no tempo da guerra fria - a casa do mago das letras
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NO TEMPO DA GUERRA FRIA L P Baçan Edição Eletrônica: L P B Edições http://www.acasadomagodasletras.net Direitos exclusivos para língua portuguesa: Copyright © 2014 L P Baçan Todos os direitos reservados. Proibidas a reprodução e a divulgação. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida por forma alguma ou qualquer meio sem a expressa autorização do autor. 2014 NO TEMPO DA GUERRA FRIA PARTE 1 FÉRIAS CINZENTAS O ALERTA PRIMAVERA Lá fora o ruído das turbinas se tornava ensurdecedor, mas, no interior do aparelho, era apenas um suave zumbido que não chegava a incomodar Oliver Clark. Quando o pesado Boing 747 da Lufthansa taxiou em direção à cabeceira da pista do Kennedy Airport, em Queensborough, Nova Iorque, passou ao lado de um imponente Tristar da All Nipon Airway, depois ganhou caminhou livre. O piloto deixou-o seguir mansamente, enquanto testava pela última vez as turbinas e realizava a checagem final com seus ajudantes. Oliver permaneceu atento ao aviso luminoso, no alto do painel. Quando se apagou, ele soltou o cinto de segurança e acendeu um cigarro. Respirou fundo, deixando para trás o inverno americano que tornava a cidade tão sem atrativos para o seu gosto. O rigor da neve desfolhara as árvores do Central Park e tornara mais agudos os reflexos da claridade na fachada espelhada do Lincoln Center Performing of Arts. No Rockefeller Center, a atração era a pracinha do ringue de patinação, sempre repleta de crianças, jovens e adultos. Oliver Clark tinha quatro semanas de férias a sua frente, reservas nos principais hotéis das capitais europeias, um Eurailpass, muito prático e cômodo de viagem. Seu destino inicial era Frankfurt. Pretendia visitar, especialmente, o Palmen Carten e apreciar demoradamente as duas mil espécies de orquídeas e cactos, antes de realizar um cruzeiro pelo Reno. Um amigo do Departamento do Tesouro recomendara o excelente vinho de maçã de Sachsen Hausen, um bairro do outro lado do rio. Ali encontraria, mais precisamente na taverna Grauer Bock, o melhor Appelwool da Alemanha. Outro recomendara, com muita malícia, uma passagem pela Elliot Ellis, uma das mais importantes e tradicionais boates da cidade. Outro lhe pedira que comprasse uma navalha de aço Solingen. Pedidos semelhantes haviam chovido, quando souberam que ele pretendia viajar pela Europa durante as férias. Seu próprio chefe, sempre tão preocupado com assuntos de segurança, o procurara, encomendando-lhe certo vaso de porcelana, dando-lhe um endereço de uma loja, na Friedresstrasse. Oliver sorria sempre e concordava com todos, prontificando-se a atender cada pedido. Seguramente se esqueceria de todas as encomendas. Não seria difícil justificar-se depois. Poderia afirmar que, por problema de excesso de bagagem, as encomendas haviam ficado retidas na alfândega. Talvez, melhor ainda, fosse dizer simplesmente que fora roubado. Retirou do bolso de seu paletó um prospecto do Frankfurt Plaza Hotel, escolhido por ele pela excelente localização, a apenas quinze minutos do aeroporto e dez do centro, próximo ainda do Salão de Exposição. Leu-o por algum tempo, inteirando-se das comodidades oferecidas, depois relaxou o corpo. Uma aeromoça parou ao seu lado, oferecendo-lhe uma bebida. Sorriu e ela retribuiu com um sorriso agradável. — Scotch com água — pediu ele. Ela serviu o copo e estendeu-o. Ao apanhá-lo, seus dedos se roçaram num movimento casual. — Mais alguma coisa? — ela indagou, sempre sorrindo fácil e agradavelmente. Ele sorriu em resposta e fez um movimento negativo com a cabeça. Ela seguiu em frente, servindo os outros passageiros. Oliver inclinou-se ligeira e propositadamente para o lado, observando-a dobrar-se sobre o carrinho. A saia curta deixava à mostra coxas perfeitas e joelhos bem torneados. Como que se sentindo examinada, ela voltou a cabeça e seus olhares se encontraram. Trocaram sorrisos. Ela seguiu em frente, terminando de servir a todos e retornando, passando outra vez por Oliver que lhe sorriu. Ela respondeu e foi até o fundo, onde se encontrou com outra aeromoça que servira os passageiros da outra classe. — E então, o que temos de novo? — indagou aquela que servira Oliver. — Os mesmo de sempre. Apenas casais de velhos e estudantes. Há um homem sozinho, mas maduro demais para o meu gosto. E você, teve melhor sorte? — Há um homem ali na frente, distinto, simpático, com um ar característico de executivo em férias. — Onde? — apressou-se em perguntar a outra. — Poltrona quinze A. A garota, uma loura com sardas e cabelos soltos sobre os ombros, pôs-se nas pontas dos pés para olhar. Naquele momento, Oliver também se erguia e girava a cabeça para trás, procurando pela aeromoça que o servira. Abaixou-se em seguida, ao perceber que era, seguramente, o motivo da conversa das duas jovens. Sorriu mais uma vez, ligeiramente, depois tomou um gole relaxante de uísque. — Era aquele? — indagou a loura à amiga, morena, de cabelos curtos, cortados rentes à nuca. — Sim, ele mesmo. O que me diz? — retrucou, com um acento de malícia embelezando seu rosto expressivo. — Está de férias, disponível e acessível, ansioso e seguramente vai tornar sua escala de um dia em Frankfurt uma delícia, colega — diagnosticou a outra, com o mesmo toque de malícia no rosto sardento. — Foi o que pensei — sorriu a morena, pensando, talvez, em como tornar as coisas bem fáceis para aquele agradável executivo em férias. *** Parado diante da janela, Kurt Stadt fitava os trezentos e sessenta e cinco metros da torre de televisão, na Alexander Platz, detendo o olhar no último dos andares, onde ficava o café, numa plataforma giratória. Parecia ligeiramente impaciente e irritado. Fora retirado de um agradável encontro com amigos numa cervejaria e convidado a se apresentar à sede da recém-criada UDL, sigla de uma agência de contraespionagem dos russos, instalada em território da República Democrática Alemã. Quando chegara, disseram-lhe apenas que deveria aguardar o superintendente. Certamente se tratava de alguma coisa urgente, pois o horário era bem impróprio. Sentia-se ainda com fome e ligeiramente embriagado. Uma olhada na direção do café, na torre de televisão, pareceu acentuar nele essas sensações. Uma porta se abriu a suas costas e um homem ficou esperando, enquanto mantinha uma das mãos na maçaneta e, com a outra, segurava alguns papéis diante dos olhos. Kurt se voltou e esperou alguma ordem. O superintendente levantou os olhos para ele, soltou a maçaneta e fez meiavolta, caminhando até uma escrivaninha de mogno, num canto do aposento. Atrás dele havia um pedestal, com a bandeira do país. À direita e à esquerda, enormes estantes repletas de livros cobriam todas as paredes, com exceção de um canto, ao lado da porta, onde havia uma vitrine com algumas das armas russas mais modernas. Kurt avançou, parando diante da escrivaninha. O superintendente fez um gesto para que ele se sentasse, depois continuou atento aos papéis que mantinha diante dos olhos. Quando terminou, afinal, a leitura, jogou-o sobre a mesa e uma expressão de incredulidade estampou-se em seu rosto. Encarou Kurt, como se lhe pedisse desculpas por interrompê-lo com seus amigos. Kurt esperou que ele dissesse alguma coisa, mas o superintendente continuou pensativo e silencioso, analisando com certeza o que acabara de ler. Kurt baixou os olhos para as folhas de papel que o outro jogara sobre a mesa. Havia uma folha de telex e algumas outras, possivelmente traduções ou interpretações do código empregado na mensagem. — Está de licença, não, Kurt? — indagou o superintendente, rispidamente, com aquela maneira peculiar de intimidar seus subalternos, pondo-se sempre num plano superior que, mesmo quando pedia desculpas delicadamente dava a entender que cumpria apenas uma formalidade sem importância, já que o homem diante de si deveria estar a sua disposição vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. — Sim, senhor! — respondeu Kurt, com o clássico tom marcial de quem servira anos e anos nas forças armadas e jamais perderia a pose. De fato Kurt fora um militar. Servira nos últimos anos na base de Tokaeyr, ao norte de Berlim Oriental, destacando-se pela criatividade no setor de inteligência e investigações. Menos de um ano antes, fora chamado à sala do seu comandante, Coronel Kaller, que lhe estendera uma folha de papel onde deveria assinar, solicitando sua baixa. Surpreso, Kurt ficara segurando o papel durante alguns instantes, até que o seu superior lhe explicasse o significado daquilo. Uma nova seção de contraespionagem estava sendo criada, sob ordens dos russos, para exercer especial atenção quanto à situação americana no campo das novas armas, principalmente das armas de defesa que anulariam armas russas recém-criadas. Kurt era um oficial dedicado e inteligente, sem ficha nos arquivos de espiões das principais agências internacionais. A nova seção pretendia permanecer desconhecida o tanto quanto possível. Ultimamente sem qualquer explicação plausível para a coincidência, os americanos vinham desenvolvendo uma nova contra-arma, sempre que os russos criavam algo de novo no gênero. Nenhum esquema definido fora ainda implantado, já que a agência mal saíra da sua fase pré-operacional. Kurt mal havia penetrado nos segredos de suas novas atribuições, mas adivinhava, pelo que pudera perceber durante os treinamentos, que sua nova função seria importante e, por que não reconhecer, excitante. Possivelmente teria de viajar, de investigar, de usar sua inteligência para resolver situações que embaraçariam os seres humanos comuns. — Sua licença está cancelada. Você começará a agir. É sua primeira missão — disse-lhe, afinal, o superintendente. — Sim, senhor! — Kurt respondeu, sem pestanejar, sentindo-se ligeiramente eufórico e transparecendo isso na expressão de seu rosto. — Você deve partir para Frankfurt imediatamente. Lá se hospedará no Frankfurt Plaza Hotel. Uma reserva já foi providenciada em seu nome. Neste envelope encontrará dinheiro e um passaporte. Nesta maleta está uma séria de artigos que você saberá empregar. Para todos os efeitos, é um oficial do exército democrático alemão em férias. Fique por lá até a chegada de um americano chamado Oliver Clark. Ele tem uma reserva. Assim que notar a sua chegada, procure mantê-lo sob severa vigilância. Receberá, depois, novas instruções. O importante, no momento, é que saibamos onde está aquele americano. Compreendeu? — Sim, senhor! — ele respondeu, apanhando o envelope e a maleta que o superintendente havia posto sobre a mesa. Particularmente interessado no envelope, abriu-o e encontrou ali notas altas de marco alemão e de dólares americanos. Antes que se refizesse da surpresa, o superintendente falou: — Deve manter-se junto daquele americano. Se ele viajar para alguma parte, acompanhe-o. Faça isso e nos comunique sua nova localização tão logo possível. O importante, repito, é não perdê-lo de vista. Deve estar com ele quando decidirmos o que deverá ser feito. — O que deverá ser feito em que sentido, senhor? — arriscou perguntar. — Se for preciso, você saberá quando chegar a hora. Deve viajar imediatamente. Um carro o levará a Berlim ocidental, através do posto Charlie, até o Aeroporto Tegel. Um avião partirá em duas horas para Frankfurt. Você estará nele. Uma vez lá, aguarde novas instruções, mas não perca o americano de vista, compreendeu? — Sim, senhor! — confirmou Kurt, guardando o envelope no bolso interno do sobretudo e apanhando a maleta. *** Marbur Krantz, o superintendente da UDL, deixou sua sala imediatamente após a saída de Kurt Stadt. Avançou pelo longo corredor, passando por inúmeras portas fechadas, até chegar à última delas, que se abria para um amplo aposento com apenas uma mesa de reuniões ao centro. Alguns homens se encontravam ali, ocupando metade dos lugares. Ergueram os rostos a sua chegada, depois voltaram a se concentrar nos papéis que tinham diante de si. Eram cópias daqueles que Marbur lera em seu escritório, antes do encontro com Kurt. Tratava-se realmente de alguma coisa importante, já que reunia numa mesma sala o superintendente da UDL, o chefe da PPT, uma ramificação da KGB, ligada aos assuntos bélicos, um dos principais agentes russos, seu chefe imediato e Hamsher Knult, chefe supremo da WEIMAR, que centralizava todas as superintendências de apoio à espionagem e contraespionagem soviéticas. Marbur sentou-se e passou os olhos pelos papéis que trouxera. Depois se reclinou em sua cadeira e ficou esperando que os outros terminassem. O chefe da PPT, Weiner Mann, terminou primeiro. Levantou os olhos e encarou diretamente Marbur Krantz. Esboçou um sorriso ligeiramente irônico, que Marbur retribuiu na mesma medida. Havia certo antagonismo entre os dois, justificado porque a PPT vinha fazendo, até então, entre outras atividades, o controle das contra-armas inventadas pelos americanos. Ano após ano, no entanto, e principalmente no último deles, sofrera severas críticas por parte da KGB, considerando que nada de positivo conseguira apurar das informações que vinham vazando sistematicamente. Weiner Mann pressionara seus agentes, mas era como se trabalhassem na mais completa escuridão. Nada havia de positivo. Nada apontava para uma pisa concreta. O próprio intercâmbio de informações com as outras seções nada trouxera de positivo. Quando a KGB, finalmente, decidira criar a UDL, Weiner Mann protestara e, em represália, quase tivera cassado seu posto e sido jogado no mais obscuro ostracismo. Suas relações com alguns altos figurões do partido haviam mantido seu cargo, que pendia, agora, por um fio. Com isso, tivera de resignar-se, certo de que a UDL não teria sucesso igualmente e tudo seria apenas uma questão de tempo até que compreendessem que a criação daquela seção específica em nada resolveria os problemas que enfrentavam. Para sua decepção e raiva, no entanto, aqueles papéis diante de si provavam o contrário. Não podia adivinhar de onde Marbur tirara aquelas informações nem o que pretendia com elas. O simples fato de ter alguma coisa para apresentar, porém, frustrava Weiner. Ele sabia que qualquer coisa que pudesse abalar a cúpula daria ao seu rival uma projeção inusitada e, seguramente, reforçaria a confiança dos superiores na nova seção. Alexander Rokim, chefe local da KGB, terminou a leitura em seguida. Ergueu os olhos para Marbur e cumprimentou-o silenciosamente, dando sua aprovação. Alexander fora um dos que mais se empenharam na criação da UDL, mesmo reconhecendo que se tratava de um jogo perigoso. Se a UDL obtivesse sucesso, ele receberia parte do reconhecimento. Se falhasse, cairia fatalmente em desgraça. Acreditava, porém, no material que Marbur conseguira. Apostara nele e julgava-se vencedor. Aqueles papéis provariam isso, principalmente a Weiner Mann, a quem ele olhava agora com desdém. Bakou, o principal agente russo a operar no ocidente, depositou os papéis diante de si em por um longo tempo, fitou friamente Marbur. Havia incredulidade em seus olhos, como se a leitura do papel o tivesse transportado a uma fantasia que ele ainda não definira se era patética ou hilariante. Hamsher Knult foi o último a terminar a leitura. Retirou os óculos e depositou-o sobre os papéis. Depois dobrou cuidadosamente cada uma das hastes de metal para dentro, com gestos lentos e metódicos, como se precisasse ganhar tempo para pensar profundamente no que havia terminado de ler. O que tinha ali era fruto do trabalho de uma de suas agências. Como sempre fizera, pensava nos prós e contras e, ao mesmo tempo, procurava esboçar um plano de ação. Ao notar que todos haviam terminado a leitura, Weiner pigarreou discretamente e todos olharam na sua direção. Ele bateu o indicador de uma das mãos sobre os papéis, num gesto até certo ponto dramático, depois disse: — É uma fraude! Não pode e não vai levar a nada, estejam certos disso. Marbur Krantz sorriu. Alexander Rokim levou a mão à testa, como se pretendesse alisar os cabelos, mas conservoua ali, enquanto abaixava a cabeça, escondendo o riso debochado em sua boca. Girou lentamente a cabeça, então, para que seu olhar se encontrasse com o de Marbur. Hamsher Knult adotou uma expressão severa. — O que temos aqui não é uma disputa familiar por um troféu de eficiência, Weiner. É algo que devemos analisar cuidadosamente, pois pode responder a uma série de perguntas que nos têm incomodado há muito. Quais são, afinal, seus argumentos para afirmar que tudo isso não passa de uma fraude? — indagou Hamsher, com rispidez. — Justamente pelo fato de se dispor a responder a todas essas perguntas. É conveniente demais, por isso me parece suspeito... — Parece-lhe ou é? — cortou-o ironicamente Marbur. — É suspeito. Temos andado às tontas em busca de uma resposta para o vazamento de informações nos planos bélicos. Nada surgiu, nada apontava a nada, nenhum nome era suspeito, nenhum fato, por menor que fosse, pôde ser detectado. Agora surge isso, praticamente indicando o caminho. Pode nos dizer a fonte, Marbur? Seguramente Marbur havia pensado na possibilidade de que aquela pergunta lhe fosse feita. Sorriu com tranquilidade, muito embora não tivesse, realmente, sido contemplado com um golpe de sorte. A ansiedade em demonstrar sua eficiência e em apresentar resultados o havia feito deixar de lado as principais precauções. Depois, se a informação devesse ser levada em conta ou não, isso não lhe competia. Seu trabalho era conseguir pistas e aguardar ordens para agir. Encontrara algo plausível. Decidir se aquilo valia ou não a pena ficava a cargo de Hamsher Knult e Alexander Rokim. — É um princípio básico o respeito à fonte de informações de cada uma das seções — observou ele. — Poderia invocar esse direito e me recusar a informá-los, mas devo aproveitar o momento para um crédito de confiança em minha equipe. Como já devem ter conhecimento, tivemos um dia de turbulência solar hoje. Quando isso ocorre, as comunicações via satélite, principalmente, sofrem estranhos efeitos de interferência. Apesar disso, ordenei que minha equipe permanecesse na escuta durante o período, gravando tudo que surgisse, a despeito da interferência. Depois tratamos de filtrar e selecionar todo o material. Finalmente chegamos a algumas mensagens em código, que nos pareciam importantes. Ficamos surpresos, porém, ao verificar que numa delas os americanos usavam um código há muito abandonado. Isso, vale dizer, só conseguimos após algumas horas de estudos. Jamais poderíamos imaginar que voltassem a usar o tal código, mas a ideia me chamou a atenção pela originalidade, digna mesmo dos americanos. Usavam um código já caído no esquecimento. Podem imaginar o que isso significa para nossos computadores? Toda uma programação já havia sido desativada. Seria uma das últimas hipóteses a que ele recorreria, em seu trabalho de decodificação. Calculando as probabilidades, o computador levaria cinco semanas para chegar a esse código. Oliver Clark estará de férias por apenas quatro semanas. É evidente que os americanos pensaram nisso. Precisavam de tempo, de quatro semanas apenas, tempo suficiente para Oliver Clark se divertir no velho mundo. — Engenhoso! — comentou Hamsher. — Como chegaram, então, tão rápidos à resposta? — quis saber em seguida. — Um descuido da parte deles, que jamais imaginariam que tivéssemos obtido a chave para esse código. Devem compreender o que significa um código, a dificuldade tanto para sua elaboração quanto para sua decodificação, para quem o desconhece. Sabemos, porém, que, caso uma mensagem cite a chave que libera uma programação de computador para decodificação, ela pode ser decifrada num computador assemelhado, com a mesma programação. Nós temos algumas dessas programações deles, assim como eles têm algumas das nossas. Resumindo, a chave da programação indica que tipo de código está sendo usado e é necessária ao destinatário da mensagem, sem o quê ela jamais poderia ser decodificada... Uma gargalhada explodiu na sala e Weiner Mann debruçou-se sobre os papéis. Amassou-os em suas mãos, depois os atirou para trás. — Lixo! Puro lixo! — disse zombeteiro. — Os americanos não são estúpidos. — Por que afirma isso? — indagou-lhe Hamsher que, seguramente, em nada o apreciava. — Eles não nos entregariam de mãos beijadas um importante segredo, nem nos daria toda a chance de chegar à solução de nossos problemas. A menos que estivessem tramando algo contra nós. Algo que não consigo imaginar, mas que, com certeza, nos afetará tanto ou mais que a evasão das informações sobre o material bélico. — Deduções sem base alguma — refutou Marbur, que levava vantagem sobre o rival; preocupado apenas em atacar e demonstrar seu visível despeito. — Deciframos o código inicial. A mensagem está aí, diante de todos: Oliver Clark vg prioridade Gold pt Intervalo cinco vg alerta primavera pt. Prioridade Gold significa que Oliver Clark trabalha no Departamento do Tesouro Americano. Intervalo cinco e alerta primavera querem dizer que se encontra em férias e que deve comunicar-se com uma embaixada ou posto de segurança a cada cinco dias, atestando que se encontra bem e com vida. Ora, o intervalo cinco é o de máxima segurança. Significa que seu detentor ocupa um dos mais importantes postos no departamento. A partir daí, numa investigação preliminar, procuramos saber quem era ele. O tempo foi escasso. Soubemos apenas que não se trata de um figurão, mas de um funcionário qualificado, titular de um posto para o qual só existe outro elemento capaz de substituí-lo e isso acontece apenas durante as férias de Oliver, suspeitando-se, o que é digno de atenção e maiores investigações, que Oliver Clark trabalha intimamente ligado ao serviço de pagamento de agentes estrangeiros. Só essa resposta justificaria a mensagem transmitida a todos as embaixadas e postos de segurança americanos. Fizemos mais alguns contatos e descobrimos que Oliver Clark se encontra agora viajando rumo a Frankfurt, num Boing 747 da Lufthansa. Chegará ao destino em mais ou menos oito horas. Adquiriu um Eurailpass para quatro semanas e fez reservas nos hotéis das principais capitais da Europa, terminando em Paris, onde tem confirmado seu retorno a Nova Iorque num Concorde da Air France, para daqui a quatro semanas. Houve um descuido dos americanos na transmissão da mensagem. A presença da chave para a tradução do código, de nosso conhecimento, permitiu-nos decifrá-la. Há um americano, possivelmente um pagador, ao nosso alcance. Se mantivermos sob vigilância nós o teremos à mão, enquanto procuramos obter a confirmação de seu posto no Departamento do Tesouro. Sabemos que se trata de um funcionário altamente qualificado. A partir do momento em que confirmarmos sua importância para nós, teremos praticamente pronto um esquema para sequestra-lo. Através dele, então, poderemos chegar à solução do grave problema que afeta nossa defesa, ou seja, o vazamento das informações que permite aos americanos a criação de contra-armas. — Pode nos adiantar alguma coisa sobre como chegar a essa solução? — ironizou Weiner. — Minha equipe já se encontra trabalhando nisso. É preciso salientar que vamos enfrentar um dos mais sofisticados esquemas de segurança dos americanos. Estamos acionando agentes em Washington e outros colaboradores, esperando em breve termos os elementos necessários para articular uma operação. Para tanto, precisamos apenas que seja ordenada uma prioridade — disse, olhando na direção de Hamsher Knult. Este se voltou para Bakou, que até então estivera em silêncio. Era, talvez, o elemento mais habilitado para dar um parecer abalizado sobre o assunto. Estava há dez anos no serviço secreto russo, agindo no ocidente. Conhecia os americanos, suas manhas e seus truques. Era frio e desconfiado, embora seu rosto ostentasse uma aparência jovial e esportiva, anacrônica para seus quarenta e tantos anos. Era alto e espadaúdo, de olhos miúdos e sobrancelhas espessas. O nariz era delicado, quase feminino. A boca era um rasgo apenas em seu rosto. Os lábios finos e excessivamente vermelhos indicavam que se encontrava no melhor de sua forma. — Conheço o modo de agir dos americanos. A princípio me surpreendi e duvidei da validade dessa mensagem interceptada. Depois, analisando melhor, pensando nas situações que já enfrentei contra o estilo americano, cheguei à conclusão que poderia haver uma possibilidade... — Então não há uma possibilidade ainda. Ela apenas poderia vir a existir — cortou-o Weiner, com uma ironia irritante. — Há uma possibilidade — corrigiu Bakou, brindando Weiner com um olhar glacial. Weiner estremeceu e calou-se. Conhecia a fama de Bakou. Com um sorriso nos lábios ele apertava o gatilho de uma arma e matava friamente. — Há uma possibilidade — repetiu Bakou, lentamente, quando percebeu que Weiner se aquietara, afinal. — Devemos investigar, portanto. — Então que assim seja — decidiu Hamsher. — Pressione seus agentes, Marbur. Receberá toda a colaboração que solicitar. A prioridade será decretada imediatamente. Quero uma nova reunião tão logo chegue a algo positivo. Balou estará a serviço da UDL. Estou certo que vocês dois desenvolverão a melhor estratégia para atingirmos nossos objetivos. MATERIAL SUSPEITO Bakou acompanhou Marbur até a sala da UDL. Caminhou às costas do superintendente, fitando sua nuca com um olhar neutro e, talvez por isso, intimidador. Jamais se poderia saber o que um homem como Bakou pensava. Naquele mesmo momento ele poderia estar se recordando de certa recepcionista de um hotel de Londres, com quem passara uma semana inesquecível num minúsculo apartamento de Charing Cross. Ela era hábil em preparar pizzas e comidas congeladas e insuperável na maneira maravilhosa de fazer amor. Possivelmente jamais saberá que abrigara em sua casa, por uma semana, o mais perseguido espião estrangeiro em território inglês, responsável direto pela morte de um contraespião particularmente eficiente que se aproximara demais de uma descoberta sobre certa rede de informações de importância vital para a Primeira Divisão da KGB. Marbur apontou-lhe uma cadeira. Bakou sentou-se, abriu o sobretudo e retirou uma cigarreira. Prendeu o filtro de um dos cigarros entre os dentes e ficou empurrando-o de um lado para outro com a ponta da língua, enquanto pensava. Marbur encarou-o. — Sinto que algo o preocupa, Bakou. De que se trata? — indagou, sondando-o. — Qualquer coisa não se encaixa. Há um ponto falho nisso tudo, Marbur. Por que os americanos usariam um código ultrapassado incluindo na mensagem a chave para que pudesse ser decifrada, justo num período de turbulência solar, quando suas comunicações poderiam ser interceptadas com maior facilidade? — Bakou retrucou, mais como se expusesse as perguntas a si mesmo, procurando fechar um elo frágil naquela cadeia de fatos que lhe fora apresentada. — Pensei nisso também. A primeira hipótese é a mais viável: Eles não sabem que possuímos as chaves de alguns de seus códigos, devidamente catalogados em nossos computadores. Segunda: num período tão impróprio, certamente podem ter julgado que não nos daríamos ao trabalho de permanecer na escuta, o que seria também plenamente aceitável. — O assunto é de segurança máxima. Jamais eles se deixariam guiar por suposições, Marbur — interrompeu-o Bakou, ainda pensativo. — Há uma terceira hipótese também. Esse foi o período escolhido por Oliver Clark para viajar. Você deve saber melhor do que eu que, nesses assuntos burocráticos, os americanos são exigentes. As férias de Oliver Clark se iniciavam nesse período e não poderiam ser antecipadas ou adiadas, considerando a importância de seu trabalho e de sua necessidade psicológica de relaxar. Juntando tudo isso, temos mais do que o bastante para acreditar na veracidade da mensagem interceptada. Oliver Clark entrou em férias. É um funcionário prioridade Gold, intervalo cinco. A notícia de sua viagem tem de ser transmitida às embaixadas e postos de segurança para que tomem as providências necessárias. No entanto, há o problema da turbulência solar que afeta as comunicações. Um código novo poderia ser arriscado, mas temem que captemos a mensagem e que possamos decodificá-la a tempo. Usam, então, um código ultrapassado, com sua chave de segurança, sem suspeitar que isso nos permitiria decodificá-la, pois a temos em nossos computadores. Precisavam fazer isso, isto é, incluir a chave. De que outra forma as embaixadas e postos de segurança conseguiriam traduzir o antigo código? Usaramno sem pestanejar. Analisando as probabilidades de que ele fosse decifrado, chegaram à mesma conclusão que nós: seriam necessárias cinco semanas de trabalho de um computador especial para chegar ao segredo. Quando isso acontecesse, Oliver Clark já teria terminado suas férias. Não contavam, porém que esse código nos fosse acessível em função da chave de segurança que eles precisaram incluir — concluiu Marbur, encarando Bakou com confiança. O agente especial, no entanto, ostentava a mesma fisionomia de antes, como se alguma coisa o incomodasse e toda a sequência de deduções de Marbur não o tivesse impressionado. O superintendente da UDL demonstrou uma ligeira irritação, percebendo que não seria fácil trabalhar com alguém tão importante como Bakou por perto. Perturbava-o saber que o outro possuía fortes influências na Primeira Divisão. Agradá-lo, portanto, seria abrir caminho a essas mesmas influências. Isso, de certa forma, poderia ser difícil, caso Bakou resolvesse adotar uma conduta pessoal de investigação, relegando o trabalho da UDL a um plano secundário. — Estou nisso há muito tempo, Marbur. Sei o que significa exatamente a expressão segurança máxima. Não se admitem hipóteses. Foge-se das meras suposições. Desconfia-se de todas as possibilidades. Estudam-se todas as probabilidades. É como construir uma cerca de palitos de sorvete ao redor de um rato assustado, tentando barrar-lhe o caminho e encurralá-lo. É um trabalho estafante. — Oliver Clark decidiu viajar e... — ia dizendo Marbur. — Suas férias estavam marcadas com antecedência. Férias são marcadas com antecedência. Possivelmente exigiram-lhe as datas da viagem, o roteiro, tudo. Nada pode ser improvisado nesse campo. — Em resumo, quer me convencer que tudo o que temos é um enorme zero à esquerda? — indagou Marbur, quase com rispidez, traindo sua irritação. — Temos alguma coisa — Bakou afirmou com serenidade. — Não sei, porém, o que temos. — Kurt Stadt já seguiu para Frankfurt. Sua missão será acompanhar Oliver Clark e vigiá-lo. Enquanto isso, vamos elaborar questões específicas para nossos agentes nos Estados Unidos e colaboradores das outras seções. Vamos ter em breve um dossiê completo de Oliver Clark. — Vou ajudá-lo nisso, Marbur. Meus amigos em Washington nos informarão tudo sobre a seção onde ele trabalha. Isso pode ser de vital importância — Bakou disse e Marbur confirmou com um aceno de cabeça, demonstrando certa satisfação ao perceber que, apesar das dúvidas, Bakou se dispunha a agir com seriedade profissional. *** O Serviço de Transmissões e Escuta do CIR, Escritório de Espionagem e Pesquisa do Departamento de Defesa Norte Americano, ocupa uma enorme sala no subsolo de uma das seções do Pentágono. Ali, ao longo de complicados aparelhos de radiotransmissão, enfileiram-se homens e mulheres, com fones de ouvido, atentos ao que ouvem, manipulando botões, acionando gravadores, fazendo girar poderosas antenas instaladas num ponto de segurança total na Base Garrard, nos arredores da cidade de Washington, capital do país. Os aparelhos são divididos em seções, identificadas por plaquetas de acrílico coladas ao concreto, acima dos feixes de fio que correm ao longo da parede. A seção Verde encontra-se sintonizada no Sul da Europa. A Amarela, no norte, a Marron, nos países orientais e assim por diante. Cada seção é dotada de, no mínimo, cinco aparelhos de escuta e transmissão. Algumas seções, como a russa, possuem um número maior, justificado pela presença russa num amplo território. Angus Hyde era o responsável pelas comunicações de alta prioridade e segurança máxima. Acionava o computador e codificava as mensagens que eram, depois, entregues à seção específica para transmissão. Seu trabalho compreendia a escolha do código e a destruição da mensagem original, o que era feito numa máquina picadora de papel. Esta reduzia uma folha num punhado de tiras tão finas quanto um fio de cabelo. Estas, por sua vez, eram imediatamente incineradas. Era um trabalho importante e Angus se orgulhava dele. Era um americano comum, de rosto largo, com pouco mais de um metro e sessenta, o que lhe dava a aparência de um boxeador. Durante o serviço militar, havia praticado o boxe e chegara às finais do campeonato de sessenta e cinco, sendo derrotado por um descuido lamentável. Seu oponente o atraíra para uma armadilha comum, fingindo-se abalado com um golpe recebido. No afã de levá-lo imediatamente a nocaute, Angus avançou resolutamente, preparando e soltando sua demolidora direita. Comentara, mais tarde, que se vira desequilibrado ao socar o vazio. Em seguida, vira apenas uma veloz massa marrom rumando para seu rosto, apagando-o por completo com o impacto. Deixara o boxe para sempre depois daquela luta, mas não o exército. Gostara da experiência e iniciara uma carreira que rapidamente o levou a West Point, onde se graduou com distinção, especializando-se em comunicações. Cinco anos depois, assessorava o chefe da Seção Europa-Norte. Um ano mais tarde assumia o posto de Operador de Código, que conservou por apreciar realmente. Era um homem de hábitos simples, muito caseiro e amigável. Gostava de se reunir com os amigos e preparar um churrasco que lhe fora ensinado por um chileno que, certa vez, fizera um estágio avançado no setor de comunicações, alguns meses antes da queda de Allende. Às vezes exagerava na bebida, mas nada a ponto de preocupar a segurança, já que se mostrava sempre extremamente discreto em relação a assuntos de trabalho. Naquela manhã, quando assumiu seu posto para cumprir o seu turno, foi procurado pelo encarregado da seção alemã. Era Artur MacBeth, um rapaz de rosto jovial e afeminado, o que lhe trazia muitos aborrecimentos e gozações, principalmente de Sherman, o encarregado do turno da noite, a quem Angus substituía pela manhã. Artur cumpria um turno de quatro horas, das dezesseis às vinte horas, depois outro, das quatro às oito da manhã, diariamente. De forma alguma apreciava Sherman, evitando a qualquer preço trocar uma palavra que fosse com ele. Suas relações eram as mais ríspidas possíveis. Sherman se aproximava, quando havia algo para Artur transmitir, e depositava a mensagem codificada no aparador. Certa vez, no início, ao fazer isso, inclinara-se e alisara o pescoço de Artur, enquanto lhe murmurava palavras obscenas ao ouvido. Artur retirara rapidamente os fones de ouvido e colara um deles à orelha de Sherman, abrindo todo o volume de um canal de estática. Sherman recuou ensurdecido e, depois daquilo, jamais voltou a molestá-lo, a não ser com piadas sobre homossexuais que costumava contar à noite, quando o trabalho de escuta se mostrava improdutivo e o pessoal fazia uma pausa para um café em conjunto, deixando os gravadores ligados. — Alguma coisa errada? — indagou Angus ao rapaz, quando este se aproximou. — Veja esta mensagem. Captei-a no primeiro turno. Deixou-me curioso porque, apesar das indicações, não foi transmitida por nós — Artur disse, passando-lhe um papel. — Refere-se a uma prioridade Gold, intervalo cinco, em férias. Seu nome é Oliver Clark. É estranho porque há quinze dias, no prazo regulamentar, transmitimos a mesma mensagem, com outro código. Angus apanhou o papel e o leu. Por instantes ficou pensativo. Depois riu e amassou-o, balançando a cabeça de um lado para outro, como se tudo não passasse de uma grande piada. — Não se preocupe, está tudo bem. Algum imbecil deixou um canal do banco de memória aberto e retransmitiu a mensagem. Foi um bom trabalho, Artur, apesar de tudo. Louvo sua dedicação. — Mas não se trata de uma prioridade em trânsito, Angus. Se a mensagem for interceptada, principalmente considerando as condições de ontem... — Você se preocupa demais, Artur. Já lhe disse, está tudo bem. É uma chave antiga, jamais seria decifrada a tempo. — Mas devo incluí-la em meu relatório, pois... — Apague-a de seu relatório. Acredite em mim, não é mesmo importante, Artur — assegurou Angus e o rapaz acabou concordando, já que tinha em Angus seu único amigo naquela seção. Assim que se afastou, Angus adotou uma fisionomia preocupada. — Se aquele bastardo soubesse dos problemas que isso poderia causar... — murmurou e se voltou, ao ouvir o alarme, para receber a mensagem que descia pelo tubo pneumático e que deveria ser imediatamente codificada e transmitida. — Como é possível? — indagou-se, quase admirado, depois tratou de iniciar seu trabalho. Datilografou alguns caracteres no papel que subia pelo cilindro, vindo de uma botina de formulário contínuo acoplado ao computador, na parte de trás. Parou. Apanhou o papel que Artur lhe trouxera e que estava amassado junto ao aparador da máquina picadora. Desamassou-o e releu-o. A preocupação vincou sua testa. Depositou-o num escaninho a sua direita, onde se lia: Material de relatório. *** Às sete horas de uma manhã fria, o Boing 747 da Lufthansa pousou no moderno e recém-construído aeroporto de Frankfurt, cujas dimensões, projetadas para o ano 2000, impressionavam o viajante, que enfrentava distâncias enormes até se ver livre do lado de fora, após passar pela Ala de Trânsito. A sua disposição, então, teria uma das mais agradáveis cidades alemãs, à margem do Main, com possibilidade de traçar seu roteiro turístico e comercial com toda a comodidade e rapidez. Oliver Clark estava particularmente interessado numa visita ao Vale do Reno, descendo pelo rio, numa viagem de três dias, a partir de Colônia. Conheceria a velha Catedral de Xantem e Worms, principalmente. Pretendia, também, ir a Stuttgart para, dali, visitar a Floresta Negra, a quarenta milhas a oeste, passando por suas montanhas escuras e suas estâncias de águas térmicas. Tudo isso, porém, ficaria para o dia seguinte. Reservara o primeiro dia para instalar-se no Frankfurt Plaza Hotel e para descansar da viagem. No táxi, fazendo o percurso de quinze minutos até o hotel, Oliver retirou um cartão dourado de sua carteira e examinou por instantes. Depois o devolveu ao bolso e ficou apreciando a viagem. O cartão em seu bolso era um inofensivo cartão de crédito de uma loja desconhecida nos Estados Unidos, a Gold System. Poucas pessoas o portavam, naquele momento, fora do país. Fora uma engenhosa criação do OIR. Aquele cartão deveria apresentado de cinco e cinco dias a uma embaixada ou posto de segurança, juntamente com o passaporte de seu portador. Se o perdesse, Oliver deveria entrar imediatamente em contato com a embaixada americana mais próxima e preencher uma série de formulários confidenciais. Em menos de uma hora teria uma segunda via do cartão, sendo despachado com recomendações de cautela pelos funcionários que o atendessem. No hotel, algum tempo depois, identificou-se e foi guiado até seu quarto, uma agradável suíte com janelas para a Hamburger Allee. O aquecimento era perfeito. Os móveis eram modernos e funcionais. Um tapete felpudo, num leve tom marrom, combinava com as paredes de um bege repousante e com as cortinas da janela. Uma colcha de lã natural cobria a cama. Ao fundo, uma porta conduzia ao banheiro prático. Oliver testou a água e julgou-a excelente. Por momentos pensou na jovem aeromoça alemã que se incumbiria de mostrar-lhe a cidade durante o resto da tarde. Isso queria dizer que todo seu tempo até a noite estaria preenchido. Não deixava de ser um programa interessante. Despiu-se, tomou um banho e barbeou-se. Usou sua loção Newa preferida, penteou-se com esmero, depois desfez as malas, caminhando nu pelo quarto. Escolheu um terno marrom, finalmente, talvez influenciado pelas cores do aposento. Vestiu-se, depois examinou seu sobretudo escuro, à procura de alguma possível mancha. Como o encontrasse perfeito, vestiu-o e foi abotoar-se diante do espelho. Consultou o relógio. Passava um pouco das oito e o desjejum estava sendo servido no salão de refeição. Dirigiuse para lá. Quando passou pelo saguão, um homem junto à portaria voltou-se e olhou em sua direção, após receber uma informação do rapaz do outro lado do balcão. O homem agradeceu e seguiu, sempre olhando Oliver, na direção de uma cabine telefônica. Fez uma ligação, sempre de olho na porta do salão onde Oliver entrara, depois saiu e caminhou para lá. Kurt Stadt iniciava sua primeira missão como agente de contraespionagem. Talvez isso justificasse um ligeiro nervosismo, visível nele. O nervosismo desapareceu, no entanto, quando se sentou à mesa ao lado daquela ocupada pelo americano, ansioso agora para testar a eficiência de seu curso intensivo de inglês. Antes da abordagem, no entanto, precisava aguardar ordens de Marbur. Falara com ele ao telefone, dizendo-lhe que o pássaro chegara, coisa que Marbur entendeu perfeitamente, respondendo que estava pesquisando o mercado e verificando o valor da mercadoria, antes de autorizá-lo e iniciar qualquer conversação. *** Passado o primeiro período de duas horas, Angus deveria preencher um formulário, encaminhando-o ao seu superior imediatamente, com as cópias cifradas das mensagens expedidas, bem como o registro de qualquer ocorrência digna de nota. Por momentos ele hesitou, com o papel amassado numa das mãos e o formulário na outra. Decidiu-se, afinal, anotou o número da mensagem no registro de ocorrências de seu relatório, finalizando com a seguinte observação: material suspeito. Acondicionou tudo num cilindro de acrílico e despachou-o pelo tubo. Após um leve chiado, o cilindro desapareceu, absorvido pela sucção, percorrendo um longo caminho pelo subsolo do Pentágono, até subir para a sala do superior imediato de Angus. Ali permaneceu no receptáculo até que a secretária o apanhasse com aquele ar de enfado que a rotina punha no rosto das pessoas. Retirou os papéis do cilindro, bateu um carimbo no relatório e levou-o para a mesa de Cyrus Sarasse. Este a apanhou tudo e apôs sua assinatura no alto, sob o carimbo que dizia: "arquive-se". Ia começar a leitura, quando o telefone tocou. Era o próprio diretor da OIR, ordenando-lhe que todas as mensagens transmitidas no dia anterior fossem retransmitidas, pois diversas embaixadas reclamavam de não tê-las recebido com exatidão em virtude da confusão ocasionada nas comunicações pela turbulência solar. Cyrus desligou em seguida e foi até a secretária, ditando-lhe um memorando onde especificava as ordens ao Serviço de Transmissão e Escuta. Depois foi até um canto da sala e apanhou um café. Tomou-o sem pressa. Retirou seu maço de cigarros e notou-o vazio. — Sally, você tem cigarros? — indagou à secretária. — Eu não fumo, senhor. Já devia saber disso — explicou ela, com um sorriso forçado. — Oh, sim, é verdade — ele falou, deixando a sala. Sally datilografou o memorando e levou-o para a mesa de Cyrus. Viu a assinatura no relatório recém-chegado e levou-o para a microfilmadora, destruindo-o depois. A microficha foi para o arquivo top-secret, à prova de guerra nuclear, embutido na parede de concreto. Quando saía, lembrou-se do memorando que acabara de datilografar, retornou aos arquivos e apanhou os filmes das cópias cifradas de todas as mensagens expedidas no dia anterior, providenciando cópias e deixando-as junto ao memorando. Cyrus chegou em seguida, baforando avidamente. Assinou o memorando e cumprimentou-a por se antecipar quanto às mensagens. Sally levou tudo para o tubo pneumático, despachando-o para o STE. O cilindro de acrílico sumiu pelo tubo e, momentos mais tarde, caía no receptáculo junto ao computador onde Angus trabalhava. Leu o memorando. A turbulência confundira todas as mensagens do dia anterior. Em parte isso era bom. Afinal, aquela mensagem suspeita também se perdera, fragmentada no espaço e confundida com outras tantas que cruzavam os céus de satélite a satélite. Separou as mensagens por seções e foi distribuí-las. O problema estava resolvido e não tivera maiores implicações. SEQUESTRO Uma chuva miúda e fria caía sobre a cidade, quando o carro estacionou num ponto qualquer da Zeppelin Alle, defronte do Palmen Garten. Um casal atravessou rapidamente a calçada, cobertos pelo sobretudo do homem. Galgaram alguns degraus de um prédio de tijolos aparentes, de apenas três andares. Junto à porta, a garota revirou a bolsa à procura da chave. Entraram logo em seguida e fecharam-na atrás de si, no momento em que um táxi estacionava na rua e um homem descia apressadamente. Oliver e Ellis Weber atravessaram um pequeno hall, junto à portaria vazia àquela hora, e rumaram até a escada que os conduziu ao primeiro andar. Ali dobraram à direita e caminharam rapidamente pelo corredor. Ellis abriu, então, a porta do apartamento 1-D e entraram. As luzes se acenderam. — Um belo apartamento! — comentou ele, examinando os móveis, as paredes e as cortinas, tudo com um toque feminino inconfundível onde os matizes do rosa e do azul se mesclavam com bom gosto. Um enorme sofá, coberto de almofadas, estava posicionado estrategicamente diante da lareira, sobre cuja cornija se viam algumas garrafas de vinho e uma de uísque, junto de uma porção daquelas miniaturas distribuídas nos aviões. Oliver tratou de acender a lareira, depois de retirar o sobretudo e o paletó, dobrando as mangas da camisa. Ellis desapareceu por uma porta, de onde retornou, pouco depois, com um prático roupão preso à cintura por um cordão de tecido. Trazia uma toalha e esfregava os cabelos, embora não os tivesse molhado tanto quando correram do Express Cabaret até o carro que Oliver alugara naquela manhã. Ela retocara o batom dos lábios e estava descalça. Esse detalhe excitou Oliver, que fixou seu olhar nos pés delicados da garota. Ellis sorriu e atravessou a sala, indo até a cozinha. Abriu um armário sobre a geladeira e retirou um pacote. Por algum tempo ouviu-se o ruído de pratos e o inconfundível barulho de uma faca terminando de cortar e batendo na louça. O fogo se acendera com facilidade. Havia um piloto a gás que foi acionado e as chamas crepitaram, lambendo a casca rugosa de um tronco parcialmente chamuscado. Ellis retornou da cozinha e depositou uma bandeja com pedaços de queijo e pão de centeio cortado em fatias pequenas. Apanhou, depois, uma garrafa de vinho sobre a cornija da lareira e, antes que começasse a abri-la, Oliver se antecipou, tomando-a delicadamente de suas mãos e desarolhando-a. Ela estendeu-lhe dois copos que foram servidos. Deixou a garrafa junto à bandeja e se sentaram no tapete, apoiando as costas no sofá. — Com as almofadas vai ficar mais confortável — Ellis disse, derrubando duas ou três sobre ele. — Sim, claro — concordou com um sorriso, acomodando-se melhor. Suspirou. Fora um dia inesquecível. Haviam almoçado no Kupperfane, um restaurante sofisticado e caro. Depois haviam visitado a Hauptwache, onde se localizam as maiores lojas da cidade. Ali Oliver comprara um presente para Ellis: uma cara embalagem importada da essência Newa para mulheres, que ela apreciara muito e que estava usado agora. Rodaram pela cidade durante o resto da tarde. Jantaram em Sachsen Hausen, provando o recomendado Appelwool, o delicioso vinho de maçãs alemão. Terminaram a visita à cidade no Express Cabaret, mas a noite realmente começava, para os dois, naquele momento. A chuva batia na janela e escorria em pequenos filetes que desapareciam nos reflexos da luz que vinha da rua. O fogo crepitava e, com as luzes apagadas, provocava um jogo de sombras sugestivas em seus rostos e corpos. O calor do vinho prometia emoções intensas, já que, durante toda a tarde e parte da noite, uma insinuante tensão erótica brotara e crescera neles a cada olhar trocado, em cada roçar de seus corpos. Lá fora a cidade corria apressada sob a chuva. Diante do prédio, um homem se ocultava sob uma marquise, olhando a janela parcialmente iluminada, com reflexos avermelhados que indicavam uma lareira acesa. Kurt Stadt apertou a gola do sobretudo ao redor do pescoço e afundou ainda mais o chapéu na cabeça. Possivelmente pegaria uma pneumonia e isso, no início de sua carreira de contraespião, seria prosaico demais. Recebera um treinamento rigoroso. Enfrentara condições subumanas de vida, nos testes de sobrevivência. Tudo, porém, continha certa dose de emoção e aventura, como a passagem para um mundo novo e movimentado. Ninguém, porém, jamais lhe dissera que um espião, por força de seu trabalho, teria de ficar imóvel sob uma marquise, numa noite de chuva, observando o trânsito e uma janela parcialmente iluminada. *** Nos três dias que se seguiram, enquanto Oliver Clark realizava um agradável cruzeiro pelo Vale do Reno, no escritório da UDL, na Alexander Platz, em Berlim Oriental, fora acionada uma operação para reunir o máximo de informações possíveis acerca dele e de seu trabalho. De Washington veio sua ficha pessoal e esparsas informações sobre seu trabalho. Soube-se que se formara com louvor num curso de programação e operação de computadores ultrassofisticados. Todas essas informações iam se juntando e formando um painel da vida daquele homem. Esse trabalho era feito por Bakou e Marbur, auxiliados por mais dois ou três agentes qualificados. Um dos itens interessara particularmente a Bakou, que o lera inúmeras vezes, procurando, talvez, um ponto falho ou uma explicação plausível. Marbur percebera isso, mas nada indagara. Estava aprendendo a conhecer o estilo do outro. — Todos os homens com prioridade Gold e intervalo cinco têm suas férias comunicadas a embaixadas e postos de segurança, quando pretendem viajar durante elas, com quinze dias de antecedência — comentou Bakou. — Não entendi — Marbur falou, deixando de lado o papel que pretendia ler e que falava de um intrincado plano de transferência de numerário através de uma rede de computadores ligados via satélite. — Quinze dias antes de Oliver Clark entrar em férias, seu roteiro de viagem estava pronto e a mensagem foi transmitida a todos os postos e embaixadas. Sendo assim, não há uma explicação plausível para a mensagem que foi captada, justo no dia em que ele iniciava a viagem. Os americanos sempre foram rigorosos em questão de segurança e burocracia. Jamais deixariam para a última hora algo tão importante como a comunicação da viagem de férias de um homem tão especial como Oliver Clark. — Creio que isso vai esclarecer tudo — disse Marbur, apanhando uma pasta e retirando algumas folhas. Bakou apanhou os papéis e começou a ler. Os vincos em sua testa, porém, não se desfizeram. Marbur o notou. — A turbulência solar deve ter provocado mais do que uma simples confusão nas mensagens. Com certeza afetaram também seus computadores. De alguma forma, acionaram uma mensagem que já fora transmitida antes, com outro código, a cuja chave não temos acesso e, por isso, não nos alertou. Observe que eles perceberam o problema, pois retransmitiram todas as mensagens daquele dia, excluindo aquele sobre Oliver Clark. Bakou observou, pela leitura daqueles papéis, que diversas mensagens não haviam sido decodificadas ainda. A explicação poderia estar numa delas. — Ainda assim acho muito suspeito... Gostaria de conhecer um pouco mais sobre o STE deles, se seus computadores trabalham com bancos de memória ou não. Talvez seja explicável o fato de, ao acionar uma mensagem ou digitá-la, o operador, inadvertidamente fazer entrar em ação o banco de memória e uma mensagem indesejável ser transmitida. Acho que devemos pensar seriamente em introduzir um agente nosso nesse setor com a máxima urgência... — ponderou Bakou. — Já que o assunto sobre computação o fascina tanto, leia isso. Acaba de chegar e me parece fantástico — Marbur sugeriu, passando-lhe o papel que pretendia ler minutos antes. O agente russo começou a ler e os vincos de sua testa desapareceram imediatamente, substituídos por um ar de estranha excitação. Seus olhos miúdos brilharam. Ele sorriu e bateu a mão espalmada sobre a mesa. — Fantástico! Engenhoso! Precisamos confirmar. De quem veio esta informação? É importante demais para não ser confirmada — ele disse e Marbur apressou-se em respondê-lo. — Veio de um agente infiltrado num alto posto do Departamento do Tesouro Americano. É raramente acionado, segundo informado pela chefia da Primeira Divisão, mas sempre surpreende com informações aproveitáveis. — Mande uma mensagem pedindo confirmação. — Agora mesmo — prontificou-se Marbur, rabiscando algo numa folha de papel e passando a um dos agentes ali, com ordens específicas. O agente se retirou imediatamente da sala e se dirigiu à Central de Comunicações. Conforme solicitado por Marbur, foi acionado o botão de prioridades máxima, que garantia um canal aberto e resposta imediata. A mensagem foi transmitida. Dez minutos depois a confirmação foi feita. O agente apressou-se em levar o resultado a Marbur. — Confirmada! — disse ele a Bakou. O russo ficou em silêncio, fitando os papéis diante de si. Tinham em mãos um dos segredos mais importantes desde a notícia da viagem de Oliver Clark. Tinham o esquema do sofisticado sistema de pagamento dos agentes estrangeiros a serviço dos Estados Unidos. — Vamos trabalhar nisso aqui imediatamente. Para isso vamos precisar de Oliver Clark. Acione Kurt. Ordene uma reunião com Hamsher e Rokim. Deixe Weiner de lado. Ele só atrapalha. Precisamos saber também o que está sendo feito em Moscou a respeito desta descoberta. Uniremos esforços, aproveitando tudo que já tiverem obtido. Precisamos, também, fazer alguns contatos imediatamente — falou o russo e seu tom de voz era excitado ao extremo. *** Oliver Clark havia planejado seu roteiro para aquele dia. Visitaria o local mais importante de Colônia: a catedral gótica, salva milagrosamente da destruição que reduziu a escombros a cidade, durante a Segunda Guerra Mundial. Tencionava, também, ir até Glocken Gasse, atrás da Ópera, mais precisamente no número 4711, e comprar um frasco tradicional Água de Colônia. Ellis seguramente apreciaria o presente e seria um modo de agradecê-la pela noite maravilhosa de alguns dias atrás. Estava em seu quarto e terminara de se vestir, quando bateram. Distraidamente foi abrir. Um homem jovem ainda, envergando um sobretudo ligeiramente amarrotado, avançou, empurrando-o para dentro. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o desconhecido apontou-lhe uma Makarov soviética de nove milímetros e ordenou-lhe silêncio com o sinal característico. Fechou a porta atrás de si e fez novo sinal, ordenando que Oliver se voltasse. O americano obedeceu relutante. Kurt ergueu o braço para golpeá-lo na cabeça, mas não o fez. Guardou a arma no coldre sob a axila esquerda e segurou os braços de Oliver, puxando-o para trás. Empurrou-o até a cama. Retirou um rolo de esparadrapo do bolso do sobretudo e enrolou os pulsos de Oliver. Depois rasgou um pedaço e colou-o sobre a boca do americano. Em seguida, retirou do bolso interno do sobretudo um pequeno estojo, semelhante a uma cigarreira de metal. Abriu-o. Havia uma seringa hipodérmica e uma pequena ampola, com um líquido levemente azulado. Estendido na cama, Oliver voltara a cabeça para observar os movimentos de seu agressor. Havia pânico em seus olhos. *** O grupo estava de novo reunido na sala ampla e nua. Começara a chover naquela manhã e a temperatura descera bastante. Os últimos a chegar foram exatamente Bakou e Marbur. Assim que entraram, o chefe supremo da WEIMAR e o chefe da seção local da KGB olharam-nos com ansiedade, já que a reunião significava que um importante progresso havia sido conseguido. Bakou não os fez esperar. — Rokim, expedimos uma mensagem à Primeira Divisão, indagando-lhes o que estava sendo feito em relação à descoberta sobre o sistema de pagamentos dos americanos. Informaram-no de algo? — Sim, recebi instruções para deixar em suas mãos. Estão mandando tudo que já descobriram sobre o assunto. — Ótimo! — exclamou o russo, com satisfação. — Vou esclarecer o significado disso para nós, recapitulando desde o início. Temos enfrentado problemas no setor bélico, pois, nos últimos tempos, os americanos vêm projetando sistematicamente novas contra-armas que se opõem a nossas descobertas nesse campo. A suposição é de que existe um agente deles em nosso meio, mas não há como chegar até ele. Não podemos afastar todos os envolvidos no processo, pois isso paralisaria o setor de pesquisa de novos armamentos. Há muita gente envolvida, com acesso aos planos, desde os projetos até a fase final de testes. Torna-se praticamente impossível descobrir em que ponto da fabricação está o delator. Investigações foram feitas, mas mostraram-se infrutíferas. Temos agora, porém, ao nosso alcance, um funcionário do Departamento do Tesouro Americano, cuja função especifica é pagar agentes estrangeiros, através de um complicado sistema, sofisticado o bastante para desafiar a imaginação mais fértil. Há um computador especial no Tesouro Americano, ligado ao National Bank, de Washington, e ao Richemond, creditando valores diretamente na conta numerada do agente a ser pago. Imediatamente entra em ação um sistema de comunicação que notificará o agente do crédito efetuado. Temos de chegar a esse sistema. É o modo de apanharmos o traidor. — E Oliver Clark nos ajudará nisso? — Hamsher indagou. — Sim, ele poderá nos ajudar, se o convencermos. Além disso, com as informações que ele nos fornecer, nossos cientistas poderão desenvolver um meio de obtermos uma ligação com o National Bank e o Richemond. Acionaríamos uma transferência. Oliver deve saber os detalhes para tanto. O agente que nos interessa seria notificado da transferência. Nós estaríamos a postos, no final da rede de comunicação, para apanhá-lo e julgá-lo. Um silêncio momentâneo caiu sobre a sala. O ruído da chuva na janela e o som distante de uma sirene policial puderam ser ouvidos. A temperatura caía vertiginosamente, indicando a possibilidade de uma nevasca. — Parece-me tão simples — comentou Rokim, fascinado. — Mas muito mais completo do que parece, embora seja nossa única chance de chegar ao traidor, antes de afirmarmos que isso poderá ser possível. Oliver Clark é o homem-chave para nós. É perito em computadores e opera o computador do Tesouro Americano. Talvez, mesmo, tenha trabalhado pessoalmente em sua programação — Bakou disse. — E onde está ele agora? — Rokim indagou. — Em Colônia, num hotel, com um de nossos agentes — apressou-se Marbur em informar. — Vamos trazê-lo para cá, então — decidiu Hamsher. O HOMEM DO DESERTO Pouco se sabia sobre um homem chamado Trianon, a não ser que era um agente especial e morava em algum ponto do Arizona, numa fazenda afastada, praticamente sem vizinhos. Diziam que ele possuía uma motocicleta Jerkins especial, sob encomenda, própria para a areia e treinava tiro ao alvo quase que diariamente. Comentavam, no CIR, que ele mantinha um ajudante japonês, com o qual se exercitava nas artes marciais e que mandara fazer, para seu uso especial, uma pequena maleta cheia de truques, que seguramente desafiava a imaginação do próprio criador de James Bond. As secretárias comentavam que sua casa era toda eletrônica e que um batalhão de mulheres o servia, proporcionando-lhe inúmeros e inenarráveis prazeres. Os homens mais invejosos do Departamento o chamavam de bêbado. Seus superiores o respeitavam. Todos o temiam. Ele jamais falhara. Trianon era um homem misterioso e introvertido, que criava cactos numa cabana perdida no deserto, a cinquenta milhas do povoado mais próximo. Possuía, na verdade, uma Kawasaki 500, que comprara de segunda mão. Um velho gerador funcionava diuturnamente, fornecendo energia. Na sala confusa da cabana havia um radiotransmissor e uma geladeira. No alpendre, pendurado num prego enferrujado, um rádio de pilhas tocava música caipira. Sentado numa velha cadeira de balanço, Trianon terminava de beber a garrafa, depois a atirava para longe. Sacava sua arma e disparava, arrebentando-a, depois voltava para o interior da cabana e apanhava outra. Essa rotina se repetia ininterruptamente. Sua barba crescia. Sua pele amarelava-se. Seus olhos viviam constantemente injetados. Era como uma sombra, alimentado apenas pelo desejo extravagante de beber e arrebentar garrafas. Media em torno de um metro e sessenta e cinco. Os cabelos lisos, caídos para frente, começavam a rarear no alto da cabeça. Parecia magro e fraco, mas músculos definidos se torciam sob sua pele. Seus olhos eram acinzentados. O nariz era adunco, como o do índio de madeira da propaganda de charutos. Suas orelhas eram miúdas, mas os ouvidos eram aguçados ao extremo. Sua boca era ligeiramente retorcida para a esquerda, como se ele vivesse constantemente crispando-a com nojo de algumas coisas. Seus lábios grossos inchavam-se pelo excesso de bebida e pela falta de uma alimentação adequada. Ninguém sabia sobre sua vida, mesmo seu superior imediato. Sabiam apenas que bastava acionar um prefixo de rádio e em breve ele estaria em Washington, pronto para entrar em ação. Trianon era um agente interno, com a missão especifica de investigar o desaparecimento de prioridades de intervalo cinco. Quando acionado, aguardava três dias para se apresentar. Casos aconteciam de a prioridade ter perdido o cartão ou, por um problema qualquer de trânsito, ter ficado retido num aeroporto ou outro local, impossibilitado de se apresentar à embaixada ou posto de segurança. Durante os três dias que se seguiam ao alerta do desaparecimento, Trianon mudava radicalmente seu modo de vida. Se antes disso chegasse um cancelamento de alerta, ele retornava à rotina e à bebida. E se o alerta fosse confirmado, estava pronto. A força muscular de Trianon era espantosa, considerando seu tipo físico quase franzino. Ninguém sabia como era seu treinamento pessoal. Muitos o atribuíam ao pseudoauxiliar japonês, que o treinava. Ninguém jamais vira, porém, aquela figura estranha, correndo pelo deserto, quase o dia todo, vestindo uma roupa esquisita e pesada. Trianon a criara especialmente para si, costurando a lona dupla, preenchendo os espaços vazios com areia. Era como um acolchoado maciço que ele vestia e carregava em longas caminhadas pelo deserto, após haver se encharcado de água. O peso era brutal e o calor infernal derretia até a última grama de gordura acumulada durante a beberagem. Os músculos reagiam fantasticamente, suportando o peso e o excesso que chegava ao exagero. Em dois dias ele recuperava o condicionamento físico. No terceiro dia, exercitava-se nos diversos aparelhos que improvisara no velho celeiro. Era um homem novo, quando tomava a moto e rumava para Williams, onde um helicóptero o esperava para levá-lo dali para Washington. No quarto dia, pela manhã, quando o Cel. Foster chegasse para seu expediente diário, Trianon estaria a sua espera, sentado diante da secretária, que devoraria com olhares intrigantes aquele estranho exemplar do sexo masculino, sem idade definida. *** Em Colônia, Kurt efetuara uma ligação e falara com Marbur. Feito isso, tratou de providenciar imediatamente o necessário para a viagem. Retornou ao quarto onde estava Oliver Clark, adormecido sob os efeitos do tranquilizante. Retirou-lhe a mordaça de esparadrapo e acomodou-o na cabeceira da cama. Observou-o, olhando-o de frente. Aproximou-se e esbofeteou-lhe o rosto diversas vezes. Oliver abriu os olhos num sobressalto. Kurt alisou-lhe os cabelos e recuou, apanhando uma câmara fotográfica. — Oliver Clark! — chamou. O americano levantou a cabeça e foi ofuscado pelo brilho da luz. Apertou os olhos com força e abriu a boca, movendo-a como se tentasse falar. A sensação exata que deve ter sentido foi a de se ver numa cena de câmara lenta e sua voz demorasse uma eternidade para chegar aos lábios. Era esse um dos efeitos do Nevral 50. Observando-o, Kurt teve a impressão de assistir a um filme onde houvera uma falha na dublagem e a personagem focalizada movia os lábios muito antes de o sim de sua voz tornar-se audível. Antes que isso acontecesse, voltou a amordaçá-lo com esparadrapo e a acomodá-lo na cama. Depois tratou de verificar a foto que acabara de fazer. Destacou o papel protetor e observou o resultado. A foto estava perfeita. Havia um cortador embutido na própria câmara e ele cotou a foto até o tamanho adequado, medindo-a pela graduação existente no suporte do cortador. Retirou, então, do bolso um passaporte. Na folha de identificação havia todas as anotações necessárias, mas nenhuma foto. Kurt tinha todo o material necessário. Colou a foto no local indicado, depois apôs os carimbos necessários. Oliver Clark era, agora, Helmut Strasse, um oficial do exército da República Democrática Alemã, com um grave problema de saúde, sendo levado às pressas para casa. FEMALE Dois dias após o desaparecimento de Oliver Clark de um hotel de Colônia, na Alemanha Ocidental, enquanto um homem sistemático e estranho corria pelo deserto do Arizona, usando uma pesada e quente vestimenta, em algum ponto da Karl Marx Allee, num casarão antigo que sobrevivera à Segunda Guerra Mundial, em Berlim Oriental, Marbur, Kurt e Bakou esperavam ansiosamente o diagnóstico do médico que examinava o americano estendido numa cama comum, de molas, com um colchão encardido. — Ele está bem. Vai precisar repousar um pouco, depois estará pronto. Suas condições físicas são excelentes. O efeito do Nerval 50 passará em breve — disse o médico e Marbur o acompanhou até a porta, enquanto Bakou e Kurt iam até Oliver Clark e se debruçavam sobre ele. — Como foi a viagem? — indagou o russo a Kurt. — Sem problemas. O esquema funcionou perfeitamente — Kurt respondeu, com um acento de orgulho no tom de voz. — Um bom trabalho — disse Bakou e o elogiou alegrou bastante o alemão. A porta se fechou após a saída dos dois e, na mais completa escuridão, Oliver Clark se sentia flutuando num mar de retalhos, restos de conversa, sons estranhos e sensações angustiantes. Mal podia mover o corpo. As mãos pareciam pesar toneladas e o menor esforço físico provocava dores agudas. Tentou dizer alguma coisa. A boca deveria estar ressecada em função das doses sucessivas de Nevral 50 e apenas se abria, sem articular nenhum som. A mente se encontrava à beira de um precipício escuro, oscilando entre a consciência e um sono forçado. A porta se abriu novamente e uma luz ofuscante foi acesa sobre seus olhos. Ele os apertou ao máximo, mas a luz feria intensamente. — Café da manhã! — gritou uma voz aguda e, em seguida, a luz se apagou e a porta se fechou num estrondo. Na escuridão espalhou-se um cheiro de café. Oliver lutou para deixar a cama. A boca ressequida ansiava por qualquer coisa líquida. Cada movimento era demorado e doloroso. Haviam-lhe aplicado a última dose de tranquilizantes às nove da noite anterior. Gradativamente o efeito passava, embora a sonolência persistisse. Havia conseguido, finalmente, sentar-se na cama, quando a luz se acendeu novamente e a porta se abriu como da vez anterior. — Almoço! — gritou a mesma voz de antes, num péssimo inglês. A luz se apagou em seguida. A porta se fechou estrondosamente. A sensação para Oliver foi das piores. Um homem, numa sala escura, sob os efeitos de uma droga especial, fatalmente perde a noção de tempo. Oliver jamais poderia imaginar que pudesse demorar tanto tempo para um movimento tão simples como se sentar à beira da cama. Antes que fizesse algum outro movimento, a luz voltou a se acender e ele ouviu passos. Pelas vozes que se seguiram, notou a presença de três pessoas no quarto. Alguém moveu a lâmpada e ela incidiu diretamente sobre os olhos dele. Ele os cobriu instintivamente com as mãos. — Você é Oliver Clark? — indagou uma voz num inglês perfeito. — Sim, sou Oliver Clark — disse ele, num grito, desacostumado que estava a conseguir articular as palavras. — Sim, sou Oliver Clark — repetiu, num tom mais baixo. — Onde estou? O que houve comigo? — Nós fazemos as perguntas — disse a mesma voz. — Quer um cigarro? Água, talvez? — Sim, água, por favor! Um braço estendeu-lhe um copo de água. Oliver manteve uma das mãos sobre os olhos e apanhou-o. Tomou sofregamente. Devolveu o copo. — Vamos entrar direto no assunto, Oliver, sem perda de tempo. Nós o trouxemos aqui porque precisamos de sua ajuda. Você tem duas opções: colaborar livremente ou forçadamente. Antecipo-lhe que de uma forma ou de outra, vamos obter sua cooperação. — O que querem de mim, afinal? — Informações sobre computadores. É seu ramo, não? — Como sabe disso? Onde estou? — Isso não é importante agora. Terá algumas horas para pensar — a voz disse, num tom persuasivo. — Só precisa pensar nas duas opções que lhe oferecemos. Poderá repousar primeiro, depois voltaremos. A luz se apagou, assim que os passos deixaram a sala. A porta se fechou. Oliver ficou só na escuridão. Do lado de fora, os três homens se entreolharam. — O que acha? — indagou Marbur. — Não me parece um homem duro, mas ainda não podemos afirmar nada sobre que tipo de condicionamento ele possui. Se ele colaborar livremente, ganhamos tempo. Se ele resistir, teremos de apelar para as drogas e os especialistas, o que poderá ser uma faca de dois gumes. Há muito que descobrir sobre ele e as drogas podem abreviar seu tempo de lucidez e vida. Tive experiências antes. Um homem pode alienar-se definitivamente antes de fornecer as informações que estão em seu cérebro. Além disso, precisamos pensar no esquema de segurança do computador americano. O desaparecimento de Oliver já deve ter sido detectado. Isso produzirá, seguramente, alterações de segurança. Nosso tempo é escasso, temos de nos apressar — falou o russo. — Quando voltaremos a falar com ele? — Kurt quis saber. — Em meia hora. Na condição dele, um homem perde a noção do tempo e vamos nos aproveitar disso. Vamos acionar nosso esquema. Logo obteremos todo o apoio cientifico solicitado. *** O comunicado de que o cartão da Gold System de Oliver Clark fora apresentado numa das embaixadas ou postos de segurança deveria ter sido depositado na mesa do Cel. Foster na manhã do dia anterior. Como isso não ocorreu, foi encaminhando um pedido urgente a todos os postos e embaixadas da Alemanha e países vizinhos, solicitando confirmação da negativa. À tarde, a confirmação estava de volta. Oliver Clark desaparecera. Imediatamente Trianon foi comunicado e aguardou o tempo regulamentar. Naquela manhã, persistindo o desaparecimento, o coronel comunicara o Departamento da Defesa e o do Tesouro. O resto era com Trianon. Se nada surgisse, ele começaria a agir. *** Female é o curioso codinome de um computador, instalado numa sala de segurança máxima do Departamento do Tesouro. Ligado ao National Bank e ao Richemond Bank, era através dele que se efetuavam os pagamentos ultrassecretos. Apenas dois homens tinham habilitação especifica para operá-lo. Um era Oliver Clark. O comunicado de seu desaparecimento acionou um comando automático na sala de pessoal, que selecionou imediatamente doze nomes entre os mais capacitados especialistas de computadores, inscritos para o programa de treinamento. Esses nomes seriam imediatamente analisados por uma equipe que levantaria o passado e o presente, vícios e virtudes a respeito de cada candidato. Eles seriam submetidos e uma bateria intensiva de testes no mesmo dia. A seleção, feita através de computadores e técnicos, apontaria o melhor entre eles, que seria submetido a pesados exames psicológicos, antes de ser encaminhado ao curso para operar o Female. Os dispositivos de segurança desse computador davam ao Departamento do Tesouro toda a tranquilidade a respeito do desaparecimento de Oliver. Ele conhecia códigos, sabia o que manipular, mas tudo isso apenas poderia ser feito no Female, a começar do sistema inicial de segurança montado nas teclas de comando eletrônico, dotadas de células fotoelétricas, ligadas ao banco de memória. Apenas determinados dedos fariam funcionar aquelas teclas. Mais precisamente, apenas determinadas impressões digitais podiam liberar o sistema de segurança das células fotoelétricas. Como Oliver se encontrava em férias, o comando de suas impressões digitais havia sido bloqueado no computador. Durante quatro semanas exatas, a máquina apenas aceitaria os comandos digitados pelo seu substituto. A menos que fosse utilizada a chave de segurança correta para liberar o bloqueio, Oliver jamais poderia voltar a operar Female. Desse modo, a segurança era total. Aquela chave era do conhecimento apenas do seu substituto, que a usaria quando entregasse seu posto de volta a Oliver. Ninguém mais poderia acionar Female. Para o Departamento do Tesouro, a situação era de alerta, mas não de alarme. O desaparecimento de um operador de máxima segurança nada significava em termos de ameaça. No caso de Oliver, sua função era acionar a transferência de numerário de um banco a outro, para contas determinadas. Poderia, teoricamente, fazer isso, mas apenas através de Female. A preocupação, portanto, era treinar o mais rapidamente possível um segundo operador. Terminado os dez dias regulamentares, as impressões de Oliver seriam apagadas do banco de memória de Female e ele jamais voltaria a operá-lo, a menos que surgisse com uma boa explicação para seu desaparecimento. Seria imediatamente transferido para outra seção, onde iniciaria novo trabalho. Quatro dias faltavam para isso. PARTE 2 BATALHA CONTRA O TEMPO SESSÃO PRELIMINAR A porta se abriu, após a luz ter sido acesa, ferindo novamente os olhos de Oliver. Os passos se aproximaram. Um dos homens postou-se diante dele. Oliver podia ver-lhe o bico dos sapatos, que estavam úmidos. Outro homem parou ao seu lado, apoiando um dos pés no estrado da cama e cruzando os braços sobre o joelho. Suas mãos eram largas e bem cuidadas. O último dos homens foi se posicionar ao fundo, como se desejasse apenas observar o desenrolar dos acontecimentos. — Quem são vocês, afinal? — Oliver indagou. — Pessoas interessadas no tipo de trabalho que você faz. Já comeu? Não está com fome? — retrucou Bakou. — Não... Vocês drogaram a comida, não é? Você querem me drogar! — Oliver falou, alarmado. — Não, ainda não — respondeu Kurt e Oliver voltou a cabeça na direção de sua voz. — Não vão me drogar? — Depende de você — respondeu-lhe Bakou, com frieza. — Vão me torturar? — Também depende de você. — Há quanto tempo estou aqui? — Cinco dias — Bakou respondeu, após ligeira hesitação. — Cinco dias? Não pode ser... Não cinco dias... — disse Oliver, com surpresa exagerada para a situação. — Isso o preocupa? — quis saber Bakou. — Sim... Eu devia me apresentar... Eles estão a minha procura, com certeza... — Refere-se ao seu Serviço de Segurança? — Sim, ao Serviço de Segurança. Se eu não me apresentar, jamais poderei voltar ao meu posto e operar o... — interrompeu-se. — Operar o quê? — quis saber Kurt, falando rispidamente. — O que vocês querem de mim, afinal? — explodiu Oliver, quase histérico. — Que nos ajude. Você vai fazer isso. É sua única chance de sair daqui. Para que entenda bem a sua situação, espalhamos que você passou espontaneamente para o nosso lado e está colaborando, dizendo tudo que precisamos saber. Isso se chama traição, não é mesmo? — explicou-lhe Bakou. — Mas eu não fiz nada disso. Vocês me forçaram... — protestou Oliver, erguendo-se. Uma das mãos de Kurt se estendeu para segurá-lo pela gola do paletó e puxá-lo violentamente para trás, derrubando-o sobre a cama. A ordem inicial era não torturálo, mas intimidá-lo apenas. Kurt sabia, portanto, que uma pequena amostra do que o esperava poderia ser útil, por isso comprimiu o polegar e o indicador, em pinça, no músculo externo do pescoço do americano, que gemeu de dor e se contorceu sobre a cama. Bakou avançou um passo, deixando-se iluminar pelas costas, por instantes. — Eu sinto muito! — disse, zombeteiramente, depois recuou novamente. Oliver voltou a se sentar na cama, massageando o músculo dolorido. Ao seu redor os homens estavam em silêncio, mas suas respirações podiam ser ouvidas fora do círculo de luz. — Como eu dizia — continuou o russo. — Você não tem alternativa. Se voltar ao seu país, jamais conseguirá provar sua inocência. Ninguém brinca com questões de segurança. A traição é um crime grave em qualquer país. Por outro lado, se não colaborar conosco, nós vamos matálo, não sem antes procurar extrair de você tudo aquilo que desejamos. Essa parte violenta nos desagrada tanto quanto a você, mas não hesitaremos em aplicá-la. Temos métodos modernos e métodos antiquados para fazer um homem falar. Depende de como ele seja. No seu caso, percebi que é muito sensível à dor, como demonstrou há pouco. Eu detestaria deixar que meu amigo utilizasse em você todos os conhecimentos e aparelhos de que dispõe. Ele é um tanto sádico, mas muito eficiente. Muitas vezes ele exagera nos seus métodos, você compreende, mas é muito eficiente. Pode estar certo disso. — E se eu... E se eu colaborar? — Oliver indagou, com voz sumida e trêmula. — Como disse? — indagou-lhe o russo, sem demonstrar o mínimo interesse. — E se eu colaborar? — falou o americano, quase num grito. — Nós o deixaremos vivo e talvez até paguemos pelo que nos disser. Depende, é claro, da importância de suas informações. Poderá, depois, exilar-se na Suíça e viver uma vida tranquila e descansada... — Tranquila? — ironizou Oliver. — Até quando? Cedo ou tarde alguém me descobriria e... — Não através de nós? Você teria uma nova identidade e muitos anos de despreocupação pela frente. Se o desejar, poderemos até mantê-lo a nosso serviço. Sempre se consegue algo para um especialista em computação, disposto a trabalhar. — Quem são vocês? — Que diferença isso faz? O que interessa é que está em nossas mãos e que poderemos matá-lo ou dar-lhe uma vida tranquila. — E que garantias eu tenho? — A nossa — afirmou o russo, com naturalidade. — Não me deixam muita escolha... — É uma questão de raciocínio. Você é jovem ainda, as mulheres devem apreciá-lo, tem muito a gozar da vida. Por que perder tudo isso? Por que se deixar torturar e matar? Não me venha com o idealismo democrático nem com o patriotismo meloso dos heróis de Hollywood — repreendeuo Bakou. — Pense em você, na sua pele, em seu cérebro, na sua dor, na sua sensibilidade, nos seus sonhos, Oliver. Você está encurralado. Terá de confiar em nós. — O que querem exatamente de mim? — Que nos fale sobre computadores. — Vocês estão gravando esta conversa? — Sim, estamos gravando, mas que importância isso tem? — Estou aqui há cinco dias mesmo? — Oliver indagou, demonstrando preocupação quanto a esse detalhe, alertando o russo, hábil interrogador. — Sim, você está aqui há cinco dias. Por que isso o preocupa? — Vocês não querem saber apenas sobre computadores, não é? Querem saber especificamente sobre Female... — Quem é Female? — Vocês não sabem o que é Female? — retrucou Oliver, ligeiramente surpreso. — Não, mas esperamos que você o diga. — E se eu disser? — Não se arrependerá. — Eu preciso pensar... — Qual é a importância de você estar aqui há cinco dias? — insistiu Bakou. — Eu não sei... Eu não sei... — gaguejou Oliver, confuso. — Preciso pensar. Por favor, eu preciso pensar. — Responda-me isso, Oliver! — continuou insistindo o russo. — Depois poderá descansar — ajuntou Kurt. — Eu não sei... Estou tonto... — Não, está fingindo. O efeito da droga que injetamos em você já passou. Você já teve tempo de repousar... — Pouco tempo... Preciso de mais tempo... Estou muito cansado. — Vamos, Oliver, não dificulte! — Kurt falou, pousando a mão sobre o pescoço de Oliver e exercendo uma leve pressão no músculo externo. — Porque após cinco dias eles já me apagaram do computador e jamais poderei voltar a operá-lo — gritou Oliver, intimidado. — Mas você jamais poderia voltar a operá-lo de qualquer forma, Oliver. Já se esqueceu do que espalhamos sobre você? Será julgado como traidor, se voltar. Você conhece a pena. Seu país é rigoroso. Deseja ser castigado, Oliver? — insinuou o russo. — Não, eu não quero... Deixem-me sair daqui, por favor. Eu quero sair daqui. Quem são vocês? Para quem trabalham? Por que me trouxeram aqui? — desesperou-se o americano. — Ora, Oliver! Não banque a criancinha desprotegida, chamando pela mamãe! É patético demais. É humilhante para você — zombou Kurt. — Eu preciso pensar — suplicou Oliver. — Está bem, Oliver. Vamos deixá-lo descansar. Amanhã cedo voltaremos a falar com você. Tenha uma boa noite de sono. Falaremos com mais calma e chegaremos a um acordo — disse-lhe Bakou. Os homens se retiraram do aposento. A luz foi desligada. A porta se fechou. Oliver deixou-se pender para trás, caindo de braços abertos sobre a cama. *** Na sala ao lado, os três homens se reuniam ao redor de uma mesa. Kurt encarou Bakou. Parecia surpreso com a maneira com que o russo encerrara a primeira sessão do interrogatório preliminar. — Ele estava cedendo — observou Kurt. — Ele está relutante, mas já teve o bastante por ora. Vamos deixá-lo repousar um pouco, depois voltaremos. — Mas você disse que... — ia tornar Kurt. — Um homem na condição dele pode ser confundido, Kurt. Será que não aprendeu isso ainda? — cortou-o Bakou, asperamente. — Que importa o que dissemos a ele? É a maneira como ele se sente que nos interessa. Além disso, ele nos adiantou algo muito importante. — E o que foi? — indagou Marbur, que fizera questão de estar presente nas primeiras entrevistas com o americano capturado. — Os cinco dias. É o prazo para que seja ativado o sistema de segurança que impedirá o acesso definitivo de Oliver ao computador Female, como ele mesmo nomeou. Isso nos deixa quatro dias para extrai-lhe todas as informações e, ao mesmo tempo, convencê-lo a fazer o que lhe pedirmos. — Quanto aos detalhes técnicos, posso garantir que uma equipe de técnicos e todo o material necessário já estão a caminho, remetidos pela Primeira Divisão. Vão se instalar no barracão, você sabe qual — informou Marbur. — Acha que haverá tempo? Que conseguiremos dobrar Oliver? — Vamos conseguir. Estes quatro dias são importantes. Vamos precisar de drogas estimulantes, doses maciças que o mantenham acordado o tempo necessário. Não podemos perder um minuto. Vamos reduzir para meia hora os intervalos entre as sessões de interrogatório, confundindo-o. Marbur, você deve providenciar tudo que necessitaremos. Este homem é nossa única chance de chegarmos ao traidor. Comunique-se com Hamsher e Rokim. Que eles ordenem todo o apoio necessário. Precisamos ter tudo à mão, quando chegar o momento — pediu Bakou. — Teremos, eu lhe garanto — afiançou Marbur. *** A porta se abriu ruidosamente e a luz foi acesa, iluminando os olhos injetados de Oliver, que se ergueu num salto, precipitando-se na direção da porta. Kurt segurou-o pela cintura. Oliver se debateu e seu cotovelo atingiu o rosto do alemão, que praguejou e arremessou-o contra a parede. Oliver gritou de dor e ficou encolhido, apertando o pulso direito entre a mão esquerda e o peito. — Vocês são alemães... São alemães comunistas! — murmurou Oliver. — Vocês trabalham para os russos... — Que diferença isso faz agora? — Bakou perguntou, aproximando-se dele. — Não vou colaborar... Vocês não me farão falar, nem que me torturem. Eu não direi nada — gritou, erguendo-se num salto, mas não chegando a dar um passo. O pesado punho de Kurt afundou-se em seu estômago, tirando-lhe o fôlego. Oliver tossiu, dobrando-se para frente. Bakou se aproximou e segurou-o pelos ombros. — Vamos, caminhe um pouco, vai ajudar. Você está aprendendo a conhecer meu companheiro. Ele não é paciente e, muitas vezes, violento. Só vai dificultar as coisas para você. Não queremos isso, Oliver. Sinceramente. Tem de acreditar em mim. — Por que não me deixaram dormir? — indagou o americano, pateticamente, caminhando curvado. — Mas você dormiu a noite toda — afirmou Bakou, levando-o para junto da cama e fazendo-o sentar-se. — Como se sente agora? — Estou bem. — Ótimo! Agora nos fale de Female. — Vocês não me deixaram dormir... — Já lhe disse, você dormiu a noite toda. — Onde está meu desjejum? — Virá logo. Agora nos fale sobre Female. — Que dia é hoje? — Por que quer saber? — Quero calcular... Se estou com vocês todo esse tempo, já fui expulso da programação do computador. Não poderei ajudá-los em nada. — Claro que pode, Oliver! Só queremos informações. — Quero ir à privada. — Pois vá! Ela está bem ali, atrás de você. — Não posso enxergar no escuro... — Pode sim, eu ilumino para você. Oliver se levantou e caminhou na direção de uma pequena abertura, iluminada agora pelo facho de luz que Bakou dirigira para lá. Não havia porta. Apenas a privada simples, de agachar. Oliver se voltou na direção da luz, cobrindo os olhos. — Não tem porta! — disse. — Não precisa de porta, Oliver. Não vamos incomodálo. — Não posso fazer... Assim... — Ora, Oliver, não seja criança — riu Kurt. — Não nos obrigue a agachá-lo aí. Oliver hesitou por instantes, depois retornou à cama, sem ter usado a privada. Sentou-se. Bakou soltou a lâmpada, que ficou dançando, iluminando-lhe os joelhos e o pé de Kurt, apoiado sobre o colchão da cama. — E então, Oliver, podemos contar com você? — indagou o russo. — Meu pulso está doendo — choramingou o americano. — Deixe de frescura, Oliver — explodiu Kurt. — Por enquanto é apenas seu pulso. Se continuar assim, logo estará com o corpo todo dolorido. — Eu não sou um traidor... — Sabemos disso, Oliver. Compreendemos sua situação, mas você é um homem que pode morrer a qualquer momento. O que é mais importante? Você ou as informações? Elas não serão tão valiosas assim. O que acha que poderíamos fazer com elas? Vamos, pode dizer o que pensa! O que poderemos fazer, conhecendo o segredo do funcionamento de Female? Nada! Só queremos saber. Precisamos comparar os métodos. Se o sistema de vocês é mais seguro que o nosso, poderemos aprender com isso, não vê? — ponderou Bakou. — Vocês também fazem pagamentos de agentes através de computador? — indagou inocentemente o americano. — Era esse seu trabalho? — retrucou Bakou e seus olhos brilhavam. Oliver, então, pareceu perceber que dissera algo indevido, retraindo-se imediatamente. — Não sei do que está falando — disse, fazendo-se de desentendido. — Estamos falando do pagamento de agentes estrangeiros, de espiões, Oliver. Era esse o seu trabalho? Pagar os agentes estrangeiros a serviço dos Estados Unidos? — intimou o russo. — Eu não sei nada sobre isso... — Oliver, Oliver! Nós sabemos de tudo... — Então o que querem de mim, diabos? — praguejou, enfurecido. — Confirmações, Oliver. Detalhes que nos escapam, coisinhas simples... — Tão simples que ainda não conseguiram descobrir — observou Oliver, com ironia, rindo baixinho. O aposento dançou diante dele, enquanto seu ouvido estalava ensurdecedoramente para, em seguida, ficar vibrando como se um besouro houvesse penetrado até o fundo de seu cérebro. — Não gostamos de desprezo — disse Kurt, esfregando as mãos. — Estamos sendo educados com você. Por que não age da mesma forma conosco? — Vocês me humilharam — soluçou ele. — Ora, Oliver, que tolice! — riu Bakou. — Vocês me humilharam, quando eu fui à privada. — Está bem, eu lhe peço desculpa. Meu amigo também lhe pedirá desculpas — assegurou o agente da KGB, fazendo um sinal diante da lâmpada. — Sim, Oliver, isso mesmo. Desculpe-me, está bem? — pediu Kurt. — E então, Oliver? — insistiu Bakou. — Vão me deixar ir embora depois disso? — Talvez. Tudo depende de como você se comportar. Não temos interesse algum em matá-lo. Você nos seria mais valioso como nosso aliado, Oliver. O americano ficou em silêncio por instantes, esfregando o pulso. Depois se levantou e foi até a privada. Dessa vez Bakou não o iluminou. Oliver ficou lá durante uns dez minutos, enquanto Bakou e Kurt esperavam pacientemente. Quando retornou, havia algo novo nas faces de Oliver, como se estivesse exageradamente aliviado. Aguardaram até que o ruído da água cessasse. Oliver esboçou um patético sorriso. — Sente-se melhor agora? — quis saber o russo. — Sim, muito melhor... Obrigado! — Vai colaborar conosco, sem violência e sem drogas? — Não tenho alternativa, tenho? — Não, não tem, Oliver — assegurou-lhe Bakou. — Vocês me deixarão ir embora mesmo? — Depende de como se comportar. Coopere conosco e não se arrependerá. — Onde está o desjejum que me prometeram? — Nosso outro amigo foi buscá-lo, eu garanto. Você não o vê aqui, não é? — Está bem — acedeu Oliver, vencido. — O que querem saber? Essas informações de nada valerão para vocês. Meu desaparecimento pode ter até provocado uma mudança completa no sistema, principalmente considerando que vocês espalharam que eu... — Queremos experiências apenas, Oliver. Agora fale. Conte-nos como funciona Female. Oliver começou a falar. Um microfone sob a cama e outro sobre a lâmpada garantiam a transmissão de suas palavras para a sala do lado e, dali, para um barracão na Friedrichostrasse, que retransmitia, por sua vez, para uma sala na Alexander Platz. Ele falou sobre Female, sobre a mensagem que vinha do CIR, com aprovação do Departamento do Tesouro. Descreveu como acionava o Female. Bakou pediu detalhes. Oliver falou sobre as células fotoelétricas do sistema de segurança, da maneira como o National Bank liberava o dinheiro e a forma como era efetuado o crédito no Richemond Bank. Bakou demonstrava uma excitação incomum e parecia ansiar por um detalhe importante. Quando Oliver terminou de falar, indagou-lhe: — E como o agente sabe que um crédito foi feito em sua conta numerada? — O próprio crédito na conta aciona um sistema de comunicação. Cada agente tem uma programação específica para seu caso, de forma que o recebimento do dinheiro lhe seja comunicado sempre o mais depressa possível, no máximo cinco dias após cada crédito. — Isso que dizer que, se fizéssemos um crédito na conta de um agente estrangeiro agora, seria possível localizá-lo se pudéssemos seguir a comunicação do crédito? — quis saber o russo, com visível interesse. — Teoricamente... — E na prática? — Difícil, mas não impossível. Bastaria reverter o processo de transmissão para uma consulta ao computador do Richemond Bank... — Female pode fazer isso? — Female pode ser programado para fazer isso. — Quem poderia programá-lo? Alguém como você, Oliver? — Eu não sei — gaguejou o americano, confuso, agora que as perguntas se sucediam num ritmo sufocante. — Está bem, Oliver. Por hoje é só. Descanse. O seu desjejum virá em breve. — Quando vão me deixar sair? — Logo, Oliver. Logo! — garantiu Bakou, retirando-se da sala. A porta se fechou, mas a luz não foi apagada dessa vez. Oliver ergueu-se e apanhou a lâmpada, iluminando o aposento ao seu redor. Era um quarto fechado. As janelas haviam sido lacradas com tijolos e argamassa. Havia apenas a cama e a abertura da privada. Depois de examinar tudo atentamente, Oliver afrouxou a lâmpada, fazendo-a apagarse. Esperou algum tempo, olhando as paredes, completamente escuras, sem nenhuma abertura que permitisse entrar uma claridade. Voltou a rosquear a lâmpada, depois se sentou na cama e tirou um dos sapatos. Forçou o salto, até que ele saltasse fora. Dentro dele havia um relógio digital pequeno, sem pulseira. Oliver apertou os botões repetidas vezes e um sorriso de satisfação estampou- se em seu rosto. Havia alívio total em suas faces quando caminhou até a privada e atirou o relógio na abertura, puxando a descarga barulhenta. Voltou à cama. Sentou-se e adotou uma posição de ioga para meditação e relaxamento. A RÉPLICA Na sala ampla, com apenas a mesa ao centro e janelas bloqueadas com traves de madeira cruzadas, Bakou caminhava de um lado para outro, pensativo. Kurt parecia entusiasmado com os resultados preliminares que poderiam levar ao sucesso. Isso, por seu turno, seria um importante registro em sua ficha pessoal. Ao ver a expressão de Bakou, que caminhara até a mesa e se sentara, Kurt demonstrou preocupações. Sentou-se em frente ao agente russo. — O que o preocupa, Bakou? — indagou. — Fácil demais, Kurt. Fácil demais. Temos uma equipe pronta. Psicólogos, especialistas em drogas, um médico treinado e ele nos entrega tudo de imediato sem nenhuma resistência. — E isso o preocupa? — perguntou Kurt, aparentemente surpreso. — Sim, isso me preocupa. Já participei de interrogatórios preliminares antes. Jamais vi alguém se submeter tão facilmente... — Temos que considerar que Oliver não um agente treinado para resistir. É um burocrata apenas. — A função dele exige treinamento especial. Não posso conceber alguém com um cargo tão importante sem qualquer tipo de treinamento antiespionagem. — Você exagera, Bakou. Está habituado a lidar com agentes treinados. Oliver é um homem sem resistência. Fez o que qualquer homem comum faria em seu lugar. As ameaças o assustaram. — Gostaria de submetê-lo aos especialistas. Um pouco da droga certa e alguma habilidade arrancariam dele a confirmação. — Não temos tempo, você sabe disso. Nós o pressionamos, ele cedeu. Temos outros preparativos a serem considerados. Oliver Clark não tem substâncias nem aparência de agente especial. O que pensa fazer, então? Bakou não respondeu. Foi até a sala onde estava a aparelhagem de rádio e o telefone. Discou um número e falou umas poucas palavras. Desligou em seguida e retornou à sala onde Kurt o esperava para olhá-lo como se o criticasse. Menos de meia hora mais tarde, ouviram o ruído de um carro que estacionava diante do prédio. Kurt foi até a porta e espreitou. Abriu-a parcialmente para dar passagem a um pequeno cortejo. À frente vinha Marbur, seguido de Hamsher e outros três homens de aparência sinistra. — Qual é o problema, afinal? — indagou Hamsher. — Nós os ouvimos — adiantou. — Eu não sei... Foi fácil demais — hesitou Bakou, como se ainda não tivesse definido suas suspeitas. — Vamos, Bakou! Nosso tempo é escasso, precisamos nos apressar. O que tem em mente, afinal? Suspeita de alguma coisa? — insistiu Hamsher. — Sim, acho que ele está fazendo um jogo... Há qualquer coisa de inconsistente nele... — Está sugerindo que deveríamos entregá-lo aos especialistas? — Sim, seria prudente confirmar tudo o que ele falou — ponderou o russo. Hamsher meditou por instantes, depois se voltou para um dos homens que o haviam acompanhado. — O que me diz, doutor? A testa de Johan Stefanie vincou-se e ele se voltou para Bakou, observando o rosto sombrio do agente especial. Conheciam-se. Haviam participado juntos de missões semelhantes. Johan sabia que Bakou tinha um faro especial, uma espécie de sexto sentido, embora jamais se ativesse a isso como decisivo para qualquer decisão. — Pelo que ouvi, Oliver Clark é um homem frágil, sensível e assustado, disposto a colaborar. Se o pressionarmos, ele pode bloquear-se inconscientemente. Teríamos de usar drogas. Talvez confirmássemos sua história ou descobríssemos a verdade de que suspeita Bakou. O certo, porém, é que Oliver Clark, depois disso, ficaria imprestável por alguns dias, até se ver livre totalmente dos efeitos residuais da droga. Não poderia colaborar, portanto, na outra parte do plano. Ao ouvir isso, Bakou encarou Hamsher como que o recriminando. — Achei que eles deveriam saber quais são os nossos objetivos — antecipou-se Hamsher. — E agora, o que tem a dizer? Acreditamos nele e seguimos em frente ou nos arriscamos a perder a oportunidade? Se confiarmos nele, teremos outras maneiras de corroborar sua historia no desenrolar de seu trabalho. — A decisão é sua — disse o agente, caminhando até a porta que conduzia ao aposento onde Oliver se encontrava aprisionado. — Vamos confiar. Vá lá e diga a ele o que terá de fazer para que acreditemos nele! — ordenou Hamsher. Bakou parecia esperar essa ordem, pois destrancou a porta e empurrou-a. A lâmpada estava acesa. Oliver dormia. O russo se aproximou e tocou-o no ombro. Kurt entrou também e empurrou a porta, o bastante para tapar de Oliver a visão dos homens lá fora. — O que foi? — indagou Oliver, abrindo os olhos e sentando-se num sobressalto. — Estivemos pensando no que nos disse, Oliver. É tudo tão fantástico... Sabemos que pode ser possível, mas temos razões para crer que você está nos mentindo, ocultando informações que nos são importantes. — Mas eu disse tudo — balbuciou o prisioneiro, aturdido e sonolento. — Precisamos nos certificar disso. — Quer dizer que ainda não vão me deixar sair? — indagou o americano, com desespero nos olhos injetados e inquietos. — Eu não disse isso. Vai depender de você. Queremos que nos ajude a confiar em você. Que tal nos ajudar a montar uma réplica de Female. Acha isso possível? A surpresa estampou-se no rosto do americano. — Vocês... Não, não vejo ligação com... Por quê? — gaguejou confuso. — É apenas um modo de nos certificarmos de que tudo que nos disse é verdade. Vai nos ajudar a montar o computador. Sabemos que tem condições para isso. Você nos ensina como programá-lo e... — Programá-lo para quê? — cortou-o Oliver, cheio de suspeitas. — Programá-lo, Oliver — respondeu apenas o russo, persuasivamente. O americano cobriu o rosto com as mãos. Era visível sua confusão interior. Kurt se adiantou e olhou-o ameaçadoramente. Oliver descobriu os olhos. Estremeceu, retraindo-se. — Está bem — disse num fio de voz. — Vamos lhe trazer lápis e papel. Você vai relacionar tudo que precisará para isso. Acha que pode se lembrar? — Sim... Sim, claro! — confirmou Oliver. Bakou ia se retirar. Em seu rosto era visível uma suspeita. Voltou. Abaixou-se adiante de Oliver e fitou-o nos olhos demoradamente. Oliver sustentou o olhar, desafiandoo abertamente. Bakou se ergueu. Não estava convencido ou satisfeito. — Descanse, Oliver! Você vai ter muito trabalho — falou o russo, retirando-se com Kurt. Quando a porta se fechou, Oliver voltou a se deitar e era um homem inexplicavelmente tranquilo demais para a perigosa situação que vivia. PROVOCAÇÕES A manhã estava cinzenta, quando Oliver Clark deixou a casa escoltado por Kurt e Bakou, entrando num Mercedez azul-escuro. Kurt assumiu o volante. Bakou se sentou com Oliver no banco traseiro. O agente russo se manteve calado. Seu semblante impessoal não deixava transparecer nenhuma emoção. Oliver lhe fez algumas perguntas e ele respondeu com monossílabos. Oliver desistiu de falar com ele e se voltou para ficar observando as ruas por onde avançavam. O carro passou nas proximidades do aeroporto Schonefeld, no exato momento em que um jato da Interflug levantava voo. Oliver acompanhou a elevação do avião, depois voltou a se concentrar nas calçadas. Atravessaram a Karl Marx Alee. Oliver parecia um tanto confuso, mas, quando se aproximavam da Alexander Platz e pôde ver a enorme torre de televisão, demonstrou certa confiança. Pararam por algum tempo na praça. Kurt desceu rapidamente e, pouco mais tarde, retornava na companhia de outro homem, que se sentou a seu lado, no banco dianteiro. Seguiram, então, afastando-se do centro da cidade e tomando o rumo este. Flocos de neve começaram a dançar suavemente no céu, antes de pousar e acumular-se no parabrisa. Kurt ligou o limpador, pouco antes de penetraram numa rua estreita, com prédios altos e aparentemente vazios, até que Kurt estacionasse o veículo diante de duas enormes portas de aço, que se abriram imediatamente, fechando-se após a passagem do carro. Ali dentro reinava uma agitação incomum. Enormes caixas haviam sido descarregadas de diversos furgões, alinhados nas paredes laterais. O amplo depósito estava iluminado por potentes holofotes. Homens suspensos das traves do telhado instalavam outros, na parte dos fundos. Alguns aparelhos de aquecimento de ar haviam sido montados nos quatro cantos da construção. Uma espécie de sala de vidro estava sendo erguida no centro. Caixas eram abertas com meticuloso cuidado. Homens vestindo uniformes brancos levavam os materiais das caixas para a sala de vidro. — O que está acontecendo aqui? — indagou Oliver, surpreso com a movimentação toda. — Esse é o material que solicitou. Creio que encontrará todo o necessário para montar uma réplica de Female. Aqueles de branco são técnicos especialistas em computador e vão ajudá-lo em tudo que precisar. Nesse momento, um dos homens de uniformes deixou os outros e foi ao encontro do grupo. — Este é Hanz Kauff, técnico em programação. Vai assessorá-lo, Oliver — disse Bakou. O americano pareceu não apreciar a ideia, pois ignorou a mão que o recém-chegado lhe estendera e caminhou na direção da sala de vidro. O técnico alemão o seguiu em silêncio. Bakou se voltou para Marbur. — O que acha? — indagou-lhe Marbur. Bakou jogou a cabeça de um lado para outro, omitindose. Kurt ia dizer qualquer coisa, mas interrompeu-se, pois Oliver caminhava ao encontro deles, após haver inspecionado rapidamente os materiais que já haviam sido levados para a sala de vidro. — Por que o transmissor? Ninguém disse que eu teria de montar o transmissor também — falou, alterado. — O que pretendem, afinal? Não vão exigir que eu sintonize esse arremedo de computador ao satélite e... — interrompeu-se, apreensivo, fitando um e outro alternadamente. — E o quê, Oliver? — indagou Bakou , aproximandose até que seus corpos quase se tocassem, cravando seu olhar nos olhos assustadiços do americano que, dessa vez, fugiu ao confronto. Bakou sorriu levemente. — Não pode ser feito — murmurou Oliver, num sopro de voz assustada. — Temos os materiais e os técnicos para isso. Basta você ordenar e tudo acontecerá como num passe de mágica, como num conto de fadas — falou o russo, com ironia. — Não o farei... Posso montar a réplica do computador, mas para que ligá-lo ao transmissor? Que poderão obter fazendo a conexão com o satélite? — Apenas faça, então, Oliver. É tudo que lhe pedimos. Faça isso e estará livre para ir para onde quiser, com uma boa recompensa. O americano voltou-lhe as costas e esfregou as mãos no rosto. Quando descobriu os olhos, quase em seguida, seu olhar acompanhou, entre surpreso e admirado, a passagem de uma garota metida num dos uniformes, com os cabelos louros e longos derramados sobre os ombros e as mãos finas e delicadas carregando um importante componente eletrônico. Bakou se aproximou e pousou a mão forte no ombro de Oliver, que o olhou. Bakou sorriu zombeteiramente. O americano olhou-o com ódio. *** Arabell Hoff, foi assim que se apresentou a Oliver, possuía uma beleza tipicamente saxônica. Seus olhos azuis espelhavam um céu como jamais existiu sobre Berlim. Suas maneiras eram femininas ao extremo, muito embora sua concentração no trabalho tirasse parte de seus encantos. Oliver a observou durante toda a manhã. Arabell era fria, impessoal e agia como se fizesse questão de ser tratada como os homens que trabalhavam no local. Era perita em micro-soldagem. A habilidade de suas mãos fascinou Oliver, assim como as linhas suaves do rosto, o nariz afilado e levemente arrebitado, os lábios carnudos e bem delineados, tornando sua boca tentadora e sensual. Um suave perfume envolvia seu corpo, sugerindo calor e, ao mesmo tempo, emoção. Enquanto fazia sua parte no trabalho, orientando os técnicos, Oliver não a perdia de vista. Algumas vezes ela havia levantado os olhos para ele e dera a impressão de ser apenas uma menina assustada. Havia algo de frágil em sua aparência, como se seu semblante pedisse um socorro especial. Oliver demonstrou visivelmente estar sendo atraído por ela. Durante o intervalo rápido para o almoço, aproximou-se dela, levando sua bandeja, onde nadava em molho um pedaço de salmão do Reno, ao lado de uma salsicha branca e um pedaço de pão preto com algumas fatias de queijo. — Estivemos trabalhando desde as seis da manhã. Que horas são agora? — indagou ele. — Passa um pouco do meio-dia — ela respondeu com uma cordialidade inesperada, erguendo a cabeça para sorrirlhe e exibir dentes perfeitos. Oliver sorriu em resposta, reclinando-se contra um caixote. Ergueu os olhos para o salão profusamente iluminado. Do outro lado, junto à porta de aço, Bakou e Kurt pareciam um par de violentos dobermen vigiando a saída. Havia um ar zombeteiro pairando nos lábios do russo e isso pareceu irritar Oliver. Ele voltou sua atenção para a garota, como que disposto a ignorar o russo. — Você fala inglês muito bem — observou ele. — Aprendi em Oxford, na Inglaterra. Fiz um curso lá há algum tempo — respondeu ela, desembaraçadamente. — Conhece os Estados Unidos? — Não, mas gostaria. Dizem que é um excelente país. Tenho alguns parentes que emigraram para lá depois da guerra. Contam maravilhas do país que os acolheu. Gostaria mesmo de um dia poder visitá-los — ela disse, e seu semblante se tornou levemente sonhador, realçando sua feminilidade. — Nada a impede — Oliver disse em resposta e havia um acento de tristeza em sua voz que ela captou, pois deixou o talher e encarou-o demoradamente, com piedade no olhar meigo. Oliver sustentou o olhar e, por momentos, uma atmosfera de perigosa aproximação pairou entre os dois, como se a solidariedade demonstrada por ela o abalasse e comovesse. Sua tristeza a havia tocado profundamente. Voltaram a comer em silêncio, mas uma aura de cumplicidade nascera, envolvendo-os e tornando-os semelhantes. Após o almoço, quando reiniciaram os trabalhos, tiveram oportunidade de, por alguns instantes, ficarem longe das vistas dos outros. Haviam ido apanhar algumas peças que ainda se encontravam embaladas nas caixas, armazenadas no fundo do depósito. Quando se inclinaram, suas mãos se roçaram rapidamente, mas o toque de suas peles sensibilizou-os visivelmente, imobilizando-os. Olharam-se em silêncio, então. — O que vai fazer depois que tudo aqui estiver terminado? — ele perguntou. — Haverá outros trabalhos — murmurou ela, abaixando a cabeça, dando a entender que sua perspectiva de futuro não era das melhores. Oliver ia dizer qualquer coisa, ao mesmo tempo em que esboçava o gesto de levar sua mão ao queixo dela, mas interrompeu-se ante a aproximação de dois uniformizados. Apanharam o que haviam ido buscar e retornaram à sala de vidro. Junto às portas de aço, Bakou os observava, com aquele sorriso de zombaria constantemente nos lábios. Oliver e Arabell não voltaram a se aproximar até que escurecesse. O jantar foi trazido e, junto com ele, algumas pílulas que Bakou fez questão de entregar pessoalmente a Oliver. — O que é isso? — indagou o americano. — Estimulante. — Para quê? Não preciso de estimulante... — Vai precisar. — Uma boa noite de sono e estarei bem... — Não haverá noite de sono — informou o russo, friamente. Oliver encarou-o por instantes, como se não compreendesse o motivo daquilo. Olhou ao seu redor, então. Os outros todos engoliam suas pílulas sem pestanejar, como se aquilo já fosse um hábito em suas vidas. Procurou atônito a figura de Arabell. Ela fazia o mesmo, mastigando suas pílulas antes de provar um pedaço de Frankfurt com salada. O americano ficou revoltado. Antes que dissesse qualquer coisa, porém, Bakou tomou-lhe uma das mãos e depositou nela duas pílulas amarelas, sem marca alguma que as identificasse. Oliver encarou-o desconfiadamente. — E se eu me recusar? Bakou se voltou e olhou na direção de dois homens que estavam aguardando ali perto. Tinha toda a aparência de dois truculentos enfermeiros. — Se você não tomar as pílulas, eles virão e as injetarão em suas veias. Você escolhe... — O que pretendem, afinal? Por que isso? Por que essa pressa? Mesmo que liguem essa maldita réplica de Female ao satélite e consigam uma conexão com Richemond, de que isso adiantará? Estou fora do banco de memória, meu tempo já passou. Desconheço a nova chave. Nada poderá ser feito, seja lá qual for a ideia maluca que vocês têm em mente. — Faça apenas, Oliver, sem problemas e não se arrependerá — disse o russo e havia uma indisfarçável ameaça no seu tom neutro de voz. *** O trabalho avançou pela noite. Ninguém demonstrava sinais de cansaço, embora estivessem naquele trabalho delicado desde a manhã. Oliver passou a observar melhor Arabell. Seu trabalho na micro-soldagem era estafante. Apesar de máscara, seus olhos eram submetidos a uma tensão constante, capaz de abalar os nervos da pessoa mais treinada. Era madrugada, quando ela vacilou e o aparelho de solda caiu a seus pés. Ela o desligou e cambaleou em seguida, indo se apoiar numa das paredes de vidro. Oliver correu para ela, mas uma figura mais ágil intrometeu-se entre os dois. Bakou agarrou a jovem pelos ombros e agitoua, depois a jogou de encontro à parede. — Vamos, volte ao trabalho! — gritou o russo. Oliver olhou ao seu redor. Ninguém movera um músculo ou fizera o menor gesto em defesa de Arabell, que soluçou e começou a chorar. Bakou estendeu a mão para segurá-la pelo pescoço. Oliver se adiantou, empurrando a mão dele e pondo-se entre os dois. — Saia da frente! — ordenou Bakou, furioso. — Deixe-a em paz. Está cansada. Não compreende que seu trabalho é delicado demais? Ela precisa repousar. Dê-lhe alguns instantes. — Saia da frente! — rugiu Bakou, irritado, talvez, pela vigília, adiantando-se. Oliver, então, num movimento inesperado, empurrouo, desequilibrando-o. O russo caiu sobre uma caixa e praguejou, erguendo-se em seguida e avançando ameaçadoramente para o americano. — Basta, Bakou! — gritou uma voz, de um ponto qualquer do armazém. A voz fora enérgica e imperativa. Bakou estacou, encarando Oliver, antes de se afastar pisando firme sobre o cimento frio. O americano observou-o sair por uma das portas de aço. Segundos depois, o ruído do motor de um carro indicava que ele se afastava. Arabell levantou os olhos para Oliver e murmurou terna e agradecidamente. — Obrigada, Oliver! A ternura daquela voz seguramente o comoveu profundamente. *** Três horas de uma madrugada fria lá fora. No interior da construção, o cansaço se refletia, afinal, nos rostos de todos os que se encontravam lá. Colchões de campanha começaram, então, a ser alinhados na parte dos fundos do depósito, atrás das caixas vazias empilhadas. Ali o aquecimento havia sido ligado ao máximo e a temperatura era agradável, apesar de, lá fora, a neve cair intermitente e o piso frio guardar uma umidade que se infiltrava até os ossos. — O que vai acontecer agora? — indagou Oliver a Arabell, assim que os trabalhadores começaram a interromper seus afazeres. — Vamos descansar um pouco. — Que horas são? — Três horas — ela respondeu, após um ligeiro movimento de pulso. — E amanhã, como vai ser? — Desjejum com pílulas, almoço simples e jantar com pílulas. Vamos dormir, em média, três horas por dia. — Mas é um absurdo! — exclamou ele, indignado, olhando ao seu redor. Arabell, no entanto, fez um movimento de ombros e adotou uma expressão que traduzia sua impotência diante dos fatos. — Venha, cada segundo é precioso. Você também precisa descansar — ela disse, carinhosamente, tomando-o pela mão e fazendo-o caminhar atrás de si. Oliver a acompanhou até os fundos do depósito, onde estavam os colchões. Apanharam dois deles, com cobertores, e levaram para um canto próximo do aquecedor. Os holofotes daquela parte haviam sido desligados completamente. A pilha de caixas quebrava a luminosidade dos outros, que ficaram acesos na parte dianteira do armazém. Alinharam, então, seus colchões lado a lado. Estenderam-se, cobrindo-se com os grossos cobertores. Apesar do aquecimento, o piso de cimento enregelava. Alguém, em alguma parte, reclamou dos holofotes. Alguns mais, então, foram desligados, permanecendo alguns que estavam voltados para as portas. A penumbra caiu sobre o depósito. O rigor do frio começou a se fazer sentir. O aparelho aquecedor estalou, depois o silêncio se fez completo, quebrado momentaneamente pelo farfalhar do corpo de Arabell sobre o colchão, quando ela se moveu, procurando se encostar em Oliver, abraçando-o. Com a proximidade de suas peles, um calor repousante logo os envolveu, adormecendo-os prostrados após o dia estafante. Se não fosse o cansaço extremo, certamente teriam ouvido passos e, caso Oliver ou Arabell estivessem de olhos abertos, teriam visto o rosto de Bakou, com aquele mesmo sorriso zombeteiro e provocador pairando nos lábios. Por algum tempo o russo os observou, depois caminhou de volta para a porta de aço, como se estivesse satisfeito e o que observara o deixasse tranquilo a respeito de tudo que pudesse preocupá-lo. FUGA Oito horas da manhã em Berlim Oriental. Nuvens escuras e pesadas ameaçavam desabar sobre a cidade. Atrás do vidro embaçado, Bakou fumava pensativamente, enquanto fitava o movimento na Alexander Platz. Apesar das poucas horas de sono, o russo não demonstrava cansaço. Seus olhos, pelo contrário, revelavam uma excitação incomum, como se a expectativa do cumprimento da missão desse-lhe forças adicionais para suportar o ritmo pesado da espera. Ouviu vozes atrás de si e se voltou. Hamsher e Marbur acabavam de entrar. Marbur fez-lhe um sinal para que os seguisse até sua sala. Os três se sentaram nas poltronas de couro, em frente da vitrine de armas. — E então, Bakou? — Marbur perguntou. — Tudo está correndo satisfatoriamente — ele respondeu, mas seu rosto demonstrou certa apreensão que não passou despercebida pelos outros. — O que o preocupa, então? — Hamsher insistiu, de bom humor. — Quantas pessoas sabem, realmente, tudo sobre a operação? — o agente quis saber. Marbur e Hamsher trocaram olhares surpresos. — Por que a pergunta? — Hamsher perguntou, ligeiramente autoritário, como se a indagação de Bakou viesse perturbar seu bom humor. — Preciso saber — ele respondeu, num tom neutro, mas convincente. — Nós, diretamente envolvidos, e alguns poucos, na cúpula da Primeira Divisão e do partido. — E o pessoal do depósito? — Ninguém, como de praxe, além de Hanz Kauff, o programador. — A equipe de interrogatório? — Tive de dizer-lhes. Afinal, iam interrogar Oliver por solicitação sua. — Eu não pedi a presença deles afirmando que interrogariam. Poderiam ficar alheios até o último momento. Se a informação vazar, poderá chegar ao homem que procuramos e tudo estará perdido — observou Bakou, fazendo com que Hamsher e Marbur se entreolharem novamente. — Os interrogadores sabem de seu ofício — respondeu Marbur, rispidamente, dando a entender que a lembrança do agente russo era totalmente descabida. — O que o preocupa, afinal? — A missão não pode falhar — ele disse, erguendo-se. — Eu os manterei informados. O que pretendem fazer com Oliver Clark quando tudo terminar? — Ainda não decidimos. Estamos pesando os prós e os contras. Nós o notificaremos, assim que chegarmos a uma decisão — disse Hamsher. — Sugiro que o matem — Bakou disse, com frieza. — É uma hipótese a ser considerada. Por outro lado, ele realmente entende de seu trabalho. Pode nos ser útil futuramente. Poderemos forçá-lo a outros trabalhos igualmente importantes, não importa para onde ele vá — considerou Hamsher. — Ele não tem estrutura para ser um espião — afirmou o russo. — Ele não precisa ser um espião, necessariamente, para nos ser útil — Hamsher falou, com displicência, demonstrando que não estava disposto a aceitar mais nenhuma sugestão de Bakou, que concordou com movimentos de cabeça e se retirou em seguida. *** O almoço havia sido servido. As bandejas de metal se enchiam com Mockwurst, a salsicha gorda, salada de batata, repolho e panquecas. O pessoal dispersou-se, espalhando-se pelo depósito. Pareciam, agora, autômatos. Seus olhos eram inexpressivos e seus movimentos eram lentos, mas precisos. Oliver e Arabell foram se sentar ao fundo, junto das caixas. Ele a observou por algum tempo. Ela esboçou um sorriso alentador, embora visivelmente cansado. Havia carinho em seu olhar, capaz de enternecer um homem. Passos fizeramnos desviar o olhar. Bakou se aproximou deles, com o ar zombeteiro que irritava Oliver. — Como vão os trabalhos? — indagou o agente. — Adiantados. Jamais pensei que pudesse montar um computador tão rápido. Devo reconhecer que a sua tecnologia é... — O pessoal é de primeira qualidade — cortou-o Bakou. — Bom material humano — continuou, olhando com provocação Arabell, que abaixou os olhos e se concentrou na comida em sua bandeja. Oliver empalideceu e suas mãos tremeram. Bakou se aproximou ainda mais de Arabell, até que seus joelhos roçassem os dela. Ele sorriu, enquanto um de seus joelhos forçava passagem por entre os joelhos unidos de Arabell, fazendo oscilar a bandeja sobre eles. Uma tensão incontrolável estampou-se no rosto de Oliver, que se enrijeceu. Bakou era mais corpulento que ele, mas Oliver empunhava com força o garfo, como que disposto a fazer dele uma arma inesperada. — Jamais conheci uma garota que fosse perita em micro-soldagem — zombou o russo. — Essas mãos devem fazer maravilhas nos instrumentos certos — ele disse, estendendo o braço e tomando entre seus dedos uma das mãos de Arabell, que o repeliu com um safanão. O agente perdeu o controle e ameaçou reagir violentamente. Num movimento inesperado, Oliver se ergueu e o conteúdo de sua bandeja foi jogado contra as roupas de Bakou, que soltou uma praga, enquanto se afastava um passo. — Desculpe-me, fui desastrado! — disse Oliver, encarando-o ostensivamente. O russo caminhou lentamente ao encontro dele. Seus rostos ficaram próximos. A mão de Oliver tremeu, empunhando o garfo. O agente soviético sorriu, zombeteiramente, virou-lhe as costas e se afastou. Oliver ficou trêmulo, olhando-o. Seus olhos chispavam. Arabell fixou seu olhar no garfo que ele apertava entre seus dedos. Estendeu a mão e tocou-lhe o pulso num gesto apaziguador, Oliver relaxou-se lentamente. Um dos uniformizados se aproximou, trazendo outra bandeja. Oliver agradeceu e voltou a se sentar. A mão de Arabell ainda permanecia sobre seu braço. Olharam-se. — Você está se arriscando — alertou ela, visivelmente preocupada. — Eu não o temo — ele disse e sua voz ainda tremia. — Precisam de mim. — Deve pensar, no entanto, no que poderá lhe acontecer depois, Oliver. Ele a olhou demoradamente, como se essa observação o houvesse atingido e trazido de volta a uma realidade cruel. Uma expressão de desalento tomou conta de seu rosto. — Não tenho alternativa, Arabell. — Estou com medo, Oliver. Medo por você e por mim. Bakou é violento e vingativo. — Bakou é apenas um instrumento. Quando chegar o momento, negociarei. — Que momento? Com quem negociará? — Não se preocupe, Arabell — ele disse, procurando tranquilizá-la. Kurt avançou na direção deles, após ter estado conversando por algum tempo com Bakou, junto às portas de aço. — Arabell, venha comigo! — ordenou. — Ela vai estar ocupada. Preciso dela... — argumento Oliver. — É só por alguns instantes — Kurt disse, com zombaria. — Deixe estar, Oliver — falou a garota, resignada, erguendo-se e depositando a bandeja sobre uma caixa. — Não vou me demorar. Oliver observou os dois se afastarem na direção das portas, onde Bakou os aguardava. Os três deixaram o armazém e o americano se mostrou visivelmente transtornado. A preocupação e a irritação marcaram seu comportamento. Ele desprezou a comida e foi para a sala de vidro, onde uma complexa estrutura eletrônica já se achava praticamente pronta. Inspecionou algumas ligações. Verificou os cabos elétricos. Examinou o termômetro que marcava a temperatura ideal para o delicado equipamento. A todo instante se voltava, impaciente, para olhar as portas. Descobriu um defeito numa das ligações elétricas. Dois fios mal ligados poderiam levar a um circuito. As portas de aço se abriram. Arabell entrou à frente de Bakou e Kurt. A jovem procurou Oliver com o olhar, caminhando na sua direção. Bakou e Kurt vieram atrás. Arabell passou por Oliver, na sala, e foi apanhar uma aparelhagem de solda. Em seu rosto eram visíveis a consternação e a revolta. Bakou se adiantou e encarou Oliver, aproximando-se ao máximo do americano. Oliver estremeceu e seus olhos brilharam. Suas mãos tremeram. Ele ergueu os dois fios elétricos lentamente, até sob o queixo de Bakou, e uniu-os. Fagulhas estalaram e o agente russo recuou surpreso, num salto. Oliver riu. Kurt se adiantou e reteve Bakou, segurando-o por um dos braços. — Desculpem-me! — Oliver disse, zombeteiro. — Foi um acidente. Kurt puxou Bakou para trás. O agente russo livrou-se com um repelão. Encarou Oliver por instantes, depois girou nos calcanhares e se retirou, seguido por Kurt. — Bastardo! Maldito vermelho nojento! — desabafou Arabell, soluçando em seguida e começando a chorar. — Arabell! — exclamou Oliver, correndo ampará-la. Ela se abraçou a ele, debruçando sua cabeça contra o peito do americano, extravasando uma tensão que explodia em seu semblante. Oliver acariciou-lhe os cabelos lentamente, como se o fato de tê-la consigo e poder acariciála e senti-la o agradasse muito. *** Durante o resto da tarde, Arabell se mostrou nervosa, falhando algumas vezes em seu delicado trabalho, obrigando-se a refazê-lo. Oliver a corrigia com brandura, mas ao vê-la efetuar uma solda desastrosa, que poderia afetar o funcionamento do computador, segurou-a pelos ombros e levou-a para os fundos do depósito, longe das vistas de Bakou e dos outros. Ela manteve a cabeça baixa, evitando olhá-lo. Ele a segurou pelo queixo e forçou-a a encará-lo. — O que ele lhe fez? — indagou ele e sua voz traduzia um ódio perigoso. — Esqueça, Oliver! Vamos voltar ao trabalho. Há muito ainda a ser feito... — Não! Não suporto vê-la dessa forma. Vi o que acabou de fazer. Aquela ligação poderia comprometer todo o funcionamento de uma programação. O que há, afinal? Ela soluçou com agonia, depois desatou um pranto nervoso, pousando a cabeça contra o peito de Oliver, que a abraçou com emoção, esperando que ela se acalmasse. Com a voz entrecortada, ela disse: — Querem que eu o espione, Oliver. Duvidam de sua lealdade! — O que aquele bastardo lhe disse? — ele quis saber, indignado. — Ele queria saber sobre o que conversamos tanto, se eu suspeitava de sua lealdade, o que estava achando do modo como o trabalho estava sendo feito... Ele queria coisas que pudessem comprometê-lo, Oliver. Mas eu não disse nada. Juro-lhe! — afirmou ela, levantando o rosto banhado de lágrimas que realçavam sua fragilidade e sua beleza. — Pobre Arabell! — murmurou ele, apertando-a em seus braços. Alguns uniformizados passaram ao lado, carregando caixas. Oliver os ignorou e manteve Arabell junto de si. — Malditos! Eu devia deixá-los entregues à própria sorte — rugiu ele. — Façamos isso, Oliver! Sei como fugir, atravessando o muro. Uma vez em Berlim Ocidental, poderemos fugir para qualquer parte do mundo. Conseguir identidades falsas não é tão difícil. Leve-me daqui, Oliver — pediu ela, febrilmente, enlaçando-o pelo pescoço e roçando as peles de seus rostos num crescendo que culminou num beijo violento e desesperado, onde a volúpia se mesclava ao temor. Oliver a apertou firme nos braços até que ela se imobilizasse mansa e quieta como uma mulher apaixonada e satisfeita. — Não posso fugir, Arabell. Preciso ajudá-los. Comprometeram-me. Não me deixaram saída. Não poderia viver eternamente com medo, arrastando-a para um inferno. Ajudando-os, terei ajuda para quando tudo isso terminar. — E quem pode garantir que eles não o matarão depois de tudo? — ela indagou e sua lógica era chocante. — Isso eu saberei quando chegar o momento — ele respondeu, afagando-lhe os cabelos. — Que momento, Oliver? — ela quis saber, curiosa e confusa. — Tranquilize-se, Arabell. Tudo vai acabar bem para nós. Eu lhe prometo! O ACORDO A Primeira Divisão da KGB, através da WEIMAR e da UDL, empenhara toda a tecnologia soviética num projeto arrojado a ser cumprido em tempo recorde. Para tanto, mobilizara um pessoal altamente especializado e capacitado, pondo-o sob a aparente coordenação de Oliver Clark. Na realidade, cada um dos uniformizados sabia exatamente o que deveria fazer o tempo todo. A estrutura do computador viera pré-montada. Os componentes adicionais, conforme solicitado por Oliver, foram sendo acrescentados, procurando dar a esse computador a mesma autonomia e poder de ação de Female. As antenas que o ligariam aos satélites haviam sido instaladas no alto dos trezentos e sessenta e cinco metros da torre de televisão, na Alexander Platz, onde técnicos no setor ultimavam os preparativos para torná-las operacionais. A noite chegara fria e triste, com um céu de nuvens baixas refletindo as luzes da cidade e a neve tecendo uma cortina semitransparente que escondia as fachadas mutiladas dos prédios ao longo do muro. No interior do armazém, o jantar começara a ser servido. Hanz Kauff, o programador, foi ter com Oliver, que, visivelmente, o hostilizava. — Poderemos iniciar a programação após o jantar — disse o alemão. — Eu sei disso — respondeu Oliver, rispidamente, tomando suas pílulas estimulantes. — Quando chegar o momento, eu farei minha parte. — Devo estar a seu lado. Preciso acompanhar todo o trabalho de... — Não! — interrompeu-o Oliver, bruscamente. O alemão empalideceu e olhou na direção de Arabell, que abaixou a cabeça e se concentrou no peixe que nadava no molho. Hanz voltou a encarar Oliver. — Acho que não entendeu o que... — ia dizendo Hanz, mas Oliver o fez calar com um gesto. — Foi você quem não entendeu, amigo. Eu cuido da programação. Apenas eu! — frisou bem. — É o que veremos — respondeu Hanz, girando nos calcanhares e caminhando até onde estavam Bakou e Kurt. Trocaram algumas palavras, sempre olhando na direção de Oliver e Arabell. Em seguida, Kurt deixou sua bandeja no local e saiu rapidamente por uma das portas de aço. Bakou e Hanz caminharam na direção de Oliver, que deixou de lado a bandeja, preparando-se para recebê-los hostilmente. Arabell estendeu uma das mãos e segurou-lhe o punho crispado. Ele se voltou e esboçou um sorriso que jamais a tranquilizaria. — Após o jantar você inicia a programação — ordenou o russo, num tom monocórdio, sem trair emoção alguma. — Eu sei o que devo fazer — respondeu Oliver, no mesmo tom. — Hanz o acompanhará. — Eu o farei sozinho. Ou então não o farei — afirmou o americano, com decisão. Bakou estremeceu, perdendo a frieza que era uma de suas principais virtudes como agente especial. Entre ele e Oliver se desenvolvera uma forte barreira de rancor. A inimizade era percebida à distância. Seguramente o russo o eliminaria ali mesmo, naquele momento, se Oliver não tivesse importância. O russo respirou fundo, depois desabotoou o sobretudo e sacou calmamente sua Makarov, avançando um passo na direção de Arabell. A garota imobilizou-se, trêmula. O cano da arma encostou-se A e em sua têmpora esquerda. O estalido seco da trava sendo libertada provocou um frêmito no corpo de Oliver. — Acho que compreendeu bem o que eu quis dizer, não? — zombou o russo. — Está bem! — Oliver respondeu num fio de voz. O agente soviético travou a arma e guardou-a no coldre sob a axila esquerda. Encarou Oliver com arrogância e superioridade, depois se afastou na companhia de Hanz. Arabell se ergueu e foi procurar apoio no corpo de Oliver, que a abraçou com carinho protetor. — Não se preocupe, querida! Está tudo bem! — afirmou ele. — Ele vai nos matar. Bakou é rancoroso, não hesitará em nos eliminar depois que tudo acabar. — Já lhe disse, não se preocupe — insistiu ele, acariciando-lhe o rosto pálido. *** Após o jantar, os uniformizados não retornaram à sala de vidro. Haviam recebido ordens expressas de Bakou para que deixassem o americano fazer sua parte sozinho. Apenas Hanz o seguiu, postando-se atrás dele, numa cadeira giratória. Por algum tempo, Oliver ficou imóvel, olhos fechados, concentrando-se. Depois começou a digitar rapidamente. Havia uma tela logo acima de sua cabeça, diretamente a sua frente, e seu nome apareceu ali escrito, seguido de uma série de números. Ele continuou e seu propósito aparente era testar o computador, carregando e checando-o com informações sem sentido para Hanz que o mantinha sob vigia. — Já que está aqui e não há como expulsá-lo, penso que devo aproveitá-lo. Quer acionar a chave de liberação para introdução da programação especial? — pediu ele a Hanz, sem se voltar. O alemão se adiantou, debruçando-se para acionar uma tecla. — Não! — gritou Oliver, alto o bastante para ser ouvido lá fora, enquanto fazia um movimento quase imperceptível com a ponta de um dos pés, tocando um cabo elétrico que passava junto à estrutura. Fagulhas saltaram do painel, seguidas de muita fumaça. — A chave geral! — berrou Hanz. — Seu idiota desastrado! — Oliver gritou, empurrando-o para o outro extremo da sala, completamente desequilibrado. Arabell correra e desligara a chave geral. Bakou e Kurt se apressaram em ir até lá. O agente russo estava lívido. — Tirem esse idiota daqui! — ordenou Oliver. — Ele quase pôs tudo a perder. Como puderam me impingir alguém assim, com a delicadeza de um paquiderme? Hanz estava boquiaberto, incapaz de compreender o que houvera. Apenas tocara uma chave e o painel explodira em seu rosto. Depois Oliver o empurrara e o acusara. — Não sei o que houve aqui, mas não acredito que Hanz pudesse... — ia dizendo Bakou. — Não viu o que ele fez? É cego, russo? Tire-o daqui ou nada será feito — cortou-o Oliver, encolerizado. — Eu não fiz nada — Hanz conseguiu dizer, afinal. — Quais são os danos? — quis saber Bakou. — Superficiais, creio. Talvez apenas substituir os circuitos impressos do painel, mas só teremos certeza depois de verificar — antecipou-se Arabell. — Façam-no, então. Hanz continuará aqui — determinou o russo. — Se ele ficar, eu não faço nada! — afirmou Oliver, categoricamente. Um pesado silêncio pairou na sala. A tensão chegara a um nível insustentável. Bakou desabotoou o sobretudo. Sacou a Makarov automática, destravou-a e apontou-a para a cabeça de Arabell. Oliver estremeceu, encarando-o com ódio, depois lhe virou as costas e se retirou da sala. A expressão do russo foi patética. — Volte aqui! — gritou e Oliver nada respondeu, indo se sentar numa das caixas lá fora. Bakou abaixou a arma e caminhou na direção dele, que se manteve calmo, relaxando, como se a tragédia iminente não o afetasse. O russo balançou a arma destravada diante do seu rosto. — Dou-lhe três segundos para... — começou Bakou. — Para o inferno com você! — rugiu Oliver. — Maldito cão imperialista! — vociferou o russo, erguendo a arma com disposição de atirar. — Pare, Bakou! — ordenou a voz firme de Hamsher, passando pelas portas de aço. — O que está havendo aqui? — Eu o preveni contra esse cão americano — gritou o russo. — Ele se nega a cooperar, agora que tudo está pronto. — Eu não me neguei a nada. Apenas não quero aquele perdigueiro fungando em meu pescoço o tempo todo — respondeu Oliver apontando Hanz. Hamsher fez um sinal enérgico para que Bakou e os outros se afastassem. Arabell fazia o mesmo, mas Marbur, que viera atrás de Hamsher, a reteve. — Quer me contar o que houve? — indagou Hamsher a Oliver. — Bakou o tem enervado o tempo todo — antecipouse Arabell. — Sim, é um brutamontes imbecil! — rugiu Oliver, olhando na direção do russo que o observava rancorosamente, à distância. — E quanto ao computador? — quis saber Hamsher. — Nada de grave. Pode ser reparado imediatamente — informou Arabell. — Você vai cooperar? — quis saber o superintendente, fixando seu olhar nos olhos do americano. — Sim, vou, mas tenho algumas condições — exigiu ele, firmemente, sustentando o olhar. Hamsher e Marbur se entreolharam com surpresa. — Você não está em condições de fazer exigências. Está em nossas mãos — lembrou Marbur. — Talvez, mas vocês precisam de mim. Enganaramme durante algum tempo. As antenas para a conexão com os satélites, o transmissor, a pressa, as pílulas estimulantes para que dormíssemos pouco, uma etiqueta colada com a data de embarque de uma das caixas, algumas perguntas descuidadas ao cozinheiro e aos técnicos, tudo isso acabou confirmando minhas suspeitas. Sei que dia é hoje. Ainda estou na memória de Female e posso acioná-lo. É o que vocês pretendem que eu faça, não? Só que temos pouco tempo, antes que eu desapareça da memória daquele computador. Como veem, agora estou em condições de fazer minhas exigências. — Podemos forçá-lo — ameaçou Marbur. — Eu não tenho escolha. Se fizerem isso, demonstrarão apenas que estive certo o tempo todo e que, de maneira alguma, sairia daqui com vida. Temo pelo meu destino e quero apenas me resguardar. Hamsher e Marbur voltaram a trocar olhares marcados pela indecisão. Ordens diretas da KGB exigiam o sucesso daquele projeto. Um agente russo estava a serviço dos americanos, minando a tarefa armamentista dos cientistas russos e precisava ser descoberto rapidamente. Novas armas haviam sido projetadas e em breve os protótipos estariam sendo montados. Não podiam correr o risco de tê-las reveladas aos americanos, já que o caráter estratégico delas fora comentado pela cúpula do partido. O momento era decisivo. O tempo era importante. Não havia como efetuar consultas. A decisão deveria ser pessoal e imediata. — Quais são as condições? — indagou Hamsher, rompendo um silêncio que pusera tenso o americano. — Quero garantias de que sairei daqui com vida. — Quais? — Ela — afirmou Oliver, apontando Arabell. — Quero que a soltem imediatamente e que a levem para o lado ocidental da cidade. Há um telefone junto à porta de aço. Quando ele tocar e Arabell me confirmar que está em segurança, iniciarei a programação. Amanhã, quando tudo terminar, serei solto e irei ao encontro dela. Se eu não aparecer, Arabell procurará a embaixada americana e dará detalhes sobre o que houve aqui. E quero, também, cinquenta mil dólares e uma nova identidade para mim e Arabell. Isso não será difícil para vocês, creio. Adianto que, tão logo eu estiver livre, procurarei meios de me garantir contra qualquer represália. Escreverei um documento e mandarei cópias a alguns amigos para que façam chegar ao governo americano, caso algo me aconteça ou a Arabell. E então, acham que estou pedindo demais? Hamsher meditou por instantes, depois se voltou para Marbur. — Providencie para que a garota seja levada imediatamente a Berlim Ocidental. Consiga a documentação e os cinquenta mil. — Há mais uma condição — disse Oliver. Hamsher voltou-se para ele com uma expressão apreensiva. — Quero-o fora daqui — disse Oliver, apontando Hanz. — E Bakou também. — Será feito. Creio que não precisaremos, portanto, explicar-lhe o que desejamos que faça. — Sim, eu sei. Querem a localização de um agente americano infiltrado, não? — Isso mesmo, mas gostaria de saber como poderá chegar ao agente que queremos se deve haver outros, em outros setores — lembrou Hamsher, providencialmente. — Penso que devo procurar a pessoa que tem recebido com maior frequência remessas de pagamento. Mais precisamente, aquele cujas ordens de pagamento vinham assinadas pela Superintendência do Material Bélico — sorriu Oliver. — Perfeito! — exclamou Hamsher. — Conseguirão isso, desde que possamos superar certa barreira — disse Oliver, apreensivo. — Posso entrar em contato com Female. Posso quebrar seu sistema de segurança, mas, para operá-lo, preciso da chave que o libere para mim, bloqueando-o ao meu substituto. Só assim poderei fazê-lo sem que haja nenhuma interrupção. Vocês sabiam desse detalhe, não? Marbur sorriu e retirou um pedaço de papel do bolso interno de seu sobretudo, estendendo-o ao americano. — Posso saber como o conseguiram? — indagou Oliver. — Nós sempre conseguimos — sorriu Hamsher. — Sua garota estará a salvo em meia hora. Por que não descansa um pouco enquanto isso? Vai ter uma longa noite pela frente. Oliver se afastou deles, levando Arabell pelo braço. A garota o olhava maravilhada. — Vá com eles, Arabell. Se tudo der certo, amanhã estaremos juntos. Você terá a oportunidade que esperava. Estaremos livres de Bakou. Poderemos pensar com calma a nosso respeito. — Oliver! — murmurou ela, incrédula, abraçando-o e roçando timidamente seus lábios nos dele. — Só uma coisa mais, querida. É importante que a faça. Quando falar comigo, se estiver realmente em segurança, sem nada que a ameace, comece a conversa dizendo estou bem, Oliver. Se algo saiu errado e eles a mantém prisioneira de alguma forma, comece dizendo a mesma frase, mas invertendo apenas. Diga Oliver, estou bem. Compreendeu. — Sim, Oliver... — Repita, então. É importante para nós. Só assim poderei avaliar o grau de sinceridade deles e ter esperanças quanto a nós — pediu ele, insistente. — Certo, Oliver. Se eu estiver bem, direi: estou bem, Oliver. Caso contrário, digo: Oliver, estou bem. — Ótimo, querida! Ótimo! Agora vá. Se tudo acabar bem, estaremos juntos amanhã. Conhece bem Berlim Ocidental? — Não... — Ordene que a deixem diante da Embaixada Americana. Depois, a partir dali, procure o hotel mais próximo, entendido? Ela o olhou demoradamente, confirmando com delicados movimentos de cabeça. Havia lágrimas em seus olhos claros. Inesperadamente ela o beijo sofregamente, depois correu na direção das portas de aço. Marbur a seguiu. Oliver caminhou lentamente na mesma direção, olhos fixos nas portas que se fechavam após darem passagem à garota e Marbur. Bakou ainda estava no local e se adiantou, ameaçadoramente. Oliver sentou-se sob o telefone e aguardou. Bakou estacou surpreso. Hamsher fez-lhe um gesto enérgico para que fosse embora. O russo demonstrou surpresa e indignação, mas obedeceu, saindo apressada e nervosamente. Oliver ficou ali, olhos fixos na sala do computador onde uniformizados trabalhavam febrilmente para deixá-lo de novo em condições. Hanz conversou alguns instantes com Hamsher, depois saiu do armazém, acompanhado de Kurt. Quase uma hora depois o telefone tocou. Hamsher, próximo dele, atendeu, enquanto Oliver o encarava ansioso. O alemão estendeu o fone para o americano. — Sou eu, Oliver — o americano disse, com ansiedade. — Estou bem, Oliver — falou Arabell, numa alegria incontida. Um sorriso largo desenhou-se no rosto de Oliver Clark. A CONEXÃO Durante o resto da noite Oliver trabalhou no computador. Agiu como um autômato, num trabalho alucinado e suicida, como se ele próprio estivesse programado para fazer o que fazia, ingerindo mais algumas pílulas estimulantes durante a madrugada e completando a programação pouco antes do meio-dia. Estava pálido e trêmulo. Profundas olheiras marcavam seus olhos. Sua pele ganhara uma aparência doentia, reforçada pelos olhos injetados. Hamsher e Marbur haviam se retirado durante a madrugada, mas retornaram pela manhã, quando um sol pálido lutava inutilmente para vencer as nuvens escuras e baixas que se adensavam, indicando uma nevasca iminente. Permaneceram na sala de vidro, mantida numa temperatura adequada o tempo todo, observando o trabalho febril do americano. Oliver trabalhara ininterruptamente. Não tocara no hambúrguer posto a seu lado. Ignorara o desjejum que alguém lhe trouxera ao alvorecer. Concentrara-se inteiramente em seu trabalho, demonstrando habilidade e memória prodigiosas, pois não se valia de nenhuma anotação. Tudo estava em seu cérebro e era transposto ao computador de uma forma que impressionara Marbur, Hamsher e os outros, jogando dúvidas nas expressões de seus rostos. Alguns comentavam que aquele trabalho era impossível demais para ser eficaz. Jamais algo com o que se pretendia poderia ser feito, embasado unicamente na memória de um homem. Oliver seria um gênio, um homem programado como um computador ou apenas procurava ganhar tempo desnecessariamente, pois se estivesse tentado enganar a KGB seu destino seria trágico. Quando os homens chegaram com a comida do almoço, estacionando o furgão dentro do depósito e começando a retirar as enormes panelas, Oliver deu por terminado o trabalho que se propusera realizar. Imobilizouse, debruçando-se no teclado, como se adormecesse. Hamsher e Marbur trocaram olhares ansiosos. O silêncio e a imobilidade de Oliver significavam que o trabalho de programação estava pronto. Restava acionar a conexão e verificar até que ponto tudo aquilo fora válido. Isso gerou um clima de expectativa que manteve os dois homens imóveis, olhos fixos em Oliver. Este, afinal, ergueu-se e cambaleou, apoiando-se à cadeira que girou, quase o derrubando. Marbur e Hamsher fizeram menção de ir em seu socorro. Ele fez um gesto de mão, dispensando-os. — Estou bem... — afirmou, deixando a sala e indo até um dos banheiros. Quando saiu, caminhou até onde estava sendo servida a comida. Os uniformizados abriram caminho. Oliver teve sua bandeja repleta. Sentou-se ali perto e comeu, enquanto Hamsher e Marbur permaneciam na sala, entre ansiosos e preocupados. — Tudo isso pode ter sido uma farsa — disse Hamsher, com um suspiro indefinido. — Bakou está na escuta, pronto para checar as informações. Saberemos numa questão de minutos. Todos os postos de informações da Europa, Ásia e África estão a postos. Não sabemos quais os caminhos desse sistema de informação, mas estaremos preparados para rastreá-lo — disse Marbur. Oliver, afinal, terminou de comer. Parecia satisfeito, apesar de fisicamente péssimo. Ingeriu mais duas daquelas pílulas estimulantes, depois foi até a sala do computador. — Creio que estamos prontos para o que desejam — disse, sentando-se diante do computador. Retirou um papel do bolso. Era a chave que Marbur lhe entregara na noite anterior. O suor começou a escorrer em seu rosto, realçando seu aspecto doentio. Acionou algumas chaves no painel, tentando a conexão com os satélites. Não obteve resposta na primeira tentativa. Marbur e Hamsher se mexeram, inquietos. Oliver aguardou alguns instantes, depois voltou a acionar as chaves, aguardando. O silêncio era quebrado apenas pelo leve zumbido do aparelho. Marbur e Hamsher mal respiravam. Oliver continuava transpirando. Entrelaçou as mãos atrás da nuca e reclinou-se na cadeira, olhando sempre o visor. O leve zumbido se transformou num martelar ritmado. O visor forneceu a informação. A conexão esta pronta. Oliver estremeceu. Os dois homens atrás dele também começaram a suar, apesar da temperatura ambiente não ter sido alterada. Por momentos Oliver se manteve imóvel. Depois olhou o papel que pusera no suporte ao lado e começou a digitar. — Gostaria que Hanz estivesse aqui — murmurou Hamsher. — Estou certo que Oliver o fará — assegurou Marbur. — Apenas para sabermos o que ele está fazendo a cada minuto — explicou o outro. A mensagem fora iniciada. Tudo em seguida se resumiu em sequências de movimentos de mão de Oliver, seguidas de intervalos de imobilidade, quando, então, cravava seus olhos no visor. Oliver parecia satisfeito com o andamento do projeto. O computador funcionava a contento. A conexão com Female fora efetivada. O momento crucial parecia se aproximar. Oliver hesitou por instantes, depois iniciou um comando de transferência de numerário. Dois milhões de dólares foram movimentados para serem creditados na conta do espião americano a serviço na Rússia. Female efetuou a conexão automática com o National Bank, ordenando a transferência. O computador do National confirmou a existência de fundos e transferiu a importância para o computador do Richemond Bank, na Suíça, que, logo após, confirmou o recebimento do numerário para crédito numa conta numerada. A etapa inicial havia sido cumprida. Oliver se voltou para os dois homens atrás de si. — Acabo de transferir certa importância para a conta do espião... — Está tudo escrito nisso aí? — indagou Hamsher, desconfiado e confuso, observando a sequencia sem nexo de caracteres acumulados no visor. — Sim, está tudo em código. Estou habituado a ele e a interpretação é imediata. Female só trabalha assim. Vou, agora, acionar o computador do Richemond Bank para solicitar uma consulta e indagar-lhe sobre a rotina de aviso ao destinatário. Como se trata de uma consulta meramente bancária, agora, vocês verão a resposta numa linguagem acessível — informou Oliver. — Uma linguagem que possamos entender — resmungou Hamsher, como se aquilo fosse realmente uma boa ideia. Oliver concentrou-se no teclado. Datilografou alguns caracteres e aguardou. Após alguns instantes de silêncio, quando a expectativa de Hamsher e Marbur podia ser sentida e palpada, as teclas do aparelho começaram a se mover e a mensagem foi surgindo no visor: — RPT CONSULTA 0796 — ROTINA DE COMUNICAÇÃO — MSG HOTEL WIEN BUDAORSI UT 88 BUDAPESTE A/C ONUSZ ZOLTAN... CONEXÃO HOTEL LENINGRASKAYA MOSCOU URSS A/C PETRO BORISTPOV... CONTATO DIÁRIO RUSSPY SORBONY... HAVERÁ ALTERAÇÃO??? Oliver digitou em resposta: — Ok, checando rotina!!! Oliver apontou para o visor. — Era isso que desejavam? — Sim. O americano comprimiu alguns botões. Um pedaço de papel se projetou por uma fenda. Oliver destacou-o e estendeu-o a Hamsher. — Está tudo aí. Seu espião fará contato com o receptador provavelmente amanhã cedo, na Praça do Kremlin, diante da catedral. Iniciando a perseguição pelo Hotel Leningraskaya, será fácil apanhá-lo. Fiz minha parte. Espero que cumpram a promessa. Marbur retornara do telefone e entregava de volta a Hamsher a cópia da mensagem. Hamsher dobrou-a e guardou-a no bolso. — Marbur providenciará tudo para você — disse, retirando-se da sala de vidro e do armazém. Oliver ficou diante de Marbur, que o olhou demoradamente. Havia uma espécie de piedade no rosto do alemão e, ao mesmo tempo, certo asco despertado pela visão de um traidor. — Antes de mais nada, creio que você precisa de um pouco de descanso, Oliver, enquanto checamos suas informações. Saiu-se bem, muito bem mesmo. Nós lhe seremos gratos. Gostaria de levá-lo, agora, a um dos melhores hotéis de Berlim Oriental. Você descansará até a noite, enquanto providenciamos o dinheiro e as identidades. Depois o levaremos a Berlim Ocidental, onde poderá se encontrar com a sua querida Arabell. Tudo será providenciado para que nada os perturbe. Cortesia do Kremlin — finalizou o aliado russo, esboçando um sorriso enigmático. O PAGAMENTO O carro entrou na Alexander Platz e estacionou. Marbur desceu e foi abrir a porta. Oliver deixou o veículo lentamente, demonstrando problemas com sua coordenação motora. Os reflexos do exaustivo trabalho se manifestavam agora. O estimulante o mantivera acordado, mas não evitara o desgaste físico e mental diante da pressão e da tensão. Marbur o ajudou, segurando-o pelo braço e amparando-o até e entrada de Stadt Berlim Hotel. Atravessaram o saguão, indo para o elevador. Marbur disse o número do andar ao ascensorista. Oliver se apoiava à parede, lutando contra um cansaço extremo. Saíram, afinal, para um amplo corredor acarpetado de bege, que passava diante de portas envernizadas, com relevos artísticos. Marbur sabia aonde conduzi-lo. Levou-o até um dos últimos quartos do corredor, tomando a direita após o elevador. A porta do aposento não estava trancada. Marbur entreabriu-a. Tudo estava às escuras lá dentro. Oliver ia entrar, mas o alemão o reteve. Ficaram ali, em silêncio, parados. O som de vozes murmurantes, gemidos lascivos e risos lúbricos se tornaram audíveis para Oliver. Seu rosto crispou-se. Seu corpo todo se enrijeceu. Seus olhos abriram desmesuradamente. Um tremor violento abalou-o em seguida. As unhas das mãos cravaram-se nas palmas. Marbur acendeu as luzes. Oliver gritou, após observar a cena. Nua sob o corpo de Bakou, Arabell ria de prazer, zombando da surpresa e do sofrimento de Oliver, que parecia ter perdido a razão. — Então, americano idiota? Julgou que eu lhe entregaria minha esposa apenas porque você se mostrou gentil com ela? Apresento-lhe Geórgia Turkmov, minha esposa e agente russa de primeira linha — gargalhou Bakou, girando o corpo e sentando-se, nu e obsceno, na borda do leito. Oliver virou o rosto. Marbur agarrou-o pelo pescoço, forçando-o a olhar a cena. Nua, com os cabelos dourados soltos sobre os ombros delineados, exibindo seios rijos e provocantes, Arabell enroscava-se ao corpo nu de Bakou. Em seu olhar celeste havia um ódio e um desprezo absolutos pelo sofrimento do americano. — Cumprimos o prometido, Oliver. Você se encontrou com sua Arabell e ela está bem, muito bem, como você mesmo pode ver. Talvez tenhamos alguns problemas com o resto das promessas feitas — zombou Marbur. Bakou se ergueu, aproximando-se de Oliver e encarando as faces macilentas do americano. — O que vamos fazer com ele? — indagou. — Vamos aguardar e ver o que valem aquelas informações. Caso sejam úteis, devolva-lhe os pertences e solte-o em alguma parte por aí. Já não precisamos dele — ordenou Marbur. — Vamos ser condescendentes. No estado em que ele se encontra, um internamento numa clínica de repouso da Suíça lhe fará bem — riu Bakou. Oliver não os ouvia. Seu corpo fraquejou e ele tombou sobre o felpudo tapete ao aposento. Acordou algumas horas mais tarde. Marbur e Bakou estavam, ao lado da cama, fitando-o com desprezo. Oliver encarou um e outro, depois começou a rir histericamente, como o bêbado que ri da última piada da noite, como o idiota que não entendeu a informação, como o adolescente que não compreendeu a tirada picante. Uma expressão imbecil estampou-se em seu rosto. Além dela, porém, havia algo de zombeteiro, de forçado, de satisfeito em seu riso, que Marbur e Bakou jamais entenderiam. — É inofensivo, agora. Pobre diabo! As informações foram checadas. As pessoas mencionadas existem. O esquema foi montado. Oliver nos serviu como esperávamos. Por que não matá-lo simplesmente? — indagou Bakou. — Este homem já está morto — disse Marbur, esbofeteando o rosto de Oliver, que continuava gargalhando, derramando lágrimas de tanto rir de uma piada que apenas ele compreendia. — Eu o levarei esta noite para o outro lado do muro. Vamos lhe dar a identidade nova e algum dinheiro. Talvez a ideia de levá-lo para a Suíça seja boa. Quando se sentir bem e compreender o que fez, Oliver Clark será um homem sem pátria, sem paz para o resto da vida. Eu, particularmente, vou me sentir muito satisfeito sabendo disso — falou o russo, com desprezo. — Sim, faça isso — recomendou Marbur, caminhando para aporta. — Espero que consiga aquela transferência para Geórgia, Marbur. Ela está se desgastando no trabalho idiota que faz naquela seção insignificante. Quero-a na próxima missão na Polônia. — Seu pedido não é convencional, mas verei o que se pode fazer. Afinal, o que fizemos deve ter algum reconhecimento, não? — sorriu Marbur, tranquilizando-o com alguns tapinhas nas costas. PARTE 3 TRIANON PRELIMINARES Às sete horas da manhã de um dia frio, em Washington, um jato da USAF pousou na Base de Garrard, a vinte minutos do Pentágono. Um carro avançou pela pista, parando ao lado do avião, quase sob a ponta da asa. A escada foi conectada e um homem magro e baixo, vestindo um sobretudo de lã pura com gola de pele de lontra desceu apressadamente, entrando no veiculo, que permanecera com o motor ligado. O Lincoln cinza-metálico se afastou rapidamente, deixando para trás a fumaça condensada do escapamento. Sentado no banco traseiro, o homem magro afundou a cabeça na gola de pele de seu sobretudo e fechou os olhos, como se dormisse. O motorista olhou-o pelo retrovisor, depois voltou a se concentrar nas ruas escorregadias após a nevasca da madrugada. Caminhões limpa-neve avançavam em sentido contrário, dificultando um pouco o tráfego que, àquela hora, começava a se intensificar. Após meia hora de viagem, o motorista enfrentou um rígido esquema de segurança, até deixar seu silencioso passageiro diante de uma das portas do enorme prédio, por onde ele entrou sem dizer uma palavra. Lá dentro, moveu-se com familiaridade, chegando até uma sala vazia. Aboletou-se numa das poltronas e imobilizou-se, da mesma maneira como já o fizera no carro. Às sete e quarenta e cinco, a secretária chegou. Reconheceu Trianon, mas nada lhe disse. Conhecia, em parte, seu estilo. O agente especial, por seu turno, apenas abriu levemente os olhos e sorriu vagamente, voltando àquela expressão de sono anterior. A secretária moveu-se pela sala, preparando o inicio do expediente. Às sete e cinquenta e cinco trouxe café. Trianon agradeceu com um de seus vagos sorrisos e aceitou. Tomou lentamente o café fumegante, depois se ergueu e foi atirar o copo plástico no cesto de lixo. Caminhou até a janela, onde ficou até às oito, quando o General Foster chegou. O militar entrou pela porta de seu escritório e foi ocupar a poltrona do outro lado de uma moderna escrivaninha. Trianon o seguiu, sentando-se numa das poltronas diante da mesa. Foster abriu uma gaveta e retirou uma pasta. Estendeu-a ao agente, que começou a ler. Era um dossiê completo sobre Oliver Clark, desde seu nascimento até seu último dia em serviço. Relatava o esquema de trabalho de Oliver, sua importância e as medidas de segurança que o cercavam. Traçava, também, as diretrizes a serem seguidas no caso de seu desaparecimento. Trianon levou aproximadamente uma hora para se inteirar do conteúdo da pasta. Quando terminou, fechou-a e devolveu-a a Foster, que a retornou à gaveta de onde a tirara uma hora antes. — Temos três hipóteses a considerar — disse Foster. — Acidente, traição ou sequestro. Trianon concordou com um movimento seco de cabeça. Foster estendeu-lhe, então, uma pequena carteira de couro, contendo documentos e um passe especial que o permitia penetrar em qualquer setor reservado. Trianon abriu a carteira e retirou a identidade. Era, agora, Maxwell Max, um americano de Utah, com trinta e cinco anos de vida e um cargo sigiloso no Departamento da Defesa. Sorriu levemente, cumprimentou o general com um movimento de cabeça e se retirou. Quando passou pela sala da secretária, ela estava com duas colegas, que observaram curiosamente a passagem do agente especial. — Esse é Trianon? — uma delas indagou, entre surpresa e decepcionada, logo após a saída dele. — Sim, este é Trianon — confirmou a secretária do general. — Imagem que... *** George Staford já se encontrava a postos na sala de Female, preparando-se para outro dia de trabalho. Naquela manhã, quando se despedira da mulher, não resistira à pressão e lhe confessara que estava na iminência de receber uma gorda comissão como operador efetivo do computador. Sua esposa vivia reclamando da escola que os filhos frequentavam, argumentando que a Hyde Park School estava mais bem aparelhada para desenvolver as potencialidades de seus alunos e isso deveria ser levado em conta, já que o pequeno Jimmy se mostrava muito bom no halterofilismo. George afirmara que o menino era apenas um pouco gordo e que não possuía toda a força que julgava ter. Discutiram durante o desjejum, quando ela aproveitou para perturbá-lo com o conserto do telhado, que precisava ser feito. George tentara argumentar que o problema era dinheiro, mas ela contra-atacara, dizendo que uma de suas amigas soubera, através do marido, que George poderia receber uma promoção em breve. Ele procurara convencê-la de que havia certa possibilidade, mas que não era certo ainda e que seria imprudente confiar nisso. Ela chorara, então, diante das crianças, reclamando que George não confiava nela e que nada lhe dissera a respeito antes. Com voz branda, controlando-se, ele, então, confirmara que a promoção estava noventa por cento assegurada. Ela rira e o abraçara, dizendo-se orgulhosa dele. As crianças festejaram ao redor dos dois, antes que o ônibus buzinasse lá fora, chamando-as para a escola. A sós com a esposa, então, George aproveitara para dizer que, em função da promoção e de sua permanência como operador efetivo do computador, teria de, durante a próxima semana, participar de uma sessão de treinamento noturno. Ela o beijara e dissera que não se importava, já que o objetivo era o conforto e o bem-estar da família. George nada revelara, portanto, de certo convite feito por um de seus amigos solteiros, que realizaria em seu apartamento uma festinha toda especial para comemorar, com as garotas do Saint James Club, seu vigésimo noivado com uma coelhinha toda especial de quem se separava semanalmente para reatar com a mesma periodicidade. De certa forma, a perspectiva de poder ir à festa fora suficiente para acalmar todo o nervosismo pela cena matutina da esposa, pois dirigira com calma no trânsito lento, chegando ao trabalho em cima da hora. Após passar pela segurança, fora para sua sala especial, sentando-se diante de Female e olhando o aparelho com um carinho todo especial. Realizou a rotina diária de checagem, depois se ergueu e foi buscar um café. Deveria permanecer ali num expediente de seis horas, com intervalos de duas para o almoço, apenas aguardando e checando a intervalos o perfeito funcionamento do complicado sistema eletrônico. Caso surgisse uma mensagem, deveria transmiti-la imediatamente. Se nada surgisse, aporia o carimbo de Nihil na folha do relatório diário e o encaminharia em três vias ao secretário. Esporadicamente, Female era também utilizado para consultas ou outros trabalhos específicos, mas, desde que substituíra Oliver, George não tivera oportunidade de executar nada nesse sentido. Passava das nove, quando um dos oficiais da segurança interna entrou na sala, acompanhado de um homem baixo e ligeiramente calvo no alto da cabeça, com um pesado sobretudo de lã com gola de pele. — George, este é Maxwell Max, do serviço Especial do Departamento da Defesa — disse o oficial, retirando-se em seguida. — Tudo bem — disse George, quando Trianon lhe estendeu a identificação. — Quer saber alguma coisa sobre nossa maravilhosa eletrônica? — Quero saber sobre Oliver Clark, inicialmente — falou Trianon. — Entendi. Investigação, não? — Você o conhecia bem? — retrucou Trianon, que mostrava desejar um tom puramente profissional àquela conversa. — Oliver era um bom sujeito. — Era? — cortou-o Trianon, incisivo. — Dizem que sumiu... — embaraçou-se George. — Continue! — pediu Trianon, olhando-o nos olhos. — Oliver é um bom sujeito — reiniciou George, corrigindo-se. — Trabalha direito, conhece computadores e fundo, tem uma memória prodigiosa, pratica ioga, gosta de garotas, mas é discreto quanto a isso, selecionando muito bem suas companhias. Detesta vulgaridades. É requintado, conhece vinhos e bebidas em geral, queijos e roupas. Se fosse rico, um milionário, quero dizer, seria uma presença destacada e constante nas colunas sociais pelo seu bom gosto. Está sempre querendo aprender mais, principalmente sobre eletr6onica, cibernética e transistores. Não faz curso algum, mas tem frequentado ultimamente a Universidade. Talvez seja por causa de Norah... — Quem é Norah? — Uma garota que trabalha com o computador da Universidade. É muito bonita e inteligente. O tipo exato de mulher para atrair Oliver. Acho que é tudo que sei sobre ele. Não vejo em que mais poderia ajudá-lo... Trianon agradeceu com movimentos de cabeça, depois se voltou na direção do imenso computador. Esboçou um sorriso intimidado. George percebeu o interesse dele pelo aparelho e adotou uma pose orgulhosa. Trianon se retirou. Lá fora um carro comum o esperava. Oliver sentou-se ao volante e ligou o limpador do para-brisa para retirar a película congelada que se grudara externamente. Quando o motor funcionou, o sistema de aquecimento desembaçou o interior. Tomou a avenida, na direção da Universidade. *** Norah Cooper recebeu com indiferença aquele homem que chegou acompanhado do Prof. Hilton, chefe do Departamento de Eletrônica da Universidade. Os dois foram apresentados e deixados a sós em seguida. Trianon afastouse por instantes para examinar o computador diante dele. Era menor, bem menor que Female e, seguramente, não deveria conter nenhum esquema especial de segurança, já que suas informações deveriam ser puramente acadêmicas. — Gostaria de saber alguma coisa sobre Oliver Clark — ele disse. — Sobre Oliver? — surpreendeu-se ela e a expressão se casou bem com seu rosto moreno, de linhas suaves, olhos amendoados e nariz pequeno e afilado. — Ele vinha sempre aqui, não? — Sim, Oliver nos ajudou na programação do computador, depois do acidente... — Que acidente? — ele quis saber. — Bem, houve um curto-circuito com principio de incêndio que afetou o banco de memória e toda a programação... — E quando foi isso? — Há umas quatro ou cinco semanas, não me lembro ao certo... — Descobriram as causas? — Não, não chegaram a uma conclusão definitiva na perícia que realizaram. O motivo foi um curto-circuito. Não é normal, mas é possível. — Oliver já frequentava o computador quando isso aconteceu? — Não, creio que não... Espere um pouco! — pediu ela, com uma expressão pensativa que a tornava particularmente interessante. — Engano-me. Fazia mais ou menos uma semana que ele vinha aqui diariamente. Estava particularmente interessado em se especializar em computadores. Era um técnico nisso. Quando aconteceu o acidente, ele se comprometeu a refazer toda a programação sem ônus para a Universidade, desde que permitissem que ele utilizasse o computador para desenvolver uma tese em que vinha trabalhando... — Que tese era essa? — Não sei. Oliver a mantinha em segredo e não o recrimino por isso. Temos visto dezenas de casos em que boas teses são apresentadas, ao mesmo tempo, por dois ou mais alunos. Acho que compreende o fato, não? Alguém tem alguma coisa especial e outro alguém fica sabendo e se apropria... — Sim, eu compreendo — cortou-a ele. — Alguém acompanhou Oliver durante a programação do computador? — Esporadicamente o chefe do departamento vinha aqui. Eu também não me intrometia no trabalho dele. Reconhecíamos a sua boa vontade. Oliver vinha aqui após seu serviço. Ele trabalha para o governo. Todo o seu tempo disponível era importante para nós. Apresentaram-lhe a programação básica e ele a desenvolveu. Tudo está funcionando perfeitamente. Além do esperado, devo reconhecer. — E como homem, como era ele? Alguma coisa entra vocês? O rosto da garota fechou-se, revelando claramente que ela se ofendera com a indagação. — Estou noiva, Sr. Max, e amo meu noivo. Quando a Oliver, sempre esteve mais interessado no computador do que em qualquer outra coisa — ela disse, revelando, agora, no tom de voz, um despeito velado, uma ligeira ferida em seu orgulho próprio. — O que é surpreendente. Você é muito bonita! — observou Trianon, retirando-se e deixando-a com uma curiosa expressão no rosto, entre lisonjeada e ofendida. *** Meia hora após seu encontro com Norah Cooper, Trianon estava na Classic Tour, uma agência de viagens das mais conceituadas do país, com escritórios nas principais capitais do mundo e filiais em todos os estados americanos. Foi atendido por Fred Walkmann, o agente de viagens de Oliver Clark. Ali se inteirou da programação de férias de Oliver e de todos os detalhes. Não parecia satisfeito, quando se retirou, algum tempo depois. Ficou algum tempo no carro, consultando um guia da cidade. Depois dirigiu calmamente pelas ruas de Washington. Nuvens escuras pairavam no céu, anunciando outra nevasca. Algum tempo depois, estacionava o carro diante de um luxuoso prédio na Praça Jefferson. Tomou o elevador e foi até a cobertura, onde estavam as instalações da Academia Pandha de Ioga. Pessoas lotavam a sala de espera, trocando conselhos sobre dietas macrobióticas ou mergulhadas em intrincadas filosofias de domínio físico e mental. Trianon se dirigiu à secretária. Queria falar com Pandha, o proprietário. Ao exibir sua identificação, tudo lhe foi facilitado. Ele foi levado a um escritório, onde um homem magro, com um turbante negro e uma túnica da mesma cor o recebeu. — Gostaria de falar sobre Oliver Clark, um de seus alunos — disse o agente especial. — Algo em particular sobre ele? — indagou o outro, com certa preocupação. — Apenas rotina — observou Trianon, secamente. — Bem, Oliver é um dos meus melhores alunos. Seus progressos no controle da mente são surpreendentes, a começar por sua memória. Sua resistência à dor atingiu o ponto máximo. É fantástico! Penso que ele trabalha em algum serviço onde a tensão seja extrema. Eu o submeti a exercícios de resistência à pressão e à dor. Ele se condicionou muito bem. Havia uma expressão patética no rosto de Trianon, mas nenhuma surpresa. — Quer ser mais claro, por favor, a respeito desse treinamento! O homem diante dele apanhou uma agulha e, num movimento rápido e inesperado, picou a mão de Trianon, que se retraiu com rapidez, crispando-se. A outra mão já se encontrava apoiada ao coldre da arma sob a axila, pronta para sacá-la, quando Pandha começou a rir. — Estenda novamente a mão, senhor! — pediu. Trianon o observou atentamente, depois o atendeu. Pandha segurou-a entre seus dedos longos e finos, depois pousou a agulha sob a unha do polegar do agente. Fez menção de espetá-la ali. Trianon livrou-se da ameaça com um repelão. O outro riu novamente. — Isto seria apenas um aperitivo para Oliver. A dor não existe para ele, basta ele desejar. Ela é, então, relegada a um segundo plano em sua mente, graças à concentração e... — Quer dizer que ele poderia ser torturado sem ceder? — espantou-se Trianon. — O exemplo é um tanto invulgar, mas dá a exata noção do resultado do treinamento. Sim, Oliver pode ser torturado. E tem mais. Ele sempre quis ir mais longe. Resistência psicológica, entende? Algo difícil. Mesmo as drogas mais poderosas... — interrompeu-se Pandha, encarando Trianon com uma expressão maravilhosa no rosto, como se compreendesse, afinal, algum mistério. — Algo errado? — indagou Trianon. — Qual é a natureza do trabalho de Oliver, senhor? — indagou o outro. — É sigilo, sinto muito não responder. O iogue riu, balançando a cabeça num movimento afirmativo. — Seja o que for, Oliver deve ser alguém importante. Se correr o risco de ser torturado, só dirá ou fará o que quiser. — Justamente porque tivesse se preparado para ela espontaneamente — disse Trianon, retirando-se. O agente tomou o carro e retornou ao Pentágono. Foi até a sala de comunicações e pediu que ligassem para embaixada americana na Alemanha Ocidental, o que foi feito rapidamente. — Jonas Krill, sou eu, Trianon. Estou em missão. Quero que verifique tudo que possa ter ocorrido de anormal por aí, tanto no seu setor como no setor oriental. — Como o quê, por exemplo, Trianon? — Movimentação de agentes, principalmente russos ou aliados deles. Veja o que surgiu de novo, o que aconteceu de diferente, o que ficou sem resposta para seu pessoal. Se tiver alguma coisa para mim nesse sentido, deixe com o pessoal aqui em Washington. Posso confiar em você? — Como sempre, amigão — respondeu o outro. Após desligar, Trianon deixou com o operador o telefone do Welington Hotel, onde iria se hospedar. Se surgisse algo de urgente ou de máxima importância, deveria entrar em contato com o General Foster, que se encarregaria de localizá-lo. Agradeceu e se retirou. INVESTIGAÇÃO Após o almoço, Trianon foi até o escritório de Cyrus Sarasse, encarregado do setor de arquivo e pesquisa, duas tarefas ligadas, já que a ele competia o arquivo das mensagens e a ordem inicial de investigação de qualquer item confidencial. Trabalhava diretamente ligado ao chefe da OIR. Sally, a secretária, o atendeu. Cyrus havia saído. — Quero ver o arquivo dos relatórios do STE — pediu ele. — Algum em particular? — Tudo o que se referir à Seção Europeia nos últimos quinze dias. — É toda sua — disse ela, apontando a máquina leitora de microfilmes, onde Trianon foi se sentar, quanto ela ia até o arquivo e trazia algumas pequenas caixas quadradas, contendo rolos de microfilmes. O primeiro deles foi acoplado à máquina. Trianon começou a verificar relatório por relatório. Foi apressando a passagem do filme. Terminou o primeiro rolo. Acoplou o outro imediatamente e continuou. Deteve-se por instantes no quadro onde era mencionada a mensagem regulamentar das férias de Oliver Clark. Continuou verificando. Não parecia procurar algo em especial. A paciência em seu rosto era reflexo de uma frieza interior. A testa vincada revelava, porém, uma ligeira preocupação, facilmente interpretada como enfado naquele seu rosto estranho e inexpressivo. — Se me disser exatamente o que procura, talvez eu possa ajudá-lo — disse Sally, que o estivera observando. — Aconteceu algo de anormal por aqui ultimamente? — Nada além de perturbação solar. — Quando foi isso? — Há alguns dias atrás. Tudo o que foi transmitido naquele período está no terceiro rolo... Esse com a etiqueta amarela — apontou ela. Trianon apressou a passagem do filme que estava na máquina, acoplando aquele indicado por Sally. Examinou atentamente cada relatório. Um deles chamou-lhe a atenção, afinal. Algo parecido com alegria estampou-se em seu rosto. Acionou a copiadora, reproduzindo aquele relatório. — Encontrou o que procurava? — indagou Sally, solícita. — Sim — respondeu ele, levantando os olhos para observar a entrada de Cyrus Sarasse na sala. Sally fez as apresentações. Trianon estendeu a cópia do relatório para Cyrus. — O que foi feito a respeito disso? — indagou. Cyrus apanhou o relatório, piscando os olhos miúdos. O cigarro ficou queimando entre seus dedos amarelados. Quando terminou a leitura, ergueu os olhos para Trianon e disse, pateticamente: — Não me lembro de ter lido isto... *** No Serviço de Transmissões e Escuta, Trianon procurou por Angus Hyde, sendo informado que o operador fazia o turno da manhã apenas. Indagou por Arthur MacBeth, citado no relatório, mas este apenas estaria de volta no primeiro turno da noite. Trianon pediu e obteve, então, o endereço particular de Angus, indo encontrá-lo fiscalizando o jardim de sua casa, num bairro tipicamente residencial. Apresentou-se e indagou-lhe de imediato a respeito da mensagem e do relatório. O embaraço e o medo estamparam-se no rosto de Angus, numa curiosa máscara. — Você é do Serviço Especial, não é? — indagou, preocupado, embora tivesse visto a identificação de Trianon. O agente confirmou com um aceno de cabeça. — Procuro Oliver Clark. Meu objetivo é encontrá-lo. O que quer dizer isto? — perguntou, estendendo-lhe a cópia do relatório. Angus o convidou para entrar. Sua esposa e as crianças haviam saído para compras. Ofereceu uma bebida a Trianon, que recusou com um gesto. O nervosismo era crescente no operador. — Aquele bastardo! — desabafou Angus, que compreendia que nada poderia ser omitido naquelas circunstâncias. — Eu ensinei a ele esse velho código. Ele insistiu. Fizemos uma aposta alguns dias antes de sua viagem. Ele dizia que conseguiria introduzi uma mensagem em nosso sistema de transmissão e escuta, mas eu duvidei. Não havia como fazer isso. Ele disse, então, que só precisava de um código já desativado. Dei-lhe um, então. Eu havia bebido um pouco e o desafio me irritou, de certa forma. O idiota realmente fez o que prometera. Houve turbulência, as mensagens ficaram truncadas. Nós as repetimos, exceto essa, é claro. Não fora nossa transmissão... — Tem ideia de como ele conseguiu transmitir isso? — Realmente eu não sei... Oliver era um diabo em eletr6onica. Podia fazer qualquer coisa que quisesse realmente, por mais absurda que fosse a ideia. Eu não devia ter-lhe dado o código, apesar de desativado já — lamentou Angus, terminando sua bebida e servindo-se de outra imediatamente. — Houve alguma complicação? Isso vai afetar minha carreira? — Eu não sei — respondeu Trianon. — Acha que essa mensagem tem alguma coisa a ver com o desaparecimento de Oliver? — Também soube disso? Como? — As mensagens que temos transmitido... Trianon ergueu-se sem lhe responder. Deu-lhe as costas e saiu. Angus estava assustado. *** Trianon retornou à Universidade, procurando por Norah. Foi encontrá-la na sala do computador, operando-o. Por algum tempo ficou atrás dela, observando seu trabalho, até que ela se voltasse. Ele esboçou um sorriso, então. — Mais alguma coisa, Sr. Max? — quis saber ela. — Sim. Este computador pode fazer transmissões? — Como assim? — Digamos... Ele poderia transmitir uma mensagem para a Europa? — Isso é estranho, mas computadores podem fazer uma porção de coisas, desde que programados. Nesse caso, precisaria ainda estar acoplado a um transmissor... — E está? — Não. — Oliver mencionou alguma coisa a esse respeito? — Não, nada, mas sei que esteve na sala de transmissão. Temos uma onde os alunos fazem estágio. — Onde fica? — Do outro lado dessa parede — apontou ela. — Ele pode ter ligado o computador ao transmissor? Teoricamente? — Se o quisesse, mas não vejo porque o faria, sem nos comunicar, sem pedir uma autorização. — Este computador tem conexão com outros? — Sim, com uma série de outros. O do senado, para registro de novas leis e projetos. Com outras universidades, com alguns bancos... — Bancos? — cortou-a ele, interessado. — Sim. Muitos alunos efetuam seus pagamentos por crédito direto. Nós fazemos pagamentos da mesma forma... — Estaria ligado ao National Bank? — Não, o National Bank é um banco governamental com caráter próprio... — Isso pode ser verificado? — Sim, pode — afirmou ela, voltando-se para o teclado. Datilografou durante algum tempo. Uma lista de bancos que operavam diretamente com a Universidade, tanto para créditos como para débitos, surgiu na folha de resposta. O National não estava entre eles. Trianon agradeceu e se retirou. Algum tempo depois estacionava o veículo diante do Texas Bar, na Lincoln Street. Entrou. Rapazes e garotas vestidas à moda cowboy circulavam por entre as mesas. Uma índia vendia cigarros. Um grupo musical, formado por uma rabeca, um contrabaixo e uma guitarra, agitava-se no palco decorado com motivos country. O agente sentou-se a uma das mesas. Pediu suco de tomate e ficou ouvindo música caipira durante o resto da tarde, com uma expressão estranha no rosto magro. *** Quando chegou ao hotel, no começo da noite, encontrou um recado a sua espera na portaria. Após lê-lo, voltou ao carro e rumou ao Clube dos Oficiais da Base de Garrard, onde procurou o General Foster. Ele o conduziu a uma sala reservada, ao lado do bar. — Recebemos algumas informações de Jonas Krill. Seus agentes em Berlim Oriental notaram certa movimentação por lá. Souberam da presença de Bakou, um dos nossos mais ilustres adversários na espionagem. Sua presença significa que algo grande está em andamento por lá, Além disso, anteontem, um Tupolev chegou ao Aeroporto Schonefeld e uma preciosa carga de material eletrônico foi levada para Berlim. Estão tentando localizar para onde a levaram. Um grupo de pessoas chegou também com a carga. Iminentes técnicos alemães, de repente, sumiram da cidade. Acho que não é preciso dizer mais nada a respeito o que está havendo, não? Eles pegaram Oliver. Você deve ir para lá imediatamente. — Amanhã — disse Trianon. — Há algumas coisas que ainda não compreendi. É importante que eu termine minhas investigações aqui primeiro. — Pretendem usar Oliver, Trianon. Não sei o que poderão fazer, se ele vai colaborar ou não... — Saberemos em breve... — Não dispomos de tempo. Seja lá o que for que Oliver possa fazer por eles, só poderá ser feito amanhã. Depois disso, o dispositivo de segurança do computador apagará completamente os registros sobre a existência de um operador autorizado chamado Oliver Clark. Depois disso, será como se ele não tivesse existido para aquela máquina. — Seja lá o que for que vai acontecer, general, não poderemos evitar. Já deve estar pronto. Pode estar acontecendo agora. Descobrir o que pode ser feito é a única maneira que temos para minimizar-lhe os efeitos. Eu o verei amanhã, general. De volta ao carro, Trianon não se dirigiu para o hotel. Retornou ao Texas Bar, onde pediu uísque de milho do Kentucky e ficou ouvindo o conjunto caipira. A LOURA ESPETACULAR. Na manhã seguinte, às sete horas, Trianon se encontrava na sala de Female, aguardando a chegada de George Staford, o operador. Quando este chegou, era visível que sua noite não fora das melhores, já que profundas olheiras mascaravam seu rosto e seus olhos ainda estavam ligeiramente injetados. Ao ver Trianon, esboçou um sorriso sem graça, como que justificando seu estado lastimável. — Tenho mais algumas perguntas a fazer — disse Trianon, friamente. — Sim, claro. Dê-me tempo de checar o computador. São só alguns minutos — pediu George, cumprindo a rotina e depois indo apanhar um café. — O que deseja saber? — indagou, quando retornou. — Female pode ser acionado à distância? — À distância? — surpreendeu-se George, não entendendo a pergunta. — Uma conexão, ou sei lá como possa ser chamado isso, pode ser tentada à distância e fazer Female operar? — Não, é impossível! — afirmou George e uma expressão decepcionada estampou-se no rosto magro do agente, que se moveu inquieto de um lado para outro. — Não que seja incapaz disso; o fato é que não foi programado... Trianon imobilizou-se e encarou-o. George suava e estava pálido. — Sente-se bem? — indagou ao operador. — Sim, estou bem. É apenas ressaca. Tomei uma aspirina... Acho que me deram dinamite pura para beber. Apaguei-me no colo da loura mais espetacular do Saint James Club — riu George, tentando dar ares de importância ao que dizia. — Se era assim tão espetacular e do Saint James, gostaria de saber o nome dela — falou Trianon, com um riso malicioso nos lábios. — Nelly O'Hara — apressou-se em responder o outro. — Diga que é amigo do George e do Peter... — Peter? — Peter Johnson, ela deve conhecê-lo. A festa de ontem foi no apartamento dele. Que festa! Se minha esposa soubesse... — Mas voltemos a Female. Você disse que, caso fosse programado, poderia ser acionado à distância... — Entenda bem o que quis dizer com distância: não me refiro a uma operação a partir de Londres ou Paris, estaria fora do esquema, pois seria detectado pelo serviço de Transmissões e Escuta e imediatamente bloqueado. A operação poderia, teoricamente, ser realizada através de outro computador, esse livre de vigilância. Teria de estar igualmente programado e aqui por perto... — Teoricamente, então, o computador auxiliar, digamos, poderia ser acionado a partir de Paris? — Se programado, é claro. Eu entendo perfeitamente o que quer dizer. Uma cadeia operacional que começaria em Paris acionaria o computador auxiliar, como você mesmo definiu, e este, por sua vez, acionaria Female. Posso perguntar por que alguém faria isso? — indagou George, intrigado. — É o que gostaria que você respondesse. Se alguém, em Paris, seguindo o exemplo, acionasse seu computador, ligando o computador auxiliar a Female e acionando este, o que poderia obter? — Inicialmente teria de saber operar Female e vencer seu esquema de segurança... — Suponhamos que a pessoa interessada tenha feito isso. — Ela poderia fazer qualquer coisa como acionar Female, efetuar uma transferência de dinheiro do National Bank para o Richemond, numa conta numerada de máximo sigilo. Creio que seria esse o objetivo de alguém capaz de executar essa cadeia operacional. — Indo um pouco mais longe — falou Trianon, tenso, — haveria um meio de retirar uma informação do Richemond Bank, como, por exemplo, a rotina de comunicação do destinatário do dinheiro transferido? — Se ele fosse um dos agentes a serviço nosso e tivesse acesso à rotina especial de comunicação de recebimento, sim. A consulta pode ser feita. É uma operação simples, até certo ponto. Basta conhecer a rotina. E os códigos, é claro. A consulta, aliás, independe de transferência de numerário. Posso acionar Female agora e indagar ao Richemond como é feita a comunicação ao titular da conta Az-09807-7, por exemplo. Fazemos isso rotineiramente, da mesma forma como procedemos a alterações ou cancelamentos. Mas há um detalhe importante em toda essa cadeia operacional, Sr. Max: apenas eu, no momento, poderia fazer isso. Qualquer outra pessoa teria de saber a chave de acesso a Female, liberando-o para si. Ela é pessoal, eu a criei e programei. Está apenas aqui — disse George, apontando para a própria cabeça, com um sorriso orgulhoso e confiante. Trianon aproximou-se e encarou-o no fundo de seus olhos injetados. — A menos que a dinamite pura que lhe deram ontem o tenha feito falar, placidamente recostado no colo de uma loura espetacular, chamada Nelly O’Hara — disse Trianon, apanhando um telefone na mesa ao lado e pedindo uma ligação urgente com o Saint James Club. George endureceu, tenso, em sua cadeira, enquanto o agente especial falava. — Não há nenhuma loura espetacular chamada Nelly O'Hara trabalhando no Saint James Club — informou Trianon. George tornou-se lívido. O suor escorreu pelo seu rosto Trianon fulminou-o com um olhar glacial e retirou-se apressadamente. *** Trianon procurou imediatamente o General Foster, que se encontrava numa reunião. Ao ser informado da presença do agente, compreendeu que se tratava de algo importante, saindo imediatamente e indo ao encontro dele. — General, é de suma importância que se lembre do que vou perguntar: há algum espião nosso, a serviço na Rússia ou na Alemanha Oriental, cujo trabalho possa estar perturbando sobremaneira a cúpula soviética. Por momentos o general pensou, enquanto sondava o rosto sombrio e tenso do agente. — Sim, temos, é claro. Há um espionando os progressos no campo da energia, mas suas informações não têm sido frequentes... Há outro, no campo das armas, este, sim, nos tem sido valioso, pois suas informações nos permitirem um equilíbrio perfeito entre as novas armas russas e nossas defesas. Estrategicamente, talvez seja o nosso agente mais importante no momento... — Talvez esse homem esteja ameaçado, general. Talvez o plano todo seja para localizá-lo — disse Trianon, fornecendo-lhe detalhes de sua conversa com George que permitiam essa dedução. Antes que chegasse ao fim, porém, o telefone tocou. O general atendeu e empalideceu imediatamente, desligando. — Está acontecendo — falou, num desabafo agoniado. — Female está sendo acionado. Rapidamente rumaram para lá. Havia certo alvoroço na sala do computador. George Staford apertava botões e acionava chaves desesperadamente. — O que está havendo? — indagou o general, aos berros. — Ela está repassando dinheiro do National para o Richemond — berrou George, aturdido e à beira de uma crise nervosa. — Pare isso! — gritou Trianon. — Impossível — respondeu George. — A transmissão é irreversível. — Desligue a energia... — Female é autônomo... — Destrua-o, então — berrou Trianon, sacando sua pesada Colt 45. — Não seja louco, homem — gritou o General, segurando-lhe o pulso. — São milhões de dólares de gastos e anos de pesquisas. É uma nova linguagem de computadores, sofisticado ao extremo, desconhecido dos melhores técnicos civis... — Um homem pode morrer, general —argumentou Trianon, com a arma já engatilhada. — Se está referindo ao espião, é o preço a pagar. Ele sempre soube dos riscos, é substituível. O computador, não! — respondeu o General. — Vejam! Foi feita uma consulta ao Richemond. Ele está informando! — berrou George. Todos ficaram em silêncio, fixando os olhos no visor, onde a mensagem começava a tomar corpo: RPT CONSULTA 0796 — ROTINA DE COMUNICAÇÃO — MSC HOTEL WIEN BUDAORSI UT 88 BUDAPESTE A/C ONUSZ ZOLTAN... CONEXÃO HOTEL LENINGRASKAYA MOSCOU URSS A/C PETRO BORISTPOV... CONTATO DIÁRIO RUSSPY SORBONY... HAVERÁ ALTERAÇÃO??? Ok checando rotina!!! — Deve haver um meio de alertar o nosso homem — falou Trianon. O general encarou-o e a expressão de seu rosto era de puro desalento, dando a entender o destino reservado ao agente em missão na Rússia. Trianon desengatilhou a arma e guardou-a. Fitou o computador com apreensão. Releu a mensagem ainda no visor. Havia um número de conta e uma transferência de dois milhões de dólares para ela. Voltou-se para o pálido e apavorado George. — Esta conta pertence ao espião russo? George, trêmulo, efetuou uma consulta ao computador. — Não, não consta do relatório de contas — disse num fio de voz. Os olhos do agente especial cintilaram de puro ódio. — Conhece o sistema de segurança do Richemond Bank? — É de segurança máxima. O número da conta leva a um nome, podendo ser falso e geralmente é. Para obter qualquer informação sobre a conta, você precisa saber o número e o nome... — Se fizermos uma consulta agora ao Richemond, solicitando confirmação da transferência, do número da conta e do nome, o que aconteceria? — Ele bloquearia e solicitaria os dados completos: número da conta e nome. A resposta poderia ser conseguida se tivéssemos a chave de segurança capaz de romper esse bloqueio... — Talvez certa loura espetacular do Saint James Club possa nos ajudar — ironizou Trianon e George esteve à beira de um colapso, sob o olhar intrigado do General Foster. A VIAGEM Naquele mesmo dia, Trianon embarcou num jato da Força Aérea, desembarcando no Kennedy Airport, onde tomou outro, da Lufthansa, com destino a Berlim. Na manhã seguinte, fria e nebulosa, avistava-se com Jonas Krill, numa ala reservada da embaixada. — Acabamos de saber e lamentamos, Trianon. Nosso agente na Rússia foi capturado. Vamos enfrentar sérios problemas estratégicos, até que um novo agente consiga acesso aos novos planos armamentistas soviéticos e localização das instalações de mísseis. Uma expressão de fúria e desalento estampou-se no rosto de Trianon. — Souberam alguma coisa sobre Oliver Clark e Bakou? — Bakou ainda está por aqui. Foi visto ontem, no lado ocidental. Está sendo seguido. Nada sabemos sobre Oliver ainda. Presumo que esteja morto. Tentamos encontrar o local para onde levaram o carregamento do Tupolev. Isso só foi conseguido nessa madrugada, quando um comboio se movimentou de um bairro de Berlim Oriental. Investigamos o local. Nada encontramos de especial, a não ser vestígios de que várias pessoas estiveram ali durante alguns dias e que qualquer coisa foi montada. Julgo que tenha relação com a antena que instalaram na Alexander Platz e que, ontem, durante uma hora mais ou menos, causou interferências nas transmissões de TV. A antena foi desmontada ontem à tarde mesmo e nenhuma explicação oficial foi feita. Há algo que possa fazer por você, além disso? O telefone tocou. Jonas atendeu e uma expressão irritada estampou-se em seu rosto. — Continuem tentando. Precisamos localizá-lo! — ordenou, desligando. — perderam Bakou e seus acompanhantes — disse encarando Trianon. — Quem acompanha Bakou? — Um homem e uma mulher. Não sabemos ainda quem são. Alguma ideia? — O homem talvez seja Oliver Clark. A mulher eu não sei. — Oliver Clark? Por que ele? Deve estar morto! — Talvez — disse Trianon, num tom vago. — O que pretende fazer agora? — Esperar. Precisamos encontrar Bakou! — Para quê? — Preciso de algumas respostas — afirmou Trianon. — Depois matá-lo, talvez — acrescentou, com ódio. Durante o resto do dia, Trianon circulou pela cidade, sem um rumo definido. Passeou ao longo do muro, acompanhado de um dos homens de confiança de Jonas Krill. À noite foram jantar no Hardtke, onde provaram uma comida típica alemã. Depois retornaram ao hotel. Trianon se mostrava tenso, como uma fera metida numa jaula ou um rato num labirinto. A frieza de seu rosto fora substituída por uma expressão profunda de rancor. Seus olhos brilhantes se cobriram de uma película transparente, tornando-os esgazeados e assustadores. Apenas de madrugada recebeu a informação que aguardava. Bakou fora até a Suíça. De lá embarcara para a Polônia, acompanhado de uma mulher. Trianon tomou o primeiro trem da manhã para Varsóvia. DESFECHO DE UMA TRAIÇÃO. No mesmo dia, ao amanhecer, no elevador do Victoria Intercontinental Hotel, na Kroslowsko Str. 11, em Varsóvia, Bakou e Geórgia subiam para o apartamento que ocupavam no quinto andar, com vista para a rua, após retornarem de um inocente passeio. Na cabine, apenas os dois, o ascensorista e um homem magro e baixo, ligeiramente calvo, com aparência doentia. Quando o elevador parou no quinto andar, o casal russo deixou-o, seguindo pelo desconhecido. Caminharam ao longo do corredor acarpetado que abafava seus passos. Bakou parou diante de uma porta, tilintando a chave. Introduziu-a na fechadura e abriu-a. Geórgia passou. Ele a seguiu. Quando ia fechar a porta atrás de si, o homenzinho que vinha pelo corredor chutou-a, derrubando Bakou para trás. Antes que Geórgia pudesse gritar, uma arma automática Colt 45, com um longo silenciador, surgiu na mão do desconhecido. Bakou olhou-o com surpresa e ódio. — Quem é você? O que quer? — indagou o russo, fazendo menção de introduzir uma das mãos pela gola do sobretudo. O estalido da Colt sendo destravada o fez imobilizarse. O silenciador era um cano de escape em miniatura, exibindo a boca ameaçadora por onde passaria um projétil de 45. — Você é Bakou, não? — indagou o homem calvo. — Meu nome é Wladimir Snoskaya... — Onde está Oliver Clark? Bakou empalideceu. Geórgia estava trêmula. O americano continuava imóvel, frio e impassível como uma estátua. — Nós o deixamos na Suíça. Internou-se numa clínica de repouso em Zurique. Ele precisava disso, após ter traído seu país — falou o russo, com zombaria, mas calou-se ao ver que nenhuma emoção provocara no desconhecido. — Qual a identidade dele agora? Seu nome, quero apenas o nome — ordenou Trianon. — August Zopper — disse Bakou, começando a se levantar lentamente, fixando-se nos olhos do homem diante de si. Levantou um dos braços como se fosse pedir alguma coisa, embora seu olhar revelasse a clara intenção de suplicar. A bala partiu abafada do cano da Colt 45 e o atingiu na testa. Sua cabeça foi jogada violentamente para trás. Sangue e miolos grudaram-se à parede atrás dele, enquanto seu corpo desabava como um pesado tronco sem vida. Geórgia esboçou um movimento. Seus miolos espalharam-se pelo tapete rosa felpudo. Chumaços de seus cabelos, gotejando sangue, caíram sobre a cama de casal, manchando a colcha de arminho. Trianon guardou a arma e saiu pela porta, com os lábios crispados e retorcidos numa careta de ódio e nojo. *** Oliver Clark estava num pequeno chalé, nas proximidades do lago Leman, repousando numa confortável poltrona de couro no alpendre, apesar do vento frio que soprava, encrespando as águas do lago. No interior do chalé, uma bela loura preparava um delicioso fondue Bourgovignore, que espalhava seu aroma pelos aposentos. A aparência do americano era das melhores. Suas faces estavam coradas e seu físico mostrava-se em forma. Estivera numa clinica de repouso por cinco dias, submetido à sonoterapia e desintoxicação. Um carro esporte importando estava estacionado no abrigo ao lado. Um barco novíssimo estava junto ao ancoradouro, aguardando o degelo. Algumas caixas de uísque escocês, junto a uma centena de garrafas de vinhos franceses das melhores marcas abasteciam sua adega. Queijos finíssimos estavam armazenados na despensa. Caviar o aguardava no gelo. Pacotes de roupas recém-chegados dos melhores alfaiates de Genebra esperavam o momento de serem desfeitos, para que ternos de talhe impecável fossem ornamentar o amplo armário espelhado no quarto principal do andar superior do chalé, — Quer mais uísque, Oliver querido? — indagou a loura num inglês sofrível, mas esforçado. — Sim, Leone — respondeu ele, levantando a gola de pele de seu sobretudo. Leone apanhou a garrafa e saiu para o alpendre. Um carro acabara de chegar. Um homem baixo e ligeiramente calvo desceu, sorrindo amistosamente. Acenou para Oliver, depois começou a subir a escadaria que o levaria ao alpendre do chalé. Oliver se ergueu surpreso e intrigado. — Você é August Zopper? — indagou o recémchegado. — Sim. Quem é você? — Sou do Richemond Bank. Preciso de uma assinatura sua nuns papéis — disse o outro. — Está bem, chegue até aqui. O desconhecido chegou até Oliver e lhe entregou um envelope. Leone ficou atrás, sorrindo com a garrafa de uísque nas mãos. Oliver abriu o envelope e retirou os papéis. Leu-os, depois empalideceu e fitou pateticamente o homem a sua frente. A surpresa fora terrível. Fez menção de protestar e uma Colt 45 foi apontada para seu rosto. — Assine! — ordenou o baixinho. Oliver ficou tenso e abismado por momentos, fitando os olhos frios do homem diante dele. — Preciso de uma caneta — disse num fio de voz. — Aqui a tem — falou o outro, passando-a para Oliver, que a apanhou e assinou os documentos, devolvendo-os. — E agora? — indagou, estupidamente. O desconhecido dobrou os papéis, meteu-os no envelope e guardou-o no bolso interior do sobretudo com gola de pele de lontra. Depois fez uma expressão indefinida e apertou o gatilho. A cabeça de Oliver dobrou-se violentamente para trás. Seus miolos ensanguentados espalharam-se sobre Leone e a parede. A garota gritou, horrorizada, soltando a garrafa. Foi seu último gesto. O RELATÓRIO FINAL Sentado diante do general e de outros oficiais do Departamento da Defesa, Trianon iniciava seu relatório verbal a respeito do caso Oliver Clark. — Oliver Clark foi um traidor. Já o matei. Seu plano foi perfeito e seu grande mérito foi ter feito os russos de palhaços. Era inteligente, muito mais do que possam imaginar, e se preparou conscientemente, premeditando o plano. Era um homem de bom gosto e talvez se ressentisse de melhores condições para revelar isso. Apossar-se de dois milhões de dólares do governo americano lhe pareceu algo fácil, suponho, e ele provou isso. Inicialmente preparou Female, conectando-o ao computador da Universidade, a que teve acesso fácil. Sabotou-o e se prontificou a refazer a programação. Preparou, então, os dois computadores para agirem a seu comando. Transmitiu uma mensagem de sua viagem num código ultrapassado, usando o computador da Universidade. Esse código, penso eu, era do conhecimento dos russos e Oliver Clark sabia disso. Num dia propício, onde a ineficácia ou conivência de alguns de nossos homens facilitou-lhe a execução do plano, transmitiu a mensagem para que ela chegasse ao conhecimento dos russos. Oliver estava preparado, então, para ser apanhado e forçado pelos russos a trabalhar para eles. Havia um espião nosso entre os russos, burlando-lhes os planos das melhores armas estratégicas e frustrando-lhes os planos de uma supremacia nesse campo. Oliver usou isso como isca. A mensagem seguramente os intrigou. Investigaram, o que nós também teríamos feito, descobrindo quem era ele e o que fazia. A ideia de usá-lo deve ter surgido naturalmente. Oliver foi apanhado e cooperou. Não sei dizer se foi torturado ou não, mas também estava preparado para isso. Atingiu um salto grau de controle físico e mental praticando ioga. Isso poderá ser comprovado com as declarações de seu mestre. Os russos, então, providenciaram instalações para que ele pudesse agir, entregando-lhe todo o material de que ele necessitava para seu próprio beneficio, não importava o fato de que isso pudesse custar uma ou mais vidas. Profundo conhecedor do assunto, dotado de memória prodigiosa, ele obteve uma conexão com o computador da Universidade, que havia sido preparada para operar Female. Uma revisão minuciosa da programação dos dois computadores seguramente comprovará isso. Restava-lhe, porém, um problema e esse Oliver entregou aos russos, que o resolveram sem muita dificuldade, creio. Como estivesse de férias, Oliver não poderia operar Female de modo algum, a menos que soubesse a chave de segurança operacional, criada pessoalmente por seu substituto, o operador George Staford. Graças a sua discrição e seu interesse por mulheres, principalmente louras espetaculares, essa chave de segurança tornou-se do conhecimento dos russos, que a forneceram a Oliver para que efetuasse a transferência de dois milhões de dólares para uma conta numerada no Richemond Bank. Ao mesmo tempo, forneceu aos russos a informação que eles desejavam sobre nosso espião. Não sei que tipo de acordo fizeram com ele, soltando-o ao final. Procurei, então, o agente russo que suspeitava haver chefiado toda a operação. Encontrei-o em Varsóvia. Ele me informou o paradeiro de Oliver. Procurei inicialmente em Zurique, nas clínicas de repouso, mas o complexo esquema de segurança deles me prejudicou. A pista, então, era o Richemond Bank. Eu tinha o número da conta, mas não o nome. Arrisquei, então, a nova identidade que me fora informada por Bakou, o agente russo. Oliver na certa deveria ter posto seu novo nome na conta. Acertei em cheio. Com essas informações pude solicitar um extrato da conta. Um saque de cem mil dólares já havia sido feito. O endereço para correspondência anotado no extrato era de um chalé, no Lago Leman, para onde me dirigi, após me informar com o banco o que deveria ser feito para se obter uma transferência de numerário de uma conta para outra. No caso, da conta de Oliver Clark para uma conta que abri em nome do governo americano. Recebi os formulários. Preenchi-os com a importância de um milhão e novecentos mil dólares, saldo da conta de Oliver, e levei para que ele assinasse, juntamente com uma confissão que eu preparara, segundo o que descobrira em minhas investigações. Oliver assinou tudo. Eu o matei em seguida. Está tudo em meu relatório escrito, inclusive outros detalhes e algumas sugestões para uma revisão geral nos dispositivos de segurança do pessoal especializado e de interesse nacional. Há muitas falhas e muitos riscos. Anotei os nomes das pessoas diretamente envolvidas que, com sua omissão, negligência, incapacidade, ou, o que é pior, conivência permitiram que isso acontecesse e que uma lacuna fosse aberta em nosso sistema de defesa. Quanto a Oliver Clark, reconheço que foi uma jogada arriscada, altamente perigosa e desesperada. Poderia ter sido morto, mas tinha dois milhões a lucrar, talvez mais, se o quisesse. Ele não hesitou, penso eu. Foi um tiro no escuro que acertou em cheio um bando de patos russos. A seu crédito, repito, devemos apenas o fato de ter zombado da Primeira Divisão da KGB como ninguém jamais o fez antes. Trianon ergueu-se. Deixou a pasta sobre a mesa e se retirou. Talvez pensasse em sua moto, nas garrafas que esvaziaria e arrebentaria, em alguma música caipira, numa certa garota do Saint James Club ou, então, não pensasse absolutamente em nada. FIM