Contudo, na quinta parte do texto fala-se também da prática eclesial da relação entre dons hierárquicos e carismáticos. Aqui, depois de ter evocado a necessidade de uma inserção concreta das realidades carismáticas na vida pastoral de cada Igreja, releva-se a prática da «boa relação entre os vários dons na Igreja» (Ie, 20), antes de tudo na sua posição no contexto das relações entre Igreja universal e Igrejas particulares, valorizando o princípio peculiar de unidade eclesial que é o ministério petrino. Além disso, a este propósito não podemos deixar de relevar que, no fecundo período eclesial que se seguiu ao Concílio Vaticano II, de modo concreto foi precisamente o sucessor de Pedro que favoreceu a comunicação e a comunhão entre dons hierárquicos e carismáticos a nível da Igreja universal, valorizando a propagação missionária dos movimentos e das novas comunidades eclesiais no âmbito das diversas Igrejas particulares, de maneira especial naquelas que necessitavam de uma nova evangelização. Esta constatação poderia iluminar-nos profeticamente, também no que se refere à perspetiva e às modalidades de atuação — das periferias rumo ao centro, e vice-versa — da tão almejada renovação sinodal, para a qual o Papa Francisco nos convida continuamente. O que já se experimentou a tal propósito constitui uma riqueza de património eclesial que pode oferecer orientações seguras e úteis neste sentido. Gostaria de encerrar esta minha breve intervenção, referindo-me a um dos trechos conclusivos do Evangelho de Marcos (cf. 16, 5 ss.). O evangelista observa que no primeiro dia depois do sábado, um jovem vestido de branco, presente diante do túmulo vazio de Jesus, convida as mulheres piedosas a não ter medo e a transmitir aos discípulos o bom anúncio que «o Crucificado ressuscitou!». Neste semblante de jovem, aprazme vislumbrar a face mais autêntica da Igreja, capaz de se renovar e de se rejuvenescer sempre, até no meio das provações e das intempéries da história, para anunciar a todos os homens a boa nova — Jesus ressuscitou! — convidando-os assim a não ter medo, porque Ele é mais forte do que o mal e a morte. Este é o testemunho que, através da sua comunhão concreta, são chamados a oferecer hoje, para a vida da Igreja e para o bem do mundo, os dons hierárquicos e carismáticos. Este é o testemunho que, com humildade e coragem, gostaríamos de oferecer, pobres como somos, também todos nós. nibilidade os seus ensinamentos doutrinais e pastorais; reconhecer e estimar os demais componentes carismáticos na Igreja; aceitar com humildade os momentos de provação no discernimento; obter frutos espirituais como caridade, alegria, paz, humanidade; observar a dimensão social da evangelização, cientes do facto que «a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade não pode faltar numa autêntica realidade eclesial». Além disso, a carta especifica outros dois critérios fundamentais a considerar pelo reconhecimento jurídico das novas realidades eclesiais, segundo as formas estabelecidas pelo Código de direito canónico. O primeiro é «o respeito pela peculiaridade carismática de cada agregação eclesial», de modo a evitar «coerções jurídicas» que «mortifiquem a sua novidade». O segundo concerne «o respeito do regimen eclesial fundamental», favorecendo «a inserção praticável dos dons carismáticos na vida da Igreja», mas evitando que eles se concebam como uma realidade paralela, sem uma referência ordenada aos dons hierárquicos. O documento da Congregação para a doutrina da fé evidencia também como a relação entre dons hierárquicos e carismáticos deve considerar «imprescindível e constitutiva a relação entre Igreja universal e Igrejas particulares». Isto significa que os carismas são concedidos a toda a Igreja, mas que a sua dinâmica «só pode realizar-se no serviço a uma concreta diocese». Não só: eles representam inclusive «uma possibilidade autêntica» para viver e desenvolver a vocação cristã de cada um, quer no matrimónio, no celibato sacerdotal ou no ministério ordenado. Também a vida consagrada «colocase na dimensão carismática da Igreja», pois a sua espiritualidade pode tornar-se «um recurso significativo» tanto para o fiel leigo como para o sacerdote, ajudando ambos a viver uma vocação específica. Na conclusão a carta exorta a olhar para Maria, «mãe da Igreja», modelo de «plena docilidade à ação do Espírito Santo» e de «límpida humildade»: com a sua intercessão, formulam-se votos de que «os carismas abundantemente distribuídos pelo Espírito Santo entre os fiéis sejam docilmente acolhidos por eles e produzam frutos para a vida e a missão da Igreja e para o bem do mundo». L’OSSERVATORE ROMANO página 4 As respostas de Francisco às perguntas no encontro na sala Paulo quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 VI Riqueza da diversidade Apresentamos a seguir a nossa tradução das respostas do Santo Padre às três perguntas que lhe foram feitas, na manhã de sábado, 11 de junho, na Sala Paulo VI, durante o encontro com os participantes no congresso para as pessoas deficientes. A primeira pergunta era muito, muito profunda. E falava das diversidades. Todos somos diversos: não há uma pessoa que seja igual a outra. Há algumas diversidades maiores ou mais pequenas, mas todos somos diversos. E ela, a jovem que fez a pergunta, dizia: «Muitas vezes temos medo das diversidades». Assustamnos. Porquê? Porque ir ao encontro de uma pessoa que tem uma diversidade não digamos forte, mas grande, é um desafio, e qualquer desafio assusta. É mais cómodo não se mo- ver, é mais cómodo ignorar as diversidades e dizer: «Somos todos iguais, e se há alguém que não é tão “igual”, deixemo-lo de lado, não vamos ao seu encontro». É o medo que cada desafio nos causa; cada desafio nos amedronta, causa-nos medo, torna-nos um pouco receosos. Mas não! As diversidades são precisamente a riqueza, porque eu tenho uma coisa, tu tens outra, e com estas duas fazemos uma coisa melhor, maior. E assim podemos ir em frente. Pensemos num mundo no qual todos são iguais: seria um mundo tedioso! É verdade que algumas diversidades são dolorosas, todos o sabemos, aquelas que têm raízes nalgumas doenças... mas também as diversidades nos ajudam, nos desafiam e nos enriquecem. Por isso, nunca se deve ter medo das diversidades: esse é precisamente o caminho para melhorar, para sermos melhores e mais ricos. E como se faz isto? Pondo em comum o que temos. Pôr em comum. Há um gesto lindíssimo que nós, pessoas humanas temos, um gesto que fazemos quase sem refletir, mas muito profundo: apertar a mão. Quando eu aperto a mão, ponho em comum contigo aquilo que tenho — se for um aperto de mão sincero — dou-te a mão, dou-te aquilo que é meu e tu dás-me o que é teu. E isto faz muito bem a todos. E pensemos que todas as vezes que eu aperto a mão a outro, dou algo de meu e recebo algo dele. Também isto nos faz crescer. Isto é o que que me vem como resposta à primeira pergunta. Esqueci alguma coisa da primeira pergunta, mas respondo agora com No congresso promovido pela Cei o Papa recordou que a exclusão empobrece a comunidade Tesouros escondidos «Na debilidade e na fragilidade escondem-se tesouros capazes de renovar as nossas comunidades cristãs». Frisou o Papa Francisco no discurso preparado e entregue aos participantes no congresso para as pessoas deficientes promovido pela Conferência episcopal italiana, recebidos em audiência na manhã de sábado 11 de junho, na sala Paulo VI. Amados irmãos e irmãs! Recebo-vos por ocasião do vigésimo quinto aniversário da instituição do Setor para a Catequese das pessoas deficientes da Secção Catecismo Nacional Italiano. Uma ocasião que estimula a renovar o compromisso para que as pessoas deficientes sejam plenamente acolhidas nas paróquias, nas associações e nos movimentos eclesiais. Agradeço-vos as perguntas que me dirigistes e que mostram a vossa paixão por este âmbito da pastoral. Ele requer uma dupla atenção: a consciência da educabilidade para a fé da pessoa com deficiência, até grave e gravíssima; e a vontade de a considerar um sujeito ativo na comunidade em que vive. Estes irmãos e irmãs — como demonstra também este Congresso — não estão apenas em condições de viver uma experiência genuína de encontro com Cristo, mas são também capazes de a testemunhar aos outros. Muito foi feito no cuidado pastoral dos deficientes; é preciso ir em frente, por exemplo reconhecendo melhor a sua capacidade apostólica e missionária, e antes ainda o valor da sua «presença» como pessoas, como membros vivos do Corpo eclesial. Na debilidade e na fragilidade escondem-se tesouros capazes de renovar as nossas comunidades cristãs. Na Igreja, graças a Deus, registra-se uma atenção difundida à deficiência nas suas formas física, mental e sensorial, e uma atitude de acolhimento geral. Contudo as nossas comunidades ainda têm dificuldade de praticar uma verdadeira inclusão, uma participação plena que se torne finalmente habitual, normal. E isto exige não só técnicas e programas específicos, mas antes de tudo reconhecimento e acolhimento dos rostos, certeza tenaz e paciente de que cada pessoa é única e irrepetível, e cada rosto excluído é um empobrecimento da comunidade. Também neste campo é decisivo o envolvimento das famílias, as quais pedem não só para serem acolhidas, mas estimuladas e encorajadas. As nossas comunidades cristãs sejam «casas» nas quais qualquer sofrimento encontre compaixão, onde cada família com a sua carga de dor e canseira se possa sentir compreendida e respeitada na sua dignidade. Como observei na Exortação apostólica Amoris laetitia, «a atenção prestada tanto aos migrantes como às pessoas com deficiência é um sinal do Espírito. Pois ambas as situações são paradigmáticas: põem especialmente em questão o modo como se vive, hoje, a lógica do acolhimento misericordioso e da integração das pessoas frágeis» (n. 47). No caminho de inclusão das pessoas deficientes ocupa naturalmente um lugar decisivo a sua admissão aos Sacramentos. Se reconhecermos a peculiaridade e a beleza da experiência que fazem de Cristo e da Igreja, devemos por conseguinte afirmar com clareza que elas estão chamadas à plenitude da vida sacramental, até na presença de graves disfunções psíquicas. É triste constatar que nalguns casos permanecem dúvidas, resistências e até rejeições. Muitas vezes se justifica a rejeição dizendo: «mas ele não entende», ou então: «não precisa». Na realidade, com esta atitude, mostra-se que não se compreendeu deveras o sentido dos Sacramentos, e de facto negam-se às pessoas deficientes a prática da sua filiação divina e a participação plena na comunidade eclesial. O Sacramento é dom e a liturgia é vida: ainda antes de ser compreendida racionalmente, ela exige ser vivida na especificidade da experiência pessoal e eclesial. Neste sentido, a comunidade cristã está chamada a trabalhar para que cada batizado possa fazer a experiência de Cristo nos Sacramentos. Por conseguinte, seja preocupação viva da comunidade fazer com que as pessoas deficientes possam experimentar que Deus é nosso Pai e nos ama, que tem predileção pelos pobres e pequeninos através de gestos simples e diários de amor dos quais são destinatários. Como afirma o Diretório Geral para a Catequese: «O amor do Pai para com estes filhos mais frágeis e a presença contínua de Jesus com o seu Espírito nos dão a certeza confiante de que toda pessoa, por mais limitada que seja, é capaz de crescer em santidade» (n. 189). É importante prestar atenção também à colaboração e ao envolvimento das pessoas deficientes nas assembleias litúrgicas: estar na assembleia e dar o próprio contributo à ação litúrgica com o canto e com gestos significativos, contribui para apoiar o sentido de pertença de cada um. Trata-se de fazer crescer uma mentalidade e um estilo que evite preconceitos, exclusões e marginalizações, favorecendo uma fraternidade efetiva no respeito da diversidade apreciada como valor. Amados irmãos e irmãs, agradeço-vos quanto fizestes nestes vinte e cinco anos de trabalho ao serviço de comunidades cada vez mais acolhedoras e atentas aos homens. Ide em frente com perseverança e com a ajuda de Maria Santíssima nossa Mãe. Rezo por vós e abençoo-vos de coração; e também vós, por favor, rezai por mim. esta que me fez Serena. Serena põeme em dificuldade, porque se eu disser o que penso... Disse pouco, três/quatro linhas, mas disse-as com vigor! Serena falou de uma das coisas mais desagradáveis que existem entre nós: a discriminação. É uma coisa muito desagradável! «Tu não és como eu, tu vai para lá e eu para cá». «Mas, eu queria fazer a catequese...» — «Nesta paróquia não. Esta paróquia é para aqueles que são parecidos, não há diferenças...». Esta paróquia é boa ou não? [Sala: Não!]. O que deve fazer o pároco?... Converter-se? É verdade que se tu quiseres receber a comunhão, deves ter uma preparação; e se não compreenderes esta língua, por exemplo se fores surdo, deves ter a possibilidade naquela paróquia de te preparares com a linguagem dos surdos. Isto é importante! Se fores diverso, também tu tens a possibilidade de ser melhor, isto é verdade. A diversidade não diz que quem tem cinco sentidos que funcionam bem é melhor de quem — por exemplo — é surdo-mudo. Não! Isto não é verdade! Todos temos a mesma possibilidade de crescer, de ir em frente, de amar o Senhor, de fazer coisas boas, de compreender a doutrina cristã, e todos temos a mesma possibilidade de receber os sacramentos. Entendestes? Quando, há muitos anos — há cem ou mais — o Papa Pio X disse que se devia dar a comunhão às crianças, muitos se escandalizaram. «Mas aquela criança não compreende, é diversa, não entende bem...». «Dai a comunhão às crianças», disse o Papa, e transformou uma diversidade em igualdade, porque ele sabia que a criança compreende de outra forma. Quando entre nós há diversidades, compreende-se de outra maneira. Também na escola, no bairro, cada um tem a sua riqueza, é diverso, é como se falasse outra língua. É diverso, porque se expressa de maneira diferente. E este facto é uma riqueza. O que Serena disse acontece muitas vezes; acontece muitas vezes e é uma das coisas mais desagradáveis, mais feias das nossas cidades, da nossa vida: a discriminação. Até com palavras ofensivas. Não se pode ser discriminado. Cada um de nós tem um modo diferente de conhecer as coisas: um conhece de um modo, outro de outro, mas todos podemos conhecer Deus. [Uma menina aproxima-se do CONTINUA NA PÁGINA 6 número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 5 O Santo Padre denunciou a mentalidade social que marginaliza doentes e pessoas com deficiência Com o remédio do sorriso Pela primeira vez na praça de São Pedro a leitura do Evangelho foi também dramatizada por um grupo de pessoas com deficiências intelectivas a fim de permitir que o texto fosse compreendido sobretudo por quantos têm um déficit cognitivo. Aconteceu na manhã de domingo, 12 de junho, durante a missa celebrada pelo Papa Francisco por ocasião do jubileu dos doentes e das pessoas deficientes. O serviço litúrgico e as leituras tiveram como protagonistas precisamente as pessoas deficientes: entre os ministrantes estavam alguns jovens com a síndrome de Down e entre os diáconos havia um jovem alemão surdo. Além disso a primeira leitura foi proclamada, em espanhol, por um deficiente enquanto que a segunda, em inglês, foi lida em braile por uma jovem cega. Na praça de São Pedro expôs-se o quadro quinhentista de Nossa Senhora “salus infirmorum”, conservado na igreja de Campo Marzio em Roma, invocada como ajuda de todas as pessoas afligidas por doenças. Antes da celebração, foram apresentados alguns testemunhos num espaço de encontro e confronto denominado «Quando sou débil é que sou forte». Por fim, depois de a ter evocado na homilia, no final da missa o Papa Francisco praticou prolongadamente «a terapia do sorriso», saudando na praça os doentes e deficientes e quem os acompanhava. «Estou crucificado com Cristo; já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 19). O apóstolo Paulo usa palavras muito fortes para expressar o mistério da vida cristã: tudo se resume no dinamismo pascal de morte e ressurreição recebido no Batismo. De facto cada um, pela imersão na água, é como se tivesse morrido e fosse sepultado com Cristo (cf. Rm 6, 3-4), e quando reemerge dela, manifesta a vida nova no Espírito Santo. Esta condição de renascidos envolve a vida inteira, em todos os seus aspetos; também a doença, o sofrimento e a morte ficam inseridos em Cristo, encontrando n’Ele o seu sentido último. No dia de hoje, jornada jubilar dedicada a todos aqueles que carregam os sinais da doença e da deficiência, esta Palavra de vida tem uma ressonância especial na nossa assembleia. Na realidade todos nós, mais cedo ou mais tarde, somos chamados a encarar e, às vezes, a lutar contra as fragilidades e as doenças, nossas e alheias. E como são diferentes os rostos com que se apresentam estas experiências, tão típica e dramaticamente humanas! Mas sempre nos colocam, de forma mais aguda e premente, a questão do sentido da vida. Perante isso, no nosso íntimo, pode algumas vezes sobrevir uma atitude cínica, como se fosse possível resolver tudo suportando ou contando apenas com as próprias forças; outras vezes, pelo contrário, colocase toda a confiança nas descobertas da ciência, pensando que certamente Apelo no Angelus Luta contra a escravidão do trabalho infantil No final da missa na praça de São Pedro, na qual participaram mais de cinquenta mil pessoas, o Papa Francisco guiou a recitação do Angelus e pronunciou as seguintes palavras. Amados irmãos e irmãs! Ontem, em Vercelli, foi proclamado Beato o sacerdote Giacomo Abbondo, que viveu no século XVIII, apaixonado por Deus, culto, sempre disponível para os seus paroquianos. Unamo-nos à alegria e à ação de graças da Diocese de Vercelli. E também à de Monreale, onde hoje é beatificada a irmã Carolina Santocanale, fundadora das Irmãs Capuchinhas da Imaculada de Lourdes. Nascida numa família nobre de Palermo, abandonou os confortos e fez-se pobre entre os pobres. De Cristo, sobretudo na Eucaristia, hauriu a força para a sua maternidade espiritual e a sua ternura para com os mais débeis. No contexto do Jubileu dos doentes realizou-se nos dias passados em Roma um Congresso internacional dedicado aos cuidados das pessoas atingidas pelo mal de Hansen. Saúdo com gratidão os organizadores e os participantes e desejo uma frutuosa dedicação à luta contra esta doença. Celebra-se hoje o Dia mundial contra o trabalho infantil. Renovemos todos unidos o esforço para remover as causas desta escravidão moderna, que priva milhões de crianças de alguns direitos fundamentais e as expõe a graves perigos. Hoje há no mundo tantas crianças escravas! Saúdo com afeto todos os peregrinos que vieram da Itália e de vários países para este dia jubilar. Agradeço de modo especial a vós, que quisestes estar presentes na vossa condição de doença ou deficiência. Dirijo um sentido obrigado também aos médicos e aos agentes da saúde que, nos «Postos de saúde» preparados junto das quatro Basílicas Papais, estão a oferecer consultas especializadas a centenas de pessoas que vivem nas margens da cidade de Roma. Muito obrigado! A Virgem Maria, à qual nos dirigimos agora em oração, nos acompanhe sempre no nosso caminho. deverá haver, nalgum lugar da terra, um remédio capaz de curar a doença. Infelizmente não é assim; e ainda que existisse tal remédio, seria acessível a muito poucas pessoas. A natureza humana, ferida pelo pecado, traz inscrita em si mesma a realidade da limitação. Conhecemos a objeção que se levanta, sobretudo nestes tempos, à vista de uma vida marcada por graves limitações físicas; considera-se que é impossível ser feliz uma pessoa enferma ou deficiente, porque incapaz de realizar o estilo de vida imposto pela cultura do prazer e da diversão. Num tempo como o nosso, em que o cuidado do corpo se tornou um mito de massa e consequentemente um negócio, aquilo que é imperfeito deve ser ocultado, porque atenta contra a felicidade e a serenidade dos privilegiados e põe em crise o modelo dominante. É melhor manter tais pessoas segregadas em qualquer «recinto» — eventualmente dourado — ou em «reservas» criadas por um compassivo assistencialismo, para não estorvar o ritmo de um bem-estar falso. Por vezes chega-se a sustentar que é melhor desembaraçar-se o mais rapidamente possível de tais pessoas, porque se tornam um encargo financeiro insuportável em tempos de crise. Na realidade, porém, como é grande a ilusão em que vive o homem de hoje, quando fecha os olhos à enfermidade e à deficiência! Não compreende o verdadeiro sentido da vida, que inclui também a aceitação do sofrimento e da limitação. O mundo não se torna melhor quando se compõe apenas de pessoas aparentemente «perfeitas» (para não dizer «maquilhadas»), mas quando crescem a solidariedade, a mútua aceitação e o respeito entre os seres humanos. Como são verdadeiras as palavras do Apóstolo: «O que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte» (1 Cor 1, 27)! O Evangelho deste domingo (Lc 7, 36 — 8, 3) apresenta também uma situação particular de fraqueza. A mulher pecadora é julgada e marginalizada pelos circunstantes, mas Jesus acolhe-a e defende-a «porque muito amou» (v. 47). Tal é a conclusão de Jesus, atento como está ao sofrimento e às lágrimas daquela pessoa. A sua ternura é sinal do amor que Deus reserva àqueles que sofrem e são excluídos. Não existe apenas o sofrimento físico; entre as patologias mais frequentes nos dias de hoje conta-se uma que tem a ver precisamente com o espírito: é um sofrimento que envolve a alma tornando-a triste, porque carente de amor. A patologia da tristeza. Quando se experimenta a deceção ou a traição nas relações importantes, então descobrimo-nos vulneráveis, fracos e sem defesas. Consequentemente torna-se muito forte a tentação de se fechar em si mesmo e corre-se o risco de perder a ocasião da vida: amar apesar de tudo. Amar apesar de tudo. Aliás, a felicidade que deseja cada um pode exprimir-se de muitos modos, mas só é possível alcançá-la se se for capaz de amar. Esta é a estrada. É sempre uma questão de amor, não há outra estrada. O verdadeiro desafio é o de quem ama mais. Quantas pessoas com deficiência e enfermas se reabrem à vida, logo que descobrem que são amadas! E quão grande amor pode brotar de um coração, mesmo só através de um sorriso! A terapia do sorriso. Então a própria fragilidade pode tornar-se conforto e apoio para a nossa solidão. Jesus, na sua paixão, amounos até ao fim (cf. Jo 13, 1); na cruz, revelou o Amor que se dá sem limites. Que poderíamos nós censurar a Deus, nas nossas enfermidades e tribulações, que não esteja já impresso no rosto do seu Filho crucificado? Ao seu sofrimento físico, juntam-se a zombaria, a marginalização e a lástima, enquanto Ele responde com a misericórdia que a todos acolhe e perdoa: «fomos curados pelas suas chagas» (Is 53, 5; 1 Pd 2, 24). Jesus é o médico que cura com o remédio do amor, porque toma sobre Si o nosso sofrimento e redime-o. Sabemos que Deus pode compreender as nossas enfermidades, porque Ele mesmo foi pessoalmente provado por elas (cf. Hb 4, 15). O modo como vivemos a doença e a deficiência é indicação do amor que estamos dispostos a oferecer. A forma como enfrentamos o sofrimento e a limitação é critério da nossa liberdade em dar sentido às experiências da vida, mesmo quando nos parecem absurdas e não merecidas. Por isso, não nos deixemos turbar por estas tribulações (cf. 1 Ts 3, 3). Sabemos que, na fraqueza, podemos tornar-nos fortes (cf. 2 Cor 12, 10) e receber a graça de completar em nós o que falta aos sofrimentos de Cristo em favor do seu corpo, que é a Igreja (cf. Cl 1, 24); um corpo que, à imagem do corpo do Senhor ressuscitado, conserva as chagas, sinal da dura luta que trava, mas chagas transfiguradas para sempre pelo amor. L’OSSERVATORE ROMANO página 6 quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 Telefonema do Papa aos participantes na peregrinação a pé de Macerata a Loreto Noite de caminho «Desejo-vos uma noite de caminho, oração, alegria e fraternidade», disse o Papa Francisco telefonando no final da tarde de 11 de junho aos participantes na trigésima oitava peregrinação a pé de Macerata a Loreto (Itália), depois da celebração eucarística de abertura presidida pelo cardeal Edoardo Menichelli, arcebispo de Ancona-Osimo, no estádio «Helvia Recina» de Macerata. Boa tarde, prezados amigos! O Bispo disse-me que aí chove. Mas até a chuva é uma bênção, porque é má mas também boa! São dois aspetos. É má porque incomoda, mas é boa porque representa a figura da graça de Deus que desce sobre nós. Agora começais a percorrer o caminho; um caminho que durará a noite inteira. Mas também a vida é um caminho. Nenhum de nós sabe quanto durará a própria vida, mas é um caminho. Caros amigos, dou-vos a minha bênção e desejo-vos uma noite de caminho, oração, alegria e fraternidade, e com o olhar fixo em Nossa Senhora e na Eucaristia, que haveis de receber amanhã. Agora, todos juntos, rezemos a Nossa Senhora: Ave Maria... E quando alguém pensa em levar uma vida sem caminhar... Não se pode levar uma vida permanecendo parado. A vida é para caminhar, para fazer algo, para ir em frente, para construir uma amizade social, uma sociedade justa, para proclamar o Evangelho de Jesus. Esta noite estou próximo de vós, próximo de vós na oração; acompanho-vos e desejo-vos uma noite de oração e alegria. Haverá certamente também um pouco de sofrimento, mas isto supera-se com a esperança do encontro, amanhã, com Jesus Eucaristia. Abençoo-vos! Caminhai sempre na vida; nunca pareis, mas permanecei sempre a caminho. A vida é assim! E orai também por mim, a fim de que eu não me detenha, mas continue a ir pelo caminho, o caminho que o Senhor me indicará como o percorrer. Congresso internacional sobre a lepra Sem discriminação nem indiferença Ainda hoje persistem «o antigo estigma do leproso e os comportamentos sociais e sanitários consequentes». Foi a denúncia do cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos, no discurso pronunciado no congresso sobre o tema «Por uma cura holística das pessoas atingidas pelo mal Riqueza da diversidade CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 4 Papa]. Vem. vem... Esta é corajosa! Vem... Esta não tem medo, arrisca, sabe que as diversidades são uma riqueza; arrisca, e deu-nos uma lição. Esta nunca será discriminada, sabe defender-se sozinha! Eis. Serena, não sei se respondi à tua pergunta. Na paróquia, na Missa, nos Sacramentos, todos são iguais, porque todos têm o mesmo Senhor: Jesus, e a mesma mãe: Nossa Senhora. Compreendeste? [Aproxima-se outra menina] Vem. vem... Outra corajosa. O padre que falou antes fez algumas perguntas que estão relacionadas com o que disse Serena: como acolher todos. Mas se tu... — não digo a ti, porque sei que tu acolhes todos — mas pensai num sacerdote que não acolhe todos: que conselho daria o Papa. «Fecha a porta da Igreja, por favor!». Ou todos, ou ninguém. «Mas não — pensemos naquele padre que se defende — não, padre, não, não é assim; eu compreendo todos, mas não posso acolher todos porque nem todos são capazes de compreender...» — «Tu não és capaz de compreender!». O que o padre tem que fazer, ajudado pelos leigos, pelos catequistas, por muitas pessoas, é ajudar todos a compreender: a compreender a fé, a compreender o amor, a compreender como ser amigo, a compreender as diferenças, a compreender como as coisas são complementares, um pode dar uma coisa e outro pode contribuir com outra. Isto significa ajudar a compreender. E tu usaste duas palavras belas: acolher e ouvir. Acolher, ou seja, receber todos, todos. E ouvir todos. Digo-vos isto. Penso que hoje na pastoral da Igreja se fazem tantas coisas boas, tantas: na catequese, na liturgia, na caridade, com os doentes... tantas coisas boas. Mas há uma coisa que se deve fazer mais, também os sacerdotes, os leigos, mas sobretudo os sacerdotes devem fazer mais: o apostolado de ouvido: ouvir! «Mas padre, é tedioso ouvir, porque são sempre as mesmas histórias, as mesmas coisas...» — «Mas não são as mesmas pessoas, e o Senhor está no coração de cada uma delas, e tu deves ter a paciência de ouvir». Aco- Concedo-vos a minha bênção. Que vos abençoe Deus Todo-Poderoso, Pai e Filho e Espírito Santo. E por favor, nãos vos esqueçais de rezar por mim. Um abraço a todos! Um abraço, e orai por mim. Boa noite! lher e ouvir. Todos. E penso que com isto respondi às perguntas. Eu tinha preparado um discurso para vós, e o Prefeito [da Casa Pontifícia] entregá-lo-á para que seja conhecido por todos. Porque ler um discurso é também um pouco tedioso... E há um momento, quando se lê um discurso, em que, com uma certa astúcia, começamos a olhar para o relógio, como que para dizer: «Mas quando ele para de falar?». Por isso o discurso ides lê-lo vós. Agradeço-vos muito este diálogo, esta visita, esta beleza das diversidades que fazem comunidade: uma dá à outra e vice-versa, e todas fazem a unidade da Igreja. Muito obrigado. E rezai por mim. [Aproxima-se um menino] Vem, vem também tu... Agora, ficai sentados quietinhos, e como bons filhos rezemos à Mãe, a Nossa Senhora. Todos juntos rezemos a Nossa Senhora. Ave Maria... [Bênção] E por favor, rezai por mim. Obrigado. de Hansen respeitadora da sua dignidade», que se realizou no Augustinianum em Roma nos dias 10 e 11 de junho. Até ao final do século XX os doentes de lepra, recordou o purpurado abrindo os trabalhos do encontro — promovido pelo Pontifício Conselho para a pastoral no campo da saúde juntamente com as fundações O bom samaritano e Nippon, em colaboração com as fundações Raoul Follereau e Sasakawa Memorial Health e com a Soberana Ordem militar de Malta — «foram vítimas da exclusão social, com a perda do trabalho, o afastamento da família e da comunidade, até à reclusão forçada nos leprosários». Para muitas das populações atingidas «o estigma moral e as práticas de exclusão pertencem a uma herança que é difícil de debelar». Paradoxalmente, observou o cardeal, hoje é mais fácil «debelar a doença do que o preconceito social que ainda circunda um mal, ao qual Cristo pessoalmente, e outros grandíssimos santos» como Francisco de Assis, padre Damião e Madre Teresa de Calcutá dedicaram «uma atenção especial, lutando contra os sinais físicos do mal e contra os terríveis medos e ideias que estão ligados à lepra». O arcebispo presidente Zigmunt Zimowski enviou aos participantes uma mensagem lida por monsenhor Dariusz Giers, oficial do dicastério. No texto o prelado frisou que o congresso deseja evidenciar que o mal de Hansen «não pode ser uma patologia da qual ter medo nem esquecida como não podem ser esquecidas as pessoas que CONTINUA NA PÁGINA 18 L’OSSERVATORE ROMANO número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 página 7 Francisco recordou que a dignidade da vocação médica não pode ser sacrificada em nome da eficiência Mais coração nas mãos A falsa compaixão humilha as pessoas e chega a aprovar a morte do doente «Colocai mais coração nestas mãos»: o Papa citou as palavras de são Camilo de Lellis, ao receber em audiência os dirigentes das ordens dos médicos da Espanha e da América Latina, na manhã de 9 de junho, na Sala Clementina. Gentis senhoras e senhores bom dia! Sinto-me feliz por me encontrar com todos vós, membros das Associações médicas latino-americanas. Agradeço ao doutor Rodríguez Sendín, Presidente da Organização médica colegial espanhola, as suas cordiais palavras. Este ano a Igreja católica celebra o Jubileu da Misericórdia; é uma boa ocasião para exprimir reconhecimento e gratidão a todos os agentes da saúde que, com a sua dedicação, proximidade e profissionalismo às pessoas atingidas por uma doença, possam tornar-se verdadeira personificação da misericórdia. A identidade e o compromisso do médico não se funda só na sua ciência e competência técnica mas também e, sobretudo, no seu comportamento compassivo — padece-com — e misericordiosos para com quantos sofrem no corpo e no espírito. A compaixão num certo sentido é a própria alma da medicina. A compaixão não é pena, é sofrer-com. Na nossa cultura tecnológica e individualista, a compaixão nem sempre é bem vista; às vezes é até desprezada porque significa submeter a pessoa que a recebe a uma humilhação. E não falta nem sequer quem se esconde por detrás de uma presumível compaixão para justificar e aprovar a morte do doente. Mas não é assim. A verdadeira compaixão não marginaliza ninguém, não humilha a pessoa, não a exclui, nem considera a sua morte algo bom. A verdadeira compaixão assume. Sabeis bem que isto significaria o triunfo do egoísmo, daquela «cultura do descartável» que rejeita e despreza as pessoas que não satisfazem determinados padrões de saúde, de beleza e de utilidade. Apraz-me abençoar as mãos dos médicos como sinal de reconhecimento a esta compaixão que se torna carícia de saúde. A saúde é um dos dons mais preciosos e desejados por todos. Na tradição bíblica foi sempre evidenciada a proximidade entre a salvação e a saúde, assim como as suas recíprocas e numerosas implicações. Gosto de recordar o título com o qual os padres da Igreja costumavam chamar Cristo e a sua obra de salvação: Christus medicus, Cristo médico. Ele é o Bom Pastor que cuida da ovelha ferida e conforta a enferma (cf. Êx 34, 16); Ele é o Bom Samaritano que não prossegue deixando a pessoa ferida na beira da estrada mas, movido pela compaixão, cuida dela e assiste-a (cf. Lc 10, 33-34). A tradição médica cristã inspirouse sempre na parábola do Bom Samaritano. É um identificar-se com o amor do Filho de Deus, que «passou fazendo o bem e curando todos os oprimidos» (cf. At 10, 38). Quanto bem faz ao exercício da medicina pensar e sentir que a pessoa enferma é o nosso próximo, que é da nossa mesma carne e do nosso mesmo sangue, e que no seu corpo dilacerado se reflete o mistério da carne do próprio Cristo! «Todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes» (Mt 25, 40). A compaixão, este sofrer-com, é a resposta adequada ao valor imenso da pessoa enferma, uma resposta feita de respeito, compreensão e ternura, porque o valor sagrado da vida do doente nunca desaparece nem se obscurece, mas resplandece com mais força exatamente no seu sofrimento e na sua vulnerabilidade. Como se compreende bem a recomendação de são Camilo de Lellis para assistir os doentes. Ele disse: «Colocai mais coração nestas mãos». A fragilidade, a dor e a doença são uma provação difícil para todos, até para o pessoal médico, são um apelo à paciência, ao padecer-com; portanto não se pode ceder à tentação funcional de aplicar soluções rápidas e drásticas, movidos por uma falsa compaixão nem por meros critérios de eficiência e de poupança económica. É a dignidade da vida humana que está em jogo; e também a dignidade da vocação médica. Volto ao que disse sobre a bênção das mãos dos médicos. E mesmo se no exercício da medicina, tecnicamente falando, é necessária a assepsia, no núcleo da vocação médica a assepsia vai contra a compaixão; a assepsia é um auxílio técnico necessário no exercício mas nunca deve condicionar o essencial do coração compassivo. Nunca deve condicionar o «colocar mais coração nas mãos». Queridos amigos, garanto-vos a minha estima pelo esforço que realizais a fim de enobrecer todos os dias a vossa profissão e acompanhar, conservar e valorizar o imenso dom representado pelas pessoas que sofrem por causa da doença. Garanto a minha oração por vós: podeis praticar muita bondade, tanto bem; por vós e pelas vossas famílias — porque muitas vezes as vossas famílias devem acompanhar, apoiando a vocação do médico, homem ou mulher que seja, que é como um sacerdócio. E peço-vos também que não deixeis de rezar por mim, que tenho algo de médico. Obrigado. Aos jovens que participaram no curso de verão organizado pelo Observatório vaticano Questão de justiça O estudo da água no sistema solar e noutras partes: foi dedicado a este tema o décimo quinto curso de verão organizado pelos padres jesuítas do Observatório vaticano, cujos participantes foram recebidos pelo Santo Padre na manhã de sábado 11 de junho na Sala do Consistório. Queridos amigos! Sinto-me feliz por vos receber, professores e alunos do Curso de verão organizado pelos Padres Jesuítas do Observatório Vaticano. A participação qualificada de pessoas provenientes de vários países e de diferentes culturas é sinal de que a diversidade pode enriquecer também o trabalho de pesquisa em âmbito científico. Agradeço ao Padre Paul Mueller, Vice-Diretor do Observatório, assim como aos professores que se disponibilizaram para vos acompanhar, jovens astrónomos, na complexa e maravilhosa atividade de perscrutar o universo, dom incomparável do Criador. O meu reconhecimento dirige-se também a quantos, com a sua generosidade, contribuíram para tornar possível esta escola internacional. O Papa Leão XIII fundou o Observatório Vaticano em 1891, exatamente há 125 anos, também para confirmar quanto a Igreja era amiga da «ciência verdadeira e fundada, quer humana quer divina» (Motu proprio Ut mysticam, 14 de março de 1891). Em todos estes anos, esta Instituição científica esforçou-se por realizar as finalidades para as quais foi fundada, servindo-se de novos instrumentos, assim como do diálogo e do confronto com outros centros de pesquisa. O facto de vos terdes reunido para este curso de verão mostra que o desejo de compreender o universo, criado por Deus, e o nosso lugar nele, é comum a homens e mulheres que vivem em contextos culturais e religiosos bastante diferentes. Todos nós vivemos sob o mesmo céu; e todos somos movidos pela beleza que se revela no cosmos e se reflete também nos nossos estudos sobre os corpos e as substâncias celestes. Desta forma estamos unidos pelo desejo de descobrir a verdade sobre como se move este universo maravilhoso, aproximando-nos cada vez mais do seu Criador. Por isso é deveras bom e providencial que esta décimo quinto curso de verão se ocupe do estudo da água no sistema solar e noutras partes. Todos sabemos quanto a água é essencial aqui na terra: para a vida, para nós seres humanos, para o trabalho... Dos mais pequeninos flocos de neve às cascatas, dos lugares e dos rios aos oceanos imensos, a água fascina-nos com o seu poder e ao mesmo tempo com a sua humildade. As grandes civilizações tiveram início nas margens dos rios, e também hoje o acesso à água pura é um problema de justiça para o género humano, ricos e pobres. Queridos irmãos e irmãs, o trabalho do cientista exige grande dedica- ção, que pode ser longa e cansativa. Contudo ele pode e deveria ser uma fonte de alegria. Desejo-vos que saibais cultivar em vós esta alegria, que anima o vosso trabalho científico, e que é a razão pela qual não podeis deixar de a partilhar com os vossos amigos, as vossas famílias, as vossas nações, assim como com a comunidade internacional dos cientistas com os quais trabalhais. Faço votos por que sintais sempre a alegria da pesquisa e de partilhar os seus frutos, com humildade e fraternidade. Com estes votos, invoco sobre vós e sobre a vossa atividade a bênção do Senhor. E peço-vos por favor que rezeis por mim. L’OSSERVATORE ROMANO página 8 Gratidão das mulheres quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 Maria Madalena na miniatura de um Exultet Finalmente apóstola LUCETTA SCARAFFIA esde há quase dois mil anos era evidente para todos a presença decisiva diante do sepulcro vazio de Maria Madalena, a primeira que deu a boa nova da ressurreição: precisamente ela, uma mulher. Mas parece deveras que ninguém se tinha apercebido. Ao longo dos séculos surgiram até histórias misóginas, como aquela segundo a qual Jesus tinha aparecido antes de tudo a uma mulher porque as mulheres falam mais e assim a notícia ter-se-ia difundido mais depressa. Além disso, alguns importantes comentadores questionaram-se sobre como o ressuscitado tivesse descuidado a sua mãe, chegando até a imaginar uma aparição a Maria antes do encontro com Madalena, de modo a restabelecer uma hierarquia que se considerava alterada. Sobre Maria de Magdala, precisamente devido à sua evidente proximidade a Jesus, tinham até surgido vozes preocupantes, a ponto de fazer dela o símbolo da transgressão sexual, relançado por lendas tenazes, ainda hoje vivas: muitos recordam a Madalena no filme de Martin Scorsese A última tentação de Cristo, e certamente muitos mais leram O código da Vinci, best seller fundado precisamente sobre o presumível segredo do matrimónio entre ela e Jesus. De resto Madalena é a única protagonista importante da história sacra a ser representada um pouco seminua na iconografia, e quase sempre com os cabelos ruivos, por muito tempo considerados sinal de desordem sexual. Em síntese, mesmo se era considerada santa, representavam-na quase como símbolo oposto à imagem virginal de Maria, vestida de branco e de azul. A ponto que entre as feministas dos anos setenta começou a difundir-se o costume de chamar Madalena às suas filhas, em sinal de rebelião à tradição religiosa. Ao contrário foi mais clarividente a tradição popular, que imaginou uma sua viagem marítima até ao litoral meridional da França: para evangelizar, precisamente como os outros apóstolos, uma parte do mundo então conhecido. Foi tão longo e difícil o caminho que levou à aceitação da verdade, uma verdade simples mas expressiva de uma mensagem que muitos não queriam ouvir: ou seja, que para Jesus as mulheres eram iguais aos homens sob o ponto de vista espiritual, porque têm o mesmo valor e capacidades. Portanto foi tão difícil admitir que Madalena era uma apóstola, a primeira entre os apóstolos aos quais o Senhor ressuscitado se manifestou. Por isso precisamente ela, ou melhor, da restituição do lugar que lhe compete na tradição cristã, pode partir finalmente o reconhecimento do papel das mulheres na Igreja. O Papa Francisco compreendeu-o claramente, e deste modo iniciou um processo que nunca mais poderá ser interrompido. Surpreende que a data do documento seja do dia no qual se celebra o Sagrado Coração de Jesus: uma devoção difundida por uma mulher, Margarida Maria Alacoque, e relançada com paixão por muitas santas do século XIX, como Francisca Cabrini. Estas são outras confirmações de que as mulheres sempre estiveram na Igreja, desempenharam papéis importantes e contribuíram para a construção da tradição cristã. Então, da parte de todas as mulheres cristãs do mundo, um obrigado ao Papa Francisco, porque com a instituição da nova festa de Santa Maria Madalena lhes reconhece o mérito. D Mensageira ARTHUR RO CHE* Por desejo expresso do Papa Francisco, a Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos publicou um decreto a 3 de junho de 2016, solenidade do Sagrado Coração de Jesus, com o qual a celebração de santa Maria Madalena, hoje memória obrigatória, será elevada no Calendário romano geral à categoria de festa. A decisão inscreve-se no atual contexto eclesial, que exorta a refletir mais profundamente sobre a dignidade da mulher, a nova evangelização e a grandeza do mistério da misericórdia divina. João Paulo II dedicou uma grande atenção não só à importância das mulheres na própria missão de Cristo e da Igreja, mas também, e com relevo especial, à peculiar função de Maria de Magdala como primeira testemunha que viu o ressuscitado e primeira mensageira que anunciou aos apóstolos a ressurreição do Senhor (cf. Mulieris dignitatem, 16). Esta importância prossegue hoje na Igreja — manifestada pelo atual compromisso de uma nova evangelização — que deseja acolher, sem distinção alguma, homens e mulheres de todas as raças, povos, línguas e nações (cf. Ap 5, 9), para lhes anunciar a boa nova do Evangelho de Jesus Cristo, acompanhá-los na sua peregrinação terrena e lhes oferecer as maravilhas da salvação de Deus. Santa Maria Madalena é um exemplo de verdadeira e autêntica evangelizadora, isto é, de uma evangelista que anuncia a jubilosa alegria central da Páscoa (ver a coleta de 22 de julho e o novo prefácio). O Papa Francisco tomou esta decisão precisamente no contexto do Jubileu da Misericórdia para significar a relevância desta mulher que demonstrou um grande amor a Cristo e por ele foi muito amada, como afirmam Rábano Mauro (dilectrix Christi et a Christo plurimum dilecta, no prefácio do De vita beatae Mariae Magdalenae) e santo Anselmo de Canterbury (electa dilectrix et dilecta electrix Dei, no Oratio LXXIII ad sanctam Mariam Magdalenam). Certo é que a tradição cristã no Ocidente, sobretudo depois de são Gregório Magno, identifica na mesma pessoa Maria de Magdala, a mulher que derramou o perfume na casa de Simão, o fariseu, e a irmã de Lázaro e Marta. Esta interpretação continuou e teve influência nos autores eclesiásticos ocidentais, na arte cristã e nos textos litúrgicos relativos à santa. Os bolandistas expuseram amplamente o problema da identificação das três mulheres e prepararam o caminho para a reforma litúrgica do Calendário Romano. Com a atuação da reforma, os textos do Missale Romanum, da Liturgia horarum e do Martyrologium Romanum referem-se a Maria de Magdala. Certamente Maria Madalena participou no grupo dos discípulos de Jesus, seguiu-o até aos pés da cruz e, no jardim onde se encontrava o sepulcro, foi a primeira testis divinae misericordiae (Gregório Magno, Homiliae in evangelia, 11, 25, 10). O evangelho de João narra que Maria Madalena chorava, porque não tinha encontrado o corpo do Senhor (cf. 20, 11); e Jesus teve misericórdia dela fazendo-se reconhecer como mestre e transformando as suas lágrimas em alegria pascal. Os textos bíblicos e litúrgicos da nova festa podem ajudar-nos a compreender melhor a importância hodierna desta santa, que tem a honra de ser a prima testis da ressurreição do Senhor (Hymnus, ad laudes matutinas), a primeira que viu o sepulcro vazio e ouviu a verdade da sua ressurreição. Cristo tem especial consideração e misericórdia por Maria Madalena, que manifesta o seu amor a ele procurando-o no jardim com angústia e dor, com «lágrimas de humildade», como diz santo Anselmo na oração citada. A tal propósito, desejo mencionar o contraste entre as duas mulheres presentes no jardim do paraíso e no jardim da ressurreição. A primeira difundiu a morte onde havia vida; a segunda anunciou a vida a partir de um sepulcro, lugar de morte, como observa Gregório Magno: Quia in paradiso mulier viro propinavit mortem, a sepulcro mulier viris annuntiat vitam. Além disso, é precisamente no jardim da ressurreição que o Senhor diz a Maria Madalena: Noli me tangere. Foi um convite dirigido não só a Maria mas a toda a Igreja a entrar numa experiência de fé que supera qualquer apropriação materialista e compreensão humana do mistério divino. Tem um alcance eclesial e é uma boa lição para cada discípulo de Jesus: não procuremos seguranças humanas nem títulos mundanos, mas a fé em Cristo vivo e ressuscitado. Precisamente por ter sido testemunha ocular de Cristo ressuscitado, Maria Madalena foi também a primeira que deu o seu testemunho diante dos apóstolos. Cumpriu o mandato do ressuscitado: «Vai ter com os meus irmãos e diz-lhes (...) Maria Madalena correu para anunciar aos discípulos que ela tinha visto o Senhor e contou o que ele lhe tinha falado» (Jo 20, 17-18). Deste modo ela tornouse evangelista, isto é, mensageira que anuncia a boa nova da ressurreição do Senhor; ou, como diziam Rábano Mauro (De vita beatae Mariae Magdalenae, XXVII) e são Tomás de Aquino (In Ioannem evangelistam expositio, III, 6), apostolorum apostola, porque anuncia aos apóstolos o que por sua vez eles anunciarão a todo o mundo. Com razão o doctor angelicus usa este termo aplicando-o a Maria Madalena: ela é testemunha de Cristo ressuscitado e anuncia a mensagem da ressurreição do Senhor, como os outros apóstolos. Portanto, é justo que a celebração litúrgica desta mulher tenha o mesmo grau de festa dado à celebração dos apóstolos no Calendário romano geral e que sobressaia a sua missão especial, que é exemplo e modelo para todas as mulheres na Igreja. *Arcebispo secretário da Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 9 A memória litúrgica de santa Maria Madalena torna-se festividade Primeira testemunha da ressurreição O Papa Francisco estabeleceu que a partir de 22 de julho deste ano a memória litúrgica de santa Maria Madalena seja elevada ao grau de festa no Calendário romano geral. A decisão do Sumo Pontífice tenciona levar a Igreja a «refletir de forma mais profunda sobre a dignidade da mulher, a nova evangelização e a grandeza do mistério da misericórdia divina», como se lê no decreto da Congregação par o culto divino e a disciplina dos sacramentos, do qual publicamos aqui o texto original em latim e, em seguida, a tradução em português. DECRETUM DECRETO Resurrectionis dominicae primam testem et evangelistam, Sanctam Mariam Magdalenam, semper Ecclesia sive Occidentalis sive Orientalis, summa cum reverentia consideravit, etsi diversimode coluit. Nostris vero temporibus cum Ecclesia vocata sit ad impensius consulendum de mulieris dignitate, de nova Evangelizatione ac de amplitudine mysterii divinae misericordiae bonum visum est ut etiam exemplum Sanctae Mariae Magdalenae aptius fidelibus proponatur. Haec enim mulier agnita ut dilectrix Christi et a Christo plurimum dilecta, “testis divinae misericordiae” a Sancto Gregorio Magno, et “apostolorum apostola” a Sancto Thoma de Aquino appellata, a christifidelibus huius temporis deprehendi potest ut paradigma ministerii mulierum in Ecclesia. Ideo Summus Pontifex Franciscus statuit celebrationem Sanctae Mariae Magdalenae Calendario Romano generali posthac inscribendam esse gradu festi loco memoriae, sicut nunc habetur. Novus celebrationis gradus nullam secumfert variationem circa diem, quo ipsa celebratio peragenda est, quoad textus sive Missalis sive Liturgiae Horarum adhibendos, videlicet: A Igreja, tanto no Ocidente como no Oriente, reservou sempre a máxima reverência a Santa Maria Madalena, primeira testemunha e evangelista da Ressurreição do Senhor, celebrando-a contudo de modos diversos. Na nossa época, dado que a Igreja é chamada a refletir de forma mais profunda sobre a dignidade da mulher, a nova evangelização e a grandeza do mistério da misericórdia divina, pareceu oportuno também que o exemplo de Santa Maria Madalena fosse mais convenientemente proposto aos fiéis. Com efeito, esta mulher, conhecida como aquela que amou Cristo e foi também muito amada por Cristo, chamada por São Gregório Magno «testemunha da misericórdia divina» e por São Tomás de Aquino «apóstola dos apóstolos», hoje pode ser vista pelos fiéis como paradigma da missão das mulheres na Igreja. Por conseguinte, o Sumo Pontífice Francisco estabeleceu que doravante a celebração de Santa Maria Madalena deve ser inscrita no Calendário Romano Geral com o grau de festa, e não já de memória, como é hoje. O novo grau celebrativo não comporta variação alguma para o dia no qual realizar a própria celebração, nem para os textos do Missal e da a) dies celebrationis Sanctae Mariae Magdalenae dicatus idem manet, prout in Calendario Romano invenitur, nempe 22 Iulii; b) textus in Missa et Officio Divino adhibendi, iidem manent, qui in Missali et in Liturgia Horarum statuto die inveniuntur, addita tamen in Missali Praefatione propria, huic decreto adnexa. Curae autem erit Coetuum Episcoporum textum Praefationis vertere in linguam vernaculam, ita ut, praevia Apostolicae Sedis recognitione adhiberi valeat, quae tempore dato in proximam reimpressionem proprii Missalis Romani inseretur. Ubi Sancta Maria Magdalena, ad normam iuris particularis, die vel gradu diverso rite celebratur, et in posterum eodem die ac gradu quo antea celebrabitur. Contrariis quibuslibet minime obstantibus. Ex aedibus Congregationis de Cultu Divino et Disciplina Sacramentorum die 3 mensis Iunii, in sollemnitate Sacratissimi Cordis Iesu. ROBERT Card. SARAH Praefectus ARTURUS RO CHE Archiepiscopus a Secretis Liturgia das Horas que devem ser adotados, ou seja: a) o dia dedicado à celebração de Santa Maria Madalena permanece o mesmo, como já aparece no Calendário Romano, isto é, 22 de julho; b) os textos que devem ser usados na Missa e no Ofício Divino permanecem os mesmos contidos no Missal e na Liturgia das Horas no dia indicado, com o acréscimo no Missal do prefácio próprio, anexo a este decreto. A Conferência dos Bispos ocupar-se-á da tradução do texto do prefácio na língua vernácula, de tal modo que, com a prévia aprovação da Sé Apostólica, possa ser usado e a seu tempo inserido na próxima reedição do próprio Missal Romano. Onde Santa Maria Madalena, segundo o direito particular, é legitimamente celebrada num dia e com um grau diferente, também no futuro será celebrada no mesmo dia e com o mesmo grau. Não obstante qualquer disposição contrária. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos 3 de junho de 2016, solenidade do Sagrado Coração de Jesus. ROBERT Card. SARAH Prefeito ARTHUR RO CHE Arcebispo Secretário O texto latino do prefácio Publicamos em seguida o prefácio que deverá ser acrescentado aos textos litúrgicos do Missal Romano para a celebração da festa de santa Maria Madalena. Præfatio: de apostolorum apostola Vere dignum et iustum est, æquum et salutáre, nos te, Pater omnípotens, cuius non minor est misericórdia quam potéstas, in ómnibus prædicáre per Christum Dóminum nostrum. Qui in hortu maniféstus appáruit Maríæ Magdalénæ, quippe quae eum diléxerat vivéntem, in cruce víderat moriéntem, quæsíerat in sepúlcro iacéntem, ac prima adoráverat a mórtuis resurgéntem, et eam apostolátus offício coram apóstolis honorávit ut bonum novæ vitæ núntium ad mundi fines perveníret. Unde et nos, Dómine, cum Angelis et Sanctis univérsis tibi confitémur, in exsultatióne dicéntes: Sanctus, Sanctus, Sanctus Dóminus Deus Sábaoth... Em Vercelli a beatificação do padre Giacomo Abbondo Pároco de todos Instrução popular e exercícios espirituais. Foi o binómio que caracterizou os mais de trinta anos — de 1757 a 1788 — de ministério desempenhado em Tronzano pelo pároco padre Giacomo Abbondo, beatificado no sábado 11 de junho na catedral de Vercelli. «Pastor segundo o coração de Cristo, inteiramente dedicado à paróquia, às almas, à Igreja»: assim o recordou na homilia o cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as causas dos santos, que presidiu ao rito em representação do Papa. «Em tempos difíceis — frisou o purpurado — soube responder com sabedoria e fortaleza a um triplo desafio. Antes de tudo, contrastou o iluminismo, harmonizando fé e razão, pondo no centro da sua pastoral o conhecimento do evangelho e o anúncio da Palavra. Através da Companhia da doutrina cristã favoreceu a instrução popular e com frequência, durante o inverno, ia pessoalmente fazer a catequese a domicílio nas granjas distantes da cidade. Promoveu os exercícios espirituais e as missões populares». Além disso «se opôs ao rigor do jansenismo, favorecendo a participação nos sacramentos de adultos e crianças, incentivando as devoções populares. Permitiu o acesso das crianças à Eucaristia, antecipando deste modo a decisão histórica de são Pio X . De Clemente XIII obteve a indulgência plenária para quantos se aproximaram dos sacramentos na festa de Nossa Senhora do Carmo, que se tornou para o povo uma espécie de “Páscoa de verão”». Devoto do Sagrado coração e da Imaculada, padre Abbondo «era confessor paciente e misericordioso, apresentando aos fiéis a esperança do prémio no paraíso. Foi pároco zeloso e conduziu uma vida exemplar reconhecida por todos como santa». Por fim, o terceiro elemento evocado pelo cardeal celebrante, o beato «contrastou a difusão do galicanismo, manifestando uma espécie de veneração pelo Papa. De facto, vivia em plena fidelidade ao magistério pontifício, em filial obediência ao bispo, em diligente tensão pela santificação das almas». Atualizando a reflexão o cardeal Amato evidenciou que «formação religiosa, vida sacramental e devoção ao Papa» foram as três características do beato. De resto, observou, «os santos nunca estão fora da moda, porque são formados por Jesus, sempre presente no meio de nós como caminho, verdade e vida». E o padre Giacomo «enriquece ulteriormente o panorama da santidade sacerdotal piemontesa». É comovedor o elogio dos 74 chefes de casa reunidos depois da sua morte, que exaltavam o «senhor pároco padre Jaopo Abbondo de imortal memória pela perspicácia do seu talento, pela profundidade da sua doutrina, pela santidade da sua vida, pela suprema prudência no seu comportamento e pelo incansável exercício do seu ministério pastoral». Com efeito, graças a ele, concluiu o cardeal Amato, «a paróquia de Tronzano tornou-se uma comunidade-modelo». L’OSSERVATORE ROMANO número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 página 10/11 Apelo do Papa ao Programa alimentar mundial Não se acostumar com a fome A falta de alimentos não é «fruto de um destino cego» mas «de uma egoísta e má distribuição dos recursos». Disse o Papa no discurso pronunciado na abertura da sessão anual da junta executiva do Programa alimentar mundial, onde foi na manhã de segunda-feira, 13 de junho. Agradeço à Diretora Executiva, Senhora Ertharin Cousin, ter-me convidado a inaugurar a Sessão Anual de 2016 do Conselho Executivo do Programa Alimentar Mundial, bem como as palavras de boas-vindas que me dirigiu. De igual modo saúdo a Embaixadora Stephanie Hochstetter Skinner-Klée, Presidente desta importante assembleia que reúne os Representantes dos vários governos chamados a tomar medidas concretas na luta contra a fome. E ao mesmo tempo que saúdo a todos vós aqui reunidos, agradeço tantos esforços e compromissos com uma causa que não pode deixar de nos interpelar: a luta contra a fome que sofrem muitos dos nossos irmãos. Há pouco rezei diante do «Muro da Memória», testemunha do sacrifício feito pelos membros deste Organismo, dando a sua vida para que, mesmo no meio de complexas vicissitudes, não faltasse o pão aos famintos. Memória que devemos manter para continuar a lutar, com o mesmo vigor, pela meta tão ansiada da «fome zero». Aqueles nomes gravados à entrada desta Casa são um sinal eloquente de que o Pam, longe de ser uma estrutura anónima e formal, constitui um válido instrumento da comunidade internacional para empreender atividades sempre mais vigo- rosas e eficazes. A credibilidade de uma instituição não se baseia nas suas declarações, mas nas ações realizadas pelos seus membros. Baseia-se nos seus testemunhos. No mundo interconectado e hipercomunicativo em que vivemos, as distâncias geográficas parecem encurtar-se. Temos a possibilidade de contacto quase simultâneo com o que está a acontecer no outro lado do planeta. Graças às tecnologias da comunicação, aproximamo-nos de muitas situações dolorosas; e tais meios podem ajudar (e têm ajudado) a mobilizar para gestos de compaixão e solidariedade. Paradoxalmente, contudo, esta aparente proximidade criada pela informação, vemo-la diluirse de dia para dia. O excesso de informação de que dispomos gera gradualmente a habituação à miséria; ou seja, pouco a pouco tornamo-nos imunes às tragédias dos outros, considerando-as como qualquer coisa de «natural»; em nós gera-se — desculpai o neologismo — a «naturalização» da miséria. São tantas as imagens que nos invadem onde vemos o sofrimento, mas não o tocamos; ouvimos o pranto, mas não o consolamos; vemos a sede, mas não a saciamos. Assim, muitas vidas entram a fazer parte de uma notícia que, em pouco tempo, acabará substituída por outra. E, enquanto mudam as notícias, o sofrimento, a fome e a sede não mudam, permanecem. Esta tendência — ou tentação — exige de nós um passo a mais e, por sua vez, revela o papel fundamental que instituições como a vossa têm no cenário global. Hoje não pode- mos dar-nos por satisfeitos apenas com o facto de conhecer a situação de muitos dos nossos irmãos. As estatísticas não nos saciam. Não é suficiente elaborar longas reflexões ou submergir-nos em discussões infindáveis sobre as mesmas, repetindo continuamente argumentos já conhecidos por todos. É necessário «desnaturalizar» a miséria, deixando de considerá-la como um dado entre muitos outros da realidade. Porquê? Porque a miséria tem um rosto. Tem o rosto de uma criança, tem o rosto de uma família, tem o rosto de jovens e idosos. Tem o rosto da falta de oportunidades e de emprego de muitas pessoas, tem o rosto das migrações forçadas, das casas abandonadas ou destruídas. Não podemos «naturalizar» a fome de tantas pessoas; não nos é lícito afirmar que a sua situação é fruto de um destino cego contra o qual nada podemos fazer. Quando a miséria deixa de ter um rosto, podemos cair na tentação de começar a falar e discutir sobre «a fome», «a alimentação», «a violência», deixando de lado o sujeito concreto, real, que continua ainda hoje a bater às nossas portas. Quando faltam os rostos e as histórias, as vidas começam a transformar-se em números e assim, pouco a pouco, corremos o risco de burocratizar o sofrimento alheio. As burocracias ocupam-se de procedimentos; a compaixão – não a pena, mas a compaixão, o padecer com –, pelo contrário, põe-nos em campo em prol das pessoas. E, nisto, acho que temos muito trabalho a fazer. Juntamente com todas as ações já em curso, é necessário Na saudação conclusiva Coragem dos mártires Na conclusão da visita, no encontro com os funcionários do Programa alimentar mundial, o Papa pôs de lado o discurso preparado e dirigiu aos presentes a seguinte saudação. Eu deveria pronunciar um discurso em espanhol, mas a maioria de vós não compreende esta língua, mas sim o italiano, porque vive na Itália. E os discursos são também tediosos! Assim eu confio o discurso, para que vos seja entregue depois, à Senhora, e direi algumas palavras que me vêm espontâneas do coração. A primeira coisa que desejo dizer-vos, no meu mau italiano, é obrigado. Obrigado porque fazeis o trabalho escondido, o trabalho «por detrás», aquele que não se vê, mas que torna possível que tudo vá por diante. Vós sois como os fundamentos de um prédio: sem fundamentos o prédio não está em pé. Tantos projetos, tantas coisas podem ser feitas, e fazem-se no mundo, na luta contra a fome, e fazem-nos muitas pessoas corajosas. Mas isto graças ao vosso apoio, à vossa ajuda escondida. Os vossos nomes encontram-se apenas no elenco do pessoal — e no fim do mês, no do ordenado — mas além disso ninguém sabe como vos chamais. Contudo os vossos nomes tornam possível este grande trabalho, este grande trabalho da luta contra a fome. Graças a um pequeno trabalho, a um pequeno sacrifício, um vosso sacrifício escondido, pequeno ou grande, tantas crianças podem comer, muita fome é saciada. Agradeço-vos muito. Quando ouvi a Diretora do Programa falar, pensei para comigo: esta é uma mulher corajosa! E penso que todos vós tendes esta coragem: a coragem de levar por diante uma obra «por detrás dos bastidores» e ajudar. Há a coragem daquelas pessoas que se veem, porque num corpo há os pés, as mãos e também o rosto: vê-se o rosto, mas os pés não se veem porque estão dentro dos sapatos; mas vós sois os pés, as mãos, que amparam a coragem de quantos vão em frente, que apoiaram também a coragem dos vossos «mártires» digamos assim, das vossas testemunhas. Nunca esqueçais os nomes daqueles que estão escritos ali, na entrada. Eles puderam fazer aquelas coisas devido à coragem que tinham, à fé que tinham no trabalho, mas também porque eram amparados pelo vosso trabalho. Muito obrigado. E peço-vos que rezeis por mim, para que também eu possa fazer algo contra a fome. Obrigado! Francisco recomendou aos funcionários do Pam que não se deixem sufocar pelos dossiês Ameaça à paz «A fome é uma das maiores ameaças à paz e à serena convivência humana», afirmou o Papa no discurso preparado e entregue aos funcionários do Programa alimentar mundial durante o encontro do dia 13 de junho. Senhoras e senhores, amigos todos, bom dia! trabalhar por «desnaturalizar» e desburocratizar a miséria e a fome dos nossos irmãos. Isto exige de nós, em diversa escala e a diferentes níveis, uma intervenção em que apareça como objetivo dos nossos esforços a pessoa concreta que sofre e tem fome, mas que encerra também uma imensa riqueza de energias e potencialidades que devemos ajudar a concretizar. 1. «Desnaturalizar» a miséria Quando estive na Fao, por ocasião da II Conferência Internacional sobre a Nutrição, disse que uma das graves incoerências que estávamos chamados a considerar é o facto de haver comida suficiente para todos mas «nem todos podem comer, enquanto o desperdício, o descarte, o consumo excessivo e o uso de alimentos para outros fins estão diante dos nossos olhos» (Discurso à Plenária da Conferência, 20/XI/2014). Fique claro que a falta de comida não é uma coisa natural, não é um dado óbvio nem evidente. O facto de hoje, em pleno século XXI, muitas pessoas sofrerem deste flagelo deve-se a uma egoísta e má distribuição dos recursos, a uma «mercantilização» dos alimentos. A terra, maltratada e abusada, continua em muitas partes do mundo a dar-nos os seus frutos, continua a brindar-nos com o melhor de si mesma; os rostos famintos lembram-nos que desvirtuamos os fins da terra. Um dom, que tem finalidade universal, tornamolo um privilégio de poucos. Fizemos dos frutos da terra — dom para a humanidade — mercadoria de alguns, gerando assim exclusão. O consumismo — que permeia as nossas sociedades — induziu a habituar-nos ao supérfluo e ao desperdício diário de comida, a que por vezes já não somos capazes de dar o justo valor e que se situa para além de meros parâmetros económicos. Farnos-á bem recordar que o alimento desperdiçado é como se fosse roubado à mesa do pobre, de quem tem fome. Esta realidade solicita-nos a refletir sobre o problema da perda e desperdício de alimentos, a fim de individuar vias e modalidades que, enfrentando seriamente tal problemática, sejam veículo de solidariedade e partilha com os mais necessitados [cf. Catequese de 5 de junho de 2013: Insegnamenti, I/1 (2013), 280]. 2. Desburocratizar a fome Devemos dizê-lo sinceramente! Há questões burocratizadas; há ações que estão «engarrafadas». A instabilidade mundial que vivemos é bem conhecida por todos. Nos tempos recentes, são as guerras e as ameaças de conflito o que predomina nos nossos interesses e debates. E assim, perante a diversa gama de conflitos existentes, parece que as armas tenham adquirido uma preponderância de tal modo fora do comum, que acantonaram totalmente outras maneiras de solucionar as questões em liça. Esta preferência já está de tal modo enraizada e assumida, que impede a distribuição de alimentos nas zonas de guerra, chegando mesmo à violação dos princípios e diretrizes mais basilares do direito internacional, cuja vigência reCONTINUA NA PÁGINA 12 Estou contente por me encontrar convosco num clima simples e familiar, reflexo do estilo que anima a vossa entrega ao serviço de tantos irmãos nossos, que hoje encontram em vós um dos rostos solidários da humanidade. Quero também lembrar os vossos colegas que, espalhados por todo o mundo, colaboram com o Programa Alimentar Mundial. A todos vós, obrigado pela calorosa amizade e as boasvindas. A Senhora Diretora Executiva explicou-me a importância do trabalho que realizais com grande competência e não poucos sacrifícios, de forma generosa, mesmo em situações duras e muitas vezes inseguras por causas naturais ou humanas. A amplitude e gravidade dos problemas enfrentados pelo Pam exigem-vos que prossigais colocando entusiasmo em tudo o que fazeis, sem vos poupardes, sempre prontos a servir. Para isso, conta muito a Os povos da fome interpelam os da opulência Distância dramática GUALTIERO BASSETTI á uma dramática distância entre aqueles países, sobretudo do mundo ocidental, onde assistimos a uma proliferação contínua dos direitos individuais, por vezes confundidos com desejos e novas necessidades, e aquelas nações, sobretudo da Ásia e da África, onde ao contrário, está ausente até o direito mais elementar à vida: ter pão para poder viver. Há pouco mais de um mês, fiz uma visita ao Malavi. Com efeito, há cerca de trinta anos a diocese de Perúsia desenvolveu uma relação de solidariedade com a diocese de Zomba que levou à construção de dois hospitais, dispensários de saúde, cinco creches e um politécnico. O Malavi é um dos países mais pobres do mundo, onde dez por cento da população é soropositiva e onde, no passado mês de abril, no silêncio da opinião pública mundial, foi declarado o estado de catástrofe natural. Há mais de um ano uma terrível seca, que atinge também as nações confinantes — Moçambique, Zimbabue, Zâmbia — está a atormentar a vida daqueles países. À espera que cheguem as ajudas humanitárias das Nações Unidas, a vida de muitas pessoas está em perigo e as populações que vivem nos territórios internos do Malavi correm o risco de morrer de fome. Não se trata de uma metáfora ou de um jogo de palavras. É a dramática realidade: morrer de fome. «Os povos da fome interpelam hoje de modo dramático os povos da opu- H lência» escreveu Paulo VI na Populorum progressio. Depois de quase cinquenta anos aquele apelo ainda é válido, interroga-nos profundamente. Hoje cerca de oitocentos milhões de pessoas, em todo o mundo, continuam a sofrer a fome. Na homilia do Corpus Christi, o Papa Francisco recordou «os santos e as santas que “se partiram” a si mesmos, a própria vida, para “dar de comer” aos irmãos». Eis que ajudar estas populações que estão a morrer de fome, «oferecer-lhes os poucos pães e peixes que temos; receber o pão partido pelas mãos de Jesus e distribuí-lo a todos» é um caminho para a santidade. É quanto nos ensina, por exemplo, uma santa da nossa época que pude conhecer pessoalmente: madre Teresa de Calcutá. Em 1979, a fundadora das missionárias da caridade, falando por ocasião da atribuição do prémio Nobel da paz, disse diante de uma plateia silenciosa e admirada: «Não sei se alguma vez vistes a fome. Eu vi-a muitas vezes». E depois contou uma experiência comovedora na qual se encontrou a ajudar, dando um pouco de arroz, uma família hindu e uma muçulmana. A fome, como nos ensina a madre Teresa, não tem cor, raça nem religião. Pode atingir qualquer um. Eu pertenço à geração de italianos que depois do fim da segunda guerra mundial viveu literalmente «a fome». E tenho uma recordação clara do que significa não ter comida. Não podemos CONTINUA NA PÁGINA 13 formação permanente, uma intuição perspicaz e sobretudo um grande sentido de compaixão, sem o qual tudo o mais careceria de força e razão de ser. O Pam depositou nas vossas mãos uma alta missão. O bom êxito da mesma depende em grande parte de não se deixar vencer pela inércia, mas pôr em tudo capacidade de iniciativa, imaginação e profissionalismo, a fim de procurar cada dia vias novas e eficazes para vencer a subalimentação e a fome que sofrem muitos seres humanos em várias partes do mundo. São eles que nos pedem para lhes prestarmos a nossa atenção. Por isso, é importante que não vos deixeis sufocar pelos dossiês e consigais descobrir que, por trás de cada folha, há uma história particular, muitas vezes dolorosa e delicada. O segredo é ver, por trás de cada expediente, um rosto humano que pede ajuda. Ouvir o grito do pobre permitir-vos-á que não vos fecheis em frios formulários. Tudo é pouco para derrotar um fenómeno assim terrível como a fome. Esta é uma das maiores ameaças à paz e a uma serena convivência humana. Uma ameaça que não podemos contentar-nos apenas com denunciá-la ou estudá-la; é preciso enfrentá-la com decisão e resolvê-la urgentemente. Cada um de nós, segundo a respetiva responsabilidade, deve agir na medida das próprias possibilidades a fim de se alcançar uma solução definitiva para a miséria humana que degrada e corrói a existência de um número enorme de nossos irmãos e irmãs. E, na hora de ajudar aqueles que cruelmente a padecem, ninguém é demais nem pode li- mitar-se a apresentar uma desculpa, pensando que é um problema que o ultrapassa ou não lhe diz respeito. O desenvolvimento humano, social, técnico e económico é o caminho obrigatório para garantir que cada pessoa, família, comunidade ou povo possa enfrentar as próprias necessidades. Isto diz-nos que devemos trabalhar, não por uma ideia abstrata nem por uma defesa teórica da dignidade, mas por tutelar a vida concreta de cada ser humano. Nas áreas mais pobres e deprimidas, isso significa dispor de comida em caso de emergências, mas também possibilitar o acesso a meios e instrumentos técnicos, a postos de trabalho, ao microcrédito, e assim procurar que a população local reforce a sua capacidade de resposta a crises que possam improvisamente surgir. Quando digo isto, não me refiro apenas às questões materiais. Trata-se, antes de mais nada, de um compromisso moral que permita olhar com responsabilidade para a pessoa que tenho ao meu lado, bem como para o objetivo geral de todo o Programa. Vós sois chamados a sustentar e defender este compromisso através de um serviço que poderia, mas só à primeira vista, parecer puramente técnico. Ao contrário, o que realizais são ações que precisam de uma grande força moral a fim de contribuir para a edificação do bem comum em cada país e em toda a comunidade internacional. Face a tantos desafios, perante os perigos e problemas que surgem continuamente, fica-se com a impressão de que o futuro da humanidade consistirá apenas em dar resposta a provas e riscos cada vez mais interligados e difíceis de prever tanto na sua amplitude como na sua complexidade. Bem o sabeis por experiência própria. Mas isto não nos deve desanimar. Animai-vos e ajudai-vos uns aos outros para não deixardes entrar no vosso coração a tentação do desânimo ou da indiferença. Ao contrário, acreditai firmemente que a ação diária de todos vós está a contribuir para transformar o nosso mundo num mundo com rosto humano, num espaço cujos pontos cardeais sejam a compaixão, a solidariedade, a ajuda mútua e a gratuidade. Quanto maior for a vossa generosidade, a vossa tenacidade, a vossa fé, tanto mais a cooperação multilateral poderá encontrar soluções adequadas para os problemas que muito nos preocupam, ampliar perspetivas parciais e interessadas e abrir novos caminhos à esperança, a um equitativo desenvolvimento humano, à sustentabilidade e à luta por conter as desigualdades económicas injustas que tanto ferem os mais vulneráveis. Sobre cada um de vós, vossas famílias e o trabalho que desempenhais no Pam, invoco abundantes bênçãos divinas. Peço-vos que rezeis por mim, cada um no seu íntimo, ou pelo menos, quando pensardes em mim, que o façais de modo positivo. Preciso muito disso. Obrigado! L’OSSERVATORE ROMANO página 12 quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 Visita ao Programa alimentar mundial Há necessidade de sonhadores Há necessidade de sonhadores para concretizar o objetivo de erradicar a fome do planeta, porque por detrás da palavra «fome» escondem-se o sofrimento e a morte de milhões de pessoas. O Papa Francisco fez-se voz de tantos rostos anónimos de homens e mulheres de todas as línguas, culturas, nacionalidades, que têm em comum o drama de viver na própria pele as consequências da fome. Não podia haver ocasião melhor da visita ao Programa alimentar mundial (Pam) das Nações Unidas, realizada na manhã de segunda-feira 13 de junho, na sede geral da agência em Roma. Trata-se da primeira vez que um Pontífice visita o Pam. E este encontro acontece no ano em que a agência internacional começa o trabalho para alcançar os dezassete objetivos de desenvolvimento sustentável que encontraram de acordo todos os Estados-membros das Nações Unidas. Em particular, no centro dos esforços está o objetivo «fome zero» até 2030. Um compromisso que exige não só recursos materiais mas também humanos. Precisamente para recordar as tantas pessoas que pagaram até com a vida o desempenho da sua missão, foi colocado na entrada da sede da agência o «muro da memória». Uma espécie de lápide com os nomes gravados de quem deu a vida durante o serviço ao Pam. O Papa parou diante do muro, enquanto duas crianças — Amal Johan, de seis anos, e Lorenzo Benedetti, de sete — lhe ofereceram composições floreais que depois colocaram aos pés da lápide. Recebido por monsenhor Chica Arellano, observador permanente junto das organizações e organismos das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura, por Ertharin Cousin, diretora executiva, e por Stephanie Hochstetter Skinner-Klée, presidente do conselho de administração do Pam, o Papa saudou os ministros de quatorze Estados e organismos internacionais: Andorra, Argentina, Burquina Faso, Chade, República Democrática do Congo, El Salvador, Etiópia, União europeia, França, Gâmbia, República do Quirguistão, Lesoto, Somália e Sudão do Sul. Depois dialogou com o diretor executivo, Ramiro Armando de Oliveira Lopes da Silva, e com o presidente do conselho de administração. No final o Pontífice assinou o livro de honra do Pam. Antes de entrar no Auditorium para saudar a assembleia, encontrou-se com alguns membros da comunidade «Zero Hunger». Não se acostumar com a fome CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 10 monta a muitos séculos atrás. Encontramo-nos assim perante um fenómeno estranho e paradoxal: enquanto as ajudas e os planos de desenvolvimento se veem obstaculizados por intrincadas e incompreensíveis decisões políticas, por tendenciosas visões ideológicas ou por insuperáveis barreiras alfandegárias, as armas não; não importa a sua origem, circulam com uma liberdade jactanciosa e quase absoluta em muitas partes do mundo. E assim nutrem-se as guerras, não as pessoas. Nalguns casos, usa-se a própria fome como arma de guerra. E as vítimas multiplicam-se, porque o número das pessoas que morrem de fome e depauperação soma-se ao dos combatentes que morrem no campo de batalha e a tantos civis mortos nos conflitos e nos atentados. Temos plena consciência disto, mas deixamos que a nossa consciência se anestesie tornando-se desta forma insensível, porventura recorrendo a palavras para se justificar (tais como: não se pode enfrentar tantas tragédias) que é a anestesia mais grave. Assim, a força transforma-se no nosso único modo de agir; e o poder, no objetivo perentório a alcançar. As populações mais frágeis não só padecem os conflitos bélicos, mas ainda veem travado todo o tipo de ajuda. Por isso, urge desburocratizar tudo quanto impeça que os planos de ajuda humanitária alcancem os seus objetivos. Nisto, vós tendes um papel fundamental porque precisamos de verdadeiros heróis capazes de abrir sendas, lançar pontes, simplificar procedimentos de modo que o acento seja posto no rosto de quem sofre. Para esta meta se devem orientar igualmente as iniciativas da comunidade internacional. Não é questão de harmonizar interesses, que permanecem ancorados a visões nacionais centrípetas ou a egoísmos inconfessáveis. Tratase, antes, de que os Estados membros incrementem decididamente a sua vontade real de cooperar para estes fins. Por esta razão, será muito importante que a vontade política de todos os países membros consinta e incremente decididamente a vontade efetiva de cooperar com o Programa Alimentar Mundial, para que este possa não só responder às urgências, mas também realizar projetos sólidos e consistentes e promover programas de desenvolvimento a longo prazo, segundo as solicitações de cada um dos governos e de acordo com as necessidades dos povos. Com a sua trajetória e atividade, o Programa Alimentar Mundial demonstra que é possível coordenar conhecimentos científicos, decisões técnicas e ações práticas com os esforços destinados a mobilizar recursos e a distribuí-los equitativamente, isto é, respeitando as exigências de quem os recebe e a vontade do doador. Este método pode e deve garantir, nas áreas mais deprimidas e pobres, o adequado desenvolvimento das capacidades locais e eliminar gradualmente a dependência externa, consentindo ao mesmo tempo de reduzir a perda de alimentos, para que nada se desperdice. Numa palavra, o PAM é um válido exemplo de como se pode trabalhar em todo o mundo para erradicar a fome através de uma melhor atribuição dos recursos humanos e materiais, fortalecendo a comunidade local. Neste sentido, encorajovos a prosseguir. Não vos deixeis vencer pelo cansaço (que é tanto), nem permitais que as dificuldades vos façam desistir. Acreditai naquilo que fazeis e continuai a fazê-lo com entusiasmo, que é o modo como pode germinar com força a semente da generosidade. Permiti-vos o luxo de sonhar. Precisamos de sonhadores que façam avançar estes projetos. Fiel à sua missão, a Igreja Católica quer trabalhar em concertação com todas as iniciativas que visam a salvaguarda da dignidade das pessoas, especialmente de quantas estão feridas nos seus direitos. Para se tornar realidade esta prioridade urgente da «fome zero», assegurovos todo o nosso apoio e sustentáculo para favorecer todos os esforços empreendidos. «Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber». Nestas palavras, temos uma das máximas do cristianismo; mas esta frase, independentemente de credos e convicções, poderia ser oferecida como regra de ouro para os nossos povos: tanto para um povo, como para a humanidade inteira. A humanidade joga o seu futuro na capacidade que tem de assumir a fome e a sede dos seus irmãos. Nesta capacidade de socorrer o faminto e o sedento, podemos medir o pulso da nossa humanidade. Por isso desejo que a luta para erradicar a fome e a sede dos nossos irmãos, e juntamente com os nossos irmãos, continue a interpelar-nos; que não nos deixe dormir e nos faça sonhar (as duas coisas juntas); que nos interpele para se buscar criativamente soluções de mudança e transformação. E que Deus Todo-Poderoso sustente com a sua bênção o trabalho das vossas mãos. Obrigado! No auditorium a presidente Hochstetter Skinner-Klée abriu oficialmente a assembleia especial da sessão anual da junta executiva do organismo. Na saudação de boas-vindas disse que a presença do Pontífice é um sinal inestimável do seu apoio à causa do Pam. A presidente renovou também o compromisso de todos os funcionários em relação a quantos sofrem a fome, com a promessa de continuar a fazer o máximo a fim de erradicar este drama do mundo. Em seguida, também a diretora executiva Cousin dirigiu ao Papa uma breve saudação, na qual frisou que o planeta possui os alimentos, o conhecimento, a capacidade e as competências não só para fazer face aos desafios da insegurança alimentar e da subalimentação, mas para pôr fim à fome. O que serve, acrescentou, é a necessária vontade pública global de enfrentar com urgência esta grande falência na humanidade comum. No final do discurso, Cousin ofereceu ao Papa um desenho, obra de um jovem do Sri Lanka. Por sua vez o Pontífice ofereceu um medalhão de bronze que representa São Martinho no gesto de doar parte do seu manto a um pobre. Antes de se deslocar ao «jardim da paz» para saudar as crianças da creche com os seus pais e com os empregados do Pam, o Papa encontrou-se com alguns funcionários que testemunham as dificuldades e o espírito de sacrifício requeridos durante as missões. Jok Kuol, do Sudão do Sul, de religião católica, trabalha desde há onze anos no Pam. É um assistente logístico e está comprometido no projeto «Less». Quando era criança beneficiou das refeições fornecidas às escolas do Pam, e do mesmo modo, pôde alimentar-se quando era refugiado no campo Dadaab no Quénia. Alessandra Piccolo, ao contrário, é uma jovem italiana que começou a trabalhar com o Pam como estagiária. Desempenhou serviço na República Centro-Africana durante a recente crise e no Nepal depois da emergência do terramoto. Sara Adam, somali, chefia o desenvolvimento comercial das transferências em numerário e do apoio local. Trabalha na sede geral, e o seu marido, Jakob Kern, é também ele membro do Pam e está ativo na Síria. Durante a visita o Papa foi acompanhado entre outros, pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, pelos arcebispos Angelo Becciu, substituto da Secretaria de Estado, Paul Richard Gallagher, secretário para as relações com os Estados, e Georg Gänswein, prefeito da Casa Pontifícia. número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 13 À Comunhão mundial das Igrejas reformadas o Papa falou da missão de unidade dos cristãos Como ânforas que matam a sede Um novo convite a caminhar «rumo à meta da unidade dos cristãos» foi dirigido pelo Papa Francisco a uma delegação de representantes da Comunhão mundial das Igrejas reformadas, recebida em audiência na manhã de 10 de junho, na biblioteca do Palácio apostólico. Estimados irmãos e irmãs! É de coração que vos dou as boasvindas e agradeço a vossa visita: «Graça e paz a vós da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo!» (1 Cor 1, 3). Estou grato em particular ao Senhor Secretário-Geral pelas suas palavras. O nosso encontro de hoje é um passo ulterior do caminho que caracteriza o movimento do ecumenismo; um caminho abençoado e repleto de esperança, ao longo do qual nós procuramos viver cada vez mais em conformidade com a oração do Senhor, «para que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Já passaram dez anos desde que uma delegação da Aliança Mundial das Igrejas Reformadas visitou o Distância dramática CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 10 nem devemos esquecer isto. A indiferença e o silêncio dos meios de comunicação é, de facto, um dos aspetos piores desta chaga. «A maior miséria não é a fome ou a lepra — dizia sempre a madre Teresa — mas a sensação de ser indesejável, rejeitado, abandonado por todos». Não podemos esquecer aquelas pessoas que João Paulo II chamava os «derrotados da vida» e daquelas vítimas inocentes da «cultura do descarte», como repete hoje o Pontífice. Neste ano jubilar devemos sentir-nos mais participantes das necessidades destas pessoas que, para viver, aliás, para sobreviver, contam com a ajuda fundamental de todos os que praticam as obras de misericórdia. Sabem-no bem as dezenas de voluntários que todos os anos vão a Zomba e que, experimentando a importância e a eficácia da solidariedade humana, regressam a casa com uma hierarquia de valores e prioridades absolutamente diversa da que tinham quando partiram. Por conseguinte, os desejos que se transformam em direitos na sociedade do consumo estão dramaticamente distantes do profundo significado da vida que se pode sentir nestas missões. Chegou à minha mesa uma mensagem que sintetiza esta situação: «Há quem tem tudo e chora por uma coisa que não conseguiu obter. E há quem nada possui, mas sorri e agradece todos os dias pela coisa mais preciosa de que dispõe: a vida». meu predecessor, Papa Bento XVI. Entretanto, a histórica unificação entre o Conselho Ecuménico Formado e a Aliança Mundial das Igrejas Reformadas, que teve lugar em 2010, ofereceu um exemplo tangível de progresso rumo à meta da unidade entre os cristãos, e serviu de encorajamento para muitos no caminho do ecumenismo. Hoje devemos dar graças a Deus sobretudo pela nossa fraternidade reencontrada que, como escrevia são João Paulo II, «não é a consequência de um filantropismo liberal nem de um vago espírito de família, mas está enraizada no reconhecimento do único Batismo e na consequente exigência de que Deus seja glorificado na sua obra» (cf. Carta Encíclica Ut unum sint, 42). É nesta comunhão espiritual que católicos e reformados podem promover um crescimento comum, para servir melhor o Senhor. Um motivo específico de gratidão é a recente conclusão da quarta fase do diálogo teológico entre a Comunhão Mundial das Igrejas Reformadas e o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, sobre o tema A justificação e a sacramentalidade: a comunidade cristã como promotora de justiça. É-me grato constatar que o relatório final evidencia oportunamente o vínculo necessário entre a justificação e a justiça. Com efeito, a nossa fé em Jesus impele-nos a viver a caridade através de gestos concretos, capazes de incidir sobre o nosso estilo de vida, sobre os nossos relacionamentos e sobre a realidade que nos circunda. Com base no acordo acerca da doutrina da justificação, existem numerosos setores em que reformados e católicos podem colaborar para dar um testemunho comum do amor misericordioso de Deus, verdadeiro antídoto contra o sentido de desorientação e à indiferença que nos parecem circundar. Efetivamente, hoje experimentamos com frequência uma «desertificação espiritual». Sobretudo onde se vive como se Deus não existisse, as nossas comunidades cristãs são chamadas a ser «ânforas» que dessedentam com a esperança, presenças capazes de inspirar fraternidade, encontro, solidariedade, amor genuíno e abnegado (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 86-87); elas têm o dever de acolher e reavivar a graça de Deus, sem se fechar em si mesmas mas abrindo-se à missão. Com efeito, não é possível comunicar a fé vivendo-a de maneira isolada ou em grupos fechados e separa dos, numa espécie de falsa autonomia e de imanentismo comunitário. Se agirmos assim não seremos capazes de saciar a sede de Deus que nos interpela e que sobressai também de múltiplas e novas formas de religiosidade. Às vezes, elas correm o risco de secundar o isolamento em nós mesmos e nas nossas necessidades, favorecendo uma forma de «consumismo espiritual». Portanto, se os homens do nosso tempo «não encontrarem... uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, e ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus» (cf. ibid., n. 89). Há urgente necessidade de um ecumenismo que, juntamente com o esforço teológico em vista de recompor as controvérsias doutrinais entre os cristãos, promova uma comum missão de evangelização e de serviço. Indubitavelmente, já existem numerosas iniciativas e boas colaborações em vários lugares. Mas todos nós podemos fazer ainda mais, juntos, para dar um testemunho vivo «a todo aquele que nos perguntar a razão da nossa esperança» (cf. 1 Pd 3, 15): transmitir o amor misericordioso do nosso Pai, que recebemos de graça e, generosamente, somos chamados a dar de graça. Caros irmãos e irmãs, enquanto vos renovo a minha gratidão pela vossa presença e pelo vosso compromisso ao serviço do Evangelho, manifesto o desejo a fim de que este encontro constitua um sinal eficaz da nossa determinação perseverante a caminhar juntos em peregrinação rumo à plena unidade. O nosso encontro comum possa animar todas as comunidades reformadas e católicas a continuar a trabalhar unidas para transmitir o júbilo do Evangelho aos homens e às mulheres do nosso tempo. Deus vos abençoe! Instituído pelo Pontífice Um comité distribuirá fundos da coleta para a Ucrânia O Papa Francisco dispôs a instituição de um comité encarregado da distribuição dos fundos angariados com a coleta que ele mesmo estabeleceu para a Ucrânia no domingo, 24 de abril, em todas as igrejas europeias. Foi o conteúdo da carta enviada recentemente pelo cardeal secretário de Estado Pietro Parolin a D. Jan Sobiło, bispo auxiliar de Kharkiv-Zaporizhia, nomeado ao mesmo tempo presidente do comité. A ação humanitária — denominada «o Papa pela Ucrânia» — foi promovida depois dos trágicos eventos bélicos na Ucrânia oriental, a favor das populações atingidas ou refugiadas noutras partes do país. Para apoiar esta ação o Papa ofereceu também a sua contribuição pessoal. O dinheiro obtido da coleta destina-se «exclusivamente ao benefício da população vítima da guerra, sem distinção de religião, confissão ou pertença étnica». Precisamente para providenciar a distribuição dos fundos, o Papa decidiu constituir in loco um comité «técnico», composto por um presidente e quatro membros. O presidente nomeará três dos membros, enquanto um será indicado de comum acordo pela Caritas internationalis e pelo Pontifício Conselho Cor unum. O mandato do comité será de um ano, renovável se for necessário. A sede será na cúria da diocese de Kharkiv-Zaporizhia e os agentes serão todos voluntários, a fim de que os fundos recolhidos sejam efetivamente em vantagem das populações atingidas. Depois, importantes as indicações da carta sobre a escolha das intervenções a realizar: as propostas deverão vir antes de tudo «das assembleias inter-religiosas ou interconfessionais existentes em cada área ou de cada bispo, inclusive não católicos, onde não existirem tais assembleias». Contudo, poderão ser examinadas também propostas provenientes de outras organizações. Tratando-se de uma iniciativa pessoal do Papa, são referentes últimos do projeto a Secretaria de Estado e o Pontifício Conselho Cor unum, que terá a supervisão «técnica» da atuação, através da nunciatura apostólica na Ucrânia. L’OSSERVATORE ROMANO página 14 quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 Missas matutinas em Santa Marta Quinta-feira 9 de junho A santidade da negociação É preciso viver «a santidade pequenina da negociação», ou seja, aquele «realismo sadio» que «a Igreja nos ensina»: isto é, trata-se de rejeitar a lógica do «isto ou nada» e de empreender o caminho do «possível» para nos reconciliarmos com os outros. Com uma pequena nota de ternura: durante a homilia uma criança começou a chorar, mas Francisco imediatamente tranquilizou os pais: «Não vos preocupeis, porque a pregação de uma criança na igreja é mais bonita do que a do sacerdote, do bispo e do Papa. Deixai estar: deixai-a chorar, porque é a voz da inocência que faz bem a todos nós». Para a sua reflexão, o Papa inspirou-se no excerto do Evangelho de Mateus (5, 20-26), proposto pela liturgia: «Jesus está no meio do seu povo e ensina aos discípulos, ensina a lei do povo de Deus». Com efeito, «Jesus é o legislador que Moisés tinha prometido: “Virá alguém depois de mim...”». Portanto, ele é «o verdadeiro legislador, aquele que nos ensina como deve ser a lei para sermos justos». Mas «o povo estava um pouco desorientado, confuso, porque não sabia o que fazer e aqueles que ensinavam a lei não eram coerentes». E é o próprio Jesus quem lhes diz: «Fazei o que dizem, mas não o que fazem». De resto, «não eram coerentes na sua vida, não eram um testemunho de vida». Assim «Jesus, neste trecho do Evangelho, fala sobre superar: “A vossa justiça deve superar a dos escribas e dos fariseus”». Portanto, «a este povo um pouco prisioneiro desta gaiola sem saída, Jesus indica o caminho para sair: sempre sair por cima, superar, ir além». E nesta direção, explicou Francisco, Jesus «cita como primeiro exemplo — cita muitos, não? — o primeiro mandamento: amar a Deus e amar ao próximo: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás, um dos mandamentos de amor ao próximo, “Mas eu digo-vos: todo aquele que se irar contra seu irmão será castigado pelos juízes. Aquele que disser a seu irmão: Raca, será castigado pelo Grande Conselho. Aquele que lhe disser: Louco, será condenado ao fogo da Geena”». Substancialmente, Jesus afirma que «é pecado não só matar», mas também «insultar e ofender» o irmão. E «faz bem ouvir isto», acrescentou o Papa, precisamente «neste tempo em que estamos tão acostumados aos qualificativos e usamos um vocabulário muito criativo para insultar os outros». Por conseguinte, também ofender «é pecado, é matar». Porque «é dar uma bofetada na alma do irmão, na dignidade própria do irmão», pronunciar algo como: «não te importes, este é um louco, um estúpido», e «muitos outros palavrões que dizemos, com muita caridade, aos outros». Isto, repetiu o Pontífice, «é pecado». Francisco observou que «Jesus resolve» as dúvidas «deste povo deso- O embaixador da Malásia apresentou as credenciais Na manhã de quinta-feira 9 de junho, o Papa Francisco recebeu em audiência Sua Ex.cia o Sr. Tan Sri Bernard Giluk Dompok, novo embaixador da Malásia, para a apresentação das cartas com as quais foi acreditado junto da Santa Sé Sua Ex.cia o Senhor Tan Sri Bernard Giluk Dompok, novo embaixador da Malásia junto da Santa Sé, nasceu em Penompang, Kota Kinabalu, Sabah, a 7 de outubro de 1949. Formado em administração do território (University of East London Bsc., 1978), e académico na Royal Institution Chartered Surveyors (FRICS), desempenhou os seguintes cargos: avaliador, departamento do Território & Sondagem, Sabah (1978-1980); ministro das Finanças do Estado de Sabah (1985 — maio 1990); ministro da Agricultura e Pesca do Estado de Sabah (julho 1990 — 1992); ministro no departamento do primeiro-ministro da Malásia (agosto 1994 — 1995); ministro do Turismo do Estado de Sabah (1995-1998); primeiro-ministro do Estado de Sabah (1998-1999); ministro do departamento do primeiro-ministro da Malásia (1999-2008); ministro das Plantações e Produtos básicos (2008-2013); presidente do Penampang Community College (2014-2016); presidente do Instituto para o Progresso económico indígena (1994-2003); presidente do Centro de formação juvenil Montfort (desde 1999 até hoje); presidente do Fundo para a tutela do Bornéu (desde setembro de 2013 até hoje), consultor, Instituto para o Progresso económico indígena (desde 2004 até hoje); patrocinador, Federação do Conselho das Escolas missionárias da Malásia. rientado e prisioneiro olhando para cima: a lei. E vai além, vincula o comportamento do povo com a adoração a Deus e diz: “Se vais ao altar a oferecer um dom e tens um problema com o irmão, ou o irmão há algo contra de ti, vai antes ter com o irmão, reconcilia-te”». Isto «é superar a lei e o que diz é uma justiça superior à dos escribas e dos fariseus». «Quantas vezes na Igreja ouvimos isto, quantas vezes!» constatou o Papa, recordando que não é raro ouvir frases do tipo: «Mas aquele sacerdote, aquele homem, aquela mulher da ação católica, aquele bispo, aquele Papa dizem-nos “deves fazer assim!” e ele mesmo faz o contrário». Isto é precisamente «o escândalo que fere o povo e não deixa que o povo de Deus cresça, que progrida. Não liberta». Também «aquele povo — prosseguiu — tinha visto a rigidez de escribas e fariseus», a ponto que «quando vinha um profeta que lhes dava um pouco de alegria perseguiam-no e até o matavam: não havia lugar para os profetas ali». Por esta razão «Jesus diz aos fariseus: “Matastes os profetas, perseguistes os profetas: aqueles que traziam o ar puro”». Jesus, «como disse na sinagoga de Nazaré, veio para nos trazer o ano de graça, a libertação, a verdadeira libertação: a de Jesus». Para Francisco, «a generosidade, a santidade é sair mas sempre sempre se elevando: sair elevandose» Esta «é a libertação da rigidez da lei e também dos idealismos que não nos fazem bem». «Jesus conhece-nos muito bem — explicou o Papa — e conhece o modo como fomos criados porque ele é o criador, conhece a nossa natureza». Eis que nos sugere: «Se tens um problema com um irmão — diz a palavra “adversário” — procura pacificar-te». Assim o Senhor «ensinanos também um realismo sadio: muitas vezes não podes chegar à perfeição, mas pelo menos faz o que for possível, procura um acordo para não chegar ao tribunal». É este o «realismo sadio da Igreja católica: ela nunca ensina “isto ou aquilo”». «A Igreja diz: “isto e isto”». Resumindo, «cria a perfeição: reconciliate com o teu irmão, não o insultes, ama-o, mas se houver algum problema pelo menos encontra um acordo de modo que não expluda a guerra«. Eis o «realismo sadio do catolicismo». Ao contrário «não é católico mas herético» dizer: «ou isto ou nada». «Jesus — garantiu Francisco — sabe sempre caminhar connosco, dános o ideal, acompanha-nos rumo ao ideal, liberta-nos desta prisão da rigidez da lei e diz-nos: “Fazei até ao ponto que podeis chegar”. E ele compreende-nos bem». Este «é o nosso Senhor, aquele que nos ensina» dizendo-nos: «Por favor, não vos insulteis nem sejais hipócritas: ides louvar a Deus com a mesma linguagem com a qual insultais o irmão? Não, isto não se faz, mas fazei o que podeis pelo menos para evitar a guerra entre vós, encontrai um acordo». E, acrescentou o Papa, «permito-me dizer esta palavra que parece um pouco estranha, é a santidade pequena da negociação: não posso tudo, mas quero fazer tudo, então faço um acordo contigo, pelo menos não nos insultemos, não façamos a guerra e vivamos todos em paz». «Jesus é grande — disse o Pontífice na conclusão — e liberta-nos de todas as nossas misérias, inclusive daquele idealismo que não é católico». Por isso «peçamos ao Senhor que nos ensine, primeiro, a sair de qualquer rigidez, mas sair por cima, a fim de poder adorar e louvar a Deus; que nos ensine a reconciliarnos entre nós; e também, que nos ensine a pôr-nos de acordo até ao ponto que o possamos fazer». Sexta-feira 10 de junho De pé em silêncio, em saída Os cristãos estão «de pé» para acolher Deus, em paciente «silêncio» para ouvir a sua voz e «em saída» para o anunciar aos outros, conscientes de que a fé é sempre «um encontro». Estas três atitudes encorajam e relançam a vida de quantos se sentem subjugados pelo medo nos momentos mais difíceis. «Nós sabemos que a fé não é uma teoria, nem sequer uma ciência: é um encontro», disse Francisco logo no início da homilia. A fé «é um encontro com Deus vivente, com o Deus vivo, com o Criador, com o Senhor Jesus, com o Espírito Santo, é um encontro». Assim, explicou, na primeira leitura, tirada do primeiro livro dos Reis (19, 9.11-16) «ouvimos o encontro do profeta Elias com Deus». E «o profeta Elias tem uma longa história, é um vencedor: lutou muito pela fé, porque o povo de Israel se tinha afastado da fidelidade». Ainda mais, acrescentou o Papa, «para usar uma palavra do Evangelho, também Jesus o diz ao povo de Israel, tinha-se tornado uma “geração adúltera”: por um lado queria adorar Deus e por outro os ídolos». E há «uma expressão que o profeta Elias diz ao povo: “até quando coxeareis sobre os dois pés?”». Usa precisamente a imagem do «coxear com os dois pés: não estar parados nem com Deus nem com os ídolos, ter os pés em dois barcos, como nós dizemos, na linguagem diária, “estar de bem com Deus e com o diabo”». «Elias lutou tanto contra esta situação do povo e venceu: venceu uma luta forte contra os quatrocentos profetas dos ídolos, venceu-os no monte Carmelo e matou-os todos com a força de Deus: ele é o vencedor». Mas depois Elias «desceu do monte e ouviu a notícia de que a rainha Jezebel, mulher cruel e sem escrúpulos, o queria matar por isso, porque ela era idólatra». Então Elias «teve medo». Precisamente «ele, o vencedor, o grande, teve medo daquela mulher e foi-se embora: fugiu». Um medo que «o abate». A ponto que Elias se interroga porquê: «Fez tanto e no final sempre a mesma história: fugir e defender-me dos CONTINUA NA PÁGINA 15 número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 15 Missas em Santa Marta CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 14 idólatras». E assim parece que ele «não se reanima mais: melhor a morte, e entra em depressão profunda. Jaz por terra, à sombra de uma árvore, e deseja morrer; entra naquele sono que antecede a morte, o sono da depressão». Mas eis que «o Senhor envia o anjo despertá-lo: «Levanta-te! Come um pouco de pão e bebe um pouco de água”». E Elias obedece, mas «depois continua a dormir». O anjo «volta pela segunda vez» convidando-o de novo a levantar-se. E, quando está de pé, «chega outra palavra: “Sai!”». Por conseguinte, «para encontrar Deus é necessário voltar à situação na qual o homem se encontrava no momento da criação: de pé e a caminho». Porque «assim nos criou o Senhor: à sua altura, à sua imagem e semelhança, e a caminho». Com efeito, o Senhor diz: Vai, vai em frente, cultiva a terra, fála crescer, e multiplica-te». E disse também: «Sai, vai ao monte e permanece lá na minha presença». Eis que «Elias se pôs de pé e, uma vez em pé, sai». No Evangelho, em particular «na parábola do filho pródigo», encontra-se a mesma situação. É a realidade na qual se encontra precisamente aquele filho, «quando estava deprimido e observava os porcos que comiam bolotas e ele tinha fome». Naquele momento «pensou em seu pai e disse a si mesmo: “erguer-me-ei e irei” ter com meu pai». Repetem-se estas palavras: “levanta-te” e “sai”». Por conseguinte, Elias «subiu ao monte para encontrar o Senhor e eis que o Senhor passou». E «como passou o Senhor? Como passa o Senhor? Como posso encontrar o Senhor para ter a certeza que é ele?» perguntou Francisco, relendo a página do Antigo Testamento: «Antes de tudo houve um vento impetuoso e tão forte que derrubava tudo e despedaçava as rochas diante do Senhor, mas o Senhor não estava no vento». Por isso «o Senhor não estava naquele tumulto, naquela majestade, não estava». E ainda, «depois do vento, um terramoto, mas o Senhor não estava no terramoto; depois do terramoto, um fogo, mas o Senhor não estava no fogo». Elias «olhava, aguardava o Senhor: tanta confusão, tanta majestade, tanto movimento e o Senhor não estava ali». Finalmente, «depois do fogo, um sussurrar de uma brisa ligeira ou, precisamente como está no original, “o fio de um silêncio sonoro”. E o Senhor estava ali». «Para encontrar o Senhor é preciso entrar em nós mesmos e sentir aquele “fio de um silêncio sonoro”», porque «ele nos fala ali». E «o que acontece?». Encontramos a resposta naquele «vai!», porque o Senhor «nos dá a missão» como a Elias: «Coragem, volta aos teus passos, não tenhas medo da rainha, volta ao teu caminho, rumo ao deserto e ungirás um como um rei, outro como um rei e Eliseu como profeta teu sucessor». Para Elias «há a missão» a cumprir. E a missão de Elias sugere «três coisas claras». «Para ir ao encontro do Senhor, de pé e saindo de nós mesmos, a caminho», a primeira coi- sa clara é precisamente o estar «de pé e a caminho». O segundo aspeto é «ter a coragem de esperar aquele sussurro, aquele “fio de silêncio sonoro”, quando o Senhor fala ao coração e nos encontramos». O terceiro aspeto é a «missão». Um convite a voltar aos próprios passos para ir «em frente». Eis «a mensagem que este trecho da Escritura nos ensina hoje», afirmou Francisco, recordando: «Devemos procurar sempre o Senhor: todos nós sabemos como são os maus momentos, momentos que te fazem desanimar, sem fé, obscuros, nos quais não vemos o horizonte, não somos capazes de nos erguer, todos o sabemos!». Mas «é o Senhor que vem, nos restabelece com o pão e com a sua força e nos diz “levanta-te e vai em frente, caminha!”». Por isso, «para encontrar o Senhor devemos estar assim: de pé e a caminho»; depois «esperar que ele fale: coração aberto». E ele nos dirá “sou eu”; e nesse momento a fé fortalecese». Mas a fé «é para mim, para que eu a guarde? Não, deve ser levada a outros, para ungir os outros, para a missão». Por conseguinte, «de pé e a caminho; em silêncio para encontrar o Senhor; e em missão para levar esta mensagem, esta vida aos outros». É precisamente esta a vida do cristão, que podemos ver aqui, neste trecho do primeiro livro dos Reis». Ao concluir, o Pontífice rezou para que «o Senhor nos ajude sempre: ele está sempre pronto para nos ajudar a pormo-nos de pé». E mesmo se cairmos, devemos ter a força de nos «erguermos» para «estar a cami- nho, não fechados, não dentro do egoísmo do nosso conforto: ser pacientes, a fim de aguardar a sua voz e o encontro com ele e depois ser corajosos na missão e anunciar aos outros a mensagem do Senhor». Terça-feira 14 de junho O último degrau No caminho do cristão «não há lugar para o ódio»: se, como «filhos», os crentes quiserem «assemelhar-se ao Pai», não devem limitar-se à simples «letra da lei», mas viver cada dia o «mandamento do amor». Chegando até a «rezar pelos inimigos»: isto é ao «último degrau» ao qual é necessário subir para curar o «coração ferido pelo pecado». O Papa Francisco evidenciou que Jesus, invertendo a ideia de «próximo», veio para levar a lei à «plenitude». De facto, Jesus — disse — não «veio para cancelar a lei», culpa da qual foi acusado pelos seus inimigos, mas para «a levar à plenitude». Toda «até ao último jota». Com efeito, na época os doutores da lei davam-lhe «uma explicação demasiado teórica, casuísta». De facto, explicou o Pontífice, era uma visão «na qual não havia o coração próprio da lei, que é o amor» conce- Credenciais do embaixador do Senegal Na manhã de sexta-feira, 10 de junho, o Papa Francisco recebeu em audiência Sua Ex.cia o Sr. Léopold Diouf, novo embaixador do Senegal, para a apresentação das cartas com as quais foi acreditado junto da Santa Sé Sua Ex.cia o Senhor Léopold Diouf, novo embaixador do Senegal junto da Santa Sé, nasceu em Ndiongolor, em 1953. Formou-se em diplomacia (Centre d’Études Diplomatiques et Stratégiques — C.E.D.S. em Paris, 2002), e desempenhou os seguintes cargos: Professor de Letras modernas no Colégio Saint-Michel de Dakar (1972-1974); Tirocínio de Oficial de Polícia; Chefe da Polícia Judiciária e Comissário Adjunto de Ziguinchor (1975-1977); Chefe do Departamento de Regulamentação e da Polícia Judiciária junto da Secção da Segurança Pública (1977-1979); Tirocínio para Comissário de Polícia (1979-1980); Chefe da Segurança Urbana do Comissariado Central de Saint-Louis (1980-1984); Comissário circunscricional de Rebeuss (19841985); Comissário circunscricional de Pikine (1985-1987); Comissário Urbano de Ziguinchor (1987-1990); Comissário Central de Thiès (19901991); Comissário Central de Dakar (1991-1994); Comissário Central de Kaolack (1994-1998); Comissário Especial do Aeroporto Internacional Léopold Sédar Senghor (1998-2000); Diretor da Segurança Nacional (2000-2005); Diretor-Geral da Segurança Nacional (2005-2007); Primeiro Conselheiro de embaixada junto do Quirinal, Itália (2008-2011); Presidente do Conselho de Vigilância da Autoridade do Aeroporto Internacional Léopold Sédar Senghor de Dakar (2011-2012); e Embaixador na República da Guiné (2012 — março de 2016). dido por Deus «a nós». No centro já não havia o que no Antigo Testamento era «o maior mandamento» — ou seja «amar a Deus, com todo o coração, com todas as forças, com toda a alma, e o próximo como a ti mesmo» — mas uma casuística que só procurava compreender: «Podemos fazer isto? Até a que ponto se pode fazer isto? E se não pudermos?». Portanto, Jesus «inspirando-se nos mandamentos» procura recuperar «o verdadeiro sentido da lei para o levar à sua plenitude». Assim, por exemplo, em relação ao quinto mandamento, recorda: «Foi dito “não matarás”. É verdade! Mas se tu insultas o teu irmão, estás a matá-lo». Isto explica que «há muitas formas, tantas maneiras de matar». Assim «aperfeiçoa a lei». E ainda: «Se o teu irmão te pedir uma roupa, dálhe também o teu manto! E se ti pedir para caminhar um quilómetro com ele, caminha dois!». Isto é, Jesus — comentou o Papa — pede sempre algo «mais generoso», porque o «amor é mais generoso que a letra, que a letra da lei». Esta «obra» de aperfeiçoamento não serve só «para o cumprimento da lei, mas é um trabalho de cura do coração». Nos trechos evangélicos nos quais Jesus continua a explicação dos mandamentos, disse Francisco, «há um caminho de cura de um coração ferido pelo pecado original». E é um caminho proposto a todos, porque «todos nós temos o coração ferido pelo pecado, todos». E dado que Jesus recomenda que sejamos «perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste», para «nos assemelharmos ao Pai», para sermos deveras «filhos», devemos seguir precisamente «esta senda de cura». Retomando o trecho evangélico proposto pela liturgia tirado do Evangelho de Mateus (5, 43-48) — no qual Jesus recorda: «Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar o teu inimigo», mas acrescenta: «Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos!» — o Papa frisou que nesta estrada «não há lugar para o ódio». O nível eleva-se cada vez mais: Jesus primeiro «exorta-nos a doar mais aos nossos irmãos e amigos», agora também «aos nossos inimigos». Com efeito «o último degrau desta escada» rumo à cura traz consigo a recomendação: «Rezai pelos que vos perseguem». Um mandamento — «rezar pelos inimigos» — que nos pode desorientar, pois, «pela ferida que todos nós temos no coração», vem-nos naturalmente a vontade de desejar «alguma coisa de desagradável» a um inimigo que, por exemplo, fala mal de nós. Mas «Jesus diz-nos: “Não, não! Reza por ele e faz penitência por ele”». Neste sentido o Pontífice narrou que quando era jovem ouvia falar «de um dos grandes ditadores do mundo no período pós-guerra», do qual se dizia: «Que Deus o leve ao inferno o mais depressa possível!». Se do coração saía de maneira imediata este sentimento, o mandamento novo ao contrário exortava: «ReCONTINUA NA PÁGINA 16 L’OSSERVATORE ROMANO página 16 Três CD s quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 para ver o mundo Cardeal e músico MARCELLO FILOTEI música, antes de tudo, é um modo de olhar para o mundo. Ao abrir uma partitura a primeira sensação que temos é que o autor fez o melhor que pôde para nos deixar algo que nos diz respeito diretamente como seres humanos e indivíduos. Confrontar-nos com ele significa perscrutar o seu pensamento, tentando descobrir por que sen- A tiu a necessidade de escrever as suas ideias, confiando-as ao papel que temos diante de nós. Se quisermos executar deveras a música sem nos limitarmos a ordenar as notas uma depois da outra, primeiramente é preciso ter uma visão da existência, depois estudar a técnica e por fim procurar unir as duas coisas. O olhar do cardeal Lorenzo Baldisseri sobre a vida e os povos que conheceu, viajando pelo mundo, é Carreira paralela Será apresentada no dia 30 de junho em Roma e no mês de julho em Londres, uma confecção da Libreria Editrice Vaticana com três CD s musicais que propõem gravações de execuções de piano realizadas pelo cardeal Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do Sínodo dos bispos. Publicamos a apresentação contida na confecção inteiramente dedicada ao purpurado, natural de Barga, na província de Lucca (Itália). Baldisseri é doutor em Direito Canónico e obteve a Licenciatura em Teologia Dogmática. Límpida «voz branca», da qual existem algumas gravações, ele foi aluno de canto do maestro Amedeo Salvini (Pisa). Recebeu o bacharelado em Canto Gregoriano no Pontifício Instituto de Música Sacra (Pims) e, embora não tenha recebido o diploma, formou-se em piano com os seguintes maestros: Enzo Borlenghi (Isntituto Musical Luigi Boccherini, Lucca); Bruno Aprea (Pims); Vitória Alfaro (Paraguai); e, no Brasil, com Beatriz Salles, em Brasília, e com o diretor de Orquestra João Carlos Martins, em São Paulo. Gravou vários CD s, DVD s e apresentou vários concertos no Brasil, em Portugal e na Itália. Missa em Santa Marta CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 15 zai por ele». Certamente, acrescentou Francisco, é «mais fácil rezar por alguém que está distante, por um ditador afastado, que rezar por aquele que me insultou». E no entanto é precisamente isto que «Jesus nos pede». Temos vontade de perguntar: «Mas, Senhor, para que tanta generosidade?». Jesus dá-nos a resposta precisamente no trecho evangélico: «Deste modo sereis os filhos do vosso Pai no céu». Se deste modo «age o Pai», assim somos chamados a agir para ser «filhos». Isto é, esta «cura do coração», «leva-nos a tornar-nos filhos». E que faz o Pai? «Faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos» pois «é Pai de todos». Outra objeção: mas Deus é pai inclusive «daquele delinquente, daquele ditador?». A resposta é clara: «Sim é pai! Como é meu pai! Ele nunca nega a sua paternidade!». E se quisermos «assemelhar-nos» a ele, devemos caminhar «nesta vere- da». Com efeito, Jesus conclui o sermão dizendo: «Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai». Isto é, explicou o Pontífice, «é-nos proposto um caminho sem fim», porque «todos os dias devemos fazer algo assim». A tal propósito, Francisco sugeriu a todos «algo prático», ou seja, perguntar-se: «rezo pelos meus inimigos ou desejo-lhes alguma coisa desagradável?». São suficientes «cinco minutos, não mais» para me questionar: «Quem são os meus inimigos? Os que me fizeram mal? Os que eu não amo? Ou com os quais estou em desacordo? Quem são? Rezo por eles?». Cada um, acrescentou o Papa, «dê uma resposta». E concluiu: «Que o Senhor nos conceda a graça» de «rezar pelos inimigos; por quantos não gostam de nós; por quem nos feriu e nos persegue», com «nome e sobrenome». E veremos que esta oração dará dois frutos: ao nosso inimigo «fazendo-o melhorar, pois a oração é poderosa», e a nós «tornando-nos mais filhos do Pai». objetivo e compassivo, sem ser melífluo. Como homem sabe bem no que acreditar, sabe o que quer e tem uma ideia exata sobre a maniera de o realizar. Como músico não poderia ser diferente, ou não seria um músico. Nos três CD s que gravou nos últimos dez anos de atividade pianística vê-se um fio vermelho evidente: sentimento sim, sentimentalismo não. A atividade de núncio apostólico em países como Haiti, Paraguai, Índia, Nepal e Brasil ensinou-lhe, entre outras coisas, que em situações difíceis devemos oferecer uma esperança e um pedaço de pão. Um sem o outro não basta . E o mesmo acontece com a arte e, no específico, com a música. Portanto, não surpreende que o primeiro dos três CD s tenha início com o Prelúdio das Bachianas Brasileiras número 4 de Heitor Villa-Lobos, nas quais o compositor do Rio de Janeiro, de 1930 a 1945, uniu à música clássica elementos populares do seu país — o pão de cada dia — com o estilo rigoroso de Bach — a esperança perene. Rigor e impulso lírico: talvez um caso, mas de qualquer modo um sinal forte. E depois quiçá o caso nem exista. O primeiro florilégio pianístico, gravado em 2007, propõe autores famosos e outros menos conhecidos como Michal Kleofás Oginski, político e compositor polaco que viveu dos meados de 1700 às primeiras décadas de 1800, falecido em Florença onde se retirou depois de várias vicissitudes. E precisamente na interpretação da sua Polaca número 13 em la menor, que tem como subtítulo «despedida da Pátria», começa-se a sentir um pouco de nostalgia. Aquela melancolia subtil de quem está distante das próprias origens, num lugar que ama, do qual compartilha muito, que tenta fazê-lo próprio, mas que não é a sua casa. O primeiro CD dá a impressão de uma viagem contínua. Começando pelos dois extratos da Suite española de Isaac Albéniz, Granada e Astúrias, pensados precisamente para descrever as diversas regiões ibéricas e os respectivos estilos musicais. E ao lado do arrebatamento espanhol, por contraste, apresentam-se as reflexivas Gnossienne, de Erik Satie, a primeira e a quarta, onde a própria ausência de indicações de tempo metronómico proporciona ao executante uma grande liberdade. Baldisseri usa-a toda, restituindo um andamento quase hierático, uma direção exata, mas deixando as melodias completamente suspensas. Tudo vém de longe mas fala a nós, um por um. Essas notas que flutuam sem encontrar um ponto de chegada talvez sejam exatamente nós mesmos, borboletas que não acham um lugar onde pousar. Satie é assim: quando inicia parece que não te diz respeito, mas depois quanto mais avança tanto mais te interpreta dentro, e quando tentas interrompê-lo é demasiado tarde. O CD conclui-se com uma peça de Vittorio Monti, músico e viajante napolitano que se tornou famoso pela sua Csárdás, uma rapsódia em estilo húngaro, da qual o executante evidencia mais a introdução lenta e patética do que a continuação agreste e desenfreada como acontece com mais frequência. No segundo CD, publicado em 2011, o pensamento torna-se ainda mais objetivo e afiado. O percurso é claro: quanto mais se enxuga melhor é. Enxugar significa ir ao sentido profundo do texto musical. Passa-se através de Puccini, Mozart, Liszt e Debussy, mas uma demonstração da mudança é o retorno às Bachianas Brasileiras número 4 de Heitor VillaLobos, desta vez não o Prelúdio mas a Ária, o terceiro dos quatro movimentos. Aqui a distância temporal é evidente, o som torna-se mais essencial, a expressão mais linear, o supérfluo é eliminado. Nenhuma concessão à escuta fácil. Sentido das proporções. A leitura sóbria prossegue também nos três trechos chopinianos que finalizam a coletânea, e não era fácil. De facto, se alguma coisa há de fácil, é tornar melífluo Chopin, especialmente quando se trata de obras muito conhecidas como o Noturno opera 9 número 2. O próprio autor executava-o com contínuas intervenções nos adornos, por conseguinte hoje temos mais de dez versões dele. Querendo poder-se-ia exagerar com o andamento sognante, apoiando-o delicadamente no incidir do baixo. Baldisseri, ao contrário, age sobre o aspeto íntimo, sobre a densa trama de mudanças míninas que se repetem sem solução de continuidade. Aposta na essência. Uma escolha clara. Na mesma direção move-se a última coletânea, gravada em 2012 e publicada em 2015. Passaram alguns anos desde as primeiras duas e sente-se. A experiência não passa em vão entre os dedos de um pianista. A vida não passa em vão entre as chagas da música. O que muda não são as capacidades técnicas, mas a maneira de olhar para a realidade. Aqui, ao lado dos amados Mozart, Debussy e Chopin, pela primeira vez aparecem dois compositores que entre eles não poderiam ser mais distantes: Astor Piazzolla e Johann Sebastian Bach. De um lado a melancolia, do outro a sólida certeza no futuro. Em Adios Nonino Piazzolla olha para o horizonte, na direção de um lugar que talvez nem exista, onde haja ainda algo ou alguém que amámos e perdemos para sempre. Baldisseri respeita a dor, mas enfrentando-a com olhos límpidos: não é preciso chorar, a vida é assim. Por sua vez Bach, até então evocado só através de Villa-Lobos, com a Cantata 147 exorta a uma esperança nova: um futuro melhor é certo mas não esperemos que chegue sem esforço. O círculo fecha-se com um Rachmaninov juvenil, o Prelúdio opera 3 número 2 e que o autor executou em 1892 naquela que depois considerou a sua estreia como pianista. Sessenta e dois toques de extrema dificuldade técnica, através dos quais Baldisseri se move sem nunca deixar de «cantar», de evidenciar o aspeto lírico, sobretudo onde é mais árduo: no agitado central. A visão do cardeal parece clara: salvar-se é possível, mas difícil. O músico não podia ser diferente, ou não teria sido um músico. número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 17 Um olhar lúcido e aberto «As três mães» (Roma, Santa Maria Antiqua, séc. VIII) No centro Maria com o menino dentro de uma amêndoa e lateralmente Santa Ana com Maria menina e santa Isabel com São Joaninho ENZO BIANCHI LUCETTA SCARAFFIA orquê a emancipação das mulheres nasceu como projeto político e cultural, e se impôs no decorrer do tempo, só nos países de matriz cristã, apesar de secularizados e, ao contrário, nos países de tradição religiosa diversa conhece muitas dificuldades? Esta simples pergunta deveria fazer entender como o vínculo entre emancipação das mulheres e cristianismo é estreito desde as origens. De facto, a história ensina que só o cristianismo ofereceu às mulheres um quadro de possibilidades iguais às dos homens nunca antes realizado. Toda a história do cristianismo, sobretudo do catolicismo, está marcada por vigorosas presenças femininas, que confirmam com o passar do tempo a sua novidade inicial. Mesmo se as resistências de sociedades e culturas fortemente dominadas pelo machismo sufocaram, ou pelo menos atrasaram, esta aspiração à igualdade entre os sexos inerente à P Do último banco para o seu interior, a fim de realizar uma «profunda teologia da mulher» e redescobrir ensinamentos e valores que tinha esquecido ou que não quis ver. (...) Esta inevitável redefinição dos papéis — para a qual a Igreja pode contribuir muito, revendo e reconsiderando a teoria da complementariedade entre os sexos — é uma das experiências mais novas e O livro Foi publicado Dall’ultimo banco. La Chiesa, le donne, il sinodo (Veneza, Marsilio, 2016, 110 páginas). Publicamos excertos do último capítulo do livro e a recensão escrita pelo prior de Bose. Desenho para «Le Monde», de Giulia D’Anna Lupo, tirado da capa do livro tradição cristã, que começou a realizar-se só a partir do século XIX . Como aconteceu com outras sementes de mudança contidas nos evangelhos, as relativas à realidade feminina agiram por si só, mencionando o evangelho de Marcos (4, 26-29). Neste caso, independentemente da intenção das hierarquias encarregadas de transmitir a mensagem, que frutificou com o tempo nos países de cultura cristã. Assim hoje, a Igreja vê restituída do exterior a mensagem originária que tinha esquecido, com a demonstração que o Espírito sopra e age onde quer. Deste modo, a Igreja é interpelada — precisamente como repetiu muitas vezes o Papa Francisco — a olhar de novo complexas que a humanidade deve enfrentar, e é importante que seja tratada conscientemente, e não só suportada. Portanto, é necessário que a complementariedade entre os sexos que a Igreja defende seja revista, aliviada da rigidez dos papéis preestabelecidos, imaginada e praticada de maneira mais dinâmica e criativa, correspondente às diversas fases da vida. Numa cultura que, em relação a esta mudança, só conhece opções opostas, a adesão ou a crítica, a Igreja pode desempenhar um papel construtivo importante precisamente graças ao facto de que ela nunca negou a importância e a riqueza da procriação quer na vida humana quer, sobretudo, na rela- ção de casal. Sem dúvida, no centro do problema da nova família a questão é a falta de reconhecimento social e cultural que é atribuído à procriação como valor. Propor o dilema entre criação de qualquer tipo (a criação de uma linha de roupas, de um novo prato ou de uma marca publicitária...) e procriação — desvalorizando a segunda a favor da primeira — com efeito, significa negar valor ao papel biológico da mulher, e impeli-la a assumir um papel masculino. Ao contrário, a procriação deveria ser considerada uma riqueza essencial para toda a comunidade humana. Remover a procriação da esfera da produtividade humana significa considerá-la uma forma de escravidão, uma espécie de dificuldade aviltante. E isto acontece também com todas as atividades que por tradição são femininas, como a educação das crianças, o cuidado dos doentes e dos idosos. Realidades que hoje são delegadas a pessoas que pertencem às classes sociais mais baixas, incapazes ou impossibilitadas de aceder a outros trabalhos. Deste modo, tudo o que outrora constituía o papel feminino é monetizado e desprezado. Então é óbvio que as jovens procurem fugir de tal sorte, sem pensar contudo que assim lhes é negada a possibilidade de criar novas e profundas relações humanas. Acabando por viver numa sociedade desumana, que nega valor à solidariedade, à gratuitidade, à riqueza de uma reciprocidade não monetizada. (...) O inteiro conjunto destas novidades impõe uma reconsideração geral da ideia de matrimónio e de família que a Igreja propõe e defende. Com efeito, é necessário pensar numa espécie de novo contrato humano entre mulheres e homens que inclua todas as dimensões da existência. Assim como é necessário reconsiderar a função e a responsabilidade maternas. E estar prontos para entender como tudo isto pode mudar inclusive a natureza da relação entre pais e filhos. Hoje fala-se muito da ausência do pai. Sem dúvida, isto é verdaCONTINUA NA PÁGINA 18 Nas igrejas da minha infância e adolescência as mulheres estavam sempre nos primeiros bancos, imediatamente atrás ou ao lado das crianças, enquanto no fundo da igreja – geralmente nem sequer sentados nos bancos, mas de pé do lado da porta – estavam os homens. No entanto, o título provocatório usado por Lucetta Scaraffia para o seu último livro, «Do último banco», seria apropriado para ilustrar o papel da mulher também na Igreja pré-conciliar. Foi do último banco da sala que a autora seguiu os trabalhos do sínodo dos bispos sobre a família, e foi com aquela visão que examinou com sagacidade e competência não tanto a prolongada marginalização da mulher na Igreja católica, quanto o empobrecimento que a inteira Igreja sofreu por este motivo. Os títulos dos capítulos desta reflexão sobre «a Igreja, as mulheres e o sínodo» são amargamente negativos — Sem história, Sem mulheres, Sem sexo, Sem futuro — mesmo se a impressão que se extrai dessas páginas não é absolutamente desanimadora. Certamente, a premissa de Corrado Augias acentua deliberadamente o céu fechado que parece dominar a Igreja, todavia dá a impressão de que isto força o pensamento de Lucetta Scaraffia que permanece lúcido e aberto, capaz de suscitar mais amargura do que resignação e de incutir mais esperança do que desencanto. Uma virtude rara da autora é não nivelar a questão sobre a falta de ordenação de mulheres e, ao contrário, de se dedicar a expor com pertinência as razões de quem como ela «afirma que a emancipação das mulheres na Igreja pode, aliás, deve realizar-se sem passar pelo sacerdócio, isto é, que tenha um sentido manter este último posto avançado da diferença». Assim o discurso não se deixa enredar na reivindicação estéril de acesso a papéis e estilos de comportamento masculinos por parte das mulheres mas analisa mais a fundo o proprium das mulheres e a riqueza que toda a Igreja adquiriria com uma sua valorização como tais. Esta acentuação sobre a diversidade dos carismas e sobre a inoportunidade de fáceis homologações é um precioso estímulo também para uma reflexão sobre o papel de todos os batizados — homens e mulheres — frequentemente relegados para o último banco ou de qualquer maneira excluídos das mesas decisórias da Igreja católica. Foi pelo menos a partir do Vaticano II que a Igreja católica começou a falar de «apostolado dos leigos» mas depois os confinou, prescindindo do sexo, nos recintos daquela que outrora se chamava a «Igreja discente». Destas páginas de Lucetta Scaraffia — idealizadora e coordenadora do suplemento mensal «mulheres igreja mundo» ligado a L'Osservatore Romano — brota um apelo genuíno à Igreja para que encontre, com as mulheres e graças também a elas, um vigor e uma genialidade para viver, anunciar e testemunhar o Evangelho, que uma estrutura demasiado submissa à mentalidade mundana — a partir da machista de outrora até à reivindicadora e eficientista dos nossos dias — fez desaparecer. Talvez, se conseguíssemos substituir o estar sentados nos bancos — quer sejam os primeiros ou os últimos — com um caminho realizado juntos, o anúncio da Palavra no mundo contemporâneo encontraria o impulso perdido. L’OSSERVATORE ROMANO página 18 quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 Em Monreale o cardeal Angelo Amato beatificou Maria de Jesus Santocanale Nobreza e miséria Chamavam-lhe «dom Bosco de saia» porque seguia de modo particular os jovens que demonstravam sinais de vocação, os quais preparava com lições especiais sobre a oração e o serviço litúrgico. É Maria de Jesus Santocanale, fundadora da congregação das irmãs capuchinhas da Imaculada de Lourdes, cujo perfil foi traçado pelo cardeal Angelo Amato, durante o rito presidido em representação do Papa Francisco no dia 12 de junho, na catedral de Monreale (Itália). «Os testemunhos — disse o prefeito da Congregação para as causas dos santos — referem-se também ao tratamento gentil e cativante aos jovens, que fascinava com anedotas e narrações tiradas da Bíblia, as quais lhes apresentava em capítulos, mantendo viva a sua atenção durante muitos dias». O cardeal comparou a nova beata a uma chama que «ardia sem se consumir», como «um fogo sagrado, já desde menina, que a nobreza, a riqueza, os passeios de carroça e as múltiplas distrações dos abastados do seu tempo não conseguiram apagar». A religiosa dizia frequentemente às suas irmãs que «no amor a Deus não é suficiente caminhar mas é preciso voar». E fazia-o com «o olhar dirigido ao céu», manifestando «uma confiança ilimitada na divina providência». O purpurado recordou que ela suportava tudo, desde as incompreensões e calúnias, até às oposições, na certeza de que «um dia seria recompensada pela bondade misericordiosa de Deus». Alguns testemunhos referiram sobre um seu «martírio sem sangue». Até os seus parentes «a evitavam porque se tinha posto entre “os mendigos”». Mas ela dizia que «a verdadeira nobreza não consiste na posição social, mas nos sentimentos de um coração educado na escola do Evangelho». De alguns episódios transparece a grande caridade da religiosa. Em particular, ajudou uma jovem de origens humildes que se envergonhava tanto da pobreza da sua família que se tornou intratável. Para evitar que Do último banco CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 17 de, mas também este fenómeno só reflete o modo que cada sociedade tem de conceber a procriação e, por conseguinte, a maternidade. A Igreja teve sempre a coragem de defender a especificidade feminina ligada à maternidade, denunciando a batalha ideológica para libertar a mulher do «feminino» que lhe concerne para a fazer aceder ao estatuto abstrato de indivíduo. A Igreja contrastou sempre a ideia de que a mulher pudesse tornar-se «um homem como qualquer outro». E que pudesse alcançar a igualdade com o homem negando a sua realidade biológica e o próprio corpo. Todavia, ela não soube dar mais um passo, isto é, explicar e realizar no seu interior a igualdade na diferença. De facto, por ser crível, a Igreja, que apoia a igualdade de todos os seres humanos como filhos de Deus, não obstante as suas diferenças, não pode deixar de realizar no próprio interior a igualdade em relação às mulheres. É preciso compreender que no nosso tempo se abriu uma grande discrepância entre algumas das fundamentais aspirações humanas — como ter um filho e o criar num mundo humano — e a possibilidade de as realizar. É suficiente um único exemplo: os milhares de cadeados que devastam os parapeitos das pontes nas mais importantes cidades do mundo. São horríveis, concordo, mas também é verdade que cada um deles representa a esperança de um casal de permanecer juntos para sempre. Constituem um modelo, visível a todos, da tensão entre a aspiração profunda de cada um e a realidade que depois estes casais, em grande parte efémeros, são chamados a viver. Para lançar um olhar crítico sobre a cultura homologada e renovar as identidades sem cair num sem futuro amorfo, serve um ponto de vista feminino radicado na tradição cristã. Já são muitos — sobretudo jovens — os que estão a compreender que a visão cristã é a única deveras livre, revolucionária em relação aos pesados condicionamentos culturais aos quais estamos submetidos. Mas só se esta visão for culta na sua dimensão dinâmica e criativa, aberta ao ponto de vista feminino. É este o passo que a Igreja espera hoje, ao qual conduziu o paciente trabalho do Espírito. Desde o final da década de setenta o teólogo Yves Congar, depois cardeal, estava plenamente ciente disto, quando escreveu: «A dualidade e a unidade complementar de ação que constatámos e evidenciámos entre Cristo e o Espírito Santo refletem-se na dualidade e na unidade sinfónica e dinâmica do homem e da mulher na sociedade e na Igreja». No que diz respeito à Igreja, mas também à sociedade, acrescentava que «um determinado esquecimento do Espírito Santo e da pneumatologia provocaram a instauração de um tipo patriarcal e de uma prevalência do masculino. Agora a Igreja encontra-se diante de uma dupla tarefa: por um lado, tornar-se mais plenamente masculina e feminina, e por outro, salvar os valores femininos sem manter as mulheres num gineceu de qualidades atraentes e passivas, do qual elas querem sair para ser tratadas simples e autenticamente como pessoas». Passaram quase quarenta anos, mas desde então pouco, ou nada, mudou e ainda há muitíssimo a fazer. os outros «a pudessem irritar, a beata abrigou-a em casa, assistindo-a como uma filha». A sua caridade exprimia-se consolando os aflitos: mães, jovens esposas, viúvas, adolescentes «iam ter com ela para receber uma palavra de consolação e a garantia da oração». Também com os sacerdotes era sempre disponível para os ouvir. O padre Cesare Vitale, sacerdote de Cinisi, dizia que devia a sua vocação à madre, que sempre chamou «matruzza mia» (minha mãezinha). A beata ficou impressionada com a triste situação da pequena cidade de Cinisi, cheia de pobres e doentes abandonados e descuidados. Por isso «dedicou a sua vida a aliviar os sofrimentos das pessoas aflitas. Com frequência, ela mesma dava voltas a pedir esmolas, solicitando às famílias abastadas que a ajudassem, doando aos pobres e doentes alimentos, roupas, assistência». O cardeal Amato citou o testemunho da irmã Maria Bianca Manzella, que recordou a particular atenção que a beata dedicava aos doentes. De facto, além «das palavras e do encorajamento a suportar os sofrimentos, ela prestava o seu serviço direto sem a preocupação de um possível contágio, tratando-se frequentemente de chagas gangrenosas que ela, às vezes, beijava com sentido de profunda piedade como se se tratasse da pessoa de Cristo». Todos os dias, disse o purpurado, apresentava-se à porta do instituto um idoso muito pobre. Para poder dar-lhe algo de comer a beata «planejou a subtração de uma colher de sopa de cada prato das suas religiosas a fim de obter um para ele, bem cheio, que oferecia ao pobre infeliz». Tinha um amor de mãe também pelas irmãs. Às enfermas oferecia uma refeição saborosa e leve. Recomendava à cozinheira que preparasse bem os alimentos porque a saúde das irmãs era preciosa para o seu apostolado. Seguindo o exemplo de são Francisco «animava as festas com uma mesa abundante e saborosa». A sua caridade sublima-se no perdão, como demonstra a sua atitude em relação à mestra das noviças que «era particularmente severa com as jovens em formação e além disso criticava a madre continuamente». Não obstante o sofrimento compreensível, quando a religiosa adoeceu gravemente «foi a madre quem permaneceu ao seu lado, confortando-a e servindo-a por três longos meses». Distinguiu-se de modo particular pela sua atitude de humildade face às incompreensões e provações que suportou sem recriminar. Apesar de ser fundadora e superiora-geral limpava o chão, tirava o pó, preparava os vasos na igreja, socorria os pobres a domicílio prestando-lhes os cuidados mais humildes e delicados. Não se envergonhava de tratar com os ignorantes, com as pessoas de baixa condição social nem de ir pela cidade carregando alforjes, pedindo esmolas e um pedaço de pão. Sem discriminação nem indiferença CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 6 foram atingidas por ela». Renovando o apelo lançado por ocasião do dia mundial dos doentes de lepra, o arcebispo exortou a um compromisso comum a fim de que «sejam ampliadas as atividades de informação e prevenção», mas sobretudo favorecidos, como gesto de verdadeira compaixão, «a reinserção social e o trabalho de quem se curou». Nas conclusões do congresso internacional lê-se que a ab-rogação em todas as partes do mundo das leis discriminatórias em relação a quem sofre do mal de Hansen já se tornou «urgentíssima e não adiável». Quatro as recomendações conclusivas que sobressaíram dos trabalhos. A primeira é que «os líderes de todas as religiões, nos seus ensinamentos, escritos e discursos contribuam para a eliminação da discriminação contra as pessoas atingidas por este mal». Ao contrário, no que diz respeito aos princípios e orientações aprovados pela assembleia geral das Nações Unidas em 2010 para a eliminação da discriminação contra as pessoas doentes e os membros das suas famílias, foi sublinhada a necessidade de «encorajar os Estados a fazer grandes esforços», concretizando os princípios «com planos operacionais específicos que envolvam as pessoas doentes». Portanto, reafirmou-se a necessidade de mudar as políticas «familiares, laborais, escolares, desportivas e de qualquer outro tipo que discriminam direta ou inderetamente» os doentes. Por fim, foi julgado fundamental «implementar a pesquisa científica para desenvolver novos medicamentos» e obter «melhores instrumentos diagnósticos». L’OSSERVATORE ROMANO número 24, quinta-feira 16 de junho de 2016 página 19 INFORMAÇÕES Audiências O Papa Francisco recebeu em audiências particulares: De D. Jean-Paul Mathieu, ao governo pastoral da Diocese de Saint-Dié (França), em conformidade com o cânone 401 § 1 do Código de Direito Canónico. No dia 9 de junho O Senhor Cardeal Giovanni Battista Re, Enviado Especial ao XI Congresso Eucarístico Nacional da Argentina; D. Fernando Chica Arellano, Observador Permanente junto das Organizações e Organismos das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (F.A.O., I.F.A.D., P.A.M.); e D. Paolo Rudelli, Observador Permanente junto do Conselho da Europa. Suas Ex.cias os Senhores Zion Evrony, Embaixador de Israel; e Piotr Nowina-Konopka, Embaixador da Polónia, ambos em visita de despedida. No dia 10 de junho Os Senhores Cardeais Gerhard Ludwig Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; e Fernando Filoni, Prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos. No dia 11 de junho Os Senhores Cardeais Leonardo Sandri, Prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais; Marc Ouellet, Prefeito da Congregação para os Bispos; e Anthony Olobunmi Okogie, Arcebispo Emérito de Lagos (Nigéria). Suas Ex.cias o Doutor Michel Roy, Secretário-Geral da Caritas Internationalis; e a Senhora Lidia Guerreo. No dia 15 de junho O Senhor Cardeal Jean-Luis Tauran, Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Ereção de Ordinariado Sua Santidade erigiu: Nomeações Centro Pastoral Universitário, simultaneamente eleito Bispo Titular de Seleuciana. (França). Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 27 de junho de 1992. D. Marek Forgáč nasceu a 21 de janeiro de 1974, em Košice (Eslováquia). Foi ordenado Sacerdote no dia 19 de junho de 1999. Prelados falecidos No dia 9 de junho O Sumo Pontífice nomeou: A 14 de junho A 9 de junho Núncio Apostólico na Argélia e na Tunísia, D. Luciano Russo, até esta data Núncio Apostólico em Ruanda. Bispo da Diocese de Goroka (Papua-Nova Guiné), o Rev.do Pe. Dariusz Kałuża, M.S.F. D. Dariusz Kałuża, M.S.F., nasceu em Pszczyna (Polónia), a 5 de novembro de 1967. Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 5 de maio de 1993. Ordinário para os fiéis católicos orientais residentes na Espanha, D. Carlos Osoro Sierra, atualmente Arcebispo de Madrid. A 15 de junho Bispo da Diocese de Saint-Dié (França), o Rev.do Pe. Didier Berthet, do clero da Diocese de Nanterre, até agora Reitor do Seminário de Saint-Sulpice (Issy-les-Moulineaux). D. Didier Berthet nasceu a 11 de junho de 1962 em Boulogne-Bilancourt Renúncias O Santo Padre aceitou a renúncia: No dia 9 de junho De D. Francesco Sarego, S.V.D., ao governo pastoral da Diocese de Goroka (Papua-Nova Guiné), em conformidade com o cânone 401 § 1 do Código de Direito Canónico. No dia 15 de junho D. Carillo Gritti, religioso do instituto missões Consolata, Bispo prelato de Itacoatiara (Brasil). O ilustre Prelado nasceu a 12 de maio de 1942 em Martinengo (Itália). Recebeu a Ordenação sacerdotal a 24 de junho de 1967. Missionário na Amazônia desde 1979, foi nomeado Bispo Prelado de Itacoatiara no dia 5 de janeiro de 2000, tendo recebido a Ordenação episcopal a 19 de março do mesmo ano. A 11 de junho Enviado Especial ao XVII Congresso Eucarístico Nacional do Brasil, que será celebrado em Belém de 15 a 21 de agosto, o Senhor Cardeal Cláudio Hummes, O.F.M., Arcebispo Emérito de São Paulo e Prefeito Emérito da Congregação para o Clero. Membro da Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do Vaticano, o Senhor Cardeal Beniamino Stella, Prefeito da Congregação para o Clero. Consultor do Pontifício Conselho «Justiça e Paz», o Doutor Juan Grabois, co-fundador do Movimento dos Trabalhadores Excluídos e da Confederação da Economia Popular, Docente de Teoria do Estado e de Prática Profissional, respetivamente na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Católica Argentina. Auxiliar de Košice (Eslováquia), o Rev.do Padre Marek Forgáč, até hoje Vice-Decano da Faculdade Teológica de Košice e Diretor Espiritual do Congregação para as causas dos santos Promulgação de decretos Na manhã de 14 de junho o Papa Francisco recebeu em audiência particular sua eminência o senhor cardeal Angelo Amato, S.D.B., prefeito da Congregação para as causas dos santos. Durante o encontro, o Pontífice autorizou a Congregação a promulgar os seguintes decretos relativos: — ao martírio dos servos de Deus José Álvarez-Benavides y de la Torre, decano do cabido da catedral de Almería, e 114 companheiros, assassinados por ódio à fé de 1936 a 1938; — às virtudes heróicas do servo de Deus António Cirilo Stojan, arcebispo de Olomouc; nascido a 22 de maio de 1851 e falecido no dia 29 de setembro de 1923; — às virtudes heróicas do servo de Deus Vicente Garrido Pastor, A 9 de junho O Ordinariado para os fiéis católicos orientais residentes na Espanha, desprovidos de Hierarquia própria. Adormeceu no Senhor: Encontro de bispos portugueses e espanhóis Comunicar sem autorreferencialidade Os responsáveis da comunicação nas conferências episcopais portuguesa e espanhola encontraram-se recentemente em Ponta Delgada (Portugal), sublinhando a necessidade de incluir nos seus projetos de comunicação também «as ideias que provêm de fora». «Se abandonarmos a autorreferencialidade — lê-se num comunicado conjunto — poderemos encontrar contribuições preciosas para o nosso trabalho sobre a comunicação indo ao encontro de quantos habitam nas periferias existenciais». No documento divulgado no final, os bispos afirmaram que «o serviço de comunicação na Igreja deve ser desempenhado com profissionalismo, superando o modelo unidirecional e baseando-se na confiança». Neste sentido, o Papa Francisco «representa um modelo precioso para todos os comunicadores». sacerdote diocesano e fundador do instituto secular das Operárias da Cruz; nascido no dia 12 de novembro de 1896 e falecido a 16 de abril de 1975; — às virtudes heróicas do servo de Deus Paulo Maria Guzmán Figueroa (no século: José Bardomiano de Jesus), sacerdote professo dos Missionários do Espírito Santo e fundador das Missionárias eucarísticas da Santíssima Trindade; nascido a 25 de setembro de 1897 e falecido no dia 17 de fevereiro de 1967; — às virtudes heróicas do servo de Deus Luís Lo Verde (no século: Filipe), clérigo professo da ordem dos Frades menores conventuais; nascido no dia 20 de dezembro de 1910 e falecido a 12 de fevereiro de 1932; — às virtudes heróicas do servo de Deus Bernardo da Anunciação (no século: Bernardo de Vasconcelos), clérigo professo da ordem de São Bento; nascido a 7 de julho de 1902 e falecido no dia 4 de julho de 1932; — às virtudes heróicas da serva de Deus Maria Elisa Oliver Molina, fundadora da congregação das irmãs da Virgem Maria do Monte Carmelo; nascida no dia 9 de julho de 1869 e falecida a 17 de dezembro de 1931; e — às virtudes heróicas da serva de Deus Maria de Jesus do Amor Misericordioso (no século: Maria de Jesus Guízar Barragán), fundadora das Servas guadalupanas de Cristo sacerdote; nascida a 11 de novembro de 1899 e falecida no dia 6 de janeiro de 1973. L’OSSERVATORE ROMANO página 20 quinta-feira 16 de junho de 2016, número 24 Na audiência geral o Papa falou sobre a cura do cego de Jericó De mendigos a discípulos Vencer a tentação de se sentir incomodado perante refugiados e migrantes «De mendigos a discípulos»: esta é a «passagem» que os cristãos são chamados a fazer a exemplo do cego de Jericó, o qual depois de ser curado «segue os passos do Senhor, entrando a fazer parte da sua comunidade». Ao recordar o episódio evangélico narrado por Lucas, o Papa convidou os fiéis reunidos na praça de São Pedro para a audiência geral de quarta-feira 15 de junho a evitar em particular a tentação do «incómodo» perante os necessitados, doentes, refugiados e migrantes. Queridos irmãos e irmãs, bom dia! Um dia Jesus, aproximando-se da cidade de Jericó, fez o milagre de restituir a vista a um cego que mendigava sentado à beira do caminho (cf. Lc 18, 35-43). Hoje queremos compreender o significado deste sinal porque diz respeito diretamente também a nós. O evangelista Lucas narra que aquele cego estava sentado à beira do caminho, pedindo esmola (cf. v. 35). Um cego naqueles tempos — mas também até há pouco tempo — podia viver só de esmola. A figura deste cego representa muitas pessoas que, inclusive hoje, se encontram marginalizadas por causa de uma deficiência física ou de outro tipo. Está afastado da multidão, está ali enquanto as pessoas passam atarefadas, absortas em seus pensamentos e em tantas coisas... E a estradas, que podem ser um lugar de encontro, para ele são ao contrário um lugar de solidão. Uma multidão que passa... E ele sozinho. É triste a imagem de um marginalizado, sobretudo no pano de fundo da cidade de Jericó, o maravilhoso e luxuriante oásis no deserto. Sabemos que precisamente a Jericó chegou o povo de Israel no final de um longo êxodo do Egito: aquela cidade representa a porta de entrada na terra prometida. Recordemos as palavras que Moisés pronuncia naquela circunstância: «Se houver no meio de ti um pobre entre os teus irmãos, em uma de tuas cidades, na terra que te dá o Senhor, teu Deus, não endurecerás o teu coração e não fecharás a mão diante de teu irmão pobre; pois nunca faltarão pobres na terra, e por isso dou-te esta ordem: abre tua mão ao teu irmão necessitado ou pobre que vive em tua terra» (Dt 15, 7.11). É estridente o contraste entre esta recomendação da Lei de Deus e a situação descrita pelo Evangelho: enquanto o cego gritava invocando Jesus, as pessoas repreendiam-no para que calasse, como se não tivesse direito de falar. Não têm compaixão por ele, aliás, ficam incomodados com os seus gritos. Quantas vezes nós, ao ver muita gente na estrada — gente necessitada, doente, que não tem o que comer — ficamos incomodados. Quantas vezes, quando nos deparamos com numerosos migrantes e refugiados, ficamos incomodados. É uma tentação que todos temos. Todos, até eu! É por isso que a Palavra de Deus nos admoesta recordado-nos que a indiferença e a hostilidade tornam cegos e surdos, im- pedem que vejamos os irmãos e não permitem que reconheçamos o Senhor neles. Indiferença e hostilidade. E por vezes esta indiferença e hostilidade transformam-se também em agressões e insultos: «mandai embora toda esta gente!», «pondeos noutro lugar!». Esta agressão é a mesma que faziam as pessoas quando o cego gritava: «mas, vai-te embora, por favor, não fales, não grites». Observemos um pormenor interessante. O Evangelista diz que alguém no meio da multidão explicou ao cego o motivo da presença de toda aquelas pessoas dizendo: «Passa Jesus, o Nazareno!» (v. 37). A passagem de Jesus está indicando com o mesmo verbo com o qual no livro do Êxodo se fala da passagem do anjo exterminador que salva os Israelitas na terra do Egito (cf. Êx. 12, 23). É a «passagem» da Páscoa, o início da libertação: quando Jesus passa, há sempre libertação, sempre salvação! Portanto, ao cego é como se fosse anunciada a sua Páscoa. Sem se deixar atemorizar, o cego grita várias vezes em direção a Jesus reconhecendo-o como o Filho de David, o Messias esperado que, secundo o profeta Isaías, teria aberto os olhos aos cegos (cf. Is 35, 5). Diferentemente da multidão, este cego vê com os olhos da fé. Graças a ela a sua súplica tem grande eficácia. Com efeito, ao ouvir a sua voz, «Jesus parou e mandou que lho trouxessem» (v. 40). Deste modo, Jesus tira o cego da beira do caminho e coloca-o no centro da atenção dos seus discípulos e da multidão. Pensemos também nós, quando estivemos em situações difíceis, inclusive em situações de pecado, como foi o próprio Jesus quem nos pegou pela mão e nos tirou da beira da estrada para nos doar a salvação. Realiza-se assim uma dúplice passagem. Primeiro: as pessoas tinham anunciado uma boa nova ao cego, mas não queriam ter nada a ver com ele; agora Jesus obriga todos a tomar consciência de que o bom samaritano implica pôr no centro do próprio ca- minho aquele que estava excluído. Segundo: por sua vez, o cego não via, mas a sua fé abre-lhe o caminho da salvação, e ele depara-se no meio de quantos desciam pelas ruas para ver Jesus. Irmãos e irmãs, a passagem do Senhor é um encontro de misericórdia que une todos à volta d’Ele para permitir que reconheçamos quem necessita de ajuda e de conforto. Jesus passa também na nossa vida; e quando passa Jesus, eu dou-me conta, é um convite a aproximar-me d’Ele, a ser mais bondoso, a ser um cristão melhor, a seguir Jesus. Jesus dirige-se ao cego e pergunta-lhe: «Que queres que eu faça por ti?» (v. 41). Estas palavras de Jesus são surpreendentes: o Filho de Deus agora está em frente do cego como um servo humilde. Ele, Jesus, Deus, diz: «Mas, que queres que eu faça por ti? Como queres que eu te sirva?». Deus faz-se servo do homem pecador. E o cego responde a Jesus já não chamando-lhe «Filho de David», mas «Senhor», o título que a Igreja desde o início aplica a Jesus Ressuscitado. O cego pede para poder voltar a ver e o seu desejo é atendido: «Recupera a vista! Vai, a tua fé te salvou» (v. 42). Ele mostrou a sua fé invocando Jesus e querendo absolutamente encontrá-lo, is- to trouxe-lhe em dom a salvação. Graças à fé agora pode ver e, sobretudo, sente-se amado por Jesus. Por esta razão, a narração termina referindo que o cego «começou a seguilo glorificando Deus» (v. 43): tornase discípulo. De mendigo a discípulo, também este é o nosso caminho: todos nós somos mendigos, todos. Precisamos sempre de salvação. E todos nós, todos os dias, devemos dar este passo: de mendigos a discípulos. Deste modo, seguindo o Senhor entra a fazer parte da usa comunidade. Aquele que queriam silenciar, agora testemunha em voz alta o seu encontro com Jesus de Nazaré, e «todo o povo, vendo isto, deu louvor a Deus» (v. 43). Acontece um segundo milagre: o que ocorreu ao cego faz com que também o povo veja. A mesma luz ilumina todos unindo-nos na oração de louvor. Assim Jesus infunde a sua misericórdia sobre todos os que encontra: chama-os, faz com que venham ter com ele, reúne-os, cura-os e iluminaos, criando um novo povo que celebra as maravilhas do seu amor misericordioso. Deixemo-nos também nós chamar por Jesus, e deixemonos curar por Jesus, perdoar por Jesus, e vamos atrás de Jesus louvando a Deus. Assim seja! No final da audiência geral o Santo Padre pronunciou entre outras as seguintes palavras. Queridos peregrinos de língua portuguesa, de coração vos saúdo a todos, nomeadamente ao grupo da diocese de Limeira, desejando-vos neste Ano Jubilar a graça de experimentar a força do Evangelho da mi- sericórdia que transforma, que faz entrar no coração de Deus, que nos torna capazes de perdoar e olhar o mundo com mais bondade. Assim Deus vos abençoe a vós e às vossas famílias. Dentre os grupos linguísticos presentes o Papa recebeu a saudação, escrita à mão numa carta, pelos detidos do cárcere de máxima segurança de Campo Grande no Brasil, que lhe foi trazida pelo padre Hernanni Pereira da Silva, que é também capelão do hospital pediátrico local, que hospeda trezentas crianças doentes de tumor.