Usar para artigo Anpuh

Transcrição

Usar para artigo Anpuh
INDIGNAÇÃO E DENUNCIA NA PRODUÇÃO ARTÍSTICA BRASILEIRA
(1964/1985)
Profª Dra. Sandra C. A. Pelegrini
(CEAPAC/UEM e PPH/UEM))
Resumo: Algumas produções artísticas brasileiras, no período que se sucedeu ao
Golpe de Estado, desencadeado pelo militares em 1964, manifestaram opções
estéticas e políticas avessas ao sistema capitalista, e também, contrárias às ações
da ditadura que foi se consolidando com o passar dos anos. No entanto, após a
imposição do Ato Institucional n. 5 (AI - 5), a intensificação da repressão e da
censura induziu muitos pintores a se expressarem de forma metafórica. Cláudio
Tozzi, Rubens Gerchman, Antonio Manuel e Pedro Escosteguy são alguns dos
artistas plásticos que se destacaram nesse período e colocaram em evidência a
força comunicativa da imagem. A produção de Cláudio Tozzi e Antonio Dias
chamam especial atenção porque suas obras tornam possível a análise de escolhas
temáticas e estéticas que afrontaram os pressupostos da arte acadêmica e o
autoritarismo na sociedade brasileira.
Palavras-chave: arte e história; cultura e representação, patrimônio artístico.
Introdução
As reflexões sobre a problemática cultural carregam consigo uma significativa
gama de questões e suscitam inúmeras possibilidades pesquisa no campo da
História. Na conjuntura brasileira circunscrita à década de sessenta e parte da
década de setenta, a amplitude assumida pela arte comprometida social e
politicamente se reveste de singularidades.
No período que se sucedeu ao Golpe de Estado, desencadeado pelos
1628
militares em 1964, parte dos artistas brasileiros realizaram opções estéticas e
políticas avessas ao sistema capitalista, por conseguinte, ao imperialismo
estadunidense. Ao longo dos quatro primeiros anos de gestão dos governantes
militares, o autoritarismo se impôs em detrimento da democracia. Após a imposição
do Ato Institucional n. 5 (AI - 5), a intensificação da repressão implicou no uso de
uma linguagem cifrada e metafórica, de modo, a driblar-se a censura. No âmbito das
artes visuais, Rubens Gerchman, Antonio Manuel, Pedro Escosteguy e Cláudio
Tozzi já vinham aderindo às propostas da Pop Arte faziam uso de alguns dos seus
recursos e técnicas.
Entre eles, Tozzi e Manoel, talvez, tenham sido aqueles que melhor
interagiram com novas técnicas e proposições políticas. Eles exploram as
possibilidades da serigrafia, utilizaram materiais inusitados e colocaram em
evidência a força comunicativa da imagem e sua inserção social. Por meio da
análise de algumas de suas obras torna-se possível detectar escolhas temáticas e
estéticas que afrontaram os pressupostos da arte acadêmica e a ditadura militar.
Mas para isso será necessário atentar para clamores e ruídos que ecoam entre
elementos compositivos das obras (colagens, fragmentos, cores, texturas) e
observar a intencionalidade do artista, bem como o contexto no qual produziu suas
obras.
I
As circunstâncias que envolveram as conspirações contra Jango e
antecederam o Golpe de 64 no Brasil estão imbricadas ao "avanço" de práticas
políticas de esquerda e à eclosão de movimentos populares. A luta em prol da
nacionalização de setores da economia e de mudanças na sociedade, na cultura e
no Estado, na primeira metade da década, mobilizou amplos segmentos sociais na
cidade e no campo. À época, procuravam-se inúmeras formas para transformar o
social, e ao contrário do que se poderia afirmar, esse desejo de mudança se
manifestava no pensamento e nas práticas de diferenciados setores da sociedade e
incidia tanto nas mentes dos que buscavam desencadear processos revolucionários
radicais quanto na daqueles que pretendiam alcançar apenas mudanças
circunscritas a perspectivas conservadoras (CHAUÍ, 1986).
1629
Tomavam vulto basicamente dois tipos de idéias: uma voltada para políticas
modernizantes, mas, conservadoras, ancoradas na racionalização do social,
defendidas por parcela significativa da classe dominante, representada pelos
grandes capitalistas. A outra estava centrada na construção de um mundo "mais
justo” e no qual a melhoria das condições de vida e trabalho estaria ao alcance de
todos – ideais preconizados nos postulados do marxismo-leninismo, de Mao-TseTung e de Che Guevara, e até mesmo nos propósitos da ala “progressista” da Igreja
Católica Romana.
O debate sobre alternativas viáveis para a promoção do desenvolvimento do
país despertava o interesse dos filiados de partidos políticos e os membros da
sociedade civil. Ambas as instâncias estavam propensas a preconizar desde
estratégias que promovessem a expansão do capitalismo, subordinado ao capital
estrangeiro, até as que acionassem o crescimento do capitalismo nacional1. No
limiar dessa contenda, reforçavam-se, entre as posições políticas de esquerda, o
combate ao imperialismo e a formação da frente antilatifúndio. Para atingir esses
propósitos, se elegiam táticas consideradas capazes viabilizar a transição do
sistema capitalista de produção para o sistema socialista.
Cumpre lembrar que, nesse momento, a esquerda brasileira já mostrava
sinais de fracionamento, mostrava-se dividida entre várias tendências: Partido
Comunista Brasileiro (PCB), Partido Comunista do Brasil (PC do B), Ação Popular
(AP) e Política Operária (POLOP), entre outros. O eixo principal dessas divergências
ideológicas justificava-se em função da “ideologia nacional – reformista” do PCB e
seu apoio ao governo Goulart. Os outros grupos condenavam a estratégia
propugnada pelo PCB, uma vez que se pautava pela promoção de uma aliança
entre o proletariado e a “fração progressista” da burguesia brasileira, como
“necessidade histórica” para a consolidação da “revolução democrático-burguesa” 2.
As correntes de esquerda que se autoproclamavam “revolucionárias”
1
Desde a segunda metade da década de 50, durante o governo de J.K., tomava força a idéia de
combater o subdesenvolvimento brasileiro. Nesse sentido, a criação do Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), em 1955, para racionalizar e impulsionar o desenvolvimento do país (TOLEDO,
1988, p.30-31).
2
Numa interpretação política demarcada pelo PCB, a Revolução “democrático-burguesa” era
concebida como uma das etapas necessárias para o proletariado chegar ao poder. Esta se efetivaria
pacificamente pela via eleitoral - antiimperialista, para depois vir a ser socialista numa etapa
consecutiva, quando as forças produtivas capitalistas estivessem plenamente desenvolvidas. Isto
equivale a dizer que seria necessária uma aliança operário-camponesa, com frações consideradas
“progressistas” da burguesia brasileira para se chegar ao socialismo (GORENDER, 1987, p. 20-32).
1630
propunham a composição de uma “frente de esquerda”, com vistas a superar a
“política pequeno-burguesa” da colaboração entre as classes e o reformismo
incutido nas massas. Tal postura divergia frontalmente da proposta da “frente única”,
defendida pelo PCB (RIDENTE, 1993).
No decorrer da década de 1960, também estava em evidência uma série de
esforços no sentido da promoção da educação e da cultura popular, entre eles,
destacaram-se o Movimento de Educação de Base, da Igreja Católica, os Centros
Populares de Cultura, da UNE, e o Método de Alfabetização de Adultos, de Paulo
Freire. Tomavam vulto em todo o território nacional as preocupações com as
questões culturais e educacionais, em todos os níveis de escolarização. O conceito
de cultura popular assumia o significado de “cultura produzida para o povo”,
deixando de ser interpretado apenas como “cultura produzida pelo próprio povo”. O
caráter popular de tal cultura residia na apropriação de formas e de representações
artístico-culturais populares. Esse aspecto diferenciava essas iniciativas daquelas
anteriores a década de 1950 (PELEGRINI, 1998).
Na conjuntura, persistia a idéia da existência de um “povo alienado”, que
precisava ser iluminado. Se, por um lado, compartilhavam dessa perspectiva
estudantes, artistas e intelectuais de esquerda que tomavam para si a tarefa de
“iluminá-lo”, por outro, os meios empresariais e intelectuais ligados à classe
dominante articulavam-se no sentido de canalizar a educação e a cultura do “povo”
de acordo com seus ideais de desenvolvimento (NAPOLITANO 2011). Do ponto de
vista da esquerda, “iluminar o povo” significava propiciar-lhe meios de compreensão
da realidade e formas de atuação visando a transformá-la3. Essa postura decorria da
orientação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cujas bases remontavam à teoria
revolucionária de Lênin, defendida na III Internacional (ULIANOV, 1979, p. 242).
As reviravoltas políticas e institucionais pelas quais passou o Brasil, após o
golpe de 64, interpelaram sobremaneira os projetos das esquerdas e os movimentos
sociais em curso. Em face da crise generalizada e das insatisfações populares
(greves, manifestações, etc.), a esquerda brasileira acreditava que a “revolução”
estivesse por vir. O termo “revolução” adquiria o sentido de transformar o “regime
3
O caráter revolucionário atribuído ao proletariado tem suas raízes no pensamento marxista. Tal
premissa seria reforçada pelo marxismo-leninismo, interpretação que atribui papel singular à
"vanguarda do proletariado", considerada portadora da "consciência revolucionária" e detentora do
projeto redentor de toda a sociedade.
1631
político-social”, inserida num processo assinalado por sucessivas “reformas e
modificações econômicas, sociais e políticas”. Sintetizadas em “transformações
estruturais da sociedade”, especialmente no âmbito das relações econômicas e
sociais, essas modificações resultaram no “equilíbrio recíproco das diferentes
classes e categorias sociais” 4. No entanto, apesar do desencantamento militante
diante do malogro daquela que se esperava ser a “Revolução Brasileira” e da
sucessiva repressão desencadeada pelos articuladores do golpe de 1964, a
expectativa de desempenhar a função de oposição ao regime militar deu um novo
alento à comunidade artística no pós-64.
Os anos que se seguiram foram marcados por manifestações estudantis,
músicas de protesto, festivais da canção e produções teatrais que visaram à
conscientização de seu público. Os ânimos estavam acirrados, tomavam vulto as
greves e as manifestações públicas contra as arbitrariedades do regime militar. No
início de 1968, dramaturgos e atores se mobilizaram contra as ações censórias e
uma manifestação universitária, no restaurante Calabouço, resultou na morte do
estudante secundarista Edson Luís que provocou comoção nacional e desencadeou
a organização da passeata dos 100 mil, em junho, no Rio de Janeiro (PELEGRINI,
1998).
Não tardaria a reação dos militares: com o objetivo de conduzir a crise
política, o Governo do General Arthur da Costa e Silva baixou em 13/12/1968, o Ato
Institucional nº 5, e com base nele, o Ato Institucional Complementar nº 38, que
decretou, por prazo indefinido, o recesso do Congresso Nacional. A suspensão dos
direitos políticos e a proibição de manifestações públicas ou quaisquer atividades
consideradas subversivas, sob a pena de perder a liberdade, criavam um clima de
conspiração e terror. Para conter os excessos e práticas ilícitas, as Polícias Federal,
Militar e Civil mantinham-se prontas, caso alguma diligência se fizesse necessária.
De 1968 a 1978, o AI-5 constrangeu a sociedade brasileira e gerou
indignação na esfera internacional. Embora houvesse investimento na construção de
uma imagem positiva do Brasil, como um “país que vai pra frente”, não foi possível
dissimular por muito tempo as intervenções, prisões preventivas, o confisco de bens,
as cassações, demissões e perseguições políticas e moralistas. O recrudescimento
4
Cabe ressaltar que esse conceito de “revolução” foi alvo das reflexões de Prado Jr. e acabou
resultando num trabalho publicado em 1966, bastante veiculado entre as esquerdas na segunda
metade da década (Prado Jr., 1966, p. 1-2).
1632
da censura federal, justificada em nome da Segurança Nacional, provocou a
interdição de cerca de quatrocentas peças de teatro, 500 filmes, 200 livros e
milhares de músicas.
Cumpre reconhecer que os artistas plásticos não encararam a perseguição
policial e a censura na mesma proporção que os músicos, compositores,
dramaturgos, diretores e atores. Porém, isso não significa segundo Claudia Calirman
(2012) 5, que produção visual passou incólume no período no qual vigorou o Ato
Institucional nº 5.
II
A geração dos artistas brasileiros emergentes nos anos sessenta do século
XX, do ponto de vista da crítica de artes, Aracy Amaral (2005), enfrentava uma
contradição: desejava experimentar novas técnicas e novos suportes materiais,
contudo, se aproximava da Pop Art que, em última instância, adquiriu notabilidade
incomensurável, mas, floresceu nos EUA - país propulsor do imperialismo que se
impunha ao terceiro mundo.
Roy Lichtenstein (1923-1997) e Andy Warhol (1928-1987), precursores da
Pop Art se tornaram referências mundiais no âmbito das artes visuais, entre os anos
sessenta e setenta do século XX. O primeiro, efetuou releituras das histórias em
quadrinhos
6
; o segundo estabeleceu interfaces entre a expressão plástica e a
ilustração comercial de produtos de consumo na sociedade capitalista, sua obras
não raro rendiam tributos à propaganda e às celebridades como Marilyn Monroe7.
A despeito disso, das aparentes incoerências, os problemas do cotidiano, os
eventos excepcionais como, por exemplo, a transformação dos costumes e a
incursão do homem a lua, respectivamente, inspiravam parte dos artistas brasileiros.
5
Claudia Calirman foi entrevistada pela jornalista Mariana Zylberkan, da revista Veja, publicada com
o título “Os artistas que ergueram os pincéis contra a ditadura e revolucionaram a produção nacional”,
em 26/08/2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/livro Acesso 29 de ago.
de 2012.
6
Estudiosos da obra de Lichtenstein assinalam que a lida com os quadrinhos se originou de uma
pintura do Mickey, efetuado por ele, em 1963, para atender a solicitação dos filhos. Informações
disponíveis no site oficial do artista, disponível em site: www.lichtensteinfoundation.org Acesso em 24
de jan. de 2010.
7
O Andy Warhol Museum, construído na cidade onde nasceu o artista, Pittsburg (Pennsylvania/EUA),
reúne arquivos e extensa coleção de obras do artista. É uma das maiores instituições museais
tributada a um único artista.
1633
De igual modo, figuras como “Che” Guevara e atores de Hollywood se converteram
em personagens emblemáticas, e como tal passaram a ser considerados motes para
a experimentação plástica. Tecnicamente, a tipografia, a serigrafia e a colagem
conquistaram espaços nas artes visuais, além disso, além dos suportes materiais
convencionais utilizados (óleo sobre tela), também foram utilizados massa acrílica
emulsionada8, como aglomerados e madeira.
Em suas produções Rubens Gerchman, Pedro Escosteguy, Antonio Manuel e
Cláudio Tozzi tematizavam a cultura de massa, o individualismo comum às
metrópoles, o autoritarismo, a tortura e a repressão que coibiam os direitos dos
cidadãos e os impedia de se reunir, logo as multidões também se tornaram temas
recorrentes entre seus trabalhos, entre os anos finais da década de 1960 e durante
a de 1970.
Claudio Tozzi9, em especial, se comprometeu politicamente, estabeleceu
vínculos com a Ação Libertadora Nacional (ALN) e problematizou em suas obras o
autoritarismo da ditadura militar, o imperialismo e elementos da sociedade de
consumo por meio da ressignificação de signos recorrentes no cotidiano como
bandeiras, peças publicitárias, letreiros, sinais de trânsito e histórias em quadrinhos,
aproximando-se da linguagem da Pop Art. Com o objetivo de criticar o imperialismo
estadunidense produziu, por exemplo, “USA e AbUSA”, em 1966.
8
A massa acrílica utilizada por vários artistas, entre 1960-1970, era conhecida como “Liquitex”, nome
comercial da tinta produzida em escala industrial pela Cia. Pigments, a partir de 1955, quando o dono
da empresa Henry Levinson criou pela primeira vez uma mistura de secagem rápida resultante da
composição entre água e uma massa acrílica emulsionada formada por moléculas de resina. Com ela
era possível criar diversas texturas, aliás, o nome da marca da tinta sintetiza o que podemos
denominar de combinação de linguística das duas palavras que a definiam: o líquido e a textura.
Tradução livre sobre as informações no histórico da empresa, disponíveis em site:
http://www.liquitex.com . Acesso em 09 de jul. de 2012.
Mistura não se tornava homogênea e favorecia a criação de texturas diferenciadas.
9
Tozzi cursou Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de São Paulo (FAU/USP), entre 1963 e
1968. Nessa época, foi aluno de Sérgio Ferro, professor e artista que se comprometeu politicamente
com os rumos da ditadura militar no Brasil.
1634
Figura 1 - USA e abUSA (1966)
Massa acrílica sobre madeira
10
33 x 52 cm
Nessa obra efetua clara referência à imposição do imperialismo dos Estados
Unidos da América, cujo objetivo maior era o lucro e a submissão dos trabalhadores,
para isso guerreavam e faziam uso da força de seus exércitos para manutenção da
“ordem” estabelecida. A utilização de sinais gráficos e da linguagem indireta é típica
do período em que a ditadura militar no Brasil começou a combater com mais
veemência as manifestações estudantis e as greves dos operários.
De pronto, detectamos algumas pistas da técnica e dos elementos
selecionados por Tozzi nessa obra, na qual distintos materiais foram utilizados, tais
como palavras impressas e a bandeira dos EUA, além da seta e do fragmento de
jornal.
A composição apresenta equilíbrio entre os três quadrantes que a dividem, os
do centro e da direita são proporcionais, enquanto o da esquerda é um pouco menor
– esse já seria um indício da mensagem que o artista desejava transmitir?
No centro, as figuras dos soldados empunhavam armas e sobre eles uma
bandeira dos EUA fora colada no lado direito, em oposição aos dois quadrantes, o
fragmento de um jornal denominado Battaglia Sindicali fora postado na direção
contrária, e ainda, era pressionado para baixo por uma seta vermelha. Seria esta
uma alusão ao socialismo e/ou comunismo? Por certo que sim, uma vez que ele era
editado na cidade de Biella (Piemonte/Itália), que se distinguia como um núcleo têxtil
de processamento de lã e por vigorosas lutas trabalhistas. Contudo, juntos os
10
Esta imagem foi publicada no site oficial do artista e também no livro ilustrado de arte, dedicado a
Cláudio Tozzi (KLINTOWITZ, 2012, p. 148).
1635
soldados e o símbolo nacional colado em diagonal entre os quadrantes do centro e
da direita representavam coesão e energia.
O fato do fragmento do Battaglia Sindicali ser pressionado para baixo por uma
seta vermelha seria uma alusão ao socialismo e/ou comunismo? Essa indagação,
talvez, possa ser esclarecida se esse jornal for devidamente historicizado, pois ele
era conhecido pelas batalhas sindicais que apoiava e era editado na cidade de Biella
(Piemonte/Itália), que se distinguia como um núcleo têxtil de processamento de lã,
renomado pelos enfrentamentos entre os interesses dos industriais capitalistas e dos
trabalhadores.
Não, ao acaso, o periódico fora colocado do lado esquerdo da
composição.
De igual modo, nota-se no quadrante superior à direita a inscrição “U$A” com
destaque ao cifrão que define a moeda americana (o dólar) e no quadrante inferior
do mesmo lado a reafirmação de que os Estados Unidos abusam dos países do
terceiro mundo. Seria imprudente afiançar que havia, inclusive, indicativos críticos a
Guerra do Vietnã (1959-1975), conflito armado, emergente no contexto da Guerra
Fria e do combate ao comunismo?
Seja como for, fruir de uma obra de arte implica lhe atribuir sentidos que
talvez o seu produtor não tivesse previsto. Há nesse processo uma apropriação de
simbologias e signos por parte do artista e por parte do observador que pode atribuir
à obra outros sentidos que não aqueles imaginados por seu criador como assinalam
Certeau e Chartier.
Antonio Dias e Cláudio Tozzi atribuíram proeminência aos eventos do
cotidiano, como as manifestações estudantis em São Paulo e Rio de Janeiro que
eclodiram no ano de 1968, pois eles captavam essas imagens e as manejavam com
a finalidade de produzir obras capazes de se insurgir contra a censura e a violência.
Mais do que isso, Kiyomura e Giovannetti (2005, p. 24-25) asseveram: Tozzi se
propunha a criar linguagens visuais que estabelecessem interfaces diretas com
realidade. No entanto, segundo Fábio Magalhães não abandonou a experimentação
e busca de novos caminhos, primou tanto pela plasticidade e a qualidade gráfica;
como pela criação de um “projeto prévio e deliberado”, resultante racionalidade, seu
trabalho não é fruto de “mera emoção ou da intuição".
Sua atração pela Pop Art, de Lichtenstein e Andy Warhol não passaram
incólumes, Tozzi se apropria de histórias em quadrinhos e lhes atribui sentidos
1636
críticos e torna sua obra cada vez mais engajada politicamente. Nessa fase produz
"Guevara Vivo ou Morto" (1967) e “A Prisão” (1968).
Figura 2 - "Guevara Vivo ou Morto" (1967)
Tinta em massa e acrílica sobre aglomerado
175x300 cm
Na primeira utilizou a linguagem em quadrinhos e elegeu uma celebridade
para retratar, na segunda se ocupa da violência dos militares contra jovens
manifestantes. Na obra de 1967, as figuras de “Che” Guevara, centralizadas na
composição aparecem cercadas de militantes e de crianças com olhar triste e
faminto, respectivamente, nos quadrantes superior e inferior, dos dois lados
(esquerdo e direito). Com as bordas delineadas surge uma faixa com fundo branco e
letras vermelhas que estampam a frase: “Guevara, vivo ou morto...”, essa faixa une
os três quadrantes superiores aos três inferiores que, por sua vez, se justapõe e se
complementam como em uma narrativa delineada por cores contrastantes: preto,
branco e vermelho.
Antonio Manuel, natural da cidade de Avelãs de Caminho (Portugal), viveu e
trabalhou no Rio de Janeiro, nesse período conturbado da história do Brasil. Ao
assumir uma forma de engajamento político, em meados dos anos sessenta se
reportou às imagens da realidade flagrada por meio de fotografias, publicadas em
jornais e as utilizou como matérias-primas para a criação de novos conceitos de
1637
arte. “Nos flans, o artista se apropriou de matrizes de um jornal e as trabalha
graficamente, gerando operações de apagamento, denúncia e subversão dessa
mídia”.
Ao fazê-lo Antonio Manoel intervinha no ambiente jornalístico e transformava
as manchetes em objetos artísticos, subvertia as narrativas, mesclando as visões
oficiais dos acontecimentos as suas próprias convicções. Trabalhou com a
impressão gráfica (“flans”) – placas em relevo, em cartão para fazer as matrizes
(AMARAL & TORAL, 2005, p. 32).
Em “Polícia Militar mata estudante”, “Queima a roupa”, “A imagem da
violência” e “Dura assassina”, as narrativas em formato de quadrinhos desvelam as
ações do exército, enquanto a eclosão dos conflitos entre civis e militares transforma
as ruas e avenidas em campos de guerra.
Figura 3: “A imagem da violência”, 1968 .
Técnica: Flan - 56,2 x 37,2 m
Foto: Fabio Praça/Itaú Cultural
11
11
Exposta na 29ª. Bienal de São Paulo, realizada no Parque Ibirapuera, de 25 de setembro a 12 de
dezembro de 2010. Disponível http://www.29bienal.org.br/ .
1638
Figura 4: “Dura assassina”, 1968
Flan – matriz para impressão de jornal
S/ dimensões - Foto: Fabio Praça/Itaú Cultural
Coleção do artista
Uma das características marcantes de Manuel era a inserção de textos e
manchetes publicadas em jornais, de maneira distorcida ou não, ele criava jogos de
palavras e conseguia destacar a mensagem que desejava. O zelo com tipografias
distintas também distinguia os seus trabalhos na década de 1960.
Significativas transformações ocorreram no cenário artístico internacional no
início da década de 1970, enquanto o General Ernesto G. Médici impôs sobre os
brasileiros o ônus de uma ditadura militar. “A arte saiu dos museus e foi para as ruas
e até para os corpos dos artistas”, assinalou Claudia Calirman (2012). A produção
na esfera das artes visuais e suas performances adquiram reconhecimento no
exterior no momento em que a escultura e a pintura deixavam de estar no centro das
atenções – um tema a ser oportunamente abordado.
Considerações finais
Vê-se,
então,
o
delineamento
de
uma
situação
singular.
Embora
economicamente o país estivesse enveredando pelos caminhos da modernização,
1639
cuja tônica era a racionalização e a industrialização dependente do capital
estrangeiro, parte significativa da intelectualidade e dos artistas parecia continuar
voltada para os ideais identificados politicamente com a esquerda. Embora não
houvesse homogeneidade nas propostas, essa fração intelectualizada do país
partilhava a experiência de resistir à implantação do projeto idealizado pelos
militares, especialmente no âmbito da preservação da chamada cultura nacional,
assumindo uma postura antiimperialista. Posteriormente, as articulações entre a
indústria da cultura e o pensamento político de esquerda seriam redimensionadas.
Talvez seja possível dizer que desde os finais da década de 1950 proliferava entre
os produtores culturais brasileiros o intento de pensar a situação político-social do
país e de propor saídas para os seus impasses. A vigorosa retomada de propostas
esboçadas pelas tendências de esquerda desde os primeiros anos da década de
sessenta, no pós-golpe e no pós-68, aponta indícios no sentido da ocupação do
espaço da produção cultural com fins políticos.
Mas há que se assinalar que o projeto artístico é muito mais complexo do
que se possa imaginar, ele não se circunscreve a política, busca solução estética e
faz experiências que envolvem as sensibilidades, e a fruição dos seus admiradores.
Referências
ATO INSTITUCIONAL Nº 5, DE 13 DE DEZEMBRO DE 1968. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620
CALIRMAN, Claudia.
Press, 2012-a.
Brazilian Art Under Dictatorship. EUA: Duke University
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência - aspectos da cultura popular no
Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1986.
CIPINIUK, Alberto. Para lá do aparente – uma pequena reflexão sobre a história
social da arte. Concinnitas, Rio de Janeiro, n. 5, dez. 2003. Disponível em:
http://www.icons4u.com.br/concinnitas/index.cfm?edicao=5. Acesso em: 18 jan.
2007.
FREITAS, Arte e movimento estudantil: análise de uma obra de Antonio Manuel.
Rev. Bras. Hist. vol.25, no. 49, São Paulo, Jan./June, 2005.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira. Das ilusões
perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.
1640
KLINTOWITZ, Jacob. Livro ilustrado de arte: Cláudio Tozzi: Estruturas do Real.
São Paulo: Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural, 2012.
KIYOMURA, Leila; GIOVANNETTI, Bruno (Org.). Claudio Tozzi. São Paulo: Edusp,
2005.
MACHADO, Regina. Claudio Tozzi. Mestre das Artes no Brasil. São Paulo.
Editora Moderna. 2004.
Magalhães, Fábio. Obra em Construção: 25 anos de trabalho de Claudio Tozzi.
Rio de Janeiro. Editora Revan. 1989.
NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante
o regime militar brasileiro (1964-1980). 2011. 374 p. Tese (Livre-Docência,
Especialidade: História do Brasil Independente) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011a.
_______. A relação entre arte e política: uma introdução teórico-metodológica.
Temáticas, Campinas, v. 19, n. 37/38, p. 25-56, jan./dez. 2011b.
TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: Fábrica de Ideologias, São Paulo: Ática, 1982.
RIDENTE, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à
era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.
TOZZI, Cláudio. Catálogo MAN. Rio de Janeiro, 1993.
TOZZI, Claudio. Coleção Portfolio Brasil. Editora JJCarol. São Paulo. 2006.
ZYLBERKAN, Mariana. Os artistas que ergueram os pincéis contra a ditadura e
revolucionaram a produção nacional. Entrevista de Claudia Calirman, publicada pela
revista
veja,
em
26/08/2012.
Disponível
em
site:
http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/livro Acesso 29 de ago. de 2012.
1641

Documentos relacionados