Fundação do Seja Hundé
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Fundação do Seja Hundé
1 TERREIRO DO VENTURA: UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA E PODER DO POVO DE SANTO NA CACHOEIRA DE 1920 VENTURA'S TERREIRO: A HISTORY OF RESISTANCE AND PEOPLE POWER THE HOLY OF 1920 CACHOEIRA Fábio dos Santos Teles 1 RESUMO O presente artigo, focado em Cachoeira de 1920, busca analisar a experiência singular vivenciada pelo Terreiro do Ventura em um contexto histórico de violentas perseguições por parte do Estado, que utilizava as incursões policiais para reprimir e inibir as práticas mágico-religiosas de cura das religiões de matrizes africanas. No período em estudo estava em vigor o Código Penal de 1890, que por meio dos artigos 157 e 158, criminalizava essas práticas médicoreligiosas. Na contramão dessa realidade, a pesquisa busca apreender os fatores históricos que possibilitam a esse terreiro escapar dessa política persecutória, bem como o discurso dos segmentos letrados que consideravam essas práticas culturais, entraves ao projeto político de progresso e civilização proposto naquela época. Palavras-chaves: Terreiro do Ventura. Cachoeira. Cultura. Religião. ABSTRACT This article, focused on the Cachoeira 1920, seeks to analyze the singular experience lived by the Ventura Terreiro which context it portrayed the violent persecutions by the state who used the police incursions to repress and to inhibit the magico-religious practices of healing of African religions. During the period studied was in effect the Criminal Code 1890, which by Articles 157 and 158 criminalized these medical-religious practices. Opposed to this reality, the research sought to identify the historical factors that made possible the this terreiro to escape this political persecution, and the segment the scholars who considered these practices cultural barriers to the political project of progress and civilization at that time. Keywords: Ventura Terreiro. City of Cachoeira. Culture. Religion. 1 INTRODUÇÃO 1 Graduado em licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Católica do Salvador. e–mail: [email protected] 2 O presente artigo busca, na Cachoeira de 1920, apreender os fatores históricos que possibilitaram o Terreiro do Ventura não ter sofrido incursões policiais bem sucedidas. Além de analisar também as subsequentes articulações políticas forjadas pelo povo de santo do Terreiro do Ventura, quando vigorava o Código Penal de 1890. De acordo com os artigos 157 e 158 deste Código Penal, foi instituída juridicamente a repressão aos terreiros de candomblé, por utilizarem as práticas médicas-religiosas tradicionais, criminalizando-as como exercício ilegal da medicina, acusando-as de curandeirismo e charlatanismo. Cachoeira, uma cidade construída às margens do rio Paraguaçu, no Recôncavo baiano foi um importantíssimo entreposto comercial. Neste sentido, convém registrar que a origem desta cidade remete ao processo de colonização portuguesa, iniciado em meados do século XVI. A ocupação deste território ocorreu sob a égide de inúmeros conflitos entre os povos originários e os colonizadores, resultando no genocídio dessas populações. Ao fixarem-se nesta região do Recôncavo baiano, os portugueses instituíram a economia de cana-de-açúcar, devido à presença do solo de massapé. Este tipo de solo era mais adequado para a implantação desta cultura, a qual favoreceu o estabelecimento de prósperos engenhos açucareiros. Sendo assim, para dinamizar a economia os colonizadores utilizaram em larga escala o trabalho compulsório dos povos originários e, posteriormente, dos povos africanos, os quais deram suporte à colonização. Convém frisar ainda que o progresso dessa região ocorreu, porque o rio facilitava o escoamento da produção. Este gradativo crescimento possibilitou a criação da então Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira. Durante o século XVIII, Cachoeira assistiu um intenso crescimento da cultura do tabaco que se estabeleceu na área fumageira da Vila e proximidades circunvizinhas, propiciando um rentável comércio na Costa da Mina. Por isso, ampliou-se o fluxo de cativos e, por conseguinte, uma enorme prosperidade econômica naquela região do Recôncavo. Segundo Walter Fraga Filho (2006), o Recôncavo baiano não se concentrou apenas na economia açucareira, mas também na multiplicidade das culturas agrícolas, como o fumo, a mandioca, o milho e outros gêneros agrícolas, os quais serviram para abastecer Salvador e 3 os outros centros urbanos. Foi nas primeiras décadas do século XIX que se implantou a navegação a vapor, a qual consolidou a cidade como entreposto comercial. Mais tarde, Cachoeira, devido o envolvimento nas lutas emancipatórias na Bahia, foi elevada a categoria de cidade. Trazer à tona a história da economia desta cidade é relevante para evidenciar a presença de trabalhadores africanos e seus descendentes que na condição de cativos foram fundamentais para a riqueza e a dinâmica da cidade. Isto é, na condição de sujeitos históricos,embora submetidos à ordem da escravidão, criaram com base na cultura africana de origem, uma nova religião: a afro-brasileira.Vale frisar ainda que tal forma forma de religião possibilitou trilhar um caminho de resistência e liberdade por meio da construção de espaços de autonomia, a exemplo do Terreiro do Ventura. O recorte temporal limita-se à década de 1920 por este ser um período marcado por uma intensa política persecutória contra as práticas culturais de tratamento do corpo e da saúde física e espiritual que caracterizavam os terreiros localizados no Brasil e,em particular, na cidade de Cachoeira.Daí emergiu uma indagação ao longo da pesquisa: por que o Terreiro do Ventura escapou das incursões policiais? Da questão acima decorreu três objetivos: descortinar as relações políticas que o terreiro estabelecia com os segmentos sociais da cidade, compreender o porquê da presença de maçons no terreiro, bem como apreender as estratégias de resistência engendradas pelo povo de santo do Ventura. Assim, a escolha do tema resultou da necessidade de se compreender como os segmentos letrados de Cachoeira buscavam incutir no imaginário social a suposta idéia de que as religiões de matriz africana representavam um enorme problema ao “projeto civilizador”. Por este motivo, este artigo também contribui para desconstruir certos estereótipos desenvolvidos historicamente para desqualificar as culturas africanas. Além de contribui para uma reflexão acerca da negação da alteridade que é um desafio a ser enfrentado pela sociedade como um todo. Quanto à metodologia, optou-se pelo emprego da tradição de oralidade, buscando na pesquisa resultante do diálogo com os depoentes, recuperar a memória dessa história de resistência. Neste sentido, foram analisados os fatos à luz da História Social, uma corrente historiográfica que não apreende tão 4 somente as condições materiais como uma única via na compreensão do acontecer histórico, mas contempla, principalmente, a experiência dos sujeitos sociais. De acordo com Khoury,Peixoto e Vieira (1995), a História Social tem como premissa a explicação global dos fatos humanos acima de qualquer compartimentação. Ou seja, não é um estudo paralelo do social, do cultural, do econômico, do político, mas sim um estudo que leve em consideração todas essas dimensões. Neste caso, centra o eixo de tal explicação nos mecanismos que garantem a dominação e exploração de uns homens sobre os outros e que se traduzem nas relações econômicas, políticas, sociais, culturais, nas tradições, nos sistemas de valores, nas ideias e formas institucionais. O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, esboça-se o tecido social da cidade de Cachoeira, evidenciando as disparidades étnico-raciais e sociais naquele contexto. Na segunda, pormenoriza-se o discurso médicohigienista cristalizado para desqualificar e, sobretudo, criminalizar por meio do Estado, as manifestações culturais e religiosas de origem africana. Na terceira, apresenta-se as versões acerca da criação do Terreiro do Ventura e a sua importância histórica para a cidade de Cachoeira. Por fim, na quarta parte evidencia-se as articulações políticas elaboradas pelo povo de santo, para suplantar os duros ataques contra o candomblé. 2 UMA HISTÓRIA DE LUTA DO POVO DE SANTO DO TERREIRO DO VENTURA 2.1 O TECIDO SOCIAL DA CIDADE DE CACHOEIRA E O DISCURSO MÉDICO-HIGIENISTA Cachoeira, na década de 1920, não sofreu transformações profundas em sua ordem social e nas subsequentes relações de poder no contexto da República. A cidade, portanto, ainda apresentava um quadro deplorável de disparidade étnico-racial e social. Embora a Constituição republicana vigente naquele período tenha igualado negros e brancos juridicamente, pondo fim a ordem da escravidão, as formas de distinção social e de exclusão foram 5 ressignificadas neste novo contexto histórico. Sendo assim, o resultado de séculos de escravidão que o negro foi privado da liberdade e submetido à coação no século XIX, no bojo da crise do escravismo, veio acompanhado da incorporação por determinados segmentos da sociedade das teorias racialistas em voga na Europa.Assim conforme Bacelar (1997, p.260): [...] Cachoeira, sociedade comercial por excelência, possuía ainda embrionariamente uma ordem econômica de classes, baseada em relações sociais abertas e de mercado, porém, dado a ausência de transformações substanciais no pós-Abolição, o que vingava mesmo era uma ordem tradicional, pautada no status, demarcada especialmente pela “cor” e origem familiar. Nela, imperava mais a “atribuição” que a “aquisição” ou “desempenho”, baseando-se primordialmente nos contatos primários e nas relações pessoais. Daí emanavam os grupos de prestígio, remanescentes da ordem escravista: de uma lado, “brancos”ou ricos e, de outro, pretos ou pobres. No Brasil, as teorias racialistas que fundamentam os novos projetos políticos de progresso e de civilização vão se sedimentando a partir da segunda metade do século XIX. Daí resultou a construção ideológica de forjar um modelo racial como justificativa para desqualificar e inferiorizar, em particular, a população negra. Assim, de acordo com Swarchz (1993, p. 65): [ ...] “Naturalizar as diferenças” significou nesse momento, o estabelecimento de correlações rígidas entre características físicas e morais.Em meio a esse projeto grandioso, que pretendia retirar a diversidade humana do reino incerto da cultura para localizá-la na moradia segura da ciência determinista do século XIX, pouco espaço sobrava para o arbítrio do indivíduo. Da biologia surgiam os grandes modelos e a partir das leis da natureza é que se classificavam as diversidades. Certamente essa não era a única versão que explicava, naquele momento, as sociedades em seu comportamento. É possível dizer, no entanto, que os modelos deterministas raciais foram bastante populares, em especial no Brasil. Aqui se fez um uso inusitado da teoria original, na medida em que a interpretação darwinista social se combinou com a perspectiva evolucionista e monogenista. O modelo racial servia para explicar as diferenças e hierarquias, mas, feitos rearranjos teóricos, não impedia pensar na viabilidade de uma nação mestiça. Em depoimento, com riqueza detalhes, sobre a penetração das ideias de civilidade nas respectivas cidades brasileiras; o que culminou no ataque implacável às manifestações de cunho africano, como também a exclusão da população negra. O historiador Luis Cláudio Nascimento informou em depoimento: A gente se sabe que é um período que se chama Belle Époque, né que vai de 1904 é a data histórica por determinação policial e por determinação mesmo do governo do Estado de proibir qualquer tipo manifestação de cunho africano na Bahia. Isso foi um processo que aconteceu no Brasil, né, principalmente, no Rio de Janeiro, Recife, Salvador. Aqui na Bahia que eram locais onde a manifestação de cunho africano era muito intensa, né. E aqui em Salvador o documento que a gente encontra que mostra essa determinação de 6 proibição de qualquer tipo de manifestação de cunho africano não só o candomblé, mas a capoeira, os afoxés qualquer coisa que tivesse alguma relação com a África fosse terminantemente proibida e combatida com rigor. Então esse rigor seria prisão de manifestantes, invasão de terreiros de candomblé, apreensão de equipamentos, enfim, né. E também o afastamento da mulher, principalmente, a mulher ganhadeira, né de mercar, de transitar nas áreas urbanas centrais da cidade. Então, Salvador, Rio de Janeiro, Recife sofreram intensamente esse tipo de perseguição. Então o projeto, era um projeto de, como é que diz, embraquecimento dos espaços públicos. Esse processo de embraquecimento se dava a partir de uma profilaxia dessas áreas urbanas. Essa profilaxia era afastar mesmo essa inserção dessas mulheres e também de meninos, dos capoeiras, do negro, né, fazendo com que eles fossem para a periferia. O “projeto civilizador” tinha como princípio enquadrar a sociedade dentro dos padrões que consideravam uma autêntica civilização e tendo como modelo as sociedades da Europa Ocidental. Assim conforme salienta Leite (1996, p. 11): Se o projeto higienizador, inicialmente, direcionou suas vistas para os problemas relacionados à estrutura e infraestrutura urbanas e para qualidade das habitações, não tardou em se preocupar com hábitos da população, assumindo uma dimensão social. Ele implicou em “ações simultâneas em três planos: o do espaço público, o do privado e o do modo de vida”. Buscou normatizar as habitações, passou a invadir a vida familiar e procurou “estruturar comportamentos individuais e coletivos”. Havia o objetivo de se controlar o modo de vida das classes populares, que com seus “péssimos” (conforme definiam as elites) costumes contribuíam para insalubridade da cidade. De acordo com Leite (1996), os projetos políticos defendidos na época voltaram-se para uma profunda crítica à insalubridade dos espaços públicos e, por consequência, atribuíram a ocorrência de uma série de doenças aos segmentos populares. Por essa ótica dominante, espaço insalubre e o comportamento popular confundiram-se assim: De projeto espacial, a higienização transfigurava-se em projeto social: a higienização do comportamento dos pobres e trabalhadores. Isto porque se formulara uma intricada associação entre “pobreza-saúdeimoralidade” ou, ainda, “pobreza-saúde-promiscuidade-subversão”. E ainda mais, tentava-se impedir, a todo modo, a medicância, os cultos místicos ou religiosos que não fosse católicos e as diversas formas de manifestações lúdicas populares (LEITE, 1996, p. 12). Nesse sentido, o dito projeto de modernização das cidades brasileiras trazia, em sua lógica, a incorporação de valores eurocêntricos, que perpassavam não só pela mudança dos aspectos físicos dos centros urbanos, como também o aspecto comportamental da população. Em outras palavras, modernizar significava, na verdade, expurgar qualquer sinal que considerasse atraso para 7 a sociedade, como: o projeto arquitetônico, as manifestações religiosas que não fossem católicas e os divertimentos das camadas populares. 2.2 AS VERSÕES ACERCA DA CRIAÇÃO DO TERREIRO DO VENTURA O Zoogodô Bogum Seja Hundé, conhecido popularmente como Terreiro do Ventura, é palco de controvérsias que disputam a memória de sua criação a partir de várias versões, tanto dos intelectuais quanto dos seus seguidores religiosos. Estas controvérsias evidenciam uma ausência de consenso em relação à sua origem. Trazer à tona essas várias representações é um dos pontos fundamentais da presente pesquisa, pois possibilita a reflexão acerca da temporalidade da memória, em especial, por tratar-se de uma tradição de oralidade. É bem plausível que a tradição oral sofra alterações ao longo tempo, mas nem por isso diminui o significado e o sentido da importância do Terreiro do Ventura para seus adeptos e, por extensão, para a cidade de Cachoeira. A equede Romilda da Silva Machado 2 esclarece em seu depoimento, que as informações acerca da criação do Seja Hundé foram transmitidas por meio de familiares, de geração em geração. Completa que em suas poucas lembranças ainda mantém a memória desse acontecimento. Vale enfatizar que na sua versão, fruto da tradição oral, contém informações que sintonizam com a apresentada por Parés (2009). Assim relata a equede Romilda da Silva Machado: Mas é uma pergunta que você está me fazendo de como surgiu que eu só sei malmente a história. Uma casa com quase duzentos anos e eu com 58 anos e eu não vou saber como diretamente como foi que surgiu, porque a eu sei a história, porque tenho parente antigo que era de lá, minha avó, mãe do meu pai [...] meu tio que era ogã, o ogã velho, porque era o ogã de Maria Gorensi, que é a fundadora de lá da Roça. Quer dizer que a história que sei contar foi quase a história contada por ele, porque não foi do meu tempo, porque eu tô com 35 anos – vou fazer agora no dia 29 – de confirmada. Quer dizer que eu vou saber uma história que aconteceu a cento tantos anos quase duzentos, porque eu me confirmei tô com 35 anos – vou fazer no dia 29. E meu tio era de Agorensi, que era o ogã mais velho e sempre 2 Romilda da Silva Machado, nasceu em 21 de março de 1955, na cidade de Cachoeira, com 58 anos de idade. Foi confirmada Ekede de Sogbo, em 29 de abril de 1975, por sua mãe de santo Gaiaku Agesì no Terreiro do Ventura. Entrevista concedida, no dia 09 de abril de 2013. 60 minutos. 8 contava lá em casa para minha mãe.E, no momento, a gente pequena começava a ouvir e quando meu tio morreu, eu não tava confirmada ainda não era suspensa.Eu só confirmei depois que meu tio morreu.[...] A Roça do Ventura, porque o Ventura era o marido dela, que era dono da terra, era em segredo e não era ogã da casa. Ele era ogã do Zé de Brechior, o jeje de cima, que unificou e ficou um só. Em relação à fundação do Terreiro do Ventura, o antropólogo Parés (2009, p. 182-183) apresenta a seguinte versão: [...] A Roça de Cima era vizinha, isto é, limitava com a antiga fazenda Ventura, onde atualmente está localizado o candomblé Seja Hundé que, como veremos, surgiu do candomblé da Roça de Cima. Num registro de terras, datado de 18 de março de 1860, menciona-se a Fazenda Ventura, assim chamada por ser propriedade de Luis Ventura Esteves, morador na freguesia de São Sebastião. Na descrição dos limites das terras, menciona-se, entre outros, o trecho que ia de “um pé de cajueiro grande”, no caminho do Engenho do Rosário, até “um pé de jaqueira do sítio de Vicente Ferreira”, descendo de lá até o rio Caquende. Esse “pé de jaqueira” é muito provavelmente a jaqueira da Roça de Cima, que marca ainda hoje, marca o limite com a Fazenda Ventura. Encontrei ainda um outro registro de propriedade, datado de 8 de junho de 1896, mas que vem oficializar uma escritura particular passada em 5 de agosto de 1882, pelo qual José Maria Belchior comprou por 200 mil réis uma fazenda denominada Sítio do Charema – Charene ou Cherema – de José Gonsalo Martins de Oliveira e sua mulher Amália de Oliveira. A localização do Sítio Charene, vizinho da “portaria de Ventura”, indica, sem dúvida, tratar-se da Roça de Cima. .[...] Nesse sentido, ogã Boboso afirma que, além de Dandagojí (Azonsu), também Ogum era “dono do terreiro”, talvez por ser Ogum o “dono da cabeça” de Ludovina Pessoa. Embora não haja evidência conclusiva, essas informações sugerem uma liderança religiosa compartilhada entre tio Xarene e Ludovina Pessoa. Aliás, a tradição oral sustenta que tio Xarene foi marido de Ludovina Pessoa, o que poderia ser uma distorção da memória oral para expressar essa colaboração religiosa. Independentemente desse possível relacionamento sentimental, como já vimos, a co-responsabilidade de um homem e uma mulher na liderança de um templo de vodum é prática comum no Benin e também em vários terreiros baianos do século XIX. Quanto à fundação do Seja Hundé, Nascimento (2007) apresenta a seguinte versão: [ ... ] sobre a fundação do Seja Hundé, ele me respondeu que “Desde quando havia Obitedô aqui na Cachoeira, onde existia aquela jaqueira ... Eu não conheci; conheci quando era já lá embaixo ...” Perguntei-lhe em seguida o que era Obitedô, e ele respondeu: “-Você não conhece? Ali embaixo do túnel, na ponte.Era ali embaixo, mais acima, onde tinha as cajás. Hoje só tem bambus ... Ali viviam as altas personalidades: Zé de Brechó, Salacó, Quixareme”. Quando Boboso diz, referindo-se ao Bitedô, “ali naquela jaqueira”, “conheci lá em baixo”, ele faz referência deslocada da Roça de Cima, que ele não conheceu, e da Roça de Ventura (lá embaixo), que ele conhece. Já ali embaixo. “No túnel”, etc., ele finalmente localiza o Bitedô. Infere-se daí que Boboso confunde, mas pretende dizer que Bitedô e o sítio Chareme foram lugares onde Zé de Brechó manteve um terreiro de candomblé, sendo o Bitedô em um tempo anterior a 1860 e o sítio 9 Chareme após essa data e com a associação de Ludovina Pessoa. Com efeito, interpretando e transcriando essa narrativa, a minha versão sobre a formação do Seja Hundé é a de que ele é oriundo do culto realizado até a primeira metade do século XIX nas terras do Bitedô que, como já fiz referência, pertenciam ao pai de Zé de Brechó. E, que com a construção de um túnel e um viaduto ferroviário nesse lugar, concluído em 1870, esse culto foi desfeito e reaberto por volta de 1880 em terras compradas por Zé de Brechó e José Gonsalo Martins de Oliveira, entre a Faleira e a vizinhança do engenho Rosário, no limite da cidade de Cachoeira com a zona rural do Iguape, dando origem a Roça de Cima (NASCIMENTO, 2007, p. 9093). Para enriquecer estas histórias controversas, o ogã Marcelino Gomes de Jesus 3, através do seu depoimento informa outra versão: O pessoal do Ventura. Tinha um grupo de pessoas da Roça do Ventura que veio pro Brasil livre, não veio como escravo. Quem instituiu a Roça do Ventura não veio pro Brasil como escravo. Vieram livres eram negociantes bastardo inclusive da família da Casa Estrela, que toda pertencia a Roça do Ventura, tinha senhoras. Eu conheci. Aí eu conheci duas: Tutuzinha e Santinha. Elas eram mulheres de 80 anos. Quando era criancinha com 5 anos já frequentava .Era mulheres de 70 anos elas morreram com quase 100 anos de idade a Tutuzinha deve ter já quase 100 anos quando faleceu e nem saia de casa. Dona Santinha, mas era ligada a Roça do Ventura. Tinha uma cozinha na Casa Estrela. Era uma indústria de doces o dia inteiro. Que todas as vendedoras de doces de Cachoeira, a maioria delas pegava a venda na Casa Estrela, que eles tinham dinheiro. Então qualquer mulher de santo chegava lá, enchia o tabuleiro de todo tipo de iguaria, de cocada, bolachinha de goma, pé-de-moleque e que não tinha fritava acarajé, mas dava para elas comprarem feijão e compravam feijão na mão dela. Era uma fábrica artesanal. Todo esse povo pertencia a Roça do Ventura só que esse povo não veio como escravo. O Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé é, sem dúvida, um terreiro de grande importância histórica para os seus adeptos e, por extensão, para a cidade de Cachoeira. Atualmente, o Seja Hundé está a quatro quilômetros da área central da cidade. Assim conforme Nascimento (2010, p. 135): O Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé está localizado no lmite da cidade com a Iguape, a zona açucareira de Cachoeira, distante dela a 4 quilômetros. Essa localidade é conhecida como Lagoa Encantada, antes denominada lagoa Faleira, no limite da extensa rua Benjamim Constant, antes denominada ladeira que sobe para Belém, estrada dos carmelitas e ladeira da cadeia. Trata-se, portanto, de um terreiro tradicional jeje-mahi fundado por africanos oriundos da área gbe ( região do antigo Daomé, atual República do Benin) que vieram para o Brasil livres e que souberam como ninguém proteger e manter 3 Marcelino Gomes de Jesus nasceu em 02 de junho de 1949, na cidade de Cachoeira. Ogã que foi iniciado no Rumpame Ayono Runtó Logi, terreiro de nação jeje-mahi, fundado por Gaiaku Luisa. Entrevista concedida, concedida no dia 09 de abril de 2013. 30 minutos 10 viva a sua ancestralidade. Por isso, propõe-se a partir de relatos orais, trazer á tona informações preciosas acerca da influência do terreiro na construção das representações em torno da cidade. Assim conforme Chartier (1990, p.17): As representações do mundo social assim, construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão são sempre determinadas por interesses de grupos que as forjam. Daí para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas( sociais,escolares políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. O depoimento da já falecida Gaiaku Luisa concedido ao psicólogo Marcos Carvalho denota que o Seja Hundé atraia um número acentuado de pessoas de Cachoeira que não ia somente apreciar as suas festas, mas também recorriam às práticas médico-religiosas de cura e tratamento da saúde física e espiritual existente nos terreiros de candomblé. [...] No Ventura havia muita vodunsì e só o pessoal da casa lotava o candomblé.Elas estavam sempre descalças, porque só quem podia usar chinelo era a mãe -de -santo, uma Deré antiga, uma Equede.Usavam camisa com o pano -da -costa amarrado, sem bata. Vinham para o Zandró com seus cabelos presos e algumas usavam tranças, mas nenhuma com pano na cabeça. Se a Vodunsì fosse de santo homem e repartisse o cabelo, era multada, teria que pagar uma galinha para quem fosse de santo mulher. Só quem podia repartir o cabelo, ao meio ou de lado, eram as Vodunsì de santo mulher. Se esta penteasse para trás sem repartir, era multada e teria que pagar um galo a quem fosse santo homem. Quando o povo de Cachoeira via aquelas mulheres negras subindo a para a Roça de Ventura, perguntava: “O que vai ter lá no Ventura?” Elas respondiam: “É o Boitá”. O povo com medo falava: “Então, não vou lá não!” Eles tinham pavor de ir ao Gboitá, porque havia a conversa de que, se caísse no Gboitá, não levantava. Lembro uma vez, no Gboitá, papai mandou fazer uma carreira de bambu verde de um lado e do outro, fazendo uma espécie de túnel. Ia de Soròkê até Aziri-Tobosì.[..] A luz da roça era de carboneto e,quando acendia, parecia que era fosforescente, iluminando bem mesmo. [...] Antes de começar o Zandró, costumavase rezar o ofício, mas depois deixei de fazer. Quando acabava a reza, a tia sentada em seu banquinho, com seu cacetinho na mão, dizia: “Vamos, vamos... Que eu quero colocar meu Valuvava no chão!!!” Alia se comia “de mão” e, quando acabava, não podia lavar a mão, passava pelo corpo pedindo proteção ao Vodum. Se estava com alguma dor no corpo, passava a mão suja da comida de santo sobre o local, pedindo para ficar bom (CARVALHO, 2006, p. 83-84). A ekede Romilda Machado Rocha, a partir de suas lembranças, revelou que Cachoeira tinha um enorme contingente de africanos que se instalaram lá em virtude do porto que propiciava esse trânsito de pessoas. Além disso, a mesma cita três africanos pertecentes a Roça do Ventura tais como: Lodovina Pessoa, 11 e dois irmãos um chamado Zé de Brechó e Salacó que fizeram fortuna na cidade e foram responsáveis pela construção da fama de Terra de macumbeiros, o que pode ser confirmado no depoimento a seguir: [...] porque essa africana que era Lodovina Pessoa era uma africana legítima que veio..., porque a única ponte de entrada que tinha dos africanos era por Cachoeira. O que não tinha saída em lugar nenhum. Quando eles vinham no navio negreiro... A única saída que tinha era por Cachoeira por causa do porto, porque ninguém saia por Muritiba. O rio passa em Muritiba? Ninguém saia por Cruz das Almas, ninguém saia por Santo Amaro, ninguém saia por nada. A saída que tinha... Quem vinha todo os pontos os africanos era aqui em Cachoeira. Ele vinha de Cachoeira saltava aqui no navio. Que tinha o navio Paraguaçu e o São João das Botas ele saltava aqui. E se instalava aqui pelas recuadas, os lugares recanteados. Como o Bitedô que era a ponte do Batedor. Que nego chama a ponte do Batedor, mas é o Bitedô que é a casa de uma nação que abriu em Cachoeira africana.Quer dizer, no momento, que ela se instalaram aí botou essa fama aqui em Cachoeira de “Terra de Macumbeiros”, porque os africanos se instalaram aqui e a distração era fazer macumba. E,principalmente, o pior feiticeiro que tinha,macumbeiro que tinha foi o que ganhou fama aqui em Cachoeira. Foi o Zé de Brechior e Salacó era de uma família africana mesmo. [...] Era uma pessoa que fez fortuna aqui em Cachoeira. [...] chama de Zé de Brechó, porque fala na Língua Portuguesa, mas é Brechior que era africano e o Salacó. O Salacó foi porque ele nasceu umbilicado. Todo mundo que nascia dentro da África que era chamado Salacó, porque nasceu no saco umbilical. Aí ele era forte! [...] É, por isso, que Cachoeira ficou com essa fama. Que ele olhasse assim para você. E você fizesse alguma coisa de errado que não gostasse. Ele só dizia duas palavras e você já estava enfeitiçado. Esse povo todo é nosso! É, por isso, que criou essa fama em Cachoeira. Marcos Carvalho (2006), em sua obra, cita o depoimento de um vizinho que morava próximo ao casarão, que ficava em cima do Bar Sete Portas, antiga residência de Zé de Brechó, sobre a rivalidade com seu irmão Sálákò. O vizinho que não se identificou contou que: Zé de Brechó e seu irmão Sàlàkó eram muito respeitados aqui em Cachoeira. Eu era pequeno e ouvia essa história: uma dia Sàlàkó estava na janela daqueles casarões antigos da rua da Matriz, quando passou uma branca gorda e começou a rir dele, achando-o um negro engraçado. Ele ficou revoltado, falou umas palavras e a branca danou a rir e não parava mais. Ela ria que chegava a urinar e obrar. Ria de manhã á noite e resolveram, então, levá-la para Zé de Brechó dar um jeito nisso. Somente ele poderia desfazer a bruxaria feita pelo irmão. E assim foi feito, pois, quando chegaram em Zé de Brechó, ele falou umas palavras e a branca parou de rir. Ele não fez isso pela branca não! Fez pelo prazer de desfazer o feitiço do inimigo-irmão (CARVALHO, 2006, p. 29-30). 2.3 AS ARTICULAÇÕES POLÍTICAS ELABORADAS PELO POVO DE SANTO 12 Sem dúvida, o negro, ao longo de sua história, soube criar poderosas estratégias de resistência frente a tentativa de cerceamento de sua liberdade. O revisionismo historiográfico já evidencia que a ordem escravista que vigorou, no Brasil, sempre foi posta em xeque. Isso implica dizer que o edifício da escravidão de certo modo, foi abalado por revoltas escravas. Tudo isso, sugere, evidentemente, que houve uma forte tensão entre cativos e senhores naquela época. É sabido, portanto, que o sistema escravocrata não se reproduziu baseado, exclusivamente, no método coercitivo, ou seja, nem sempre o açoite serviu como instrumento para disciplinar os escravos. Reis (2005, p. 32) salienta que: O combate à autonomia e indisciplina escrava, no trabalho e fora dele, se fez através de uma combinação da violência com negociação, do chicote com a recompensa. Os escravos também não enfrentaram os senhores somente através da força individual ou coletiva. As revoltas, a formação de quilombos e sua defesa, a violência pessoal, conviveram com estratégias ou tecnologias pacíficas de resistência. Pode-se dizer, então, que a trajetória de resistência do povo negro marcou profundamente a sociedade brasileira a qual vivia sob a égide da instituição da escravidão. Isso revela que tal povo aproveitou perfeitamente os instantes de vulnerabilidade do sistema para burlar essa repressão. João Reis (2005), em seu livro - Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista enfatiza que tanto os escravos, quanto as autoridades escravistas souberam usar o jogo da barganha política no sentido de garantir o êxito nas suas batalhas diárias. O ogã Marcelino Gomes, em seu depoimento, denota com riqueza de detalhes que o povo negro no contexto do escravismo soube burlar a repressão dos seus senhores, mantendo-se viva as suas tradições religiosas. Além de apresentar algumas especificidades comuns nas respectivas nações: Ketu, Angola e Jeje. O povo de ketu era povos nômade. É um povo que eles na África veneravam um só orixá que um caçador Oxossi. Quer dizer o caçador! Então, um povo que viveu nômade... mas o povo da área da Nigéria, povos da área devia ter qualquer outro lugar da África nômade é nômade. E quando se juntava esse grupo de nômade esse grupo venerava a Oxossi que era o caçador. Então, esse povo de ketu que invadiu várias vezes o Daomé que botou os jejes pra fora várias vezes, os daomeanos pra fora, porque você lutar, por exemplo, um trabalhador braçal contra um médico, um professor claro que ele leva vantagem, né? Então, os povos nômades eram povos muito fisicamente muito mais resistente do que os doutores, os agricultores 13 que trabalhavam mais lentamente. Então, geralmente o Ketu venceu várias guerras. E aqui, no Brasil, a grande diferença do Ketu pra outras nações é como ele venerava um só orixá. Aqui você teve centenas de etnias, mas pequeníssimos grupos, porque a primeira coisa que o senhor de engenho fazia era separar as etnias, trocar com outros fazendeiros de longe, de outros estados. Bahia, Pernambuco com Bahia, Rio de Janeiro com Maranhão, porque você não queria tem uma tribo na sua fazenda, porque aí era perigoso pra os senhores de engenho. Então, eles fazia essa troca, vendia... Então, ficava de cada etnia pouquíssima gente. Então pra você manter suas tradições era difícil. Que é que o povo de Ketu fez já acostumado no pique de nômade. Eu considero o maior trabalho político, social, religioso no Brasil a nível de África que fez foi o povo de Ketu, porque o povo de ketu reuniu todo aqueles pequenos religiosos que não tinha condições de se manter sozinho e criou terreiros dentro do quilombo. Cada quilombo era um terreiro na própria senzala. [...] Então, o samba já que não posso dançar, as danças de candomblé tem o samba, mas dentro da senzala você tinha vários orixás assentados. A gente venera a divindade suprema do universo representado pela água, rocha, luz e vento. [...] Já o povo de Angola já veio de lá da África com o panteão mais ou menos organizado e fez esse trabalho também, mas só que bem menor que o Ketu. Já excelentíssimo Jeje veio com o panteão organizado, fechado não se abriu e continua fechado até hoje, por isso, o jeje tá indo embora se acabando. O Jeje é uma nação muito fechada, porque a gente é iniciado sobre juramento de morte de não revelar os segredos. Como já foi mencionado, a resistência negra perpassou a história do Brasil escravista. Durante as primeiras décadas do século XX, as comunidades afroreligiosas também reagiram às incursões policiais contra seus espaços sagrados através de formas sutis de resistência que, de certo modo, mostraram-se eficazes na política de proteção das suas tradições religiosas. Braga (1995, p. 32) afirma que: As investidas da Igreja e da sociedade dominante não foram capazes de reduzir os anseios de liberdade religiosa da comunidade negra na Bahia. Ao contrário cristalizou-se entre o povo-de-santo um profundo sentimento religioso capaz de superar, nos dias atuais, as adversidades oriundas das intransigências de segmentos da sociedade que relutam em aceitar a identidade cultural diferenciada da população negra no Brasil. Convém elucidar os fatores responsáveis pela não perseguição do Terreiro do Ventura, no contexto de uma intensa política persecutória, que tentou a todo custo banir a herança cultural negro-brasileira da cidade de Cachoeira.Essa elucidação dos fatos ancorou-se nos depoimentos orais, que serão respectivamente apresentados. O ogã Marcelino, através de suas lembranças, contou que A Roça do Ventura era muito bem frequentada por grandes autoridades políticas, e que teve uma tentativa frustrada de invasão da polícia neste espaço sagrado. 14 A Roça do Ventura tinha um relacionamento muito grande com deputados etc,etc,etc. Tem uma história verbal que uma vez, uma festa, uma obrigação no Ventura exatamente a obrigação que a gente no Jeje faz São joão. No mês de junho que o mês que chove muito é inverno aqui. E a polícia tentou atacar a Roça do Ventura, porque não era a grande festa. A grande festa era janeiro! Aí você tinha políticos lá dentro de altíssimo nível minha mãe de santo... foi criada lá dentro o pejigã da Roça era pai carnal da minha mãe de santo.E ela sempre diz: era cada cavalo mais belo do que o outro muito bem arriado, durante todo mês de janeiro de políticos que ia para Roça do Ventura. Minha mãe de santo teria 103 se tivesse viva, ela foi criada de 11 a 12 anos tava criada na Roça do Ventura. O pai dela quando foi confirmado pejigã, ela tinha 7 anos. Então, ela viu todo esse povo entrar e sair da Roça do Ventura. Agora volto a história do mês de junho. O mês de junho que ia muito menos gente que a festa menor. Era uma festa bem menor e de pouca freqüência. Tempo frio a Roça até perto, mas na época era muito longe pra se chegar lá. Então, tinha menos quase político nenhum a polícia resolveu atacar a Roça e aí conta-se que quando chegaram no assentamento o jeje chamado de Aizan. Os cavalos escorregaram, os policiais caíram do cavalo e se batia na lama, se batia na lama. Aí mandaram chamar dona Maria, humbono Maria Gorensi, e lá ela mandou que os ogãs viessem e vai vê o que está acontecendo. E que foram lá pegaram eles levaram para o Caquende deram banho emprestaram roupas que saíram labriados de lama. [...] Essa é uma história que eles contam aqui que eu ouvia de várias pessoas velhas conta.Mas a Roça do Ventura não era tão atacada, porque a Roça do Ventura tinha peso político lá dentro. A ekede Romilda Machado também informou que, durante as festas do terreiro, tinha segmentos da sociedade cachoeirana que freqüentava o terreiro como, por exemplo, os grandes comerciantes e, sobretudo, os membros da Maçonaria. Quando teve uma festa de uma ekede que ia dá uma obrigação. E essa ekede era cheia de dinheiro e ia botar luz de motor. Aí a Cachoeira encheu! Que a Roça do Ventura apesar de ser uma casa de origem africana, todos esses comerciantes de Cachoeira quase todos freqüentava a Roça. [...] Todos os comerciantes ricos, principalmente, maçons. Quando tinha festa lá na Roça aquelas cadeiras toda da frente era tudo de maçom.E o maçom gostava da Roça, porque diz a Roça do Ventura tem um quê da Maçonaria, porque a Maçonaria tem um segredo que não é divulgado pra ninguém e aquele que divulga algo que sai recebe uma pena. Leomar Borges 4 relatou, em sua entrevista, que a Maçonaria não proíbe que seus membros tenha vínculo com determinadas denominações religiosas haja vista que a mesma é uma filosofia. A Maçonaria não é uma religião. Ela é uma associação de homens que, ao longo da história, sempre trabalhou pelos processos de desenvolvimento do ser humano, seja a parte intelectual, seja a parte 4 Leomar Borges dos Santos, natural de Salvador, 43 anos, membro da Irmandade Rosário dos Pretos.Entrevista concedida, no dia 07 de maio de 2013. 20 minutos. 15 filosófica, seja a parte, né espiritualista. E, por isso, que ela não cerceia que diferentes membros de diversas religiões participe do seu seio. O que não pode é não acreditar em Deus, não acreditar na imortalidade da alma. Então, a Maçonaria tem nos seus quadros membros de todas as religiões que você possa imaginar católicos, evangélicos, candomblecistas, islâmicos, judaicos. Então, como ela atua hoje no mundo todo, então, em cada continente, em cada região, em cada local que ela atua e que existe tem em seus quadros membros das diversas religiões. O que não pode ter na Maçonaria são ateus. Então, você tem maçons católicos, você tem maçons que são iniciados no candomblé, você tem espíritas. Então, ele tem essa capacidade de está em todas as classes sociais, desde a motorista de ônibus, a desembargador, a presidente, a procurador geral a pessoas simples e atua em diversas áreas. Qual é o tripé da Maçonaria? Família, Pátria e Deus. Então, são os três pilares da Maçonaria Deus, Pátria e Família. Então, o maçom ele tem que ser aquele que cuida da família, que respeita a família, que respeita seus filhos, que respeita sua esposa que respeita essa célula mater. A Pátria, ou seja, respeitando tudo aquilo que é direito, que é legal, que é legítimo, que está dentro das ordem constitucionais, respeitando as leis e exortando o desenvolvimento do seu país.[...] E Deus em primeira coisa, né! Que para nós arquiteto do universo. Então, a Maçonaria ela institucionalmente, ou seja, enquanto instituição ela tem mais de 300 anos, mas dentro da construção da humanidade ela perpassa todo o processo de construção da própria humanidade, porque ela é uma filosofia. [...] Tanto que nós maçons dizemos que a Maçonaria é o espaço de levantar templos a virtude e cavar masmorras ao vício! O historiador Luis Cláudio Nascimento informou, no depoimento a seguir, que a Loja Maçônica Caridade e Segredo de Cachoeira teve uma importância bem significativa no processo abolicionista e,mais tarde, o seu quadro foi ocupado por figuras negras inclusive do Ventura. [...] Os fundadores da Loja Maçônica Caridade e Segredo foram os mesmos fundadores da Sociedade Abolicionista 25 de junho. Essa Sociedade era formada por políticos brancos que tinha escravos, mas que eram figuras liberais, eles estavam interessados no processo abolicionista, porque eles viam o progresso do país a partir da extinção do elemento servil como eles falavam. Você não vai desenvolver o país, você não vai criar uma política de igualdade empresarial, econômica se você ainda mantém a escravidão. Os únicos interessados em manter a escravidão era aqueles grandes proprietários de escravos viviam da mão-de-obra escrava e senhores de engenho que eram donos de grandes planteis. Mas esses comerciantes talvez então eles se tornaram abolicionistas e dentro desse processo eles faziam ruídos. [...] E aí dentro dessa Maçonaria começou a se infiltrar pessoas negras que tinha acesso a essa como Zé de Brechó, como esse Salacó, e outras figuras, Trampolino Bastos não sei se era maçom, tinha Cincinato Franca que e por aí vai! E quando eles fundaram a Sociedade Monte Pio dos Artistas. [...] De modo que quando passou o processo abolicionista esses africanos, essas figuras negras começaram a tomar conta da Maçonaria. [...] Então, começou a ser invadida por esses afro-descendentes Zé de Brechó era marceneiro, o irmão dele era carpinteiro, o outro tipógrafo. [...] Eram aqueles ligados ao candomblé do Ventura, então, por isso, que eu te falei.Eu não sei se a Maçonaria, no Brasil, teve essa função afro-religiosa. Mas em Cachoeira aqueles que sustentam a Maçonaria 16 no período abolicionista e depois abolicionista foram esse povo, esses intelectuais negros, a palavra é essa. Esses intelectuais negros pensaram a abolição, que estruturam a Irmandade Boa da Morte, que estruturam o candomblé, que foram estruturando uma identidade africana aqui. Ainda em depoimento, Nascimento informou que os membros do Ventura tinham fortes ligações com certos segmentos sociais de Cachoeira; além de ter em seu edifício conventual, integrantes com grande poder aquisitivo, evidenciando alguns fatores para não perseguição deste terreiro. Então, Zé de Brechó era muito rico,tá o pai dele também era muito rico, além de rico ele era capitão da Guarda Nacional que é um título honorífico de grande valor social. Ele foi por duas vezes conselheiro municipal que era um cargo que correspondia a vereador. Ele foi por duas vezes foi suplente, ele era maçom e foi um dos fundadores de uma Sociedade classista chamada Sociedade Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos fundada em 1874 e que, na verdade, era uma sociedade abolicionista e que juntava uma porção de de negros. Esse Belchior Rodrigues Moura esse Zé de Brechó, ele morreu em 1902. [...] A Igreja Matriz da cidade como todas as igrejas matrizes só era velado pessoas da alta sociedade local. Então, ele foi velado dentro da Igreja Matriz da cidade pra o enterro dele vieram pessoas de Salvador doutor não sei quem. doutor não sei quem ... Pessoas de alta relevância social. E, além disso, houve um impacto social dentro da cidade. [...] Os amigos dele o padre da cidade era comendador era não sei quem... era não sei quem... Ele foi presidente da Irmandade dos Nagôs que é a única Irmandade para sepultamento exclusivo de africano, no Brasil, ainda em funcionamento que é aqui em Cachoeira. [...] Uma das fundadoras da Boa Morte foi a mãe de Zé de Brechó chamada Maria Morta. Então, esses fatores foram aqueles que determinaram a não perseguição. Então, houve como até hoje na memória oral fala que o Ventura a polícia não pode ir para o Ventura, porque o Ventura tinha “costa larga.” [...] Por exemplo, o pejigã do Ventura era guarda costa do maior político de Cachoeira de 1920 a 1930 que era Chamado Ubaldino de Assis foi deputado no Rio de Janeiro era de Cachoeira. Foi prefeito várias vezes. O tempo do coronelismo, o principal coronel da região de Cachoeira. Luis Cláudio também enfatizou em sua fala, que o Seja Hundé soube utilizar muitíssimo bem as estratégias de resistência, no sentido de proteger o terreiro de possíveis ataques da polícia em voga na época, na cidade de Cachoeira. [...] seu Bobosa foi um dos principais interlocutores do meu trabalho ele me falava que tinha um lugar chamado de Galinheiro ali no Bitedô. [...] Ali naquela localidade só passava quem tinha negócio. Eu coloquei textualmente como seu Bobosa me falou só passava quem tinha negócio. Só tinha negócio como? Porque lá tinha africanos fardados e usando lança, espada porrete que não deixava ninguém passar. [...] Então, houve uma relação extremamente africana no sentido de proteger a integridade do terreiro. Ela foi sempre protegida neste sentido que era uma rua habitada por africanos. [...] Isso impossibilitou o acesso de policiais descer de cavalo ou a pé lá. [...] E o Ventura nunca fez nenhum tipo no rio Paraguaçu, eles se preservavam não se tem história do Ventura fazer presente no rio, porque era um candomblé diferenciado onde a nata da sociedade local participava. Então, era feito convites especiais, então, o prefeito da cidade ia, o deputado, o coronel da cidade ia, o grande 17 comerciante ia. E lá tinha uma sala que até hoje tem essa sala como a grande mesa onde eles eram servidos diferentes daqueles outros que comia na mão, na palha. [...] iam pra comer a ôlha como se fala a melhor parte com pratos e talheres muito bem montados, muito bem limpinhos, com vinhos, com bebidas, com águas. [...] Isso eram formas de resistência chamadas surdas. Sendo assim, percebe-se que nos respectivos depoimentos acerca do Seja Hundé as articulações políticas foram decisivas no sentido de proteger o terreiro. Isso denota que o povo de santo soube com muita sutileza transpor as perseguições as suas práticas médico-religiosas tradicionais de matriz africana. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A teia intricada em torno dos fatores históricos que corroboraram para que o Terreiro do Ventura não sofresse muitas incursões policiais na década de 1920 foi desfeita, à medida que houve um diálogo com as fontes. Evidentemente, que não foi uma tarefa nada fácil elucidar os fatos, mas por outro lado, tornouse gratificante no transcorrer da pesquisa montar o “quebra-cabeça” desta história. As cidades brasileiras, assim como Cachoeira, estavam fortemente influenciadas pelo projeto civilizador que tentava a todo custo cercear qualquer manifestação que não estivesse inserida dentro do modelo europeu. Tudo isto, provocou uma onda de ataques às práticas médico-religiosas tradicionais de matriz africana nesta região do Recôncavo baiano. Constatou-se ainda que apesar de Cachoeira estar envolta nesta atmosfera de perseguição as manifestações culturais e religiosas de cunho africano houve determinados terreiros de candomblé que conseguiram escapar das incursões policiais em voga naquela época. O exemplo do Seja Hundé é, certamente, um caso emblemático de exceção, no que se refere a esta perseguição. Isso implica dizer que este terreiro, por ter uma “blindagem política”, dificultava possíveis ataques ao seu espaço sagrado. O Ventura, como é chamado popularmente, como já foi dito, tinha uma peculiaridade, ou seja, o seu edifício conventual era composto por uma elite negra emergente, com trânsito facilitado nos estratos sociais de Cachoeira.Somando-se a isso, existia segmentos sociais que participavam ativamente das festas do terreiro, como por exemplo, figuras da política local, 18 maçons e grandes comerciantes. Isto implica uma manutenção de alianças políticas entre o Ventura e a nata da sociedade cachoeirana. O povo de santo do já referido terreiro soube como ninguém utilizar os instantes de vulnerabilidade do sistema no sentido de proteger as suas tradições afro-religiosas. Os adeptos do Ventura naquela época também criaram estratégias sutis de resistência que propiciaram manter viva a chama dos seus cultos afro-brasileiros. Através desta pesquisa foi possível entender o poder do povo de santo que, ao longo da sua trajetória, sempre reagiu aos ataques implacáveis dos setores sociais da época que através do aparato ideológico e coercitivo do Estado tentaram inibir e reprimir as manifestações culturais e religiosas de cunho africano. Apesar disso, o povo de santo conseguiu neutralizar tais ações do Estado,o que possibilitou manter o contato com as suas divindades.Por fim,tal pesquisa servirá de reflexão para que a sociedade compreenda os mecanismos político-ideológicos construídos historicamente para justificar e legitimar a repressão as práticas culturais e religiosas de matriz. REFERÊNCIA BACELAR, Jéferson. Mario Gusmão (1920-1996) – O santo guerreiro contra o dragão da maldade. Centro de Estudos Afro-Orientais- FFCH/ UFBA, 1997, p.19-20. BRAGA, Júlio Santana. A Cadeira de Ogã e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 1999. ________________ . Na gamela do feitiço: resistência nos candomblés da Bahia. 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São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 20 GLOSSÁRIO Assentamento: objeto ou elementos da natureza ( pedra, árvore,etc) cuja substância e configuração abrigam a força dinâmica de uma divindade. Azonsú: vodum do jeje-mahi que corresponde obaluaiyê nagô. Aizan: vodum jeje ligado a terra. Aziri Tobosi: vodum feminino das águas corresponde à yemanjá dos nagôs. Bitedô: lugar onde mora os nagôs. Deré: corresponde a mãe-pequena. Ekede: responsável por cuidar da vodunzì,assim que o vodum se manifesta. Gaiaku: é uma sacerdotisa consagrada a divindades presentes no panteão nagô, porém cultuadas na nação jeje como, por exemplo, Ogum, Oyá-Iansã, Nanã e Oxum. Humbono: primeira pessoa iniciada na Casa. Gboitá: obrigação jeje que ocorre no mês de janeiro onde existe uma procissão de vodum vestidos com roupas brancas ao redor das árvores sagradas. Ja: nome que eles dão a cobra de ferro utilizada no assentamento do vodun Bésen Jeje: o termo jeje quer dizer estrangeiro em yorubá,era povos do antigo reino do Daomé, atual Benim trazidos para o Brasil no século XIX. Pejigã: responsável pelos sacrifícios votivos do jeje-mahi. Sòròkê: é uma qualidade do Ogum assentado do lado direito da entrada dos terreiros de candomblé jeje-mahi. Sogbo: vodum jeje dos raios e trovões correspondente ao Xangô dos nagôs. Undé: em fon significa aqui neste lugar. Valuvavá: palavra que inicia a primeira cantiga do zandró. Vodum: divindade do jeje que corresponde ao orixá em nagô. Vodunsí: filho ou filha de santo que incorpora o vodum em transe. Zandró: é a obrigação que abre o ciclo de toques no barracão e feito na noite de sábado, tendo início a partir das 22 ou 23 horas e termina por volta das 2 ou 3 horas da manhã. É a chamada ou invocação dos voduns, feito com rezas,cantos e toques percussivos com a finalidade de anunciar aos voduns as oferendas de animais a serem realizadas no dia seguinte. Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé: Zo (fogo) Zoogodô corruptela de Zoonodo, que é uma divindade jeje representada em uma árvore; Bogum Malê: cofre onde eram guardados o dinheiro e as jóias dos malês; Seja: corruptela de Sèn que em fon significa adorar; Undé: em fon significa aqui neste lugar.