Sobre a potência ordenada e absoluta em João Duns
Transcrição
Sobre a potência ordenada e absoluta em João Duns
JOÃO DUNS ESCOTO GUILHERME DE OCKHAM Textos sobre a potência ordenada e absoluta. São Paulo, 2013. 2 ÍNDICE DOS TEXTOS: JOÃO DUNS ESCOTO: Reportatio I-A, d. 44, q. 1 03 Reportatio I-A, d. 44, q. 2 10 Ordinatio I, d. 44, q. unica 15 Lectura I, d. 44, q. unica 22 GUILHERME DE OCKHAM: Quodlibeta Septem VI, q. 1 24 Tratado Contra Benedito III, cap. 3 29 Opus Nonagina Dierum, cap. 95 38 3 JOÃO DUNS ESCOTO “Reportatio” examinada da leitura de Paris Reportatio I-A* [Distinção 44 * Quaestio 1 Questão 1 Utrum Deus posset aliter res producere quam facit, vel secundum ordinem institutum ab eo modo] Se Deus poderia produzir as coisas diversamente do que faz ou (diversamente do que faz) segundo a ordem por ele agora instituída] 1. Circa distinctionem quadragesimam quartam primo quaero utrum Deus posset aliter res producere quam facit, vel secundum ordinem institutum ab eo modo. 1. Acerca da distinção 44, pergunto, primeiro, se Deus poderia produzir as coisas diversamente do que faz, ou [diversamente do que faz] segundo a ordem por ele agora instituída. Videtur quod non : quia tunc vel modo vel alias inordinate produceret, quod est inconveniens. Vê-se que não: porque, então, ou agora, ou noutro [instante], produziria desordenadamente, o que é inconveniente. 2. Item, sua potentia non excedit suam scientiam, maxime quoad obiecta ; sed secundum suam scientiam non potest scire opposita nec aliter quam scit, ergo non aliter producere (vel opposita) quam producit. 2. Ainda, sua potência não excede sua ciência, maximamente no que diz respeito aos objetos; ora, segundo sua ciência, não pode saber os opostos nem [pode saber] diversamente do que sabe, portanto, não [pode] produzir diversamente (ou opostamente) ao que produz. 3. Item, in aeternitate disposuit rem fieri secundum ordinem ab eo institutum. Si ergo potest aliquid aliter producere, et non de novo, ergo in aeternitate potest habere actus oppositos. 3. Ainda, dispôs na eternidade que a coisa seja feita segundo a ordem instituída por ele. Se, portanto, pode produzir algo diversamente, e não como novo, então pode ter dois atos opostos na eternidade. JOHN DUNS SCOTUS, Reportatio I-A : The examined Report of the Paris Lecture - Latin Text and English Translation. A. B. Wolter & O. V. Bychkov (ed. e trad.). Volume 2 (distinctiones 22-48). St. Bonaventure (NY): The Franciscan Institute, 2008, p. 531-540. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira. 4 4. Item, si potest aliter res producere quam produxit, ergo similiter potest movere corpora caelestia aliter quam modo movet, et per consequens ipsa inter se potest aliter coniungere quam modo coniungantur. Ergo geometria, quae est de coniunctione quam modo habent, non est scientia necessaria, quia est de his quae posunt aliter se habere, et per consequens de contingentibus. 4. Ainda, se pode produzir a coisa diversamente do que produziu, então pode semelhantemente mover os corpos celestes diversamente do que move agora, e, consequentemente, pode uni-los entre si diversamente de como estão unidos agora. Portanto, a geometria, que trata da união que têm agora, não é ciência necessária, porque trata daquilo que pode se dar diversamente, e, consequentemente, trata de contingentes. 5. Item, sequitur quod scientia naturalis, quae est de rebus corporalibus secundum motus corporum caelestium, nulla esset, quia tunc non posset sciri ista generari secundum influentiam talis partis caeli nec in tali situ, et alia alibi ; nec per consequens magis generaretur in una parte caeli ignis quam aliud elementum, quia talia diversimodi generari non contingit per motum varium corporum caelestium et diversam coniunctionem eorum, quae omnia secundum se possunt aliter se habere. 5. Ainda, se segue que a ciência natural, que trata das coisas corporais segundo o movimento dos corpos celestes, não seria nada, porque então não seria possível saber que estes gerem segundo a influência de tal parte do céu nem em tal lugar, e outros em outro; nem, consequentemente, o fogo seria gerado em uma parte do céu antes do que outro elemento, porque não se dá que tais sejam gerados de modos diversos através do movimento dos vários corpos celestes e da diferente conjunção daqueles que, por si, podem todos se dar diversamente. 6. Contra : aliqua aliter fieri quam fiant non includit contradictionem, ut patet de contingentibus. Sed Deus potest quidquid non includit contradictionem ; ergo etc. 6. Contra: que alguns se deem diversamente de como são dados não implica contradição, como é patente sobre os contingentes. Ora, Deus pode tudo o que não inclui contradição; portanto, etc. [I. – Distinctiones praeviae] [I. – Distinções prévias] 7. Responsio. Dico quod in quocumque agente libere quod potest agere secundum legem vel aliquam regulam rectam et non agit secundum illam, in omni tali est distinguendum de potentia ordinata sive praefixa lege, et de potentia absoluta. Quia enim habet 7. Resposta. Digo que em qualquer agente livre que pode agir segundo a lei ou alguma regra reta e não age segundo ela, em qualquer que tal deve-se distinguir a potência ordenada, ou prefixada pela lei, e a potência absoluta. Com efeito, porque tem aquela regra, pode agir segundo ela; 5 illam regulam, potest agere secundum illam ; quia vero non necessario agit secundum illam sed libere, ideo potest agere alio modo. Unde iuristae distinguunt ‘de iure’ et ‘de facto’, et sic potest distingui de omni potestate iudicis vel iudicantis, ut Papae vel principum. no entanto, porque não age necessariamente segundo ela, mas livremente, pode, assim, agir de outro modo. Donde os juristas distinguem “por direito” e “de fato”, e é possível distinguir assim sobre todo o poder (potestate) do juiz e do que julga, como o do Papa ou o dos príncipes. 8. Secundum verbum est istud, quod si regula ista non sit in potestate agentis, tunc potentia absoluta non est ordinata. Talis enim tenetur conformiter agere illi legi et secundum illam regulam, et ideo si non agit secundum illam, agit inordinate. Unde omnes qui subsunt legi divinae qui non agunt secundum illam, vel si agunt contra illam, inordinati sunt et inordinate agunt. Si autem aliquis non subest legi, sed e converso lex subest instituenti, quia potest aliter vel aliam legem ordinare, talis non potest inordinate agere, nec ibi potentia ordinata excedit potentiam absolutam, licet excedat istam legem sic ordinatam. 8. O segundo a se dizer é: que se esta regra não estiver em poder do agente, então a potência absoluta não é ordenada. Com efeito, tal tem de agir em conformidade com aquela lei e segundo aquela regra, e, por isso, se não age segundo ela, age desordenadamente. Donde todos que estão sob a lei divina que não agem segundo ela, ou se agem contra ela, estão desordenados e agem desordenadamente. Ora, se alguém não está sob a lei, mas, pelo contrário, a lei está sob aquele que institui, porque pode ordenar diversamente ou outra lei, tal não pode agir desordenadamente, nem ali a potência ordenada excede a potência absoluta, embora exceda esta lei assim ordenada. 9. Ad propositum de Deo, dico quod leges vel regulae practicae sive universales propositiones statutae sunt a sapientia divina, credo tamen magis quod a voluntate divina, quia non invenitur in tali lege vel propositione practicae necessitas ex terminis, ut in hac ‘omnis iustus salvandus et omnis malus damnandus’ : sicut hic est necessitas ‘omne totum est maius sua parte’, ubi unus terminus, scilicet subiectum, includit causam praedicati, sed in aliis non. Iustus enim non causat sibi salutem, sed voluntas divina 9. Quanto ao que se propõe sobre Deus, digo que as leis ou regras práticas ou as proposições universais são estabelecidas desde a sabedoria divina, no entanto, creio que antes desde a vontade divina, porque em tal lei ou proposição prática não há necessidade a partir dos termos, como nesta: “todo justo há de ser salvo e todo mau há de ser condenado”, assim como há necessidade aqui: “qualquer todo é maior que sua parte”, em que um termo, a saber, o sujeito, inclui a causa do predicado. Ora, nos outros não [há]. Com efeito, o justo não causa a 6 acceptat utrumque, quod est indifferentia in terminis. Et sic voluntas facit hoc principium vel legem esse practicam, et istae leges ordinant operabilia secundum omnes modos agendi debitos. Deus autem potest agere omni modo qui non includit contradictionem. Cum igitur multi alii modi non includant contradictionem, potest agere aliter quam de potentia ordinata. salvação para si, mas a vontade divina aceita ambos1, visto que há indiferença nos termos. E assim a vontade faz com que esse princípio ou lei seja prática, e estas leis ordenam os operáveis segundo todos os modos de agir devidos. Ora, Deus pode agir de todo modo que não inclui contradição. Portanto, visto que muitos outros modos não incluam contradição, pode agir diversamente do que pela potência ordenada. 10. Secundo, quia istae leges subsunt voluntati divinae – eo quod nulla est lex iusta nisi quia voluntas divina acceptat, non autem e converso – , voluntas autem potest contingenter quodcumque velle vel nolle, ideo potest statuere aliam legem, ut quod omnis anima rationalis salvabitur vel aliquid huiusmodi. Ergo potentia eius absoluta non excedit ordinatam, quia quaecumque lex a Deo instituatur aliter vel alia quam illa quae nunc est, esset ordinata. 10. Segundo, uma vez que estas leis estão sob a vontade divina – visto que nenhuma lei é justa a não ser porque a vontade divina a aceita, mas não o inverso –, a vontade divina pode contingentemente tudo que quer ou não quer, por isso pode estabelecer outra lei, como que toda alma racional será salva ou algo desse modo. Portanto, sua potência absoluta não excede a ordenada, porque qualquer lei que seja instituída por Deus diversamente ou outra daquela que há agora, seria ordenada. [II. – Responsio ad primam quaestionem] [II. Resposta para a primeira questão] 11. Ad quaestionem ergo dicendum quod est distinguendum secundum compositionem et divisionem ; similiter est distinguendum de ordine sive de lege vel de potestate ordinata. 11. Portanto, deve-se dizer para a questão que se deve distinguir segundo a composição e a divisão; de modo semelhante, deve-se distinguir a respeito da ordem ou da lei ou do poder ordenado. Et patet realis solutio ex dictis, unde haec est possibilis : ‘Deus aliter res potuit producere quam secundum ordinem dispositum’. [Pro Haec est falsa… M habet explicando : ‘… vel E a solução real é patente do que foi dito, donde esta é possível: “Deus pôde produzir as coisas diversamente do que segundo a ordem disposta”. [Em vez de “Esta é falsa...”, M traz a explicação: “... Segundo a tradução americana (Duns Escoto, 2008, p. 533, nota 6), o “justo e o injusto”. Parece, porém, que o correto seja: “... ambos [os termos, isto é, ‘justo’ e ‘salvação’].”. N. do T. 1 7 quam disposuit’ est distinguenda secundum compositionem et divisionem. In sensu compositionis est falsa et impossibilis, quia non stant simul quod aliter agat quam disposuit stante illa dispositione et ordinatione. In sensu diviso est vera, quia Deus facit hoc modo et tamen potest opposito modo. Quia sicut Deus disposuit sic esse faciendum secundum hunc ordinem, ita posset aliter disponere et tunc esset aliter faciendum. Unde… Lectio tamen brevior in VTR praeferenda videtur : cf. Ord. I, d. 44, Appendix A (VI, 445).]. Haec est falsa in sensu compositionis, sed vera in sensu divisionis : ‘Deus habet potentiam faciendi hoc modo seorsum’ (scilicet solem moveri contra orientem) – haec est una propositio categorica ; ‘non disposuit facere hoc modo’ – haec est alia propositio ; et ambae sunt verae. ou que dispôs” deve ser distinguida segundo a composição e a divisão. No sentido da composição é falsa e impossível, porque não estão simultaneamente que aja diversamente do que dispôs permanecendo aquela disposição e ordenação. No sentido da divisão é verdadeira, porque Deus faz isto agora e, no entanto, pode agora o oposto. Porque, assim como Deus dispôs que seja assim ao fazer segundo essa ordem, poderia dispor diversamente e então teria feito diversamente. Donde...”. No entanto, vê-se que a lição mais breve seja preferida em VTR: cf. Ord. I, d. 44, Apêndice A (VI, 445).]. Esta é falsa no sentido da composição, mas verdadeira no sentido da divisão: “Deus tem a potência de fazer isto à parte do que é agora” (a saber, que o sol se mova contra o oriente) – esta é uma proposição categórica; “não dispôs fazer deste modo” – esta é outra proposição, e ambas são verdadeiras. 12. Ultra distinguendum est de potentia ordinata sive de ordine, quia ordo potest intelligi vel secundum regulas sive propositiones universales, vel particulares. Universalis est quod omnis homicida occidatur. Ordinatio autem particularis est ordo iudicii et exsecutionis, ut de hoc homicida in particulari ordinando quod occidatur, et hoc iudicium non est nisi conclusio legis. 12. Além disso deve-se distinguir sobre a potência ordenada, ou seja, sobre a ordem, porque a ordem pode ser entendida ou segundo as regras, ou seja, as proposições universais, ou as particulares. É universal que todo homicida seja morto. No entanto, é ordenação particular a ordem do juízo e da execução, como ao ordenar sobre este homicida em particular que seja morto, e este juízo não é senão a conclusão da lei. 13. Ad propositum : Deus posuit legem universalem et ordinem quod omnis malus damnabitur ; ordo particularis, qui dicitum iudicium, est quod iste, id est Iudas, damnabitur. Dico quod Deus potentia absoluta potest 13. Quanto ao proposto: Deus pôs a lei universal e a ordem de que todo mau será condenado; a ordem particular, que é chamada de juízo, é que este, isto é, Judas, será condenado. Digo que Deus, pela potência absoluta, pode salvar a Judas. No 8 salvare Iudam. Non tamen simpliciter potest eum salvare potentia ordinata et universali. Potest tamen eum salvare ordine particulari, si Iudas esset et non esset damnatus, quia possit eum praevenire per gratiam, sicut et Petrum post peccatum. Potest igitur contra universalem ordinem potentia absoluta, sed tunc non esset inordinatio, quia statueret istam legem ordinatam esse. Unde iste, praescitus exsistens, licet damnabitur, tamen potest potentia absoluta et potentia ordinata beatificari ; non tamen Iudas potentia ordinata. entanto, não pode simplesmente salvá-lo pela potência ordenada e universal. Pode, porém, salvá-lo pela ordem particular, se Judas fosse e não fosse condenado, porque poderia preveni-lo pela graça, assim como também a Pedro depois do pecado. Portanto, pode contra a ordem universal pela potência absoluta, mas então não haveria desordem, porque estabeleceria que essa lei fosse ordenada. Donde embora este exista como quem se prevê que há de ser condenado, pode, no entanto, pela potência absoluta e pela potência ordenada, ser beatificado; no entanto, não Judas pela potência ordenada. [III. – Ad argumenta principalia primae quaestionis] [III. – Para os argumentos principais da primeira questão] 14. Ad argumenta. Ad primum in oppositum dico quod non sequitur quod modo vel alias ageret inordinate, quia iste ordo secundum quem modo producit res non est omnis ordo sibi possibilis nec necessarius. Ergo sic arguendo ‘potest producere res aliter vel secundum alium ordinem quam modo producit, ergo inordinate potest producere, vel non secundum ordinem vel contra omnem ordinem’ non sequitur, sed est fallacia consequentis ab inferiori ad superius cum nota alietatis, et ita a destructione antecedentis ad destructionem consequentis, quia alietas includit negationem. 14. Para os argumentos. Ao primeiro em oposto [supra, n. 1] digo que não se segue que agora ou em outro [instante] tenha agido desordenadamente, porque esta ordem, segundo o modo pelo qual produz as coisas, não é toda a ordem possível para ele, nem necessária. Portanto, argumentando assim: “pode produzir as coisas diversamente, ou segundo outra ordem do que aquela que produz agora, portanto, pode produzir desordenadamente, ou não segundo a ordem, ou contra toda ordem” não se segue, mas é a falácia do consequente desde o inferior para o superior com a marca da alteridade, e assim desde a refutação do antecedente até a refutação do consequente, uma vez que a alteridade inclui a negação. 15. Ad secundum dico quod potentia et scientia coaequantur quantum ad obiecta, quia omne quod 15. Ao segundo [n. 2] digo que a potência e a ciência são igualadas quanto aos objetos, porque tudo que pode ser feito 9 potest fieri potest sciri. Sed non oportet quod coaequantur quantum ad omnia et omni modo. Non oportet enim quod cuiuscumque sit unum actualiter, et aliud, quia scientia cuiuscumque est eius actualiter, ut actu est, potentia autem es obiecti possibilis quod non est actualiter. pode ser sabido. Mas não é preciso que sejam igualadas quanto a tudo e de todo modo. Com efeito, não é preciso que de seja lá o que for haja atualmente uma e outra, porque a ciência de seja lá o que for é dele atualmente, como é em ato, ora, a potência é do objeto possível que não é atualmente. 16. Ad aliud dico quod in aeternitate possunt fieri opposita divisim, non coniunctim, et hoc in eodem instanti. Patet supra in materia de futuris contingentibus. 16. Ao outro [n. 3] digo que na eternidade podem ser feitos os opostos separadamente, mas não conjuntamente, e isto no mesmo instante. É patente acima quanto à matéria sobre os futuros contingentes [d. 39-40, n. 39-43]. 17. Ad aliud concedo quod non est scientia simpliciter necessaria, sed ut in pluribus tantum. Permittit enim res ut in pluribus operari secundum motus suos et secundum ordinem ab eo dispositum. Aliquando tamen, praetermittendo illum ordinem, agit secundum alium ordinem : patet de statione solis tempore Iosue et de tribus pueris in igne et de eclipsi solis in morte Christi, quod fuit contra principia geometriae. Sic ergo modo respondeo, sicut heri in quadam quaestione, quod non est scientia de contingentibus nisi de facto ut in pluribus. Sed quod sint sic apta nata ad tales motus, hoc est necessarium et sic scitum demonstrative. Sed quod modo sint aliter mota, ut tempore Iosue vel Ezechiae, vel sicut legitur in vitis patrum de sole, hoc est contingenter factum et ideo haec non possunt sciri demonstrative. Sed si habent tales motus quales deprehensi sunt sol et luna habere prius, tunc sequitur de necessitate scientia. Unde in eodem 17. Ao outro [n. 4] concedo que não há ciência absolutamente necessária, mas unicamente como em muitos. Com efeito, permite que as coisas operem como em muitos segundo seus movimentos e segundo a ordem disposta por ele. No entanto, às vezes, negligenciando aquela ordem, age segundo outra ordem: é patente sobre a parada do sol no tempo de Josué e dos três jovens no fogo e sobre o eclipse do sol na morte do Cristo, que foi contra os princípios da geometria. Assim, portanto, respondo agora, assim como ontem em certa questão [in d. 42, n. 32], que não há ciência sobre os contingentes a não ser de fato como em muitos. Mas que estejam de tal modo aptos naturalmente para tal movimento é necessário, e, assim, sabido demonstrativamente. Mas o modo pelo qual foram movidos diversamente, como no tempo de Josué ou de Ezequias, ou assim como se lê nas vidas dos pais sobre o sol, é algo feito contingentemente, e por isso estes não podem ser sabidos demonstrativamente. Mas se o sol e a lua têm tais movimentos que antes se 10 2 aspectu se habent sol et luna modo ac si non fuisset ibi aliquis novus motus vel nova coniunctio temporibus praedictis. Quod patet quia sicut contra movebatur unum corpus, ita totum caelum vel corpus motum subito revertebatur ad locum suum ad habendum uniformitatem. apreendeu que tivessem, então se segue a necessidade da ciência. Donde o sol e a lua se encontrarem agora sob o mesmo aspecto, como se não tivesse havido ali algum movimento novo ou conjunção nova no tempo já mencionado. O que é patente, porque, assim como um corpo foi movido contrariamente, assim todo o céu ou corpo movido subitamente voltou a seu lugar para ganhar uniformidade. 18. Ad ultimum dico quod naturalis non dicit plus de igne in tali parte caeli generari quam in alia, sed dicit quod approprinquante sole plus generatur de igne cui magis appropinquat. 18. Ao último [n. 8] digo que o natural não diz que o fogo seja gerado antes em tal parte do céu que em outra, mas diz que o sol se aproximando, mais fogo é gerado para aquele de que mais se aproxima. [Quaestio 2 [Questão 2 Utrum Deus possit facere meliora quam fecit] Se Deus pode fazer melhores do que fez] 19. Utrum Deus possit facere meliora quam fecit. 19. Se Deus pode fazer melhores do que fez. Videtur quod non : Augustinus, 83 Quaestionem, q. 50, probat Deum Patrem genuisse Filum sibi aequalem, quia si non, aut quia non potuit, et sic fuit debilis et infirmus, aut quia noluit et sic invidus. Eodem modo arguo in proposito, et patet. Vê-se que não: Agostinho, nas 83 Questões, q. 502, prova que Deus Pai tenha gerado o Filho igual a si, porque se não, ou porque não pôde, e assim foi débil e fraco, ou porque não quis, e, assim, invejoso. Do mesmo modo argumento quanto ao proposto, e é patente. 20. Item, Augustinus, III De libero arbitrio : Quidquid tibi recta ractione occurrat melius, hoc Deus fecisse scias’, etc. 20. Ainda, Agostinho, Sobre o livre arbítrio, livro III3: “Saibas que tudo o que, pela reta razão, ocorrer a ti de melhor, isto foi feito por Deus”, etc. 21. Contra : Augustinus, XI Super Genesim, et ponitur in littera : Deus potuit fecisse hominem 21. Contra: Agostinho, Sobre o Gênesis, livro XI4, e é posto literalmente: Deus pôde ter feito um homem sem Agostinho, 83 Quaest. q. 50 (CCL 44ª, 77; PL 40, 31-2). Agostinho, De lib. arb. III, c. 5, n. 50 (CCSL 29, 283; PL 32, 1277). 4 Agostinho, De Genesi ad litt. libri XII, XI, c. 7, n. 9 (CSEL 28.1, 340; PL 34, 433; Pedro Lombardo, Sent. I, d. 44, c. 1, n. 3 (SB IV, 304). 3 11 impeccabilem, qui numquam pecasset, et hoc melius esset quam quod modo in eo est. pecado, que jamais pecasse, e isto teria sido melhor do que agora se dá nele. [I. – Responsio Scoti ad secundam quaestionem] [I. – Resposta de Escoto para a segunda questão] 22. Respondeo ad quaestionem quod Deus potuit fecisse meliora quam fecit et potest modo facere secundum omnem bonitatem in re, sive essentialem sive accidentalem, et accidentalem sive extensivam sive intensivam. 22. Respondo para a questão que Deus pôde ter feito melhores do que fez e pode agora fazer segundo toda bondade quanto a coisa, seja essencial, seja acidental, e, acidental, seja extensiva, seja intensiva. 23. Et primo probo quod potuit ea fecisse meliore perfectione accidentali intensive. Cum enim omnes animae sunt eiusdem speciei, aut ergo sunt aequales secundum perfectionem, aut non. Si sunt aequales, ergo aequalis perfectionis capaces, sed non omnes aequalis capacitatis aequaliter habent perfectionem aequalem accidentalem, quia non omnes animae habent aequalem beatitudinem essentialem, quia nec habent aequalia merita quibus respondet beatitudo, etiam si fuerint aequales in capacitate naturali. Ergo non perficitur tota capacitas naturalis cuiuslibet animae tanta perfectione accidentali quantam posset recipere. 23. E, primeiro, provo que pôde fazê-la melhor pela perfeição acidental intensiva. Com efeito, visto que todas almas são da mesma espécie, então, ou são iguais segundo a perfeição, ou não. Se são iguais, então capazes de igual perfeição. Ora, nem todas de igual capacidade têm igual perfeição acidental, uma vez que nem todas as almas têm igual bemaventurança essencial, uma vez que não têm méritos iguais pelos quais responde a bem aventurança, ainda que sejam iguais na capacidade natural. Portanto, toda capacidade natural daquela alma não é aperfeiçoada por tanta perfeição acidental quanto possa receber. 24. Similiter, anima Christi habet beatitudinem maiorem quam aliquis angelus, et tamen capacitas naturalis cuiuscumque angeli est maior capacitate cuiuscumque animae naturali. Nullus ergo angelus habet tantam perfectionem quantae est capax. 24. De modo semelhante, a alma do Cristo tem bem-aventurança maior que a de algum anjo, e, no entanto, a capacidade natural de qualquer anjo é uma capacidade maior que a de qualquer alma natural. Portanto, nenhum anjo tem tanta perfeição quanto é capaz. 25. Dices quod non sunt aequales quia non sunt eiusdem speciei 25. Dizes que o anjo e a alma não são iguais porque não são da mesma 12 angelus et anima sed anima Christi est perfectior in gloria quolibet angelo. espécie. Ora, a alma de Cristo é mais perfeita na glória que qualquer anjo. Dico quod ex hoc sequitur propositum. Angelus est nobilior secundum speciem quam anima. Sed in speciebus ordinatis, si una est nobilior alia essentialiter, quodlibet individuum unius speciei est perfectius et nobilius quocumque individuo alteruis speciei ignobilioris ; aliter species tantum haberent ordinem accidentalem. Ergo quilibet angelus est perfectior et nobilior in natura quaecumque anima, etiam anima Christi, et per consequens habet maiorem capacitatem naturalem ad maiorem perfectionem habendam quam quaecumque anima. Sed anima Christi, per te, plus perficitur gloria quam aliquis angelus. Ergo nullus angelus habet tantam perfectionem accidentalem quantae est capax. Digo que disso se segue o proposto. O anjo é mais nobre segundo a espécie que a alma. Ora, nas espécies ordenadas, se uma é mais nobre que outra essencialmente, qualquer indivíduo de uma espécie é mais perfeito e nobre que qualquer indivíduo de outra espécie mais ignóbil; outras espécies unicamente terão a ordem acidental. Portanto, qualquer anjo é mais perfeito e nobre na natureza que qualquer alma, mesmo a alma de Cristo, e, consequentemente, tem maior capacidade natural para vir a ter uma perfeição maior que qualquer alma. Ora, a alma de Cristo, para ti, é a mais aperfeiçoada para a glória que a de qualquer anjo. Portanto, nenhum anjo tem tanta perfeição acidental quanto é capaz. 26. Ex his spiritualibus concluditur propositum de corporalibus. Nam si illa quae immediate ordinantur ad Deum, ut ad finem, possunt naturaliter magis perfici perfectione finis quam perficiantur, multo magis est hoc verum de corporalibus (de quibus est sibi minor cura), quod maioris perfectionis accidentalis sunt capaces quam modo habeant. 26. Destes espirituais conclui-se o proposto sobre os corporais. Pois, se aqueles que estão imediatamente ordenados para Deus como para o fim podem ser naturalmente mais aperfeiçoados pela perfeição do fim do que são aperfeiçoados, isso é muito mais verdadeiro sobre os corporais (sobre os quais há para ele menor cuidado) que são capazes de uma maior perfeição acidental do que a que têm agora. 27. Secundo digo quod Deus potest facere aliqua meliora accidentaliter et extensive quam facit – dando plures perfectiones quam dedit. 27. Segundo, digo que Deus pode fazer algum melhores acidentalmente e extensivamente do que faz – dando várias perfeições além das dadas. Patet in spiritualibus. Beati enim possunt plura cognoscere quam cognoscant : non enim cognoscunt É patente nos espirituais. Com efeito, os bem-aventurados podem conhecer mais do que conhecem: com 13 5 infinita in Verbo, et Verbum potest omnia cognoscere simul et beatis revelare omnia si velit, licet non simul. Et si beati hoc possunt, multo magis viatores. efeito, não conhecem os infinitos no Verbo, e o Verbo pode conhecer tudo simultaneamente e revelar tudo aos bemaventurados se quiser, embora não simultaneamente. E se os bemaventurados podem isso, muito mais os peregrinos. 28. Hoc etiam patet in corporibus caelestibus. Licet enim non recipiant peregrinas impressiones, scilicet corruptivas, recipiunt tamen multas peregrinas passiones et accidentales eis, ut lumen, splendorem et huiusmodi. Unde si medium esset ita magnum quod posset proicere umbram suam ad stellas, tota sphaera stellarum fixarum posset eclipsari et obscurari. Lumen ergo est perfectio accidentalis eis. Sed omne corpus diaphanum luminosum est perfectius ipso nonluminoso. Ergo plures perfectiones potest Deus dare quas non dedit et plures quam dedit. Et ideo hoc inconveniens de lumine non potuit vitare Averroes, qui solum motum concessit ex alio perpetuari et non esse ex se necessarium. Lumen enim perpetuatur ex alio et fit ex alio, ita necessario et perpetuo sicut motus. Aer enim non factus est lucidus, sed fit lucidus, secudum Augustinum, VIII Super Genesim. 28. Isso também é patente nos corpos celestes. Com efeito, embora não recebam impressões passageiras, isto é, corruptivas, recebem, porém, muitas afecções que para eles são passageiras e acidentais, como a luz, o esplendor e que tais. Donde, se o intermediário fosse tão grande que pudesse projetar sua sombra para as estrelas, toda a esfera das estrelas fixas poderia ser eclipsada e obscurecida. Portanto, a luz é uma perfeição acidental delas. Ora, todo corpo diáfano luminoso é mais perfeito que aquele não luminoso. Portanto, Deus pode dar várias perfeições que não deu e várias que deu. E, por isso, Averróis, que concedeu que unicamente o movimento se perpetue a partir de outro e que não seja necessário por si, não pôde evitar esse inconveniente sobre a luz. Com efeito a luz se perpetua a partir de outro e se produz a partir de outro, tão necessária e perpetuamente como o movimento. Com efeito, o ar não foi feito lúcido, mas se faz lúcido, segundo Agostinho, Sobre o Gênesis, livro VIII5. 29. Quantum vero ad secundum principale, scilicet quantum ad bonitatem et perfectionem essentialem, similiter dico quod Deus potest facere meliora quam fecit intensive et substantialiter, si substantia suscipiat magis et minus, de quo nihil est hic 29. De fato, quanto ao segundo principal [supra, n. 22], a saber, quanto à bondade e à perfeição essencial, digo de modo semelhante que Deus pode fazer melhores do que fez intensivamente e substancialmente, se a substância receber o mais e o menos, sobre o qual nada deve Agostinho, De Genesi ad litt. Libri XII, VIII, c. 12, n. 26 (CSEL 28.1, 250; PL 34, 383). 14 dicendum, quia difficilius proposito principali. ser dito aqui, porque mais difícil que o principalmente proposto. [II. – Ad argumenta principalia secundae quaestionis] [II. – Aos argumentos principais da segunda questão] 30. Ad primum in oppositum, dico quod non est invidia in Deo si non fecit omnia ita bona sicut potest. Invidia enim est in subtrahendo ab aliquo bonum quod est sibi debitum. Deus autem non est debitor alicuius creaturae quantum ad aliquam perfectionem in eo, quia mere liberaliter omnia facit. Si tamen Deus Pater non produxisset Filium sibi aequalem, fuisset invidus, quia debita est natura in Filio sicut in Patre, et per consequens omnis condicio quae sequitur naturam, ut aequalitas et huiusmodi. 30. Ao primeiro em oposto [n. 19], digo que não há inveja em Deus se não fez tudo tão bom como pode. Com efeito, há inveja em subtrair de algo o bem que a ele é devido. Ora, Deus não é devedor de alguma criatura quanto a alguma perfeição nele, porque faz tudo de modo puramente liberal. No entanto, se Deus Pai não tivesse produzido o Filho igual a si, teria sido invejoso, porque a natureza no Filho é devida assim como no Pai, e, consequentemente, toda condição que segue a natureza, como a igualdade e que tais. 31. Ad aliud dico quod ‘quidquid recta ratione tibi melius occurerit, hoc scias Deum fecisse’ verum est, quia nihil est melius simpliciter recta ratione quam in quantum volitum a Deo ; et ideo alia ‘quae, si fierent, essent meliora’ non sunt modo meliora entibus. Unde auctoritas nihil plus vult dicere nisi quod quidquid Deus fecit, hoc scias cum recta ratione fecisse. Omnia enim quaecumque voluit, fecit, in Psalmis [113, 11], cuius voluntas sit benedicta. 31. Ao outro [n. 20] digo que (a afirmação) “saibas que tudo o que, pela reta razão, ocorrer a ti de melhor, isto foi feito por Deus” é verdadeira, porque nada é absolutamente melhor pela reta razão do que enquanto querido por Deus; e, por isso, outros “que, se forem feitos, seriam melhores” não são agora melhores que os entes. Donde a autoridade não ter querido dizer nada além de que tudo o que Deus fez, saibas que o fez com a reta razão. Com efeito, tudo aquilo que quis, fez – no Salmo [113, 11] – aquele cuja vontade seja bendita. 15 JOÃO DUNS ESCOTO Ordinatio Livro I Distinção 44* Quaestio Unica: Questão Única: [UTRUM DEUS POSSIT ALITER [SE DEUS PODERIA FAZER AS FACERE RES QUAM AB IPSO ORDINATUM COISAS DIVERSAMENTE DE COMO FOI EST EAS FIERI] ORDENADO POR ELE QUE SEJAM FEITAS] 1. Circa distinctionem quadragesimam quartam – ubi Magister tractat “utrum Deus potuit res melius fecisse quam fecit” – quaero istam quaestionem: utrum Deus possit aliter facere res quam ab ipso ordinatum est eas fieri. 1. Acerca da distinção quadragésima quarta – em que o Mestre8 trata “se Deus pôde ter feito as coisas melhor do que fez” – pergunto o seguinte: se Deus poderia fazer as coisas diversamente de como foi ordenado por ele que sejam feitas. Et videtur quod non: * E vê-se que não: Quia tunc posset facere res inordinate. Consequens est falsum, ergo et antecedens. Porque então poderia fazer as coisas desordenadamente. A conseqüência é falsa, portanto, também o antecedente. 2. Contra: res aliter fieri quam factae sunt, non includit 6 contradictionem; nec est necessarium; igitur etc. 2. Contra: não há contradição em fazer as coisas diferentemente de como estão feitas; nem é necessário; portanto etc. 3. Respondeo: in omni agente per intellectum et voluntatem, potente conformiter agere legi rectae et tamen non necessario conformiter agere legi rectae, et tunc secundum potentiam ordinatam (ordinata enim est in quantum est principum exsequendi aliqua conformiter legi rectae), et potest 3. Respondo: em todo aquele que age pelo intelecto e pela vontade, que pode agir em conformidade com a lei reta e, no entanto, não tem de agir necessariamente em conformidade com a lei reta, e, assim, segundo a potência ordenada (com efeito, é ordenada enquanto é princípio do executar algo JOÃO DUNS ESCOTO, Ordinatio : Opera Omnia, Vol. VI. Civitas Vaticana, Typis Polyglottis Vaticanis, 1963, p. 363-369.445. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira. 6 Falta: o universo. 8 A saber, Pedro Lombardo. 16 9 agere praeter illam legem vel contra eam, et in hoc est potentia absoluta, excedens potentiam ordinatam. Et ideo non tantum in Deo, sed in omni agente libere – qui potest agere secundum dictamen legis rectae et praeter talem legem vel contra eam - est distinguere inter potentiam ordinatam et absolutam; ideo dicunt iuristae quod aliquis hoc potest facere de facto, hoc est de potentia sua absoluta – vel de iure, hoc est de potentia ordinata secundum iura. em conformidade com a lei reta), tanto pode agir além daquela lei ou contrariamente a ela, como nisto consiste a potência absoluta, que excede a potência ordenada. E, por isso, não somente em Deus, mas em todo agente livre – que pode agir segundo o ditame da lei reta e além de tal lei ou contra ela – deve-se distinguir entre a potência ordenada e a absoluta; por isso dizem os juristas que alguém pode fazer algo de fato, isto é, por sua potência absoluta – ou por direito, isto é, por sua potência ordenada segundo o direito9. 4. Quando autem illa lex recta – secundum quam ordinate agendum est – non est in potestate agentis, tunc potentia eius absoluta non potest excedere potentiam eius ordinatam circa obiecta aliqua, nisi circa illa agat inordinate; necessarium enim est illam legem stare – comparando ad tale agens – et tamen actionem “non conformatam illi legi rectae” non esse rectam neque ordinatam, quia tale agens tenetur agere secundum illam regulam cui subest. Unde omnes qui subsunt legi divinae, si non agunt secundum illam, inordinate agunt. 4. Mas quando aquela lei reta – segundo a qual se deve agir ordenadamente – não está em poder do agente, então sua potência absoluta não pode exceder sua potência ordenada acerca de algum objeto, a não ser que aja desordenadamente acerca dele; com efeito, é necessário que esta lei permaneça – em comparação com tal agente – e, contudo, que a ação “não conformada àquela lei reta” não seja reta nem ordenada, porque tal agente deveria agir segundo a regra à qual está submetido. Donde todos que estão sob a lei divina, se não agem segundo ela, agem desordenadamente. 5. Sed quando in potestate agentis est lex et rectitudo legis, ita quod non est recta nisi quia statu, tunc potest aliter agens ex libertate sua ordinare quam lex illa recta dictet; et tamen cum rectam secundum quam agat ordinate. Nec tunc potentia sua absoluta simpliciter excedit potentiam ordinatam, quia esset ordinata 5. Mas quando está no poder do agente a lei e a retidão da lei, de modo que não é reta a não ser porque pelo estabelecido, então o agente pode, a partir de sua liberdade, ordenar diferentemente o que a lei reta ditar; e, contudo, será reta segundo aja ordenadamente quanto a ela. E, então, sua potência absoluta não excede Isto é, segundo as normas: iura. (N. do T.). 17 secundum aliam legem sicut secundum priorem; tamen excedit potentiam ordinatam praecise secundum priorem legem, contra quam vel praeter quam facit. Ita posset exemplificari de principe et subditis, et lege positiva. absolutamente a potência ordenada, porque seria ordenada segundo outra lei assim como segundo a anterior, contudo, excede a potência ordenada precisamente segundo a lei anterior, contra a qual ou além da qual faz. Assim poder-se-ia dar o exemplo do príncipe e dos súditos, e da lei positiva. 6. Ad propositum ergo applicando, dico quod leges aliquae generales, recte dictantes, praefixae sunt a voluntate divina et non quidem ab intellectu divino ut praecedit actum voluntatis divinae, ut dictum est distinctione 38 [Sequitur textus interpolatus : quia non invenitur in illis legibus necessitas ex terminis (ut quod omnis peccator damnabitur), sed solum ex voluntate divina acceptante, quae operatur secundum huiusmodi leges quas statuit ; vel sufficit ad propositum dicere quod statuuntur a sapientia divina]; sed quando intellectus offert voluntati divinae talem legem, puta quod “omnis glorificandus, prius est gratificandus”, si placet voluntati suae – quae libera est – est recta lex, et ita est de aliis legibus. 6. Portanto, aplicando ao proposto, digo que algumas leis gerais, que ditam retamente, são preestabelecidas pela vontade divina e, certamente, não pelo intelecto divino que precede o ato da vontade divina, como foi dito na distinção 38 [Segue-se o texto interpolado: porque não se encontra naquelas leis a necessidade a partir dos termos (como que todo pecador seja condenado), mas unicamente da vontade divina que a aceita, a qual opera segundo tais leis que estabelece; ou basta dizer para o proposto que são estabelecidas desde a sabedoria divina10]; mas quando o intelecto oferece à vontade divina tal lei, como a de que “tudo que há de ser glorificado antes há de ser agraciado”, se agrada à sua vontade – que é livre – é lei reta, e assim sobre as outras leis. 7. Deus ergo, agere potens secundum illas rectas leges ut praefixae sunt ab eo, dicitur agere secundum potentiam ordinatam; ut autem potest multa agere quae non sunt secundum illas leges iam praefixas, sed praeter illas, dicitur eius potentia absoluta: quia enim Deus quodlibet potest agere quod non includit contradictionem, et omni modo potest agere qui non includit 7. Deus, portanto, ao poder agir segundo aquelas leis retas que são por ele preestabelecidas, é dito agir segundo a potência ordenada; mas o poder fazer muitas ações que não estão de acordo com aquelas leis já preestabelecidas, mas, além delas, diz-se sua potência absoluta: com efeito, porque Deus pode agir segundo o que queira sem incorrer em contradição, e pode agir de todo 10 Cf. DUNS ESCOTO, Rep. IA d. 44 n. 9. 18 contradictionem (et tales sunt multi modi alii), ideo dicitur tunc agere secundum potentiam absolutam. modo que não inclui contradição (e há muitos outros modos assim), diz-se, por isso, que então age segundo a potência absoluta. 8. Unde dico quod multa alia potest agere ordinate; et multa alia posse fieri ordinate, ab illis quae fiunt conformiter illis legibus, non includit contradictionem quando rectitudo huiusmodi legis – secundum quam dicitur quis recte et ordinate agere – est in potestate ipsius agentis. Ideo sicut potest aliter agere, ita potest aliam legem rectam statuere, – quae si statueretur a Deo, recta esset, quia nulla lex est recta nisi quatenus a voluntate divina acceptante est statuta; et tunc potentia eius absoluta ad aliquid, non se extendit ad aliud quam ad illud quod ordinate fieret, si fieret: non quidem fieret ordinate secundum istum ordinem, sed fieret ordinate secundum alium ordinem, quem ordinem ita posset voluntas divina statuere sicut potest agere. 8. Donde digo que pode fazer muitas outras ações ordenadamente; e que possa fazer muitas outras ordenadamente, desde aqueles que são feitos em conformidade com aquelas leis, não inclui contradição quando a retidão daquela lei – segundo a qual se diz que alguém age reta e ordenadamente – está em poder do próprio agente. Por isso, assim como pode agir diversamente, pode, então, estabelecer outra lei reta – que se fosse estabelecida por Deus, seria reta, porque nenhuma lei é reta senão na medida que ao ser aceita pela vontade divina é estabelecida; e, então, sua potência absoluta para algo, não se estende senão para aquilo que seria feito ordenadamente, se fosse feito: certamente, não seria feito ordenadamente segundo esta ordem, mas seria feito ordenadamente segundo outra ordem, ordem que a vontade divina poderia estabelecer assim como pode agir. 9. Advertendum etiam est quod aliquid esse ordinatum et ordinate fieri, hoc contingit dupliciter : 9. Também cumpre advertir que o algo ser ordenado e o ser feito ordenadamente se dá de dois modos: Uno modo, ordine universali, quod pertinet ad legem communem ‘omnem finaliter peccatorem esse damnandum’ (ut si rex statuat quod omnis homicida moriatur). Secundo modo, ordine particulari, - secundum hoc iudicium, ad quod non pertinet lex in universali, quia lex est de De um modo, pela ordem universal, - que pertence à lei comum: ‘todo pecador final há de ser condenado’ (como se o rei estabelecesse que todo homicida há de morrer). Do segundo modo, pela ordem particular, segundo o juízo para o qual não cabe a lei para o universal, porque a lei é sobre 19 universalibus causis ; de causa autem particulari non est lex, sed iudicium secundum legem, eius quod est contra legem (ut quod iste homicida moriatur). as causas universais; mas, sobre a causa particular, não há lei, mas o juízo segundo a lei sobre aquilo que é contrário à lei (por exemplo, que este homicida há de morrer). 10. Dico ergo quod Deus non solum potest agere aliter quam ordinatum est ordine particulari, sed aliter quam ordinatum est ordine universali – sive secundum leges iustitiae – potest ordinate agere, quia tam illa quae sunt praeter illum ordinem, quam illa quae sunt contra ordinem illum, possent a Deo ordinare fieri potentia absoluta. 10. Digo, portanto, que Deus não apenas pode agir diversamente do que está ordenado pela ordem particular, mas pode agir ordenadamente diversamente do que está ordenado pela ordem universal – ou segundo as leis da justiça –, porque tanto aqueles que são além desta ordem, quanto aqueles que são contrários a esta ordem, podem ser ordenados por Deus a serem feitos por sua potência absoluta. [Sequitur textus interpolatus, vide appendix A: Item, sciendum quod haec distinguenda est ‘Deus potest aliter producere resquam diposuit’. In sensu compositionis est falsa: significatur enim quod haec est possibilis ‘Deus producit aliter quam secundum dispositionem suam’; in sensu divisionis est vera, et sunt duae propositiones categoricae, et est sensus: ‘Deus potest facere hoc modo’, ‘non disposuit facere hoc modo’. Nec tamen sequitur quod inordinate agat, ut patet per praedicta.] [Segue-se texto interpolado, veja o apêndice A: Igualmente, cumpre saber que cabe distinção para ‘Deus pode produzir as coisas diversamente de como as dispôs’. No sentido da composição é falsa: com efeito, significa que ‘Deus produz diversamente do que segundo a sua disposição’ seja possível; no sentido da divisão é verdadeira, e tanto são duas proposições categóricas como há o sentido: ‘Deus pode fazer deste modo’, ‘não dispôs fazer deste modo’. No entanto, não se segue que aja desordenadamente, como é patente pelo que foi anteriormente respondido11.] 11. Potentia tamen ordinata non dicitur nisi secundum ordinem legis universalis, non autem secundum ordinem legis rectae de aliquo particulari. Quod apparet ex hoc quod possibile est Deum salvare quem non 11. No entanto, a potência não é dita ordenada senão segundo a ordem da lei universal, mas não segundo a ordem da lei reta sobre algo particular. Isto aparece do fato de que é possível que Deus salve àquele que não salva – 11 Cf. DUNS ESCOTO, Rep. IC d. 44, q. 1 in corp. (f. 189rb); Rep. IA d. 44 n. 11. 20 salvat, qui tamen morietur in peccato finaliter et damnabitur, - non autem conceditur ipsum posse salvare Iudam iam damnatum (nec tamen hoc est impossibile potentia absoluta Dei, quia non includit contradictionem); ergo istud, scilicet ‘salvare Iudam’, eo modo est impossibile quo modo possibile est salvare istum: ergo istum potest salvare de potentia ordinata (quod verum est), et illum non. Non quidem ordine particulari (qui est quasi de isto agibili et operabili particulari tantum), sed ordine universali, quia si salvaret, staret modo cum legibus rectis – quas vere praefixit – de salvatione et damnatione singulorum. Staret enim cum illa ‘quod finaliter malus damnabitur’ (quae est lex prefixa de damnandis), quia iste adhuc non est finaliter peccator, sed potest esse non peccator (maxime dum est in via), quia potest Deus eum gratia sua praevenire; sicut si rex praeveniret aliquem ne faceret homicidium, si non damnat eum, non facit contra legem suam universalem de homicida. Non autem staret, cum illa particulari lege, quod Iudam salvaret; Iuda enim potest praescire salvandum de potentia ordinata, sed non isto modo ordinata sed absoluta ab isto modo, et alio modo ordinata secundum aliquem alium ordinem tunc possibilem institui. aquele que, no entanto, há de morrer em pecado final e ser condenado –, mas não se concede que ele possa salvar a Judas que já está condenado (no entanto, isto não é impossível pela potência absoluta de Deus, porque não inclui contradição); portanto, isto, a saber, ‘salvar Judas’, é impossível daquele modo pelo qual é agora possível salvar o primeiro: portanto, o primeiro pode ser salvo pela potência ordenada (o que é verdadeiro), e Judas não. Certamente, [o primeiro pode ser salvo] não pela ordem particular [em vigor,] (que se dá como se apenas sobre este que é passível de ação e operação particular), mas pela ordem universal [a ser estabelecida], porque se for salvo, estará agora com as leis retas – as quais preestabeleceu verdadeiramente – sobre a salvação e a condenação de cada um dos singulares. Com efeito, estará com ‘que o mal final há de ser condenado’ (que é a lei preestabelecida sobre aquele que há de ser condenado), porque este ainda não é finalmente pecador, mas pode ser não pecador (maximamente enquanto está na via), porque Deus pode prevenir por sua graça; assim como se o rei, ao prevenir que alguém cometa um homicídio, não o condena, não atenta contra sua lei universal sobre o homicida. Ora, não estaria com aquela lei particular [em vigor] que Judas fosse salvo; com efeito, pode ter a presciência de que Judas há de ser salvo pela potência ordenada, mas não ordenada deste modo, mas absoluta quanto a este modo, e ordenada de outro modo segundo alguma outra ordem que então seja possível instituir. 21 7 [Sequitur textus interpolatus: Potentia ergo absoluta potest Iudam salvare, - potentia vero ordinata potest istum peccatorem salvare, licet non salvabitur; sed lapidem nec potest beatificare potentia absoluta, nec ordinata. Et secundum hoc, patet respectu cuius dicitur potentia absoluta in Deo, id est in quantum potest contra legem universalem et non particularem.] [Segue-se o texto interpolado: Portanto, pode salvar Judas pela potência absoluta – de fato, pela potência ordenada pode salvar este pecador, embora não venha a salva-lo – , mas não pode beatificar a pedra nem pela potência absoluta nem pela potência ordenada. E, segundo isso, fica patente a respeito de que se fala de potência absoluta em Deus, isto é, enquanto pode ser contrária à lei universal e não à particular.] 12. Qualiter autem voluntas divina possit circa particularia et circa leges rectas instituendas, non volendo oppositum eius quod nunc vult, dictum est supra distinctione 397. 12. Ora, como, qualitativamente, a vontade divina pode com relação aos particulares e as leis retas que hão de ser instituídas, não querendo o oposto daquilo que agora quer, tratou-se acima na distinção 39. 13. Ad argumentum [supra, n. 1] patet quod consequentia non valet, quia si faceret res alio modo quam nunc ordinatum est eas fieri, non propter hoc inordinate fierent, quia si statueret alias leges secundum quas fierent, eo ipso ordinate fierent. 13. Para o argumento [acima, nº 1] fica patente que a consequência não vale, porque se fizesse as coisas de modo diverso do que agora está ordenado que sejam feitas, elas não se dariam desordenadamente segundo isso, porque se fossem estabelecidas outras leis segundo as quais fossem feitas, por isso mesmo seriam feitas ordenadamente. 14. Ad argumentum in oppositum [n. 2] concedo quod probat de potentia absoluta, - quae tamen si esset principium alicuius, esset eo ipso ordinata, sed non secundum ordinem ab eo praefixum, eundem quem prius habuit. 14. Para o argumento oposto [nº 2], concedo que prova sobre a potência absoluta, - no entanto, se ela fosse princípio de algo, seria por isso mesmo ordenada, mas não segundo aquela mesma ordem por ele preestabelecida que antes se deu. Ausente na Ordinatio; cf. DUNS ESCOTO, Lectura I, d. 39, n.53-54. 22 JOÃO DUNS ESCOTO Lectura Livro I Distinção 44* Quaestio Unica: Questão Única: [UTRUM DEUS ALITER POTEST [SE DEUS PODE PRODUZIR AS PRODUCERE RES QUAM COISAS DIVERSAMENTE DE COMO PRÉ- PRAEORDINAVIT] ORDENOU] 1. Circa distinctionem quadragesimam quartam quaeritur utrum Deus aliter potest producere res quam praeordinavit. 1. Acerca da distinção quadragésima quarta pergunta-se se Deus pode produzir as coisas diversamente de como pré-ordenou. Quod non, videtur: * Vê-se que não: Quia tunc potest inordinate producere. Porque então poderia produzir desordenadamente. 2. Contra: res aliter potest esse quam praeordinavit : hoc enim non includit contradictionem ; igitur etc. 2. Contra: as coisas podem ser diferentemente de como preordenou; com efeito, não há contradição nisso; portanto etc. 3. Dicendum quod quando est agens quod conformiter agit legi et rationi rectae, - si non limitetur et alligetur illi legi, sed illa lex subest voluntati suae, potest ex potentia absoluta aliter agere ; sed si lex non subesset voluntati suae, non posset agere de potentia absoluta nisi quod potest de potentia ordinata secundum illam legem. Sed si illa subsit voluntati suae, bene potest de potentia absoluta quod non potest de potentia ordinata secundum illam legem ; si tamen sic operetur, erit ordinata secundum aliam legem, - sicut, ponatur quod aliquis 3. Deve-se dizer que quando há um agente que age em conformidade com a lei e a razão retas, se não for limitado e atado por aquela lei, mas aquela lei depender de sua vontade, pode agir diversamente a partir da potência absoluta; mas se a lei não dependesse de sua vontade, não poderia agir pela potência absoluta a não ser quanto àquilo que pode pela potência ordenada segundo aquela lei. Mas se ela depender de sua vontade, bem pode pela potência absoluta o que não pode pela potência ordenada segundo aquela lei; no entanto, se operar assim, será ordenada JOÃO DUNS ESCOTO, Lectura : Opera Omnia, Vol. XVII. Civitas Vaticana, Typis Polyglottis Vaticanis, 1966, p. 535 s.. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira. 23 esset ita liber (sicut rex) quod possit facere legem et eam mutare, tunc praeter illam legem de potentia sua absoluta aliter potest agere, quia potest legem mutare et aliam statuere. segundo outra lei, - assim como se fosse posto que alguém seja tão livre (como é o rei) que possa fazer a lei e muda-la, então pode agir diversamente para além daquela lei por sua potência absoluta, porque pode mudar a lei e estabelecer outra. 4. Sic Deus se habet in operando, nam intellectus – ut prior est voluntate – non statuit legem, sed offert primo voluntati suae ; voluntas autem acceptat sic oblatum, et tunc statuitur lex ; quia tamen opposita eorum quae statuta sunt, sunt possibilia, ideo potest legem mutare et aliter agere. Sicut statuit quod nullus esset glorificandus nisi prius esse gratificatus ; operando autem huic lege ordinate, agit secundum potentiam ordinatam, et non potest aliter operari nisi ordinando et statuendo aliam legem, - et hoc potest, quia contingenter voluit quod esset illa lex quod omnis peccator damnaretur ; unde faciendo contrarium, statuit aliam legem, secundum quam etiam ordinate operetur. 4. Assim acontece com Deus ao operar, pois o intelecto – dado que seja anterior à vontade – não estabelece a lei, mas a oferece primeiro à sua vontade; ora, a vontade aceita o que é assim oferecido, e, então, a lei é estabelecida; no entanto, porque os opostos àqueles que foram estabelecidos são possíveis, pode mudar a lei e agir diversamente. Assim como estabelece que ninguém há de ser glorificado a não ser que antes seja agraciado; ora, operando ordenadamente por esta lei, age segundo a potência ordenada, e não pode operar diversamente a não ser que ordene e estabeleça outra lei, - e pode isso, porque quis contingentemente que haja a lei de que todo pecador seja condenado, donde ao fazer o contrário, estabelece outra lei, segundo a qual também há de operar ordenadamente. 5. Et sic patet quomodo debet intelligi quod Deus potest facere de potentia absoluta quod non potest de potentia ordinata. 5. E assim é patente de que modo se deve entender que Deus pode fazer pela potência absoluta o que não pode pela potência ordenada. 24 GUILHERME DE OCKHAM Quodlibeta septem Livro VI Questão 1* * Utrum homo possit salvari sine caritate creata. Se o homem pode ser salvo sem a caridade criada. Quod non: Quia quicumque salvatur est carus Deo; sed nullus potest esse carus Deo sine caritate; igitur nullus potest salvari sine caritate. Que não: porque qualquer um que se salve é caro a Deus; mas ninguém pode ser caro a Deus sem a caridade; portanto, ninguém pode ser salvo sem a caridade. Contra : Deus potest omne absolutum distinctum ab alio separare et in esse sine eo conservare ; sed gratia et gloria sunt duo absoluta realiter distincta ; igitur potest gloriam in anima conservare et gratiam adnihilare. Hic primo ponam unam distinctionem de potentia Dei; secundo dicam ad quaestionem. Contra: Deus pode separar todo absoluto distinto de outro e conservá-lo no ser sem o outro; ora, a graça e a glória são dois absolutos distintos realmente; portanto, pode conservar a glória na alma e aniquilar a graça. Aqui primeiro farei uma distinção sobre a potência de Deus; em segundo lugar, responderei à questão. [PRIMUS ARTICULUS] [PRIMEIRO ARTIGO] Circa primum dico quod quaedam potest Deus facere de potentia ordinata et aliqua de potentia absoluta. Haec distinctio non est sic intelligenda quod in Deo sint realiter duae potentiae quarum uma sit ordinata et alia absoluta, quia unica potentia est in Deo ad extra, quae omni modo est ipse Deus. Nec sic est intelligenda quod aliqua potest Deus ordinate facere, et aliqua potest absolute et non ordinate, quia Deus nihil potest Sobre o primeiro digo que Deus pode fazer alguns pela potência ordenada e outros pela potência absoluta. Esta distinção não deve ser entendida assim: que haja em Deus realmente duas potências, das quais uma seria ordenada e a outra absoluta, uma vez que há uma única potência em Deus para o que é exterior, a qual, de todo o modo, é o próprio Deus. Nem deve ser entendida assim: que Deus Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1980. Quodlibeta Septem. J. C. Wey (ed.). [= G. de Ockham Opera Theologica IX]. St. Bonaventure (NY): The Franciscan Institute, p. 585-589, por Carlos Eduardo de Oliveira. 25 facere inordinate. pode fazer alguns ordenadamente e outros pode absoluta e não ordenadamente, uma vez que Deus nada pode fazer desordenadamente. Sed est sic intelligenda quod ‘posse aliquid’ quandoque accipitur segundo leges ordinatas et institutas a Deo, et illa dicitur Deus posse facere de potentia ordinata. Aliter accipitur ‘posse’ pro posse facere omne illud quod non includit contradictionem fieri, sive Deus ordinaverit se hoc facturum sive non, quia multa potest Deus facere quae non vult facere, secundo Magistrum Setentiarum, lib. I, d. 43 ; et illa dicitur Deus posse de potentia absoluta. Sicut Papa aliqua non potest secundum iura statuta ab eo, quae tamen absolute potest. Mas deve ser entendida assim: que ‘poder algo’ às vezes é tomado segundo as leis ordenadas e instituídas por Deus, e diz-se que Deus pode fazer esses pela potência ordenada. Diversamente, toma-se ‘poder’ por poder fazer tudo aquilo que não há contradição em ser feito, tenha Deus se ordenado a vir a fazê-lo ou não, uma vez que Deus pode fazer muitos que não quer fazer, segundo o Mestre das Sentenças, livro I, d. 43; e diz-se que Deus pode esses pela potência absoluta. Assim como o Papa não pode, segundo as normas estabelecidas por si mesmo, alguns que, no entanto, pode absolutamente. Ista distinctio probatur per dictum Salvatoris, Ioannis 3, 5: Nisi quis inquit renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto, non potest introire in regnum Dei. Cum enim Deus sit aequalis potentiae nunc sicut prius, et aliquando aliqui introierunt regnum Dei sine omni baptismo, sicut patet12 de pueris circumcisis tempore Legis defunctis antequam haberent usum rationis, et nunc est hoc possibile. Sed tamen illud quod tunc erat possibile secundum leges tunc institutas, nunc non est possibile secundum legem iam institutam, licet absolute sit possibile. Prova-se esta distinção por meio do que disse o Salvador, em João 3, 5. Disse: apenas aquele que tiver renascido da água e do Espírito Santo pode entrar no reino de Deus. Com efeito, dado que Deus tenha potências iguais tanto agora como antes, tanto como certa vez alguns entraram no reino de Deus sem nenhum batismo, assim como é patente no caso das crianças circuncidadas no tempo da Lei que morreram antes de ter o uso da razão, também agora isto é possível. Ora, no entanto, aquilo que então era possível segundo as leis então instituídas, agora não é possível segundo a lei agora instituída, embora seja possível absolutamente. 12 Cf. Pedro Lombardo, Sentenças, livro IV, d. 1, c. 7. 26 [SECUNDUS ARTICULUS [SEGUNDO ARTIGO CONCLUSIO 1] 1ª CONCLUSÃO] Circa secundum articulum dico primo quod homo potest salvari sine caritate creata de potentia Dei absoluta. Haec conclusio probatur primo sic: quidquid Deus potest facere mediante causa secunda in genere causae efficientis vel finis, potest immediate per se; sed caritas creata, si sit causa effectiva sive dispositiva disponens ad vitam aeternam, erit causa secunda efficiens vel finis; igitur sine ea potest Deus dare alicui vitam aeternam. A respeito do segundo artigo respondo que o homem pode ser salvo sem a caridade criada pela potência absoluta de Deus. Prova-se essa conclusão primeiramente assim: tudo o que Deus pode fazer por meio de uma causa segunda a título de causa eficiente ou final, pode imediatamente por si; ora, a caridade criada, se for causa efetiva ou dispositiva que dispõe para a vida eterna, será causa segunda eficiente ou final; portanto, Deus pode dar a vida eterna a alguém sem ela. Praetera agens quod non determinatur ad certum cursum et ordinem rerum, secundum alium ordinem res illas producere potest; sed Deus est tale agens; igitur potest dare vitam aeternam alicui facienti bonum opus, sine tali gratia. Além disso, o agente que não está determinado para certo curso e ordem das coisas, pode produzir segundo outra ordem aquelas coisas; ora, Deus é tal agente; portanto, pode dar a vida eterna a alguém que faça a boa obra sem tal graça. Praetera, quod potest dari alicui non tamquam praemium pro merito, potest sibi dari de potentia Dei absoluta sine omni habitu praevio qui est principium merendi; sed actus beatificus dabatur Paulo in suo raptu, quia tunc vidit essentiam divinam non tamquam praemium pro merito; igitur potest sibi dare vitam aeternam sine tali gratia quae est principium merendi. Além disso, o que pode ser dado a alguém sem ser o prêmio pelo mérito, pode ser dado a ele pela potência absoluta de Deus sem qualquer hábito prévio que é o princípio do merecer; ora, o ato beatífico foi dado a Paulo na sua queda, porque então viu a essência divina sem ser o prêmio pelo mérito; portanto, pode ser dada a ele a vida eterna sem tal graça que é o princípio do merecer. Praetera non est maior repugnantia actus meritorii ad naturam in solis naturalibus constitutam quam actus demeritorii; sed voluntas potest ex se in actum demeritorium; igitur voluntas in solis naturalibus constituta Além disso o ato meritório não repugna mais à natureza constituída no que é unicamente natural do que o ato demeritório; ora, a vontade pode por si no ato demeritório; portanto, a vontade constituída no que é unicamente natural 27 potest per potentiam Dei absolutam in actum meritorium. Minor est manifesta. Maior probatur, quia ubi non est simpliciter, ibi non est magis, sicut quod non est album non est magis album; sed actus meritorii ad naturam in solis naturalibus constitutam non est aliqua repugnantia; igitur non est maior repugnantia. pode pela potência absoluta de Deus no ato meritório. A menor é manifesta. Prova-se a maior, porque onde não há o simples, ali não há o mais; assim como o que não é branco não é mais branco; ora, não há nenhuma repugnância do ato meritório para a natureza constituída nos unicamente naturais; portanto, não há maior repugnância. Praeterea nihil est meritorium nisi quod est in potestate nostra; sed illa caritas non est in nostra potestate; igitur actus non est meritorius principaliter propter illam gratiam sed propter voluntatem libere causantem; igitur posset Deus talem actum elicitum a voluntate acceptare sine tali gratia. Além disso, não é meritório senão o que está em nosso poder; ora, aquela caridade não está em nosso poder, portanto, o ato não é meritório principalmente em razão daquela graça, mas em razão da vontade livre causadora; portanto, Deus pode aceitar tal ato produzido pela vontade sem tal graça. [CONCLUSIO 2] [2ª CONCLUSÃO] Secundo dico quod numquam salvabitur homo nec salvari poterit, nec umquam eliciet vel elicere poterit actum meritorium secundum leges a Deo nunc ordinatas sine gratia creata. Et hoc teneo propter Scripturam Sacram et dicta Sanctorum. Em segundo lugar, digo que o homem jamais será salvo nem poderá se salvar, nem jamais produziria ou poderia produzir o ato meritório segundo as leis agora ordenadas por Deus sem a graça criada. E assumo isto em razão da Sagrada Escritura e os ditos dos Santos. Et si dicis quod prima conclusio continet errorem Pelagii: E se disseres que a primeira conclusão contém o erro de Pelágio: Respondeo quod non, quia Pelagius posuit quod de facto non requiritur gratia ad vitam aeternam habendam sed quod actus ex puris naturalibus elicitus est meritorius vitae aeternae de condigno. Ego autem pono quod solum est meritorius per potentiam Dei absolutam acceptantem. Respondo que não, porque Pelágio assumiu que a graça de fato não é requerida para que se tenha a vida eterna, mas que o ato produzido pelo que é puramente natural é meritório da vida eterna sobre o que é igualmente digno. Eu, porém, assumo que apenas é meritório pela potência absoluta de Deus que o aceita. 28 Ad argumentum principale digo quod ‘caritas’ dupliciter accipitur: uno modo, pro una qualitate animae; alio modo, pro acceptatione divina. Primo modo accipiendo ‘caritatem’, potest homo esse carus Deo sine caritate, sed non secundo modo. Para o argumento principal digo que ‘caridade’ é tomada duplamente: de um modo, por uma qualidade da alma; de outro modo, pela aceitação divina. Tomando ‘caridade’ do primeiro modo, o homem pode ser caro a Deus sem a caridade, mas não do segundo modo. 29 GUILHERME DE OCKHAM, Tratado Contra Benedito Terceiro Livro* * [CAPITULUM III] [Capítulo 3] PRIMUS itaque error loannis XXII breviter hic tractandus, cui vocatus Benedictus XII tacendo favet, est: Quod Deus non potest aliquid facere, nisi quod facit; immo ipsum aliud facere contradictionem includit. Unde et distinctionem communem theologorum, quae sane intellecta est fidei consona orthodoxae : quod scilicet Deus aliqua potest de potentia ordinata, et aliqua de potentia absoluta, ut aliqua possit de potentia absoluta, quae numquam faciet de potentia ordinata : erroneam reputat et absurdam, secundum omnem intellectum, quem de ipsa theologi habere noscuntur: ponens quod, quia omnia sunt ordinata ab aeterno a Deo, et contra ordinationem Dei nihil fieri potest, aliquid aliter evenire quam evenit, contradictionem includit. E, assim13, o primeiro erro de João XXII que aqui brevemente cumpre tratar, o qual o assim chamado Benedito XII fomenta ao se calar, é: que Deus não pode fazer senão o que faz; ou melhor, que há contradição em que ele faça algo diversamente. Donde também a distinção comum dos teólogos – que corretamente entendida é consoante à fé ortodoxa, a saber, que Deus pode alguns pela potência ordenada e outros pela potência absoluta, dado que pode alguns pela potência absoluta que jamais fará pela potência ordenada – reputa errônea e absurda, segundo qualquer compreensão que os teólogos admitam ter dela, ao defender que, porque tudo é ordenado por Deus desde a eternidade e nada pode ser feito contra a ordenação de Deus, há contradição em que algo aconteça diversamente de como acontece. Istum errorem praedicavit et docuit loannes XXII in sermone, qui incipit Tulerunt iusti spolia impiorum, etc., dicens : Cum dicitur ' iusti ', nota quod João XXII pregou e ensinou este erro no sermão que começa: Os justos trouxeram os espólios dos ímpios...14 etc., ao dizer: Quando é dito “justos”, Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1956. Tractatus contra Benedictum. R. F. Bennett e H. S. Offler (curadores). H. S. Offler (ed.). [= G. de Ockham Opera Politica III]. Manchester : Manchester University Press, p. 230-234, por Carlos Eduardo de Oliveira. 13 Cf. Opus Nonaginta Dierum, cap. 95; Epistola ad Fratres Minores; Contra Ioannem, cap. 22. (O tema principal dos dois últimos trechos é a alegação de que João XXII nega a distinção entre a potência absoluta e a ordenada e, como consequência disso, defende que tudo aconteça necessariamente.). 14 Sermão pregado em 1330 “sobre a vitória do rei de Castela contra os Sarracenos” (cf. Ockham, 1956, Epistola ad Fratres Minores, p. 14, comentário às linhas 22-6). 30 quilibet homines divinae regulae se conformant cum efficiuntur iusti, scilicet per caritatem et baptismum, quae regulae sunt aeternae et incommutabiles, idemque quod divina essentia. Unde sicut impossibile est Deum esse mutabilem, quia tunc non esset Deus, ita impossibile est quod illa, quae de sua ordinata potentia facit, [possit aliter facere quam facit]. Et ideo impossibile est quod salvaret hominem de absoluta potentia sine sacramento baptismi et sine habitu caritatis, quia sic ordinatum fuit ab aeterno de [Dei] potentia ordinata, quae idem est quod Deus, et mutari non potest. Item, cum dicitur : ' Victricem manum ' etc., per manum in scriptura intelligitur divina potentia, quae idem est quod sua essentia. Unde distinguunt quidam et dicunt, quod multa potest Deus de potentia absoluta, quae non potest nec facit de potentia ordinata. Sed istud est falsum et erroneum, quia potentia Dei absoluta et ordinata idem sunt et non distinguuntur ab invicem, nisi solo nomine, sicut Simon et Petrus, quando idem homo utroque nomine appellatur. Sicut ergo impossibile est quod aliquis percutiat Simonem et non percutiat Petrum, et quod Simon faciat aliquid quod non facit Petrus, quia sunt idem homo : ita impossibile est quod Deus de potentia absoluta possit aliud facere quam facit de potentia ordinata, quia idem sunt, et solo nomine differunt sive distinguuntur. Item, cum istae potentiae sint idem quod Deus, si posset Deus aliquid facere de potentia absoluta, quod non facit de potentia ordinata, tunc esset mutabilis in se ipso, et non esset Deus. Sicut ergo sum-mum impossibile est Deum non esse Deum, ita summum nota que quaisquer homens se conformam à regra divina quando se tornam justos, a saber, por meio da caridade e do batismo, regras que são eternas e incomutáveis, tal como a essência divina. Donde assim como é impossível que Deus seja mutável, pois então não seria Deus, é impossível que [possa fazer diversamente do que faz] aquilo que faz por sua potência ordenada. E por isso é impossível que salvasse o homem pela potência absoluta sem o sacramento do batismo e sem o hábito da caridade, porque foi assim ordenado desde a eternidade pela potência ordenada [de Deus], que é idêntica a Deus, e não pode ser mudada. Ainda, quando é dito: “Mão vitoriosa”(Sb 10, 20) etc., por “mão” é entendida, na Escritura, a potência divina, que é idêntica à sua essência. Donde alguns distinguem e dizem que Deus pode muitos pela potência absoluta que não pode nem faz pela potência ordenada. Ora, isso é falso e errôneo, porque a potência absoluta e ordenada de Deus são a mesma e não são distintas entre si a não ser unicamente pelo nome, assim como Simão e Pedro, quando o mesmo homem é chamado por ambos. Portanto, assim como é impossível que alguém atinja a Simão e não atinja a Pedro, e que Simão faça algo que Pedro não faz, uma vez que são o mesmo homem, assim é impossível que Deus possa, pela potência absoluta, fazer diversamente do que faz pela potência ordenada, porque são a mesma e diferem ou são distinguidas unicamente pelo nome. Ainda, dado que estas 31 impossibile est et erroneum dicere Deum posse aliquid facere de potentia absoluta aliud quam facit vel faciet de potentia ordinata. Item, in omnibus aliis citra Deum differunt essentia et potentia, quia in aliis omnibus potentiae sunt accidentia ; in solo autem Deo [potentia Dei est ipsa essentia et substantia Dei aeterna et incommutabilis. Si ergo Deus de] potentia absoluta posset aliquid facere aliud quam faciat de potentia ordinata, sequeretur quod effectus potentiae ordinatae posset a Deo frustrari et mutari, et tunc non esset omnipotens. Sequeretur etiam quod Deus in se ipso non solum esset mutabilis, sed sibi ipsi et suae potentiae contrarius, et tunc non esset Deus. Quae omnia sunt falsa et erronea. Patet igitur quod falsum est et erroneum dicere et etiam impossibile, quod Deus de potentia absoluta posset facere aliud quam faciat de potentia ordinata. Haec verba domini Ioannis XXII in dicto sermone praedicata et dicta. potências sejam idênticas a Deus, se Deus pudesse fazer algo pela potência absoluta que não faz pela potência ordenada então seria mutável em si mesmo, e não seria Deus. Portanto, assim como é sumamente impossível que Deus não seja Deus, assim é sumamente impossível e errôneo dizer que Deus possa fazer algo pela potência absoluta diverso do que faz ou fez pela potência ordenada. Ainda, em tudo o mais abaixo de Deus diferem a essência e a potência, porque em tudo o mais as potências são acidentes; ora, unicamente em Deus [a potência de Deus é a própria essência e substância eterna e incomutável de Deus. Portanto, se Deus pela] potência absoluta pudesse fazer algo diverso do que fizer pela potência ordenada, seguir-se-ia que o efeito da potência ordenada poderia ser suspenso e mudado por Deus, e, assim, não seria onipotente. Seguir-se-ia também que Deus em si mesmo não apenas seria mutável, mas contrário a si mesmo e à sua potência, e, então, não seria Deus: todos os quais são falsos e errôneos. Portanto, é patente que é falso e errôneo e ainda impossível dizer que Deus, pela potência absoluta, poderia fazer diversamente do que faz pela potência ordenada. Palavra pregada e pronunciada pelo senhor João XXII no sermão mencionado. Ista doctrina patenter asserit, non latenter, quod Deus non potest aliquid facere de potentia absoluta, quod non facit de potentia ordinata, quia omnia sunt ordinata a Deo. Ex quo sequitur evidenter Assevera claramente e não subentendidamente esta doutrina de que Deus não pode fazer, pela potência absoluta, algo que não faz pela potência ordenada, uma vez que tudo é ordenado 32 quod nulla creatura potest aliquid facere, quod non facit; et ita omnia de necessitate eveniunt et nihil penitus contingenter, sicut quamplures infideles et antiqui haeretici docuerunt, et adhuc occulti haeretici et laici et vetulae tenent, saepe per argumenta sua etiam litteratos viros et in sacris litteris peritos concertantes. Uterque autem errorum praedictorum scripturis divinis repugnat aperte, sicut per quamplurimas auctoritates et rationes posset copiose probari, sed causa brevitatis adducam paucas. por Deus. Do que se segue15 evidentemente que nenhuma criatura pode fazer algo que não faz; e assim tudo acontece necessariamente e nada de modo completamente contingente, assim como ensinaram vários infiéis e hereges antigos, e ainda hoje sustentam os hereges dissimulados, os leigos e as velhotas que ainda combatem frequentemente por meio de seus argumentos os homens letrados e peritos das letras sagradas. Cada um dos erros mencionados repugna abertamente às escrituras divinas, assim como se pode provar por meio de várias autoridades e razões, mas apresentarei poucas para ser breve. Quod igitur Deus aliquid potuit et posset de potentia absoluta, quod non fecit nec facit nec faciet de potentia ordinata neque de potentia absoluta, probatur aperte. Hoc enim Christus testatur expresse, qui, ut legitur Matthaei xxvi, ait Petro : Converte gladium tuum in vaginam seu in locum suum ; omnes enim, qui acceperint gladium, gladio peribunt. An putas, quia non possum rogare Patrem meum, et exhibebit mihi plus quam xii legiones angelorum ? Quo modo ergo implebuntur Scripturae, quia sic oportet fieri ? Ex quibus verbis Christi colligitur evidenter quod Deus poterat exhibere Christo plus quam xii legiones angelorum ad liberandum eum de manibus capientium et volentium occidere ipsum : et tamen Deus hoc non fecit, neque de potentia absoluta neque de potentia ordinata. Hinc Magister Sententiarum, Portanto16, que Deus pôde e pode pela potência absoluta o que não fez nem faz nem fará pela potência ordenada nem pela potência absoluta é abertamente provado. Com efeito, o Cristo atestou isto expressamente quando, como se lê em Mateus 26, 5254, disse a Pedro: Guarda tua espada na bainha ou em seu lugar; com efeito, todos que tomam a espada, pela espada perecerão. Pensas acaso que não posso pedir ao meu Pai, e ele me dará mais de doze legiões de anjos? De que modo, então, se cumprirão as Escrituras, uma vez que é assim que convém acontecer? Palavras de Cristo a partir das quais se colhe evidentemente que Deus poderia dar a Cristo mais de doze legiões de anjos para libertá-lo das mãos que o prendiam e queriam matá-lo: e, no entanto, Deus não fez isso, nem pela 15 16 Cf. Contra Ioannem, cap. 23. Cf. Opus Nonaginta Dierum, cap. 95. 33 libro primo, di. xliii, ait: Omnipotentis voluntas multa potest facere, quae non vult nec facit: potuit enim facere, ut xii legiones contra illos pugnarent, qui Christum ceperunt: quod tamen non fecit. Item, hoc tres viri, Sidrach, Misach et Abdenago, qui, ut legitur Danielis iii, de camino ignis ardentis miraculose liberati fuerunt, antequam mitterentur in caminum testati sunt, dicentes Nabuchodonosor regi: Ecce Deus noster, quem colimus, potest eripere nos de camino ignis ardentis, et de manibus tuis, rex, liberare. Quod si noluerit, notum sit tibi, rex, quod deos tuos non colimus. Ex quibus verbis liquido patet quod isti firmiter crediderunt quod Deus poterat eos de manibus regis eripere, et tamen an eos vellet eripere, nesciverunt. Quare crediderunt quod Deus poterat aliqua facere, quae numquam faciet. Item, hoc testatur Ioannes Baptista, qui, ut legitur Matthaei iii, dixit quod Deus potest de lapidibus suscitare filios Abrahae, quod [non] solum spiritualiter, sed etiam ad litteram sane potest intelligi: quod tamen Deus non facit. Potest ergo Deus multa facere, quae non facit: quod Augustinus testatur, qui, ut recitat Magister Sententiarum, libro primo, di. xliii, ait in libro de Natura et Gratia : Dominus Lazarum suscitavit in corpore. Numquid dicendum est, non potuit ludam suscitare in mente ? Potuit quidem, sed noluit. Alias plures auctoritates Augustini Magister eadem distinctione xliii et di. xliv allegat ad idem, quibus manifeste asseritur Deum posse facere multa, quae non facit. Post quas concludit Magister, dicens : Ex 17 18 Citando a Agostinho, Enchiridion, 95, PL 40, 275. Agostinho, De natura et gratia, VII, PL 44, 250. potência absoluta, nem pela potência ordenada. Aqui, o Mestre das Sentenças, no livro Primeiro, distinção 4317, diz: A vontade do onipotente pode fazer muitos que não quer nem faz: com efeito, pôde fazer que doze legiões lutassem contra aqueles que prenderam o Cristo, o que, porém, não fez. Ainda, estes três homens, Sidrac, Misac e Abdênago, que, como se lê em Daniel 3, 17-18, foram libertados milagrosamente do caminho de fogo ardente, antes de serem enviados ao caminho testemunharam ao dizer ao rei Nabucodonosor: Eis que o nosso Deus, a quem cultuamos, pode nos tirar do caminho de fogo ardente e libertar de tuas mãos, ó rei. Se ele não o quiser, saiba, ó rei, que não veneramos os teus deuses. Dessas palavras é claramente patente que eles acreditaram firmemente que Deus poderia tirá-los das mãos do rei, e, no entanto, ignoravam se os queria tirar. Assim acreditaram que Deus poderia fazer algo que jamais fez. Ainda, isto testemunha João Batista, que, como se lê em Mateus 3, 9, diz que Deus pode suscitar das pedras filhos para Abraão, o que [não] apenas espiritualmente, mas também literalmente pode ser corretamente entendido: no entanto, Deus não o faz. Portanto, Deus pode fazer muitos que não faz: testemunha-o Agostinho, que, como cita o Mestre das Sentenças, no livro primeiro, distinção 43, disse no livro Sobre a Natureza e a Graça18: o Senhor suscitou Lázaro no corpo. Acaso deve ser dito que não pôde 34 praedictis constat, quod Deus potest facere et alia, quam facit, et quae facit, meliora posset ea facere, quam facit. suscitar Judas na mente? Certamente pôde, mas não quis. O Mestre alega várias outras autoridades de Agostinho sobre isso na mesma distinção 43 e na distinção 44, pelas quais manifestamente é asseverado que Deus pode fazer muitos que não faz. Depois delas, o Mestre conclui dizendo19: Consta do que foi mencionado que Deus pode fazer tanto outros do que faz como, o que faz, pode fazê-lo melhor do que faz. Quod autem creaturae possint facere multa, quae non faciunt, et omittere, quae non omittuntur, et per consequens non omnia eveniunt de necessitate, sed multa contingenter fiunt, auctoritatibus sacrae scripturae ostenditur manifeste. De uno enim iusto legitur in Ecclesiastico : Potuit transgredi, et non est transgressus ; et facere mala, et non fecit. Et, ut legitur II Machabaeorum c. vi, dicit Eleazarus scriba, cum esset in tormentis pro fide Dei: Domine, qui habes sanctam scientiam, manifeste tu scis, quia, cum a morte possem liberari, duros et corporis sustineo dolores: secundum animam vero propter timorem tuum libenter patior haec. Et Matthaei xxvi dicitur de unguento, quod effudit Maria Magdalena super caput Ihesu : Potuit istud unguentum venundari multo, et dari pauperibus : et tamen non fuit venundatum neque datum pauperibus. Ex quibus omnibus clarissime patet quod creaturae multa possunt facere, quae non facient, et multa omittere, quae non omittent. Quare non omnia de necessitate eveniunt, ut publice Ora, que as criaturas possam fazer muitos que não fazem e omitir que não omitem e, consequentemente, nem tudo acontece necessariamente, mas muitos se dão contingentemente, é manifestamente mostrado pelas autoridades da sagrada escritura. Com efeito, lê-se sobre um justo no Eclesiástico, 31, 10: Pôde transgredir, e não transgrediu; fazer o mal, e não fez. E, como se lê no capítulo 6, 30, de 2º Macabeus, diz o escriba Eleazar quando estava sob tormentos pela fé de Deus: ó Senhor, que tens a santa ciência, sabes manifestamente que eu, ainda que pudesse libertar-me da morte, sustento as crueldades e as dores do corpo, pois segundo a alma por teu temor de bom grado as sofro. E em Mateus 26, 9, é dito sobre o unguento que Maria Madalena derramou sobre a cabeça de Jesus: este unguento podia ter sido vendido por muito e ser dado aos pobres, e, no entanto, nem foi vendido nem dado aos pobres. De todos esses fica clarissimamente patente que as criaturas podem fazer muitos que não 19 Pedro Lombardo, Sententiarum I, d. 44, cap. 1. 35 praedicavit et docuit loannes XXII, appellans quendam tenentem contrarium propter hoc haereticum. fazem e omitir muitos que não omitem. Assim, nem tudo acontece necessariamente, como pregou e ensinou publicamente João XXII, chamando, em razão disso, de herético a quem sustenta o contrário. Adhuc, in doctrina praemissa continetur alius error aperte, cum dicit quod Deus de potentia absoluta non potest salvare hominem sine sacramento baptismi. Quod est erroneum : tum quia, accipiendo sacramentum baptismi sicut accipitur a theologis et sanctis, quando de sacramento baptismi loquuntur (scilicet pro ablutione in acqua cum debita forma verborum), et multi de facto salvantur sine tali sacramento, scilicet occisi pro fide, et multi, qui per poenitentiam absque baptismo fluminis (qui ipsum habere non possunt) credunt se baptizatos, salvantur: tum quia absque baptismo fluminis, flaminis et sanguinis posset nunc salvare infantes, sicut antiquitus fecit muitos, ex quo manus eius non est abbreviata nec eius potentia est in aliquo diminuta. Ainda, na doutrina anunciada, está contido abertamente outro erro, visto que se diz que Deus não pode, pela potência absoluta, salvar o homem sem o sacramento do batismo. O que se vê que seja errôneo: seja porque, tomando o sacramento do batismo assim como é tomado pelos teólogos e pelos santos quando falam sobre o sacramento do batismo (a saber, pela ablução na água com a devida forma das palavras), tanto muitos se salvam de fato sem tal sacramento, a saber, mortos pela fé, como muitos, que, por meio da penitência, sem o batismo das águas (que não podem receber), se creem batizados, são salvos; seja porque sem o batismo da água, do fogo e do sangue pode agora salvar as crianças, assim como fez muitos desde os tempos antigos, donde sua mão não está encurtada20 nem sua potência de algum modo diminuída. Rationes autem Ioannis XXII, quas pro haeresi praedicta adducit, haereticales sunt et omnino similes rationibus haereticorum (quas allegat et solvit Magister Sententiarum libro primo de diversis distinctionibus), quibus haeretici conabantur ostendere quod omnia eveniunt de necessitate, quia praescientia Dei falli non potest, et quia Ora, as razões de João XXII, que toma o que foi mencionado por heresia, são heréticas e completamente semelhantes às razões dos heréticos (as quais cita e resolve o Mestre das Sentenças no livro Primeiro sobre diversas distinções21), pelas quais os heréticos buscavam mostrar que tudo ocorre necessariamente, seja porque a 20 21 Cf. Is 59, 1. Cf. Pedo Lombardo, Sentent. I, d. 38, 2; d. 40, 1. 36 in Deo idem est esse et velle, et quia in Deo scire et praescire et esse sunt idem: et eodem modo solvi debent. presciência de Deus não pode falhar, seja porque em Deus é o mesmo o ser e o querer, seja porque em Deus o saber e o saber previamente e o ser são o mesmo: e devem ser resolvidas do mesmo modo. Ad cuius evidentiam ad praesens breviter est sciendum, quod ad recte intelligendum distinctionem de potentia Dei absoluta et ordinata non intendunt quod in Deo sint diversae potentiae, quarum una est absoluta et alia ordinata, per quarum unam potest Deus aliqua, quae non potest per aliam. Sed intendunt solummodo quod Deus posset aliqua, quae non ordinavit se facturum; quemadmodum posset aliqua facere, quae non praevidit se facturum, quia non est ea facturus : quae tamen, si faceret, et praeordinasset et praescivisset se facturum. Non ergo sunt tales potentiae in Deo diversae ; sed quemadmodum, ut dicit Magister Sententiarum libro i, di. xlv: Sacra [scriptura] de voluntate [Dei] variis modis consuevit loqui; et non est voluntas Dei diversa, sed locutio diversa est de voluntate, quia nomine voluntatis diversa accipit, sic scripturae divinae et sanctorum diversimode loquuntur de potentia Dei, et tamen potentia Dei est una, et non diversa. Et ideo, licet potentia Dei sit una, tamen propter diversam locutionem dicitur quod Deus aliqua potest de potentia absoluta, quae tamen numquam faciet de potentia ordinata (hoc est, de facto numquam faciet) : quemadmodum essentia et potentia, et similiter esse et posse, non sunt diversa in Deo, et tamen Deus potest Para a evidência disso cumpre saber aqui, brevemente, que para o correto entendimento da distinção sobre a potência absoluta e ordenada de Deus não pretendem que haja em Deus potências diversas, das quais uma é absoluta e a outra ordenada, por uma das quais Deus pode alguns que não pode pela outra. Mas pretendem unicamente que pudesse alguns que não se ordenou haver de fazer; de modo que pudesse fazer alguns que não previu haver de fazer porque não há de fazêlos; os quais, no entanto, se fizesse, tanto preordenaria como saberia previamente que haveria de fazê-los. Portanto, tais potências não são diversas em Deus; mas de modo que, como diz o Mestre das Sentenças no livro 1, distinção 4522: A Sagrada [Escritura] costumeiramente falou de vários modos sobre a vontade [de Deus]; e a vontade de Deus não é diversa, mas é diversa a locução sobre a vontade, porque toma a diversos com o nome “vontade”, assim as escrituras divinas e dos santos falam de modos diversos sobre a potência de Deus, e, no entanto, a potência de Deus é una, não diversa. E, por isso, embora a potência de Deus seja una, no entanto, em razão de uma locução diversa se diz que Deus pode alguns pela potência absoluta que, no entanto, jamais fará 22 Cap. 5. 37 multa, non obstante quod non sint illa multa, quae potest. Potest enim facere et fecit creaturas, scilicet caelum et terram et alia, et tamen non illa, quae fecit, et illa, quae faciet. pela potência ordenada (isto é, de fato jamais fará): de modo que a essência e a potência, e, semelhantemente, o ser e o poder, não são diversos em Deus, e, no entanto, Deus pode muitos sem que obste que aqueles muitos que pode não sejam. Com efeito, pode fazer e fez as criaturas, a saber, o céu e a terra e outros, e, no entanto, não aqueles que fez e aqueles que fará. Qualiter autem non propter diversitatem potentiarum in Deo, sed propter diversitatem locutionis (hoc est, propter diversum modum accipiendi vocabula vel vocabulum) sit dicendum quod Deus posset aliqua de potentia absoluta, quae numquam faciet, non posset verbis brevibus explicari, nec illi, qui in scientiis philosophicis et theologicis minime sunt sufficienter instructi, faciliter valerent intelligere: ideo de hoc ad praesens pertranseo. Mas, segundo qual qualidade – não em razão da diversidade das potências em Deus, mas em razão da diversidade da locução (isto é, em razão do modo diverso de se tomar as palavras ou a palavra) – deve ser dito que Deus pode alguns pela potência absoluta que jamais fará, não pode ser explicado com palavras breves, nem aqueles que são minimamente instruídos de modo suficiente nas ciências filosóficas e teológicas conseguirão entender facilmente, por isso, aqui, abro mão disso. 38 GUILHERME DE OCKHAM Opus Nonaginta Dierum (Obra dos Noventa Dias) Capítulo 95* ET si velit dicere quod illi regno et E se quer dizer que renunciou dominio renuntiavit expresse, ostendat illam, si expressamente àquele reino e domínio, sciat : quod tamen, ut credimus, per sacram mostre a renúncia, se souber, visto que, no scripturam non poterit. Immo contrarium sacra entanto, como cremos, não o poderia pela scriptura supponit expresse; quae supponit eum sagrada escritura. Melhor: a sagrada escritura non longe a passione sua dixisse : Vos vocatis supõe expressamente o contrário; visto que me Magister, et Domine, et bene dicitis ; sum supõe que, não muito antes de sua paixão, etenim. Item, illud Matthaei xxi, ubi Dominus tivesse dito: Vós me chamais de Mestre e de duobus discipulis dixit: Ite in castellum, quod Senhor, e dizeis bem; com efeito, eu sou [João contra vos est, et statim invenietis asinam 13, 13]. Ainda, a passagem de Mateus 21, 2- alligatam, et pullum cum ea ; solvite, et 3, em que o Senhor disse aos dois discípulos: adducite michi ; et si quis vobis aliquid dixerit, Ide à aldeia que está à vossa frente e logo dicite quia Dominus hiis opus habet. Item, encontrareis uma jumenta amarrada e um tempore passionis se regem recognovit, ut filhote com ela; desamarrai-os e trazei para probatum est supra. Item, David in persona eius mim; e se alguém disser algo a vós, direis que legitur dixisse (etiam pro tempore passionis), o Senhor necessita deles. Ainda, no tempo da diviserunt sibi vestimenta mea et super vestem paixão, se reconhece rei, como se provou meam miserunt sortem, et recitatur Matthaei antes. Ainda, lê-se (também quanto ao tempo xxvii. Ex quibus evidenter apparet ipsum regno da paixão) que Davi teria dito quanto à sua et dominio non renuntiasse praedictis ; immo pessoa: dividiram entre si minhas vestes e videtur quod non potuerit renuntiare, et si lançaram a sorte sobre minhas roupas, e é fecisset, contra ordinationem Patris fecisset. citado em Mateus 27 [Sl 21, 19; Mt 27, 35]. Dicitur enim Danielis ii, ubi de eius regno fit A mentio, sic : Suscitabit Deus caeli regnum, quod evidentemente que ele não tenha renunciado in aeternum non dissipabitur ; et regnum eius ao reino e ao domínio preditos; melhor: vê-se alteri non tradetur; item Danielis vii dicitur sic que não poderia renunciar, e se o fizesse, o : Dedit ei potesiatem, et honorem, et regnum, et faria contra a ordenação do Pai. Com efeito, omnes populi, tribus et linguae ipsi servient; diz-se em Daniel 2, 44, em trecho em que se potestas eius, potestas aeterna, quae non faz menção a seu reino, assim: o Deus do céu auferetur, et regnum eius non corrumpetur. suscitará um reino que não será dissipado na partir dessas passagens aparece eternidade; e seu reino não será entregue a * Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1963. Opus Nonaginta Dierum: Capitula 7-124. R. F. Bennett e H. S. Offler (curadores). † J. G. Sikes (ed.). H. S. Offler (rev.). [= G. de Ockham Opera Politica II]. Manchester : Manchester University Press, p. 715-729, por Carlos Eduardo de Oliveira. 39 outro; ainda, em Daniel 7, 14, diz-se assim: Deu a ele o poder, a honra, o reino e todos os povos, tribos e línguas a ele servirão; seu poder, poder eterno, não será subtraído e seu reino não será corrompido.23 IN parte ista nititur ostendere quod Christus regno et universali dominio nunquam renuntiavit. Primo autem dicit quod appellans non potest probare per scripturam sacram quod Christus renuntiavit regno et dominio universali; secundo, ibi: Immo contrarium, probat per tres auctoritates quod Christus non renuntiavit regno et dominio, sed ipsa retinuit; tertio, ibi: Immo videtur, probat quod Christus non potuit renuntiare regno et dominio tali ratione : Christus non potuit facere contra ordinationem Patris ; sed Pater ordinavit quod regnum Christi duraret in perpetuum ; ergo Christus regno et dominio renuntiare non potuit. Maiorem supponit tanquam certam, habens pro impossibili quod Christus fecisset contra ordinationem Patris; minorem probat duabus auctoritatibus Danielis. Nesta parte se esforça em mostrar que o Cristo jamais renunciou ao reino e ao domínio universal. Ora, primeiro diz que o apelante não pode provar pela sagrada escritura que o Cristo renunciou ao reino e ao domínio universal; segundo, ali: “Melhor: a sagrada escritura”, prova por três autoridades que o Cristo não renunciou ao reino e ao domínio, mas os manteve; terceiro, ali: “melhor: vê-se”, prova que o Cristo não pôde renunciar ao reino e ao domínio por tal razão: o Cristo não pôde agir contra a ordenação do Pai; ora, o Pai ordenou que o reino de Cristo durasse perpetuamente; portanto, o Cristo não pôde renunciar ao reino e ao domínio. Supõe a maior como certa, tomando por impossível que o Cristo agisse contra a ordenação do Pai; prova a menor com as duas autoridades de Daniel. Sed isti impugnatores, licet concedant quod Christus non renuntiavit regno et dominio proprie loquendo (quia ei, quod non est, renuntiari non potest; Christus autem ante passionem suam nunquam habuit inquantum homo regnum temporale et dominium seu proprietatem omnium temporalium; et per consequens eisdem minime renuntiavit proprie loquendo) : tamen dicunt istum Mas os que contendem sobre isso, embora concedam que o Cristo não renunciou propriamente falando ao reino e ao domínio (porque para ele, o que não é, não pode ser renunciado; ora, o Cristo antes de sua paixão jamais teve, enquanto homem, o reino temporal e o domínio ou a propriedade de tudo o que é temporal; e, consequentemente, nunca renunciou a isso, propriamente 23 Seguindo a edição latina a partir da qual foi feita esta tradução, iniciamos com a reprodução do trecho da bula Quia vir reprobus (Porque um homem réprobo) de João XXII que será comentada por Ockham neste capítulo. Uma versão completa da bula para o inglês está disponível em http://www.humanities.mq.edu.au/Ockham/wqvr.html (N. do T.). 40 impugnatum hic in duobus errare. Quorum primum est quod Christus non longe ante passionem habuit regnum temporale et dominium seu proprietatem rerum temporalium. Secundum est quod ideo Christus nullo modo potuerit renuntiare regno et dominio, quia, si fecisset, contra ordinationem Patris fecisset. falando), dizem, porém, que este com quem contendem comete aqui dois erros. Dos quais o primeiro é que o Cristo não muito antes da paixão teve o reino temporal e o domínio ou a propriedade das coisas temporais. O segundo é que, por isso, o Cristo de nenhum modo teria podido renunciar ao reino e ao domínio, porque, se assim agisse, agiria contra a ordenação do Pai. Primum improbatum est prius, ubi ostensum est quod Christus inquantum homo mortalis nunquam habuit regnum temporale et universale rerum dominium seu proprietatem; et per consequens multo magis ex quo coepit praedicare, non habuit regnum et dominium supradicta. Et quod tunc non habuerit regnum et dominium memorata, potest ostendi. Quod tamen non habuerit universale dominium omnium, in sequenti capitulo patebit. Hic vero probatur quod regnum non habuit temporale. O primeiro foi censurado antes24, onde se mostrou que o Cristo enquanto homem mortal jamais teve o reino temporal e o domínio ou a propriedade universal das coisas; e, consequentemente, muito mais em razão daquilo que empreendeu pregar, não teve o reino e o domínio supramencionados. E é possível mostrar que, então, não teria tido o reino e o domínio lembrados. Porém, que não teria tido o domínio universal de tudo, será provado no capítulo seguinte25. Aqui, de fato, será provado que não teve o reino temporal. Hoc enim beatus Augustinus in quodam sermone de innocentibus testatur expresse, qui loquens de regno Christi ait: Putabat se infelix tyrannus Domini Salvatoris adventu regali solio detrudendum. Sed non ita est. Non ad hoc venerat Christus, ut alienam gloriam invaderet, sed ut suam donaret. Non, inquam, ad hoc venerat Christus, ut regnum terrestre praeriperet; sed ut caeleste donaret. Non venerat ad Com efeito26, o bem-aventurado Agostinho testemunha expressamente isso num sermão27 sobre os inocentes, no qual, ao falar sobre o reino de Cristo, disse: O infeliz tirano considerava que seria expulso de seu trono real pelo advento do Senhor Salvador. Mas não é assim. O Cristo não tinha vindo para assaltar a glória alheia, mas para dar a sua. O Cristo, digo, não veio para arrebatar o reino terrestre, mas para 24 Cap. 93, lin. 206 ss. Cap. 96, lin. 49-153. 26 Ockham cita uma série semelhante de autoridades em Brevilóquio IV, 8; Octo Quaestiones II, 6; Consultatio de causa matrimonialis. 27 [Augustinus], Sermo suppositus CCXVIII, 3, PL 39, 2150. 25 41 potestates dignitatesque rapiendas, sed ad contumelias et iniurias perferendas. Non ad hoc venerat, ut sacrum illud caput ad diadema gemmatum, sed ut ad coronam spineam praepararet. Non, inquam, venerat, ut constitueretur supra sceptra magnificus ; sed ut crucifigeretur illusus. Item, Leo papa in quodam sermone de Epiphania ait: Sed apparet illos, scilicet ludaeos, carnaliter cum Herode sapuisse et regnum Christi commune cum huius mundi potestatibus aestimasse, ut et isti temporalem sperarent ducem et terrenum metueret ille consortem. Ex hiis verbis clare patet quod regnum Christi non fuit tale, quale est regnum terrenorum, nec Christus fuit dux temporalis ; et per consequens rex fuit minime temporalis. dar o celeste. Não veio para pilhar os poderes e dignidades, mas para suportar afrontas e injúrias. Não veio para preparar aquela cabeça sagrada para uma diadema incrustrada de pedras preciosas, mas para uma coroa de espinhos. Não veio, digo, para ser constituído nobre sobre os cetros, mas para ser ultrajado com a crucificação. Ainda, o Papa Leão, em certo sermão sobre a Epifania28, disse: Ora, era evidente que eles, a saber, os Judeus, carnalmente, junto com Herodes, tenham entendido e julgado o reino de Cristo comum aos poderes deste mundo, dado que tanto estes esperassem um líder temporal e terreno, como aquele temesse um consorte. Destas palavras aparece claramente que o reino de Cristo não foi tal qual é o reino dos que são da terra, que Cristo não foi líder temporal, e, consequentemente, tampouco foi rei temporal. Item, Augustinus in epistola ad Madaurenses ait: Itaque non Christus regno decoratus nec Christus terrenis opibus dives nec Christus ulla terrena felicitate praefulgens ; sed Christus crucifixus per totum orbem terrarum praedicatur. Item, Gregorius in Pastorali ait: Ipse 'Dei et hominum Mediator' regnum percipere vitavit in terris, qui supernorum spirituum scientiam sensumque transcendens ante saecula regnat in caelis. Qui enim idcirco in carne Ainda, Agostinho, na Carta aos Madaurenses, disse: Assim, não o Cristo ornado com o reino, nem o Cristo opulento com as obras terrenas, nem o Cristo que resplandece alguma felicidade terrena, mas por todo o orbe terrestre é pregado o Cristo crucificado. Ainda, Gregório, na Pastoral29, disse: “O Mediador entre Deus e os homens”, tinha evitado apoderar-se do reino na terra; ele que, transcendendo a ciência e o sentido dos 28 Leão Magno, Sermo XXXIV, 2, PL 54, 246. Gregório Magno, Pastoral. I, 3, PL 77, 16, citado por Boaventura, Apologia Pauperum, in Doctoris Seraphici S. Bonaventurae Opera Omnia, ed. PP. Collegii a S. Bonaventura, VIII, AD Claras Aquas, 1898, 9, p. 297; Miguel de Cesena, Appellatio contra libelum “Quia vir reprobus”. Datada em Munique, 26 de Março de 1330 Parin, BN cod. Lat. 5154, fos. 179-253v., fo. 191. 29 42 venerat, ut non solum [nos] per passionem redimeret, verum etiam per suam conversationem doceret, exempla sequentibus praebens, rex fieri noluit. Ad crucis ergo patibulum sponte pervenit, oblatam gloriam culminis fugit, poenam probrosae mortis expetiit, ut membra eius discerent favores fugere, terrores minime timere, pro veritate adversa diligere, prospera formidando declinare. Item, Augustinus super illud Ioannis, Ergo cum cognovisset quia venturi essent, etc., ait: Putare ipsum regnare tunc quemadmodum turbae putabant, erat eum rapere, id est indebite trahere ac de ipso aestimare. Ex hiis claret quod qui putabant Christum regnare temporaliter, trahebant Christum indebite, ac de ipso etiam indebite aestimabant. espíritos mais supernos, reina nos céus antes dos séculos. Com efeito, aquele que viera à carne, não só para [nos] redimir pela paixão, mas também para [nos] ensinar por seu comportamento, dando exemplos aos seguidores, não quis se fazer rei. Portanto, dirigiu-se espontaneamente ao patíbulo da cruz, recusou a glória oferecida no monte, experimentou a pena da morte infame, para que seus companheiros aprendessem a recusar os aplausos, a jamais temer os terrores, a amar os inimigos em favor da verdade, a fugir com horror das honrarias. Ainda, Agostinho, sobre aquela passagem de João (6, 15)30: Então, dado que soubesse que viessem, etc., disse: Considerar que ele reinaria tal como a multidão pensava, era pilhá-lo, isto é, tomá-lo e julgá-lo de modo indevido. Disto aparece que aqueles que consideravam que o Cristo reinasse temporalmente, tomavam o Cristo de modo indevido, e também julgavam-no de modo indevido. Sed dicet aliquis quod Christus fuit rex temporalis, quamvis temporaliter non regnaret. Sed istam obiectionem confutat beatus Augustinus super illud Ioannis, Abiit Ihesus trans mare Galilaeae; qui ait: Venit ipse unus, utramque personam in se portans sacerdotis et regis : sacerdotis per victimam, quam seipsum obtulit pro nobis Deo ; regis, quia regimur ab eo ; ex quibus verbis constat aperte quod Christus non dicebatur rex nisi quia rexit; et per consequens quia regnavit. Sed non Mas alguém dirá que o Cristo foi rei temporal, embora não tivesse reinado temporalmente. Mas o bemaventurado Agostinho refuta esta objeção ao tratar daquela citação de João (6, 1)31: Jesus atravessou o mar da Galileia. Ele diz: Ele veio uno, trazendo em si ambas as pessoas do sacerdote e do rei: sacerdote pelo sacrifício, oferecendo-se a si mesmo por nós para Deus; rei porque somos regidos por ele; palavras a partir das quais consta 30 Provavelmente Ockham tinha em mente Agostinho, In Ioann. Evang. tr. XXV, 2, PL 35, 1597 = Cat. aur. In Ioann. 6, § 2. Mas a citação não é literal. 31 Agostinho, In Ioann. Evang. tr. XXIV, 5, PL 35, 1595. 43 regnavit temporaliter ; ergo non fuit rex temporalis. Item, glossa super illud Ioannis xviii, Regnum meum non est de hoc mundo, ait: Hoc est regnum, quod nos scire voluit; sed prius vicissim interrogando ostendere voluit quae et de regno suo hominum esset opinio, Iudaeorum et gentium; qua ostensa aptius utrisque respondet: 'Regnum meum non est de hoc mundo', [quasi]:' Decepti estis ; non enim impedio dominationem vestram in mundo, ne vane timeatis et saeviatis, sed ad regnum caeleste credendo venire'. Hiis concordat Ambrosius in hymno Epiphaniae dicens : Hostis Herodes impie, Impiamente, Herodes, Inimigo, Christum venire quid times ? o que temes se o Cristo vir? Non arripit mortalia, Não despoja o que é mortal, Qui regna dat caelestia. Aquele que dá o reino celestial. Istis etiam consonat glossa in principio libri Proverbiorum dicens: Parabolae graece, latine similitudines : quod vocabulum ideo Salomon huic operi imposuit, ut non iuxta litteram intelligamus, quae dicit. In quo Dominum parabolice turbis locuturum significat, sicut et nomine suo regno pacifico, regnum Christi et ecclesiae, de quo 'Multiplicabitur eius imperium', de quo 32 abertamente que o Cristo não era chamado rei senão porque reinava; e, consequentemente, porque reinou. Mas não reinou temporalmente. Portanto, não foi rei temporal. Ainda, na glosa32 sobre aquela passagem de João 18, 36: Meu reino não é deste mundo, disse: Este é o reino que quis que conhecêssemos; mas, ao interrogar novamente, quis primeiramente mostrar que havia a dúvida dos homens, tanto judeus como gentios, sobre seu reino, a qual revelada mais aptamente, respondeu a ambas: “Meu reino não é deste mundo” [como se respondesse]: ‘Estais enganados; com efeito, não impeço vossa dominação no mundo, e não temais e vos irriteis em vão, mas crendo que venha o reino celeste”. Com isto concorda Ambrósio33, que diz no hino da Epifania: Também é consoante a estas palavras a glosa34 para o princípio do livro dos Provérbios, que diz: “Parábolas” em grego, “alegorias” em latim: por isso Salomão intitulou esta obra com este vocábulo, para que não entendamos literalmente o que diz. No que indica que o Senhor há de falar por parábolas para as multidões, assim como também com o nome de seu reino Gl. ord. ad Ioann. 18, 36; cf. Augustinus, In Ioann. Evang. tr. CXV, 1-2, PL 35, 1939. Antes, Sedúlio, Hymnus (ad vesperas in Epiphania Domini) II, ed. J. Hümer, Viena, 1885, p. 164-5, citado por Miguel de Cesena, App. IV, fo. 191. 34 Gl. ord. ad init. libr. Proverbios, citado por Miguel de Cesena, ibidem. 33 44 dictum est: 'Et regnum eius non erit finis, et super solium David et super regnum eius sedebit'. Ipse etiam Christus filius David et rex spiritualis Israel. Ex hiis aliisque quampluribus colligitur evidenter quod Christus non venit regnum suscipere temporale, nec rex fieri voluit temporalis, neque dignitates assumere temporales, sed rex extitit spiritualis Israel. Quomodo autem tempore passionis recognovit se regem non temporaliter, sed spiritualiter, est in praecedentibus declaratum. pacífico, o reino de Cristo e da igreja, sobre o qual “será multiplicado seu império”, sobre o qual foi dito: “E seu reino não terá fim, e sentará sobre o trono de David e sobre o reino”35. Ele próprio também o Cristo, filho de Davi, e rei espiritual de Israel. Destas palavras e de várias outras recolhe-se evidentemente que o Cristo não veio tomar o reino temporal, nem quis se fazer rei do temporal nem assumir as dignidades temporais, mas mostrou-se o rei espiritual de Israel. Ora, de que modo reconheceu-se rei, não temporalmente, mas espiritualmente, no tempo da paixão, foi declarado anteriormente.36 Secundum, in quo dicunt istum errare, est quod ideo Christus nullo modo potuit renuntiare regno et dominio supradictis, quia, si fecisset, contra ordinationem Patris fecisset. Ad cuius intellectum dicunt esse sciendum quod iste opinatur quod omnia de necessitate eveniunt, ita quod contradictionem includit quaecunque aliter evenire quam eveniunt. Cuius ratio fundamentalis est, quia Deus omnia ab aeterno, quomodo debeant fieri, ordinavit; contradictionem autem includit quod ordinatio divina impediatur; ergo contradictionem includit quod quaecunque aliter eveniant quam eveniunt. Istam rationem generalem ad probandum quod omnia de necessitate eveniunt ipse hic applicat ad materiam specialem, scilicet quod Christus non potuit renuntiare regno et dominio supradictis. Quia Deus Pater ab aeterno O segundo em que dizem37 ele errar é que, por isso, o Cristo não pode renunciar de nenhum modo ao reino e ao domínio antes mencionados, porque, se o fizesse, o faria contra a ordenação do Pai. Para que se entenda isso, dizem que cumpre saber que este tem a opinião de que tudo acontece necessariamente, de modo que há contradição em que, seja o que for, aconteça diversamente de como acontece. A razão fundamental disso é que Deus, desde a eternidade, ordenou de que modo tudo deveria ser feito. Ora, há contradição em que a ordenação divina seja impedida. Portanto, há contradição em que seja o que for aconteça diversamente de como acontece. Essa razão geral para a prova de que tudo acontece necessariamente é aplicada por ele aqui numa matéria determinada, a saber, que o Cristo não 35 Cf. Is 9, 7. Cap. 93, 1254-1316. 37 Cf. Ockham, Dialogus I, 5, 2. 36 45 ordinavit quod Christus non renuntiaret regno et dominio; sed contradidionem includit quod ordinatio divina impediatur, et per consequens contradictionem includit quod Christus faceret contra ordinationem Patris ; ergo contradictionem includit quod Christus renuntiaverit regno et dominio saepedictis. Nec valet dicere ad excusationem ipsius quod per potentiam Dei ordinatam non potuit fieri quod Christus renuntiaverit regno et dominio, et sic intelligit iste hic ; hoc tamen potuit fieri per Dei potentiam absolutam, quae potest in omne illud, quod nequaquam contradictionem includit. Quia iste impugnatus, ut quidam istorum impugnatorum dicunt se audivisse ab ore eius, et ipse postea in suis sermonibus declaravit, negat illam distinctionem theologorum de potentia Dei ordinata et absoluta, nitens multis rationibus ostendere quod quicquid potest Deus de potentia absoluta, potest etiam de potentia ordinata, et quicquid non potest de potentia ordinata, non potest de potentia absoluta. Unde quendam istorum impugnatorum propter illam distinctionem et illa, quae sequuntur ex ipsa principaliter, acerbe prosequitur. Principalis autem ratio sua, quare negat illam distinctionem de potentia absoluta et ordinata, est quia, si Deus aliquid faceret de potentia absoluta, quod non faceret de potentia ordinata, Deus posset aliquid facere, quod non ordinavit se facturum ; et ita Deus esset mutabilis. Alia ratio sua est pôde renunciar ao reino e ao domínio antes mencionados porque Deus Pai desde a eternidade ordenou que o Cristo não renunciasse ao reino e ao domínio. Ora, há contradição em que a ordenação divina seja impedida, e, consequentemente, há contradição em que o Cristo tivesse agido contra a ordenação do Pai; portanto, há contradição em que o Cristo tivesse renunciado ao reino e ao domínio tantas vezes mencionado. E não vale dizer em favor dele que não pôde se dar que o Cristo tivesse renunciado ao reino e ao domínio pela potência ordenada de Deus, tal como ele a entende aqui, o que, no entanto, pôde ser feito pela potência absoluta de Deus, que pode quanto a tudo aquilo em que não há qualquer contradição, pois este contendedor, como alguns destes contendedores dizem ter ouvido de sua boca, e ele depois declarou em seus sermões38, nega aquela distinção dos teólogos entre a potência ordenada e absoluta de Deus, esforçando-se para mostrar por muitas razões que tudo que Deus pode pela potência absoluta, também pode pela potência ordenada, e tudo que não pode pela potência ordenada, não pode pela potência absoluta. Donde persegue duramente alguns destes contendedores39 em razão dessa distinção e, principalmente, daquilo que ela implica. Ora, sua principal razão40, pela qual nega a distinção entre a potência absoluta e a Por exemplo, o sermão de João XXII: “Tulerunt iusti spolia impiorum” (Sb 10, 19), pregado em 1330. Cf. Ockham, Contra Ioannem 22-23; Contra Benedictum III, 3. 39 Provavelmente Ockham faz referência a si mesmo. 40 Cf. Tulerunt..., op. cit. 38 46 quia in Deo idem est essentia et potentia. Sed in Deo non sunt duae essentiae ; ergo nec duae potentiae. ordenada, é que se Deus fizesse algo pela potência absoluta que não fizesse pela potência ordenada, Deus poderia fazer algo que não se ordenou haver de fazer, e, assim, Deus seria mutável. Outra razão sua41 é que em Deus a essência e a potência são o mesmo. Ora, não há duas essências em Deus. Portanto, nem duas potências. Hiis visis, dicunt isti quod iste hic dogmatizat implicite haeresim detestandam, scilicet quod omnia eveniunt de necessitate; ideo hic contra istum sic proceditur : Primo probant quod non omnia eveniunt de necessitate; secundo ostendunt quod nulla quantum ad divinam potentiam eveniunt de necessitate; tertio moliuntur ostendere specialiter quod, si Christus habuit regnum et dominium supradicta, ipse potuit renuntiare absolute eisdem ; quarto, declarant quomodo debet intelligi quod in Deo est duplex potentia, scilicet absoluta et ordinata, et quomodo Deus potest aliqua facere de potentia absoluta, quae non facit de potentia ordinata ; quinto ad rationes, quae pro haeresi sua tanguntur, respondent. Visto isso, estes dizem que aquele proclama, implicitamente, uma heresia que há de ser abominada, a saber, que tudo acontece necessariamente; por isso, assim se procede aqui contra ele: Primeiro, provam que nem tudo acontece necessariamente; segundo, mostram que nada, no que toca à potência divina, acontece necessariamente; terceiro, empenhamse em mostrar especialmente que, se o Cristo teve o reino e o domínio acima mencionados, pôde renunciar absolutamente a eles; quarto, declaram de que modo deve ser entendido que há em Deus uma dupla potência, a saber, a absoluta e a ordenada, e de que modo Deus pode fazer, pela potência absoluta, alguns que não faz pela potência ordenada; quinto, respondem às razões que consideram a heresia dele. Primo igitur probare conantur quod non omnia eveniunt de necessitate, sed quod aliqua possent aliter evenire. Et primo sic: Deus potuit et potest multa facere, quae non fecit nec facit, et posset multa non facere, quae facit; ergo multa potuerunt et possent aliter evenire quam evenerint et eveniant; et per consequens Portanto, primeiro buscam provar que nem tudo acontece necessariamente, mas que alguns podem acontecer diversamente. E primeiro assim42: Deus pôde e pode fazer muitos, que não fez nem faz, e poderia não fazer muitos que faz. Portanto, muitos puderam e podem 41 42 Cf. ibidem e o sermão de João XXII “Deus autem rex noster” (Sl 73, 12). Cf. Ockham, Ord. I, d. 43, q. 1. 47 non omnia eveniunt de necessitate, sed plura contingenter. Antecedens probatur auctoritatibus manifestis. Nam, ut habetur Matthaei iii, Ioannes Baptista ait: Potens est Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae ; et idem recitat Lucas, c. iii. Ex quibus verbis, quae non solum mystice, sed etiam ad litteram debent intelligi, patet quod Deus potuit de lapidibus suscitare filios Abrahae: quod tamen nequaquam fecit. Secunda auctoritas habetur libro Sapientiae c. xi, ubi sic scribitur: Quod quidam errantes colebant mutos serpentes et bestias supervacuas, immisisti illis multitudinem mutorum animalium in vindictam ; ut scirent quia per quae peccat quis, per haec et torquetur. Non enim impossibilis erat omnipotens manus tua, quae creavit orbem terrarum ex materia invisa, immittere illis multitudinem ursorum, aut audaces leones, aut novi generis ira plenas et ignotas bestias, aut vaporem ignium spirantes, aut odorem fumi proferentes, aut horrendas ab oculis scintillas emittentes ; quarum non solum laesura poterat illos exterminare, sed et aspectus per timorem occidere. Nam et sine hiis uno spiritu occidi poterant. Hiis verbis patenter asseritur quod Deus multis modis poterat malos occidere et punire, quibus tamen eos minime molestavit. Poterat ergo multa facere, quae non fecit. acontecer diversamente do que teriam acontecido e acontecem, e, consequentemente, nem tudo acontece necessariamente, mas muitos contingentemente. A antecedente é provada pelas autoridades manifestas. Pois, como se tem em Mateus 3, 9, João Batista disse: Deus tem a potência de suscitar destas pedras filhos para Abraão; e o mesmo cita Lucas, cap. 3, 8. Destas palavras, que não devem ser entendidas somente de modo místico, mas também literalmente, é patente que Deus pôde suscitar das pedras filhos para Abraão: o que, no entanto, jamais fez. A segunda autoridade provém do livro da Sabedoria, cap. 11, 15-20, onde está escrito assim: Visto que alguns errantes cultuavam a serpentes mudas e a animais inúteis, enviaste a eles em vingança uma multidão de animais mudos, para que soubessem que aquilo pelo que alguém peca, também o pune. Com efeito, não era impossível à tua mão onipotente, que criou o orbe da terra e a matéria informe, enviar a eles uma multidão de ursos ou de leões indomáveis, ou animais desconhecidos de um novo gênero repletos de ira, ou que expirassem um vapor de fogo, ou que exalassem um odor de fumaça, ou que emitissem centelhas horríveis pelos olhos, que pudessem exterminá-los não só pelo ataque, mas também matá-los pelo medo. Pois, mesmo sem isso poderiam ser mortos por um sopro. Destas palavras, é patentemente asseverado que Deus poderia matar e punir de muitos modos maus pelos quais, porém, jamais os molestou. 48 Portanto, poderia fazer muitos que não fez. Item, sicut legitur Danielis iii: Sidrach, Misach et Abdenago dixerunt ad regem Nabuchodonosor: Ecce enim Deus noster, quem colimus, potest eripere nos de camino ignis ardentis, et de manibus tuis, o rex, liberare. Quod si noluerit, notum sit tibi, rex, quia deos tuos non colimus. Ex hiis verbis colligitur evidenter quod isti tres viri fideles, catholici atque sancti firmiter crediderunt quod Deus eos potuit liberare de camino ignis, et tamen nesciebant an eos voluerit liberare ; et per consequens ignorabant an eos esset liberaturus. Ergo firmiter crediderunt quod Deus eos potuit liberare, esto quod non esset eos liberaturus ; ex quo sequitur evidenter quod crediderunt Deum posse facere aliqua, quae non facit. Ainda, tal como se lê em Daniel 3, 16-18, Sidrac, Misac e Abdênago disseram ao rei Nabucodonosor: com efeito, eis que o nosso Deus, a quem cultuamos, pode nos tirar do caminho de fogo ardente e libertar de tuas mãos, ó rei. Se ele não o quiser, saiba, ó rei, que não veneramos os teus deuses. Dessas palavras recolhe-se evidentemente que estes três homens fiéis, católicos e santos, acreditaram firmemente que Deus pôde livrá-los do caminho de fogo e, no entanto, não sabiam se acaso ele queria livrá-los. Consequentemente, ignoravam se acaso haveriam de ser livrados. Portanto, acreditaram firmemente que Deus pôde livrá-los, ainda que não houvesse de livrá-los. Disto se segue evidentemente que acreditaram que Deus pudesse fazer alguns que não faz. Item, sicut legitur Lucae i, dixit angelus ad Mariam : Non erit impossibile apud Deum omne verbum, volens per hoc persuadere possibilitatem incarnationis : quae persuasio nullam haberet apparentiam, nisi Deus posset facere aliqua, quae non facit. Si enim Deus non posset facere alia quam facit et faciet, quantum ad rem non esset differentia inter propositionem de futuro et propositionem de possibili, sed dicere : 'Deus potest incarnari' tantum valeret acsi diceret: 'Deus incarnabitur'. Et ita, sicut per illam : 'Non est impossibile apud Deum omne verbum', non potest probari quod Deus incarnabitur, ita per ipsam non posset probari quod Deus potest incarnari; quare Ainda, assim como se lê em Lucas 1, 37, o anjo disse à Maria: Nenhuma palavra será impossível para Deus, querendo com isso persuadir a possibilidade da encarnação: persuasão que não teria valor algum a não ser que Deus pudesse fazer alguns que não faz. Com efeito, se Deus não puder fazer diversamente do que faz e fez, quanto à coisa não haveria diferença entre a proposição sobre o futuro e a proposição sobre o possível, mas dizer: “Deus pode se encarnar” seria o mesmo que dizer: “Deus irá se encarnar”. E, assim, tal como por “Nenhuma palavra é impossível para Deus” não seria possível se provar que Deus irá se 49 ad persuadendum possibilitatem incarnationis haec propositio : 'Non est impossibile apud Deum omne verbum', esset inutilis. Patet igitur quod Deus potest facere multa, quae non facit. Quod etiam ratione probatur. Nam qui est omnipotens potest multa facere, quae non facit; non enim dicitur aliquis omnipotens, quia facit omnia, quae facit, sed quia, sive faciat sive non faciat omnia, potest. Deus autem est omnipotens, sicut per scripturam sacram et symbolum Apostolorum et etiam per symbolum, quod cantatur in missa, patet aperte; ergo Deus potest facere multa, quae non facit. encarnar, também não seria possível provar por ela que Deus pode se encarnar, visto que, para persuadir a possibilidade da encarnação, a proposição “Nenhuma palavra é impossível para Deus” seria inútil. Portanto, é patente que Deus pode fazer muitos que não faz. O que se prova também pela razão. Pois aquele que é onipotente pode fazer muitos que não faz; com efeito, alguém não é dito onipotente porque faz tudo o que faz, mas porque, faça ou não faça tudo, pode. Ora, Deus é onipotente, assim como é claramente patente pela sagrada escritura e pelo símbolo dos Apóstolos e pelo símbolo que é cantado na missa43. Portanto, Deus pode fazer muitos que não faz. Item, quod Deus possit facere multa, quae non facit, probat Magister Sententiarum, libro i, di. xliii, auctoritate Salvatoris, Matthaei xxvi, An putas, quia non possum, etc., sic dicens: Quod ut certius firmiusque teneatur, scripturae testimoniis asseramus, Deum aliter facere posse, quam faciat. Veritas ipsa ait: 'An putas, quia non possum rogare Patrem meum, et exhibebit michi plus quam duodecim legiones angelorum ?' Ex quibus verbis patenter innuitur, quod et Filius poterat rogare quod non rogabat, et Pater poterat exhibere quod non exhibebat. Uterque igitur poterat facere quod non faciebat. Ainda, que Deus possa fazer muitos que não faz, prova o Mestre das Sentenças, livro 1, d. 43, pela autoridade do Salvador, em Mateus 26, 53: Pensas acaso que não posso, etc., ao dizer assim: Asseveramos pelos testemunhos da escritura o que deve ser assumido como o mais certo e mais firme: que Deus pode fazer diversamente do que faz. A própria verdade diz: “Pensas acaso que não posso pedir ao meu Pai, e ele me dará mais de doze legiões de anjos?” Destas palavras claramente se indica que tanto o Filho podia pedir o que não pedia como o Pai podia dar o que não dava. Portanto, cada um deles poderia fazer o que não fazia. Item, Augustinus in Enchiridion, et Magister Sententiarum allegat ibidem, ait: Ainda, Agostinho – e o Mestre das Sentenças alega o mesmo – disse no 43 Cf. Gn 17, 1; Credo Apostólico e o Credo Niceno-Constantinopolitano. 50 Omnipotens voluntas multa potest facere, quae non vult facere nec facit. Item, Augustinus in eodem, ut Magister allegat ubi supra, ait: Cur apud quosdam non factae sunt virtutes, quae si factae fuissent, egissent illi homines poenitentiam ; et factae sunt apud eos qui non erant credituri? Enchiridion44: A vontade onipotente pode fazer muitos que não quer fazer nem faz. Ainda, Agostinho no mesmo lugar, como o Mestre alega no lugar acima, disse: Por que há virtudes não feitas para alguns – as quais, se tivessem sido feitas, esses homens teriam se penitenciado –, mas feitas junto àqueles que não creram? Tunc non latebit quod nunc latet. Nec utique Deus iniuste noluit salvos fieri, cum possent salvi esse, si vellet. Tunc in clarissima sapientiae luce videbitur quod nunc piorum fides habet, antequam manifesta cognitione videatur, quam certa et incommutabilis et efficacissima sit voluntas Dei, quae multa possit et non velit, nichil autem quod non possit, velit. Em tal momento, não se esconderá o que agora está escondido. Nem, principalmente, Deus não quis salvalos injustamente, dado que pudessem ser salvos, se o quisesse. Em tal momento, na claríssima luz da sabedoria, se verá o que agora tem a fé dos pios antes que seja visto pela cognição manifesta: o quão seja certa e incomutável e muito eficaz a vontade de Deus, que muitos pode e não quer; ora, não quer nada que não pode. Item, idem, ut recitatur ibidem, ait: Dominus Lazarum suscitavit in corpore. Nunquid dicendum est, non potuit Iudam suscitare in mente ? Potuit quidem, sed noluit. Item, Augustinus super Genesim, et Magister recitat di. xliv, dicit sic: Talem potuit Deus hominem fecisse, qui nec peccare posset, nec vellet; et tamen talem non fecit; ergo Deus potuit facere quod non fecit. Unde et de illis, qui dicunt Deum non posse facere aliud quam facit, dicit Magister Sententiarum, libro i, di. xliii in haec verba : Quidam tamen 'de suo sensu gloriantes, Dei potentiam coartare sub mensura conati sunt. Cum enim Ainda, o mesmo45, como é citado no mesmo lugar46, disse: O Senhor suscitou Lázaro no corpo. Acaso deve ser dito que não pôde suscitar Judas na mente? Certamente pôde, mas não quis. Ainda, Agostinho Sobre o Gênesis47, e o Mestre o cita na distinção 44, disse assim: Deus pôde ter feito um homem tal que não pudesse nem quisesse pecar, e, no entanto, não o fez. Portanto, Deus pôde fazer o que não fez. Donde também quanto àqueles que dizem que Deus não pode fazer diversamente do que faz, disse o Mestre das Sentenças, no livro 1, distinção 43, nestas palavras: 44 Cf. Agostinho, Enchir. 95, PL 40, 276; Pedro Lombardo, Sentent. I, d. 43, q. unica. Agostinho, De natura et gratia 7, PL, 250-1. 46 Pedro Lombado, loc. cit. 47 Agostinho, In Gen. ad litt. 11, 7, PL 34, 433. 45 51 dicunt: Hucusque potest Deus et non amplius, quid est hoc aliud, quam eius potentiam, quae infinita est, concludere et restringere ad mensuram ? Aiunt enim : Non potest Deus aliud facere quam facit, nec melius facere illud, quod facit, nec aliquid praetermittere de hiis, quae facit'. Ex hiis verbis constat aperte quod secundum Magistrum Sententiarum, qui dicunt Deum non posse facere aliud quam facit, divinam potentiam infinitam ad mensuram conantur restringere ; et per consequens in articulum fidei de omnipotentia Dei impudenter impingunt. No entanto, alguns48 “gloriando-se de seus sentidos, buscaram resumir a potência de Deus sob a medida. Com efeito, o que dizem: e até aqui Deus pode, e não mais; o que é isso, se não enclausurar e restringir a sua potência, que é infinita, à medida? Dizem, com efeito: Deus não pode fazer senão o que faz, nem pode fazer melhor aquilo que faz, nem omitir algo do que faz”49. Dessas palavras consta claramente que segundo o Mestre das Sentenças, aqueles que dizem que Deus não pode fazer algo diverso do que faz, visam restringir a potência divina infinita a uma medida; e, consequentemente, atacam irrefletidamente o artigo de fé sobre a onipotência de Deus. Unde pro illis, qui sequuntur doctrinam Thomae, quod ipse hoc tenuerit, scilicet Deum posse aliqua facere, quae non facit, est monstrandum. Libro enim secundo contra Gentiles, c. xxiii probat ex intentione quod Deus non agit de necessitate naturae in creaturis, sed per arbitrium voluntatis. Item, c. xxvi probat quod divinus intellectus ad certos effectus non coartatur; unde in fine capituli dicit: Sciendum tamen quod, quamvis divinus intellectus ad certos effectus non coartetur, ipse tamen sibi statuit determinatos effectus, quos per suam sapientiam ordinate producat. Item, c. xxvii probat quod nec voluntas Dei coartatur ad determinatos effectus; unde in fine concludit, dicens : Non igitur ex necessitate divinae voluntatis aliqui effectus procedunt, sed ex eius libera Donde cumpre mostrar para aqueles que seguem a doutrina de Tomás que ele sustentou isso, a saber, que Deus pode fazer alguns que não faz. Com efeito, no segundo livro do Contra Gentiles, cap. 23, prova a partir da intenção que Deus não age pela necessidade da natureza nas criaturas, mas pelo arbítrio da vontade. Ainda, no cap. 26, prova que o intelecto divino não é resumido a certos efeitos; donde, no fim do capítulo, diz: No entanto, cumpre saber que, embora o intelecto divino não seja resumido a certos efeitos, ele, porém, estabelece para si determinados efeitos, os quais produz ordenadamente por sua sabedoria. Ainda, no cap. 27, prova que nem a vontade de Deus é reduzida a determinados efeitos; donde, no fim, 48 49 Pedro Abelardo, Introd. ad Theol. III, 4-6, PL 178, 1091 ss. Cf. Hugo de São Vitor, De sacramentis, I, 2, 22, PL 176, 214. 52 dispositione. Item, c. xxviii dicit: Per haec autem excluditur quorundam error probare nitentium quod Deus non potest facere nisi quod facit, quia non potest facere nisi quod debet. Et post dicit sic : Non est autem necessarium, si Deus suam bonitatem vult esse, quod Deus velit alia a se produci ; et post: Ostensum est quod Deus produxit res in esse non ex necessitate naturae, neque ex necessitate scientiae, neque voluntatis, neque iustitiae. Nullo igitur modo necessitatis divinae bonitati est debitum quod res in esse producuntur. Item, libro tertio, c. xcv ait: Nichil igitur Deus facere potest, quin sub ordine suae providentiae cadat: sicut non potest aliquid facere quod eius operationi non subdatur. Potest tamen alia facere quam ea, quae subduntur eius providentiae vel operationi, si absolute consideretur eius potestas, sed nec potest facere aliqua, quae sub ordine providentiae ipsius ab aeterno non fuerint, eo quod mutabilis esse non potest. Hanc autem distinctionem quidam non considerantes, in diversos errores inciderunt. Quidam vero immobilitatem divini ordinis ad res ipsas, quae ordini subduntur, extendere conati sunt, dicentes quod omnia necesse est esse [sicut sunt], in tantum quod quidam dixerunt quod Deus non potest alia facere quam quae facit. Contra quod est quod habetur Matthaei xxvi: ' An non possum rogare Patrem meum, et exhibebit michi plus quam duodecim legiones angelorum ?' Ex hiis aliisque quampluribus, quae prima parte Summae et super primum librum Sententiarum et aliis locis diversis iste 50 Contra Gentiles III, cap. 98. conclui dizendo: Portanto, alguns efeitos não procedem necessariamente da vontade divina, mas de sua livre disposição. Ainda, no capítulo 28, diz: Ora, por isso está excluído qualquer um que se esforce por provar o erro de que Deus não pode fazer senão o que faz, porque não pode fazer senão o que deve. E, depois, diz assim: Ora, não é necessário, se Deus quer que sua bondade seja, que Deus queira que outros diversos de si sejam produzidos. E, depois: Mostrou-se que Deus produziu as coisas no ser não a partir da necessidade da natureza, nem da necessidade da ciência, nem da vontade, nem da justiça. Portanto, a nenhum modo de necessidade da bondade divina é devida a produção das coisas no ser. Ainda, no livro terceiro, capítulo 9550, disse: Portanto, Deus não pode fazer nada sem que caia sob a ordem de sua providência: assim como não pode fazer algo que não se submeta à sua operação. No entanto, pode fazer outros além destes, que se submetem à sua providência ou operação, se seu poder for considerado absolutamente, mas não pode fazer alguns, que não tenham sido sob a ordem de sua providência desde a eternidade, visto que não pode ser mutável. Ora, alguns, ao não considerar esta distinção, caem em vários erros. De fato, alguns se esforçam por estender a imobilidade da ordem divina às próprias coisas que estão submetidas à ordem, ao dizer que tudo necessariamente tem o ser [assim 53 doctor determinat, patet expresse quod ipse erroneum reputat dicere quod Deus non potest alia facere quam facit vel quod omnia eveniunt de necessitate. como o tem], a ponto que alguns disseram que Deus não pode fazer outros além dos que faz. Contra isso há o que se tem em Mateus 26, 53: “Acaso não posso pedir ao meu Pai, e ele me dará mais de doze legiões de anjos?” Destas e de várias outras, que este doutor determina na primeira parte da Suma e sobre o Primeiro Livro das Sentenças51 e em outros lugares diversos, é expressamente patente que ele considera errôneo dizer que Deus não pode fazer outros além dos que ele faz ou que tudo acontece necessariamente. Secundo eandem conclusionem, quod non omnia eveniunt de necessitate, probant praedicti impugnatores sic : Creaturae rationales multa non faciunt, quae possent facere, ergo non omnia de necessitate eveniunt. Consequentia est evidens; antecedens auctoritate et ratione probatur. Auctoritate primo sic : ii Machabaeorum c. vi, Eleazarus, qui pro divinis legibus mortem sustinuit, cum plagis perimeretur, dixit: Domine, qui habes sanctam scientiam, manifeste tu scis, quia, cum a morte possem liberari, duros corporis sustineo dolores ; secundum animam vero propter timorem tuum libenter haec patior. Ex quibus verbis evidenter colligitur quod iste vir sanctus potuisset infidelibus consentire, et sic a morte liberari; et tamen non consensit; potuit ergo aliquid facere, quod non fecit. Item, Ecclesiastici c. xxxi de beato divite sic scribitur: Qui potuit transgredi, et non est transgressus ; et facere mala, et non fecit. Hiis verbis Segundo, a mesma conclusão, de que tudo não acontece necessariamente, os mencionados contendedores provam assim: as criaturas racionais não fazem muito do que podem fazer, portanto, nem tudo acontece necessariamente. A consequência é evidente, a antecedente é provada pela autoridade e pela razão. Pela autoridade, primeiro, assim: em 2º Macabeus, cap. 6, 30, aquele que sustentou a morte em favor das leis divinas, visto que seria morto a golpes, disse: ó Senhor, que tens a santa ciência, sabes manifestamente que eu, ainda que pudesse libertar-me da morte, sustento as crueldades, as dores do corpo, pois segundo a alma por teu temor de bom grado as sofro. Destas palavras evidentemente se recolhe que este homem santo poderia ceder aos infiéis, e assim livrar-se da morte. No entanto, não cedeu. Portanto, pôde fazer algo que não fez. Ainda, Eclesiástico, cap. 31, 10, sobre a riqueza bem- 51 Suma de Teologia I, q. 19, a. 3; In Sent., d. 43, q. 2, a. 1. 54 clarius dici non posset quod potest quis facere aliquid, quod non facit. Item, sicut habetur Matthaei xxvi et Marci xiv, discipuli Christi dixerunt: Ut quid perditio ista unguenti facta est ? Poterat enim unguentum istud venundari plus quam trecentis denariis, et dari pauperibus ; et tamen non fuit venundatum nec datum pauperibus ; ergo aliquid potuit fieri, quod tamen non fiebat. Nec enim Christus de hoc, quod asseruerunt illud unguentum potuisse venundari et dari pauperibus, ipsos aliqualiter reprehendit, sed de indignatione ipsorum de effusione unguenti super caput ipsius. Item, Matthaei xx, cum Christus interrogaret Iacobum et Ioannem: Potestis bibere calicem, quem bibiturus sum ? responderunt: Possumus ; non dixerunt ' Bibemus '. Ex quo patet quod sciverunt se posse bibere calicem Christi; nescierunt tamen an essent bibituri. Item, Genesis xxxi dixit Laban ad Iacob : Et nunc valet quidem manus mea reddere tibi malum ; sed Deus patris tui heri dixit michi: Cave ne loquaris cum Iacob quicquam durius. Ex quibus verbis colligitur quod Laban potuit reddere malum Iacob ; et tamen non fecit; ergo potuit aliquid facere, quod minime fecit. aventurada, assim se escreve: Aquele que pôde transgredir, e não transgrediu; fazer o mal, e não fez. Não é possível dizer mais claramente com estas palavras que alguém pode fazer algo que não faz. Ainda, assim como se encontra em Mateus 26, 8-9 e Marcos 14, 4-5, os discípulos de Cristo disseram: Para que ter desperdiçado este unguento? Com efeito, podia tê-lo vendido por mais de trezentos denários, e dá-los ao pobres, e, no entanto, não foi vendido nem dado aos pobres; portanto, pôde ser feito algo que, porém, não foi feito. Com efeito, não é do que asseveraram sobre a possibilidade de se ter vendido o unguento e dá-lo aos pobres que Cristo igualmente os repreende, mas pela indignação deles pelo derramamento de unguento sobre sua cabeça. Ainda, Mateus 20, 22, quando Cristo interrogou a Tiago e João: Podeis beber o cálice que haverei de beber? eles responderam: Podemos; não disseram: “Bebemos”. Do que é patente que souberam que poderiam beber o cálice de Cristo, não souberam, no entanto, se acaso o beberiam. Ainda, em Gênesis 31, 28-29, Labão disse a Jacó: E agora certamente minha mão tem como trazer-te o mal, mas Deus, o teu pai, disse-me ontem: Cuida de não falar a Jacó nada de mais duro. De cujas palavras se colhe que Labão pôde fazer o mal a Jacó e, no entanto, não fez; portanto, pode fazer algo que jamais fez. Hoc etiam ratione probatur: Nam qui potest mereri et demereri, potest facere aliquid, quod non facit; nam si non posset Isso também é provado pela razão: pois aquele que pode merecer e desmerecer, pode fazer algo que não 55 aliter facere, non esset in potestate eius aliter facere ; sed per illud, quod non est in potestate alicuius, ipse non meretur nec demeretur. Sed homo potest mereri et demereri; ergo potest aliter facere et aliud quam facit. Haec ratio confirmatur : Quia omne meritum est laudabile et omne demeritum est vituperabile. Sed illud, quod non est in nostra potestate, ut possimus illud facere et non facere, non est laudabile neque vituperabile; ergo omne meritum et demeritum est in nostra potestate, ut possimus illud facere et non facere. Maior est evidens ; minor probatur auctoritate Augustini tertio de Libero Arbitrio, qui ait: Motus quo huc atque illuc voluntas convertitur, nisi esset voluntarius atque in nostra potestate, neque laudandus cum ad superiora neque culpandus homo esset cum ad inferiora detorquet quasi quemdam cardinem voluntatis ; ex quibus verbis colligitur evidenter quod illud, quod non est in potestate nostra, et tamen facimus, non est laudabile nec vituperabile. Hiis concordat Sapiens mundi, iii Ethicorum, ubi probat quod propter illa, quae non sunt in potestate nostra, neque laudamur neque vituperamur. Patet ergo quod omne meritum et demeritum est in potestate nostra; et per consequens possumus multa non facere, quae facimus, et similiter multa facere, quae non facimus. Quare concluditur evidenter quod non omnia de necessitate eveniunt; aliter enim, ut probat Philosophus, non oporteret negotiari neque consiliari; quia de illis, quae de necessitate eveniunt, non oportet negotiari neque consiliari. 52 53 faz; pois se não pudesse fazer diversamente, não estaria em seu poder o fazer diversamente; ora, por meio daquilo que não está em poder de alguém, ele nem mereceria nem desmereceria. Ora, o homem pode merecer e desmerecer. Portanto, pode fazer diversamente e além do que faz. Esta razão é confirmada: porque todo mérito é louvável e todo demérito é vituperável. Ora, aquilo que não está em nosso poder, para que possamos fazê-lo e não fazê-lo, não é louvável nem vituperável; portanto, todo mérito e demérito está em nosso poder, para que possamos fazê-lo e não fazê-lo. A maior é evidente; a menor é provada pela autoridade de Agostinho, no terceiro livro do Sobre o Livre Arbítrio52, que diz: A menos que o movimento que converte a vontade para cá e para lá fosse voluntário e estivesse em nosso poder, o homem, como que certo polo da vontade, nem seria louvado quando se voltasse ao que é superior nem culpado quando se voltasse ao que é inferior; palavras das quais se recolhe evidentemente que aquilo que não está em nosso poder e, no entanto, fazemos, não é nem louvável nem vituperável. Com isso concorda o Sábio do mundo, em Ética III53, onde prova que em razão daqueles que não estão em nosso poder, nem somos louvados nem vituperados. Portanto, é patente que todo mérito e demérito está em nosso poder. Consequentemente, podemos deixar de fazer muitos que fazemos, e, de modo semelhante, fazer muitos que não Agostinho, De libero arbítrio III, 1, PL 32, 1272. Ética a Nicômaco III, 1, 1109b30-35; Tomás de Aquino, In libr. Eth. III, lect. 1, n. 383; lect. 4, n. 431. 56 fazemos. Donde evidentemente se conclui que nem tudo acontece necessariamente, com efeito, de outro modo, como prova o Filósofo54, não seria preciso discutir nem deliberar, pois sobre aquilo que acontece necessariamente, não é preciso discutir nem deliberar. Ostenso quod non omnia de necessitate eveniunt, isti probare nituntur quod nulla de necessitate eveniunt quantum ad divinam potentiam, quin Deus posset omnia impedire. Nam potentia divina non plus artatur ad istos effectus quam ad illos; neque enim per praescientiam, neque per aeternam ordinationem, neque per immutabilitatem ipsius, neque per aliquid, quod est idem cum Deo, neque per aliquid, quod non est Deus, potest Deus plus artari ad istos effectus producendos vel conservandos quam ad illos. Cum igitur ostensum sit quod aliqua non eveniunt de necessitate, sequitur quod nulla, inquantum fiunt a Deo, eveniunt de necessitate. Tendo sido mostrado que nem tudo acontece necessariamente, estes se esforçam para provar que nada acontece necessariamente quanto à potência divina, visto que Deus possa impedir a tudo. Pois a potência divina não se resume mais a estes efeitos que àqueles; com efeito, nem pela presciência, nem pela ordenação eterna, nem pela imutabilidade dele, nem por algo que é o mesmo com Deus, nem por algo que não é Deus, Deus pode estar restringido a produzir ou conservar mais estes efeitos que aqueles. Portanto, dado que tenha sido mostrado que algo não acontece necessariamente, segue-se que nada, enquanto é feito por Deus, acontece necessariamente. Pro illis autem, qui doctrinam Thomae tenent, ostendunt aperte quod haec sit intentio Thomae. Libro enim primo contra Gentiles, c. lxxxi, ait sic : Voluntas non ex necessitate fertur ad ea, quae sunt ad finem, si finis sine hiis esse possit, et post: Cum ergo divina voluntas possit sine aliis esse, quinimmo nec per alia aliquid ei accrescat, nulla inest ei necessitas ut alia velit ex hoc quod vult suam voluntatem, et per consequens nulla inest ei necessitas ut quaecunque alia producat vel conservet. Et infra sic dicit: Ora, para aqueles que sustentam a doutrina de Tomás, mostram claramente que essa seja a intenção de Tomás. Com efeito, no primeiro livro do Contra Gentiles, cap. 81, disse assim: A vontade não é necessariamente dirigida para aqueles que estão para um fim, se o fim puder se dar sem eles, e, depois: Portanto, visto que a vontade divina possa se dar sem que outros se deem, melhor, visto que nada é acrescido a ela pelos outros, não é inerente a ela nenhuma necessidade 54 Ética a Nicômaco III, 3, 1112ª18-29; Tomás de Aquino, In libr. Eth. III, lect. 7, n. 460-465. 57 Solum igitur illud bonum voluntas, secundum sui rationem, non potest velle non esse, quo non existente tollitur totaliter ratio boni. Tale autem nullum est praeter Deum. Potest igitur voluntas, secundum sui rationem, velle non esse quamcunque rem praeter Deum. Ex hiis sequitur quod Deus potest destruere omnem rem aliam a se; et per consequens respectu Dei nichil evenit de necessitate. Item, prima parte Summae, q. xix, articulo tertio, dicit sic : Cum voluntas Dei sic possit esse perfecta sine aliis, cum nichil ei perfectionis ex aliis accrescat, sequitur quod alia a se eum velle non sit necessarium absolute ; ergo contingenter vult quaecunque alia a se. Et ita omnia alia a Deo eveniunt contingenter; et per consequens nulla de necessitate eveniunt, secundum istum doctorem. para que queira algo outro a partir do que quer a sua vontade, e, consequentemente, nenhuma necessidade é inerente a ela para que produza ou conserve qualquer outro. E, abaixo, diz assim: Portanto, a vontade, segundo sua noção própria, apenas não pode querer que não seja aquele bem que, se não existir, elimina completamente a noção de bem. Ora, tal nada é se não Deus. Portanto, a vontade pode, segundo sua noção própria, querer que qualquer coisa deixe de ser, exceto Deus. Destas se segue que Deus pode destruir qualquer coisa diversa de si. Consequentemente, nada acontece necessariamente a respeito de Deus. Ainda, na primeira parte da Suma, questão 19, artigo terceiro, diz assim: Visto que a vontade de Deus possa ser tão perfeita sem os outros, visto que nenhuma perfeição seja acrescentada a ela a partir dos outros, se segue que querer outros além de si não seja absolutamente necessário. Portanto, quer contingentemente o que for diverso de si. E assim tudo que é diverso de Deus se dá contingentemente. Consequentemente, nada acontece necessariamente, segundo este doutor. Tertio, isti impugnatores probare conantur quod si Christus habuerit regnum temporale et dominium saepedicta, ipse potuit absolute renuntiare eisdem. Hoc autem unica ratione ad praesens nituntur ostendere, quae talis est: Non magis artabatur Christus ad habendum regnum temporale et dominium universale rerum temporalium, Terceiro, estes contendedores buscam provar que se o Cristo tivesse o reino temporal e o domínio tantas vezes mencionados, ele poderia absolutamente renunciar a eles. Ora, se esforçam por mostrar isso no presente por uma única razão, que é a seguinte: Cristo não estava mais constrangido a ter o reino temporal e o domínio 58 quam ad redimendum genus humanum per suam passionem. Sed Christus non artabatur nec necessitabatur ad salvandum genus humanum per passionem suam ; ergo non artabatur neque necessitabatur habere regnum et dominium antedicta. Ex quo sequitur quod, si habuit regnum et dominium antedicta, ipse potuit absolute, ita quod contradictionem minime includebat, renuntiare eisdem. Maior est evidens ; minor probatur auctoritate Augustini, qui xiii libro de Trinitate, c. x, ut recitat Magister Sententiarum libro i, di. xliv, dicit: Quod fuit et alius modus nostrae liberationis possibilis Deo, qui omnia potest; sed nullus alius nostrae miseriae sanandae fuit convenientior. Hoc idem manifeste asserit idem Magister libro iii, di. xx. Nequaquam igitur necessitabatur Christus dicta regnum et dominium, si ipsa habuit, retinere. universal das coisas temporais do que para a redenção do gênero humano por meio de sua paixão. Ora, o Cristo não estava constrangido nem necessitado à salvação do gênero humano por meio de sua paixão. Portanto, não estava constrangido nem necessitado a ter o reino e o domínio antes mencionados. Do que se segue que, se teve o reino e o domínio antes mencionados, ele pôde, absolutamente, de modo que não implicaria nenhuma contradição, renunciar a eles. A maior é evidente; a menor é provada pela autoridade de Agostinho, que, no livro XIII do Sobre a Trindade, capítulo 10, o qual é citado pelo Mestre das Sentenças no livro I, distinção 4455, diz: Visto que para Deus, que tudo pode, foi possível outro modo para nossa libertação, mas nenhum outro foi mais conveniente para a cura de nossa miséria. Isso mesmo asseverou manifestamente o próprio Mestre no livro III, distinção 2056. Portanto, Cristo em nada foi necessitado a reter os mencionados reino e domínio, se é que os teve. Quarto declarant quomodo debet intelligi distinctio theologorum dicentium in Deo esse duplicem potentiam, scilicet absolutam et ordinatam ; et quomodo Deus potest aliqua facere de potentia absoluta, quae non potest de potentia ordinata : dicentes quod non est intelligenda dicta distinctio, sicut quidam ignari putant, quasi realiter in Deo sit duplex potentia, quarum una sit absoluta et alia ordinata; quia unica potentia est in Quarto, declaram de que modo deve ser entendida a distinção dos teólogos, dizendo que há em Deus uma dúplice potência – a saber, a absoluta e a ordenada – e de que modo Deus pode fazer alguns pela potência absoluta que não pode pela potência ordenada, ao dizer que tal distinção não deve ser entendida tal como a consideram certos ignorantes, como se houvesse em Deus uma dupla potência, das quais uma seria 55 56 Pedro Lombardo, Sent. I, d. 44, c. 1; cf. Agostinho, De Trinitate XIII, 10, PL 42, 1024. Cap. 1-4. 59 Deo, immo ipsa unica potentia est unica essentia. Sed, sicut secundum Magistrum Sententiarum libro i, di. xlv : Sacra scriptura, de voluntate Dei variis modis loqui consuevit; et non est Dei voluntas diversa, sed locutio est diversa, ita scriptura divina et sanctorum patrum de potentia Dei variis modis loqui consuevit; et tamen non est diversa potentia Dei, sed locutio est diversa ; quia scilicet, cum per talia vocabula, ' potest', ' possibile ', ' potentia ' et consimilia in significatione convenientia, scripturae loquuntur de Deo, huiusmodi vocabula in diversis locis accipiuntur aequivoce. Unde in quibusdam locis denotant vel important omnia illa, quae non repugnant Deo facere. Sic accipitur hoc verbum 'potest' in auctoritatibus superius allegatis, et in multis aliis locis. Sic etiam accipitur hoc nomen 'omnipotens' Genesis xvii, cum dixit Dominus ad Abraham : Ego Deus omnipotens, et in symbolo Apostolorum et etiam in symbolo, quod cantatur in missa, cum dicitur : Credo in unum Deum Patrem omnipotentem. Aliter huiusmodi vocabula important vel connotant solummodo illa, quae ordinavit se facturum, et non omnia illa, quae potuit et posset ordinare se facturum. Sic accipitur Genesis xviii, ubi dixit Dominus : Num celare potero Abraham quae gesturus sum ? quasi diceret, 'Non'; et tamen constat quod Deus non necessitabatur revelare Abraham quae erat facturus ; sed ideo dixit Num celare potero, etc., quia ordinavit se revelaturum Abraham quae facturus erat. Sic accipitur Genesis xix, cum Dominus dixit ad Loth : Festina et 57 58 Cap. 5. Isto é, o Credo Niceno-Costantinopolitano. absoluta e a outra ordenada; porque há uma única potência em Deus, ou melhor, a mesma potência única é a essência única. Ora, assim como, segundo o Mestre das Sentenças no livro I, distinção 4557, A sagrada escritura costumou falar de vários modos sobre a vontade de Deus; e a vontade de Deus não é diversa, mas a locução é diversa, assim costumou falar a escritura divina e dos santos pais sobre a potência de Deus, e, no entanto, a potência de Deus não é diversa, mas a locução é diversa; a saber, porque, quando as escrituras falam de Deus pelos vocábulos “pode”, “possível”, “potência” e semelhantes na conveniência da significação, tais vocábulos são tomados equivocamente em diversos lugares. Donde, em alguns lugares denotam ou fazem referência a tudo aquilo que não repugna a Deus fazer. Assim esta palavra “pode” é tomada nas autoridades alegadas acima, e em muitos outros lugares. Assim também o nome “onipotente” é tomado em Gênesis 17, 1, Eu o Deus onipotente, tanto no símbolo dos Apóstolos, como também no símbolo que é cantado na missa58, quando é dito: Creio em um só Deus, Pai onipotente. Diversamente, estas palavras fazem referência ou conotam unicamente aquilo que se ordenou haver de fazer, e não tudo aquilo que pôde e pode se ordenar haver de fazer. Assim se toma Gênesis 18, 17, em que o Senhor diz: Acaso poderei esconder de Abraão o que hei de fazer? como se dissesse: “Não”. No entanto, 60 salvare ibi, quia non potero facere quicquam donec ingrediaris illuc, hoc est, 'Non faciam quicquam donec ingrediaris illuc'. Sic etiam accipitur Marci vi, cum dicitur de Salvatore nostro : Non poterat ibi virtutem facere ullam, nisi paucos infirmos impositis manibus curavit: et mirabatur propter incredulitatem ipsorum ; et tamen constat quod Christo inquantum erat Deus non erat impossibile absolute facere ibi virtutem ; sed dicitur quod non poterat ibi facere virtutem ullam, quia propter incredulitatem illorum noluit ibi facere virtutem. Sic ergo hoc verbum 'potest' accipitur aequivoce in scripturis de Deo loquentibus: quemadmodum idem verbum, cum loquimur de hominibus, accipitur aequivoce. Uno enim modo dicimur illa posse, quae de iure possumus, et illud dicitur posse fieri, quod licite et debite fieri potest. Sic accipitur Genesis xxxix, cum dixit loseph ad Aegyptiam : Quomodo ergo possum hoc malum facere ? quasi diceret: 'Licite et de iure non possum'. Aliter dicimur posse illa, quae absolute possumus sive bene sive male ; aliter enim nequaquam peccare possemus. Sic ergo hoc verbum 'posse ' accipitur aequivoce in scripturis, cum loquitur de Deo; unica tamen potentia realiter est in Deo, sed locutio est diversa. Et propter istam diversam locutionem dicitur quod Deus potest aliqua de potentia absoluta, quae non potest de potentia ordinata, hoc est, Deus potest aliqua, accipiendo verbum 'posse' secundum primam significationem eius, quae tamen non potest de potentia ordinata: hoc est, haec est concedenda : 'Deus non potest illa', accipiendo hoc verbum: 'posse' in secunda consta que Deus não tinha necessidade de revelar a Abraão o que havia de fazer; mas disse: Acaso poderei esconder, etc., por isso: porque ordenou-se haver de revelar a Abraão o que havia de fazer. Assim se toma Gênesis 19, 22, quando o Senhor disse a Ló: Apressa-te e refugia-te ali, porque não poderei fazer o que for até que entres ali, isto é, “Não farei o que for até que entres ali”. Assim também é tomado Marcos 6, 5-6, quando é dito sobre o nosso Salvador: Não pudera fazer nenhuma virtude ali, curou apenas poucos enfermos pela imposição das mãos: e admirou-se da incredulidade deles. No entanto, consta que, enquanto era Deus, não era impossível ao Cristo fazer absolutamente a virtude ali, mas disse que não pudera fazer ali nenhuma virtude, porque em razão da incredulidade deles não quis fazer a virtude ali. Desse modo, portanto, a palavra “pode” é tomada equivocamente nas escrituras ao falar sobre Deus, do mesmo modo que, a mesma palavra, quando falamos sobre os homens, é tomada equivocamente. Com efeito, de um modo se diz que possamos aqueles que podemos por direito, e é dito poder ser feito aquilo que licitamente e devidamente pode ser feito. Assim é tomado Gênesis, 39, 9, quando José diz à egípcia: Como, então, posso fazer este mal? como se dissesse: “Não posso licitamente e por direito”. Diversamente, se diz que possamos aqueles que podemos absolutamente, seja para o bem, seja para o mal, com efeito, diversamente, jamais poderíamos pecar. Portanto, assim a 61 significatione eius. Et ita dicere quod Deus potest aliqua de potentia absoluta, quae non potest de potentia ordinata, non est aliud, secundum intellectum recte intelligentium, quam dicere quod Deus aliqua potest, quae tamen minime ordinavit se facturum ; quae tamen si faceret, de potentia ordinata faceret ipsa ; quia si faceret ea, ordinaret se facturum ipsa. Quia igitur, ut dicunt isti, iste impugnatus nescivit videre aequivocationem huius verbi 'potest', ideo male intellexit illam distinctionem theologorum de potentia Dei absoluta et ordinata. Et tamen dicunt quod licet ipsam ad intellectum recte intelligentium intellexisset, ipsam nichilominus reprobasset respectu Dei; quia imaginatur quod sic Deus omnia necessario ordinavit quod de necessitate absoluta oportet eum facere illa, ita quod ipsum non facere ipsa contradictionem includit: quod in suis sermonibus multis rationibus probare conatur. palavra “poder” é tomada equivocamente nas escrituras quando se fala de Deus. No entanto, há uma única potência realmente em Deus, mas a locução é diversa. E em razão desta locução diversa se diz que Deus pode alguns pela potência absoluta que não pode pela potência ordenada, isto é, Deus pode alguns, tomando a palavra “poder” segundo seu primeiro significado, que, porém, não pode pela potência ordenada, isto é, esta deve ser concedida: “Deus não pode aqueles”, tomando a palavra “poder” em seu segundo significado. E, assim, dizer que Deus pode alguns pela potência absoluta que não pode pela potência ordenada não é senão, segundo o entendimento dos que entendem retamente, dizer que Deus pode alguns que, porém, jamais ordenou-se haver de fazer; os quais, no entanto, se fizesse, os faria pela potência ordenada, uma vez que, se os fizesse, teria se ordenado a haver de fazê-los. Portanto, uma vez que, como estes dizem, aquele contendedor não soube ver a equivocação desta palavra “pode”, então, entendeu mal aquela distinção dos teólogos sobre a potência absoluta e ordenada de Deus. E, no entanto, dizem que embora ele a tivesse entendido desde o entendimento dos que a entenderam retamente, não a reprovaria menos com relação a Deus; uma vez que havia imaginado que Deus ordenou tudo tão necessariamente que era preciso que o fizesse por uma necessidade absoluta, de modo que não fazê-lo, implica em contradição: o que 62 se esforça por provar em seus sermões por muitas razões. Quinto isti respondent ad rationem fundamentalem istius, quam hic ad materiam applicat specialem, dicentes quod istud argumentum est omnino simile argumento, quod recitat Magister Sententiaram libro i, di. xxxviii, per quod aliqui nitebantur probare quod si aliquid posset aliter fieri quam fit, praescientia Dei posset falli. Est etiam simile argumento, quod recitat di. xl, per quod aliqui conati sunt probare quod numerus electorum non potest augeri nec minui; et ideo similem habet solutionem. Quomodo igitur argumentum istius solvi debeat, in libro praedicto Sententiarum et in scripturis doctorum super Sententias studiosus poterit invenire, et super litteram aliqualiter apparebit. Quinto, estes respondem à razão fundamental59 daquele – a qual aplica aqui a uma matéria determinada – dizendo que este argumento é completamente semelhante ao argumento que o Mestre das Sentenças cita no livro 1, distinção 3860, por meio do qual alguns61 se esforçavam por provar que se algo puder ser feito diversamente do que é feito, a presciência de Deus pode se enganar. É também semelhante ao argumento que ele cita na distinção 4062, por meio do qual alguns63 visam provar que o número dos eleitos não pode ser aumentado nem diminuído; e, por isso, tem uma solução semelhante. Portanto, como esse argumento deve ser resolvido, o estudioso pode encontrar no livro mencionado das Sentenças tanto nos escritos dos doutores sobre as Sentenças como de outro modo aparecerá literalmente. Rationes vero, per quas probare conatur quod praemissa distinctio de potentia Dei absoluta et ordinata non est approbanda, facile dissolvuntur. Prima enim ex falso intellectu procedit, quasi haec esset possibilis secundum sic distinguentes : 'Deus aliquid facit de Já as razões pelas quais visa provar que a anunciada distinção entre a potência absoluta e a ordenada de Deus não deve ser provada são facilmente desmontadas. Com efeito, a primeira64 procede de um falso entendimento, como se, segundo os que propõem a Supra, no § “O segundo em que dizem ele errar [...]”: “[...] A razão fundamental disso é que Deus, desde a eternidade, ordenou de que modo tudo deveria ser feito. Ora, há contradição em que a ordenação divina seja impedida. Portanto, há contradição em que seja o que for aconteça diversamente de como acontece.”. 60 Cap. 2. 61 Pedro Abelardo, Theol. Christ. III, 7, PL 178, 1109 ss. 62 Cap. 1. 63 Cf. [Hugo de São Vitor] (talvez Oto de Lucena), Summa Sentent. I, 12, PL 176, 63. 64 Cf. supra, no mesmo § antes mencionado: “[...]Ora, sua principal razão, pela qual nega a distinção entre a potência absoluta e a ordenada, é que se Deus fizesse algo pela potência absoluta que não fizesse pela potência ordenada, Deus poderia fazer algo que não se ordenou haver de fazer, e, assim, Deus seria mutável.”. 59 63 potentia absoluta, quod non facit de potentia ordinata'. Haec enim de inesse secundum eos est impossibilis et contradictionem includit; quia eo ipso quod Deus aliquid faceret, ipse faceret illud de potentia ordinata. Haec tamen de possibili: 'Deus potest aliquid facere de potentia absoluta, quod nunquam faciet de potentia ordinata', in sensu divisionis accepta, vera est: quemadmodum ista de possibili: 'Ille, qui est praedestinatus, potest dampnari', vera est in sensu divisionis ; et tamen ista de inesse : 'Praedestinatus dampnatur', est impossibilis et contradictionem includit. Haec virtualiter est sententia Magistri Sententiarum, libro i, di. xl, qui respondens obiectioni quorundam probare nitentium quod numerus electorum non potest augeri nec minui, sic ait: Quibus respondemus, ex ea ratione dictum esse et verum esse, numerum electorum non posse augeri vel minui, quia non potest utrumque simul esse, scilicet ut aliquis salvetur et non sit praedestinatus, vel ut aliquis praedestinatus sit et dampnetur. Intelligentia enim conditionis implicitae veritatem facit in dicto, et impossibilitatem in vero. Si vero intelligatur simpliciter, impossibilitas non admittitur, ut cum dicitur: Praedestinatus potest vel non potest dampnari, et reprobus potest vel non potest salvari. In hiis enim et huiusmodi locutionibus ex ratione dicti diiudicanda est sententia dictionis. Alia namque fit intelligentia, si per coniunctionem haec accipiantur dicta, atque alia, si per disiunctionem, ut supra, distinção, essa proposição fosse possível: “Deus faz algo pela potência absoluta que não faz pela potência ordenada”. Com efeito, esta proposição sobre a inerência é, segundo eles, impossível e implica contradição; uma vez que disso mesmo que Deus faria algo, o faria pela potência ordenada. No entanto, esta proposição sobre o possível: “Deus pode fazer algo pela potência absoluta que jamais fará pela potência ordenada”, tomada no sentido da divisão, é verdadeira. Do mesmo modo esta é possível: “Aquele, que é predestinado*, pode ser condenado”, é verdadeira no sentido da divisão. No entanto, esta sobre a inerência: “O predestinado está condenado” é impossível e implica contradição. Esta é virtualmente a posição do Mestre das Sentenças, no livro 1, distinção 4065, que ao responder à objeção de alguns que se esforçam por provar que o número dos eleitos não pode aumentar nem diminuir, disse assim: Aos quais respondemos a partir desta razão que seja dito e que seja verdadeiro que o número dos eleitos não pode aumentar ou diminuir, porque ambos não podem estar simultaneamente, a saber, que alguém se salve e não seja predestinado, ou que alguém seja predestinado e seja condenado. Com efeito, o entendimento da condição implícita faz a verdade quanto ao que é expresso e a impossibilidade quanto ao verdadeiro. De fato, se for entendida absolutamente, não é admitida a Ockham geralmente toma a palavra “predestinado” como sinônima de “aquele que há de ser salvo” (N. do T.). 65 Cap. 1. * 64 cum de praescientia agebatur, praetaxatum est. Si enim, cum dicis : Praedestinatus non potest dampnari, intelligas ita : id est non potest esse, ut praedestinatus sit et dampnetur, verum dicis, quia coniunctim intelligis ; falsum autem, si disiunctim accipias, ut si intelligas istum non posse dampnari, quem dico praedestinatum. Potuit enim non esse praedestinatus ; et ita dampnaretur. Ex hiis verbis evidenter apparet quod secundum Magistrum Sententiarum haec est impossibilis : 'Praedestinatus dampnatur'; haec tamen habet unum sensum verum: 'Praedestinatus potest dampnari'. Ita haec est impossibilis : 'Aliquid fit a Deo, et non de potentia ordinata'; haec tamen habet unum sensum verum : 'Aliquid potest fieri a Deo, quod non fiet de potentia ordinata'; et tamen, si fieret, de potentia ordinata fieret. Sic ergo illa de possibili in uno sensu est vera; et tamen illa de inesse de eisdem terminis est impossibilis. Nec debet aliquis de hoc mirari, quod etiam de creaturis loquendo invenitur veritatem habere. Haec enim habet unum sensum verum : 'Album potest esse nigrum'; haec tamen est impossibilis : 'Album est nigrum'. Haec etiam habet unum sensum verum : 'Non album potest esse album'; haec tamen est impossibilis : 'Non album est album'. Qui igitur in hac materia catholice et secure loqui voluerit, necesse est quod inter propositiones de possibili et de impossibili et de necessario et de inesse et etiam inter diversos sensus illarum de modo sciat distinguere; aliter enim faciliter ponet vel negabit unam pro alia et 66 Pedro Lombardo, Sent. I, d. 38, cap. 2. impossibilidade, como quando se diz: O predestinado pode ou não pode ser condenado, e o réprobo pode ou não pode ser salvo. Com efeito, nestas e nas locuções deste modo, o sentido da expressão deve ser julgado desde a noção do que é expresso. Pois um seria o entendimento se estes que foram expressos fossem tomados por meio da conjunção, e outro, se pela disjunção, como foi abordado acima66, quando se tratava da presciência. Com efeito, se quando dizes: O predestinado não pode ser condenado, entendes assim: isto é, não pode ser, dado que seja predestinado e seja condenado, dizes o verdadeiro, porque entendes conjuntamente, mas dizes o falso se tomares disjuntivamente, como se entendesses que este que chamo de predestinado não pode ser condenado. Com efeito, pôde não ser predestinado, e, assim, será condenado. Destas palavras aparece evidentemente que segundo o Mestre das Sentenças esta é impossível: “O predestinado é condenado”; no entanto, ela tem um sentido verdadeiro: “O predestinado pode ser condenado”. Assim, esta é impossível: “Algo é feito por Deus e não pela potência ordenada”; no entanto, ela tem um sentido verdadeiro: “Algo pode ser feito por Deus que não é feito pela potência ordenada”; e, no entanto, se for feito, será feito pela potência ordenada. Portanto, assim, aquela sobre o possível é verdadeira num sentido e, no entanto, aquela sobre a inerência a respeito dos mesmos 65 incidet in errorem. Quare omni homini, qui non est in logica et theologia excellenter instructus, expedit in hac materia magis tacere quam loqui praeter illa, quae in scripturis reperiuntur expressa. termos é impossível. E ninguém deve se admirar com isso, dado que se vê que seja igualmente verdade quando se fala das criaturas. Com efeito, esta tem um sentido verdadeiro: “O branco pode ser negro”. No entanto, esta é impossível: “O branco é negro”. Também esta tem um sentido verdadeiro: “O não branco pode ser branco”. No entanto, esta é impossível: “O não branco é branco”. Portanto, quem quiser falar nesta matéria católica e seguramente, tem necessariamente de saber distinguir entre as proposições sobre o possível e sobre o impossível e sobre o necessário e sobre a inerência e também entre os diversos sentidos daquelas modais; com efeito, de outro modo, facilmente porá ou negará uma pela outra e cairá em erro. Razão pela qual cabe, quanto a esta matéria, a todo homem que não é excelentemente instruído em lógica e em teologia, antes calar do que falar além do que é expressamente encontrado nas escrituras. Secunda ratio contra praedictam distinctionem ex falso etiam intellectu procedit, sicut tactum est supra. Concedendum est enim quod non sunt in Deo duae potentiae, quarum una sit absoluta et alia ordinata; tamen hoc verbum ' potest', cum loquimur de Deo, aequivoce accipi potest, sicut supra declaratum extitit. A segunda razão contrária à distinção mencionada67 também precede de um falso entendimento, tal como foi mostrado acima68. Com efeito, deve-se conceder que não há em Deus duas potências, das quais uma seja absoluta e a outra ordenada. No entanto, a palavra “pode”, quando falamos sobre Deus, pode ser tomada equivocamente, Supra, ibidem: “Outra razão sua67 é que em Deus a essência e a potência são o mesmo. Ora, não há duas essências em Deus. Portanto, nem duas potências.”. 68 Supra: no § “Quarto, declaram de que modo deve ser entendida a distinção dos teólogos[...]”: “e de que modo Deus pode fazer alguns pela potência absoluta que não pode pela potência ordenada, ao dizer que tal distinção não deve ser entendida tal como a consideram certos ignorantes, como se houvesse em Deus uma dupla potência, das quais uma seria absoluta e a outra ordenada; [...]” 67 66 assim como acima69. Super litteram. Si velit dicere quod illi regno et dominio renuntiavit: Dicunt isti quod appellans non vult dicere quod Christus renuntiavit illi regno et dominio, saltem proprie accipiendum verbum 'renuntiandi'; quia nunquam ante passionem suam habuit illa regnum et dominium ; ideo non renuntiavit eisdem. Ostendat illam, si sciat: Ipse non vult eam ostendere, sed vult ostendere quod non habuit ante mortem regnum et dominium temporale. Immo contrarium sacra scriptura supponit expresse: Dicunt quod hoc falsum est, et ad omnes auctoritates, quas ad hoc probandum hic adducit, responsum est supra, c. xciii; ideo hic ad ipsas non expedit respondere. Immo videtur quod nec potuerit renuntiare: Ista in sensu divisionis falsa est, sicut ista est falsa in sensu divisionis secundum apareceu declarado Sobre a passagem: Se quer dizer que renunciou àquele reino e domínio, estes dizem que o querelante não quis dizer que o Cristo renunciou àquele reino e domínio, ao menos tomando propriamente o verbo “renunciar”; uma vez que antes de sua paixão nunca teve aquele reino e domínio; por isso, não renunciou a eles. Mostre a renúncia, se souber: aquele não quer mostrar a renúncia, mas quer mostrar que não teve antes da morte o reino e o domínio temporal. Melhor: a sagrada escritura supõe expressamente o contrário: dizem que isso é falso, e quanto a todas as autoridades que aqui traz para provar isso foi respondido acima, no capítulo 93; por isso, aqui não cabe respondê-las. Melhor: vê-se que não poderia renunciar: esta proposição é falsa no Supra, ibidem: “e, no entanto, a potência de Deus não é diversa, mas a locução é diversa; a saber, porque, quando as escrituras falam de Deus pelos vocábulos “pode”, “possível”, “potência” e semelhantes na conveniência da significação, tais vocábulos são tomados equivocamente em diversos lugares. Donde, em alguns lugares denotam ou fazem referência a tudo aquilo que não repugna a Deus fazer. Assim esta palavra “pode” é tomada nas autoridades alegadas acima, e em muitos outros lugares. Assim também o nome “onipotente” é tomado em Gênesis 17, 1, Eu o Deus onipotente, tanto no símbolo dos Apóstolos, como também no símbolo que é cantado na missa, quando é dito: Creio em um só Deus, Pai onipotente. Diversamente, estas palavras fazem referência ou conotam unicamente aquilo que se ordenou haver de fazer, e não tudo aquilo que pôde e pode se ordenar haver de fazer. Assim se toma Gênesis 18, 17, em que o Senhor diz: Acaso poderei esconder de Abraão o que hei de fazer? como se dissesse: “Não”. No entanto, consta que Deus não tinha necessidade de revelar a Abraão o que havia de fazer; mas disse: Acaso poderei esconder, etc., por isso: porque ordenou-se haver de revelar a Abraão o que havia de fazer. Assim se toma Gênesis 19, 22, quando o Senhor disse a Ló: Apressa-te e refugia-te ali, porque não poderei fazer o que for até que entres ali, isto é, “Não farei o que for até que entres ali”. Assim também é tomado Marcos 6, 5-6, quando é dito sobre o nosso Salvador: Não pudera fazer nenhuma virtude ali, curou apenas poucos enfermos pela imposição das mãos: e admirou-se da incredulidade deles. No entanto, consta que, enquanto era Deus, não era impossível ao Cristo fazer absolutamente a virtude ali, mas disse que não pudera fazer ali nenhuma virtude, porque em razão da incredulidade deles não quis fazer a virtude ali. Desse modo, portanto, a palavra “pode” é tomada equivocamente nas escrituras ao falar sobre Deus, do mesmo modo que, a mesma palavra, quando falamos sobre os homens, é tomada equivocamente. Com efeito, de um modo se diz que possamos aqueles que podemos por direito, e é dito poder ser feito aquilo que licitamente e devidamente pode ser feito. Assim é tomado Gênesis, 39, 9, quando José diz à egípcia: Como, então, posso fazer este mal? como se dissesse: “Não posso licitamente e por direito”. Diversamente, se diz que possamos aqueles que podemos absolutamente, seja para o bem, seja para o mal, com efeito, diversamente, jamais poderíamos pecar. Portanto, assim a palavra “poder” é tomada equivocamente nas escrituras quando se fala de Deus. No entanto, há uma única potência realmente em Deus, mas a locução é diversa.”. 69 67 Magistrum Sententiarum: 'Praedestinatus non potest dampnari'. Potuisset enim Christus habuisse regnum et dominium, et postea renuntiasse eisdem. Si fecisset, contra ordinationem Patris fecisset: Ista falsa est secundum istos; quia sicut, si Christus per alium modum quam per mortem suam liberasset genus humanum, non fecisset contra ordinationem Patris, immo secundum ordinationem Patris, quia, si Christus aliter liberasset genus humanum, Pater aliter ordinasset: ita, si Christus renuntiasset regno et dominio, non fecisset contra ordinationem Patris, immo fecisset ordinationem Patris, quia, si Christus renuntiasset, Pater talem renuntiationem ordinasset. Et ita haec est impossibilis : ' Christus fecit contra ordinationem Patris ', sicut haec est impossibilis : 'Aliquis dampnatur contra praedestinationem Dei', et haec similiter : 'Aliquid fit contra praescientiam Dei'. De istis tamen propositionibus de possibili: 'Christus potuit facere contra ordinationem Patris', 'Aliquis potest dampnari contra praedestinationem Dei', 'Aliquid potest fieri contra praescientiam Dei', et consimilibus, non est per omnem modum dicendum sicut de illis de inesse correspondentibus ipsis, sicut ex superioribus potest aliqualiter intelligentibus apparere. Auctoritates vero, quas iste adducit, sunt de inesse et non de impossibili; et ideo in nullo probant negativam de possibili. Qualiter autem intelligendae sunt, patet supra, c. xciii; ideo hic replicare nequaquam oportet. sentido da divisão, assim como esta é falsa no sentido da divisão segundo o Mestre das Sentenças: “O predestinado não pode ser condenado”. Com efeito, seria possível que o Cristo tivesse o reino e o domínio e depois renunciasse a eles. E se o fizesse, o faria contra a ordenação do Pai: esta proposição é falsa segundo estes, porque, assim como se Cristo por um modo diverso de sua morte tivesse libertado o gênero humano, não teria agido contra a ordenação do Pai, mas antes segundo a ordenação do Pai, uma vez que, se o Cristo tivesse libertado diferentemente o gênero humano, o Pai teria ordenado diferentemente: assim, se Cristo tivesse renunciado ao reino e ao domínio, não teria agido contra a ordenação do Pai. Melhor: teria feito a ordenação do Pai, porque, se o Cristo tivesse renunciado, o Pai teria ordenado tal renúncia. E, assim, esta é impossível: “O Cristo fez contra a ordenação do Pai”, assim como esta é impossível: “Alguém é condenado contra a predestinação de Deus”, e, semelhantemente, esta: “Algo se dá contrariamente à presciência de Deus”. No entanto, estas proposições sobre o possível: “O Cristo pôde fazer contra a ordenação do Pai”, “Alguém pode ser condenado contra a presciência de Deus”, e semelhantes, não devem ser ditas de nenhum modo paralelo àquele das proposições sobre a inerência que a elas correspondem, assim como pode de algum modo aparecer do que foi acima entendido. Ora, as autoridades que aquele apresenta são sobre a inerência e não sobre o impossível; e, por isso, de nenhum modo provam a negativa sobre 68 o possível. Como, porém, devem ser entendidas, é patente acima, no capítulo 93. Assim, não há por que voltar a isso aqui.