Urbanização e mobilidade cotidiana em São Paulo
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Urbanização e mobilidade cotidiana em São Paulo
Universidade de são Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Geografia FLÁVIO DE CAMPOS VENDRUSCULO Urbanização e mobilidade cotidiana em São Paulo: Um estudo sobre a dinâmica dos deslocamentos motorizados no distrito de Pirituba São Paulo 2012 FLÁVIO DE CAMPOS VENDRUSCULO Urbanização e mobilidade cotidiana em São Paulo: Um estudo sobre a dinâmica dos deslocamentos motorizados no distrito de Pirituba Trabalho de Graduação Individual apresentado ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Mendes Antas Jr. São Paulo 2012 II Aos meus pais, Laerte e Ivone. III Resumo Neste estudo abordaremos o urbano contemporâneo a partir de um de seus componentes mais relevantes para as possibilidades de fruição e realização da vida cotidiana nas cidades, os deslocamentos diários. Com isso em mente pretendemos investigar os diversos contextos de mobilidade na metrópole paulista ao longo dos diferentes momentos e transformações do processo de urbanização brasileira e seus nexos com as transformações no sistema de movimentos internos à cidade de São Paulo. Para tanto atentaremos para os elementos que compõem a atual questão sobre mobilidade cotidiana na cidade, tais como o crescente uso do automóvel particular e a grande relevância que possuem os transportes coletivos para a efetivação dos deslocamentos diários na cidade. Neste sentido nossa análise procurará encaminhar-se numa abordagem escalar na qual pretenderemos centralizar as reflexões teóricas acerca dos processos gerais em relação às escalas geográficas de análise progressivamente mais particularizadas e específicas. Portanto nosso estudo ganha maior empiria na medida em que nos aproximamos de nosso objeto de estudo: a dinâmica de mobilidade do distrito de Pirituba. Palavras-chave: mobilidade, urbanização e cidade corporativas, automóvel, Pirituba, fixos e fluxos, transportes coletivos. IV Sumário Introdução 1 Capítulo I: Contexto e anteparo teórico 4 1.1. Urbanização e Cidade corporativas e modelo territorial 4 1.2. A expansão rodoviária e a cidade de São Paulo 9 1.3. Circulação e o funcionamento econômico da cidade 13 1.4. Automóvel e crescimento econômico 19 Capítulo II: Urbanização e movimentos diários em São Paulo: história, contextos e transformações. 30 2.1. O modelo de anéis viários e o urbanismo paulista 30 2.2. A dinâmica dos deslocamentos na metrópole dos anos 1960 aos anos 2000 – Transportes públicos e Transporte individual. 35 2.3. A dinâmica dos deslocamentos em São Paulo e o modelo “centro-periferia” 46 2.4. Mudanças recentes na cidade e na dinâmica de deslocamentos. 56 Capítulo III: Dinâmica dos deslocamentos numa fração da metrópole: 60 Pirituba. 3.1. Contexto geral dos deslocamentos em 2007 60 3.2. Mobilidade cotidiana na Região Metropolitana de São Paulo em 2007 61 3.3. Contexto municipal em 2007 64 3.4. O uso do automóvel nos distritos além-centro expandido 68 3.5. Dinâmica dos deslocamentos em Pirituba – origem e destino no distrito: 76 Periferia-Centro ou Periferia-Periferia. Considerações Finais 91 Referências bibliográficas 95 Anexos 97 V Lista de Tabelas: Tabela 1.1t - Automóveis de passeio na cidade São Paulo Tabela 3.1t – Dados Gerais Tabela 3.2t – Evolução das viagens diárias por modo principal 10 61 62 Tabela 3.3t – Os 25 distritos com mais automóveis e suas populações Tabela das vias mais congestionadas – Folha de São Paulo 98 99 Lista de Mapas: Mapa 2.1 – Planos viários para São Paulo Mapa 2.2 – Principais fluxos de viagens motorizadas 1997 44 57 Mapa 3.1 - Principais fluxos de viagens motorizadas 2007 Mapa da divisão distrital do município de São Paulo 67 101 Lista de Gráficos Gráfico 1.1g – Volume diário Médio em rodovias Gráfico 1.2g – Divisão das viagens motorizadas diárias por renda familiar mensal 1997 e 2007 Gráfico 1.3g – Divisão Modal de São Paulo (1967 a 2007) Gráfico 3.1g – Evolução das viagens motorizadas (19672007) Gráfico 3.2g – Distribuição das viagens diárias segundo modo de viagem e duração Gráfico 3.3g – Frota de automóveis (1967 – 2007) 97 21 Gráfico 3.4g - Distritos com o maior número de automóveis (por unidade) Gráfico 3.5g - Distritos - desproporcionalidade automóveis/habitantes Gráfico 3.6g - Relação habitante por automóvel 71 Gráfico 3.7g - Relação habitante por automóvel Gráfico 3.8g - Modo motorizado na Região Noroeste 73 81 Gráfico 3.9g - Destinos das viagens com origem em Pirituba - Modo coletivo 82 22 61 62 64 72 73 VI Gráfico 3.10g - Deslocamentos por modo coletivo na região Noroeste Gráfico 3.11g - Modo Coletivo - Centro expandido Gráfico 3.12g - Destinos por modo individual 83 Gráfico 3.13g - Destinos das viagens no centro expandido Modo individual Gráfico 3.14g - Destinos das viagens na região noroeste Modo individual 86 84 85 86 VII Introdução Atualmente algumas das discussões mais ávidas acerca do cotidiano nas cidades tendem a se desdobrar para o tema das condições de circulação urbana e mobilidade cotidiana. Neste sentido as questões de mobilidade na cidade têm sido tema abordado por diversas áreas do conhecimento tais como urbanismo, economia, geografia, engenharia etc. No entanto as questões acerca da fluidez dentro da cidade não data da megalópole hodierna, conforme nos assevera Choay (2010). Muito pelo contrário a autora nos aponta uma relativa perenidade dos problemas ligados à mobilidade dentro da cidade que faz parte integrante da história da cidade moderna. A dinâmica dos movimentos nas metrópoles hodiernas participa de tal maneira da vida cotidiana de seus habitantes que deslocar-se se tornou, há tempos, uma necessidade para a efetivação das esferas mais básicas da vida cotidiana, como consumo, trabalho e lazer. Neste sentido, segundo Sevcenko (1991) nos indica, a metrópole moderna supõe “movimento coordenado em massas”, isto é, a gestão dessa avultada quantidade de deslocamentos não pode prescindir de uma “razão científicotecnológica” (Idem) para a sua ordenação, organização e fiscalização. Indo mais adiante, uma das características mais marcantes da experiência e do modo de vida urbano contemporâneos é o movimento, os fluxos, que produzem, em parte, o significado daquela experiência e de grande parte do que constitui o aparato arquitetônico urbanístico da cidade (Idem). Neste trabalho, portanto, procuramos abordar o urbano contemporâneo através de um de seus elementos mais marcantes, os fluxos. Pois atualmente as formulações acerca deste conceito ganharam tal importância na explicação dos aspectos gerais da sociedade que seu sentido pode ser empregado numa miríade de significados, tais como circulação de bens e capitais, informações, tráfego, movimento contínuo de pessoas, coisas ou ideias etc. Desse modo, nosso trabalho se centrará na dinâmica de mobilidade cotidiana na cidade de São Paulo, atentando para os elementos que compõem a atual questão sobre mobilidade cotidiana na cidade, tais como o crescente uso do automóvel particular e a grande relevância que possuem os transportes coletivos para a efetivação dos deslocamentos diários na cidade. As reflexões teóricas desenvolvidas ao longo do desenvolvimento de nossa argumentação ganhará empiria no estudo de caso proposto: a dinâmica de deslocamentos do distrito de Pirituba. 1 Nosso estudo pressupõe uma constante complexificação e multiplicação dos movimentos internos da cidade ao longo das transformações do processo de urbanização, para isso utilizaremos o aparato conceitual proposto por Santos (2009a, 2009b, 2008 e 1997) acerca das particularidades da urbanização brasileira e as reverberações deste processo na cidade de São Paulo. Nossos pressupostos teóricos acompanharão nossa análise ao longo de todo o estudo, os quais procuramos salientar principalmente nos capítulos 1 e 2. Nos dois primeiros tópicos, dos quatro que compõe o capítulo 1, procuramos assentar teoricamente nosso estudo sobre a dinâmica dos movimentos diários na metrópole paulista nas reflexões de Santos (2009a, 2009b, 2008 e 1997) e Singer (1968, 1982) acerca do processo de urbanização brasileira. Procurando dar mais relevo à inserção e o papel desempenhado pelos sistemas de engenharia (no caso os meios de transporte rodoviário) no processo de integração territorial e também ao papel fundamental que tiveram as tecnologias de transporte na configuração urbana, em particular, da cidade de São Paulo. Este capítulo toma por início o contexto da urbanização brasileira pós-1960, a partir do qual propomos, no tópico “Circulação e funcionamento econômico da cidade” traçar um paralelismo entre o aprofundamento da divisão do trabalho e a dinamização dos movimentos dentro das cidades e no território nacional como um todo. No último tópico deste capítulo procuraremos traçar uma relação entre renda, classe e meios de transporte para ilustrar a concomitância entre crescimento econômico e a ascensão do uso do automóvel particular principalmente em cenários de classes médias ascendentes. O capítulo 2 também será composto por quatro tópicos. Os dois primeiros tópicos discorrem acerca da gênese e progressão da motorização individual em São Paulo contando com uma breve análise dos primeiros planos urbanísticos para São Paulo que visavam adaptar a cidade ao uso do automóvel. No segundo tópico levaremos a cabo uma análise dos contextos de mobilidade de cada década que foi realizada a Pesquisa O/D do Metrô a partir das reflexões de Rolnik e Klintowitz (2011), Vasconcellos (1998, 1999) e Santos (2009a). Nos dois últimos tópicos do 2° capítulo procuraremos apontar as relações entre as transformações por que passa o processo de urbanização especificamente na cidade de São Paulo e as alterações na dinâmica de movimentos diários na metrópole paulista, que são tomadas como implicações diretas das referidas transformações da urbanização. Para isso faremos usufruto das reflexões de Caldeira (2003) e Balbim (2003) acerca de 2 modificações na lógica de oposição entre as noções de centro e periferia, característica da cidade nas décadas de 70 e 80, para contextualizarmos a recente dinâmica de mobilidade cotidiana em São Paulo e, assim, inserir no capítulo seguinte, nosso objeto de estudo dentro de um novo contexto de mobilidade correspondente a um novo momento do processo de urbanização. O terceiro e último capítulo está dividido em cinco tópicos. Nos três primeiros tópicos pretenderemos fazer uma contextualização da dinâmica de mobilidade da RMSP e do município de São Paulo em 2007, ano da última pesquisa O/D, a partir dos dados da mencionada pesquisa. Neste capítulo abordaremos com mais ênfase a dispersão e proliferação do uso do automóvel na cidade. Para tanto, propomos uma análise referente ao número de automóveis por distritos que será importante para nossas considerações finais acerca da dinâmica dos deslocamentos motorizados em Pirituba, pois nela consideraremos a penetração de formas individuais de deslocamento em distritos anteriormente marcados por forte demanda de transportes públicos, dentro do quadro geral da periferia do município nas décadas de 1970, 1980 e 1990. Por fim no último tópico deste capítulo, abordaremos o distrito e através da análise dos dados de origem e destino dos deslocamentos desta fração da cidade intentaremos ilustrar com quais outros distritos da cidade os deslocamentos oriundos de Pirituba possuem relações. Com base nisso propomos, também, traçar um cenário das consequências que uma dependência considerável dos automóveis para a efetivação das viagens diárias pode acarretar no distrito. 3 Capítulo 1: Contexto e anteparo teórico 1.1. Urbanização e cidade corporativas e modelo territorial Segundo Santos (2009b: 137), o processo de urbanização brasileiro pós-1960 foi marcado pela conjunção de quatro modelos os quais três constituem, respectivamente, um modelo político (centralista, iniciado pela ditadura militar), um modelo econômico (voltado para interesses alienígenas, ou seja, extrovertido) e um modelo social (inigualitário). Esses três modelos seriam servidos por um quarto modelo, que constitui um modelo territorial baseado na implantação de infraestruturas, os chamados sistemas de engenharia, dos quais o que nos interessa é o que se relaciona à expansão rodoviária no país, mas principalmente na cidade de São Paulo. Esses quatro modelos seriam os alicerces da modernização do território nacional pós-1960, sendo que a partir de então uma característica marcante desse processo seria a constante permeabilidade do meio ambiente construído das grandes cidades brasileiras, principalmente São Paulo, a objetos técnicos tidos como inegáveis “imperativos do progresso” (SANTOS, 2009a: 29), cuja incorporação era tida como imprescindível e acompanhada pela velocidade de adaptação do resto do território às sucessivas modernizações ao longo do processo de urbanização brasileiro. Tanto as grandes cidades quanto o território como um todo são tocados por este processo, de maneira que as cidades são os epicentros destas transformações. Segundo essas premissas a modernização (integração entre território e mercado) exige um equipamento intensivo e extensivo do território, pois: “De um lado, é preciso dotar as cidades de infraestruturas custosas, indispensáveis ao processo produtivo e à circulação interna dos agentes e dos produtos. De outro, para atingir o mercado nacional, é exigida uma rede de transportes que assegure a circulação externa”. (SANTOS, 2008 [1993]:113) É neste quadro geral que se dá o processo de crescimento urbano, caracterizado tanto pelo grande crescimento e concentração demográficos como pela expansão territorial das cidades, cujas possibilidades de crescimento se deram de acordo com suas respectivas capacidades relativas de se alinharem às transformações necessárias capazes de inseri-las numa economia progressivamente internacionalizada. Este processo de adaptação do território como um todo e do meio ambiente construído das cidades figuraria como uma pré-condição para atração de empresas de grande porte, notadamente as chamadas multinacionais, possibilitando traçar um paralelo entre a 4 internacionalização da economia urbana e a inserção do país na economia mundial. Neste sentido “o processo de desenvolvimento econômico do país é inseparável do próprio processo de crescimento, diversificação e afirmação da economia urbana” (SANTOS, 2009b:41). No final da década de 1960, Singer ressalta uma marcante solidariedade entre a economia urbana paulistana e a do resto do Brasil: “Esta interdependência de São Paulo com o resto da economia nacional se manifesta não só a curto prazo [...], mas também a longo prazo, isto é, na perspectiva do desenvolvimento econômico do país”. (1968: 67) Se, por um lado, o período de modernização até a metade do século XX se caracterizava por certo isolamento dos sistemas de engenharia no qual os caminhos das estradas de ferro se davam por desconexos (SANTOS, 2008 [1994]) entre si e em relação ao resto do território, a modernização da segunda metade do século XX, (com mais precisão a partir do pós-guerra) principalmente a partir dos anos 60, passaria a caracterizar-se pela crescente interdependência entre os sistemas de engenharia, pela aceleração do processo de mecanização do território e pela incorporação de novos objetos técnicos: “A tendência a uma interdependência maior é acompanhada de maior diversificação e expansão dos objetos técnicos no espaço [...] O mesmo se dá com o telefone, as estradas de ferro, as estradas de rodagem” (SANTOS, 1997: 80). A expansão geograficamente dilatada dos fluxos (tanto materiais quanto imateriais) no território passa necessariamente pelo suporte conferido por estes sistemas de engenharia. A importância disso reside no papel que os citados sistemas desempenhariam na integração de um mercado nacional. Singer (1968: 71) qualifica como “indiscutível que o desenvolvimento das comunicações, do sistema ferroviário no início e do rodoviário depois, tenha sido fator crucial neste processo de formação de um mercado internacional integrado”. Villaça corrobora com esta última afirmação nos dizendo que “é óbvio que o desenvolvimento da infraestrutura regional de transportes está ligado ao perfil e ao desenvolvimento da economia nacional” (1998: 35)1 1 Muito embora Villaça (Idem) concorde com tal afirmação, o autor traça uma contundente crítica às abordagens que veem uma simples correlação entre as “etapas dos processos globais de desenvolvimento”, tais como o processo de industrialização, de crescimento econômico etc., e aquilo que o autor chamou de processo de estruturação intraurbana. Para o autor isto decorre do fato de que estas abordagens adotam, “para a história do espaço intra-urbano, a mesma periodização e as mesmas etapas que adotam para o desenvolvimento nacional” (Idem: 34). Não há, portanto, para Villaça, uma completa univocidade entre a urbanização e aquilo que ele chamou de espaço intra-urbano. Indo ao encontro de nossa abordagem metodológica à dinâmica de mobilidade de um distrito da capital paulistana, que visa exatamente tecer uma correspondência entre certas transformações no processo de urbanização e alterações na dinâmica dos movimentos diários dentro da cidade de São Paulo. 5 Pois então, a constante extensão dessas próteses no território implicaria num espraiamento do meio técnico-científico e informacional2, sendo que um de seus principais objetivos envolve oferecer um ganho de fluidez a estes fluxos no território. Passando, portanto, “de fluxos que são curtos no espaço e que se exercem em áreas limitadas a fluxos que abrangem frações do território cada vez maiores” (SANTOS, 1997: 81). Portanto o suporte à extensão dos fluxos gera, consecutivamente, um ganho de fluidez que passa a estimular mais fluxos. A multiplicação dos fluxos, quanto mais numerosos e qualitativamente diferentes, parece ter um efeito cumulativo positivo no sentido de diversificação do consumo e da produção, pois ao conferir acessibilidade a novas porções do território permite “mais circulação e mais movimento [que] permitem, de novo, o aprofundamento da divisão territorial do trabalho, o que por sua vez, cria mais especialização do território” (SANTOS, 2008: 44). Como dito anteriormente, este espraiamento possui epicentros (as cidades) a partir dos quais irradiam estes sistemas que tendem progressivamente a se interligar e que unificam tanto o mercado quanto o território, induzindo à concentração da criação de meios gerais de produção nestes “nós” de circulação de mercadorias e de pessoas que constituem as cidades e, por consequência, gerando uma enorme concentração da população, da produção e das atividades econômicas nas cidades. Tais processos foram característicos da urbanização dos anos 60, 70 e 80 principalmente na cidade de São Paulo. Segundo Singer (1968: 67), a cidade de São Paulo estaria no centro de uma espessa “teia de fluxos de mercadorias”, e continua, “é quase impossível exagerar a importância desta cidade na economia brasileira de hoje [1968]”, e conclui: “São Paulo [...] polariza o mercado interno nacional” e de sua atividade “depende uma grande parte da economia do Brasil”. Ressalta-se, portanto, que o processo de integração entre território e mercado acabou por fortalecer os movimentos de concentração tendendo a reforçar a posição das metrópoles frente ao país, principalmente a de São Paulo. Principalmente porque o espraiamento dos sistemas de engenharia no território, ao influir no fortalecimento desta unificação entre mercado e território, corrobora no sentido de reforçar este processo de concentração. A penetração das estradas de 2 Durante todo o trabalho ao nos referirmos de maneira apenas alusiva às consequências do espraiamento do meio técnico-científico é preciso ressaltar que nosso intuito é pensar apenas a dimensão da composição técnica do território, sem invadir o campo da composição orgânica, pois iremos sempre fazer referência à integração “física” do território, portanto, aos investimentos em infraestrutura de circulação material, no caso uma específica, a viária. 6 rodagem no território nacional parece insinuar esta concentração: “Quanto mais territórios são cortados por estradas, tanto mais a produção e os homens se concentram em poucos lugares” (SANTOS, 2009b: 114). Tais epicentros são as maiores e, portanto, mais diversificadas economias urbanas as quais conferem uma “unificação do comando desses sistemas” (SANTOS, 1997: 81). As grandes cidades emergem, algumas muito mais que outras, com um pronunciado “poder organizador” que se refere ao peso político e econômico que sua economia urbana possui no processo de desenvolvimento econômico do país como um todo e relacionado à sua capacidade de polarizar os fluxos no território (tanto materiais quanto imateriais) e, a partir de então, entram em cena as grandes cidades brasileiras, principalmente São Paulo. Estes elementos, dentre outros que fogem ao escopo do anteparo teórico de contextualização que pretendemos apresentar, podem insinuar as razões pelas quais se passa a equipar principalmente aquelas porções do território onde já houve um histórico acúmulo de trabalho morto para tornar plausível e, portanto, atrativa a instalação de agentes econômicos de grande peso para a economia urbana e nacional. Tais investimentos tendem a privilegiar os espaços que possuem um histórico processo de aprofundamento da divisão do trabalho. Em decorrência do tamanho e do nível de diversidade de suas respectivas economias, as cidades passam a apresentar as condições necessárias para a instalação de empresas cujas possibilidades e intenções são demasiadamente desiguais. Com relação a isso Santos (1997: 82) afirma que as grandes cidades passam a acoplar “níveis de intencionalidade” distintos, apresentando desde empresas que usam o espaço nacional como um todo e que necessitam da possibilidade de se utilizar livremente do território para alcançar as taxas de lucro por elas perseguidas, até aquelas cujo escopo de atuação limita-se a “apenas alguns bairros dentro da cidade”. Sobre isto Santos (2009b) nos fala da intensa diversidade de capitais que coexistem nas grandes cidades, podendo um mesmo bairro apresentar desde grandes empresas que possuem alta capacidade de organização técnica e informacional até representantes do comércio local como empórios, pequenos mercados etc. representastes de uma tipologia de atividades econômicas de capitais diminutos sem grandes necessidades de fluidez para sua realização. 7 Logo surgem necessidades díspares dentro e a partir das metrópoles, que fornecem as condições de instalação aos mais diversos níveis de capital. Segundo Santos (2009a [1990], 2009b [1994] e 2008 [1993]) a forma de atendimento a uma demanda tão assimétrica e diversificada tende a constituir uma das características principais do que ele veio a chamar de urbanização corporativa. Que seria também uma característica comum do processo de urbanização da maioria dos países em desenvolvimento e que se resume, a muito grosso modo, a uma inversão na alocação dos recursos públicos orientados para viabilizar o território nacional, mediante a criação de novas acessibilidades, para uma dada tipologia de empresas (as chamadas hegemônicas3) que não podem prescindir das condições de acesso a frações cada vez maiores do território. E cujo locus de instalação são as imprescindíveis economias de aglomeração. Um dos principais requisitos para sua atração são as condições de fluidez, conjugada a requisitos técnicos de cada atividade produtiva e outros fatores políticos e econômicos. Pois então, “cada vez que uma nova empresa vem instalar-se em São Paulo ela procura uma localização favorável para seus fins específicos” (SINGER, 1968: 74). O oferecimento de vantagens competitivas como a oferta de força de trabalho e o tamanho do mercado consumidor, tudo isso acarretaria uma crescente necessidade de investimentos4 em determinadas frações do território onde se concentram e onde residem os interesses de tais agentes econômicos. Singer (1968) ressalta que a esta necessidade de atração de empresas pelas grandes cidades procederia uma “disputa” dentre os usos residenciais e aqueles estritamente comerciais, favorecendo a valorização de algumas áreas bem servidas por serviços e infraestruturas e dando margem a uma segregação sócio-espacial pela possibilidade de que apenas os mais altos níveis dos estratos de renda venham a residir em tais lugares. Daí que “a partir de um equipamento seletivo do território, dá-se uma urbanização corporativa rapidamente crescente e despontam metrópoles e cidades corporativas”, nas quais “a modernização do meio ambiente construído favorece as grandes empresas” (SANTOS, 2009b: 137). Portanto o equipamento diferencial do território teria também uma intrínseca relação com a gênese, na década de 1970, do que Santos (2009a [1990], 2009b [1994] e 3 Vasconcellos (1999) atribui às grandes empresas que participam com grande peso do jogo econômico e político grande capacidade de leverage, ou seja, de influência nas decisões de políticas públicas. 4 Investimentos os quais o Santos qualificou de caráter econômico, pois eram realizados em detrimento dos investimentos que deveriam visar a melhoria das condições sociais. 8 2008 [1993]) chamou de metrópole corporativa devido ao já mencionado particular modo de provimento de demandas às cidades que visariam atender a interesses dos já mencionados agentes hegemônicos, o que confere sentido à adjetivação “corporativa”. 1.2. A expansão rodoviária e a cidade de São Paulo Resultante desse assédio à formação de novas aglomerações e ao reforço da importância relativa de umas sobre outras, favoreceu-se a proeminência da cidade São Paulo. A premente necessidade de atração e, portanto, de investimentos para a adaptação de seu meio ambiente construído às cada vez mais rápidas evoluções dos sistemas de engenharia, acabou por produzir “modificações brutais [na] lógica interna da cidade” (SANTOS, 2009b: 45). A transferência modal dos transportes coletivos movidos a energia elétrica, os tramways, na metade do século XX em São Paulo, para o uso em massa dos transportes movidos a combustão interna (ônibus e automóveis) pode nos ajudar a contextualizar a citação acima. “Quando a cidade atinge maiores proporções, no final da década de 1950 e início da década de 1960, os bondes são eliminados da circulação e seus trilhos retirados ou recobertos de asfalto, de modo a permitir que se pudesse implantar o modelo de desenvolvimento rodoviário que é ainda hoje dominante”. (SANTOS, 2009a: 29) Uma das principais consequências dessa expansão rodoviária para a organização do espaço da cidade de São Paulo, principalmente a partir da segunda metade do século XX “se dá quanto ao desenho urbano, com a cidade se expandindo ao longo de avenidas radiais mais ou menos adaptadas às linhas de relevo” (Idem, ibidem). Já no início do século XX o rodoviarismo no Brasil passou a conhecer seus arautos, dos quais a figura mais representativa foi Washington Luís. Em seu governo “são construídas uma série de rodovias [...] estaduais e municipais radiais a partir de São Paulo” (BALBIM, 2003: 56). Dentre as vias regionais construídas nesta época salientamos que a atual Avenida Raimundo Pereira de Magalhães, que corta o distrito de Pirituba, é uma delas e fazia, no passado, assim como a rodovia Anhanguera, a ligação entre São Paulo e Campinas. Atualmente esta via perdeu o caráter de rodovia passando a receber fluxos com maior restrição espacial. Villaça ilustra com clareza este processo de transformação da função de algumas rodovias não expressas em ruas: “À medida que a cidade cresce, ela se apropria e absorve os trechos urbanos das vias regionais, como nos casos das rodovias antigas que, com o tempo, se transformaram em vias urbanas. É a mudança de função da via (que passa a 9 ter tráfego intra-urbano), e não sua localização (dentro ou fora da cidade), que transforma uma via regional em urbana.” (1998: 82) Segundo Balbim (Idem), na década de 1920, São Paulo contava com metade dos automóveis do país e uma elite mobilizada para absorver o mais rapidamente possível as inovações tecnológicas de seu tempo, dois fatores adicionados a crescente industrialização da cidade. Não surpreende, portanto o fato de que “as primeiras grandes rodovias construídas no Brasil se localizaram no Estado de São Paulo, são elas: a Via Anchieta (1939-1947, um modelo de estrada alemã), a Via Anhanguera (trechos inaugurados em 1940-1948-1953) e a Dutra (1951)” (BALBIM, 2003: 93). Quando do início de sua construção, mesmo que incipiente5 a circulação rodoviária neste período, a Rodovia Anhanguera teve seu trecho São Paulo-Jundiaí inaugurado em 1940 e representava a incorporação da mais nova modernidade na cidade e no Estado de São Paulo e preludia o modelo de integração territorial vindouro, principalmente a partir da segunda metade do século XX, que elegeria uma escolha modal (caminhões, automóveis e ônibus) e uma necessidade de implantação de infraestrutura viária em todo o país. Entrando em confronto direto com o modelo de integração calcado na ferrovia: “O desenvolvimento ferroviário, na maior parte dos países subdesenvolvidos, foi abortado pela implantação de um modelo rodoviário, que iria dominar tanto a configuração territorial do país como um todo como a configuração urbana”. (SANTOS, 2009a: 29) As rodovias criadas nas décadas subsequentes reforçam o papel de São Paulo como “nó” da circulação regional, “entre 1975 e 1982 são inauguradas três novas ligações regionais coincidentes com vetores de crescimento da metrópole (ao Norte a rodovia dos Bandeirantes, a Leste a Trabalhadores e a Sul a Imigrantes)” (BALBIM, 2003: 61). Automóveis de passeio na cidade São Paulo 1917 1.760 1924 6.623 1929 13.655 1940 22.739 Tabela 1.1t Fonte: LANGENBUCH, 1971. A conformação do sistema rodoviário Anhanguera-Bandeirantes adicionado à Estrada de Ferro Santos-Jundiaí constitui uma sucessão de implantação de próteses que 5 Langenbuch indica que em bora secundário o papel da circulação rodoviária no período 1915-1940 era significativo caracterizando este período como aquele no qual desenvolveu-se o automobilismo no país. 10 se dão, não coincidentemente, uma justaposta à outra. O fato de a Rodovia Anhanguera conectar as cidades que já eram providas pela ferrovia Santos-Jundiaí à cidade de São Paulo e que sua capacidade viária, suplantada em meados de 1960, fora acrescida à construção da Rodovia dos Bandeirantes e à criação do Sistema AnhangueraBandeirantes, apenas clareia a intimidade que tem o desenvolvimento da metrópole com sua hinterlândia através da satisfação das crescentes demandas por fluidez entre a metrópole e o interior paulista (SANTOS, 2009b). Para representar esta crescente demanda por fluidez entre São Paulo e seu interior propomos um gráfico (gráfico 1.1g, que estará disponível no anexo ao término deste estudo) onde se pode comparar o volume médio de tráfego diário de veículos de 1987, 1997 e 2007 dessas duas rodovias em relação às outras que irradiam da cidade de São Paulo. A crescente demanda pela extensão desses sistemas de engenharia no território ao longo do século XX integrando cada vez mais as regiões justapostas à metrópole paulistana é simultânea à modernização de ambas, tanto da metrópole quanto de sua hinterlândia, mas a interdependência destes diversos sistemas técnicos em relação a São Paulo contribuiu para reafirmar a premência dessa metrópole em relação à sua respectiva hinterlândia e, também, com relação ao território nacional como um todo. A implantação dessas três vias de circulação (as rodovias Anhanguera e Bandeirantes assim como a ferrovia Santo-Jundiaí) representam períodos históricos distintos, cujas condições e demandas técnicas particulares, principalmente aquelas relativas a demandas por fluidez e eliminação dos empecilhos colocados ao aumento da velocidade de circulação, correspondem aos seus respectivos períodos. Dito isso se torna interessante comparar a sinuosidade do traçado da Rodovia Anhanguera que segue em certa medida as linhas de relevo em comparação ao traçado retilíneo da Rodovia dos Bandeirantes cuja disposição tende a cortar transversalmente os níveis do relevo. De maneira que esta fora projetada como uma “via expressa controlada”, ou seja, com número de vias de acesso reduzido propiciando apenas acessos municipais, justamente para privilegiar os fluxos de longa distância pela possibilidade de desenvolvimento de altas velocidades, podendo-se, portanto, traçar distinções importantes em relação ao contexto histórico, as condições e demandas técnicas e de fluidez pelas e para as quais foram construídas estas rodovias. Com relação a isto Santos nos diz que 11 “As necessidades de espaço mudaram, tanto em função dos requisitos da produção como da circulação mais exigente de fluidez [...] Isso se dá ao mesmo tempo em que novas vias de circulação têm de ser criadas para que a produção possa escoar rapidamente, num mundo em que a economia é cada vez mais uma economia de fluxos.” (SANTOS, 2009b: 47) Por essas razões a integração nacional através das rodovias tem um papel importante para compreender o aumento da densidade dos deslocamentos na cidade de São Paulo e de outros centros urbanos no Brasil (BALBIM, 2003: 91) e é isto que nos interessa neste momento da análise. Portanto resta ressaltar que, no caso de São Paulo as constantes demandas por fluidez que a acometem com frequência advêm tanto de fora, por exigência de um desenvolvimento regional complementar ao desenvolvimento da metrópole paulista, como de dentro, pelo fato de um crescente aprofundamento da divisão do trabalho que criam conjuntamente uma premente necessidade de modernização e ampliação da infraestrutura viária. A cidade, portanto, passa a ser o lugar onde a mobilidade é cada vez mais valorizada pelas próprias condições impostas pela formação das economias de aglomeração, cuja própria seletividade de equipamento leva a uma disputa pelas possibilidades de usufruto dos meios gerais de produção. Pois se, por um lado, a efetivação do trabalho coletivo imprescinde desses meios gerais de produção (energia elétrica, transportes, comunicações etc.), por outro lado, as atividades econômicas em geral e as empresas hegemônicas também imprescindem dos mesmos. Segundo Santos (2009b), as economias de aglomeração seriam indispensáveis ao “funcionamento da máquina econômica e do organismo social” e por isso mesmo não podem renunciar a se tornar cada vez mais fluidas interna e externamente, tentando permitir que “os fatores de produção, o trabalho, os produtos, as mercadorias, o capital passem a ter uma grande mobilidade” (SANTOS, 2008: 42), ela passa, ao mesmo tempo, a apresentar obstáculos sobre as condições de seu pleno funcionamento. Um extenso hall de questões que compõe uma problemática maior, partindo de questões de habitação, de circulação e mobilidade, de acesso aos transportes públicos, para as de saúde, educação e etc. que juntas, conformam um quadro mais geral da problemática urbana. Um dos termos mais utilizados para se referir ao conjunto destes problemas que acometem tanto os habitantes das cidades quanto os agentes econômicos que nelas 12 atuam são as chamadas deseconomias urbanas6 que consistem num acúmulo de desvantagens econômicas que inviabilizariam as vantagens possibilitadas pelas próprias economias de aglomeração. As também chamadas deseconomias de aglomeração são, em geral, desvantagens vinculadas a custos que, de um modo geral, estão relacionados ao aumento dos salários nas grandes cidades devido à força relativa dos movimentos sindicais, à constante expectativa de valorização de terrenos nas cidades, que gera especulação e que aumenta os custos dos imóveis e, no que vem ao nosso interesse neste trabalho, os congestionamentos, pois aumentam o tempo e os gastos relativos a mobilidade (por exemplo, o aumento do consumo e do preço de combustíveis, da degradação da qualidade ambiental das cidades etc.) a todos os habitantes da cidade e os que dela usufruem. Como veremos a seguir os congestionamentos constituem uma perda de fluidez dentro da cidade cuja gênese implica a consideração de algumas variáveis chaves, tais como, a nosso ver, a ascensão do transporte individual umbilicalmente relacionada à degradação do transporte público que se relacionam, por sua vez, à questão da cidade corporativa. 1.3. Circulação e o funcionamento econômico da cidade. Quanto maior a cidade, maior a concentração das forças produtivas, e, portanto, maior e mais diversificada, quantitativa e qualitativamente a oferta de força de trabalho, o que significa dizer que maior e mais diversificada será a “estrutura socioprofissional” (SANTOS, 2009b) por ela agrupada. Por consequência maior será a diversificação de sua economia acompanhada simultaneamente pelo crescimento e diversificação da demanda por serviços e produtos associada à diversificação de sua “estrutura socioprofissional”, representada pela ampliação do espectro das classes de renda que acopla as mais distintas faixas de consumo que apresentam, por sua vez, as mais diversas demandas por produtos e serviços específicos, sendo umas mais exigentes que outras. São estas, muito genericamente, as vantagens competitivas que tornam extremamente atraentes essas economias caracterizadas pelos movimentos de concentração tanto quantitativos quanto qualitativos, chamadas, de modo generalista, de 6 O conceito de deseconomia é um tanto pernicioso, pois, de acordo com sua acepção, pode ser compreendido unicamente em torno das dificuldades de usufruto das vantagens econômicas, desencaixando deste conceito as desvantagens sociais causadas pela própria viabilização de algumas vantagens econômicas. 13 economias de aglomeração. Sobre a cidade, Singer (1968: 64) nos diz que “as vantagens desta localização centralizada de consumidores (famílias e indústrias) e fornecedores consistem em tempo mais curto e custo mais baixo de transporte”, ao passo que Santos (2009b: 100) corrobora com esta assertiva nos dizendo que “as maiores cidades reduzem esses custos [os de distribuição da produção caso o mercado consumidor estivesse subdividido em pequenas aglomerações] para todas as firmas e esse fato é mais relevante para as firmas não hegemônicas”. Dessa maneira as condições de um mercado consumidor diversificado e espacialmente concentrado parecem influir no potencial de florescimento de uma diversidade de empresas contidas nas aglomerações cuja concentração aparece muito devedora de uma diminuição geral dos custos de produção e distribuição que, segundo a última citação de Santos, podem atrair tanto as empresas cuja “intencionalidade” é muito restrita em termos territoriais, se limitando a uma circunscrição espacial muito restrita dentro da própria cidade, como aquelas cuja produção alcança uma escala territorial mais extensa em relação ao território nacional como um todo. A cidade aparece, então, como nó da circulação de pessoas e mercadorias de diversos circuitos da economia urbana (SANTOS, 2009b [1994] e 1979), isso associado à crescente complexificação e multiplicação dos movimentos na cidade tende a solapar as próprias possibilidades de fruição das já mencionadas vantagens econômicas. Singer (1968: 64) aponta uma desvantagem produzida pela própria cidade que pode vir a solapar as próprias possibilidades de fruição das já mencionadas vantagens econômicas, a qual faz parte de nosso objeto de estudo, o trânsito: “Estas vantagens, no entanto, são, pelo menos em parte, anuladas pela complexidade cada vez maior do trânsito em São Paulo, cujas vias públicas já não dão vazão a seu tráfego cada vez mais intenso”. Numa primeira análise as questões acerca da deterioração sobre as condições de mobilidade na cidade, da intensificação e complexificação dos deslocamentos dentro da cidade, relaciona-se diretamente com as proporções que tomou a cidade de São Paulo, cujo tamanho e forma de expansão territorial foram conformados através de um traçado rodoviário, sobretudo quando as diretrizes urbanísticas de expansão viária são provenientes de um modelo radial (SANTOS, 2009a: 72) que promove a extensão ininterrupta do tecido urbano e a constante criação de “novas acessibilidades” (Idem, ibidem), produzindo “demandas variadas e complexas de transporte” (VANSCONCELLOS, 1998: 5). 14 Numa segunda aproximação analítica, entendemos que o termo “deseconomia urbana” volta-se principalmente sobre o intuito de restauração das condições de funcionamento econômico da cidade por intermédio de exigências por investimentos de caráter restritamente econômicos (SANTOS, 2009a [1990] e 2009b [1994]) provocando um alijamento do oferecimento de serviços que envolvem aquilo que o mesmo autor denominou de investimentos sociais. Segundo este raciocínio a cidade qualificada de corporativa impõe a todos os que nela vivem uma situação de disputa (de caráter desigual segundo Santos) pelo atendimento de demandas necessárias tanto para seu funcionamento econômico quanto para as demandas sociais imprescindíveis para tal funcionamento: “Os habitantes urbanos, novos e antigos, reclamam por mais serviços, mas os negócios, as atividades econômicas necessitam das chamadas economia de aglomeração, isto é, dos meios gerais de produção.” (SANTOS, 2009a: 104) Singer (1968:75) também coloca estas demandas díspares em termos de uma “disputa” que se dá na cidade: “Moradores e empresas disputam o uso de um certo número de serviços, entre os quais avultam transporte, energia, água e comunicações”. Em termos, entendemos que se pode inferir que há, de um lado, uma constante demanda por fluidez na cidade que se relaciona às demandas das atividades econômicas em geral, e por outro uma demanda por fluidez relacionada ao aumento do uso de ônibus e automóveis demandam uma dada organização do espaço de circulação, com a finalidade de viabilizar as possibilidades de vida na cidade. Esta distinção tem apenas um sentido analítico, pois essas duas variáveis conjugadas produzem uma forte e ininterrupta demanda pela modernização e ampliação do sistema viário. A década de 1960 parece ser um momento histórico fundamental para compreender esta conjunção, pois se forma um contexto histórico para o qual convergem forças políticas e econômicas que visam concretizar a implantação de uma infraestrutura viária e de sistemas de engenharia que dariam suporte ao desenvolvimento econômico do país. Por diante que nesta década instala-se no Brasil uma “vontade de desenvolvimento” (SANTOS, 2009b: 137) específica que se volta para uma adaptação de seu território com objetivo de sua adequação ao uso de alguns objetos técnicos modernos como característica marcante. As principais cidades também haveriam de modificar seu meio ambiente construído para concretizar tal adaptação. Neste sentido a transferência modal nos anos 60, já mencionada anteriormente, se trata “do resultado da confluência de processos econômicos, políticos e urbanísticos” cuja gênese inicia-se lentamente “no início do 15 século XX e intensificada nos anos 1960/70” (ROLNIK, 2011: 95). Principalmente “após a Segunda-Guerra, e com a instalação da indústria automobilística em São Paulo, iniciou-se um processo rápido de transformação no modo principal de deslocamento urbano” (BALBIM, 2003: 37). Neste sentido o enraizamento da indústria automobilística é um momento fundamental, pois os objetos por ela produzidos são tomados neste contexto histórico particular como a base técnica pela qual se dará a integração territorial do Brasil, tendo significativas repercussões em termos da configuração territorial e urbana daí engendrada. Atinente ao crescimento econômico gerado a partir do final da década de 1960 e o papel desempenhado pela indústria automobilística neste momento, Contel (2006: 101) nos diz que “eram necessários cada vez mais automóveis para possibilitar os fluxos de bens e mercadorias por todo o território, como era também necessária uma frota de veículos cada vez maior nos grandes centros urbanos em formação”. Na cidade de São Paulo é a partir da década de 1960 que “o sistema viário principal vai ser ampliado significativamente” (ROLNIK, 2011: 95), como veremos com mais detalhes no próximo capítulo. Não por mera coincidência, esta é a década e o contexto nos quais a questão do trânsito “deixa de ser um assunto pitoresco do dia a dia e passa a ir se transformando lentamente em questão ‘público-coletiva’” (ROLNIK, 2011: 94 e VASCONCELLOS, 1999: 235). Deste modo as soluções que visavam eliminar os problemas dos congestionamentos e de fluidez de um modo geral envolviam agentes econômicos e sociais específicos, pois tais “soluções visavam, prioritariamente, dar acessibilidade aos usuários do transporte individual, cujo crescimento acompanhava o crescimento da indústria automobilística e do poder aquisitivo da classe média no Brasil nos anos 70”. (VASCONCELLOS, 1998: 5) Outra variável que definitivamente contribui para este processo e que será melhor desenvolvida no tópico seguinte é a ampliação das classes médias e o correlato aumento do uso do automóvel como meio principal de deslocamento muito associado a um determinado feixe de renda. Retomando o raciocínio do início deste tópico, há, portanto, a necessidade de tornar o meio ambiente construído da cidade permeável às injunções deste objeto técnico (o automóvel principalmente, mas os transportes pneumáticos de um modo geral) que foram historicamente tomadas como um “imperativo do progresso” (SANTOS, 2009a: 29) que ocorre juntamente com a gradativa construção da problemática dos congestionamentos que, devido ao crescente uso do automóvel 16 particular, resulta numa problemática maior, a da mobilidade na cidade, envolvendo tanto os meios de transportes coletivos quantos os meios de transporte individuais. Há, portanto, de um lado, a necessidade de ampliação e modernização do sistema viário, pautados pela implantação do modelo rodoviário, e o reforço desta necessidade por infraestrutura viária devido a um aumento do uso do automóvel, que possui um peso significativo frente às demandas por fluidez presentes de maneira progressiva a partir da década de 1960 até atualmente, e, de outro lado, há uma forte demanda por transportes coletivos na cidade como um todo, mas principalmente nas franjas da cidade. A forma de atendimento a esta demanda tão desproporcional faria parte daquilo que Santos (2008, 2009a, 2009b) chamou de metrópole corporativa, usaremos esta noção no sentido de que a metrópole assim adjetivada terá por foco principal a eliminação destes empecilhos ao seu funcionamento econômico tendo como consequência a formação de obstáculos no suprimento dos transportes públicos. A incapacidade de atender em plenitude estas demandas centralizando grande parte de seus esforços e recursos em investimentos econômicos implicaria, ao mesmo tempo em que são suprimidos os obstáculos ao funcionamento econômico da cidade, num consecutivo alijamento de questões concernentes às reivindicações sociais. Muito desse esforço se pautaria pela viabilização da cidade e melhoria de suas condições de fluidez. Esta forma assimétrica de alocação de recursos públicos reverberaria num equipamento desigual dentro das metrópoles, e evidentemente na cidade de São Paulo. Pensamos que muito disso que tentamos empreender até aqui pode ser respaldado pela seguinte afirmação: “Os recursos públicos destinados a enfrentar a problemática urbana de São Paulo destinam-se, sobretudo, à rubrica de transportes, seja para o alargamento de ruas, a implantação de calçamento, ou a melhoria de pavimentação, o estabelecimento de vias expressas, a decretação de medidas de regulamentação de tráfego etc.” (SANTOS, 2009a: 108) Portanto, as necessidades constantes de manutenção e ampliação das vantagens competitivas capazes de atrair a instalação de atividades econômicas modernas passam pela supressão desse conjunto de fatores impeditivos, nos quais se inclui os congestionamentos e outros impasses às condições de fluidez que unidos ao papel que o rodoviarismo representa para desenvolvimento da metrópole, na sua expansão 17 horizontal, no crescimento e diversificação de sua economia7 produziriam “ciclos sucessivos de viabilização, inviabilização e reviabilização das infraestruturas” que “atingem [...] as estruturas de transportes e comunicações...” (SANTOS, 2009b: 134). Este raciocínio circular nos será fundamental para o próximo capítulo no qual pretendemos traçar um paralelo entre aumento do uso do automóvel e crises de mobilidade associadas às demandas por ampliação de infraestrutura viária pela insuficiência do sistema em conferir vazão ao tráfego sempre crescente de automóveis, portanto sempre chamando o poder público a sanar os empecilhos à fluidez e ao desempenho da velocidade no espaço urbano. Deste modo, de acordo com os parâmetros teóricos até aqui expostos, pensamos que seria coerente entender que o progressivo alijamento por parte do poder público no oferecimento de investimentos sociais nas grandes cidades são características da urbanização e cidade corporativas. Então, cada vez que a cidade se torna mais exigente por fluidez, quando ela se mostra inviável para efetivar uma circulação que não multiplique seus custos e perdas, os investimentos em infraestrutura viária canalizam aqueles recursos que seriam alocados em benefícios direcionados aos transportes públicos. Esta inversão no aprovisionamento dos recursos públicos que visava a constante expansão do sistema viário pode ter como resultado uma oferta desigual da implantação de transportes públicos na cidade (gerando fenômenos como os de situações de imobilidade relativa dentro da metrópole). Conjecturamos que isto nos pode levar a compreender a consistente ascensão das taxas de motorização individual, pois: “A tendência à ascensão do transporte individual nos países subdesenvolvidos é mais forte em algumas aglomerações que em outras, mas sempre se dá acompanhada da degradação da qualidade do transporte 8 público .” (SANTOS, 2009a: 90) Esta tendência atualmente chegou a níveis expressivos tanto nas áreas com maior poder aquisitivo da cidade de São Paulo como em áreas mais distantes do centro expandido9 e cuja população apresenta uma renda média menor. A penetração das 7 Neste caso representado principalmente representado pelo automóvel. 8 Balbim (2003: 103) corrobora com a assertiva de Santos, e relaciona o transporte individual à cidade corporativa: “A tendência à ascensão do transporte individual, além de ser acompanhada da degradação do transporte público, é um dos dados que evidenciam a cidade corporativa. A seletividade socioespacial dos gastos públicos, a distribuição desigual de renda e de classes de renda no território e os contrastes evidenciados na paisagem são alguns aspectos que fazem parte desse mapa da cidade corporativa”. 9 Reconhecemos neste trabalho a delimitação territorial oficial da CET para a definição do centro expandido que compreende a porção da cidade que se localiza entre os limites das avenidas Marginal Tietê, Marginal Pinheiros 18 formas de deslocamento individual em distritos que possuem renda média relativa menor em comparação com os distritos com maior poder aquisitivo, localizados em grande medida no centro expandido, é uma das hipóteses que sustentaremos para tentar estudar paralelamente o fenômeno dos congestionamentos no distrito de Pirituba dentro do escopo mais amplo de generalização dos congestionamentos e do uso do automóvel particular na cidade de São Paulo. Como dito, esta hipótese será delineada paralelamente ao nosso objeto de estudo, a dinâmica de mobilidade no distrito de Pirituba, que envolverá um estudo mais minucioso sobre o uso de transportes coletivos e particulares no mencionado distrito e os respectivos destinos das viagens por eles produzidas. O processo progressivo de aquisição de meios individuais de deslocamento é identificável a partir da década de 1960, década em que houve, como veremos no próximo capítulo, momentos de grandes investimentos em infraestrutura seguidos, consecutivamente, de um aumento no uso do automóvel particular e este seguido, por sua vez, de crises de mobilidade10. Vemos que isto se deu concomitante às expansões conjunturais de uma classe média que podia adquirir meios individuais de deslocamento reforçando as pressões sobre a ampliação do sistema viário, é esta associação entre classes médias e automóvel que passaremos a analisar com mais detalhes no tópico seguinte. 1.4. Automóvel e crescimento econômico Há, segundo a Pesquisa Origem e Destino de 2007, feita pela Cia. Do Metrô de São Paulo, e segundo Santos (2009a), uma forte relação entre renda e modo de deslocamento principal. Essa relação se faz, primeiramente, a partir de um nível mais geral, no qual são distinguidas as viagens feitas por modo motorizado (ônibus, automóvel, moto, trem, metrô etc.) e modos não-motorizados (bicicleta e a pé). A distribuição percentual entre esses dois modos indica que há uma “maior participação das viagens motorizadas quanto maior a renda familiar” (Síntese O/D 2007: 20), aumentando proporcionalmente a participação do modo não-motorizado em relação às faixas de renda mais baixas. Se analisarmos esta relação entre renda e modo conjugadas às avenidas dos Bandeirantes, Salim Farah Maluf, Tancredo Neves e Prof. Luiz Inácio de Anhaia Mello, esta circunscrição pode ser melhor visualizada pelo mapa 2.1, no qual ela corresponde à linha laranja 10 Rolnik (2011 e 1997) e Vasconcellos (1999 e 1998) serão os autores que utilizaremos no próximo capítulo para nos auxiliar nesta análise. 19 de deslocamento num conjunto que inclua apenas as viagens por modo motorizado esta relação além de se manter, se reforça. A divisão modal neste conjunto de modos de deslocamento se constitui em modos coletivos (ônibus, metrô, trem), de um lado, e modos individuais (automóveis e motos), de outro. Segundo a Síntese da Pesquisa O/D (2007: 21) “a divisão modal das viagens motorizadas por faixa de renda mostra que a participação do modo individual aumenta com a renda, diminuindo, por consequência, a participação do modo coletivo” nestas faixas de renda que detêm acesso financeiro a meios individuais de transporte. A aquisição de meios individuais de deslocamento se dá principalmente depois de superado um limiar de renda que permite a migração de meios de deslocamentos coletivos para meios individuais11. No gráfico 1.1g a seguir podemos observar a força de tal relação entre escolha modal e renda. Nele podemos notar que a projeção dos dois traçados forma um “X” cujo ponto de encontro determina o nível de renda no qual a maioria dos deslocamentos deixam de ser efetivados através do uso de transporte público e passam a ser efetivados por automóveis ou motos, relacionando transportes coletivos e aumento progressivo da renda numa razão inversamente proporcional. O deslocamento do ponto de encontro entre os dois traçados nos permite dizer que em 1997 exigia-se mais da renda familiar para a aquisição de meios individuais de locomoção do que em 2007, tornando este gráfico particularmente interessante para nosso objeto de estudo que pressupõe um aumento no acesso a meios individuais de deslocamento. 11 Recentemente tem ocorrido um expressivo aumento do número de licenciamento de motos. O crescimento da frota representada pela motocicleta, motoneta, motociclo, triciclo e quadriciclo entre janeiro de 2008 e maio de 2012 foi de 30,5% e compõe 15% (948.500) unidades em circulação) do total da frota de transportes individuais da RMSP, o restante pertence ao automóvel, segundo dados do DETRAN para abril de 2012. 20 Gráfico 1.2g Na cidade de São Paulo existe uma ampliação progressiva do uso de meios individuais de deslocamentos ao longo da segunda metade do século XX que se estende até os anos 2000 (ver gráfico 1.3g a seguir) que se refere, em grande medida, à expansão das classes médias e da pronta aquisição de meios individuais de transporte conforme a renda alcança o patamar suficiente para fazê-lo12. Muito embora haja uma queda de uso do transporte individual frente aos transportes coletivos em 2002, o número absoluto da frota de automóveis continua ampliando seus patamares, adicionando-se ao fato de que nos últimos anos houve o ressurgimento de uma crise de mobilidade na cidade, segundo Rolnik no ano de 2009 “o recorde de índice de congestionamento em São Paulo – 294 km de lentidão – foi quebrado duas vezes no mesmo dia” (2011, 89). Ano no qual “o tempo médio gasto no trânsito pelos paulistanos para realizar todos os deslocamentos diários foi de 2h42min” (Idem, ibidem). 12 Atualmente, segundo a Síntese da Pesquisa O/D (2007: 21), a participação do automóvel nas viagens diárias aumenta significativamente a partir da “faixa de renda entre R$ 3.040,00 e R$ 5.700,00”. 21 Gráfico 1.3g O gráfico nos mostra a divisão modal histórica no período de 1967 a 2007. Muito embora o gráfico em “espelho” nos induz a denotar uma relação causal entre as duas variáveis, uma análise mais minuciosa levaria em conta para quais outros modos de deslocamento esta “migração” ocorre, indo parte considerável para modos a pé ou de bicicleta ou, ainda, para situações de imobilidade. Portanto, apesar de existir uma forte relação das oscilações entre o uso de transportes coletivos e o uso de transportes individuais, determinadas conjunturas socioeconômicas podem também influenciar num enfraquecimento desta relação “causal” entre estes dois modos de deslocamento, pois em crises econômicas boa parte da população passa a não ter acesso mesmo ao ônibus. Consideramos, portanto, que há uma relação válida entre classes médias e aumento das taxas de motorização individual representadas largamente pelo uso automóvel como principal meio de deslocamento cotidiano. Existem dois fatos fundamentais que auxiliam no desdobramento desta análise. Primeiro, o fato de que São Paulo é uma das cidades, senão a cidade, que concentra uma das maiores e mais diversificada classe média representada por um extenso espectro de renda. Seguido deste dado, o fato de que, principalmente a partir do final da década de 1960 e com grande intensidade na década de 1970, ocorre a ampliação de uma classe média que, segundo Santos (2009b: 137-138), passa a procurar soluções privadas13 para problemas de ordem público-coletiva, como os de saúde e de educação, mas também, se pudermos incluir, para os problemas de mobilidade na cidade. Se observarmos o gráfico 13 Razão pela qual Santos (2009b) as adjetivou de “privatistas”. 22 1.2g, podemos notar que neste período há uma vertiginosa escalada do uso de transportes individuais em comparação ao proporcional decréscimo do uso dos transportes coletivos. Seguindo as indicações de Balbim (2003) este fato se dá interligado ao surgimento da cidade corporativa na década de 1970 (SANTOS, 2009a: 93), e segundo a adjetivação dada por Santos à classe média, mencionada em nota, a migração do transporte coletivo para o transporte individual acompanha um alijamento geral de questões público-coletivas por parte das classes médias. Isto também reverbera no sentido de corroborar com o fenômeno da metrópole corporativa, pois concebe, de certa forma, um “aval” ao progressivo alijamento do poder público em relação à questões de transporte coletivo. Isso vai ao encontro às afirmações de Balbim (2003) e Santos (2009a) cujo aumento de transportes individuais se dá simultaneamente à degradação do transporte público. A pressão sobre o sistema viário causada pelo aumento do número de automóveis conflui, portanto, com os desígnios dos agentes hegemônicos por ganhos de fluidez na cidade e supressão de obstáculos como os congestionamentos através da ampliação do sistema viário. Segundo Balbim, parece haver uma espécie de simbiose entre o automóvel e a cidade corporativa, até mesmo em nível das reverberações culturais relacionadas entre o uso deste objeto e as próprias condições de realização da cidade corporativa: “Na cidade corporativa, o objeto que mais se adequa aos seus preceitos de individualidade, consumismo, status, competição, instrumentalização, etc. é o automóvel. Esse objeto transmite ainda a ideia de fluidez e independência de movimentos, uma exigência dos agentes hegemônicos produtores do espaço urbano que se traduz na produção do sistema viário da cidade e nos modos de transporte.” (BALBIM, 2003: 103) Até agora realçamos as relações entre a ampliação das classes médias e o aumento das taxas de motorização individual em São Paulo. No entanto, as classes médias ampliadas também geram pressão sobre uma oferta mais diversificada de serviços e produtos, estando relacionadas, portanto, à diversificação do consumo e, por conseguinte à diversificação da produção. Neste sentido o consumo de veículos automotores se relaciona tanto a nível da diversificação do consumo quanto em relação à diversificação da produção. Por estas razões, Santos no indica que há uma relação entre desenvolvimento econômico e a consolidação do automóvel como meio de transporte principal nas cidades: “o desenvolvimento econômico do país é acompanhado 23 pelo incremento no uso do automóvel particular como meio de transporte urbano”. (2009a: 88). Falando sobre a urbanização dos Estados Unidos no pós-guerra, Harvey (2011) também realça esta relação entre desenvolvimento econômico e uso do automóvel quando nos fala do processo de suburbanização norte americano, no qual o autor dá grande relevância a este objeto (automóvel) que foi, e ainda é em grande medida, muito representativo desse fenômeno nos Estados Unidos. Segundo Harvey, este modelo de suburbanização constitui um dos alicerces que sustentaram a expansão da economia norte americana no pós-guerra, para o autor “o novo modo de vida baseado na rodovia e no automóvel” responsabilizou-se por uma enorme ampliação e diversificação do consumo das classes médias norte americanas, desde “casas suburbanas e centros comerciais a geladeiras, ares-condicionados, televisores e telefones. Isso significou dois carros na garagem e um boom das indústrias de borracha, petróleo e aço” (Harvey, 2011: 140). Em linhas gerais o automóvel constitui a base de um modelo de consumo que conduz a uma constante necessidade de diversificação de serviços especializados (autopeças, mecânicas, assistências técnicas de ares-condicionados, suspensões etc.) e também a uma diversificação tanto do consumo como da produção. Isso é evidente no Brasil onde se consolidou há décadas uma indústria automobilística que se mantém em crescimento, e cujo crescimento é também dado de crescimento econômico14. Se, por um lado, o modelo de crescimento econômico norte americano no pósguerra tomou a forma geográfica da suburbanização, baseado num modelo territorial que se deu pela extensão do tecido urbano possibilitada pelo automóvel e as possibilidades de deslocamento que ele oferece (LADD, 2008), consagrando na literatura o termo urban sprawl como representativo desse fenômeno15. Ela foi caracterizada fundamentalmente pelo êxodo das classes médias dos centros urbanos, provocando uma consecutiva rarefação demográfica dos centros das maiores cidades norte americanas. 14 No dia 21/05/2012, o atual Ministro da Fazenda anunciou a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (o IPI) como um dos pacotes para estimular o consumo. A redução deste imposto evidencia a articulação existente entre consumo e produção, sendo que na verdade são dois aspectos de um único processo, pois a redução fiscal estimula tanto o consumo de bens duráveis quanto a aquisição de bens de capitais aumentando o nível de investimento em diversos setores e criando uma expectativa positiva para a manutenção ou ampliação das taxas de crescimento econômico do país. 15 Para Ladd (2008: 97) há uma clara intersecção entre o crescimento das classes médias, o aumento da motorização individual e o fenômeno do urban sprawl: “Suburbanization and urban sprawl have been driven by a desire to escape the city’s woes, not the least of which has been the plague of automobiles, A growing middle class created a market for sprawl, and transport technology provided the means to move outward” 24 Por outro lado, no Brasil, de modo geral, as classes médias, principalmente na fase de urbanização pós-1960, se associaram de outra forma com o automóvel tomando outra forma geográfica, pautada pelo processo geral de concentração, característica do processo de urbanização do Brasil, associando-se, particularmente aos processos de verticalização nas cidades. Portanto muito associadas à processos de convergência ante ao espraiamento e dispersão das classes médias norte americanas que passariam a ocupar as franjas da cidade. A forma pela qual as classes médias brasileiras absorveram este modelo de consumo e de práticas espaciais16 se deu de uma maneira completamente diversa associando-se a concentrações e verticalizações, ao adensamento dos centros e a valorização dos centros urbanos, portanto, não se associando, num primeiro momento, à fuga dos centros das grandes cidades. Mesmo assim Harvey (2011: 140) nos permite traçar algumas semelhanças devido à disseminação do que o autor chamou de cultura do automóvel, a qual ajudou a propagar “gostos semelhantes e tecnologias [...] para o mundo todo”. Podemos observar que nos dois casos a extrema dependência do automóvel para a efetivação dos deslocamentos cotidianos levou a modos de segregação sob formas distintas, mas que tendem a se relacionar com a maneira pela qual se dá a distribuição dos grupos sociais no território. Conforme veremos no segundo tópico do próximo capítulo com Caldeira (2003), há certa relação entre o padrão de segregação socioespacial da cidade de São Paulo particularmente nos anos 70 e o uso de certas tecnologias de transporte (o automóvel e o ônibus). Algumas similitudes entre a associação das classes médias ao automóvel são destacáveis, tais como a progressiva pressão sobre a infraestrutura viária levando a sua consequente ampliação, também nos leva à construção de centros de consumo em massa, os shopping-centers17, capazes de aderir ao modelo de mobilidade automobilística “porta-a-porta”, no entanto a concentração das classes médias em certas áreas da cidade leva estes centros de consumo a se localizarem no tecido urbano 16 Grosso modo, as práticas espaciais seriam para Balbim (2003: 128), “esquemas habituais individuais ou de convivência entre os indivíduos” que surgem de uma dada intencionalidade contida “nos planos, projetos e planificações, que têm como finalidade reger o processo de produção e reprodução do espaço através do controle, vigilância e organização das ações individuais e coletivas, fazendo uso, principalmente, da implantação de objetos técnicos e normas de uso e apropriação” (Op. cit.: 174). Assim, no caso do presente estudo, as práticas espaciais estariam relacionadas a modos de vida e as seus respectivos modos de transporte. 17 Para Balbim (2003: 161) “em São Paulo, o lazer associado ao uso do automóvel encontra seu maior templo nos shoppings centers, que conciliam estacionamento, comércio variado, lazer midiático e, sobretudo, segurança, através de procedimentos intimidatórios ou de exclusão de parcelas da população que não têm condições de chegar até eles.” Configurando-se, portanto, num importante indutor do uso do automóvel. 25 contíguo da cidade e a construírem edificações (estacionamentos verticalizados) apenas para acomodar seus meios de deslocamento em período ocioso. Na dimensão do cotidiano, observamos que as práticas espaciais propiciadas pelo uso do automóvel como meio de transporte principal giram, em grande medida, em torno da organização da vida pessoal e grupal (sobretudo familiar) balizada pelo uso do automóvel, pois “a maneira como cada indivíduo percebe e estrutura seu espaço cotidiano varia de acordo com os modos de transporte escolhidos” (BALBIM, 2003: 105). Pelo fato de conduzir a modificações significativas nas práticas espaciais que habitam o cotidiano daqueles que possuem automóveis particulares, tais modificações requerem transformações tanto na organização do espaço da circulação como, num âmbito mais geral, do meio ambiente construído, pois se torna o objeto que articula os locais de permanência (trabalho e moradia) por meio de sua circulação, o que vai ao encontro dos nossos interesses acerca das injunções espaciais necessárias à fluidez requerida à cidade pelo automóvel. Neste escopo entram diversas injunções que cada modo de deslocamento comporta como os ônibus e as motocicletas. A motocicleta é um bom exemplo, pois suas características de mobilidade dão maior liberdade de movimento ao seu condutor gerando complicações diversas, inclusive a nível de disciplinarização de seus condutores no espaço da circulação, pois cria problemas para o domínio completo do automóvel em vias construídas principalmente para os transportes motorizados movidos a quatro rodas, cerceando sua liberdade de movimentação. Balbim (Idem, ibidem) nos diz que estas disputas por movimentação no espaço de circulação da cidade se dão por que “a aspiração por uma mobilidade cada vez maior, que tem como correlato a escolha de um modo de transporte cada vez menos compartilhado, mais individual, traz como outra consequência uma representação mais singular da cidade”. Como consequência disso Balbim (2003) assevera que cada modo de transporte comporta uma dada espacialidade, certa organização do espaço de sua circulação que envolve consequentemente uma reorganização dos usos do solo, e também uma correlata experiência urbana. No caso do automóvel, seu uso cotidiano exige uma série de adaptações nas moradias e nos locais de trabalho que acarretam em mudanças na cidade como um todo. Dentre elas podemos citar que, segundo uma pesquisa divulgada 26 em 21/03/12 pelo Jornal Estado de São Paulo18 realizada pela Escola politécnica da USP, atualmente cerca de 25% da área construída em São Paulo é destinada para guardar carros e motos, sendo portanto garagens19. Logo existe uma necessidade imprescindível de adaptação de um conjunto de edificações que possibilitem sua aderência na cidade como um todo. Segundo Balbim (Idem), para seu pleno funcionamento na cidade, o automóvel também requer um certo modelo de organização do espaço que, além de impor um grande conjunto de injunções “para circular e estacionar, o automóvel [também] necessita de um enorme espaço que acaba por entrar em contradição com o espaço da cidade, notadamente, com sua densidade. Segundo estudos da ANTP (1993), 40% do espaço das cidades brasileiras é utilizado para o automóvel.” (BALBIM, 2003: 105) Muito disso decorre do fato que não seria possível conceber uma independência completa entre o espaço especificamente construído para sua circulação, as ruas e vias em geral, e seu respectivo entorno edificado que comporta funções e usos os mais diversos (JACOBS, 2007 [1961] e CHOAY, 2005 [1965]), tal como em São Paulo que apresenta uma diversidade compacta de usos do solo em algumas de suas áreas tais como os distritos de Consolação, Bela Vista, Sé, Liberdade, Brás etc. Portanto, a tendência à convergência de fluxos que alguns fixos (SANTOS, 2008 [1985]) produzem em certos pontos da cidade e a convergência de fluxos para algumas áreas da cidade devido à concentração da oferta de empregos, serviços e produtos, acarreta, principalmente quando parte considerável destes fluxos é efetivada por uso do automóvel, uma adequação do meio ambiente construído às suas injunções se mantendo o risco e o custo da degradação das condições de mobilidade sem falar nas transformações significativas nas características de sociabilidade, de relação com a cidade e seu meio ambiente construído. De certa forma, esta adequação nos leva a imaginar, aprioristicamente, uma cidade espraiada com amplas avenidas expressas e uma densidade demográfica relativamente baixa. Neste sentido, Jacobs reforça esta ideia de uma espacialidade representativa do automóvel quando nos diz que “a dependência excessiva dos automóveis particulares e 18 http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sp-14-da-area-construida-e-dos-carros-,851132,0.htm 19 Em seu sítio eletrônico (http://raquelrolnik.wordpress.com) Rolnik nos diz que em São Paulo ”cada unidade residencial, seja vertical ou horizontal, tem que ter ao menos uma vaga de estacionamento. De acordo com a legislação, nos imóveis com até 200m² de área construída deve haver uma vaga; entre 200m² e 500m², duas ; e, acima de 500m², três vagas. Para imóveis comerciais, a cada 35m² de área construída é necessário uma vaga; em museus, isso se dá a cada 15m² de área construída, e, em hospitais, a cada 50m²” 27 a concentração urbana de usos são incompatíveis” (2007: 388-389) 20 . Pois então, os aspectos que caracterizam o processo de urbanização das cidades brasileiras que consagra concentrações e o equipamento diferencial do território tanto na escala nacional como internamente às cidades, tornaria também seletivo os investimentos em infraestrutura viária e transportes coletivos. Isto poderia corroborar para a construção de um cenário propício à criação de crises de mobilidade, principalmente quando a dependência em relação ao automóvel se tornou exponencial de 1967 até 2002 e voltando após 2007. O que, no caso de São Paulo, viria a reforçar a organização dos transportes no sentido “periferia/centro/periferia” (SANTOS, 2009a: 70) principalmente nos anos 70 e 80, provocando a convergência dos fluxos internos e externos à metrópole para algumas áreas da cidade. Disso decorre uma dada dinâmica de mobilidade na cidade que se alinharia ao esquema centro-periferia mais próprio das décadas mencionadas acima. Isto será em grande medida, nosso objeto no próximo capítulo. Caminhando para o término deste primeiro capítulo, no qual se pretendeu analisar a relação entre o aumento do número de automóveis e as exigências de fluidez existentes na cidade de um modo geral, esta representada principalmente pela confluência das exigências de uma classe média ampliada e individualmente motorizada com aquelas dos chamados “agentes hegemônicos” (2009a e 2009b), logo se relacionando com a crescente produção de alguns empecilhos “deseconômicos” que viriam a corroborar com alguns aspectos do que Santos (2008, 2009a, 2009b) chamou de metrópole corporativa. A incompatibilidade existente entre o uso do automóvel particular como meio de deslocamento principal e uma cidade cujos usos diversificados do solo se dão de maneira compacta e concentrada tende a agravar o cenário de congestionamentos. Isto nos será de grande valia, pois nosso objeto neste trabalho é associar o grande número de automóveis existente nos distritos ditos “periféricos” 21, no caso o distrito de Pirituba, à um contexto de mobilidade no qual o binômio centro-periferia perca, talvez, um pouco de sua força. 20 Assim fica mais nítida a relação entre a suburbanização norte americana, caracterizada por alto grau de dispersão residencial, e o automóvel, de maneira que a intensa dispersão residencial inviabilizaria a oferta de um transporte coletivo (BALBIM, 2003: 45) capaz de atender a tais característica de ocupação. 21 Durante todo o trabalho este termo será tomado apenas no sentido de que os distritos, incluindo o distrito de Pirituba, estão fisicamente distantes e/ou não se localizarem ao chamado centro expandido. 28 No próximo capítulo nossa análise será balizada pela relação entre os contextos de mobilidade e a respectiva organização do espaço da cidade através de uma exposição sucinta dos contextos de mobilidade da cidade a partir de 1960 até meados de 1990, aliada à dinâmica de deslocamentos que era representativa da cidade numa época que o binômio centro/periferia formava o arcabouço analítico para a compreensão da dinâmica dos movimentos dentro da cidade. Nosso objetivo ao associar as crises de mobilidade à dinâmica dos deslocamentos na metrópole é o de contextualizar e situar histórica e geograficamente o momento atual e a situação do distrito de Pirituba no âmbito geral da dinâmica de deslocamentos do município como um todo. 29 Capítulo II: Urbanização e movimentos diários em São Paulo: história, contextos e transformações. 2.1. O modelo de anéis viários e o urbanismo paulista Nesta primeira parte do segundo capítulo pretendemos aprofundar alguns aspectos da conformação do traçado viário da cidade de São Paulo e da sua importância em relação aos eixos de expansão da cidade. Apenas pontuamos no capítulo anterior a importância do modelo radial do traçado viário que levou a cidade a “se expandir seguindo os eixos da circulação regional e inter-regional” (SANTOS, 2009a: 103). Assim, procuraremos pormenorizar a relação entre aspectos viários e o desenvolvimento urbano do município de São Paulo. Para isso faremos uma breve exposição da gênese desse modelo viário radial para retomá-lo no final do próximo tópico. Neste tópico nosso período se estenderá pela primeira metade do século XX, compreendendo o período de 1915 a 1940, no qual segundo Langenbuch (1971) se deu o desenvolvimento do automobilismo no Brasil, particularmente na cidade de São Paulo e no Rio de Janeiro. Os anéis viários e avenidas radiais que estão em pauta em alguns projetos atuais para a cidade de São Paulo dizem respeito a um legado do urbanismo paulista que remonta a década de 1910 e cujo maior expoente foi o Plano de Avenidas do Engenheiro Francisco Prestes Maia publicado em 1930. Segundo Leme: “A execução das obras viárias [desse Plano] transforma a estrutura urbana de São Paulo e prepara a cidade para o desenvolvimento econômico que se concretizará nas décadas seguintes. Estas características o destacam dos planos realizados para São Paulo. Até o final da década de 60, a estrutura viária principal é definida neste plano elaborado em 1930.” (1991: 66) Ainda segundo Leme (1991) nas três primeiras décadas do século XX criou-se um intenso debate dentre os urbanistas, pois São Paulo passa a apresentar em pouco tempo os problemas de uma metrópole moderna. A cidade passava por algumas transformações tais como um considerável crescimento demográfico, a extensão do tecido urbano e o adensamento e congestionamento do centro. Estas problemáticas envolviam questões sobre a gestão dos fluxos que tendiam apenas a multiplicar-se, pois estava relacionada à crescente industrialização da cidade, e conjugou-se a uma questão habitacional decorrente da imprescindível concentração da força de trabalho na cidade para assim constituir um mercado de trabalho capaz de suprir a indústria em desenvolvimento. “Em três décadas, a população de São Paulo 30 passa de 240 mil [na virada do século XX] para 1 milhão de habitantes” (LEME, 1991: 64). Neste período “a cidade, confinada entre o vale do Anhangabaú e a várzea do Tamanduateí, se estende até os rios Pinheiros e Tietê” (Idem, ibidem). O debate acerca do centro da cidade e de sua remodelação detinha grande importância nesta época e ocupava um lugar especial dentro dos projetos urbanísticos de Victor Freire, Francisco Prestes Maia e Ulhôa Cintra. Na passagem do século XIX ao XX Langenbuch (1971:86) nos diz que a configuração territorial da cidade de São Paulo respeitava uma disposição marcada pela presença de “uma área central, caracterizada por um arruamento e áreas edificadas relativamente compactas, [...], circundada por um cinturão de núcleos isolados”. Este cinturão de núcleos isolados está relacionado ao surgimento dos chamados subúrbios-estações nas décadas subsequentes do século XX, dentre os quais Pirituba fazia parte. O quadro de uma cidade que possuía simultaneamente um “núcleo de urbanização compacta e contínua” circundado por núcleos isolados levou Lagenbuch (Idem: 2-3) a traçar uma relação “dicotômica” entre uma metrópole “geográfica” e uma metrópole “político-administrativa”. Muito embora Langenbuch já referisse à necessidade da criação de entidades supramunicipais que dessem conta da metrópole “geográfica”, pois, do contrário, “muitas obras e serviços que demandam uma solução global têm sua solução dificultada” (Idem, ibidem). Veremos mais adiante que os planos de intervenção visavam mais plenamente a metrópole “político-administrativa” do que a metrópole “geográfica”. Nesta situação geográfica e nesse contexto histórico surgem dois planos que irão ter grande influência na concepção do Plano de Avenidas de Prestes Maia (LEME, 1991: 67). Em 1911 surge o primeiro plano urbanístico contendo anéis viários num projeto de Vitor Freire para o descongestionamento do centro de São Paulo. O plano previa a construção de um anel viário na área central constituído pelas “ruas Líbero Badaró, Benjamim Constant, Boa Vista e pelas comunicações Sé-Palácio e Líbero-São Francisco” (LEME, 1991:69)22. Uma década mais tarde começam a repercutir “junto aos urbanistas paulistas a proposta de um sistema radial-perimetral desenvolvida por Joseph Stübben e as reflexões de Eugéne Hénard” (Idem: 67). E em 1924 surge a proposta de um perímetro de irradiação para a cidade 22 O plano visava também a manutenção do transporte coletivo sobre trilhos, segundo Anelli (2007) “o trilho do bonde é incorporado ao projeto viário, que integra os desenhos da calçada, do pavimento, da drenagem, da iluminação e do mobiliário urbano”. 31 feita pelo então engenheiro Ulhôa Cintra. Segundo Leme (1991), estas duas propostas causaram grande influência no Plano de Avenidas de Prestes Maia. Segundo Anelli (2007) e Leme (1991) o Plano de Avenidas apresentava a síntese prática da confluência do conceito de perímetro de irradiação do urbanista francês Eugène Hénard, que previa que todas as vias de expansão e penetração convergissem para o centro de irradiação delas mesmas, com o conceito de sistema radial perimetral do urbanista alemão Joseph Stübben, que considerava fundamental o papel desempenhado pelas vias radiais, pois estas promoveriam o desafogamento do tráfego entre centro e periferia visando, segundo Anelli (2007), adequar a cidade às necessidades de uma rápida expansão horizontal. O desafio do Plano assim descrito seria, de acordo com Frúgoli (2000), o de nortear o crescimento territorial da cidade, “já com crescente expansão periférica apoiada no trinômio loteamento periférico/casa própria/autoconstrução”, e transformá-la “numa cidade multipolar” (Idem: 57). Portanto, seria imprescindível o Plano proporcionar o estabelecimento de uma “movimentação fácil e ágil entre o centro comercial/administrativo e as áreas residenciais e industriais distribuídas perifericamente” (ANELLI, 2007). Esta era a visão do Plano, que relacionaria o planejamento da expansão horizontal em relação à expansão dos eixos viários. Neste sentido os três projetos têm fundamentalmente a proposição de uma remodelação do sistema viário da cidade, a de Freire mais circunscrita espacialmente, enquanto a de Prestes Maia visava acompanhar indefinidamente a futura extensão do tecido urbano de São Paulo aliando às ideias de Freire as de Cintra. A princípio estas duas propostas pretenderam traduzir o “ritmo de crescimento da cidade industrial” (LEME, 1991: 69) através da reorganização da mobilidade na cidade, solucionando, simultaneamente, os problemas decorrentes do processo de industrialização da cidade (como o adensamento do centro, a multiplicação e simultânea convergência dos fluxos neste centro, nó da circulação) e o congestionamento das áreas centrais. Rolnik (2011:91) aponta que o projeto de Freire inaugura a ideia de anéis viários para a cidade São Paulo, e constitui-se na origem de um legado urbanístico de grande relevância para compreender a estrutura de circulação da cidade durante todo o século XX, configurando-se num marco da formação do pensamento urbanístico em São Paulo. Segundo a autora “o modelo de anéis, esboçado nos projetos urbanísticos do início do século [XX], vai marcar [...] a estrutura de circulação e mobilidade na cidade” 32 principalmente a partir de 1930, pois, a partir de então, esta estrutura irá “ganhar uma incidência muito maior na cidade” devido a “emergência de um de um novo padrão de produção industrial em massa, que teve na indústria automobilística sua gênese e maior expoente” (Idem, ibidem). Segundo Leme (1991: 70) o Plano de Avenidas de Prestes Maia demonstraria uma significativa ressonância aos parâmetros expostos acima. Seu sistema de vias radio-perimetrais se repetiria inúmeras vezes no território, projetando a expansão do tecido urbano da cidade para além do confinamento representado pela adjacência dos rios Tietê e Pinheiros (Idem: 67), levando à superação de seu sítio23. Esta concepção ad infinitum de crescimento urbano no projeto de Prestes Maia decorre, em parte, do emprego de uma opção modal baseada predominantemente na flexibilidade característica dos meios de transportes movidos a combustão interna. Segundo Libâneo (1989) e Leme (1991), em seu Plano, Prestes Maia exporia uma “evidente” contra-argumentação à manutenção de transportes movidos a energia elétrica, pautada por uma clara opção modal para a qual seu Plano se comprometia. Para Leme (Idem: 67) “a predominância dos automóveis e ônibus em relação a outros meios de transporte é evidente no Plano”. E acrescenta que “o argumento da fluidez do tráfego é utilizado tanto para justificar o deslocamento de ferrovias como o impedimento do tráfego de bondes nas avenidas”. Isto nos leva a conjecturar que seu projeto vislumbrou uma configuração territorial que poderia ser melhor provida por esta escolha modal. Retomando os conteúdos expostos no capítulo anterior, o Plano de Avenidas de Prestes Maia iria ao encontro da assertiva de Jacobs (2007: 388-389) mencionada no capítulo anterior, para a qual há uma incontornável incompatibilidade entre concentração de usos e dependência excessiva de automóveis, dessa maneira a metrópole, adaptada aos transportes pneumáticos, não poderia manter-se monocêntrica. O projeto visava em poucos anos efetivar por completo a transferência modal dos transportes elétricos sobre trilhos, os bondes em particular, para o uso dos transportes pneumáticos com combustão interna, os ônibus e os automóveis. Conforme o contexto ideológico nascente nas décadas de 1930 e 1940, tal substituição da 23 Rolnik (2011:91) corrobora com a firmação de Leme no sentido de que a concepção urbanística latente no Plano de Avenidas de Prestes Maia “se opunha a qualquer obstáculo físico para o crescimento urbano ou a qualquer definição a priori de um limite para o crescimento da cidade”. 33 tecnologia de transporte era considerada um imperativo para a efetivação do progresso no Brasil. Neste sentido, Rolnik (2011:92) aponta que adesão ao Plano de Avenidas de Prestes Maia iria concretizar uma transferência modal que começara a esboçar seu prelúdio já na década de 1920 em São Paulo, esta tendência de substituição modal não se limita a cidade de São Paulo podendo também ser generalizada para outras grandes cidades brasileiras. Muito embora as mudanças modais passam a ser notadas de maneira mais sensível apenas na década seguinte, a qual será marcada pelo início de uma “inflexão no sistema de transportes público [...], mas [que] só ganhou momentum a partir de 1948”. Assim “em 1942, as linhas de bonde tinham encolhido 41 km [...] e sua participação caído para 63% das viagens em modo coletivo, enquanto a participação do ônibus nas viagens em modo coletivo passou de 16% para 37%” (Idem, ibidem). Descongestionamento e expansão horizontal se consolidam como binômio da proposta de Prestes Maia cujo nexo seria os transportes sobre pneus (LEME, 1991: 66). Pois o emprego dos ônibus (principalmente) e dos automóveis como meios principais de deslocamento poderia possibilitar uma densidade demográfica rarefeita e constante ao longo do processo de expansão horizontal da cidade, criando a oportunidade simultânea de ocupação das terras longínquas em relação ao adensamento central e seu consecutivo descongestionamento: “A flexibilidade do serviço de ônibus, ao contrário de trens e bondes, cujo raio de influência era limitado pela distância entre estações, combinada com o modelo de expansão horizontal trazia a solução para a crise de moradia com a autoconstrução em loteamentos na periferia.” (ROLNIK, 1997:164) Libâneo salienta que a implantação do plano, mesmo que parcial, causou consequências significativas na futura configuração territorial da cidade24. Para a autora (1989: 55) “a atual [1989] configuração da cidade de São Paulo, com o centro dedicado ao comércio e serviços, as periferias para a habitação popular e o quadrante sudoeste para residências de alto padrão, é decorrente de seu Plano”. E continua: “a não abertura das vias perimetrais” previstas no Plano acabou por sobrecarregar “o centro da cidade”, tornando “preciso projetar-se uma segunda perimetral em 1956, pelo próprio Prestes Maia” (Idem, ibidem). Um terceiro perímetro viário ainda com o objetivo de “desafogamento” do centro seria construído na década seguinte cujos trechos principais seriam as avenidas Marginais nos rios Pinheiros e 24 FRÚGOLI (2000: 54-55) e MORSE (1970: 374-375) também o interpretam neste sentido. 34 Tietê. A visão urbanística de uma cidade com subcentros dispersos no território acabou por não concretizar-se. Ao mesmo tempo, Vasconcellos (1999: 235) indica que o contexto de mobilidade que se desenha a partir dos anos 40 será agravado pela continuidade e expansão do modelo rodoviarista e pelo concomitante aumento do uso do automóvel nas próximas décadas, se configurando por enquanto numa crise ainda latente. Porém cujo auge “pode ser detectado na década de 60, quando a cidade já contava com cerca de 4 milhões de habitantes e perto de 500 mil veículos” chamando a atenção para a emergência das questões de mobilidade neste período na cidade de São Paulo e para a significativa visibilidade conferida à esta “questão” pelos meios de comunicação e pelo próprio Estado. São “nestes anos, [que] o trânsito começa a deixar de ser assunto “pitoresco” do dia-a-dia, para ir se transformando em questão público-coletiva” (Idem, ibidem). Com base nisso propomos, portanto, uma exposição dos contextos de mobilidade a partir da década de 1960 associando-os à dinâmica de deslocamentos principalmente a partir da década de 1970. 2.2. A dinâmica dos deslocamentos na metrópole dos anos 1960 aos anos 2000 – Transportes públicos e Transporte individual. As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pela intensa urbanização das grandes cidades nacionais assim como pela ascensão das classes médias urbanas, particularmente no final da década de 1960 e início da de 1970, conjugadas ao significativo incremento populacional particularmente na cidade de São Paulo. Entre 1968 e 1977 o incremento populacional foi de 45% e, neste mesmo período, “segundo a pesquisa OD, o número de viagens aumentou 120%”. Neste contexto surgem no seio da administração municipal “trabalhos técnicos de alta intensidade retórica” (ROLNIK, 1997: 200), tais como o PUB (Plano Urbanístico Básico) de 1968 e o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) de 197125. Pode-se, então, conjecturar que os problemas deste período podem estar sistemicamente interligados: o aumento expressivo da população, o consequente aumento e diversificação da demanda por mobilidade podem estar ligados ao aumento 25 A contextualização destes dois planos no cenário nacional se dá “quando o estado nacional [durante tempos de ditadura militar] requereu a produção de planos integrados e condicionou a oferta de financiamento federal para projetos de desenvolvimento urbano à apresentação pela municipalidade de um plano integrado” (ROLNIK, 1997: 200). 35 do tamanho da cidade concomitante à extrema densificação das áreas centrais causada pela intensa expansão vertical. Estes dois fenômenos podem influir no aumento, na densidade e na extensão dos fluxos internos a cidade que dessa forma estariam ligados à um crescente distanciamento entre os locais de demanda e os de oferta de empregos. Nas décadas de 1970 e 1980 esta disjunção espacial será uma característica marcante da cidade. Justamente na década de 1960 ocorre uma significativa expansão do sistema viário principal. Nesta década a influência do modelo de rodovias expressas urbanas de Robert Moses26 (ROLNIK, 2011: 93) ganha eco dentre as intervenções no sistema viário na cidade justamente quando “as faixas expressas tem um aumento de 778% [...], com a construção de 536 km” (Idem: 94). Dentre outras obras de viadutos e alargamento de vias, neste período são construídas as avenidas marginais e o eixo LesteOeste, constituído pelo elevado Costa e Silva e pela Radial Leste. A construção das avenidas marginais dos rios Tietê e Pinheiros nos é de grande importância, pois elas representarão os limites da futura delimitação territorial denominada de centro expandido. Neste momento, o ônibus ganha quase exclusividade na participação dos deslocamentos efetuados por uso de transportes coletivos. “Segundo a Pesquisa Origem e Destino (OD) de 1967, os ônibus eram responsáveis por 59% de todos os deslocamentos e por 93% dos deslocamentos em transporte público” (Idem, ibidem). Tendo sua participação relativa sofrido uma pequena diminuição no total de viagens apenas quando da inauguração da primeira linha de Metrô da cidade em 1972, passando a se responsabilizar por 81% das viagens em transporte coletivo (Idem, ibidem). A década de 1960 é, portanto, caracterizada por uma extensa ampliação do sistema viário da capital pela qual se concretizou a transferência modal preludiada já no período de 1920-30 conforme mencionado anteriormente. O período compreendido entre 1960 até o final da década de 1970 se configura como imprescindível para a compreensão da organização da mobilidade nas décadas subsequentes. Segundo Rolnik (2011: 95) e Vasconcellos (1999: 233) este período marca a “confluência de processos econômicos, políticos e urbanísticos que viabilizaram uma transferência modal em larga escala, inundando as vias da cidade de veículos particulares”, justamente na década de 26 Que em 1949 havia sido contratado pela municipalidade para presidir uma equipe encarregada de elaborar um “Plano de Melhoramentos Públicos para São Paulo. A equipe propõe a ampliação e modernização da frota de ônibus, e que “as avenidas marginais ao Tietê e Pinheiros, já concebidas esquematicamente no plano de Prestes Maia, recebessem o tráfego das rodovias, concebendo a função que cumprem até hoje” (ROLNIK, 2011: 93), transformando-as no nexo dos fluxos regionais. 36 1970 Santos (2009a) nota o surgimento daquilo que chamou de cidade corporativa, para a qual o modelo territorial, apoiado na expansão rodoviária, e o modelo político pós1964 seriam muito importantes para sua conformação. Durante a década de 1960 a frota de veículos cresceu numa média de 14,5% ao ano, e na década seguinte 11,5% ao ano (VASCONCELLOS, op. cit.). Em consonância com este aumento da motorização individual, a cidade de São Paulo, entre 1968 e 1977, apresentou um aumento de cerca de 9 pontos percentuais da participação do automóvel em sua divisão modal, partindo, em 1968, de 25,9%, para 34,8% em 1977 (Idem). Embasado em outras fontes Santos (2009a: 89) salienta que “o número de viagens em carros particulares quase triplica entre 1967 e 1977, passando de 1,9 milhão para 5,4 milhões diários”, e a participação relativa dos automóveis na divisão modal total passa de cerca de 37% para cerca de 50% (50,18%). Podemos notar que a reorganização da mobilidade em São Paulo, tanto em termos modais como em espaciais, acompanhou os processos políticos e econômicos apontados até este momento do estudo. No final dos anos 60, apesar de ser constatado um ganho de fluidez na cidade decorrente das diversas intervenções que visavam a ampliação do sistema viário, este aumento seria momentâneo e reduzido a este período. Pois na década subsequente, o aumento da frota de veículos passa a prejudicar seu próprio desempenho, diminuindo os índices de velocidade média tanto dos automóveis como dos ônibus (VASCONCELLOS, 1999): “Em toda a cidade, de um modo geral a circulação de pessoas e mercadorias ficou mais fácil, apesar do aumento do sistema viário, na parte mais central da cidade, não ter acompanhado o ritmo do aumento da frota: entre 1960 e 1970, a utilização máxima do sistema viário principal cresceu 140%, para um crescimento de 299% na frota de veículos, enquanto na década seguinte os crescimentos foram respectivamente de 30% e 197%”. (Idem: 233) Referente ao mesmo período Rolnik (2011: 95) complementa a afirmação de Vasconcellos indicando que, muito embora num primeiro momento a ampliação do sistema viário beneficiou a velocidade média tanto dos ônibus quanto dos automóveis, num segundo momento, portanto, o mencionado aumento da frota de veículos particulares passou a diminuir a velocidade média de deslocamento tanto do ônibus quanto do próprio automóvel. Passa-se a caracterizar, segundo Vasconcellos (1999) e Rolnik (2011), um segundo momento nas condições de mobilidade que se inicia a partir de 1975 no qual os automóveis passam a exercer uma constante pressão sob o sistema viário devido ao considerável aumento de seus números. 37 Para Vasconcellos (1999) o contexto histórico da década de 1970 altera consideravelmente o perfil e o ritmo da intervenção das entidades públicas no sistema viário. A continuidade da construção de diversas vias expressas é solapada pela crise do petróleo em 1973 e é arrefecido o projeto rodoviarista para São Paulo. Segundo Rolnik (2011: 94), os gastos públicos em sistema viário chegam a representar apenas 11% do total do orçamento do município ente 1973 e 1980, enquanto que entre 1965 e 1973 representavam, em média, 27%. Decorrente desses fatores surgiria uma crise de mobilidade instaurada na primeira metade dos anos 70 na qual ressurgem discursos a favor do transporte público e sobre as possibilidades de controle do crescimento urbano (ROLNIK, 2011: 94). E, em 1974, é desenvolvido um vultoso plano de transportes coletivos metropolitano, o Sistran, justamente quando (entre 1973-1980) os gastos municipais com transporte público aumentam para 19% do total de seu orçamento (Idem, ibidem). Apesar dos efeitos da crise do petróleo de 1973 e dos incentivos ao aumento da qualidade e do uso do transporte público, desde então representado majoritariamente pelo ônibus, o processo de transferência modal ainda é mantido, pois, segundo Balbim: “O país vive a crise do petróleo e é gestado o Proálcool, que assegura o uso do automóvel. Nesse período, as melhorias da macroacessibilidade, já produzidas desde o período anterior, somada ao aumento do acesso das classes médias ao transporte individual, viabilizam uma transferência modal de larga escala do ônibus para o automóvel particular.” (2003: 60) À crise do petróleo de 1973 e a subsequente diminuição do ritmo da ampliação do sistema viário principal, se junta outro fator, a municipalização das responsabilidades públicas voltadas à fiscalização e operacionalização das questões de trânsito na capital (VASCONCELLOS, 1999: 230). Na crista destes eventos surgem o Departamento de Operação do Sistema Viário (DSV) em 1973 e a CET em 1976 27. A criação destes órgãos exprime a preocupação com relação à otimização das vias já existentes e assegurar o funcionamento do organismo urbano, afinal “a gestão desses fluxos” passa a exigir “uma razão científico-tecnológica completamente estranha ao homem comum” (SEVCENKO, 1991:18) que as utiliza diariamente. Mais conciso Balbim (2003: 60) afirma que o período entre 1975 e 1982 foi “marcado pelo abandono de planos ambiciosos de reestruturação do espaço 27 Segundo Vasconcellos (1999) a criação destes órgãos é ressonante ao correlato contexto de diminuição do ritmo de ampliação viária e aumento dos problemas de mobilidade na cidade. Para este autor esta fase se constitui num momento cujo foco principal das preocupações públicas são as “atividades de operação de trânsito, de otimização das estruturas existentes, e não mais pela ampliação da infraestrutura viária” (Idem: 230) 38 metropolitano através do redesenho do sistema viário”. Neste período, mais precisamente entre 1975 e 1980 a frota de veículos crescera cerca de 36% passando de 1,2 para 1,9 milhões (VASCONCELLOS, 1999: 231). Em termos históricos, Vasconcellos (1999) aponta que este contexto de diminuição do ritmo de ampliação do sistema viário provocada pela crise do petróleo é ocasional. Pois mesmo na década de 1970 dá-se continuidade à expansão do sistema viário principal ainda pautado pelo traçado radial através da construção de novas vias arteriais radiais localizadas fora do centro expandido. Na referida década foram construídas “importantes vias arteriais na zona Norte (Braz Leme, Caetano Alvares, Inajar de Souza, Edgar Facó) e na zona Leste (Luiz Inácio de Anhaia Mello e Aricanduva)” de maneira que estas vias foram construídas “em regiões antes desprovidas de ligações com as áreas mais centrais” (VASCONCELLOS, 1999: 155). Devemos ainda levar em conta a inauguração de eixos organizadores dos fluxos regionais e principais vetores de crescimento da cidade (BALBIM, 2003: 26): as rodovias Bandeirantes (1976-78), Trabalhadores (1980-83) e a dos Imigrantes (1970-1982). As consequências dessas novas vias de penetração fora do centro expandido são de grande importância para nosso objeto de estudo, pois ela “é acompanhada de uma dispersão dos novos automóveis no espaço urbano: entre 1966 e 1977, as regiões do “centro histórico” e do “centro expandido” da cidade diminuem sua participação na frota total do município de 40% para 30%, enquanto a região leste passava de 11% para 17% e a região norte de 15% para 19%” (VASCONCELLOS, 1999: 230). Esta afirmação nos é importante, pois indica um primeiro momento de dispersão do automóvel em áreas periféricas da cidade e que isto se deu à medida que o centro tornou-se mais acessível a partir de outras regiões da cidade. Nesse momento as pontes sobre os rios Tietê e Pinheiros passam a ser representativas da superação de antigas barreiras físicas ao crescimento contíguo do tecido urbano. Seguindo adiante, a década de 198028 caracterizou-se pelo estabelecimento do que Rolnik (Idem: 95) denominou ser um “hiato tecnológico”, advindo da discrepância criada dentro do sistema de transportes coletivos devido ao significativo deslocamento de recursos públicos para a construção do metrô em detrimento de possíveis investimentos na única alternativa tecnológica, segundo a autora, capaz de abarcar por completo o quadro deficitário de transportes coletivos na cidade de São Paulo, o ônibus: 28 Segundo Rolnik (2011:94), “em 1980, a cidade contava com 690 km de vias expressas e 890 km de vias arteriais – dimensão dez vezes maior do que o disponível em 1960”. 39 “A dependência da mesma tecnologia [o ônibus] operada com baixos níveis de eficiência, levou, então, a que os usuários de ônibus circulassem à mesma velocidade das décadas de 1930 e 1940, entretanto percorrendo distâncias muito maiores, mas também pela relativa estagnação tecnológica do transporte coletivo. [...] Criou-se, assim, um “hiato tecnológico” entre o que há de mais moderno – o metrô – e o que há de mais arcaico – o sistema de ônibus paulistanos.” (ROLNIK, 2011: 95) Portanto pode-se dizer que a construção e expansão do metrô criou certa distância entre este e o ônibus, na medida em que a ineficiência do sistema de ônibus influiria sobre o questionamento da própria necessidade de um investimento tão discrepante entre as duas alternativas tecnológicas: “Nem a construção do metrô consegue alterar significativamente este quadro [de ineficiência do transporte coletivo], uma vez que representa pouco ante as necessidades globais de deslocamentos e considerando que ele próprio precisa ser alimentado pelos ônibus para ter um movimento que o justifique.” (Idem, ibidem) Segundo esta premissa os grandes investimentos na ampliação do metrô pouco modificaram a estrutura de mobilidade na cidade de São Paulo. Mesmo que o metrô tenha aumentado sua participação na divisão modal referente aos transportes coletivos, sua construção e ampliação se justificaria mais como um transporte complementar ao uso do ônibus do que um meio de transporte capaz de se comparar ou mesmo de suplantar a necessidade e o uso do ônibus como meio de transporte coletivo. De modo que este último passou a vigorar como o transporte coletivo mais utilizado na cidade apenas após a década de 1950. Interessante notar que no segundo quartel do século XX (1925-1950), Langenbuch (1971) chama atenção para uma relação de complementaridade totalmente invertida, na qual o ônibus que figurava como transporte complementar aos trajetos das linhas férreas (no caso em relação aos trens de superfície). Na década seguinte (1990) houve um novo crescimento dos investimentos públicos em ampliação do sistema viário. Segundo Rolnik (2011: 96) Logo na metade desta década os níveis de investimentos se aproximam àqueles do período justamente precedente à crise do petróleo, de 1965 a 1970 (27%), alcançando 20,46% do orçamento municipal. Muitas destas intervenções, principalmente as efetuadas em 1996 e 1997, tiveram um caráter seletivo, em termos espaciais. Privilegiando particularmente o eixo 40 sudoeste da capital, visando o provimento viário da emergente “centralidade terciária” 29 . De um modo geral, as particularidades das intervenções do final dos anos 80 até meados dos anos 90 continuarão tendo as características das intervenções propostas pela esfera municipal até hoje, cujo foco é criar mais faixas de tráfego e eliminar cruzamentos (com a construção de pontes e viadutos) nas principais vias e corredores que ligam o centro aos bairros, viabilizando a construção de vias expressas urbanas com intuito de atuar apenas nos eixos gerais da organização dos fluxos na metrópole. Nas vias secundárias ou coletoras, torna-se mais comum proibir o estacionamento em parte das vias, mudar o sentido de circulação de trechos dessas vias e eliminar ou reprogramar os semáforos. As intervenções seriam então relativamente pontuais, o alargamento de ruas e avenidas e, atualmente, a construção de vias paralelas às marginais tornam-se medidas paliativas tendo em mente a relação que existe entre aumento da capacidade viária e aumento da dependência do automóvel, pois os congestionamentos reaparecerão devido ao aumento dos automóveis, conforme já alertava Jane Jacobs em Morte e vida de grandes cidades (2007). No período 1987/1997 a Pesquisa O/D registrou um aumento geral nas taxas de motorização individual em toda a Região Metropolitana, principalmente para o município de São Paulo, seguido por uma queda geral no índice de mobilidade motorizada30 para a Região Metropolitana como um todo, passando de 1,31 para 1,22. Neste intervalo de dez anos entre 1987 e 1997 o aumento da população na RMSP foi de cerca de 15%, seguido por um aumento de 34,8% da frota de automóveis. Como vimos, a participação do transporte individual na divisão modal da RMSP é progressiva ao longo do período 1967-2002 (sugerimos a observação do gráfico 1.2g sobre a divisão modal na RMSP no capítulo anterior e notar a renovação da tendência do uso do automóvel após o período 1987-1992). Quanto a isso, o relatório de Síntese O/D 1997 (1997: 9), relativo ao período 1987-1997, nos diz que o “aumento [da participação do transporte individual] na divisão modal deve-se ao acréscimo das viagens por automóvel em detrimento das viagens por ônibus”. 29 Projetos como o da canalização do córrego da Água espraiada e de outra avenida que correria ao longo de seu curso, dos túneis, um sob o Rio Pinheiros que faz a ligação entre a Avenida Juscelino Kubitschek e o distrito do Morumbi, e outro sob o parque do Ibirapuera, assim como o próprio projeto de reurbanização da Avenida Juscelino Kubitschek. 30 O índice de mobilidade motorizada é a relação entre o total de viagens motorizadas e o número de habitantes de uma determinada área. 41 Este aumento no uso de meios individuais de deslocamento ocorre simultaneamente ao referido curto período de grandes investimentos na ampliação do sistema viário na metade da década de 1990. Com isso em vista surge a derradeira preocupação com o transporte coletivo e é proposto pelo governo do Estado o Plano de Integrado de Transporte Urbano (PITU 2020). O Pitu consistia num plano mais abrangente que visava integrar e concluir as diversas intervenções isoladas no sistema de transporte coletivo ao longo dos últimos anos cujas obras estavam paralisadas 31. Atinente a isso Rolnik (2011: 101-102) nos diz que a partir do final da década de 1990 até a metade da década de 2000 fixa-se um padrão de investimento em transportes coletivos que visou integrar as intervenções da prefeitura às do Estado de São Paulo, para assim promover intervenções coordenadas que influiriam tanto na escala da Região Metropolitana como um todo, mas também nas condições de mobilidade da capital. Decorrente disso foi adotado em2001 um sistema de integração modal que visava construir terminais distritais de ônibus nas intermediações de estações ferroviárias das linhas regionais de trem (CPTM) e criar uma série de medidas técnicas de intervenção na circulação dos ônibus dentro da cidade, integrando os diversos terminais através do estabelecimento de corredores de ônibus em eixos estratégicos. Este é o caso dos terminais de ônibus de Pirituba e da Lapa construídos nesse período e ambos adjacentes à estações ferroviárias e integrados através do corredor de ônibus Pirituba-Lapa-Centro. Este plano visava ainda integrar o acesso a todos os transportes públicos por meio de um cartão eletrônico (o “bilhete único”). Neste momento (2002) os investimento em transportes coletivos atingira uma de suas maiores margens na década, chegando a representar cerca de 47% (ROLNIK, 2011:100) dos investimentos municipais dentro da rubrica de transportes e obras viárias. Estes investimentos causaram reflexos e a participação do transporte individual na divisão modal caiu de 49% em 1997 para 45% em 2007. Mesmo assim, houve um aumento da frota de veículos neste período que progrediu em proporções inferiores às da década anterior, mas mesmo assim cresceu 16% no período, a mesma proporção de crescimento da população da RMSP que cresceu também 16% (Síntese O/D 1997 e 2007). Esta perda relativa inédita na história da cidade pode estar relacionada a uma 31 Este plano pretendia a continuidade de melhorias nas “linhas de metrô, corredores de trólebus e centros de controle” a “recuperação das ferrovias e sua transformação em novos serviços de metrô, que abrangem ainda a integração de linhas ferroviárias e a ampliação da frota de trens, destacando-se novas linhas de metrô e a concessão e eletrificação de corredores e sua troncalização” (ROLNIK, 2011: 98). 42 migração de usuários do transporte individual para o transporte coletivo. No entanto este argumento será melhor analisado no capítulo seguinte. Segundo Rolnik (2011) apesar da inversão histórica na divisão modal no início dos anos 2000, recentemente, mais precisamente a partir da segunda metade da década de 2000, dá-se um novo ciclo de aumento dos gastos municipais em melhorias e expansão do sistema viário que visam a otimização da circulação do transporte individual. Segundo esta autora em 2006 os investimentos para a viabilização dos transportes individuais passam a representar 96% dos investimentos em transportes feitos por parte do município. Este momento seria marcado pela “retomada do investimento em sistema viário e na reafirmação do modelo histórico de anéis perimetrais e de “rodovias urbanas” (vias expressas), com a implantação de projetos como o Rodoanel, a ampliação da Marginal do Rio Tietê e um pacote de obras viárias que favorecem a abertura de frentes de 32 expansão imobiliária de alta renda” . (ROLNIK, 2011: 103). Paralelamente a estes fatos, do final da década passada até o início da presente, a frota de veículos na grande São Paulo aumentou 14,1% (de 4.512.118 unidades em janeiro de 2008 para 5.252.506 em abril de 201233) em pouco menos do que a metade do período anterior (1997/2007) no qual a frota crescera 16% (Síntese O/D 2007). Devido ao progressivo crescimento da frota e a deflagração de uma recente crise de mobilidade34 surge, em 2011, um novo plano viário para a cidade (publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 31 de janeiro de 2011 no caderno cotidiano, páginas C1 e C3). O plano (conforme o mapa a seguir) consiste na criação de cinco anéis viários, formados por vias já existentes ou ainda em projeto, constituindo cinco vias expressas perimetrais carregando certa similaridade com as propostas de anéis perimetrais conforme já exposto no Plano de Prestes Maia. O objetivo de tal plano é o de reduzir a quilometragem dos congestionamentos na metrópole assim como monitorar e administrar a qualidade atmosférica devido aos poluentes emitidos pelo acúmulo de automóveis parados e congestionamentos. Rolnik vê neste plano a persistência de um modelo “reeditado ad nauseam” (2011: 105) a cerca de 80 anos, demonstrando sua força e legado urbanísticos. Conforme o mapa a seguir: 32 Este aspecto será melhor abordado no último tópico deste capítulo quando abordaremos brevemente as principais características das recentes mudanças na dinâmica de mobilidade da cidade. 33 Dados: http://www.detran.sp.gov.br/, acessado em 12 de junho de 2012. 34 Em 2009 o índice recorde de congestionamento foi quebrado duas vezes no mesmo dia, atingindo 294 km de morosidade, seguido de uma queda brusca na velocidade média do trânsito nos horários de pico chegando a 19,30 km/h (Ver Rolnik, 2011: 89). 43 Neste momento encontramos uma oportunidade para sintetizar o conteúdo exposto neste tópico e realizar uma caracterização geral dos principais aspectos no que se refere aos contextos de mobilidade do período de 1960 a 2000 articulados aos pressupostos teóricos aqui edificados. O texto até o presente momento pretendeu traçar a trajetória de como se deu a evolução e afirmação do uso do automóvel como transporte cotidiano no decorrer de diversos contextos políticos e econômicos. Neste tópico particularmente, tentamos relacionar o aumento da frota de automóveis no município e, de modo geral, na RMSP, à congestão do sistema viário e a subsequente necessidade de ampliar sua capacidade de vazão, à perda de fluidez na cidade e a necessidades de maior capacidade de gestão e organização dos fluxos dentre outras. Também chamamos a atenção para certa dispersão do uso do automóvel em áreas periféricas do município de São Paulo já em meados da década de 1970 (cf. VASCONCELLOS, 1999). 44 Pois então que ao longo desta exposição pudemos notar que há certa alternância entre os momentos de investimento em transporte individual e coletivo. De certa forma os investimentos em ampliação do sistema viário tendem a beneficiar e incentivar tanto o uso do automóvel como o uso do transporte coletivo (notadamente o ônibus), uma vez que tais investimentos aumentam a fluidez na cidade de maneira geral. No entanto, os investimentos na ampliação do sistema viário, na fiscalização do tráfego e na gestão dos fluxos tenderam a ser executados em detrimento de investimentos em transporte coletivo representado predominantemente pelo ônibus. A perda de qualidade e deterioração dos meios de transporte coletivos pode configurar uma “migração” de usuários de transporte coletivo para o transporte individual de um lado, para aqueles que o podiam fazer e, de outro, para aqueles de menor renda que não o podiam fazer, poderia resultar num restringimento das possibilidades de mobilidade dentro da cidade, podendo conformar-se no fenômeno que Santos (2009a) denominou de imobilidade relativa. Assim, de certa maneira, a canalização de investimentos públicos na ampliação no sistema viário desdobrava-se numa forma de incentivo à aquisição de meios individuais de transporte, o que pode explicar o inchaço no uso de transporte particular cujo progressivo aumento caracterizou-se pela constante demanda de mais investimentos em ampliação do sistema viário. Atinente a isso, Jacobs delineia um instigante raciocínio no qual o crescente do número de automóveis na cidade exerceria “uma pressão sobre si mesmo” (2007: 389). A referida autora denominou este raciocínio de “retroalimentação positiva” 35, e explica que “Na retroalimentação positiva, uma ação produz uma reação que por sua vez intensifica a situação que originou a primeira ação. Isto intensifica a necessidade de repetição da primeira ação, que por sua vez intensifica a reação e assim por diante, ad infinitum.” (JACOBS, 2007: 389) Portanto, seria como se a própria solução de uma dada situação reforça-se a problemática inicial para a qual ela foi predisposta a solucionar, o reforço da problemática inicial ensejaria, por sua vez, o emprego da mesma solução, garantindo a reposição da problemática inicial. No caso é como se a solução para a problemática dos 35 Aqui notamos a necessidade de registrar algumas ressalvas quanto ao uso deste raciocínio de Jacobs para São Paulo, pois a autora usa este raciocínio para se referir às particularidades do processo de urbanização norte americano ao longo da primeira metade do século XX e, particularmente, a algumas metrópoles estadunidenses. 45 congestionamentos através da ampliação do sistema viário ao invés de suprimir o problema, o ensejaria36. Este raciocínio cíclico é interessante, pois nele figura um processo de viabilização, inviabilização e reviabilização contínua do sistema viário, no qual os congestionamentos tendem a reaparecer devido ao aumento de automóveis subsequente a momentos de expansão da capacidade viária. Neste sentido seria interessante apontar certa similitude do supramencionado raciocínio às considerações de Santos (2009b: 134) que, referindo-se à São Paulo em outro contexto histórico de urbanização, aponta que a cidade tenderia a passar por “ciclos sucessivos de viabilização, inviabilização e reviabilização [que] atingem [...] as estruturas de transportes e comunicação”37. No tópico seguinte exploraremos mais detidamente as consequências que as respectivas conjunturas socioeconômicas provocaram na dinâmica dos deslocamentos da cidade nas décadas de 1970, 1980 e 1990, proporemos ilustrar tal dinâmica dos deslocamentos em São Paulo segundo as relações “centro-periferia”, que marcaram a cidade principalmente nos anos 70 e 80. Mais adiante passaremos a uma análise mais atual da dinâmica geral dos deslocamentos na cidade de São Paulo com o intuito de começar a contextualizar nosso objeto de estudo: a dinâmica dos movimentos de uma fração da cidade, o distrito de Pirituba. Esta análise será balizada pela significativa participação de meios individuais de deslocamento no mencionado distrito, conforme será exposto no capítulo seguinte. 2.3. A dinâmica dos deslocamentos em São Paulo e o modelo “centro-periferia” Neste tópico iremos ilustrar muito rapidamente o cenário da cidade de São Paulo nas décadas de 1970 e 1980 para passarmos da dinâmica dos deslocamentos dentro da cidade correspondente ao esquema centro-periferia para a complexificação desta dinâmica a partir da década de 1990, principalmente. Conforme exposto ao longo do primeiro capítulo, a urbanização brasileira é caracterizada, de maneira geral, por intensos movimentos de concentração, os quais convergiam para as grandes cidades brasileiras, mas principalmente para São Paulo nas décadas de 1960 e 1970. No entanto, ao analisar esta dinâmica da urbanização, Santos 36 Isto, claro, num cenário em que há uma significativa dependência de automóveis para a realização dos deslocamentos diários. 37 Notamos que este processo ocorre a nível mais geral dentro do contexto que Santos (2009b) o empregou, envolvendo a cidade como um todo atingindo “as estruturas produtivas [...] e mesmo as estruturas administrativas” (SANTOS, 2009b: 134), porém talvez seja fortuito utilizar esta noção de Santos, no que tange à estrutura de transportes, relacionada ao raciocínio de “retroalimentação positiva” de Jacobs (2007). 46 (2009a) nota que estes movimentos gerais, provenientes do processo de urbanização, que resultam na concentração das forças produtivas e dos agentes econômicos nas cidades, produzem um complexo arranjo de fixos e fluxos (SANTOS, 2008 [1985]) internos à cidade. Este arranjo diz respeito à localização das atividades econômicas, da distribuição da população segundo suas rendas e às condições de acesso a serviços propriamente urbanos. As grandes cidades possuiriam então uma distribuição interna da população, dos serviços e produtos ofertados, dos empregos e, principalmente, da infraestrutura. O arranjo espacial produzido pela dinâmica entre estes elementos, sistematicamente interligados, estaria inapelavelmente associado a uma intrincada relação entre seletividade do provimento de infraestruturas, valorização diferencial e expansão periférica. Disto resultariam movimentos “centrífugos”, aos quais está associada a expansão periférica, e “centrípetos”, aos quais estão associados a concentração dos empregos, dos serviços, das atividades econômicas e das infraestruturas no centro da cidade. Portanto à medida que a cidade de São Paulo passa a ser o epicentro de compulsivos processos de concentração espacial das forças produtivas, da produção e do consumo, passando a atrair empresas de todos os tamanhos e expressivos contingentes populacionais, ela começa também a apresentar uma determinada dinâmica interna de ocupação. Esta, por sua vez, estaria associada a um modelo de equipamento diferencial de seu território e de valorização diferencial do terreno urbano, correspondente a este equipamento diferencial. À dinâmica centrípeta está relacionada a seletividade de investimentos em infraestruturas econômicas e sociais dentro da cidade. Esta seletividade de investimentos se volta, principalmente, para a viabilização das condições de instalação de atividades econômicas modernas em alguns setores da cidade, as quais passam a se beneficiar de melhores condições de acessibilidade. Isto corrobora para que estes setores apresentem uma grande diversidade de oferta de serviços. A concentração de uma oferta diversificada de serviços e de fixos diversos tende a corroborar com a valorização destes setores, que passam a atrair uma faixa da população mais seleta, de maior poder aquisitivo e com condições financeiras de residir nestes lugares valorizados. Configura-se, portanto uma relação entre a seletividade de infraestruturas, a valorização diferencial, e uma seletividade sócio-espacial dentro da cidade. 47 Simultaneamente a isso a cidade de São Paulo, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, atravessa um intenso incremento demográfico resultante da dissolução dos “cimentos regionais” (SANTOS, 2009a) que levam grandes contingentes populacionais em direção à cidade. A impossibilidade desse volumoso contingente populacional, em grande medida detentor de parcos recursos financeiros, de se instalar nas áreas mais bem providas em termos de infraestruturas e serviços, resultaria numa dinâmica de ocupação que caracterizou a cidade pelo crescimento periférico, o que poderia ser apontado como uma tendência centrífuga devido à forma de distribuição de grande parte dos novos habitantes urbanos em relação ao centro da metrópole. Portanto a seletividade de investimentos dentro da cidade de São Paulo associada à subsequente valorização diferencial levou a uma dada organização de seu espaço, que passa a condicionar como nela se dá a vida urbana, como nela é distribuída a população, onde estão concentradas suas atividades e agentes econômicos etc. Desse modo, à seletividade de investimentos há uma correlata seletividade espacial da oferta de empregos e serviços e, principalmente, uma correlata seletividade socioespacial. Decorre disso um padrão de segregação socioespacial que caracterizaria a cidade e a Região Metropolitana de São Paulo nos anos 70 e 80, principalmente na década de 1970. Segundo Caldeira (2003: 228): “Em resumo, nos anos 70 os pobres viviam na periferia, em bairros precários e em casas autoconstruídas; as classes média e alta viviam em bairros bemequipados e centrais, uma porção significativa delas em prédio de apartamentos [...] Esse padrão de segregação social dependia do sistema viário, automóveis e ônibus, e sua consolidação ocorreu ao mesmo tempo que São Paulo e sua região metropolitana se tornaram o principal centro industrial do país e o seu mais importante pólo econômico.” Durante este período de intensa urbanização criou-se, portanto, um acelerado distanciamento entre as áreas centrais, onde estavam concentrados os empregos na cidade, e as áreas periféricas, onde se concentravam estes novos habitantes do município e da RMSP. Grosso modo, este distanciamento resulta da simultaneidade entre os processos centrípetos e os processos centrífugos, da concentração da oferta de serviços, empregos e infraestrutura urbana e da “dispersão” de uma parcela significativa da população da cidade. Assim, em termos gerais, a periferia tende a concentrar grandes contingentes populacionais em áreas mais longínquas em relação ao centro, portanto com grande parte da demanda pelos serviços urbanos e empregos. 48 Há dentro deste esquema exposto de maneira geral, a configuração de um progressivo distanciamento entre casa-trabalho, configurando-se num processo que marca a expansão territorial da cidade de São Paulo. Isto aliado à seletividade de implantação dos investimentos sociais faz com que as condições de acessibilidade de diversas frações da cidade sejam diferenciais. Desse modo torna-se verossímil delinear uma relação entre as condições de vida em alguns lugares e suas condições de mobilidade. Assim, Balbim (2003: 213) ressalta que a mobilidade se distribui também de maneira desigual, e partindo deste, dentre outros princípios, afirma “que a mobilidade é uma prática seletiva”. A crescente disjunção espacial entre os locais de residência e os locais de efetivação do trabalho tenderia a agravar o quadro de mobilidade na cidade. Na medida em que a cidade aumentava, neste contexto, sua extensão territorial através da ocupação e fixação de grande parte da população38 nas franjas da cidade, principalmente aquela de baixa renda, criar-se-ia um descompasso entre o processo de ocupação periférico e a implantação e ampliação do sistema de transportes públicos. Isto aliado à forma fragmentada (SANTOS, 2009a; BALBIM, 2003) pela qual a cidade de São Paulo se expandiu, concorreu para pulverizar a demanda por transportes coletivos no território, dificultando ainda mais seu atendimento, e corroborou para criar grandes diferenças de acessibilidade no próprio município de São Paulo. Desta forma o fenômeno que Santos (2009a: 94) denominou de imobilidade relativa se configurou como um dos agravantes da problemática das classes de renda mais baixas. Esta situação criaria uma tendência cumulativa ao empobrecimento das parcelas da população que residem nestes lugares e dependem das áreas mais centrais da cidade para o trabalho, o consumo e outros serviços, pois a necessidade de deslocamento aos lugares que os oferecem levariam os residentes da periferia a ter mais gastos com transporte do que aqueles que poderiam usufruir de menor distância para alcançar os locais que oferecem estes mesmos serviços (SANTOS, 1987). Devido a isso, Santos (2009a) e Balbim (2003) ressaltam que as diferenças de possibilidade de acesso aos transportes públicos resultam das relações de mútua dependência entre mobilidade e segregação socioespacial em São Paulo concretizadas principalmente na década de 1970. Desta maneira, para Balbim, acessibilidade, 38 Segundo Santos (2009a: 49) e Jacobi (1982) é sobremaneira importante o modelo de autoconstrução para a compreensão da ocupação periférica na metrópole paulista. Segundo Balbim (2005: 70) entre o período de 1960 a 1980 “imprime-se com grande força a autoconstrução, relacionada à perda do poder aquisitivo das classes trabalhadoras, caracterizando o processo de expansão periférica”. 49 segregação e mobilidade compõe uma síntese e aparecem como "meio de representação das disparidades socioespaciais da metrópole corporativa e fragmentada" (Idem: 205). Dessa forma acessibilidade e mobilidade surgem, tanto para Balbim (op. cit.) como para Santos (2009a), como instrumentos de justiça social. Por estas dentre outras razões, Kowarick (1980) relaciona expansão metropolitana e pauperização da força de trabalho, no sentido de que o crescimento da cidade gera um empobrecimento progressivo das classes de renda mais baixas. Singer (1982) compartilha desse raciocínio entre distanciamento e aumento dos custos de transportes, argumentando que, nessas condições, o “espaço” haveria de “ser vencido pelo movimento de pessoas, coisas e ideias” (Idem: 32). Neste sentido, surge a ideia de espaço como “obstáculo” a ser transposto, pois “quanto maiores as distâncias a serem transpostas por trabalhadores e consumidores, mercadorias e mensagens, tanto maiores são as quantidades de trabalho social a serem gastas naquelas atividades” (Idem, ibidem). Harvey (2001: 195-202) ao discorrer sobre o conceito de “fricção da distância”, conforme proposto por Hägerstrand (1975), o coloca de maneira atinente ao sentido de “superação” tanto de um espaço físico, relativo à distância, como de um espaço social. Segundo Harvey a “fricção da distância”, conforme Hägerstrand, seria “a medida em tempo e gastos necessários para” vencer esta distância física e social que “restringe o movimento diário” (2001: 194). Ainda segundo Harvey a “acessibilidade e distanciamento referem-se ao papel da ‘fricção da distância’ nos assuntos humanos; a distância é tanto uma barreira quanto uma defesa contra a interação humana” (Idem: 202). E se referiria, também, ao fluxo de bens, de dinheiro, da força de trabalho, de informação etc., em suma aos sistemas de transportes e comunicação (Idem: 203). Portanto a crescente extensão da periferia e sua ocupação pelas classes de menor renda levaria, ao mesmo tempo, a uma drenagem dos orçamentos familiares referentes aos gastos com transportes e ao fato de que “quanto menor a renda, de um modo geral, maior é o tempo gasto para se fazer transportar do domicílio ao trabalho” (2009a: 95). Santos (Idem: 97) salienta que a progressiva absorção das rendas familiares no quesito transporte não se restringe apenas às classes de menor renda, este aumento dos gastos com transportes nas rendas familiares seria uma tendência geral, que acomete todas as faixas de renda em São Paulo: “A tendência no longo prazo é o aumento relativo da parcela de gastos familiares com transporte”. 50 A característica de que os investimentos em infraestruturas, de um modo geral (energia, viária, saúde etc), e de transportes coletivos são implantados de maneira concentrada e disjunta em relação ao “grosso” da demanda pelos mesmos geraria uma situação de “escassez” em relação a estes mesmos serviços abrindo a possibilidade para que se desenvolvam processos de especulação imobiliária sobre a chegada de tais serviços em determinadas áreas causando um novo ciclo de expansão do tecido urbano associada à manutenção da problemática dos transportes coletivos. A associação do provimento de meios coletivos de deslocamentos à valorização das áreas que os recebem causaria uma gradativa evasão daqueles que nelas não poderiam arcar com os gastos financeiros envolvidos com a valorização do terreno, como elevação dos impostos etc. Assim é consuma-se o fato de que é custoso residir em locais bem providos de meios de transporte coletivo, tornando mais seletiva a composição socioeconômica da população residente nestes locais. Além disso, são estes os locais para os quais converge uma diversidade enorme de fluxos tanto internos à cidade como regionais, pois são nessas áreas onde o consumo é mais diversificado e, portanto, onde a demanda por serviços e produtos é tão diversificada quanto a oferecida. Assim passa-se a exigir sempre mais fluidez e capacidade de vazão de tráfego nestas áreas chamadas genericamente de centrais, mas que podemos, mesmo correndo o risco de cometer certo reducionismo, nos dirigir a elas como inseridas no chamado centro expandido. Dessa maneira reforça-se a necessidade de tornar o centro expandido mais acessível frente às áreas periféricas da cidade, de maneira que sua acessibilidade também passa ser necessária em relação às próprias áreas periféricas. Portanto, passa-se a confluir para o centro expandido investimentos em ampliação e modernização da infraestrutura viária, em organização e fiscalização dos fluxos, pois é o centro da cidade de São Paulo que se torna o “nó” da circulação interna e da circulação regional (SANTOS, 2009a). Neste sentido, Santos indica que “por volta de 1973, 90% de todos os investimentos feitos na cidade de São Paulo incidem sobre o centro expandido” (2009a: 60). Referente à década de 1970 e atinente aos investimentos em organização, ampliação e melhorias do sistema viário, Vasconcellos corrobora com a assertiva de Santos e aponta que certos investimentos também se dão na chamada periferia: “A intervenção é de certa forma espacialmente seletiva, pois se dá com maior intensidade na região central, onde se concentram as populações de renda 51 mais alta, mas ocorre também em todos os corredores de tráfego que penetram nas áreas mais periféricas, assim como em todos os subcentros regionais.” (1999: 231) Segundo Santos (2009a) o traçado viário calcado num plano radial fortaleceria esta tendência de convergência dos fluxos, tornando esta tendência uma característica marcante da estrutura de circulação da cidade nas décadas de 1970 e 1980. Surge, portanto, a necessidade de eliminação dos pontos de baixa fluidez na cidade, que coincidem com as vias e áreas da cidade para as quais converge grande quantidade dos fluxos advindos de “dentro” e de “fora” da metrópole: “Nas cidades cujo território foi conformado através do traçado rodoviário, sobretudo quando o plano urbano é originariamente radial, como no caso de São Paulo, o centro histórico se avantaja como nó de circulação, lugar onde a acessibilidade é relativamente maior que em outros pontos, situação cuja tendência à reprodução é cumulativa.” (SANTOS, 2009a: 72) Talvez a tendência de reprodução do centro (SANTOS, 2009a: 67) venha a reforçar o paradigma urbanístico de anéis viários e avenidas radiais, pois conformação desse traçado viário possibilitou uma forte afirmação da posição do centro em relação às áreas dele distantes como fornecedor de trabalho, serviços e produtos diversificados. Logo, a convergência dos fluxos locais e regionais para o centro expandido, de maneira geral, implica principalmente em constantes melhorias de suas condições de acessibilidade, polarizando os investimentos em grande medida e resultando numa determinada dinâmica dos deslocamentos na cidade. Se retomarmos ao mapa 2.1 e observarmos que à sequência de anéis concêntricos seguem vias transversais em relação a seus planos, sendo representadas tanto pelas rodovias que trazem os fluxos regionais, como pelas avenidas internas ao município localizadas além das marginais Tietê e Pinheiros e além-centro expandido (representado pelo círculo de cor laranja), ficará mais nítida a polarização dos fluxos exercida pelo centro expandido e uma consecutiva “pressão” sobre a organização da infraestrutura viária e dos transportes em geral. Vemos que esta organização do sistema viário pode ser ilustrativa do binômio centro-periferia que foi uma característica marcante da cidade de São Paulo principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Tal atração exercida pelo centro expandido pode ser notada até atualmente, mas talvez não com tal relação de dependência de outrora. Atinente à mencionada “pressão” sobre a organização das vias e dos transportes, Santos (2009a) menciona a desproporcionalidade entre o crescimento da população na periferia e o crescimento dos empregos na mesma. Além disso, associa a periferia à 52 insuficiência da oferta de bens e serviços o que acaba por fazer com que as atividades centrais absorvam grande parte do mercado consumidor da periferia. Há, então, a inserção destas questões, inclusive o da organização dos transportes num “esquema de seletividade espacial da oferta semelhante ao verificado no sistema urbano em geral” (Idem: 70), o qual tendeu a criar relações “verticais” entre centro e periferia, que seriam, grosso modo, relações hegemônicas do centro em relação à periferia. Segundo o autor: “Aumenta, desse modo, a pressão sobre uma organização dos transportes que já privilegia as relações verticais periferia/centro/periferia, tanto em virtude da localização dos empregos, como pela maior variedade e menor preço dos bens e serviços expostos à venda. Trata-se, de fato, de processos espaciais cumulativos, reforçando as estruturas existentes”. (Idem, ibidem) Estas relações marcaram a dinâmica da mobilidade cotidiana nas décadas de 1970 e 1980, principalmente daqueles que podiam usufruir de meios individuais de deslocamento e mesmo de meios de transportes coletivos como meio de deslocamento principal, num momento no qual o binômio centro-periferia era apresentado dentro dos ditames de uma oposição. A partir da década seguinte a dinâmica da mobilidade cotidiana se modifica, pois a cidade se modifica e as relações “verticais” entre centro e periferia talvez vieram a perder sua força, principalmente no município de São Paulo. Pois, segundo Balbim: “as formas que assumiram tanto a descentralização quanto a periferização recente da ‘metrópole corporativa e fragmentada’ (Santos, 1990a) revelam também que a noção de um centro urbano tornou-se pouco eficaz para sua compreensão, ou seja, a oposição entre centro e periferia se esgotou.” (2003: 85) Serão estes os pressupostos históricos sob os quais será analisada no próximo capítulo a dinâmica dos deslocamentos no distrito de Pirituba com o intuito de verificar o sentido dos deslocamentos (bairro/centro ou bairro/bairro) nesta fração da metrópole para elucidar com quais distritos são mais intensas suas relações. Isto será feito a partir da contextualização da metrópole no período a partir da década de 1990 que será abordada no tópico a seguir. 2.4. Mudanças recentes na cidade e na dinâmica de deslocamentos A partir da década 1980, mas principalmente da década de 1990, iniciam-se algumas modificações visíveis naquela “realidade de concentração de pessoas, de renda, das atividades e das viagens no município de São Paulo” (BALBIM, 2003: 219). Dentre 53 as muitas mudanças, Caldeira (2003) destaca uma marcante alteração nas tendências demográficas projetadas até então para a cidade de São Paulo. Inserida nesta quebra de tendência demográfica está, de um lado, o crescimento demográfico negativo e a evasão das classes médias e altas que residiam no centro da cidade e mais associados à mencionada cultura do automóvel (HARVEY, 2011). E, de outro lado, haveria uma manutenção do crescimento demográfico na periferia39 muito embora o quadro geral fosse de um arrefecimento do ritmo de crescimento demográfico projetado nas décadas anteriores. Segundo Caldeira este período apresentaria um traço muito distinto dos demais, pois “pela primeira vez na história da São Paulo moderna, moradores ricos estão deixando as regiões centrais para habitar regiões distantes” (Idem: 231). Este novo padrão residencial adotado pelas classes de renda mais altas viria a associar-se a certa “métrica automobilística” (BALBIM, 2003: 194) possibilitando sua evasão das áreas centrais e concebendo, simultaneamente, a criação de uma “abundância fundiária” (Idem, ibidem) distante das áreas centrais. Muito embora esta evasão do centro pelas classes mais abastadas é considerável, Caldeira afirma que a riqueza ainda continua “geograficamente concentrada” (2003: 231). Esta evasão se deu tanto em direção aos municípios lindeiros ao município de São Paulo, que compõem sua região metropolitana, quanto para distritos fora do centro expandido, notadamente aqueles da região sudoeste da capital. Associando-se a uma forma específica de habitação, denominada por Caldeira (2003) de “enclaves fortificados” 40. Balbim reforça o argumento sobre esta tendência quando diz que: “Em relação à estrutura da região e da cidade de São Paulo é sabido que, desde a década de 1980, houve um aumento substancial no número de famílias que deixaram as áreas centrais e se suburbanizaram em busca de regiões próximas ao centro metropolitano, mas que estivessem ao “abrigo” da violência e das poluições de diversos tipos. Esse é o padrão atual de segregação marcado pelos “enclaves fortificados”. (2003: 231) Neste período também houveram mudanças significativas na periferia do município de São Paulo e dos municípios que compõem a RMSP de modo geral. Segundo Caldeira (2003), no período de 1980 a 1990, ocorreu uma importante melhoria 39 A autora aponta que “a periferia mais pobre cresceu em média 3,26% ao ano na década de 80” (2003: 237). 40 Para Bauman (2005) o SUV (Sport Utility Vehicle) é o tipo de automóvel que se encaixa no modo de vida das gated communities (2005: 55), uma forma de habitação muito similar aos “enclaves fortificados” de Caldeira. Para Bauman o SUV é capaz de conferir uma sensação de segurança numa atmosfera urbana permeada por aquilo que ele denominou de medo difuso (Id. Ibidem). Segundo o autor, o SUV “assim como as gated communities [...] é descrito nos anúncios publicitários como imune à perigosa e imprevisível vida urbana “lá fora”. Tais veículos parecem mitigar o medo que as classes médias urbanas sentem quando se deslocam dentro de “sua” cidade ou quando ficam parados no trânsito” (Id.Ibidem). 54 das condições de vida dos habitantes da periferia do município de São Paulo devido à chegada de algumas infraestruturas urbanas, tais como pavimentação, água e esgoto, iluminação transportes etc. No entanto, a autora ressalta que tal melhoria na periferia fora concomitante a um empobrecimento de sua própria população, ilustrado pelo crescente número de favelas principalmente na periferia, mas também na cidade como um todo. O crescimento da pobreza estaria associado à valorização acarretada pela chegada dessas infraestruturas que levaria a impossibilidade das classes pobres de continuarem a residir neste mesmo local, forçando, por assim dizer, o deslocamento dos “mais pobres para os limites da cidade ou para outros municípios da região metropolitana” dificultando a manutenção da aquisição da casa própria feita por intermédio da autoconstrução forçando, assim, “uma considerável parcela da população mais pobre a viver em cortiços e favelas” (CALDEIRA, 2003: 240). Segundo a autora “a maioria das favelas em 1993 localizavam-se na periferia”. Dentre os quatro distritos que mais possuíam favelas neste ano estão os distritos Pirituba e Jaraguá que na época apresentava grandes favelas principalmente ao longo da Rodovia dos Bandeirantes41. São, enfim, por essas razões que Caldeira afirma que a referida “mudança demográfica combinou-se a uma mudança nos padrões residenciais especialmente para os moradores mais ricos e os mais pobres” (2003: 231). Balbim (2003) e Caldeira (2003) ressaltam outros aspectos da metrópole que sofreram profundas alterações e que são importantes de serem citados, pois se relacionam com as mudanças de mobilidade na cidade como um todo, porém estão situados muito além do escopo do estudo aqui proposto. Tais como “as transformações da urbanização (desconcentração e periferização) e do mercado de trabalho, com a maior inserção das mulheres, a dessincronização do tempo social” (BALBIM, idem: 193), provocando mais viagens em horários cada vez mais imprevisíveis. Segundo Balbim a recente desconcentração industrial conjugada à suburbanização de parte considerável das famílias de alta renda estaria relacionada a um aumento “no volume de veículos que entram e saem da metrópole paulistana diariamente” (2003: 233). Aumentando consideravelmente o volume dos fluxos regionais (conforme o gráfico 1.1g), ocasionando o aparecimento de congestionamento 41 Estas favelas foram removidas nos anos 2000, período no qual o distrito passa por transformações importantes e diversos investimentos são feitos na região, sendo remanejados seus moradores para habitações da CDHU 55 nas rodovias que dão acesso à São Paulo devido ao aumento dos deslocamentos diário nas mesmas. Se de um lado isto se relaciona com a multiplicação das viagens internas à cidade de São Paulo e a um aumento do tráfego nos eixos regionais, de outro, na década de 1990 houve também um aumento dos fluxos motorizados especificamente para alguns locais da capital, sobretudo em seu eixo sudoeste42. Até aqui tratamos apenas de maneira alusiva como certos fatores macroeconômicos podem influenciar na multiplicação das viagens, principalmente aos deslocamentos motivados por motivos de consumo e trabalho. Com relação a isso, Santos (2009a: 98) afirma que “a crise econômica [referindo-se à recessão dos anos 80] repercute sobre o volume de circulação na cidade”. O término da recessão econômica da década de 80 corroborou para modificar o contexto da mobilidade cotidiana na cidade de São Paulo. “Decorrem [desse novo contexto econômico] outras estratégias de compras, que marcam o cotidiano das pessoas” (BALBIM, 2003: 195), pois: “num contexto de alta inflação, as compras em supermercados eram feitas quando do recebimento do salário, uma única vez ao mês, em grandes quantidades. Atualmente, têm-se a possibilidade de comprar aos poucos, procurando os melhores preços, o que implica um aumento do número de viagens. Além disso, houve um grande aumento da participação dos supermercados no comércio, implicando um reforço da mobilidade automobilística e uma flexibilização dos horários de realização das compras (a maior parte dos hipermercados são lojas 24 horas)”. (Idem, Ibidem) A citação é um tanto longa, mas precisa, pois em contextos nos quais há um aumento geral do consumo aliado a bons indicadores econômicos é provável que seja fomentado um estímulo geral à multiplicação das viagens na cidade, sendo muito plausível que este estímulo reverbere em todas as faixas do espectro de renda. Assim as mudanças econômicas da década de 1990 e o crescimento econômico a partir dos anos 2000, podem ter viabilizado o acesso de parte da população a meios coletivos, os mais pobres, e a meios individuais de deslocamento, aqueles que obtiveram renda suficiente para manter um automóvel ou uma motocicleta. Podendo, portanto, estar relacionados à 42 Segundo Balbim (op. cit.: 85) “a concentração espacial dos novos empregos [...] corresponde, exatamente, às áreas eleitas no território da cidade para os maiores investimentos no sistema viário, criando a fluidez necessária para a instalação do capital.” Estes investimentos seriam “o caso dos túneis sob o Ibirapuera e o rio Pinheiros, que formam o eixo da Av. Juscelino Kubistchek. Além disso, podem-se citar as obras da nova Faria Lima, da Av. Hélio Pelegrino, da Av. Águas Espraiadas, entre outras, todas localizadas na mesma região [sudoeste], que conheceu, nos últimos anos, um enorme investimento imobiliário para viabilizar-se como um novo centro de negócios da cidade de São Paulo”. 56 multiplicação das viagens dentro da cidade e particularmente dentro da chamada “periferia” da cidade. Por assim dizer, o mapa dos fluxos dentro da cidade de São Paulo se modificou. Apesar disso há ainda grande convergência do total dos fluxos no sentido do centro expandido, porém os fluxos entre alguns distritos situados fora desta circunscrição territorial passam a ganhar grande relevância. O mapa 2.2 abaixo feito com base a Pesquisa O/D de 1997 sintetiza as informações até aqui apresentadas, tais como a diversificação e multiplicação dos fluxos, sua crescente imprevisibilidade, um aumento dos fluxos internos à chamada “periferia”, possivelmente vinculado a um aumento da oferta de empregos e serviços e a uma maior possibilidade de diversificação do consumo nesta extensa área: Nota-se no mapa um aumento dos fluxos “laterais”, ou seja, aqueles efetivados entre os distritos sitos fora do centro expandido. Principalmente no extremo da zona Leste tanto como na zona Sul, mas também na zona Norte, apesar de que com menor intensidade. Nosso estudo, portanto, se insere num contexto de melhoria e diversificação de produtos e serviços na periferia, tais como supermercados, centros de consumo, construção de shoppings, novas ruas comerciais que podem estar relacionados a um 57 aumento das viagens em distritos que anteriormente não os possuíam. Com relação a isso pretendemos mostrar que, apesar dos distritos situados fora do centro expandido não apresentarem uma taxa de motorização individual tão elevada em comparação aos distritos centrais e/ou de maior renda média familiar, há atualmente naqueles distritos um expressivo número de automóveis. E, conforme veremos muitos destes distritos apresentam um maior número absoluto de automóveis do que os distritos centrais, apesar destes apresentarem uma relação de habitantes por automóvel consideravelmente maior (no sentido de que existem mais automóveis por habitantes nestes distritos). Neste sentido, o centro expandido foi espaço que mais rapidamente se adequou às injunções de circulação e de uso cotidiano do automóvel. Pois então um acréscimo do uso do automóvel particular em distritos desprovidos da infraestrutura viária necessária para dar vazão a um considerável fluxo de automóveis passará a apresentar sensíveis problemas de circulação. Muito disso se relaciona com as mudanças nas práticas espaciais relativas ao uso do automóvel, às novas possibilidades de consumo e às modificações físicas que o uso do automóvel implica nas edificações, na organização do espaço da circulação, na respectiva disputa por espaço nas vias de circulação em relação ao ônibus e etc. Portanto, de modo geral, se relaciona às injunções que este objeto técnico implica aos usos do solo lindeiros às vias para sua melhor aderência à vida cotidiana e ao seu pleno uso. Logo nossa preocupação reside, em parte, nos recentes problemas de fluidez apresentados em distritos que anteriormente não compartilhavam de tais problemas vinculados ao significativo uso de meios de transporte individual (notadamente do automóvel), no entanto o fenômeno do trânsito no distrito não é nosso principal foco de estudo. Ele é relevante, primeiramente, porque congestionamentos em alguns distritos sitos fora do centro expandido pode ser um fenômeno novo, e também pelo fato de que maiores investimentos no sistema viário têm sido pauta nas questões distritais, nesse caso nos referimos apenas ao distrito de Pirituba. Dito isto, resta salientar que tal problemática é, em nosso estudo, uma análise secundária. Pois vemos que a questão sobre os problemas de fluidez no distrito de Pirituba pode ser uma problemática relacionada à dinâmica dos deslocamentos do distrito. Para isso, pretendemos empreender uma análise acerca da dinâmica dos deslocamentos motorizados no distrito de Pirituba para averiguar com quais distritos da capital o mencionado distrito mantêm relações. 58 Como apontamento final deste capítulo indicamos que há, de um modo geral, um aumento das supramencionadas viagens “laterais” nas viagens totais na cidade de São Paulo. Mesmo assim, as viagens no sentido centro expandido (Distrito-Centro), continuam muito significativas e seguem a criar problemas de circulação em diversos pontos de acesso, tais como nas pontes e viaduto que fazem a ligação entre os eixos regionais (as rodovias) e as áreas além centro expandido com o mesmo43. No próximo capítulo nossa análise se aprofundará em nosso objeto empírico: a origem e os destinos dos deslocamentos motorizados (transportes individuais e coletivos) oriundos do distrito de Pirituba, para que assim, nós possamos identificar com quais outras frações da cidade o mencionado distrito mantêm relações. 43 Isto ocorre com a região noroeste (Jaraguá, Perus, Brasilândia, Pirituba, Pq. São Domingos, Anhanguera e Freguesia do Ó) devido às poucas saídas para o centro expandido, cuja integração se dá por intermédio das pontes Atílio Fontana e do Piqueri. Para a primeira ponte tende a convergir o fluxo advindo da rodovia Anhanguera e grande parte dos fluxos oriundos de Pirituba que buscam o centro expandido, conforme veremos mais a frente. Em suma atualmente existem demandas por ampliação da ligação Distrito-Centro concomitante à reclames por fluidez dentro do próprio distrito. 59 Capítulo III - Dinâmica dos deslocamentos numa fração da metrópole: Pirituba. 3.1. Contexto geral dos deslocamentos em 2007. Neste começo de terceiro capítulo pretendemos apresentar alguns dados gerais relativos às condições de mobilidade da Região metropolitana e do município de São Paulo respectivamente, para depois passarmos para uma breve análise dos distritos que mais possuem automóveis na capital. E finalmente propomos a apresentação dos dados referentes ao distrito de Pirituba para levar-nos a uma análise sobre a dinâmica dos deslocamentos e suas relações com outros distritos da Cidade. Nosso método de aproximação ao objeto de estudo, se assim pudermos denominá-lo, seguirá uma abordagem escalar: metrópole, município, distritos e finalmente o distrito de Pirituba. Assim como as outras análises, as análise que se seguirão foram feitas com base nos dados fornecidos pela Pesquisa O/D 2007. Como nosso objeto é a dinâmica da mobilidade motorizada em Pirituba, voltando-se com maior atenção para os destinos das viagens feitas por uso de automóveis, a análise sobre os distritos que mais possuem automóveis situará o distrito de Pirituba e a região Noroeste neste quesito em relação aos outros distritos da cidade ao mesmo tempo em que poderemos averiguar quais são os distritos da cidade que mais possuem automóveis. Este procedimento também nos permitirá denotar qual a distribuição interna dos automóveis na cidade, permitindo, assim, traçar uma comparação com os dados expostos no capítulo anterior. Esta abordagem também nos será útil no sentido de que nos dará certo respaldo para ilustrar um cenário no qual o transporte individual pode ter obtido maior relevância e participação nos deslocamentos oriundos dos distritos da antiga “periferia”. Daremos, então, um pouco de relevo à presença do automóvel fora do chamado centro expandido para, assim, passarmos ao foco de nosso estudo: a dinâmica de mobilidade do distrito Pirituba. O intuito deste estudo é o de esclarecer com quais distritos Pirituba mantêm relações, quais deles recebem fluxos de Pirituba, particularmente no que tange às viagens feitas por modo motorizado. Para isso propomos em nosso último tópico uma análise específica da mobilidade na fração da cidade eleita para estudo, o mencionado distrito de Pirituba. 60 3.2. Mobilidade cotidiana na Região Metropolitana de São Paulo em 2007. Seguindo a tendência geral de multiplicação e complexificação dos fluxos na Região Metropolitana de São Paulo e no respectivo município central mencionada nos capítulos anteriores, verifica-se segundo a tabela 3.1t um histórico aumento do total das viagens efetivadas na região entre o período 1967 e 2007. No período 97-07 houve um aumento considerável em relação ao período anterior (87-97) passando de 6,5% neste período para 17,5% no período subsequente, diferença que em termos absolutos resulta num acréscimo de 8,6 milhões de viagens diárias totais em duas décadas. Tabela 3.1t – Dados Gerais A partir da divisão por modos motorizados e não-motorizados das viagens referentes à RMSP, a tabela 3.1t nos mostra uma evolução das viagens feitas por modo motorizado (modos coletivos mais modos individuais) principalmente no período 19972007, que apresentou um aumento de cerca de 18%, refletindo também num aumento dos índices de mobilidade motorizada. Gráfico 3.1g A tabela 3.1t, no entanto, não nos mostra o considerável aumento das viagens não motorizadas, das quais são feitas majoritariamente de modo a pé, sendo que em 61 todos os períodos da pesquisa O/D os deslocamentos a pé correspondem a mais de 97% dos deslocamentos feitos por modo não-motorizado, conforme podemos observar na tabela 3.2t. Tabela 3.2t Apesar da histórica progressão das viagens motorizadas, Balbim (2003: 213) nos alerta que o “crescimento absoluto das viagens a pé da ordem de 100% [no período 1977-1997] rivaliza com o crescimento das viagens motorizadas”. Segundo a última Pesquisa O/D (2007) os níveis de participação dos deslocamentos feitos a pé foi mantido em 34% colocando-se numa pequena defasagem em relação ao aumento dos números de viagens motorizadas. Vemos, portanto, que os deslocamentos não motorizados são ainda significativos no total das viagens. Segundo a pesquisa O/D (Síntese O/D, 2007: 24) o principal motivo das viagens a pé é educação correspondendo a 57% desse tipo de deslocamento e a maior parte do percentual dessas viagens são efetuadas devido à pequena distância/tempo decorridas para atingir seus respectivos destinos, segundo o gráfico 3.2g abaixo: Gráfico 3.2g 62 Como visto anteriormente um dos resultados mais relevantes desta última O/D leva em conta “a recuperação da participação das viagens por modo coletivo” (Síntese O/D, 2007: 19) entre 2002 e 2007, revertendo a histórica tendência de aumento do uso do transporte individual que até então havia evoluído sua participação dentre os modos motorizados de 31,9%, em 1967, para cerca de 55% em 2002. Se retomarmos o gráfico 1.2g no primeiro capítulo perceberemos que no período entre 1997 e 2002 o uso de transportes individuais suplantou o uso de meios de transporte coletivos: “A Pesquisa de Aferição de 2002 indicou uma participação maior das viagens por modo individual do que por modo coletivo. Em 2007, a divisão modal na RMSP reverte [a] tendência observada nas pesquisas anteriores, apontando 55% de participação do modo coletivo e 45% do modo individual.” (Idem, ibidem) Em termos históricos esta inversão entre 1997 e 2002 foi inédita e demonstrou uma tendência que vinha se desenhando nas últimas quatro décadas. Balbim sintetiza esta evolução até 1997 de maneira concisa: “Nesse período [1967-1997] houve diminuição da participação dos deslocamentos em transportes coletivos, sendo que uma parte das pessoas que se utilizavam desse modo passou a fazer uso do automóvel, enquanto que a outra se viu obrigada a realizar ao menos uma parte de seus deslocamentos cotidianos a pé.” (2003: 213) Portanto esta migração entre transportes coletivos e transportes individuais não se dá numa estrita relação de causa e efeito, pois o significativo aumento dos deslocamentos a pé nestas quatro décadas tem de ser levado em conta, tendo diminuído seu aumento apenas no último período (1997-2007). Segundo o autor a evasão dos transportes coletivos se deu predominantemente em relação ao ônibus, sendo que o metrô também aumentou sua participação dentre os transportes coletivos, porém o resultado desta evasão do ônibus refletiu com maior intensidade também no aumento dos deslocamentos a pé. Segundo a Pesquisa O/D, no período 1997-2007 a participação do automóvel no total de viagens motorizadas diminui em relação à 1987-1997, passando de 47% para 41%. Mesmo assim na tabela 3.1t podemos notar o aumento da frota de automóveis na RMSP, portanto é interessante notar que por mais que o uso do automóvel tenha decaído de 2002 a 2007, notamos que em números absolutos seu volume tem aumentado. Atualmente o tamanho da frota na capital é de 5,2 milhões, conforme mencionado anteriormente. 63 Gráfico 3.3g No entanto se voltarmos a observar a tabela 3.1t, a variável taxa de motorização não se modifica em relação ao período 1997-2007 mantendo-se 184 automóveis por mil habitantes. Isto pode não significar necessariamente um arrefecimento do uso e da aquisição de automóveis, pois este dado se refere ao número de automóveis particulares por mil habitantes. De maneira que as oscilações positivas desta taxa nas décadas anteriores se referem a uma taxa de crescimento demográfico inferior à taxa de crescimento do número de automóveis. Portanto o fato de que a taxa de motorização tenha se mantido igual nos dois períodos não se refere a uma manutenção do número de automóveis nos mesmos níveis, isentando-o de taxas de crescimento, mas sim a um crescimento do número de automóveis na mesma proporção que o crescimento demográfico, pois ambos, conforme dito anteriormente cresceram 16% no período. Taxa essa que equivale ao crescimento da frota de automóveis na RMSP nos últimos quatro anos (de janeiro de 2008 à junho de 2012). De acordo com a Pesquisa O/D, dentre os motivos de deslocamento o mais importante é o de trabalho e depois o de educação. Neste último decênio, a pesquisa mostra que houve uma queda no uso do automóvel principalmente referente aos motivos de trabalho, passando a representar 44% dos motivos de deslocamentos na RMSP. No entanto o automóvel prevalece para os deslocamentos cujos motivos são compras e lazer, dentre outros, e esta informação pode estar relacionada à crescente imprevisibilidade e diversificação dos deslocamentos principalmente em dias não úteis e a horários fora daqueles convencionalmente chamados de “pico”. 3.3. Contexto municipal em 2007 O município de São Paulo concentra grande fatia dos deslocamentos efetivados na RMSP como um todo, portanto o município de São Paulo seria a maior influência 64 nas oscilações das médias e índices, principalmente aquele que se refere ao número total de viagens realizadas. Neste sentido o município de São Paulo “responde por quase 2/3 do total de viagens realizadas na RMSP” de maneira que seu peso é tal que distorce em grande medida as análises numéricas voltadas para a compreensão de uma área tão extensa quanto é a RMSP, chegando a impor “seu padrão à média da região” (Balbim, 2003: 217). Em 2007 o total de viagens do município de São Paulo é de 23,5 milhões e corresponde a 61,7% do total das viagens em toda RMSP. Neste município 68,6% das viagens são realizadas por modo motorizado e 31,4% por modo não motorizado. Tal como na RMSP no período 1997-2007 houve um aumento das viagens totais na ordem de 16%. Com relação às classes motorizadas e as não motorizadas as duas apresentaram um aumento idêntico correspondente também à 16%, levando em conta que em termos absolutos o volume de viagens não motorizadas é bem inferior. Assim como a tendência de reversão do quadro modal enunciado para a RMSP, no qual os transportes coletivos haveriam obtido um ganho de usuários à revelia dos modos individuais, a divisão modal do município também modificou-se. Passando, então, a registrar um aumento das viagens efetivadas por modo coletivo, partindo de 52,5% em 1997 para 56% em 2007. Tomada as devidas premissas explanadas a pouco, as viagens feitas por modo individual demonstraram um decréscimo no quadro geral das viagens para este período, passando de 47,% em 1997 a 44%. No entanto houve um aumento das viagens feitas por este modo, de 6,3 milhões em 1997 para 7 milhões em 2007. Disso, sem que a afirmação anterior sobre a reversão do quadro modal caia em contradição lógica, podemos conjecturar que o aumento da viagens por transportes coletivos pode estar relacionado a um aumento de acesso aos mesmos via renda, de modo que na comparação global das viagens estas suplantariam o pequeno aumento das viagens individuais. Portanto prosseguimos com cautela acerca de argumentos que implicam numa inversão direta entre modos individuais e modos coletivos e vice-versa. Além disso, afirmações que seguem este raciocínio de forma direta podem ser precipitadas, pois no município de São Paulo, muito mais do que nos outros municípios da RMSP, a disponibilidade de utilização de mais que uma única opção modal é muito maior. “Embaralhando”, por assim dizer, concepções estanques acerca da divisão modal do município. Segundo a pesquisa O/D as viagens diárias cuja opção modal é uma 65 opção exclusiva e se caracteriza pela não utilização de mais de uma opção para realizar um mesmo trajeto, estão mais vinculadas ao uso do automóvel. Muito embora é relativamente comum o fato de que se faça uso tanto do transporte individual como do transporte coletivo para a realização de um mesmo trajeto como, por exemplo, o uso de automóvel e metrô. A multimodalidade44 possui maior peso no município central da RMSP do que em outros, pois “a multimodalidade implica uma diversidade de modos de transporte adaptados, sobretudo no que tange à integração modal, horária e tarifária” (BALBIM, 2003: 183) e seria o município de São Paulo que detêm esta oferta de múltiplas modalidades disponíveis e mais integradas, tais como trem, metrô e ônibus. Portanto a multimodalidade é muito mais presente e mais necessária nos trajetos de usuários de transportes coletivos do que daqueles que fazem a opção de utilizar o automóvel ou a motocicleta de “porta-a-porta”. Neste sentido, reiteramos que a construção do Terminal de Ônibus Urbanos em 2003 no distrito de Pirituba segue este modelo de integração modal, possibilitando a transferência dos usuários de ônibus para a linha de trem e vice-versa, sendo esta linha férrea formada pela antiga Estrada de Ferro Santos-Jundiaí atualmente operada pela CPTM. Dessa maneira, a oferta de diversas opções modais é característica de uma atmosfera cujos destinos são múltiplos e diversos, cujos fluxos são os mais dinâmicos e também os mais imprevisíveis, a cidade de São Paulo se assemelha em grande medida a esta atmosfera de rapidez e imprevisibilidade. Onde seria necessário, portanto, a adaptação dos sistemas de transportes aos mais distintos trajetos, com tal capilaridade para atender as mais diversas demandas, fazendo uso de diversas tecnologias de transporte e possibilitar uma maior capacidade de acoplamento a diferentes estratégias de deslocamento (como, por exemplo, bicicletários em terminais). Desta maneira a cidade de São Paulo apresenta uma infinidade de destinos dentro dela mesma, e onde as origens de toda essa diversidade de viagens são as mais inusitadas. Portanto o principal objeto deste trabalho é o de tentar compreender esta dinâmica numa fração da metrópole, o distrito de Pirituba, como ele se relaciona com outras frações para poder identificar se há um padrão distinto daquele no qual o “centro” polarizaria os fluxos dos “bairros”. 44 O “termo multimodalidade refere-se ao uso alternado de diversos modos de transporte em função dos destinos, motivos e diversas outras circunstâncias como: programação diária, clima, humor, interdependência com familiares etc.” (BALBIM, 2003: 183). 66 Assim, para concluir estes dois tópicos iniciais, propomos a observação do segundo mapa de fluxos na RMSP também publicado no caderno Especial para a divulgação da última Pesquisa O/D no Jornal Estado de S.P. que sintetiza as direções dos fluxos na capital em 2007: Este mapa baseado nos dados da Pesquisa O/D sintetiza a dinâmica geral dos fluxos do município de São Paulo e de alguns outros municípios da RMSP e revela que ainda há uma forte atração do centro expandido tanto em relação aos fluxos internos quanto aos fluxos externos ao município. Demonstrando que os fluxos mais intensos ainda convergem para o centro expandido. Com relação aos fluxos externos, por isso queremos dizer aqueles fluxos oriundos fora do município de São Paulo, podemos mencionar uma forte relação de longa data com a região do ABC paulista à sudeste, à oeste com os municípios de Osasco, Carapicuíba e Barueri cujos fluxos são realizados principalmente pelo eixo representado pela Rodovia Castelo Branco. À noroeste podemos identificar os fluxos regionais advindos das rodovias Anhanguera e Bandeirantes conformando um volumoso fluxo de longa distância cujo destino é, principalmente a região do centro expandido. Com relação aos fluxos internos podemos notar uma série de deslocamentos entre distritos que estão localizados fora desta circunscrição territorial denominada de 67 centro expandido, cuja dinâmica é muito grande ao mesmo tempo em que parte das viagens oriundas destes distritos destinam-se para o centro expandido também. Mesmo assim, o mapa aponta que esses deslocamentos “laterais”, ou entre os distritos, são volumosos e significativos. Se observarmos no extremo leste da Zona Leste há um tráfego “inter-distrital” muito intenso, assim como na Zona Sul e na Região Norte, revelando uma forte conexão que se estende da Freguesia do Ó passando pelo distrito do Limão e se alongando até os limites do distrito de Santana. O aumento destes fluxos “laterais” pode estar relacionado a uma dinamização e diversificação das economias desses distritos, que passam a atrair mais pessoas, mais mercadorias e serviços, portanto, passa a atrair e gerar mais fluxos. A nós interessa os fluxos que possuem origem e/ou destino relacionados com a zona noroeste da capital. Apesar de não ser, provavelmente, a região da cidade com maior volume de fluxos, vemos no mapa um fluxo que representa um volume acima de 250 mil viagens diárias saindo desta região da capital. Reforçamos que este grande fluxo é representado majoritariamente pelos fluxos regionais oriundos das rodovias Anhanguera e Bandeirantes, que tendem a corroborar com os congestionamentos nas zonas de “estrangulamento” de fluidez representadas pelas pontes que conferem acessibilidade ao centro expandido e às marginais, confluindo-se com um fluxo oriundo dos distritos municipais que procuram as mesmas vias para ter acesso às marginais ou ao centro expandido. No tópico seguinte faremos uma análise sobre os distritos que mais possuem automóveis no município, com o objetivo de ilustrar uma considerável penetração das formas individuais de transportes (no caso o automóvel) na “periferia”, principalmente na região Noroeste da capital e, particularmente, no distrito de Pirituba. Assim como sua possível associação com o espraiamento do fenômeno do trânsito para locais distantes do centro expandido. 3.4. O uso do automóvel nos distritos além-centro expandido. Segundo o que foi até aqui exposto, pretendeu-se descrever a evolução da participação do automóvel na mobilidade cotidiana dos habitantes da cidade de São Paulo de forma alusiva a nosso objeto de estudo, a dinâmica de mobilidade no distrito de Pirituba. De modo que este aumento se deu de forma progressiva conforme distintos contextos socioeconômicos, cujo início se deu particularmente no final da década de 68 1960 quando houve um grande incentivo ao consumo dos produtos da indústria automobilística, e a partir de então este consumo se deu de forma perene inclusive em períodos de crise econômica conforme vimos no capítulo 2. Desta forma ao longo deste trabalho nos referimos constantemente a um progressivo aumento da frota de automóveis tanto na cidade de São Paulo quanto em sua respectiva região metropolitana. Cidade a qual se adaptou mais rapidamente às demandas deste objeto técnico e na qual ele se enraizou mais rapidamente no cotidiano das classes médias. Passamos, portanto, por uma análise teórica da cidade que nos levou a uma descrição do esquema centro periferia nas décadas de 1970 e 1980. No qual o centro expandido se via mais provido de serviços e infraestrutura viária, pois nesta região se concentrava as classes de renda com maior poder aquisitivo e mais associadas ao uso cotidiano do automóvel, no qual tange o fator de relação entre aumento da renda e aumento do uso de meios de transporte individuais, tornando seu uso quase exclusivo nas faixas de renda mais altas. Desta forma, reconhecemos que associamos de maneira muito genérica o uso do automóvel e o subsequente aumento da demanda pela ampliação do sistema viário ao centro expandido nas referidas décadas, e à periferia associamos, também de modo muito genérico, um maior uso do transporte coletivo motorizado, no caso o ônibus, mais característica àquela parcela da população que se via constantemente afastada do centro expandido. Desta forma a metrópole e o município de São Paulo, inseridos no binômio centro-periferia, representariam uma dinâmica particular dos movimentos dentro da cidade, que respeitaria este esquema, de modo que o centro expandido seria o centro “gravitacional” destes fluxos e para o qual estes convergiriam. Nas décadas subsequentes a cidade passa por diversas mudanças já mencionadas que implicariam em alterações na dinâmica de movimento, das origens e dos destinos das viagens, dentro e fora (RMSP) da cidade. De maneira que a forma pela qual os movimentos passaram a se realizar dentro da cidade tornou-se mais dinâmica. Tanto por fatores como a evasão das classes de renda com maiores possibilidades de consumo como pela melhoria da periferia45 (CALDEIRA, 2003), que passa a apresentar uma maior oferta de serviços, de produtos e também de empregos. Seria neste contexto que nos referimos a uma maior “penetração” das formas de mobilidade individual nestes 45 Aqui nos referimos a periferia do município e não os municípios periféricos da RMSP. 69 distritos periféricos, mais distantes ou apenas mais desprovidos em termos de acessibilidade e transporte públicos, como é o caso de Pirituba. Será isto que passaremos a analisar neste tópico do trabalho: o número de automóveis dentro da metrópole, quais são os distritos que possuem um maior volume de automóveis, evidentemente em números absolutos, e onde estão. Para isso propomos uma análise comparada entre duas tabelas46 feitas a partir dos dados da Pesquisa O/D referentes à década de 1997 a 2007. As variáveis serão simples, utilizaremos apenas o número de habitantes de cada distrito e o número de automóveis referente aos mesmos. A primeira tabela se refere exclusivamente aos 25 distritos que mais possuem automóveis, a segunda tabela elenca os 25 distritos que possuem uma maior proporcionalidade entre o número de habitantes e o número de automóveis, de maneira que assim podemos adquirir a relação entre habitantes por automóvel referente a cada um dos distritos que possuem um número de habitantes mais simétrico em relação ao número de automóveis. O intuito desta análise é o de comparar os distritos que mais possuem carros e aqueles cuja relação habitante por automóvel é mais acirrada para que possamos apenas vislumbrar uma possível sobreposição entre o aumento do uso do automóvel e a relação habitantes por automóvel como indicador de participação do uso do automóvel. Primeiramente, com base nos dados da pesquisa O/D de 2007, fizemos uma divisão genérica para ilustrar o total de automóveis que os distritos contidos na circunscrição territorial chamada centro expandido contêm e quantos que fora dela estão. Esta circunscrição contêm 27 dos 96 distritos que compõem o município de São Paulo. Em 2007 todos os distritos do centro expandido continham 487.734 mil automóveis, ou seja, cerca de 23% da frota restrita ao município (2.114.265), de modo que os outros 70% da frota estão dispersos nos outros distritos fora desta circunscrição. Para que possamos extrair maior exatidão sobre os distritos que apresentam as maiores quantidades de carros de uso particular elaboramos o gráfico abaixo baseado na tabela (ver tabela 3.3t em anexo) que contêm os 25 distritos da capital que apresentam os maiores volumes de automóveis: 46 Estas tabelas estão disponíveis no anexo juntamente com este trabalho. 70 Gráfico 3.4g - Distritos com o maior número de automóveis (por unidade) 60.000 53.136 50.000 40.000 30.000 20.000 10.000 - 44.030 35.326 32.392 31.014 30.400 29.930 Destes 25 distritos é interessante notar que apenas seis (as colunas que estão em vermelho no gráfico) estão localizados no centro expandido. Retirados os valores destes seis distritos, os 19 distritos restantes representam 32,6% (689.742) de todos os automóveis da capital. Isto significa dizer que 19% dos distritos da capital concentram quase um terço dos automóveis do município sendo que a maioria deles não possui um bom provimento de transportes públicos tais como Sapopemba, Sacomã (que em 2007 ainda não possuía a linha verde do metrô), Grajaú, Pirituba etc. Em termos absolutos é interessante notar que distritos como Pirituba e Brasilândia detêm maior volume de automóveis do que alguns distritos como Moema e Jardim Paulista. Neste sentido nos surpreende que os distritos que mais possuem automóveis na capital sejam o de Sapopemba, Sacomã e Grajaú. No entanto, seguindo nosso raciocínio ao longo deste trabalho, o dito acima não se trata de um dado anômalo, pois como vimos nos capítulos anteriores estes distritos mais distantes são ao mesmo tempo aqueles que foram historicamente menos bem providos por transportes públicos e os que concentravam maior demanda pelos mesmos. Este mau provimento pode ter se configurado numa forma de incentivo à aquisição e uso de automóveis por meios diversos, tais como através do mercado de automóveis usados e por meio da expansão do crédito à diversas faixas de renda. Temos também de levar em consideração que pode haver uma quantidade considerável de famílias com rendas médias que residem nestes distritos. Somos compelidos a salientar que muitos destes distritos não apresentam uma contiguidade territorial capaz de denotar uma concentração geográfica de automóveis em certas porções do município. De modo que os distritos que mais possuem veículos 71 se encontram dispersos, situados no extremo Leste (Sapopemba) e no extremo Sul (Grajaú e Cidade Dutra) do município. No entanto nos é muito relevante ressaltar que a região Noroeste47 da capital parece apresentar esta contiguidade em termos territoriais de maneira que quatro (Pirituba, Jaraguá, Brasilândia e Freguesia do Ó) dos sete distritos que a compõe aparecem neste ranking. O distrito de Pirituba, nosso caso de estudo, aparece na 13° posição duas posições atrás do distrito de Brasilândia. O mapa da região noroeste em anexo pode confirmar a contiguidade existente entre estes quatro distritos. Com exceção dos distritos situados no centro expandido, todos os distritos restantes relacionados no gráfico 3.5g possuem uma notável desproporcionalidade entre o valor total de seus respectivos contingentes demográficos e o total de automóveis neles existentes. Gráfico 3.5g - Distritos - desproporcionalidade automóveis/habitantes População Sapopemba Sacomã Grajaú Cidade Dutra Vila Mariana Perdizes Saúde Jabaquara Tremembé Jardim São Luís Brasilândia Cidade Ademar Pirituba Itaquera Jardim Ângela Moema Capão Redondo Campo Limpo Freguesia do Ó Santana São Lucas Jaraguá Jd. Paulista Itaim Bibi Campo Grande Número de automóveis Desta forma fica explícito que apesar de representarem uma grande parcela dos automóveis da capital, concentram também uma grande parte de sua população, cerca de 4,1 milhões de habitantes, 37% do total do município de São Paulo (foram descontados os valores referentes aos distritos do centro expandido que estão nesta relação). Portanto também concentram uma importante demanda por outros meios de transporte que não o automóvel. Desta disparidade entre o total de automóveis e o total da população, podemos traçar uma relação entre o número de habitantes por automóveis, fundindo as colunas do gráfico acima: 47 Reiteramos que esta região é composta pelos distritos de Pirituba, Jaraguá, Perus, Anhanguera, Freguesia do Ó, Brasilândia e São Domingos. 72 Gráfico 3.6g - Relação habitante por automóvel 10,0 8,0 6,0 4,0 2,0 0,0 Sapopemba Sacomã Grajaú Cidade Dutra Jabaquara Tremembé Jardim São Luís Brasilândia Cidade Ademar Pirituba Itaquera Jardim Ângela Capão Redondo Campo Limpo Freguesia do Ó Santana São Lucas Jaraguá Campo Grande Relação habitante por automóvel A relação entre habitantes e automóveis nestes distritos é menor devido à assimetria entre as duas variáveis. Por consequência os distritos que possuem um maior número de automóveis não são aqueles que possuem necessariamente uma maior proporcionalidade entre o número de habitantes e o número de automóveis, e apresentam, portanto, uma demanda diversificada, tanto pelas condições de circulação por uso dos automóveis como por uso ônibus e outras modalidades. Se fizermos este mesmo procedimento com relação a todos os distritos da capital, para poder apontar aqueles que apresentam esta devida proporcionalidade notaremos que eles se localizam em grande medida no centro expandido, tanto em função das mudanças demográficas ocorridas nas últimas décadas como em função da relação entre renda e motorização individual, conforme dito anteriormente, que existe em muitos destes distritos: Gráfico 3.7 g - Relação habitante por automóvel 4,0 3,5 3,0 2,5 2,0 1,5 1,0 0,5 0,0 Notamos aqui o risco de realizar uma correspondência simples da relação entre uma fração do espaço e uma fração da sociedade, pois de modo geral os distritos que possuem uma proporção mais próxima de 1:1 são distritos ditos mais valorizados que, 73 por assim dizer, possuem uma composição socio-profissional mais associada à rendas mais elevadas48.Pois então, notamos que esta é uma generalização arriscada e que a relação entre classe, renda e lugar não se dá de forma mecânica, pois pode-se facilmente encontrar “um número considerável de pessoas de alta renda em bairros que evidentemente empobrecem, da mesma forma que em áreas em processo de “melhoria” encontram-se pobres residuais” (SANTOS, 1987: 84). Seguiremos a análise aderindo a estas ressalvas e referindo-nos com maior cuidado às dinâmicas de outros distritos para, assim, não obscurecer fatos relativos às suas respectivas particularidades. Neste sentido notamos que alguns dos distritos discriminados no gráfico 3.7g também aparecem na relação dos distritos que possuem mais automóveis na capital, tais distritos são: Moema, Vila Mariana, Perdizes, Saúde, Itaim Bibi e Jardim Paulista. Estes distritos possuem altos índices de motorização individual e uma forte simetria entre o volume de automóveis e os contingentes demográficos que neles residem. No entanto, distritos como Tatuapé, Saúde e Campo Grande entre outros, também estão discriminados neste mesmo gráfico, nos mostrando que há algum eco de altas taxas de motorização fora do centro expandido e também que alguns destes distritos podem apresentar fatias significativas de sua população com alta renda. Recentemente têm sido noticiados em alguns meios de comunicação alguns problemas de fluidez em relação às vias coletoras e secundárias de circulação ao contrário da sua referência às principais vias e corredores que fazem a ligação entre os distritos além do centro e este último. Acreditamos que os congestionamentos nestas ruas e vias que não compõem o sistema viário principal podem estar relacionados aos fenômenos descritos acima. Uma pesquisa publicada recentemente feita pelo Jornal Folha de São Paulo49 a partir de dados da CET assinala as avenidas mais congestionadas da cidade de São Paulo. Dentre as vias enunciadas na tabela (que está disponível em anexo) estão algumas que se localizam nos distritos com mais automóveis, tais como a Avenida Guarapiranga, com índice de 1,5 km de lentidão, que se situa no distrito Jardim São Luís o décimo distrito com mais automóveis na cidade e faz a ligação entre o distrito do Grajaú, o 3° distrito da cidade em volume de automóveis, e o resto da cidade; aparece também a Avenida Edgar Facó, a maior avenida que faz a ligação entre o centro 48 Segundo a pesquisa O/D a renda familiar média de Moema, alto de Pinheiros, Itaim Bibi e Morumbi é, respectivamente, 5.964, 6.257, 4.957 e 6.939 (em reais de 2007). 49 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1098529-tatuape-tem-rua-com-rush-de-faria-lima-em-saopaulo.shtml, 09/06/2012; acessado na mesma data. 74 expandido e o distrito de Pirituba absorvendo parte dos deslocamentos oriundos da Freguesia do Ó e da Brasilândia igualmente, e apresenta o índice de lentidão de 1,3 km, maior do que algumas das mais importantes avenidas da cidade como a Av. Luís Carlos Berrini (1,2 km) e a Av. Salim Farah Maluf (1,0 km). Neste sentido, assim como o uso do carro se pulveriza alguns problemas com relação à sua própria circulação passam a decorrer da relativa dependência que dele se faz para a efetivação dos deslocamentos. Dessa forma foi importante demonstrar uma forte presença do automóvel onde a demanda por transportes públicos é também maior. Assim parece haver uma relativa penetração do uso do automóvel em alguns distritos da “periferia”, este parece ser o caso de Pirituba e talvez de alguns outros distritos, conforme pretendemos verificar em nosso estudo sobre mobilidade avaliando dados como a divisão modal do distrito e outros indicadores. Os fatores que podem estar relacionados à aquisição de automóveis em distritos com renda média relativa mais baixa e, por assim dizer, distritos mais carentes como Grajaú, Sapopemba e Jaraguá são diversos, cujo delineamento só será exposto aqui em termos minimamente conjecturais. Dentre os possíveis fatores podemos indicar, apenas hipoteticamente, o maior acesso ao crédito formal conjuntamente à recentes reduções da carga tributária em relação à aquisição de automóveis novos e a atuação de mercados locais de carros usados, este último talvez represente um significativo desempenho. Estes fatores podem contribuir para aquilo o que o Jornal Folha de S.P.50 denominou de o “esparramento” do trânsito na cidade de São Paulo. E o que o jornal local Folha Noroeste, neste caso referente especificamente à Pirituba registrou com certo alarde que “o caos do trânsito chega à periferia” 51. Exposto isto gostaríamos de retomar a já apontada relevância da Região Noroeste, e principalmente a inserção de Pirituba neste quadro. Pois nossa terá como objetivo apontar com quais distritos da cidade o distrito de Pirituba se relaciona e qual a intensidade e direção dessas relações, se são apenas locais e/ou regionais, assim como as relações entre o distrito de Pirituba e aqueles do Centro Expandido. Apesar de analisarmos o destino das viagens não motorizadas, daremos mais relevo aos destinos dos deslocamentos motorizados, principalmente o transporte 50 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1098652-transito-de-sao-paulo-esta-se-esparramando-dizpesquisador.shtml, 09/06/12; acessado no mesmo dia. 51 http://www.folhanoroeste.com.br, notícia de 02/05/12; acessado no mesmo dia. 75 individual (automóvel), pois pelo que expomos anteriormente, é a tecnologia de transporte que tende a gerar mais pressão sobre a capacidade de vazão do sistema viário, disputando espaço nas vias com o ônibus, ainda o meio de transporte mais utilizado dentre as modalidades coletivas na cidade de São Paulo. 3.5. Dinâmica dos deslocamentos em Pirituba – origem e destino no distrito: Periferia-Centro ou Periferia-Periferia. Antes de adentrarmos no tema proposto, gostaríamos de ressaltar alguns dados relevantes com relação à Região Noroeste. Segundo o que vimos nos capítulos anteriores, a diferenciação espacial da oferta de empregos dentro da cidade é um importante fator de dinamização dos fluxos que dentro dela se dão. Com isso em mente, em 2007, segundo a Pesquisa O/D, a mencionada região concentrava 237.829 mil empregos para quase um milhão (998.074) de habitantes, de modo que o contingente populacional excedente ativo economicamente haveria de se deslocar para outros distritos localizados fora desta região para efetivar seu trabalho, contribuindo para dinamizar o movimento diário na região, levando em conta que 66,5% desse contingente se apresenta em idade considerada como potencialmente ativa economicamente. Segundo esta mesma pesquisa, o município de São Paulo possuía, em 2007, 5,9 milhões de empregos dos quais o centro expandido correspondia 46,7% (2.774.237). Por sua vez a região noroeste concentrava 237.829 mil empregos, o que corresponde a 4% do total para o município. O distrito de Pirituba, por sua vez, apresentava no citado ano, 51.371 mil postos de empregos para uma população de 164.659 habitantes, dos quais 64,5% (106.205) estão na faixa de idade considerada economicamente ativa. No entanto entendemos que este volume de postos de trabalho pode ser preenchido por trabalhadores das mais diversas partes da metrópole. Portanto, para estimar quanto destes empregos podem ser ocupados por pessoas de outras partes da cidade extraímos da Pesquisa O/D do Metro o número de viagens atraídas pelo distrito de Pirituba no horário de pico matutino (6h30min a 8h30min). Dado que pode nos levar a diferenciar quantas pessoas vêm de fora do distrito para preencher tais postos. 76 O distrito de Pirituba atrai 20.909 viagens motorizadas diárias no referido horário oriundas de fora dele próprio. Disso podemos estimar52 que cerca 40% destas vagas é preenchida por trabalhadores advindos de outros distritos da cidade ou também de outros municípios da RMSP. Portanto, é presumível que a maior parte dos postos de trabalho são preenchidos por residentes do próprio distrito53, isto, a nosso ver, pode corroborar com certa convergência dos fluxos com origem no distrito para ele mesmo. Em relação ao total de empregos da região noroeste Pirituba representava (em 2007) 21,6% de todos os empregos ali presentes. Sendo este o distrito que apresentava o maior número de empregos formais contabilizados para a região naquele ano, logo atrás estão os distritos de Freguesia do Ó e de Brasilândia, respectivamente com 20,3% (48.278) e 17,5% (41.761). Uma análise que se pormenorizasse neste sentido levaria em conta em quais distritos têm origem as viagens com destino à Pirituba no horário de pico matutino, no entanto nossa análise não chegará a tal profundidade. Seguindo a diante com a caracterização da região noroeste, segundo os dados da Pesquisa O/D, a mencionada região produz 1,5 milhão de viagens no total, possui cerca de 173.601 mil automóveis particulares representando cerca de 8,2% do total de automóveis do município. O distrito de Pirituba possui o segundo maior volume de automóveis da região conforme vimos no tópico anterior e produz, no total de viagens, ou seja, incluindo os modos motorizados e os não motorizados, 283.984 viagens. Isto corresponde a 17,8% do total de viagens produzidas como um todo na região noroeste. Consideramos estes dados relevantes, pois 39,5% das viagens produzidas no distrito de Pirituba têm o trabalho como motivo de deslocamento. Consideraremos, portanto, que seja este o motivo que leve a maioria dos deslocamentos a se direcionar para outros distritos. De modo que outros deslocamentos que ocorrem com igual frequência, tais como os por motivo de educação que correspondem a 33,2% do total de deslocamentos do distrito, tendem a se concentrar no próprio distrito, pois segundo a Síntese da Pesquisa O/D (2007: 21) estas viagens são “feitas preponderantemente a pé” e envolvem menor tempo de deslocamento, segundo o gráfico 3.2g mostrado no primeiro tópico deste capítulo. 52 Levando em conta que a pesquisa O/D define o termo viagem como o “deslocamento de uma pessoa, por motivo específico, entre dois pontos determinados” (Síntese O/D, 1997: 13). 53 É sempre preciso considerar que outros tipos de deslocamento para a região podem ocorrer, como por exemplo, fluxo de estudantes. Ainda assim, é razoável considerar que a maior parte desse fluxo seja relacionado à atividade produtiva. 77 Juntos estes dois motivos correspondem a 72,7% de todos os deslocamentos distritais. Os 27,3% restantes estão repartidos entre compras (10,1%), saúde (4,5%), lazer (3,8%) e assuntos pessoais (8,6%). A partir da totalidade das viagens produzidas podemos começar a repartir este todo em suas respectivas modalidades. Como dito a pouco o distrito de Pirituba produz 283.984 mil viagens diárias dentre os mais diversos motivos e realizadas de diversas maneiras. Primeiramente faremos uma análise de como são feitas essas viagens, para depois nos ater aos detalhes de seus destinos. Do total de viagens produzidas, a primeira divisão que se segue é a entre os modos motorizados e os não motorizados. Neste primeiro nível da divisão auferimos que há certa discrepância entre estes dois modos. De maneira que o modo motorizado representa 69% (196.135) do total das viagens e o modo não motorizado representa os 31% (87.850) restantes, apesar de que a participação das últimas neste nível de repartição das viagens é considerável, pois representa quase um terço de todos os deslocamentos. Dentre as viagens não motorizadas aquelas que são realizadas a pé obtêm uma significativa margem sobre as viagens realizadas por bicicletas, obtendo 99,3% dos deslocamentos realizados segundo este modo. Já a análise das viagens motorizadas requer um pouco mais extensão. Da repartição do total de viagens realizadas por esse modo (196.135) entre modos coletivos e individuais obtemos a divisão modal para o distrito de Pirituba. Notamos uma acirrada divisão entre as modalidades individuais e coletivas, de modo que todas as viagens realizadas por modo coletivo representam 50,7% de todas as viagens motorizadas e aquelas realizadas por meio de transporte individuais representam os restantes 49,3%. Dentre a modalidade coletiva, são considerados transportes coletivos, segundo a Pesquisa O/D 2007, ônibus, metrô, trem e transportes escolar e fretado. Dentre estas modalidades o maior uso se refere aos ônibus, muito embora o distrito seja servido pela linha rubi da CPTM. As viagens feitas por uso de ônibus representam 63% do total das viagens por meio de transporte coletivo, o trem possui uma fatia pequena apesar de ser a única opção modal coletiva além do ônibus no distrito, e representa apenas 5% do total 78 de viagens realizadas por modo coletivo. O metrô54 representa 11% desse total e os 21% restantes são representados pelos transportes escolares e fretados. Dentre as modalidades individuais vemos uma larga participação do automóvel. Seu uso representa 93,2% dentre as viagens por este modo. Apesar do crescente uso de motocicletas, cujo uso no distrito era de 6,8% em 2007. Dessa forma há uma larga vantagem do automóvel como meio de transporte individual no distrito. Conforme isso, podemos concluir que grande parte dos deslocamentos no distrito são realizados por uso do automóvel, relembrando da já mencionada acirrada divisão modal distrital, na qual os transportes individuais representam 49,3% do total de viagens motorizadas e nas quais a participação do automóvel é muito significativa, correspondendo a mais de 90% desta modalidade de transporte. Isto equivale a dizer que a participação do automóvel corresponde a 45,9% de todas as viagens por modo motorizado. Isto é particularmente relevante, pois o uso de automóveis na realização das viagens motorizadas suplanta aqueles realizados por intermédio de ônibus, de maneira que estes representam 32,1% do total de viagens motorizadas. Desta maneira há uma considerável participação do uso de automóveis na maneira como são feitas as viagens em Pirituba. Isto é significativo tanto em termos de fluidez como por demanda por ampliação viária, regulação e fiscalização dos fluxos etc. Antes de passar à análise dos destinos das viagens oriundas do distrito de Pirituba, iremos apenas reafirmar o que foi dito agora pouco com relação às proposições deste trabalho. Ao longo de grande parte deste trabalho consideramos hipoteticamente que haveria uma grande participação do uso de automóveis nos distritos além centro expandido. Isto foi mais pormenorizadamente analisado no tópico anterior. No atual tópico vale ressaltar que, segundo nossas premissas, há um considerável uso de automóveis no distrito de Pirituba, acompanhando, talvez uma tendência mais geral de aumento do uso de automóveis nesses distritos sitos fora do centro expandido, desta vez utilizamos este termo segundo aquela acepção pretérita acerca do mesmo. Resta-nos averiguar então o destino das viagens com origem em Pirituba para poder vislumbrar a dinâmica dos fluxos e, portanto, das relações deste distrito com outros do município de São Paulo. 54 Apesar de não haver nenhuma linha de metrô no distrito sua participação aparece dentre os transportes coletivos pois a pesquisa O/D contabiliza todas as modalidades de transportes utilizadas para a efetivação de um determinado trajeto de modo que 11% das viagens cuja opção modal de origem é outra utiliza o metrô para completar seus trajetos. 79 Comecemos então a partir daquela divisão mais geral e ampla entre os meios não motorizados e os meios motorizados. Como afirmamos anteriormente, os deslocamentos não motorizados são predominantemente efetivados a pé, e devido a isto são normalmente realizados segundo trajetos mais curtos, refletindo quase sempre um menor tempo de deslocamento entre origem e destino. Dessa maneira não nos surpreende que 91,5% de todas as viagens não motorizadas (87.850) têm o próprio distrito de Pirituba como destino. Os distritos da região noroeste recebem todos pequenas fatias deste volume total, representando 5% ao todo. Mesmo assim é importante notar que existem viagens diárias em direção ao centro expandido e para o resto dos distritos da capital neste modo, e representam, respectivamente 1,5% e 2%. Estas últimas viagens podem estar relacionadas à habitantes cuja renda ainda é demasiado baixa, o suficiente para não ter acesso mesmo a meios de transporte coletivos. Então, de maneira muito sucinta, há uma grande concentração dos deslocamentos não motorizados com destino dentro dos próprios limites do distrito. Agora, portanto, passaremos à uma análise mais minuciosa sobre os destinos dos deslocamentos motorizados com o intuito de averiguar as relações do distrito de Pirituba com outros da capital, principalmente no que toca ao uso do transporte individual, o automóvel55. De outro lado estão as viagens que se utilizam de meios motorizados. Estas são relativas ao conjunto das informações formadas pelos transportes coletivos e particulares. Assim iniciaremos pela análise mais geral e depois seguiremos às respectivas modalidades citadas acima. Os destinos serão divididos nas seguintes regiões/distritos: o conjunto dos distritos que conformam o centro expandido, a região noroeste e seus respectivos distritos sem contabilizar o distrito de Pirituba nesta região, pois ele será contabilizado individualmente, e os outros distritos da capital que não estão contabilizados nas regiões citadas e serão representados de maneira conjunta simplesmente como outros distritos. Por meio de análises dos dados da Pesquisa O/D alcançamos os seguintes resultados: as viagens motorizadas oriundas de Pirituba tendem a se concentrar no próprio distrito e para aqueles distritos a ele adjacentes, portanto, para a região noroeste. Esta região, contabilizando os dados referentes à Pirituba, responde por 63% dos 55 De agora em diante, quando nos referirmos ao uso do transporte individual no distrito de Pirituba, estaremos nos reportando diretamente ao uso do automóvel, pois como procuramos demonstrar a pouco, o uso deste meio corresponde quase a totalidade do uso de transportes individuais no distrito. 80 destinos das viagens por modo motorizado originadas no distrito, de maneira que 37% destes destinam-se ao próprio distrito e 26% se reparte pelo restante da região noroeste. Esta repartição dos destinos dentro da região noroeste se dá da seguinte maneira: Gráfico 3.8 - Modo motorizado na Região Noroeste Pirituba São domingos 12% 5% Jaraguá 2% Anhanguera 1% Perus 10% 58% Brasilândia Freguesia do Ó 12% Os deslocamentos motorizados internos à região totalizam cerca de 63% de todos os deslocamentos motorizados oriundos de Pirituba, de modo que mais da metade desses deslocamentos têm origem e destino no próprio distrito, conforme o gráfico acima. Os 37% restantes repartem-se entre aquelas viagens motorizadas que visam o centro expandido, 26%, e para outros distritos municipais, 11%. Como veremos a maioria dos fluxos com origem no distrito procuram os distritos a ele adjacentes. Isto ocorre mesmo que a atração do centro expandido não seja de modo algum inválida, pode-se então começar apenas a especular sobre certo dinamismo de movimentos internos à região noroeste. Segundo explanado anteriormente, vimos que os automóveis, assim como os ônibus, correspondem aos meios mais utilizados para a efetivação dos deslocamentos segundo suas respectivas modalidades. O automóvel representando mais de 90% dentre os transportes individuais e o ônibus representando pouco mais que 60% dentre os transportes coletivos. Antes de passarmos à análise das viagens que utilizam os modos coletivos relembramos que o total de viagens efetivas por este modo é de 99.49356. A respectiva divisão regional destas viagens está no gráfico 3.9g a seguir. Na qual percebemos que aumenta o percentual relativo às viagens com destino ao centro expandido, no entanto há ainda forte fluxo interno à própria região noroeste, que representa cerca de 54%57 de todos os destinos, dos quais 33% se dirige principalmente ao distrito de Pirituba: 56 Há uma parcela deste todo que são viagens para outros municípios da RMSP, porém vamos apenas contabilizar as viagens para o próprio município de São Paulo, até porque as primeiras correspondem a número pouco significativo. 57 Incluindo o percentual referente ao distrito de Pirituba. 81 Gráfico 3.9g - Destinos das viagens com origem em Pirituba - Modo coletivo Centro expandido 12% 3% Pirituba 31% 21% Região Noroeste Outros distritos 33% Outros municípios da RMSP O distrito situado no centro expandido que mais recebe viagens de Pirituba é o da Lapa, que representa 37% de todas as viagens por modo coletivo que visam o centro expandido. E que também possui uma margem significativa das viagens realizadas por modo individual, como veremos mais adiante. As relações entre Lapa e Pirituba vêm de longa data e possui até hoje grande expressão nas viagens oriundas do distrito de Pirituba, por isso acreditamos ser profícuo colocar em suspenso o seguimento da análise para esclarecermos melhor esta relação entre Pirituba e o distrito da Lapa e com isso retomar alguns conteúdos já expostos nos capítulos anteriores. As relações entre os dois lugares remontam à década de 1930 e, segundo Langenbuch (1971), seria um dos itinerários mais utilizados na cidade de então. Segundo o autor, entre 1930 e 1939 os trens suburbanos de passageiros que faziam a ligação São Paulo-Pirituba passaram de 12 a 15, sendo superados apenas pelos trens disponibilizados para a ligação São Paulo-Santo André que neste mesmo período passou a contar com 22 trens suburbanos (1971: 156). Para Langenbuch bairros como a Lapa passariam ao status de “subcentros” pelo fato de que viriam a atrair grande quantidade de fluxos regionais, principalmente após a implantação do serviço de ônibus entre São Paulo e os “subúrbios-estação” no citado período: “através da interrupção de viagem que provocava, o sistema suburbano de ônibus constitui mais um fator a conferir uma vocação de centralidade a alguns bairros periféricos paulistanos, que posteriormente iriam evoluir ao status de “subcentros, destacando-se neste particular: Penha, Pinheiros, Lapa, e em menor escala Santana.” (Idem: 160) O desenvolvimento do serviço de ônibus ao passar de meio de transporte complementar ao itinerário ferroviário para realizar diretamente a ligação entre os “arredores suburbanos” e São Paulo será fundamental na criação de “pontos de polarização” e “irá ao lado das ferrovias, comandar o processo de metropolização no período seguinte” (Idem, ibidem). E atualmente, ao representar uma atração muito mais intensa do que a maioria dos outros distritos do centro expandido, tende a configurar um 82 quadro no qual grande parte dos fluxos motorizados oriundos dos distritos ainda se limitam aos distritos a ele contíguos, mesmo quando se destinam ao centro expandido, pois a ligação viária entre Pirituba e Lapa é feita pela Ponte Atílio Fontana acima do Rio Tietê. Se na década de 1930 a Lapa já atraia muitos trabalhadores e o fazia devido a instalação de diversas indústrias nas adjacências da própria ferrovia. Atualmente a Lapa constitui-se num centro cuja atração é a grande diversidade de serviços e produtos nele contidos, apresentando ruas comerciais importantes assim como um importante mercado municipal e alguns centros clínico-hospitalares. Neste sentido a atração que este distrito provoca nos fluxos advindos de Pirituba, e provavelmente nos outros distritos da região noroeste, relaciona-se com conjunto de fixos contidos no mesmo, que historicamente encerrou maior densidade e diversidade de fixos que os distritos da região Noroeste. Muito embora, atualmente é possível notar uma maior diversidade de fixos inclusive nos distritos da região noroeste mais distantes da Lapa, contribuindo para um aumento dos fluxos internos aos mesmos. Retomando a análise dos deslocamentos por modo coletivo relativo ao período 1991-2007, se tomarmos como um todo apenas os deslocamentos que se dirigem à região noroeste, 54% do total, a divisão dos deslocamentos ficaria a seguinte: Gráfico 3.10g - Deslocamentos por modo coletivo na região Noroeste 2% 10% Pirituba 6% São Domingos 1% Jaraguá Anhanguera 10% Perus 61% 10% Brasilândia Freguesia do Ó Vemos que há um pequeno fluxo entre Pirituba e os distritos de Brasilândia, Jaraguá, São Domingos e Freguesia do Ó, dessa maneira o maior fluxo de viagens por modo coletivo na região noroeste se dá para o próprio distrito de Pirituba. Podemos, portanto, passar a vislumbrar um grande volume de fluxos internos ao próprio distrito e concomitantes aos fluxos que se direcionam aos distritos da região noroeste a ele contíguos, como Jaraguá e São Domingos. Dessa forma podemos começar a indicar que os fluxos realizados por modo coletivo visam, em grande medida, uma circulação mais 83 local e regional, de modo que o próprio distrito de Pirituba pode vir a polarizar grande parte dos fluxos dele oriundos. Muito embora estes fluxos locais e regionais sejam significativos notamos que há também um significativo fluxo em direção ao centro expandido por este modo, que representa 31% de todos os fluxos que utilizam as modalidades coletivas. Isto é muito significativo, pois os fluxos que visam o centro expandido como destino praticamente se equiparam àqueles que se restringem ao próprio distrito de Pirituba. Deste volume de viagens que visa o centro expandido é muito importante assinalarmos que 38% das viagens que para aí vão encontram seus destinos no distrito da Lapa, o distrito do centro expandido mais próximo de Pirituba, de modo que os dois distritos estão apenas separados pelo rio Tietê. No gráfico abaixo demos maior visibilidade aos distritos do centro expandido que se destacam individualmente como receptores de viagens oriundas de Pirituba, nosso critério para isso foi simples, escolhemos aqueles que recebem um número de viagens diárias advindas de Pirituba maior ou igual a 1.000. Gráfico 3.11g - Modo Coletivo - Centro expandido Sé 6% 9% 19% 4% 3% 4% 38% 4% 3% 10% República Bom Retiro Pari Consolação Moema Jardim Paulista Barra Funda Lapa Outros distritos Concluímos, portanto que há uma maior convergência de viagens por modo coletivo para as proximidades do distrito e para ele próprio. Muito embora o distrito da Lapa se encontre na região chamada de centro expandido ele atrai uma parte significativa dos fluxos advindos de Pirituba por modo coletivo, não tanto quanto o próprio distrito de Pirituba polariza, mas de fato relevante dentre os distritos do centro expandido, como já havíamos assinalado previamente. Continuando com a análise dos destinos dos deslocamentos efetivados por meio de transportes motorizados, passaremos agora a uma análise dos destinos sobre as viagens nas quais são utilizados transportes individuais. Relembramos que dentre o total de deslocamentos motorizados (196.135), aqueles que são realizados por meio de transportes individuais correspondem a 49,3%. 84 Como dito anteriormente, o distrito de Pirituba com uma frota de automóveis de 32.392 automóveis particulares e não utilitários em 2007, produzia então 90.101 viagens. O equivale a cerca de 46% (quase metade) de todas as viagens motorizadas produzidas pelo distrito no mencionado ano. Passaremos a considerar então os destinos destes deslocamentos para possivelmente fazer averiguar nossas premissas acerca do largo uso do automóvel no distrito explanado de maneira mais geral em tópicos anteriores. Com base nas tabelas fornecidas pela Pesquisa O/D elaboramos o gráfico abaixo, assim como todos os outros gráficos de nossa elaboração, para melhor ilustrar a problemática assumida como objeto de estudo: Gráfico 3.12g - Destinos por modo individual 6% 2% Centro expandido 22% 31% Pirituba Região noroeste 39% Outros distritos Outros municípios da RMSP Com os dados dessa maneira representados podemos inferir que há uma grande absorção local e regional dos fluxos automotivos gerados pelo próprio distrito. Somando-se os destinos que visam o próprio distrito aos da região na qual está inserido, chegamos à faixa de 68,9% desses fluxos com origem no distrito que procuram seus destinos diários na própria região e/ou no próprio distrito. O centro expandido como um todo responde por cerca de um quinto das viagens produzidas sob esta modalidade, dentro da qual 40% das viagens que encontram seu ponto de destino no centro expandido encaminham-se para o distrito da Lapa, como já mencionado, o distrito do centro expandido mais próximo à Pirituba. Restando 6% das viagens por modo individual com destino aos distritos municipais restantes e apenas 2% com destino para outros municípios da RMSP. O gráfico abaixo segue o mesmo critério de destacar os distritos do centro expandido que recebem mais de mil viagens diárias oriundas de Pirituba: 85 Gráfico 3.13g - Destinos das viagens no centro expandido - Modo individual 6% Consolação 6% Vila Mariana 12% 28% Perdizes Barra Funda 8% 40% Lapa Outros distritos Observando o gráfico notamos, primeiramente, a relevância do distrito da Lapa com relação aos outros do centro expandido. Em segundo lugar apontamos que há uma grande quantidade de distritos situados no centro expandido que recebem menos de 1.000 viagens diárias, uma vez que os usuários de automóveis e motos usufruem de maior acessibilidade do centro pelas próprias características de mobilidade de seus meios de transporte. O distrito de Perdizes se sobressai em relação a distritos como Consolação e Vila Mariana, que estão situados ao longo da Av. Paulista e representam um dos grandes centros terciários da cidade. Já em termos locais e regionais, a porcentagem referente ao distrito de Pirituba somada àquela dos outros distritos que compõem a região noroeste, resultando em 68,9% do total, quando divididos internamente são representados da seguinte maneira: Gráfico 3.14g - Destinos das viagens na região noroeste - Modo individual Pirituba 1% 2% 1% 15% São Domingos Jaraguá 10% 15% Anhanguera 56% Perus Brasilândia Freguesia do Ó Vemos que internamente à região noroeste há maior incidência das viagens oriundas de Pirituba a distritos a ele contíguos, tais como Freguesia do Ó, São Domingos e Jaraguá. No entanto a maior parcela destes deslocamentos se dirige ao próprio distrito de Pirituba. Portanto, muito embora o automóvel possibilite maiores condições de mobilidade, seu uso é também considerável em deslocamentos menores, em termos de distância. Podemos complementar esta análise indicando que esta internalização dos fluxos pode estar relacionada a uma diversificação dos fixos contidos no distrito, com o aparecimento de novas casas de negócio, ambulatórios, centros de 86 comércio, lojas como petshops e inclusive shoppings. Se grande parte destes deslocamentos são realizados por intermédio do automóvel, podemos interpreta-los como uma maior participação de seu uso na vida cotidiana no distrito. Assim torna-se plausível supor que seu uso se dê relacionado a outras finalidades que não trabalho, tais como consumo em estabelecimentos (drogarias, padarias e etc.) e mercados locais. Desta maior penetração do uso do automóvel no distrito pode-se estabelecer-se de antemão que este maior uso crie diversas necessidades de adaptação do espaço de circulação viária do distrito e também dos próprios fixos em relação aos automóveis, tais como estacionamentos subterrâneos, ou ainda áreas nas quais antigamente situavam-se estabelecimentos comerciais passam a reserva-se exclusivamente para o estacionamento de veículos. Deste modo surge a necessidade de adaptação do ambiente construído para tornar mais eficiente o uso deste objeto técnico, mesmo nos momentos nos quais eles representam um grande ônus de espaço físico como no caso dos estacionamentos, que representam um espaço reservado unicamente para o tempo ocioso dos automóveis. Continuando a análise, se somarmos os deslocamentos cujo destino é Pirituba àqueles cujos destinos são os outros distritos da região noroeste e mais aos que se direcionam à Lapa, obteremos que 77,5% das viagens cujos meios de deslocamento são automóveis se restringem a esses distritos situados nas proximidades de Pirituba. Portanto a dinâmica dos movimentos diários oriundos de Pirituba é em grande medida restrita ao quadrante noroeste da cidade (incluído o distrito da Lapa neste quadrante). Desta forma chegamos a um ponto no qual podemos afirmar que há uma complexa dinâmica interna à região noroeste, cujos fluxos são majoritariamente motorizados e, dentre estes, se encontra uma larga porção que é efetivada pelo uso de automóveis. De modo que parcela considerável destes fluxos procuram seus destinos nas imediações distritais. Aqui encontramos uma oportunidade para retomar alguns conteúdos propostos no final do capítulo anterior, pois a dinamização da relação entre os lugares dentro da cidade corresponde à dinamização da localização dos fixos e, portanto, correspondendo também a uma dinamização dos fluxos, que juntos formam um conjunto inseparável (SANTOS, 1997 e 1987). Conforme expomos anteriormente, Caldeira (2003) já assinalava a importância de levar em conta as mudanças ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 tanto na periferia como no centro da cidade indicando que tais mudanças estavam relacionadas às 87 mudanças no sistema de mobilidade, pois a própria autora salienta a inserção de novos fixos na periferia como sinal de sua melhoria. Neste sentido o cenário traçado seria o de uma distribuição menos assimétrica dos fixos públicos e privados (SANTOS, 1987: 114) na cidade. Pois então, se ocorrerem modificações na localização das atividades econômicas, na distribuição espacial dos empregos, ou seja, na distribuição dos mais diversos fixos (escolas, hospitais, fábricas, centros de comércio etc.) ocorrem simultaneamente modificações na direção e destino dos fluxos. Pois cada fixo corresponde a um dado tipo de fluxo, de modo que ao vasto leque de fixos dá-se uma dada tipologia de fluxos, neste sentido Santos (1997) aponta a inseparabilidade entre a dinâmica dos movimentos diários, os fluxos, e as “coisas fixas” 58 , pois “fixos e fluxos interagem e se alteram mutuamente” (Idem: 78). Portanto, entendemos que é a esta dinâmica que corresponde a dinâmica dos sistemas de movimentos na cidade e em suas frações, pois na medida que os fixos se modificam em sua qualidade e densidade numa determinada área, também mudam os fluxos que a estes lugares se dirigem tanto em quantidade como em qualidade que, por sua vez, passam também a agir sobre os fixos. Dessa forma poder-se-ia constatar que esta “introversão” de parcela das viagens produzidas pelo distrito de Pirituba pode estar relacionada a certo dinamismo econômico do próprio distrito59. Mesmo assim lembramos que ainda há uma significativa atração dos centros comerciais da Lapa que, como vimos, desempenhou um histórico papel de subcentralidade regional (cf. LANGENBUCH, 1971). Seguindo o caminho das últimas considerações após esta exposição de dados das viagens por modo coletivo e individual pretendemos ressaltar que os utilizamos como indicadores a partir dos quais seria possível delinear, apenas de maneira alusiva, as relações que se dão dentro da cidade, entre seus distritos, focalizando particularmente um deles, o de Pirituba. Para apenas dar visibilidade à dinâmica dos movimentos de uma determinada fração da cidade. 58 Santo nos instrui que “o espaço é, também e sempre, formado de fixos e de fluxos. Nós temos coisas fixas, fluxos que se originam dessas coisas fixas, fluxos que chegam a essas coisas fixas. Tudo isso, junto, é o espaço” (1997: 77) 59 Recentemente o distrito tem sido alvo de projetos ambiciosos, como o projeto de candidatura da Cidade de São Paulo para sediar a famigerada Exposição Universal, cujo complexo comercial e exposição serão, se São Paulo for escolhida, construído num grande espaço vazio no distrito. A chegada do Tietê Plaza Shopping que visa aproveitar o potencial de consumo da Região Noroeste e Lapa, a instalação de representantes do setor varejista como Carrefour e Sonda e a instalação de quatro concessionárias de veículos que também visam absorver um mercado em potencial. 88 Neste sentido consideramos que há uma parte da população, no distrito de Pirituba, que não dispõe de renda para obter acesso mesmo aos transportes coletivos, pois há uma parte, mesmo que pequena, dos deslocamentos que se dá por longos trajetos a pé conforme demonstramos anteriormente. Portanto o distrito não se enquadra inteiramente num cenário no qual seria indicativo de uma imobilidade relativa, e por assim dizer, não queremos nos fazer denotar de que não exista esta condição no distrito, afirma-lo seria um reducionismo de nossa parte. Pois há uma grande quantidade de fluxos que se restringem ao distrito de Pirituba, tanto por modos motorizados como pelos não motorizados. Embora isto possa ser caracterizado como um quadro no qual parte da população distrital venha a viver em condições de imobilidade relativa, tal afirmação haveria de levar em conta uma minuciosa análise sobre as faixas de renda correspondentes à composição demográfica do distrito. O que não é nosso foco neste trabalho. Resta, porém, salientar que há uma grande ordem dos deslocamentos que não usufruem de grande mobilidade, e que há situações que chegam à condição de imobilidade relativa. De tudo o que foi exposto neste último tópico alguns fatos sobrelevam. Primeiramente com relação aos transportes coletivos é importante ressaltarmos a relevância do ônibus como o meio de transporte coletivo que mais interessa aos usuários do sistema de transporte público. Em segundo lugar, dizer que há uma divisão modal acirrada entre meios coletivos e individuais significa apenas que as formas de mobilidade individualizadas tem um valor expressivo na composição das viagens, mas a quantidade de passageiros comportada por cada ônibus individualmente suplanta inequivocamente a quantidade de passageiros transportados por meios individuais. Portanto por mais que haja um considerável uso de automóveis, a dependência de grande parte da população é maior em relação aos transportes coletivos, e, portanto, ao ônibus no caso de Pirituba. Com relação ao transporte individual, foi pretendido ao longo deste trabalho descrever a inserção das formas individuais de deslocamento na metrópole e no município de São Paulo, para chegar à participação do automóvel em seus distritos e finalmente chegar ao distrito de Pirituba. Esta contextualização teve por intuito descrever uma crescente penetração do uso do automóvel em distritos ditos periféricos a partir da década 80, mas principalmente na de 90. Assim tentamos dar maior visibilidade ao uso do automóvel na periferia e no distrito de Pirituba, porém é necessário ressaltar como uma de nossas conclusões que há 89 uma grande e variada coexistência de formas de mobilidade na cidade de São Paulo e nos distritos que a compõem. Pois na medida em que o escopo de análise vai se restringindo à delimitações espaciais cada vez menores foi se percebendo concomitantemente a riqueza das particularidades e a complexidade de análises gerais, tais como para uma cidade inteira, ainda mais para uma cidade como São Paulo. 90 Considerações finais Após a exposição deste trabalho esperamos ter construído argumentos suficientemente plausíveis para a sustentação de nossas hipóteses para que agora possamos passar às considerações do que foi apresentado no desenvolvimento da argumentação. Neste último passo do trabalho versaremos sobre os aspectos gerais das reflexões sistematizadas ao longo da exposição deste trabalho e também sobre o resultado das análises de dados expostos na última parte da exposição. As reflexões contidas nos dois primeiros capítulos deste trabalho nos auxiliaram a situar teoricamente a constante complexificação e multiplicação dos movimentos diários ao longo das transformações do processo de urbanização. Conferindo-nos um amplo escopo de contextualização da análise porvir e como as mencionadas transformações da urbanização implicaram em alterações diretas na dinâmica de mobilidade primeiramente da RMSP, depois do município e posteriormente do distrito estudado. Assim, o nexo entre urbanização e o sistema de movimentos internos a cidade é o complexo arranjo entre fixos e fluxos que sucede às transformações da urbanização. A dinamização dos fluxos na cidade segue e influencia a localização, o aumento da densidade e da diversidade dos fixos. A interpretação que fizemos acerca da complexificação e multiplicação dos movimentos diários na cidade e no distrito de Pirituba intentou levar em conta esta ótica. Neste sentido classe, renda e lugar surgem como três instrumentos analíticos fundamentais relativos à interpretação da distribuição da população e das atividades econômicas na cidade. Pois, quando analisados conjuntamente, estes três elementos podem oferecer importantes informações acerca de como são feitas as viagens, para onde e por qual motivo, mas principalmente porque “alguns indivíduos são mais dotados de mobilidade do que outros” (SANTOS, 1987: 93). A emergência da cidade corporativa acompanhada pelo não suprimento de uma diversificada demanda por mobilidade produziu situações de imobilidade relativa (SANTOS, 2009a) que perduram até hoje, mesmo em distritos não tão distantes do centro expandido como Pirituba, por exemplo. Neste sentido, por mais que tenhamos descrito ao longo do trabalho o processo de proliferação do uso e da dispersão espacial do automóvel particular na cidade de São Paulo, torna-se mais importante sublinhar que estas duas condições de mobilidade podem coexistir dentro de um mesmo distrito, como 91 vimos no caso de Pirituba. De modo que esta coexistência de formas de mobilidade tão distintas ilustra a riqueza das particularidades atinentes ao lugar. Acerca das análises empíricas, que tratamos com maior ênfase no último capítulo do trabalho, vimos que muitos distritos situados fora dos limites do centro expandido possuem, de um lado, uma relação automóveis-habitantes muito assimétrica, pois possuem um excedente demográfico muito significativo em relação ao número absoluto de automóveis, levando em conta que mesmo se os automóveis transportassem todo seu espaço interno disponível com passageiros, este excedente estaria longe de ser absorvido. No entanto, de outro lado, o número absoluto de automóveis de muitos destes distritos é significativamente maior do que de distritos sitos no centro expandido que possuem uma relação automóveis-habitantes mais simétrica. Podemos afirmar, portanto, que alguns destes distritos, incluindo o de Pirituba, concentram uma forte demanda tanto por transportes coletivos quanto por melhores condições de circulação dos transportes individuais (automóveis particulares e motos). Primeiramente vemos que o descompasso entre o processo de ocupação periférica e a implantação e ampliação do sistema de transportes públicos possui uma dupla significação, pois se configura como o antecedente histórico tanto desta significativa presença de automóveis em distritos externos ao centro expandido quanto da criação de casos de imobilidade relativa, de modo que tal fenômeno perdura até hoje. Ou seja, de um lado o parco provimento desta antiga demanda por mobilidade na periferia da cidade pode ter reverberado como forma de incentivo a aquisição de formas individualizadas de deslocamento, pois além do avultado número de automóveis nas ruas, atualmente isso também pode ser ilustrado pelo crescente número de motocicletas circulando, pois para muitos a aquisição de uma motocicleta pode representar a superação de uma condição de imobilidade relativa ou mesmo de fuga de meio coletivos de deslocamento. De outro lado o mau provimento desta demanda por transportes coletivos criou também situações de imobilidade relativa. Em segundo lugar a acirrada divisão modal entre transportes coletivos e individuais implica na conformação de duas demandas distintas. Uma que visa a eliminação de empecilhos que se opõe ao pleno desempenho dos automóveis e outra que visa mais espaço para ônibus nas vias de circulação e a implantação de outras opções modais coletivas. Conjuntamente estas duas demandas representam o nível de 92 complexidade e diversidade das necessidades de mobilidade na cidade e dos respectivos distritos que se enquadram nestas condições, como Pirituba, no caso. No entanto, conforme intentamos salientar no capítulo 1, a incapacidade de atender em plenitude estas demandas parece ser uma característica da metrópole assim chamada corporativa. Conforme exposto no capítulo 2, as reflexões de Santos (2009a, 2009b) e de Balbim (2003) nos demonstraram como a afirmação da metrópole corporativa projetou o automóvel como meio de transporte cotidiano em detrimento dos transportes coletivos, levando a uma forma de alocação de recursos públicos que teve na modernização e ampliação do sistema viário sua principal forma de intervenção nas condições de mobilidade. Neste sentido procuramos agregar as reflexões de Jacobs (2007) às de Santos (Idem), acerca da relação existente entre o aumento da capacidade viária e o aumento da dependência do automóvel. Para que pudéssemos traçar como a expansão da capacidade viária tende a reproduzir os impactos negativos da dependência excessiva do uso de automóveis particulares para a efetivação das viagens diárias. Valendo-nos destas observações pudemos esclarecer que atualmente já existem focos de congestionamentos na chamada “periferia” devido à proliferação recente do uso de automóveis particulares na cidade como um todo. Levando em conta estas reflexões conjuntamente aos resultados da dinâmica dos movimentos diários em Pirituba acreditamos ser plausível indicar que o cenário que se desenha para Pirituba é o de aumento da demanda por ampliação da infraestrutura viária e por manutenção e regulação das vias (recapiamento e sinalização). E, acompanhando a tendência de complexificação e multiplicação dos movimentos diários na metrópole, a maior dinamização dos movimentos no distrito passará a requerer formas mais sofisticadas de organização dos fluxos, tais como sistemas de semáforos sincronizados, fiscalização eletrônica etc. Somados a este cenário, a internalização das viagens motorizadas conjugada ao aumento da densidade e diversidade de fixos econômicos no distrito (bancos, centros varejistas como shoppings e supermercados e etc.) podem construir um quadro de degradação das condições de mobilidade tanto do transporte público sobre pneus (o ônibus) como dos automóveis. Portanto o cenário aponta para uma possível piora no trânsito local acompanhando os problemas de fluidez que historicamente apareceram vinculados às áreas centrais e às principais vias do sistema viário. 93 Portanto, uma das considerações importantes a serem feitas acerca desta maior participação do uso do automóvel em diversos distritos, mas principalmente em Pirituba, seria as implicações na paisagem que este maior uso do automóvel acarretaria. Pois, conforme exposto ao longo da pesquisa, o automóvel produz uma pressão significativa não apenas no sistema viário e sua ampliação, mas também na modificação da paisagem urbana. Uma vez que o uso deste objeto técnico implica numa adequação do espaço em questão a uma série de injunções que podem vir a produzir uma paisagem na qual os fixos têm de fazer aderência às suas exigências para a tornarem-se permeáveis, no sentido de conciliar o espaço dos fluxos com o dos fixos. As significativas alterações nos modos de praticar e experienciar o espaço cotidiano através do uso do automóvel obrigam a conciliação do espaço urbano à suas injunções de ordem técnica e organizacional. Pois além do motivo de trabalho o automóvel passa integrar as outras esferas do modo de vida urbano contemporâneo, tais como o lazer e o consumo. Neste sentido concluímos que a paisagem desta fração da cidade tende a passar por transformações consideráveis tanto para suportar o considerável contingente de automóveis nas vias como para mantê-los em seu tempo ocioso. 94 Referências bibliográficas: ANELLI, R. L. S. Redes de Mobilidade e Urbanismo em São Paulo: das radiais/perimetrais do Plano de Avenidas à malha direcional PUB. Arquitextos, n. 82, ano 7, mar. 2007. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas>. Acesso em: 12 jan. 2012. BALBIM, R. N. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: Mobilidade cotidiana em São Paulo. 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Paulista Itaim Bibi Campo Grande 183.929 71.506 69.942 96.354 6,1 2,4 2,3 3,2 4.141.933 5,1 10° 11° Total 44.030 42.367 40.007 31.745 689.742 30.330 30.102 29.930 98 - Tabela das vias mais congestionadas da capital, divulgada pelo Jornal Folha de São Paulo em 09/06/2012: Via Corredor norte-sul (23 de Maio /R. Berta/M. Guimarães) Lentidão (m)=Média das máximas de lentidão nos dois sentidos, nos horários de pico, de 29.mar a 1.jun 7.674,10 Marginal Pinheiros 7.388,20 Marginal Tietê 7.345,00 Av. dos Bandeirantes 6.038,20 Radial Leste 4.654,00 Av. Washington Luis 3.831,80 Corredor norte-sul (Anhangabaú/P. Maia/Tiradentes/S. Dumont) Marginal Tietê (pista central) 3.798,70 Av. Conselheiro Carrão 2.850,00 Ligação Leste-Oeste 2.798,90 Av. Rebouças/Eusébio Matoso 2.786,40 Av. Vereador José Diniz 2.637,70 Av. João Dias 2.571,50 Av. Ibirapuera 2.466,80 Av. Nove de Julho 2.414,80 Av. Aricanduva 2.377,70 Av. Prof. Abraão de Morais 2.309,30 Elevado Costa e Silva (minhocão) 2.261,50 Av. Guido Caloi 2.110,50 Av. Cruzeiro do Sul 2.091,60 Bernardino/Vergueiro/Noé/Domingos/Jabaquara 2.046,80 Av. Brasil 1.981,00 Av. Interlagos 1.929,00 Av. Ricardo Jafet 1.922,30 Eusébio Matoso/Francisco Morato 1.908,00 Av. Francisco Morato 1.881,60 Av. Marquês de São Vicente 1.861,20 Av. Faria Lima 1.857,00 Av. Paulista 1.793,80 Av. Professor Vicente Rao 1.790,70 Av. Brás Leme/Ponte da Casa Verde 1.786,70 Rua das Juntas Provisórias 1.782,80 Túnel Ayrton Senna 2 1.771,40 Rua Melo Peixoto 1.762,30 Av. Francisco Matarazzo 1.757,90 Rua Guaicurus 1.720,00 Av. Celso Garcia 1.700,00 Estrada de Itapecerica 1.680,00 Túnel Ayrton Senna 1 1.677,10 3.653,80 99 Complexo Viário Maria Maluf 1.661,50 Pacaembu/Major Natanael/Abraão Ribeiro 1.638,00 Rua da Consolação 1.619,30 Rua Clélia 1.601,30 Av. Santo Amaro 1.585,60 Av. Guarapiranga 1.585,40 Av. Paulo 6º 1.580,00 Av. Luiz Ignácio de Anhaia Mello 1.572,20 Av. República do Líbano 1.546,10 Via Anchieta 1.521,80 Rua Alvarenga 1.521,20 Av. Robert Kennedy 1.500,00 Av. Juscelino Kubitschek 1.484,50 Av. Dom Pedro 1º 1.483,30 Av. do Estado 1.474,30 Av. Jaguaré 1.437,30 Rua Cardeal Arcoverde 1.415,00 Av. Brigadeiro Luis Antonio 1.413,50 Av. Ermano Marchetti 1.387,90 Rod. Raposo Tavares 1.375,90 Av. Sumaré 1.362,00 Av. Edgar Facó 1.345,60 Av. Morumbi 1.338,80 Av. Verador João de Luca 1.310,00 Av. Luis Carlos Berrini 1.279,70 Av. Doutor Arnaldo 1.234,00 Av. Rudge/Viaduto Orlando Murgel 1.198,40 Ponte Eng. Ary Torres 1.196,60 Av. Doutor Gastão Vidigal 1.175,90 Av. Roque Petroni Júnior 1.145,20 Av. Inajar de Souza 1.139,80 Av. Tancredo Neves 1.135,00 Av. Pedro Álvares Cabral 1.111,30 Ponte do Limão/Av. Ordem e Progresso 1.082,00 Av. Corifeu de Azevedo Marques 1.080,40 Av. Vital Brasil 1.076,40 Av. Gal. Ataliba Leonel 1.066,70 Av. Salim Farah Maluf/Ponte do Tatuapé 1.023,70 Cidade Jardim/Europa/Colômbia 1.022,70 Av. Ipiranga 1.010,00 Viaduto Grande São Paulo 999,6 Av. Rio Branco 987,5 Túnel Sebastião Camargo 966,5 Rua Tabapuã Rua Eng. Oscar Americano Rua do Gasômetro 950 935,2 879 100 Av. Dr. Francisco Mesquita 870 Túnel Tribunal de Justiça 838,8 Liberdade/Vergueiro 827,8 Av. Escola Politécnica 817,5 Ascendino Reis/Rubem Berta 811 - Mapa distrital do município de São Paulo: 101