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MULHERES TECIDAS: O TRABALHO FEMININO NAS FÁBRICAS DE
TECIDOS NO FINAL DO SÉCULO XIX E PRINCÍPIO DO SÉCULO XX
Junia de Souza Lima
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica do CEFET/MG
Professor Dr. Irlen Antônio Gonçalves
Professor do mestrado em Educação Tecnológica – CEFET/MG
RESUMO: a preponderância da mão-de-obra feminina nas fábricas de tecidos nos primórdios da
revolução industrial é algo já sabido. Mas mesmo assim, há ainda, algumas questões referentes à
história das mulheres operárias que foram pouco tratadas. Questões que nos ajudam a compreender
o cotidiano e as relações nas quais estavam submetidas dentro da fábrica e de como esse processo
contribuiu para a formação da identidade dessas mulheres operárias. São indagações que, ao serem
mexidas e remexidas, podem nos ajudar a entender um pouco mais sobre essas mulheres operárias,
o significado que o trabalho apresentou para a vida delas, o que a fábrica pensava delas e qual o
papel que, essa mesma fabrica, cumpriu no contexto social. As fábricas têxteis em seus anos iniciais
se constituíram em um espaço social onde mulheres e homens se relacionavam devendo, por isso,
serem vistas, também, a partir de uma perspectiva do gênero.
PALAVRAS – CHAVE: Fábrica; Gênero; República
- Senhora, sabeis fabricar uma tenda? Disse o rei, quando Fátima foi conduzida à sua presença.
- Creio que sim, Majestade.
E pediu que lhe trouxessem cordas, mas não havia. Lembrando-se de seus tempos de fiandeira, Fátima
colheu linho e confeccionou as cordas. Depois pediu uma tela forte, mas os chineses não dispunham do tipo
que ela precisava. Utilizando sua experiência junto aos tecelões de Alexandria, Fátima fabricou uma tela
resistente. Percebeu que precisava de estacas, para sustentar a tenda, mas também não as encontrou na
China. Fátima, então, recordando-se do ensinamento do fabricante de mastros em Istambul, fez, com muita
habilidade, estacas firmes. Quando estas ficaram prontas, ela puxou de novo pela memória, buscando
lembrar-se de todas as tendas que havia visto em suas viagens. E a tenda real foi construída.
Quando tal maravilha foi mostrada ao imperador, ele se prontificou a satisfazer qualquer desejo que Fátima
expressasse. Ela escolheu estabelecer-se na China, onde depois se casou com um belo príncipe. Rodeada de
seus filhos e de seu marido, viveu muito feliz até o fim de seus dias.
Foi através destas aventuras que Fátima compreendeu que o que lhe parecera, em cada ocasião, ser apenas
uma experiência desagradável se tornou parte essencial na construção de sua felicidadei
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(trecho da história Fátima Fiandeira)
1. Introdução
Este texto diz respeito a um estudo de caso na Companhia de Fiação e Tecidos
Cedro e Cachoeira, ainda em andamento, que tem como objetivo principal compreender a
inserção da mão-de-obra feminina nos primeiros quarenta anos da República, e sua relação
com o contexto social, político, econômico e cultural do período. Visamos aqui trazer à
tona algumas reflexões que fundamentam o estudo de caso acima citado, e que
consideramos pertinentes e importantes sobre o trabalho feminino nas primeiras fábricas de
tecidos.
A preponderância da mão-de-obra feminina nas fábricas de tecidos nos
primórdios da revolução industrial é algo já conhecido. Vários são os trabalhos que tratam
desse tema. Apenas para destacar alguns autores podemos citar: Rago (1985, 1997), Perrot
(1988), Hobsbawm (1979), Nogueira (2004).
A leitura desses e outros estudos nos informam da importância da indústria
têxtil para a consolidação do capitalismo, tanto no Brasil, quanto em outros países, ao
mesmo tempo em que deixa clara a participação majoritária da mulher no processo de
trabalho nas fábricas de tecidos, ocupando-se dos fusos e teares.
Sem dúvida estes estudos oferecem uma análise consistente acerca da
industrialização e da participação feminina no trabalho das fábricas. Mas, as suas análises
acabam por privilegiar abordagens que incidem sobre o coletivo, o discurso de classe, os
movimentos feministas e anarquistas. Entretanto, deixam uma lacuna quanto às práticas
cotidianas nas quais as mulheres estavam inseridas.
Há, ainda, algumas questões referentes à história das mulheres operárias que
foram pouco tratadas. Questões que nos ajudam a compreender a sua inserção a partir do
seu cotidiano e das relações nas quais estavam submetidas dentro da fábrica e, de como
esse processo, contribuiu para a formação da identidade dessas mulheres operárias. O que
levou as mulheres para o trabalho nas fábricas de tecidos e quem elas eram? Que espaço
elas ocupavam na fábrica? Que embates e contradições permearam o seu cotidiano dentro
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da fábrica? Além dos baixos salários, que outros fatores levaram a indústria têxtil a
empregar mulheres em grande quantidade? E ainda que papel a fábrica cumpriu na
formação e na conformação da mulher nos primórdios da República? São indagações que,
ao serem mexidas e remexidas, podem nos ajudar a entender um pouco mais sobre essas
mulheres operárias, o significado que o trabalho apresentou para a vida delas, o que a
fábrica pensava delas e qual o papel que cumpriu no contexto social.
2. A industrialização e a Cia. de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira
A industrialização brasileira tem seus primeiros contornos delineados no início
do século XIX. Entretanto, é partir da década de 1870, que o cenário dá sinais relevantes de
mudanças e a indústria nacional inicia seu processo de expansão e fortalecimento,
impulsionado, principalmente, pelas fábricas de tecidos.
Os ares republicanos já começavam a soprar e, nas palavras de Stein (1979, p.
97), a “indústria democrática apontava o caminho da modernização e revitalização do
Brasil. Só ela, pensavam alguns brasileiros, poderia trazer felicidade para o trabalhador e
aumentar o capital dos investidores”.
Esse movimento de expansão e fortalecimento se intensificou nos anos de
1880 e a indústria algodoeira cresceu de forma considerável. Muitas fábricas foram criadas
e, muitas já instaladas conseguiram ampliar seu capital e sua produção. A partir daí, já
consolidado e com condições favoráveis para o se crescimento, o ramo algodoeiro se
fortaleceu, apontando o caminho para outros setores industriais. De acordo com
Hobsbawm: “deu o tom à mudança industrial e foi o esteio das primeiras regiões que não
teriam existido se não fosse a industrialização” (1979, p.53).
Fortalecida, a indústria se inseriu no período republicano como o próprio
símbolo da modernidade e do progresso. Contribuindo para inaugurar uma nova
racionalidade e, por conseguinte, uma nova ordem com novas regras do jogo e novas
disciplinas (PERROT, 1988).
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Nada melhor que as fábricas com suas chaminés para simbolizar esses novos
ideais. A industrialização significou o caminho para aproximar o Brasil do modelo
capitalista moderno vindo dos Estados Unidos e da Europa.
Em Minas Gerais esse processo de expansão não foi diferente. A partir de 1872
várias fábricas foram instaladas no Estado. Isso ficou tão evidente que Caetano
Mascarenhas, um dos fundadores da Fábrica do Cedro, assim relata em uma carta de 11 de
novembro de 1886 endereçada a seu irmão Theophilo:
[...] Diga como vai isso por ahi. Já deveis saber que o José João formou uma Companhia para
assentar uma fábrica de tecidos na Freguesia do Pau Grosso, e me parece que já há por lá
subscriptos 150:000.000 e tratão de tirar aguada da fazenda de São Vicente. O assentamento de
machinas é epidemia por agora. (Museu Têxtil Décio Mascarenhas, Fábrica do Cedro, Caixa
Box nº3)ii
Dentre todas as fábricas de tecidos instaladas em Minas Gerais, a partir da
década de 1870, merece destaque a Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira. Ela
foi pioneira no setor em Minas Gerais e a sua fundação se deu no período do boom da
indústria têxtil, no final do século XIX. Sua história começa em 1868 quando os irmãos
Bernardo, Caetano e Antônio Cândido Mascarenhas se uniram e fundaram a empresa
Mascarenhas Irmãos LTDA com a finalidade de construir uma fábrica de tecidos.
Em 12 de agosto de 1872 foi inaugurada, no povoado do Cedro, localizado no
arraial de Taboleiro Grande, atual cidade de Paraopeba, a Fábrica do Cedro (VAZ, 1990,
p.51). Era uma fábrica pequena, montada inicialmente com seus “18 teares acionados por
uma roda d’água de 40 cavalos de potência” (GIROLETTI, 1991, p.24).
Dadas as precárias condições econômicas do povoado do Cedro, a Fábrica
possibilitou uma dinamização da economia local, gerada principalmente, pelos empregos,
recursos e melhoramentos que oferecia ao arraial (DUARTE, 1986, p.103).
Inserida em uma região produtora de algodão e sem sofrer concorrências nos
primeiros anos de produção, a Fábrica do Cedro prosperou e se consolidou. Nas palavras de
Vaz:
Operando por quase 10 anos sem concorrência, puderam impor livremente o preço de seus
produtos, além de estabelecerem uma base segura de dominação de mercado, que permitiu que
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sua zona de influência não fosse seriamente afetada, quando a concorrência de outras fábricas
instaladas na região se manifestou. Assim, uma decisão econômica, que, à primeira vista,
parecia conter todas as características de inviabilidade, mostrou-se eficaz e, se não podemos
afirmar categoricamente que ela tenha sido a causa do sucesso do empreendimento, é licito
suspeitar que contribuiu para sua rápida consolidação. (1990, p.50)
Para acomodar a maioria dos operários, que eram recrutados na própria região,
a Companhia fez uso da vila operária, construída ao redor da fábrica. Havia, ainda, o
Convento para as moças solteiras, o alojamento para os rapazes solteiros, a escola, o
refeitório, a capela, além de outras construções.
Bem planejada e administrada pelos seus fundadores (LIBBY, 1988, p.241), a
Fábrica do Cedro atingiu uma rentabilidade acima do esperado. Motivados pelos lucros
obtidos, seus proprietários decidem pela construção de outra fábrica de tecidos e, para
tanto, criam uma nova sociedade a “Mascarenhas Irmãos & Barbosa”. Em 1877 a fábrica da
Cachoeira entrava em funcionamento, nas proximidades da cidade de Curvelo “com 52
teares, quase o triplo da quantidade, inicialmente instalada na Cedro”. (GIROLETTI, 1991,
p. 28)
A fusão das fábricas em uma única companhia ocorreu em 1883, devido a
algumas dificuldades enfrentadas pela fábrica do Cedro, e também, em decorrência da visão
modernista de um de seus fundadores, Bernardo Mascarenhas, que “constatara na Europa e
nos Estados Unidos o movimento de concentração de capital formando grandes empresas”
(GIROLETTI, 1991, p.28).
Atualmente a Cia. de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira possui quatro
fábricas em Minas Gerais. A fábrica do Cedro, a pioneira, localizada em Caetanópolis,
antigo povoado do Cedro, as fábricas Victor Mascarenhas e Caetano Mascarenhas, ambas
localizadas em Pirapora e por último, a fábrica Geraldo Magalhães Mascarenhas, localizada
no município de Sete Lagoas.
3. As mulheres na fábrica
Ao se pensar sobre o cenário industrial do século XIX e princípio do século
XX não se pode deixar de mencionar a importância da participação da mulher neste
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processo. Hobsbawm (1979, p.64), fazendo referência às fábricas de tecidos da Inglaterra e
sua preferência por mulheres e crianças afirma que “em 1838 apenas 23% dos
trabalhadores das fábricas de tecidos eram homens adultos”.
No Brasil e em Minas Gerais isso não foi diferente. Na Cia. Industrial São
Joanense, entre os anos de 1897 e 1900, dos cem operários que trabalhavam na Cia. neste
período, 21% eram homens e 79 % eram mulheres (RESENDE, 2003, P.63). Em relatório
de 02 de agosto de 1883 o Presidente da Província Mineira observava que “hoje nossa
Província conta com nove fábricas que elevam ao importante algarismo de cerca de 12 mil
metros de pano a produção diária, e dão trabalho profissional e lucrativo a setecentos
operários, a máxima parte do sexo feminino” (MAGALHÃES, 2006, p. 76-77).
No caso da Cia. de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira a situação se repete.
No primeiro relatório anual da Companhia, apresentado pela sua Diretoria consta que em
1884 trabalhavam na Fábrica da Cachoeira 141 pessoas, das quais 58 eram mulheres e 26
eram meninas. Na Fábrica do Cedro a situação não era diferente, havia 53 eram mulheres e
23 meninas num total de 123 trabalhadores (MASCARENHAS, 1972, p.128-29).
Em
1888 essa situação se mantinha, pois na havia 107 mulheres trabalhando, contra os 46
homens, correspondendo a um percentual de 55% da mão-de-obra total empregada. Na
fábrica da Cachoeira do total de trabalhadores, 44% eram mulheres contra apenas 14% dos
homens (GIROLETTI, 1991, p.79-80). A Fábrica de São Sebastião, também pertencente a
família Mascarenhas “empregava em 1882: 75 operários “cuja maior parte era composta
pelas moças pobres de Dindinha (...) moças órfãs que Dindinha socorria.” (idem).
As mulheres eram as fiandeiras e as tecelãs, funções importantes dentro da
fábrica, mas que não exigiam qualificação. O seu aprendizado se dava no trabalho.
Compunham a massa de trabalhadores desqualificados. Aos homens, ao contrário, eram
destinadas as funções que exigiam mais qualificação como chefias, contramestres,
gerências. Os salários que recebiam também eram diferenciados, pois, além de serem
menores do que os dos homens eram determinados pela produção, metragem e qualidade do
produto (GIROLETTI, 1991, p. 37).
Mesmo com todos os estudos e pesquisas feitas acerca da industrialização e do
trabalho feminino nas fábricas o que se sabe sobre o cotidiano dessas mulheres na fábrica?
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O historiador francês Georges Duby em 1981 afirmava e ao mesmo tempo indagava sobre
as mulheres: “Fala-se muito. Mas o que se sabe delas?” (PERROT, 1988, p.171). Margareth
Rago pergunta por sua vez: “Afinal, o que sabemos sobre as trabalhadoras dos primórdios
da industrialização brasileira?” (RAGO, 1997, p.579). Sabemos muito pouco. E o que
sabemos, muitas vezes, vem escrito por homens a partir de documentos também produzidos
por eles. Sem uma fala que lhes fosse própria, as mulheres operárias das primeiras fábricas
de tecidos tiveram sua vida registrada pelo olhar masculino.
As primeiras fábricas de tecidos foram instituições idealizadas, organizadas e
gerenciadas por homens. Isso talvez tenha sido mais um dos fatores que contribuíram para
considerar as mulheres as mais adequadas para o trabalho nestes espaços produtivos, já
acostumadas que estavam à obediência, à submissão, ao mando e ao poder masculino. As
fábricas apenas transpuseram para o espaço público aquilo que já estava, de alguma forma,
consolidado no espaço privado. Segundo Rago:
Estabelece-se então uma relação pedagógica, paternalista, de subordinação da mulher frente
ao homem, exatamente como no interior do espaço doméstico. O pai, o marido, o líder devem
ser obedecidos e respeitados pelas mulheres, incapazes de assumirem a direção de suas vidas
individuais ou enquanto grupo social oprimido. (1985, p.67-68)
Vemos a fábrica como um espaço de relações sociais, e neste sentido
acreditamos como Perrot (1988) que junto com outras instituições, ela cumpriu um papel de
socialização e conformação, a partir de valores e modelos construídos e valorizados pela
sociedade. Assim, ela tem a sua parcela de contribuição para a formação de identidades e
de uma cultura política que serviu aos propósitos dessa mesma sociedade. Nas palavras de
Decca:
Introjetar um relógio moral no coração de cada trabalhador foi a primeira vitória da sociedade
burguesa, e a fábrica pareceu desde logo como uma realidade estarrecedora onde esse tempo
útil encontrou o seu ambiente natural. (1998, p.10)
Deste modo, acreditamos que o espaço fabril e as relações que lá se
estabeleceram esbarraram também, nas questões que envolvem o gênero. No caso das
nascentes fábricas de tecidos, eram os homens que comandavam e as mulheres que
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obedeciam. Ver a fábrica a partir da perspectiva do gênero é ter consciência de que se trata
de um espaço social, político e de poder, onde as diferenças entre homens e mulheres
acabam por submeter os sujeitos a determinadas conformações, papéis sociais, lugares e
estereótipos. Conforme Louro
Se as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros (e também os
constituem), isso significa que essas instituições e práticas não somente “fabricam” os sujeitos
como também são, elas próprias, produzidas (ou engendradas) por representações de gênero,
bem como por representações étnicas, sexuais, de classe, etc. De certo modo poderíamos
dizer que essas instituições têm gênero, classe, raça. Sendo assim, qual o gênero da escola?
(1997, p.88)
Na citação acima, Louro indaga qual o gênero da escola. Essa indagação bem
poderia ser estendida à fábrica. E assim, parafraseando Louro, perguntamos, também: qual
o gênero da fábrica de tecidos em seus anos iniciais? Semelhante à escola, se direcionarmos
o olhar para os seus fundadores, idealizadores e administradores podemos dizer, sem medo
de errar, que a fábrica é masculina. Porém, se voltarmos o olhar para as suas trabalhadoras,
podemos dizer o contrário, a fábrica é feminina. A resposta a esta pergunta é difícil,
contudo consideramos que a fábrica de tecidos fundada no século XIX, tanto quanto a
escola dessa mesma época é “atravessada pelos gêneros”; e assim sendo, fica difícil pensar
sobre essa instituição “sem que se lance mão das reflexões sobre as construções sociais e
culturais de masculino e feminino.” (LOURO, 1997, p. 89)
A fábrica, juntamente com outras instituições sociais, produz uma racionalidade
e uma ordem próprias da sociedade industrial. Por meio da “disciplina industrial”, essas
instituições vão criando regulamentações que servem para conformar os sujeitos de acordo
com os interesses sociais. Conforme Perrot:
O século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexual. Cada sexo tem sua
função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase predeterminados, até em seus
detalhes [...] “Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos”, declara um
delegado, operários da exposição mundial de 1867”. (PERROT, 1988, p.178)
O olhar perpassado pelo gênero e pelas relações estabelecidas entre homens e
mulheres no cotidiano da fábrica nos ajudará a entender por que a fábrica do final do século
XIX e princípio do século XX fez a opção por confinar a mulher operária dentro de um
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“convento”,iii cerceando seus passos, controlando seus movimentos e, quiçá seus
pensamentos; por que fez a escolha por meninas, moças solteiras e viúvas como força de
trabalho majoritária; por que a disciplina sobre elas foi maior e mais rigorosa do que a
exercida sobre os trabalhadores homens. E é na leitura dessa realidade concreta que
poderemos encontrar respostas à perguntas como: qual o ideal de mulher que a fábrica
republicana buscou reproduzir em suas operárias? Que relação isso tem com os ideais
propostos pela República para as mulheres? O fato é que muitas dessas mulheres se
inseriam ainda muito jovens nas fábricas e ali aprenderam não só a serem operárias, mas,
também a serem mulheres. Um pouco dessa realidade cotidiana vivida por elas é, assim,
descrita por Giroletti:
A convivência com o mundo exterior era objeto de regulamentação própria. As moças viviam
em regime de clausura. Ao saírem do Convento, ingressavam em outros espaços sociais
fechados, onde suas vidas e seus comportamentos continuavam regulados e fiscalizados: na
fábrica, pelo regulamento interno, pelos chefes, subchefes e pelo gerente; na escola, pelas
normas disciplinares escolares e pela autoridade do professor; na igreja, pelo controle social
exercido pelos fiéis, pelo padre e pelas autoridades presentes. Em outras circunstâncias, o
contato com o mundo exterior seguia regras de mosteiros ou de outras casas religiosas. Os
conventos, como aqueles, eram cercados por muros altos. O da Cedro, segundo uma
informante, tinha três metros de altura. Havia também muro no da Cachoeira. (1991, p.179)
E ainda de acordo com Tamm (1949), citado por Giroletti:
A única cousa que desejava era ajudar aquelas pobres coitadas, e que se sentia muito bem
paga com o prazer que tinha em poder fazê-lo [...] Do salário de suas moças, Dindinha, com
alta compreensão do que fazia, retirava a pequena parcela de 9$000 mensais para alimentação,
descontava as despesas do vestuário e guardava o restante, que ficava em seu poder, rendendo
juros, numa escrituração feita por Vitor. Assim, cientes destes pequenos descontos, aquelas
moças podiam ter orgulho, enormemente benéfico, de saber que se alimentavam e se vestiam
à custa de seu próprio trabalho. (TAMM, citado por GIROLETTI, 1991, p.80)
O fragmento da história “Fátima, a fiandeira”, posto na epígrafe deste texto,
nos traz a trajetória de vida de uma mulher que se fez entre fios e tramas em meio aos
percalços do seu destino. É uma lenda, mas que retrata a história de várias outras mulheres
como a Joana, a Veridiana, a Raimunda, a Helena, a Maria que também entre fios, tecidos e
teares na indústria, se tornaram mulheres e operárias nas fábricas de tecidos brasileiras.
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Mulheres que mesmo esquecidas pela história foram personagens importantes no processo
de industrialização no Brasil.
Referências
DECCA, Edgar de. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense, 1998. (Col. Tudo é
História)
DUARTE, Regina Horta. O povoado do Cedro: um palco, muitas histórias. Revista do
departamento de História da UFMG. Vol. 1, nº 2, p. 102-120, jun. 1986.
HOBSBAWM, E. J. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1979
GIROLETTI, Domingos. Fábrica, convento e disciplina. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial: 1991
LIBBY, Douglas Cole Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas
Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós –
estruturalista. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
MAGALHÃES. Cristiane Maria. Mundos do capital e do trabalho: a construção da
paisagem fabril itabirana (1874-1930), 2006. Dissertação – (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia de Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2006.
MASCARENHAS, Geraldo Magalhães. Centenário da Fábrica do Cedro. Belo Horizonte:
Cedro e Cachoeira, 1972.
NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A feminização no mundo do trabalho. Campinas, SP:
Autores Associados, 2004.
PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988
11
RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. in: DEL PRIORE, Mary (org).
História das Mulheres no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 1997.
__________. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-1930. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
RESENDE, Ana Paula Mendonça de. A organização social dos trabalhadores fabris em
São João Del – Rei: o caso da Companhia Industrial São Joanense. 2003. Dissertação –
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.
STEIN, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1979
VAZ, Alisson Mascarenhas. Cia. Cedro e Cachoeira: história de uma empresa familiar –
1883-1987. Belo Horizonte: Cia. de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira, 1990.
i
História: “Fátima, a Fiandeira”. História de tradição sufi, disponível em:
http://www.sertaodoperi.com.br/poesiasufi/domes.htm
“Numa cidade do mais longínquo Ocidente vivia uma jovem chamada Fátima, filha de um próspero fiandeiro.
Um dia, seu pai lhe disse:
- Filha, faremos uma viagem, pois tenho negócios a resolver nas ilhas do mediterrâneo. Talvez você encontre
por lá um jovem atraente, de boa posição, com quem possa então se casar. Iniciaram assim sua viagem, indo
de ilha em ilha; o pai cuidando de seus negócios, Fátima sonhando com o homem que poderia vir a ser seu
marido. Mas um dia, quando se dirigiam à Creta, armou-se uma tempestade e o barco naufragou. Fátima,
semiconsciente, foi arrastada pelas ondas até uma praia perto de Alexandria. Seu pai estava morto; e ela ficou
inteiramente desamparada.
Podia recordar-se apenas vagamente de sua vida até aquele momento, pois a experiência do naufrágio e o fato
de ter ficado exposta às inclemências do mar a tinham deixado completamente exausta e aturdida.
Enquanto vagava pela praia, uma família de tecelões a encontrou. Embora fossem pobres, levaram-na para
sua humilde casa e ensinaram-lhe seu ofício Desse modo, Fátima iniciou uma nova vida e, depois de algum
tempo, voltou a ser feliz, reconciliada com sua sorte. Porém, um dia, quando estava na praia, um bando de
mercadores de escravos desembarcou e levou-a, junto com outros cativos. Apesar dela se lamentar
amargamente de seu destino, eles não demonstraram nenhuma compaixão: levaram-na para Istambul onde foi
vendida como escrava. Pela segunda vez o mundo da jovem ruíra.
Mas quis a sorte que no mercado houvesse poucos compradores na ocasião. Um deles era um homem que
procurava escravos para trabalhar em sua serraria, onde fabricava mastros para embarcações. Ao perceber o ar
desolado e o abatimento de Fátima, decidiu comprá-la, pensando que poderia proporcionar-lhe uma vida um
pouco melhor do que teria nas mãos de outro comprador. Ele levou Fátima para casa com a intenção de fazer
dela uma criada para sua esposa. Mas ao chegar em casa soube que tinha perdido todo o seu dinheiro, quando
um carregamento de mastros fora capturado por piratas. Não poderia enfrentar as despesas que lhe davam os
empregados e, assim, ele, Fátima e sua mulher arcaram sozinhos com a pesada tarefa de fabricar os mastros.
Fátima, grata ao seu patrão por tê-la resgatado, trabalhou tanto e tão bem que ele lhe deu a liberdade e ela
passou a ser sua ajudante de confiança. Assim ela chegou a ser relativamente feliz, em sua terceira profissão.
Um dia ele lhe disse:
- Fátima, quero que vá a Java, como minha representante, com um carregamento de mastros; procure vendêlos com lucro.
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Ela partiu. Mas quando o barco estava na altura da costa chinesa, um tufão o fez naufragar. Mais uma vez
Fátima se viu jogada como náufraga, em uma praia de um país desconhecido. De novo chorou amargamente,
porque sentia que nada em sua vida acontecia como esperava. Sempre que tudo parecia andar bem alguma
coisa acontecia e destruía suas esperanças.
- Por que será que sempre que tento fazer alguma coisa não dá certo? Por que devo passar por tantas
desgraças, perguntou pela terceira vez.
Como não obteve respostas, levantou-se da areia e afastou-se da praia.
Acontece que na China ninguém tinha ouvido falar de Fátima ou de seus problemas. Mas existia a lenda de
que um dia chegaria certa mulher estrangeira, capaz de fazer uma tenda para o imperador. Como naquela
época não existia ninguém na China que soubesse fazer tendas, todo mundo aguardava com ansiedade o
cumprimento da profecia.
Para ter certeza de que a estrangeira ao chegar não passaria desapercebida, uma vez por ano, os sucessivos
imperadores da China costumavam mandar seus mensageiros a todas as cidades e aldeias do país pedindo que
toda mulher estrangeira fosse levada à corte. Exatamente numa dessas ocasiões, esgotada, Fátima chegou a
uma cidade costeira da China. Os habitantes do lugar falaram a ela sobre a lenda e explicaram-lhe que deveria
ir à presença do imperador.
- Senhora, sabeis fabricar uma tenda? Perguntou o rei, quando Fátima foi conduzida à sua presença.
- Creio que sim, Majestade.
E pediu que lhe trouxessem cordas, mas não havia. Lembrando-se de seus tempos de fiandeira, Fátima colheu
linho e confeccionou as cordas. Depois pediu uma tela forte, mas os chineses não dispunham do tipo que ela
precisava. Utilizando de sua experiência junto aos tecelões de Alexandria, Fátima fabricou uma tela resistente.
Percebeu que precisava de estacas, para sustentar a tenda, mas também não as encontrou na China. Fátima,
então, recordando-se do ensinamento do fabricante de mastros em Istambul, fez, com muita habilidade,
estacas firmes. Quando estas ficaram prontas, ela puxou de novo pela memória, buscando lembrar-se de todas
as tendas que havia visto em suas viagens. E a tenda real foi construída.
Quando tal maravilha foi mostrada ao imperador, ele se prontificou a satisfazer qualquer desejo que Fátima
expressasse. Ela escolheu estabelecer-se na China, onde depois se casou com um belo príncipe. Rodeada de
seus filhos e de seu marido, viveu muito feliz até o fim de seus dias.
Foi através destas aventuras que Fátima compreendeu que o que lhe parecera, em cada ocasião, ser apenas
uma experiência desagradável se tornou parte essencial na construção de sua felicidade”.
ii
Museu têxtil da Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira, localizado na Fábrica do Cedro em
Caetanópolis, MG.
iii
Modalidade de alojamento de caráter laico adotada por muitas fábricas de tecidos para a moradia de suas
operárias solteiras. Por meio do convento se exercia o controle e a disciplina sobre as mulheres operárias. Ele
foi utilizado pela Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira até os anos de 1920. (GIROLETTI,
1991)