Intoxicação Exógena

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Intoxicação Exógena
PROTOCOLOS CLÍNICOS da COOPERCLIM – AM
INTOXICAÇÕES EXÓGENAS AGUDAS
CAPÍTULO 1 – Abordagem Inicial
Autor: Francisco Antonio Rodrigues Paula
1 – RESUMO
O número de casos é relevante, sendo o suicídio e a via oral os casos mais comuns. A
história clínica e o exame físico são essenciais para o diagnóstico e manejo de intoxicação exógena.
Os achados clínicos são classificados em síndromes, facilitando a etiologia e a terapêutica. Como
diagnóstico diferencial, leva-se em conta qualquer doença de manifestação aguda, dentre as quais:
traumas, lesões do sistema nervoso central, distúrbios metabólicos e outros. A abordagem geral
segue os princípios do suporte avançado de vida cardiológico. Os principais ítens terapêuticos
incluem: prevenção da absorção e aumento da excreção dos tóxicos, lavagem gástrica, uso de
carvão ativado, irrigação intestinal, diurese forçada, alcalinização da urina, métodos dialíticos e uso
de antídotos (quando indicados).
2 – INTRODUÇÃO
Apesar da carência de dados, estima-se em 2 a 3 milhões anuais o número de intoxicações
agudas nos Estados Unidos, representando de 5% a 10% dos atendimento nos serviços de
emergência. O suicídio corresponde à maioria dos casos que chegam ao pronto socorro,
primordialmente pela via oral. Casos graves estão associados geralmente ao uso de drogas ilícitas,
abuso de álcool e, obviamente, tentativa de suicídio.
3 – ETIOLOGIA
Tabela 1 - Achados clínicos e tóxicos mais prováveis:
Manifestações clínicas e síndromes
Tóxicos mais frequentes
Intoxicação com hiperatividade adrenérgica
Ansiedade, sudorese, taquicardia, hipertensão,
pupilas midriáticas.
Dor precordial, IAM, emergência hipertensiva,
acidente vascular cerebral, arritmias.
Casos mais graves: hipertermia, rabdomiólise,
convulsões.
Procurar sítios de punção (drogas)
Síndrome Anticolinérgica
Pupila midriática, taquicardia, tremor, agitação,
estimulação do SNC, confusão
↓ dos ruídos intestinais, retenção urinária
Pistas: pele seca, quente e avermelhada;
midríase acentuada, discretamente fotorreagente
Casos mais graves: convulsões, hipertermia,
Anfetaminas, cocaína, derivados de ergotamina,
hormônio tireoidiano e inibidores de MAO
Antidepressivos tricíclicos, anti-histamínicos,
antiparkinsonianos,
antiespasmódicos
e
fenotiazinas.
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insuficiência respiratória.
Tabela 1 - Achados clínicos e tóxicos mais prováveis.
Manifestações clínicas e síndromes
Tóxicos mais frequentes
Síndrome Anticolinérgica
Bradicardia, miose, hiperssalivação, diarréia
vômitos, broncorréia, lacrimejamento, sudorese
intensa, fasciculações.
Casos mais graves: PCR, insuficiência
respiratória, convulsões, coma.
Síndrome Dissociativa (alucinógeno)
↓ freqüente, confunde-se com outros
estimulantes do SNC: taquicardia, tremor,
hipertensão, midríase, hipertermia.
Atenção: desorientação, alucinações auditivas e
visuais, sinestesias, labilidade do humor
Síndrome com Hipoatividade
Bradipnéia, hipoatividade, ↓ do nível de
consciência, coma, insuficiência respiratória,
hipercapnia, aspiração, coma e morte.
Intoxicação com acidose metabólica grave e
persistente
Taquipnéia intensa, bradicardia, hipotensão
Pista: gasometria
Outros exames: lactato arterial, ânion gap, gap
osmolar, urina tipo I, dosagem sérica dos
tóxicos.
Síndrome Asfixiante
Taquipnéia, cefaléia, confusão, labilidade
emocional, náuseas, vômitos.
Casos mais graves: edema cerebral, coma,
depressão respiratória, hipotensão, arritmias,
edema pulmonar.
Papiledema e ingurgitamento venoso ao fundo
de olho
Síndrome Convulsiva
Convulsão
Síndrome Bradicárdica
Bradicardia, hipotensão, vômitos.
Carbamatos, fisostigmina, organosfosforados e
pilocarpina.
Fenciclidina e LSD (ácido lisérgico).
Miose acentuada: opióides
Ausência de miose: álcool e derivados,
anticonvulsivantes e benzodiazepínicos.
Acetona, ácido valpróico, cianeto, etanol,
formaldeído,
etilenoglicol,
metformina,
monóxido de carbono e salicilatos.
Cianeto, inalantes, gases, vapores e monóxido
de carbono.
Antidepressivos tricíclicos, β-bloqueadores,
bloqueadores de canais de Ca, cocaína,
fenotiazinas, organofosforados, isoniazida, lítio,
monóxido de carbono, salicilatos, teofilina.
Amiodarona, β-bloqueadores, bloqueadores de
canais de Ca, carbamatos, digitálicos e
organofosforados.
Intoxicação com sangramento
Coagulopatia (TP/inr) 24~72h após a ingestão
Antagonistas de vit. K (alguns raticidas) e
warfarina sódica.
Sangramento em pele, mucosa, TGI, SNC,
cavidades, articulações.
Intoxicação sem efeito inicial no SNC
Digitálicos, imunossupressores, inibidores de
MAO, salicilatos, warfarina sódica, substâncias
de liberação lenta (teofilina, carbamazepina,
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lítio) e substâncias de início tardio (tabela 2)
Tabela 1 - Achados clínicos e tóxicos mais prováveis.
Manifestações clínicas e síndromes
Tóxicos mais frequentes
Síndrome “Simpaticolítica”
Taquicardia,
hipotensão,
pele
quente
(vasodilatadores).
Bradicardias com inotrópicos/cronotrópicos
negativos.
Rebaixamento de nível de consciência.
Pistas: alteração discreta do SNC + profunda
alteração cardiovascular.
Síndrome de Abstinência
Dúvida: excesso ou abstinência da droga?
Agitação, sudorese, tremor, taquicardia,
taquipnéia, midríase, ansiedade, confusão.
Casos mais graves: alucinações, convulsões,
arritmias.
Bloqueadores α e β, bloqueadores de canais de
Ca, clonidina.
Álcool etílico, antidepressivos, cocaína,
fenobarbital, hipnótico-sedativos e opióides.
Tabela 2 - Tóxicos que podem ter início de ação retardado
Agentes antitumorais
Colchicina
Digoxina
Etilenoglicol
Metais pesados
Metanol
Paracetamol
Salicilatos
Tetracloreto de carbono
Liberação lenta (teofilina, carbamazepina, fenitoína, lítio)
4 – DIAGNÓSTICO
4.1 – Exames Gerais
Na maioria das vezes, não é necessário exame adicional. Porém, em algumas situações,
pode-se pedir: hemograma, glicemia, eletrólitos, gasometria, função hepática, função, urina, etc..
Dosagem sérica qualitativa – útil quando a substância ingerida é desconhecida, no uso de
múltiplas substâncias ou incompatibilidade entre os achados clínicos e a história.
Dosagem sérica quantitativa – utilidade restrita em situações que relacionavam nível sérico,
toxicidade e tratamento.
4.2 – Exames Específicos
ECG – sua alteração pode apontar para algumas drogas (antidepressivos tricíclicos,
antiarrítmicos, β-bloqueadores) e indicar estado de gravidade.
Radiografia – broncoaspiração, edema pulmonar não-cardiogênico, pneumomediastino
(ruptura de esôfago), abdome agudo. Pouca utilidade na detecção de metais pesados, substâncias
radiopacas ou pacotes ingeridos no tráfico de drogas.
Gasometria – situações de hipóxia, evidência de hipoventilação e detecção de acidose ou
distúrbios mistos. Acidose metabólica grave pode significar uso de metanol, etilenoglicol ou
salicilatos. Se esta for persistente, investigar causa.
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Lactato arterial – seu aumento indica má perfusão periférica causada pelo tóxico
(hipovolemia, choque), insuficiência de múltiplos órgãos ou possibilidade de convulsões. Acidose
metabólica com lactato elevado sugerem metformina e monóxido de carbono.
Gap osmolar (diferença entre osmolalidade medida e a estimada):
• Normal: metformina, monóxido de carbono, salicilatos e formaldeído;
• Aumentado (> 10): álcool etílico, metanol, etilenoglicol, acetona e ácido valpróico.
Ânion gap aumentado – intoxicações exógenas >> acidose metabólica
Cetose:
• Ausente: metanol e etilenoglicol;
• Presente: formaldeído, salicilatos, acetona, álcool etílico e ácido valpróico.
Cristais de oxalato na urina – sugerem etilenoglicol.
4.3 – Diagnóstico Diferencial
Traumas
Infecções
Tabela 3 – Doenças que podem ser confundidas com intoxicações exógenas
Coluna cervical e TCE
Meningite, encefalite, abscesso cerebral, sepse
Lesões do SNC
Distúrbios metabólicos
AVCi ou AVCh, hematoma subdural, tumor
Hipercalcemia, hiponatremia, uremia, insuficiência hepática,
hipoglicemia, hiperglicemia, cetoacidose diabética
Outros
Síndromes
hipertérmicas,
transtornos
psiquiátricos,
hipotireoidismo,
hipertireoidismo,
anafilaxia,
doença
coronariana isquêmica, embolia pulmonar, arritmias
5. TRATAMENTO
5.1 – Manejo Geral
O tratamento inicia com o fim da exposição. A descontaminação deve ser iniciada o mais
rápido possível, no local da ocorrência, de acordo com o provável produto e a via de contaminação.
(tabela 4).
Tabela 4 – Abordagem geral das intoxicações exógenas
Reconhecer uma intoxicação
Identificação do tóxico
Avaliar o risco da intoxicação
Avaliar a gravidade do paciente e estabilizá-lo clinicamente (inclui uso de antídotos)
Diminuir a absorção do tóxico
Aumentar a eliminação do tóxico
Prevenir reexposição: avaliação psiquiátrica
Nos pacientes sintomáticos, o tratamento das complicações com risco de morte têm
precedência em relação à avaliação diagnóstica aprofundada. Todas as exposições potencialmente
significativas devem ser observadas em serviços de cuidados intensivos.
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As complicações devem receber uma abordagem ampla e imediata. Entretanto, abstenho-me
a dirimir os pormenores, visto que não é o foco desse protocolo, apenas listando as mais
importantes: coma, hipotermia, hipertermia, hipotensão, hipertensão, arritmias e convulsões.
5.2 – Prevenção da absorção e aumento da excreção dos tóxicos
Se a pele foi atingida, usar luvas de procedimento para retirar as roupas, remova os resíduos
lavando-se a pele e couro cabeludo com sabão e escova macia, em água corrente, por pelo menos 15
minutos. Em queimaduras químicas, não use sabão nem escova, retirando-se as roupas com
cuidado. Acometimento ocular requer lavagem dos olhos com água corrente ou irrigação com SF
0,9% por alguns minutos com as pálpebras abertas, procedendo-se depois com curativo oclusivo e
encaminhamento ao oftalmologista.
A maioria dos casos envolve trato gastrointestinal, exigindo as seguintes medidas: carvão
ativado, lavagem gástrica, irrigação intestinal, hiper-hidratação e alcalinização da urina.
5.2.1 – Lavagem Gástrica
Método – passagem de SOG de grosso calibre; decúbito lateral esquerdo com a cabeça em
nível levemente inferior ao corpo; administração por SOG de pequenos volumes de SF 0,9% 100 a
250mL), sonda aberta, em plano inferior ao paciente. Aguarda-se então o retorno do conteúdo
gástrico com possíveis resíduos tóxicos. Momento de parar: quando houver retorno apenas de soro.
Eficácia: varia de acordo com o tempo de realização do procedimento após a ingestão:
≤ 5 minutos - 90% de material recuperado;
≤ 10 minutos – 45% de material recuperado;
Aos 19 minutos – 30% de material recuperado;
Aos 60 minutos – 8 ~ 32% de material recuperado (varia de acordo com o estudo);
> 60 minutos – indicação rara.
Complicações: pouco freqüentes, variam desde vômitos e broncoaspiração até a
laringoespasmo grave e indução de reflexo vagal acentuado.
Tempo de ingestão < 60 min
Quando INDICO lavagem gástrica?
Substância potencialmente tóxica ou desconhecida
Ausência de contra-indicações à lavagem gástrica
↓ nível de consciência com perda dos reflexos de
proteção das vias aéreas sem intubação prévia
Quando NÃO indico lavagem gástrica?
Ingestão de substâncias corrosivas como ácidos ou
base
Ingestão de hidrocarbonetos
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Risco de hemorragia ou perfuração do TGI,
incluindo cirurgias recentes ou doenças prévias
5.2.2 – Carvão Ativado
Método – adsorve várias substâncias e previne sua absorção sistêmica:
Dose única: 1,0g de carvão/kg (25 ~ 100g), diluído em água, SF 0,9% ou catárticos
(manitol ou sorbitol), em torno de 8mL de solução/1,0g de carvão.
Múltiplas doses: 0,5g de carvão/kg de 4/4h. Indicado em casos graves ou
potencialmente graves. Principais tóxicos: fenobarbital, ácido valpróico, carbamazepina, teofilina,
substâncias de liberação entérica ou de liberação prolongada.
Eficácia - varia de acordo com o tempo de realização do procedimento após a ingestão:
≤ 5 minutos – diminui em 73% a absorção de tóxicos;
Em 30 minutos – diminui em 51% a absorção de tóxicos;
Em 60 minutos – diminui em 36% a absorção de tóxicos;
> 2 horas – geralmente ineficaz.
Complicações: raras, sendo citados a aspiração, vômitos e constipação intestinal.
Carvão Ativado x Lavagem Gástrica ⇒ melhor carvão ativado
↓ nível de consciência com perda dos reflexos de
proteção das vias aéreas sem intubação prévia
Ingestão de substâncias corrosivas: ácidos ou base
Quando NÃO posso usar carvão ativado?
Ingestão de hidrocarbonetos
Ausência de ruídos gastrointestinais ou obstrução
Risco de hemorragia ou perfuração do TGI,
incluindo cirurgias recentes ou doenças prévias
Álcool, metanol, etilenoglicol, cianeto, Fe, Li e
flúor não são adsorvidos pelo carvão
5.2.3 – Irrigação Intestinal
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Método – administra-se uma solução em uma SNG, de 1.500mL a 2.000mL/hora, com o fim
de recuperar esta por via retal, provocando uma limpeza mecânica do TGI. Solução mais usada:
polietilenoglicol, composição semelhante ao plasma.
Indicação: não se recomenda seu uso rotineiro. É útil em ingestão de grandes doses de ferro
ou outros metais pesados.
Complicações: raras, sendo citados a aspiração, vômitos e constipação intestinal.
5.2.4 – Diurese Forçada e Alcalinização da Urina
Hiper-hidratação – SF 0,9% de 8/8h ou 6/6h, aumentando-se até atingir um débito urinário
de 100 – 400mL/h. Principais usos: álcool, brometo, cálcio, flúor, lítio, potássio e isoniazida.
Alcalinização – alvo: pH > 7,5.
Bicarbonato de Sódio 8,4% 150mL (150mEq) + SG 5% 850mL. Esta solução
alcaliniza a urina, com concentração fisiológica de sódio (0,9%). Dose de 1.000mL de 8/8h ou 6/6h,
monitorizando o pH.
Principais usos: fenobarbital, salicilatos, clorpropramida, flúor, metotrexate e
sulfonamidas.
5.2.5 – Métodos Dialíticos
O método mais utilizado é a hemodiálise e, em menor frequência, hemofiltração e
hemoperfusão (tabela 5).
Intoxicação grave ou potencialmente grave. Dica:
pacientes que pioram apesar de suporte intensivo
Intoxicação grave + Disfunção na metabolização do
tóxico (insuficiências hepática e/ou renal)
Quando indico a diálise?
Alta concentração sérica do tóxico, com potencial fatal
ou de causar lesões graves, apesar do paciente estável
Alta taxa de retirada do tóxico com a diálise
Tabela 5 – Hemodiálise e Hemoperfusão
Hemodiálise
Barbitúricos
Bromo
Etanol / Metanol
Etilenoglicol
Salicilatos
Hidrato de cloral
Lítio
Metais pesados
Procainamida
Teofilina
Hemoperfusão
Barbitúricos
Ácido valpróico
Carbamazepina
Cloranfenicol
Disopiramida
Fenitoína
Meprobamato
Paraquat
Procainamida
Teofilina
NÃO são recomendados os seguintes métodos ou substâncias, pois, além de
ineficazes, alguns deles podem ser prejudiciais:
• Indução de vômitos, água morna,
~ 7 ~salmoura (causa excesso de eletrólitos),
detergentes (efeito irritante), estímulos mecânicos com espátula ou cabo de
colher, administração rotineira de leite ou substâncias oleosas;
• Cremes, gelatinas ou clara de ovos (como antiácidos);
• Suco de limão e vinagre.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
1. MARTINS HS, BRANDÃO NETO RA, et al.. Abordagem inicial das intoxicações exógenas
agudas. In: Emergências Clínicas – Abordagem Prática. 4ª edição ampliada e revisada. Editora
Manole. 392 – 412. 2009.
2. Instituto ANTÔNIO HOUAISS, Coordenação e Assistência de AZEREDO JC. Escrevendo pela
Nova Ortografia: como usar as Regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, 2ª
edição. Publifolha. 2008.
3. HIGA EMS, ATALLAH AN et al. Intoxicações Agudas. In: Guias de Medicina Ambulatorial e
Hospitalar da Unifesp-EPM – Medicina de Urgência, 2ª edição. Editora Manole. 73 - 6. 2008.
4. MARTINS HS, BRANDÃO NETO RA, et al.. Abordagem inicial das intoxicações exógenas
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Medicine, 350 (8): 800 - 7. Feb 2004.
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