Cinema em 7 Cores

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Cinema em 7 Cores
Cinema em 7 Cores:
Música Roberta Sá “Tico tico no fubá”
André Fischer:
Não dá pra falar de uma cinematografia gay. Existem personagens gays, né?
Mas eu acho que não dá, porque a gente não tem ali um retrato nem de perto fiel
do que é a realidade de gays e lésbicas no Brasil através do cinema.
Jean Willys:
Então se o cinema só mostra o gay de uma maneira caricata, estereotipada,
partindo desses dois estereótipos que é o estereótipo da bicha afetada,
engraçada, que serve pra ir, ou a bicha deprimida, promíscua, que vive envolvida
em sexo anônimo, que não ama, que é conflituada com a sua sexualidade, é óbvio
que uma população que consome, uma audiência que consome esse cinema, vai
ter essa mentalidade, idéia, a cerca da homossexualidade. vai achar que os gays
são isso.
Monique LaFond:
As pessoas, eu acho que elas sempre olharam o homossexualismo como uma ,
uma coisa torta né? Sem saber diferenciar que sexualidade, não tem a ver com
caráter.
Karim Ainouz:
Eu acho que é muito sério que a gente não tenha no Brasil uma
representatividade maior dentro do cinema que fale da experiência
homossexual. E não acho que isso é pequeno, e acho que poderia ajudar muita
gente.
Jean:
Porque que essa gente ta reclamando? Porque que essa gente tem que falar da
maneira como o homossexual é representado no cinema? Ora, porque, a partir
dessas representações que a gente contrói nossas visões do mundo. É a partir
dessas representações que a gente tem uma idéia do outro.
Moreno:
Você vê na tela um personagem que de repente tem coragem de falar coisas que
você não fala, mas que gostaria de falar.
Sandra Werneck:
Eu acho que o cinema tem isso, que é esse poder de levantar questões. De alguma
maneira isso gerar um debate, mesmo quando a pessoa não se sente muito a
vontade. Sempre gera uma polêmica, e eu acho que isso que é o papel do cinema.
Jean: Quem é que disse que nós somos desviantes e anormais?
Cena de filme:
Ah, como estou horrorosa hoje. Meu deus!
Que horror!
Deve ser o fígado. Não é possível. Não é possível.
Bigode:
No cinema brasileiro, nas chanchadas, ou era o mordomo viado, ou Oscarito
fantasiado de mulher, ou até um travesti, que foi o primeiro travesti brasileiro
chamado Ivaná, fazia um número e tal, cantando ou dublando, não me lembro.
O Oscarito era uma pessoa muito bem quista. O Oscarito tava em todas as casas.
Estava em todas as discussões. Era o personagem mais popular do Brasil, sem
dúvida nenhuma. E ao mesmo tempo não era aquele homem vestido de mulher
que você via no baile de carnaval, nos blocos de carnaval. Mas também não era o
faxineiro da vizinha, que se vestia de mulher, que levava porrada na rua. Era o
Oscarito travestido. Ai já tudo bem. Então foi uma forma, num certo sentido
inconsciente, com certeza, de permitir que esse travestimento chegasse nas casas
das famílias, chegasse na sociedade.
Anselmo:
Se você for fazer uma pesquisa dos filmes brasileiros, a maioria dos personagens
homossexuais, eles tão no âmbito do cômico. Quer dizer, é a utilização da
homossexualidade como efeito disconcertante, e com a função da comédia, que é
nobre.
Bigode:
Porque esse desejo só aparece maquiado ou travestido. Eu queria ver esse desejo
genuinamente representado como o meu desejo era.
Cena de Navalha na Carne:
- Eu estou mandando fumar.
- Você não é meu homem. Não me manda nada.
- Chupa essa fumaça.
- Nem por bem, nem por mal.
- Eu te bato hein?
- Bate! Bate!
- Eu te mato...
Moreno:
Navalha na Carne tem um texto bem forte, bem redondo. E ele pega três
personagens da marginália.
Anselmo:
O Emiliano Queiroz ele é um dos maiores atores do mundo, na minha opinião. E
ao fazer o Veludo ele compreende perfeitamente a coisa pequena do
personagem. A necessidade mais imediata daquele personagem de dimensão tão
enclausurada, naquele mundinho apertado.
Andrea:
Ao mesmo tempo em que o machão tem que controlar, tem que impor o falo a
prostituta, ele também tem que entender que tá acontecendo do lado dele ali um
cara que lida com o masculino de uma forma completamente diferente do dele.
Moreno:
No Matou a Família é um momento realmente de poesia do Bressane. É o
relacionamento daquelas duas meninas, aquela câmera voando sobre a cama, né?
Elas de mão dada. É um momento muito bonito, e aparecendo pela primeira vez
de uma forma mais doce no cinema.
Bigode:
A figura do homossexual sempre foi apresentada, talvez permitida, ou de uma
forma histrionica, a bicha louca, o travesti... Nada contra. Cada um faz o que
quiser da sua pessoa, mas era sempre uma forma que a sociedade heterossexual
permite, entendeu? O bobo da corte. Todo salão burguês tem um cabelereiro
fazendo palhaçada, puxando o saco das madames. Ou de uma forma amargurada,
tipo Jean Genet... A bicha presa, comendo piolho do amante, sabe aquelas
porcarias todas?
Andrea:
Cinema brasileiro não é uma coisa estanque. Ele tem várias formas, né? Então
você pode ter desde o cara da piadinha sem graça, do cara afetado, aquela
construção da bicha louca, como pode ter um Milton Gonçalvez em Rainha Diaba.
Cena de Rainha Diaba:
- Pessoas burras.
Bigode:
E falar em homossexualidade como em Rainha Diaba, são filmes absolutamente
caricaturais. Os homossexuais são uns torturadores de mulheres. O personagem
do Milton Gonçalvez é uma caricatura, eu acho extremamente carnavalesca e
ofensivo, entendeu? Não que as coisas não possam ser carnavalescas. Você vai
ver o Madame Satã, que é realmente inspirado abertamente no personagem, e
tem uma dignidade o personagem. Mesmo que não seja inspirado no Madame
Satã o Rainha Diaba, mas eu acho muito maniqueísta, muito ruim. Coloca o
homossexual como uma caricatura e ligado as "forças do Mal", digamos.
Cena de Os Machões:
- Tá tudo muito duro.
- Vocês têm que ter desmunhecagem, meus filhos.
- Ai, mão pesada não faz penteado!
- Isso! Tá vendo como ele é delicado.
Anselmo:
Eu já vejo com bons olhos. Eu acho que as pornoschanchadas, as comédias de
costume brasileiras, que colocavam aquelas bichinhas engraçadas,
estereotipadas, tinham como função na verdade não só fazer o público rir, mas
também castigar a rigidez daquela sociedade onde elas estavam inseridas.
Moreno:
A pornôchanchada foi procurando, foi procurando e criou o estereótipo. O
cinema apresenta esse tipo de personagem como sendo próprio do gay, o gay vai
ao cinema, acha que é, e capta pra si aqueles tipos de trejeitos. Aqueles tipos de
edumentárias, roupas e etc. que dá um certo tom carnavalesco e de palhaço
também e o gay incorpora isso. E ai de volta o cinema vem com toda a força
dizendo que é exatamente aquilo, que está filmando a realidade.
Bigode:
Eu acho que as lésbicas apareceram no cinema brasileiro para servir a um olhar
masculino, a um desejo voyerista do homem. A maneira de filmar, a postura das
mulheres é sempre a serviço desse olhar, desse desejo masculino.
Mossy:
Não se fazia filmes pra gays, pra homossexual ou bissexual. Mas suas mulheres é
considerado até hoje um tema muito legal, muito erótico e que excita homens e
mulheres.
Jean:
Quando a mulher é mais masculinizada, ela tá mais próxima dessa figura
masculina, razurando mesmo esse papel de gênero que a sociedade criou pra
mulher: feminininha e delicada, os homens não gostam. Eles não gostam porque
na fantasia machista deles é sempre bom ter duas mulheres juntas, desde que
sejam delicadas e feminininhas. Ai eles gostam.
Monique:
Numa relação um homem com duas mulheres, ele vai ficar sobrando, né? Então
não sei porque ele tem tanto interesse em ver duas mulheres. Ele acaba
sobrando.
Mossy:
Havia mais medo de se falar do homossexualismo masculino que o feminino. O
que predominou realmente nas pornochanchadas , não tenha dúvida, as
mulheres bonitas pra encher de tesão os homens.
Jean:
Porque que a xereca vende e o pau não? Por quê? Porque a gente tá respondendo
a uma mentalidade machista e homofóbica que é reproduzida pelos nossos meios
de comunicação.
Mossy:
Gisele na verdade no filme é uma aventureira, uma "porra louca", que gosta do
sexo pelo sexo. Ela não se envolve com ninguém em princípio, as pessoas que se
envolvem com ela. E o único momento verdadeiramente sentimental do filme, é
aquele envolvimento da Monique LaFond com a Alba Valéria. Essa cena é muito
linda, ela é romântica, na verdade. Ela é pura. Um desejo mais puro. O êxase entre
dois seres humanos que se gostam e que por acaso são duas mulheres.
Moreno:
Eu vi Gisele no cinema e a reação do público a Giselle, é impossível dizer que o
filme não abalou, porque ele realmente abalou na época da exibição.
Mossy:
Eu falei pro falecido Antônio Gonçalvez, que era o diretor de fotografia filme
"segura a onda ai, que eu vou meter a língua na boca dele e eu quero que você
pegue a reação". E falei pro diretor "Não manda cortar não, seu merda. Segura a
onda que eu vou fazer o esculacho". Eu queria na verdade fazer coisas polêmicas.
Peguei o garoto, vocês assistam o filme, eu dou um beijo mesmo, de língua, e
aquele olhar dele de, de... de êxtase. Não acreditou! Esqueceu que tava sendo
filmado. Ele se apaixonou... Disse "Mossy, nunca imageinei que você fizesse isso
comigo. Você enfiou a língua no meu útero!". Ele disse que tem útero, né?
Monique:
"Ai, você fez o filme Giselle". Parecia até que eu tava pendurada numa árvore me
rasgando inteira! E não é né? Eu de toalhinha ali, um beijinho e morrendo
fuzilada numa parede. Eu fiquei com vergonha. Morri de vergonha de estar no
filme.
Anselmo:
Eu acho que quem teve um grau de maior afinição dessa questão foi o Agnaldo
Silva, com o filme República dos Assassinos, onde ele descreve um personagem
estraordinário chamado Eloína, que é um homossexual casado com um
assaltante de carros e empreende toda uma vingança porque tem seu parceiro
assassinado por um policial. E o beijo foi surpreendente porque na verdade a
gente tava improvisando uma cena, e a gente dançando ali, e ai de repente o
Miguel disse assim "Dá um beijo!". E...ai vamo lá! Tem um primeiro selinho, uma
primeira aproximação, e ai eu me lembro do Tonico falar qualquer coisa baixo
do tipo "Caralho, tamo ferrado..." Alguma coisa assim engraçada, e ai eu fui e
pow! E ai veio o beijo mesmo.
Bigode:
Aquele filme "André, a cara e a coragem" é uma coisa impressionante, porque é
sempre um cara mais velho que pega o garoto do interior, que não tem comida,
não tem onde morar, então a bichona arruma o quartinho pro garoto,
coitadinho. E depois tem o lance que é o seguinte: o homossexual é o cara que tá
dando a comida, sendo o filho da puta. Agora, o garoto que tá ficando de pau duro
e comendo o viado, não é homossexual. Ele é um menino, coitado.
Jean:
A heteressexualidade sempre fica em cima. Ela é sempre associada a valores
positivos e bons, e a homossexualidade é sempre associada a valores negativos e
ruins. Por quê? A gente tem que questionar isso.
Bigode:
O próprio Lúcio Cardoso, que era homossexual, mas um escritor católico, ao
apresentar o personagem mais famoso da literatura brasileira e da obra dele, que
é o Timóteo da Crônicas da Casa Assassinada, que é um travesti que vive
trancafiado num quarto escondido de uma família tradicional mineirado Séc XIX
e que finalmente ele sai um dia, quando a família tá toda reunida ao redor de um
velório, esse personagem é caricato e completamente trancafiado e isolado, feito
um monstro, feito um animal selvagem, preso numa gaiola, escondido e
clandestino. Isso daí me incomodava muito, porque eu não tava afim. Eu queria
ver a luz do dia. E eu acreditava numa possibilidade de uma homossexualidade
sem o artifício barroco, sem o impréstimo do universo feminino, de algum
elemento. Eu achava que a gente podia ser homem e gostar de homem. E eu
queria ver isso. E eu não via.
André:
E a gente tem uma presença muito grande no cinema brasileiro, se você fala do
personagem GLBT, de muito travesti, muito transgênero. Madame Satã, Rainha
Diaba... Você tem todos esses personagens travestis. Pô, lindo, beleza, eu to na
mesma luta de direitos dos travestis, mas eu não me vejo retratado de forma
alguma. Eu, enquanto homem gay, não me vejo retratado num personagem
travesti e transsexual.
Jean:
Eu lembro de um filme que me marcou muito, que foi Pixote de Hector Babenco.
Foi o primeiro filme brasileiro que eu vi retratando a questão da
homossexualidade. De uma mameira muito violenta. Uma homossexualidade
ligada a experiência da marginalidade, da violência, através daquele personagem
Lilica. E Lilica é o gay da turma, o homossexual da turma. Ele é abusado pelos
soldados. Então tem uma cena que não sai da minha cabeça que é uma cena em
que ele dança. E é uma cena muito triste porque ele tá sendo obrigado. Os caras
põe os pés nele, entre as pernas. É uma cena muito forte. Eu tinha onze anos
quando eu vi essa cena e eu fiquei muito chocado. Aquilo me fez muito mal
porque eu já tinha os desejos se manifestando em mim com 11 anos de idade e
de alguma forma aquilo me chocou. Eu não queria aquilo pra mim.
Cena de Pixote:
- Me ajuda, Lilica.
- Te ajudo, te ajudo. Eu to aqui do teu lado. Eu te ajudo. Eu prometo que ninguém
mais vai encostar a mão em você.
Jean:
Essa frase que eu acabei de dier "Não queria aquilo pra mim"... Parecia que a
homossexualidade era aquilo. Ser homossexual era viver aquele tipo de
experiência, era ser objeto daquele tipo de abuso, era viver naquela
marginalidade. E eu digo isso porque quando aos 16 anos eu contei pra minha
mãe que eu era gay, mesmo sem ter nenhuma experiência homossexual, eu me
lembro que ela falou assim: "Eu preferia que você não fosse. Gosto muito de você,
mas eu preferia que você não fosse". E porque ela preferia que eu não fosse?
Porque a idéia de homossexualidade dela era a idéia de marginalidade. A
homossexualidade experimentada como uma vida à margem: de travesti, de
prostituição, de drogas. A homossexualidade associada ao submundo.
Cena de Vera:
- Num enganei ninguém. O que eles viram, viram com os próprios olhos.
- Clara, o importante não é o que a gente pode pensar, e sim o que a gente vê.
Jean:
E mais tarde eu vi um outro filme também muito forte chamado Vera, com a Ana
Beatriz Nogueira. Que trata de uma menina que não tem um lugar no mundo, ela
não se encontra naquela representação dela mesma. Ela não se vê, ela não se
enxerga da mesma maneira que os outros vêem ela. A sociedade vê ela como uma
garota e ela se vê como um menino. E é um desconforto existencial, um
desconforto ético de lugar no mundo.
Cena de Vera:
-Eu não pedi a você pra se cuidar? Precisava ter provocado? Precisava vir vestida
assim desse jeito?
- Você quer fazer o favor de dar uma explicação?
- Sabe de uma coisa? Um dia, quando eu juntar grana suficiente, eu vou fazer uma
operação, eu vou resolver esse meu problema de uma vez por todas.
- Não entendi.
- Eu vou arrumar o meu sexo, professor! Eu vou virar um homem de verdade!
- Mas eu não acho que uma operação dessas seja possível.
- É possível sim! Tem que ser possível, na América é possível. Eu não sou o que
tudo pensa, entendeu? Eu sou diferente. Eu sou outra coisa. Outra coisa.
Jean:
O Vera era isso, uma discussão sobre esses papeis de gênero que a sociedade
define pra mulher e pro homem, e quando você não se encaixa nesses papeis.
Alguma coisa tá errada com você. Você acha que tá errado porque não se encaixa
nesses papeis. "Qual é o meu lugar no mundo? A vida me parece uma roupa ora
tá apertada, ora tá folgada. Nunca tá justa".
Andrea:
O que se tem feito é ver a homossexualidade quanto homossexualidades, no
prural. Então busca-se na homossexualidade a diversidade. Só que pra você
chegar na diversidade é preciso você pelo menos encarar a homossexualidade de
uma forma séria, de uma forma contemplável. Então se você não consegue nem
olhar pra homossexualidade no singular, que dirá no plural.
Cena de Madame Satã:
- Tem mais merda na cara que qualquer meretriz aqui da Lapa.
- Vai cuidar da tua vida, almofadinha de bosta.
- Eu não disse que ele era valente?
- Tu não passa de um cururu qualquer, sujo de barro vermelho.
- Viado!
- Eu sou bicha porque eu quero! E não deixo de ser homem por causa disso não!
Karim:
O Madame Satã pra mim de fato foi uma oportunidade. Eu através da existência
dele, eu fui capaz de falar de questões que pra mim eram muito importantes
naquele momento, e que eu achava que eram relevantes, e que tinham que ser
representadas na cultura brasileira de um jeito que eu ainda não tinha visto
ainda.
Cena de Madame Satã:
- Vamo dança? Vamo dançar, vamo dançar.
Karim:
O Emiliano eu escolhi ele por causa do Navalha na Carne e a Renata Sorrah por
causa do Matou a Família e foi ao Cinema. O Emiliano quando eu vi o Navalha na
Carne, do Braz Chediak, que é um filme que eu adoro, que eu acho que é
subrepresentado dentro da história da nossa cinematografia, eu fiquei encantado
e não tinha como eu não fazer uma homenagem a esse cara. Eu seria totalmente
maluco se eu não fizesse isso. E a Renata foi por uma coisa de encantamento.
Depois que eu soube que ela só tinha feito mais um filme depois do Matou a
Família que foi o "Lua de Mel e Amendoim" eu falei "Perfeito!". Ela é um pouco
uma Brigite Bardot inteligente! Ela tem uma coisa muito impressionante, de diva
realmente do cinema.
Bigode:
O Karim filmou com uma naturalidade, aquilo que quem não é homossexual
chamaria de ousadia, muito louvável, muito legal.
Jean:
Me agradou muito como ele trata madame Satã como aquele cara que
desconstrói, na base da violência, o lugar que aquela sociedade racista,
homofóbica e classista queria dar pra ele.
Karim:
Tinha uma coisa que eu sempre identificava, em relação ao público, é que as
pessoas diziam que era um filme muito "forte". E eu achava aquilo muito
engraçado. Forte como? O que que tem demais num filem como Madame Satã
que não tem no Morro dos Ventos Uivantes? Por que que ele é tão forte assim?
Eu achava que era um eufemismo pra se dizer que era um filme muito atrevido,
eu acho. E a outra coisa que eu senti também do filme é que de fato, isso foi dito,
isso eu não vi, só em Cannes, depois nunca mais, e que acho que aconteceu
bastante. Tinha sempre gente que saia do filme na hora que eles tavam
transando. Eu acho que aquilo era muito forte. E aconteceu bastante, mas eu
achava que era importante também. Que as pessoas se confrontem com algumas
fobias.
Bigode:
O filme Amores Possíveis da Sandra Werneck, pela primeira vez, fala de um casal
homossexual masculino, onde o cara separa da mulher pra ficar com ele, tem um
filho... Não é uma caricatura. É um casal de classe média e tal. Eu me sinto muito
bem representado nesse filme.
Sandra:
Eu queria colocar que existiam e que existem de fato, várias relações
homossexuais dessa forma. Casal, coisa do cotidiano, de discutir relação, de
ciúme, essas coisas todas. Eu queria tirar um pouco dessa questão de ver o
homossexualismo como uma questão só sexual, mas também uma questão de
amor, de afeto, de companheirismo, de troca.
André:
A gente saiu dos personagens que eram explodidos em shopping, que eram
sempre a desgraça e tal, pra, é sempre, é o único casal da novela que não briga,
qu não tem problema, que não beija, mas também não briga, não faz nada. Eu
acho que o “Amores Possíveis”, pô, legal, bacana, mas também é um casal ali sem
muito conflito. Que bom, prefiro que seja tratado assim do que ser assasinado,
mas também eu gostaria de personagens gays menos politicamente corretos. Que
tem essa preocupação toda. Durante tanto tempo eram sempre os pedófilos, os
assassinos, os promíscuos, e aí você criticava por isso. Aí você passa a ter o
personagem que é o personagem sem sal completamente, porque não pode ter
conflito senão vão acusar... Eu entendo também os realizadores, ali a dificuldade,
né? Porque aí vão acusar de “Ai, tão botando todos os problemas do mundo nos
personagens gays.
Cena de “Amores Possíveis”:
- Carlos, eu queria te fazer uma pergunta. Quando você trepa com o seu parceiro,
você usa camisinha? Quando você trepa com ele?
- Claro.
- Que pena. Porque eu sonho todas as noites, Carlos, é o meu desejo secreto, que
um dia você morra de Aids. E aí, sacou a animosidade? Ou ainda acha que dá pra
gente ser amiguinho? Me entrega?
Jean:
E eu lembro que muita gente se identificou com a postura da personagem de
Carolina Ferraz. Eu lembro que, quando ela fala e deseja com rancor que ele
morra de Aids, muita gente em volta falou “Ela ta certa, ela ta certa, ela ta certa,
ela ta certa”, balbuciando, e entre dentes, e aquilo me deixou num mixto de
choque e tristeza, de imaginar que esse preconceito, essa aversão, ta lá calada
dentro, ta fundo, vigorando, mesmo que as pessoas vomitem o politicamente
correto. No fundo elas acham que não é correto mesmo, sabe? Que nós somos
anormais, que nós estamos contrariando a natureza.
Sandra:
Eu fui numa sessão no Leblon, lotada no Cine Leblon, e quando aparace o casal
gay, que seria duas pernas numa câmera que vai chegando até eles, o cinema
inteiro Leblon fez “Uuuuuu”. Pra mim foi um trauma assim, imagina, que coisa,
que incrível isso, né? Bom, na segunda vez, que foi quando eu fiz Cazuza, eu fui no
mesmo Cinema Leblon, e aí Cazuza beijando na boca, passa a mão, drogas,
rock’n’roll, sexo e ninguém deu um pio.
Cena de “Cazuza”:
- Porque as rosas buscam em frente uma dura paisagem de osso. E as mais do
homem já não tem mais sentido que imitar as raízes sobre a Terra. Como me
perco no coração de alguns meninos. Perdi-me muitas vezes pelo mar. Ignorante
da água, vou buscando uma morte de luz que me consuma. Frederico Garcia
Lorca.
Sandra:
No Cazuza, acho que se eu pudesse, teria ido mais fundo na questão sexual. Teria
mostrado mais cenas sexuais. Não sexuais que eu digo vulgar, não. Mas assim, ele
amava com uma intensidade, ele era um ser que tudo que ele fazia de poesia
vinha muito da forma como ele amava as pessoas.
Anselmo:
Hoje eu vejo uma safra nova de atores extraordinários, atores sem medo, né?
Topando... acho bárbaro um ator como o Rodrigo Santoro, que é totalmente
enquadrado numa coisa de galã, né? Poderia ter feito aquela carreira tradicional.
Carlo:
Tu não tem idéia o que significa chamar um ator, da TV, e tentar convencê-lo de
fazer um papel gay. Mesmo ele sendo gay. É a coisa mais difícil. Rola muita grana,
muita conversa, provam pra ele que de A mais B e B mais A realmente não tem
nada a ver, que na próxima novela ele vai fazer o machão, não vai fazer mais o
gay.
Jean:
Você deixar de viver um grande personagem como Madame Satã, porque você
está preocupado que as pessoas achem que você é travesti, que você dá o cú, me
desculpe a expressão, mas eu me indigno com essas coisas, eu não posso
respeitar essa gente.
Cena de “Madame Satã”:
- Já terminou de costurar o vestido da Vitória?
- Já.
- E as toalhas do Amador, já lavou?
- Tudo.
- Então já podia ter lavado o vestido da Madame também.
- Eu já lavei.
- Já secou?
- Meu nome não é Sol.
- Teu nome é Trovão, desgraçado.
- E o cú, já deu hoje?
- Hoje ainda não.
André:
Hoje já não é mais aceito você ser preconceituoso ali na lata, na cara. É muito
mais difícil. Pra quem é preconceituoso expressar o seu preconceito de uma
maneira aberta, hoje, já não é mais tão fácil. Porque já não é socialmente bem
aceito você expressar seu preconceito de uma maneira tão explícita.
Bigode:
Há muito preconceito ainda. Nas Comissões que escolhem os projetos... isso em
qualquer nível. Há ainda um preconceito. O que acontece é que é politicamente
incorreto você declarar a sua homofobia ou o seu racismo. Mas isso não quer
dizer que as pessoas estejam completamente livros desse entramentento desses
preconceitos.
Monique:
O tema, eu acho que ele é muito precioso, eu acho que hoje ainda nós não
tivemos um filme, um filme mesmo, de duas mulheres e de dois homens, não sei.
Eu não conheço. Você conhece algum, não?
Sandra:
Eu acho que não pode ficar também como sendo uma sessão especial do cinema,
sabe? Ele tem que estar no cinema como um todo, como tão os filmes sociais, os
filmes políticos, como estão os filmes pipocas...
Karim:
Engraçado, né, que a palavra “gay” quer dizer alegre. Eu acho importante falar da
experiência homossexual como uma experiência prazerosa, alegre, que não é
necessariamente embuída de dor, de crise, você ta entendendo? Então, isso eu
sinto falta, né? Ainda mais num país que se diz tão alegre, tão livre, que se diz tão
erotizado, né?
Jean:
Tem que haver um filme em que apareça um personagem que tenha orgulho de
ser gay. Sabe? Que seja um cidadão civilizado, honesto, talentoso, trabalhador, e
que experimente a sua sexualidade com tranqüilidade, com leveza, como os
heterossexuais experimentam.
Cena de “A Partilha”:
- Eu gosto de mulheres. Eu sou sapatão, eu sou sargento, fanchona, lésbica, eu
colo velcro, eu gosto de botar a aranha pra brigar.
- Ta aí.
- Mas eu não posso.
- Pode sim. A não ser que seja viado.