Para uma dialética da alteridade

Transcrição

Para uma dialética da alteridade
VERLAINE FREITAS
Para uma dialética da alteridade
A constituição mimética
do sujeito, da razão e do tempo
em Th. Adorno
Tese apresentada ao curso de Doutorado da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito à obtenção do título de Doutor
em Filosofia.
Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da
arte.
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo A. P. Duarte.
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2001 1
1 A data se refere à defesa da tese.
O presente texto (2006) é resultado de uma revisão de algumas
formulações do original. Cf. o Prefácio logo à frente.
Ficha catalográfica
Freitas, Verlaine
Para uma dialética da alteridade. A
F866p
constituição mimética do sujeito, da razão e
do tempo em Theodor Adorno. - Belo
Horizonte: FAFICH / UFMG, 2001.
Edição revista em 2006
206 p.
100
Tese de Doutorado UFMG, FAFICH
Palavras-chave: alteridade, mímesis, conhecimento,
Theodor Adorno, abstração, racionalidade, ideologia,
sublime, tempo, estética.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer aqui:
ao CNPq, pela bolsa concedida para financiamento
desse trabalho, sem a qual este não teria sido possível;
às funcionárias do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da UFMG, Norma e Andréia, pela assistência
em relação aos trâmites administrativos junto à
Universidade;
à minha mãe, Conceição, pelo apoio constante durante
todos esses anos;
e a Rodrigo Duarte, pela orientação criteriosa para a
realização da tese.
Índice
NOTA SOBRE AS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PRINCIPAIS ...........................................................6
Introdução......................................................................................................................8
Capítulo I...................................................................................................................... 19
M ÍMESIS COMO FORMA DE CONHECIMENTO ..................................................................................... 19
1. As dificuldades do conceito de mímesis..................................................................................... 19
2. Imagem: entre sensação e conceito .............................................................................................. 23
3. Abstração como conceito antropológico ................................................................................... 24
a) O conceito “abstração”............................................................................................................. 24
b) A genealogia do humano na abstração................................................................................. 26
4. Assimilação imagética do real: mimetismo e mímesis............................................................. 27
a) Alteridade, medo e similitude: o mimetismo....................................................................... 27
b) Da semelhança à consciência da diferença: mímesis ........................................................ 30
5. As formas primevas de conhecimento ........................................................................................ 39
a) Preanimismo ................................................................................................................................ 40
b) Magia ............................................................................................................................................. 42
c) Mito ................................................................................................................................................ 49
d) Abstração crescente ................................................................................................................... 54
Capítulo II....................................................................................................................56
ABSTRAÇÃO VERSUS MÍMESIS: A TRAJETÓRIA DO ESCLARECIMENTO ........................................ 56
1. Onde começa o esclarecimento?................................................................................................... 56
a) Quatro conceitos de esclarecimento...................................................................................... 56
b) Esclarecimento qua dominação.............................................................................................. 58
c) Mito grego como incício do esclarecimento ....................................................................... 63
2. Abstração, subjetividade e poder.................................................................................................. 65
a) Origem do sujeito nas relações de poder............................................................................. 65
b) Linguagem e coletividade; a metafísica como expressão de poder............................... 67
c) Negação abstrata cognitiva da natureza: o cogito cartesiano.......................................... 68
3. Positividade da ciência como Leitmotiv do esclarecimento .................................................. 74
a) O mundo como tautologia do pensamento ........................................................................ 74
b) Positivismo metafísico .............................................................................................................. 77
c) A epistemologia naturalizada de Quine................................................................................ 79
d) Reificação do pensamento: a razão instrumental .............................................................. 81
4. Integração funcional do indivíduo na sociedade...................................................................... 83
5. Negação abstrata prática da natureza .......................................................................................... 86
a) Obstinação identitária................................................................................................................ 86
b) Moral como negação abstrata da natureza: a ética kantiana ........................................... 99
6. Regressão mimética ........................................................................................................................101
Capítulo III................................................................................................................. 104
ALÉM DA IMAGEM E DA RAZÃO ............................................................................................................104
1. Conceito versus imagem..................................................................................................................104
a) A necessidade da mediação imagética.................................................................................104
b) Judaísmo: negação determinada?.........................................................................................105
c) A recusa logocêntrica da mímesis; a imagem estética.....................................................110
d) Imagem, símbolo e signo .......................................................................................................114
2. Ideologia: opacidade entre o idêntico e o diferente...............................................................116
a) Ideologia como problema......................................................................................................116
b) O conceito adorniano de ideologia.....................................................................................118
c) O pensamento ideológico: tabu reflexivo..........................................................................120
3. Negação determinada da imagem: a dialética particular-universal.....................................128
a) Eikón, conceptum e sema......................................................................................................128
b) Nome, idéia e reconciliação...................................................................................................133
4. Negação determinada da identidade: a dimensão intra-temporal do pensamento........143
Capítulo IV................................................................................................................. 147
A EXPERIÊNCIA MIMÉTICA DO TEMPO ...............................................................................................147
1. A genealogia da percepção temporal.........................................................................................147
a) O devir, o tempo e a história.................................................................................................148
b) A profundidade imagética do tempo: o mito ...................................................................150
c) A tridimensionalidade temporal através da abstração....................................................153
d) A distensão interna do tempo: Santo Agostinho .............................................................156
e) A apropriação burguesa do tempo: Kant e Hegel...........................................................160
2. Transcendência e alteridade: o sublime em questão..............................................................163
a) A pertinência do conceito de sublime.................................................................................163
b) A introversão da transcendência: o sublime kantiano ....................................................165
c) Da transcendência à alteridade..............................................................................................171
3. O sublime na Teoria estética............................................................................................................173
a) Sublime como justiça ao particular ......................................................................................175
b) A experiência da alteridade: abalo, comoção....................................................................179
c) A dialética espírito-natureza...................................................................................................181
d) A transcendência secularizada...............................................................................................183
e) A historicidade como forma..................................................................................................186
f) A arte moderna como historicamente-sublime.................................................................190
Conclusão................................................................................................................... 193
Bibliografia................................................................................................................. 199
Resumo....................................................................................................................... 206
Abstract ...................................................................................................................... 206
Prefácio à edição eletrônica
Assim como dissemos no prefácio à edição eletrônica da dissertação de
mestrado, disponível em nosso site (http://www.fafich.ufmg.br/~verlaine), nossa
trajetória intelectual sofreu uma mudança substantiva a partir do contato com a teoria
psicanalítica. Isso se deu logo após a conclusão da tese de doutorado. A partir de então,
vários — mas não todos — conceitos expostos nessa tese, principalmente no primeiro
capítulo, seriam totalmente reformulados. Isso se dá em grande parte porque, apesar de
ainda tomarmos alguns como válidos, a perspectiva geral que lhes dá fundamento nos
parece hoje insuficiente, diante de nossa opção cada vez mais clara de compreender o
pensamento filosófico através da mediação da psicanálise. O presente texto possui, assim,
um valor mais histórico do que conceitual para o autor.
De modo semelhante à dissertação, para darmos um caráter atual a essa
tese, precisaríamos realizar tantas alterações que isso significaria um novo texto, o que
rejeitamos, com a idéia da publicarmos ulteriormente um livro que aborde as questões
aqui tratadas a partir da ótica que atualmente subscrevemos. Ao revisar o material para a
presente edição, restringimo-nos a questões estilísticas e a pontos conceituais críticos.
Verlaine Freitas
Belo Horizonte, setembro de 2006.
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Nota sobre as referências bibliográficas principais
O texto mais referido ao longo da tese é a Dialética do esclarecimento —
Dialektik der Aufklärung — escrita por Theodor W. Adorno e por Max Horkheimer.
Utilizou-se a edição alemã especificada na lista bibliográfica, auxiliados pela brilha nte
tradução de Guido de Almeida. Nas citações que se fez a essa obra, aproveitou-se, via de
regra, essa tradução. Entretanto, consideramos a tradução de algumas passagens um tanto
inadequada. Nesses momentos, ou foi feita uma tradução própria, quando a anterior se
mostra muito imprecisa, ou uma modificação, e, salvo em alguns casos, foi feito um
comentário em nota de rodapé sobre o que justifica essas substituições ou mudanças. Nas
referências a esse livro, foi indicado inicialmente o número da página do original alemão,
seguido do número da página em que está ou estaria a tradução feita por Guido de
Almeida. Exemplo: (DA 31/37).
A Dialética negativa — Negative Dialektik — de Adorno foi citada a partir de
tradução própria do texto original da editora Suhrkamp ou, em poucas passagens, a partir
de uma versão preliminar inédita da tradução dessa obra feita por Newton Ramos-deOliveira. Exemplo da referência usada: (ND 345).
A Teoria estética — Ästhetische Theorie — de Adorno foi citada, ora a partir de
tradução própria, ora aproveitando a realizada por Artur Morão. O processo de
aproveitamento dessa tradução foi o mesmo para a de Guido de Almeida, e a forma de
referência no nosso texto também é análoga: (ÄT 171/152).
A Minima Moralia de Adorno foi citada diretamente a partir da tradução de
Luiz Eduardo Bicca, revisada por Guido de Almeida. Para facilitar o acesso ao texto
original por aqueles leitores que possam fazê-lo, indicamos o número do aforismo
seguido pelo da página na tradução; exemplo: (MM §38, p.53).
Outro texto, mas não de Adorno, que foi citado com certa freqüência, é a
Crítica da faculdade do juízo — Kritik der Urteilskraft — de Immanuel Kant. Ela foi citada
diretamente a partir do texto original alemão, sendo as traduções feitas por nós. A versão
utilizada foi a da segunda edição de 1793, com as modificações da Edição da Academia
(Akademie Ausgabe). Os números indicados correspondem a essa edição original; exemplo:
(KdU B 61).
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Introdução
Esse texto pretende fornecer uma contribuição para uma teoria dialética da
alteridade a partir do pensamento de Theodor Adorno. Inicialmente, é preciso salientar
que se trata de uma mera contribuição, posto que se deixaram de lado diversos elementos
de ordem psicanalítica ou filosófica que poderiam ser relevantes para o tema. Depois,
afirmamos nossa tomada de posição a favor do pensamento dialético, o que significa,
entre outras coisas, somente considerar os fenômenos e conceitos na inter-relação que
possuem em termos sociais, considerando o peso relativo de vários deles no processo de
constituição da identidade de cada um. Além disso, consideramos, seguindo Adorno, que
toda e qualquer realidade somente pode ser entendida de modo consistente a partir de seu
desenvolvimento histórico, lendo, em cada uma, a história que se armazenou nela. O
objeto que é alvo dessa investigação é a alteridade, a relação entre a esfera da
subjetividade, do indivíduo e do espírito, em contraposição à da objetividade, do coletivo
e da natureza. Por último, frisamos que todas as nossas reflexões partem de argumentos
de Theodor Adorno, seja como textos a serem comentados, seja como pontos de partida
para uma elaboração própria, seja como idéias a que nos contrapomos.
Apesar de não ser anunciado no título, essa tese pretende ser um texto de
estética. Entretanto, o leitor não encontrará referências explícitas a questões sobre o belo,
sobre a arte ou sobre o sublime nos dois primeiros capítulos. A terceira parte contém um
item sobre a beleza, e o fechamento de nossa tese culmina nas noções de sublime, tanto
em geral, como na arte. A vinculação de nosso texto como um todo à área de estética
somente pode ser assegurado com clareza, se nos colocamos a favor de um conceito de
estética que não se limite apenas à reflexão sobre o belo ou sobre o feio, sobre o sublime
e sobre a arte. Segundo pensamos, a limitação do conceito de estética a essas áreas
poderia ser vista como um processo específico de dignificação filosófica da sensibilidade e
da corporeidade, algo como que correspondente ao que se estabelece na teoria do
conhecimento na medida em que, nesta, esses âmbitos são apropriados como instrumento
ou material para a constituição do saber. Nitidamente colocada como tese fundamental do
primeiro capítulo, que funciona como a escala a partir da qual as notas dos próximos
capítulos serão compreendidas, nossa posição procura resgatar a dimensão concreta do
conhecimento a partir do exercício imagético-sensível-desiderativo na relação com o
mundo. Nesse sentido, procuramos desfazer o caráter abstrato da idéia de conhecimento
tradicional, investigando a origem concreta, prática, da consciência, em que a
imagem/sensação não é mero material ou instrumento, mas medium, não apenas como
catalisador, mas, sim, como gênese pro-ducente do “campo” da consciência, pensada por
nós como hipóstase abstrata do exercicium concreto da imagem que duplica o mundo. A
bem dizer, todo nosso primeiro capítulo poderia ser lido como uma defesa enfática da
idéia de que a estética deveria ser vista enquanto um pensamento votado à concretude da
relação imagético-sensível-desiderativa como origem constituinte do campo da
consciência, em última instância, do sujeito e do conhecimento tout court.
Procurando ser congruentes com essa idéia, vemos nosso texto ser
construído em quatro partes (que são os quatro capítulos): na primeira, investigamos a
proto-história da constituição da consciência a partir da relação imagética com o mundo
através do conceito de mímesis; no segundo, seguimos o trajeto de recalque solipsista
desse modo de comportamento por parte do saber racionalmente instituído; no terceiro,
investigamos o que a razão pode assimilar desse modo de relacionar-se com o real a fim
de ultrapassar sua inverdade; na última parte, vemos como a noção de sublime artístico é
aquela que melhor explicita, no âmbito da experiência sensível, a retomada do teor de
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verdade que a razão pode alcançar a partir da assunção, em si mesma, do outro como
determinante de sua identidade em termos de sua percepção do tempo histórico. Assim, a
construção da dialética histórica da alteridade que perseguimos é feita, esquematicamente,
em quatro passos que relacionam os seguintes conceitos: imagem/mímesis/consciência,
abstração/racionalidade/sujeito,
imagem/filosofia/verdade
e
tempo/sublime/arte/história.
De todo esses conceitos, o de mímesis é o que configura, em termos mais
gerais, a âncora analítica para elucidar a noção de alteridade em sua demárche dialética. Ele
constitui o fio condutor de todos os capítulos, seja como tema principal, seja como aquilo
que foi recalcado, seja como o que aponta para a superação dos impasses a que se chega
por seu recalque. É devido a essa presença que se explica o subtítulo de nossa tese.
Dada a importância desse conceito, o primeiro capítulo incumbe-se de
mostrar como se pode conceber a origem da consciência e do conhecimento em geral a
partir do comportamento mimético. Como nossa abordagem tem um viés nitidamente
histórico, procuramos delinear, nessa primeira parte, a genealogia da cultura a partir de
suas primeiras manifestações mais rudimentares, caminhando em um crescendo de
sofisticação e de complexidade até alcançarmos as formas mais elaboradas de saber. As
noções auxiliares mais importantes para isso são as de imagem e de abstração, que,
contrapondo-se em diversos graus e maneiras, permitem-nos perceber a dinâmica
inicialmente não-resolvida de aproximação e de distanciamento entre o eu e o outro. O
que caracterizará de modo pregnante nossas considerações nesse primeiro capítulo será
precisamente a irresolubilidade entre identidade e diferença. Esse capítulo está dividido
em três partes: a primeira é uma abordagem preliminar, em que expomos as dificuldades
que a tradição interpretativa dos textos de Adorno coloca quanto à valoração do uso que
o autor faz desse conceito, partindo, então, para o delineamento sumário dos conceitos de
imagem e de abstração que servem de pano de fundo, não apenas para esse capítulo, mas,
também, para os demais. A segunda parte trata propriamente dos conceitos de mimetismo
e de mímesis, sem especificar alguma forma culturalmente estabelecida em que eles sejam
pensados. A terceira parte procura mostrar como a mímesis já pode ser vista como
sedimento cognitivo na relação do homem com o mundo, através do preanimismo, da
magia e do mito. Procuramos, nesse capítulo como um todo, evitar as indefinições
conceituais que invariavelmente podem ser vistas nos comentários sobre o conceito de
mímesis em Adorno. Podemos considerar como nossa principal tarefa precisamente
estabelecer, com a maior clareza possível, a distinção entre todos os termos que citamos:
mimetismo, mímesis, preanimismo, magia e mito. Precisamos dessa clareza de distinção
para prosseguir com o argumento do próximo capítulo, que trata da negação da mímesis.
Esse novo tema é marcado pela consideração da racionalidade ocidental,
considerando como seu elemento mais próprio a construção do ideal de autonomia da
unidade da consciência socialmente fundada através da razão. Se no primeiro capítulo
procuramos perceber o duplo movimento de aproximação e de distanciamento entre
sujeito e objeto, aqui procuramos ver como se deu o processo de construção do sujeito a
partir do recalque do comportamento mimético, da ambigüidade fundamental deste
último em termos da presença, no sujeito, daquilo que é próprio de seu outro. Nesse
capítulo, o peso da coletividade vai se mostrar precisamente no tocante ao processo de
unificação do espírito e da natureza a partir de relações de poder estruturadas segundo a
noção de progresso. A unidade do ego é pensada a partir da unidade coletiva, e ambas
estão calcadas na premência de domínio do outro, representado pelos ímpetos pulsionais
internos, pela natureza externa ou pelo semelhante. Se a noção de mímesis é a base para o
primeiro capítulo, este agora apóia-se na de abstração, que inclui precisamente a idéia de
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separação, e que é a base para a primeira parte desse capítulo, que se inicia com a pesquisa
da pertinência desse conceito para entender-se a especificidade da razão ocidental,
passando para a análise de seu vínculo com o exercício do poder. Em seguida
investigamos aquilo que é o fio condutor para se entender como um todo o processo de
racionalização que chamamos de esclarecimento, que é a positividade da ciência moderna
matematizada, a qual culmina em sua interpretação pelo positivismo lógico. A parte final
faz a análise do surgimento do sujeito moderno a partir da Odisséia de Homero, tal como
o interpretam Adorno e Horkheimer. O fechamento do capítulo dá-se com a
consideração sobre o retorno violento da alteridade oprimida no contexto de
coletivização radical do mundo. Em todos esses momentos, a abstração acentua-se até o
paroxismo da total injunção do espírito e de seu outro, precisamente devido ao fato de
que, de tão isolado daquilo que lhe é diferente, o espírito não tem mais como se perceber
como outro do que lhe é diferente. Não é por acaso que Hegel deu o nome de negação
abstrata àquela que se estabelece como um processo de violência contra o que é diferente,
heterogêneo. Essa idéia, tal como Adorno a interpreta, é de suma importância em toda a
argumentação dessa segunda parte. Ela estabelece a contraparte do que seja uma relação
verdadeira com a alteridade, que se baseia, tanto para Hegel, quanto para Adorno, na idéia
de negação determinada, que é o tema inicial do terceiro capítulo.
Esse último tem como tema precisamente a possibilidade de ultrapassagem
das aporias que uma racionalidade solipsista coloca para se compreender de outro modo a
relação para com a alteridade. A idéia base que seguiremos é a de que o próprio
pensamento é que deve se incumbir de retirar de si seu teor de falsidade, através de um
processo radicalmente reflexivo. Isso inclui a vinculação de duas idéias fundamentais: a
assunção da alteridade no próprio pensamento e a percepção da historicidade imanente a
ele. Se a mímesis aponta para uma relação de ambigüidade não-resolvida entre sujeito e
objeto, que se colocam em uma relação de interdependência recíproca, a verdade sobre a
relação entre espírito e natureza deve fazer justiça a esse relacionamento, o que significa
compreender a dimensão mimética da própria razão. Para cumprir essa tarefa expositiva,
o capítulo tem três partes: a relação entre imagem e conceito, a noção de ideologia e a
verdade do pensamento filosófico. A primeira fala da interdição logocêntrica em relação à
positividade da imagem, ao seu poder de sedução, de desvio. A segunda investiga o
conceito de ideologia, no qual falamos sobre a opacidade constitutiva, para o pensamento,
em relação à sua verdade como determinado por aquilo que se lhe contrapõe. A última
parte é o ápice da argumentação, em que procuramos ver como Adorno concebe o
movimento de desfalsificação do pensar executado por si mesmo, em um processo de
negação dialética essencialmente crítico, sem a positividade da suprassunção hegeliana
rumo a um saber absoluto. Essa demárche autocrítica expõe algo importante, que é o
caráter anistórico do pensamento solipsista, enredado numa auto-identidade isenta das
flutuações temporais da matéria do objeto do pensar. Nesse ponto, a nossa idéia
fundamental é: romper o solipsismo do espírito significa a assunção de seu caráter
histórico-temporal. Dada essa relação estreita entre alteridade, espírito e história, o
conceito de tempo se mostra fundamental para a auto-compreensão do sujeito, que é o
assunto do quarto capítulo.
Nessa última parte, começamos fazendo uma abordagem do que seja a
percepção temporal, desde seus primórdios na formação do conhecimento mimético, até
as concepções de Kant e de Hegel, passando pela especificidade da abstração grega e pela
famosa concepção de tempo como distensão da alma de Santo Agostinho. Nesse
momento, estamos interessados na vinculação entre a consciência e a percepção temporal,
a partir da noção de imagem, que sempre está presente ao longo de toda a nossa tese. É
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exatamente a vinculação entre alteridade, imagem e tempo histórico que será investigada
nas duas últimas partes desse capítulo, através do conceito de sublime em geral e, depois,
na arte. Nesse último item, trataremos da própria percepção do movimento histórico à luz
de vários conceitos tratados nos capítulo anteriores, fornecendo a culminação de todo o
esforço de se pensar uma relação de alteridade que não se afunde no solipsismo anistórico
da razão científica.
Em relação às obras que servem de apoio a nossos argumentos, a Dialética
do esclarecimento de Adorno e de Horkheimer, publicada em 1947, é a referência
fundamental para os dois primeiros capítulos.
Há que se esclarecer, inicialmente, o sentido geral de nossa apropriação
dessa obra. Não a tomamos como um objeto de estudo per se, uma vez que não nos
interessamos, por exemplo, pelo desenvolvimento teórico que desembocou em sua
realização, através da sociologia de Weber, da filosofia de Marx, da psicanálise de Freud,
dos escritos iniciais da Teoria Crítica, etc. Tomamos a Dialética de 1947 mais como ponto
de partida para nossas reflexões do que como ponto de chegada. Interessa-nos mais, por
exemplo, sua ligação futura com a Dialética negativa e com a Teoria estética de Adorno do
que seu caráter de resultado de um processo.
O objetivo primordial desse livro é o de “descobrir porque a humanidade,
em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma
nova espécie de barbárie” (DA 1/11). Trata-se de uma investigação propriamente
genealógica, que procura perceber as origens daquilo que foi sentido de modo tão
enfático pelos membros do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, todos eles judeus,
obrigados a emigrar para os EUA na época de ascensão de Hitler. O que os autores
querem descobrir é onde residiria o germe mais profundo que deu origem aos regimes
totalitários do nazi-fascismo. Parte-se da idéia de que estes não são um mero acidente de
percurso da racionalidade, mas, sim, o caso extremo de algo que desde sempre foi gestado
na história da racionalidade humana. Os autores querem tornar evidente o paroxismo
hiperbólico da vinculação entre o cume do desenvolvimento da razão e os horrores
estratosféricos do genocídio cinicamente cruel.
O tema dessa obra é propriamente a história do desenvolvimento da
racionalidade, desde os primeiros modos de relacionamento do homem com o mundo até
a contemporaneidade. Dada essa abrangência temporal, é evidente que não se trata de
uma abordagem que considere fase por fase, autor por autor, como que constituindo uma
macro-história das idéias, mas, sim, da explicitação de uma tese forte, colocada e
desenvolvida no primeiro capítulo do livro: o mito já continha elementos que o tornam
parte do processo de racionalização chamado de esclarecimento, e este, por sua vez,
conserva, funestamente, os traços mitológicos de sua origem. Ora, dizer que o mito já se
configura como racionalização supõe estender os limites do esclarecimento a um período
surpreendentemente anterior. (Um dos nossos temas do segundo capítulo será
precisamente questionar até que ponto se pode, legitimamente, deslocar o começo do
esclarecimento.) Nessa primeira parte do livro, o vínculo entre o mito e a razão
esclarecida é visualizado nas grandes figuras do desenrolar do pensamento: preanimismo,
magia, mito, epopéia, metafísica, ciência moderna e positivismo lógico.
O Excurso I procura perceber como essa imbricação de mito e de
esclarecimento pode ser pensada no surgimento da proto-forma do indivíduo burguês
através de uma leitura da Odisséia de Homero. O herói Ulisses, que, após a guerra de
Tróia, almeja voltar a Ítaca, passa por diversos perigos, por aventuras que constantemente
colocam à prova sua rigidez de caráter e sua determinação. A ipseidade do sujeito
moderno já está lançada, segundo Adorno e Horkheimer, nessa construção solipsista de
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um eu que deve negar tudo o que se opõe à sua idéia preestabelecida de retorno ao solo
pátrio e a seus bens e propriedades. Essa temática será analisada também no segundo
capítulo de nossa tese.
O Excurso II, que trata sobre a moral esclarecida, e o capítulo sobre a
indústria cultural não serão analisados por nós aqui, pois serão ser alvo de estudos
posteriores.
O capítulo sobre os “elementos do anti-semitismo” será referido por nós
em uma de suas passagens — no item V — em que Adorno explicita, de modo mais
enfático do que em toda a sua obra restante, o conceito de mímesis. Apesar de
relativamente pequena, essa passagem é a que forneceu os subsídios para que
construíssemos todo o primeiro capítulo de nosso texto.
Os fragmentos posteriores também possuem algumas passagens a que nos
referiremos em determinados itens de nossa tese.
Apesar de toda a abrangência, do vigor interpretativo e da importância que
este livro alcançou na filosofia da segunda metade do século XX, ele foi alvo de inúmeras
controvérsias e de infindáveis críticas. Muito se falou do influxo que as condições
históricas da Segunda Guerra Mundial tiveram sobre essa obra conjunta dos mais
proeminentes autores da Teoria Crítica. Hoje, para nós, que vivemos em sociedades cujo
controle político dito democrático diferencia-se substancialmente da opressão diretamente
realizada pelo nazi-fascismo, a idéia de dominação, de senhorio, de repressão, de poder,
etc., tal como Adorno e Horkheimer expõem, poderia ser facilmente vista como
ultrapassada — o que até mesmo os autores, no prefácio da edição de 1969, vinte e um
anos após a primeira edição, compartilham em certa medida: “O livro foi redigido num
momento em que já se podia enxergar o fim do terror nacional-socialista. Mas não são
poucas as passagens em que a formulação não é mais adequada à realidade atual” (DA
IX/09). E como eles retomaram o que havia sido escrito? “Quanto às alterações, fomos
muito mais parcimoniosos do que o costume na reedição de livros publicados há mais de
uma década. Não queríamos retocar o que havíamos escrito, nem mesmo as passagens
manifestamente inadequadas. Atualizar todo o texto teria significado nada menos do que
um novo livro” (DA X/10). Apesar dessa reticência em relação à atualidade do texto, eles
dizem que
o desenvolvimento que diagnosticamos neste livro em direção à integração total está suspenso,
mas não extinto2 ; ele ameaça se completar através de ditaduras e de guerras. O prognóstico da
conversão correlata do esclarecimento no positivismo, o mito dos fatos, finalmente a identidade da
inteligência e da hostilidade ao espírito encontraram uma confirmação avassaladora. (DA X/10;
tradução modificada)
Como dissemos, o nazi-fascismo não deve, segundo os autores, ser tomado
como algo sui generis, diferente de modo radical de todos os produtos do espírito humano,
mas, sim, como uma forma específica de realização de um processo de constituição da
sociedade que tem seus princípios vigentes mesmo nas sociedades ditas democráticas.
Podemos dizer que a era do fascismo não foi superada, pois seus pressupostos ainda
vigem na sociedade atual. É preciso considerar, segundo pensamos, quais são esses
2 Aqui modificamos a tradução de Guido de Almeida. Os autores dizem que o processo a que se referem está
unterbrochen, não abgebrochen. Guido traduz a primeira palavra por “suspenso” e a segunda, por “interrompido”. Essa
segunda tradução, apesar de não ser errada, não é boa, pois, em português, “interromper” tem, segundo o dicionário
Aurélio, o significado de “fazer parar por algum tempo; romper ou suspender a continuidade de”, “deixar de fazer
temporariamente”, embora tenha também o significado de “fazer cessar; destruir, extinguir”. Para deixar clara a
intenção do autor, optamos por traduzir “abbrechen” por “extinguir”.
12
pressupostos de modo mais radical possível. A nossa tese é a de que os fundamentos da
estrutura social que deram origem aos regimes totalitários subsistem na sociedade como
os princípios mais primordiais que alimentam a experiência do indivíduo com o mundo.
O que mais irrita os comentadores da Dialética do esclarecimento é o fato de
suas análises parecerem levar a um sentimento radicalmente negativo em relação ao
conceito de razão tout court. Tal é a crítica de Habermas, que poderia ser sintetizada em
duas idéias: 1) Os autores da Dialética, identificando o conceito de razão ao de
racionalidade instrumental, tornam sem saída, aporético, o processo de pensar a
possibilidade de emancipação. Se toda a forma de racionalidade está corrompida pela
herança mítica da identificação infinitamente repetida, como pensar a possibilidade de
emancipação? A Dialética do esclarecimento levaria, assim, a um pessimismo absoluto em
relação a um possível potencial emancipatório inerente à razão:
[Adorno e Horkheimer] aprofundaram tanto sua crítica do esclarecimento, que o próprio projeto do
esclarecimento corre perigo; a Dialética do esclarecimento dificilmente deixa entrever uma saída para o
mito da racionalidade orientada a fins que se concretizou na violência objetificada. 3
2) Por outro lado, dada essa contaminação da razão enquanto tal pela
inverdade mítica, o próprio discurso de Adorno e de Horkheimer estaria contaminado
por ela, ou seja, eles incorreriam em uma contradição performativa, pois se valem daquilo
que criticam fervorosamente. A Dialética do esclarecimento “autonomiza a crítica até mesmo
perante seus próprios fundamentos” 4.
Para responder a essa e a outras críticas, é preciso considerar, de modo
bastante claro, qual é o escopo mais primordial do texto em questão. Os autores dizem,
explicitamente, que sua análise deveria “preparar um conceito positivo do esclarecimento,
que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega” (DA 6/15), ou seja, não
se trata, segundo essa passagem explicita, de uma tarefa apenas crítico-negativa.
Entretanto, é evidente que os autores não se dedicaram a estabelecer tal conceito
“positivo” de esclarecimento. O que eles realmente fizeram foi executar uma crítica feroz
à racionalidade ocidental, pretendendo perceber, em qualquer de suas manifestações, a
instrumentalização do pensamento como algo próprio de sua estrutura mais íntima. O
texto como um todo tem, portanto, como seu sentido mais essencial, a execução de um
projeto eminentemente negativo: mostrar o que, na racionalidade tout court, levou à
catástrofe do nazismo. Ora, se é esse o verdadeiro sentido dessa obra, seria de se esperar
que os autores se detivessem naquilo que constitui o conteúdo de verdade da experiência
burguesa de vida? Seu olhar estava dirigido substancialmente para os fundamentos
filosóficos que levaram a sociedade ao estado de negação planetária do homem como ser
vivo. Destarte, o livro de 1947 é tachado por vários autores de unilateral, de pessimista, de
aporético. Vejamos a consideração crítica de Norbert Bolz em relação à concepção
histórica desse texto:
Problemático na Dialética do esclarecimento não é a super-pregnância de suas percep ções, mas, sim, a
homogeneização da história em um curso do mundo infeliz: ‘de Homero à modernidade’. O modo
de ser burguês é expressamente tão pré-datado, que (…) a história mundial parece estar
suprassumida, sem resto, no esclarecimento.5
3 Jürgen Habermas. “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung”. In: Philosophische Discurs der Moderne. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1985, p.138.
4 Jürgen Habermas. “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung”. In: op. cit., p.141.
5 Norbert Bolz. “Das Selbst und sein Preis”. In: Willem van Reijen & Gunzelin S. Noerr Verizig Jahre Flaschenpost:
“Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987, p.111.
13
Se se perguntasse aos autores, quando escreviam a Dialética do esclarecimento,
se eles pensavam que tudo no mundo sempre obedeceu somente ao curso do esclarecimento
de recaída na coerção mítica, o que eles responderiam? Naturalmente que não. Ora, não se
tem no livro uma descrição exaustiva da história universal. Não se trata de um “totalitarismo
de esquerda”, como Bolz diz, concordando com Habermas, mas, sim, de uma
interpretação da dinâmica mais profunda do desenvolvimento do processo de
constituição da civilização ocidental. Os autores dizem que a história obedece, em um
nível macro, a esse desenvolvimento, mas, evidentemente, não concordariam que o livro
pretendesse dizer que se trata de uma “descrição explicativa” da totalidade dos
acontecimentos que se deram no planeta. Consideramos essa leitura da Dialética do
esclarecimento de uma ingenuidade carregada de má-fé.
Para sustentar sua idéia, Bolz cita a passagem: “o burguês, nas sucessivas
formas do senhor de escravos, empresário livre e administrador, é o sujeito lógico do
esclarecimento” (DA 89/83). Duas coisas: os autores diriam que somente existe esse tipo
de pessoas? – e que em todo administrador somente existe o sujeito lógico do
esclarecimento? Em vez disso, trata-se do conceito de empresário livre, ou outro, que é
conforme à noção hermenêutica, interpretativa, “sujeito lógico do esclarecimento”, a qual
é um elemento analítico que nos permite perceber a lei de movimento da civilização
burguesa, que já se prefigurava no tempo da constituição da Grécia antiga como sociedade
patriarcal, regida pelo mito, o qual recebe uma configuração nova na epopéia. Esse
conceito “sujeito lógico do esclarecimento” não descreve, nem pretende descrever, a
totalidade da subjetividade do homem ocidental — sob pena de transformar o livro em
uma imbecilidade sem tamanho —, mas apenas interpretar o sentido geral que esteve presente
como linha mestra no desenvolvimento macro da civilização, de modo a satisfazer aquela
tarefa mais primordial de encontrar os fundamentos funestos da imersão da humanidade na
barbárie. Problemática é, portanto, não a assimilação generalizada que os autores fariam
do sujeito à dialética do esclarecimento como um todo, mas, sim, a leitura superficial que
se faz de sua intenção.
O texto de 1947 está voltado eminentemente para sua tarefa genealógica do
elemento de falsidade do todo social e do pensamento, presente nas formas de
experiência do indivíduo com o mundo, e deve ser avaliado em relação a essa proposta. Para
responder, inicialmente, à crítica de pessimismo levantada por Habermas, poderíamos
perguntar, de uma maneira irônica, em que lugar está escrito, com autoridade irrefutável,
que todo texto que aponte para a falsidade do real tem que mostrar, ao mesmo tempo, o
que há de verdadeiro neste? Por que o valor de um texto não pode consistir precisamente
em apontar o que há de falso na realidade?
Mas, por outro lado — e talvez isso seja o mais importante no âmbito da
exegese do texto em questão —, há que se considerar, também, uma retórica presente nos
textos adornianos, que é o de dizer de modo hiperbólico, generalizado, o que poderia ser
dito de modo mais “razoável” a nossos olhos. Este é um (ab)uso consciente da amplitude
hiperbólica dos conceitos, que nos solicita que travemos um diálogo com o próprio texto,
e não apenas vejamos nele o que poderíamos ter posto em suas linhas. Este espaço entre a
factualidade do real e o pensamento que pretende alcançá-lo é algo que conta de modo
efetivamente válido para a verdade das idéias:
É apenas na distância em relação à vida que se desenvolve a vida do pensamento que realmente
atinge a vida empírica. Enquanto o pensamento se refere aos fatos e se move na crítica a eles, ele
não se move menos graças à diferença mantida. Ele exprime com exatidão o que é, pelo fato
mesmo de que o que é nunca é inteiramente tal qual o pensamento o exprime. A ele é essencial um
elemento de exagero, que o impele para além das coisas e o faz desembaraçar-se do peso do
factual, graças ao que, em vez de apenas reproduzir o ser, co nsuma de maneira rigorosa e livre a
determinação deste último. (MM §82, p.110)
14
O exagero é, assim, algo programático no pensamento de Adorno. Nesse
auto-reconhecimento de inadequação frente ao seu objeto, o pensar se dá conta como um
jogo, que visa, não uma repetição do real pura e simplesmente, mas, sim, uma interpretação
dele. Adorno nega a pretensa transparência do discurso que quer alcançar a realidade em
sua clareza absoluta: “pois o conhecimento se dá numa rede onde se entrelaçam prejuízos,
intuições, inervações, autocorreções, antecipações e exageros, em poucas palavras, na
experiência, que é densa, fundada, mas de modo algum transparente em todos os seus
pontos” (MM §50, p.69). No extremo de sua dialética negativa, Adorno chega a dizer:
“Verdadeiros são apenas aqueles pensamentos que não compreendem a si mesmos” (MM
§122, p.168). Por outro lado, esse desligamento com a factualidade do mundo não deve
ser hipostasiado como algo bom em si mesmo, como se fornecesse ao pensamento uma
liberdade absoluta, na qual pudesse estabelecer uma verdade para si independente do
objeto:
Se (…) ele pretextasse a distância como um privilégio, não se sairia melhor, mas proclamaria dois
tipos de verdade, a dos fatos e a dos conceitos. Isso dissolveria a própria verdade e denunciaria o
pensamento mais ainda. A distância não é nenhuma zona de segurança, e sim um campo de
tensões. Ela não se manifesta tanto no relaxamento da pretensão de verdade dos conceitos, quanto
na delicadeza e na fragilidade com que se pensa. (MM §82, p.111)
Uma questão a mais que se coloca à Dialética do esclarecimento é sua inserção
na obra adorniana como um todo. Os comentadores não se satisfazem em criticá-la
mordazmente pelas próprias idéias expostas, mas, também, de acordo com o que eles
vêem como sendo algo precário em relação aos desenvolvimentos conceituais ulteriores do
pensamento de Adorno.
Comparando a Dialética do esclarecimento com a Dialética negativa, cremos — ao
contrário de Habermas — que esta última possui um Leitmotiv essencialmente diferente.
Aqui, Adorno estava interessado em propor uma consciência filosófica, não apenas do
que é falso no real e no pensamento, mas, também, daquilo que poderia ultrapassá-la.
Toda a parte intermediária desse texto, “Dialética negativa. Conceitos e categorias”, pode
ser lida como a tentativa enfática de conceber a estrutura constelatória do pensamento
filosófico que faria com que pudéssemos vislumbrar, como negação determinada da
falsidade do pensamento, o que aponta para além da racionalidade imperante no mundo
falso. Se não se leva em conta claramente o sentido filosófico geral das duas Dialéticas, a
primeira sempre irá parecer um esboço mal feito e equivocado do que Adorno escreveu
posteriormente, como é vista por vários comentadores, entre os quais se situa Klaus
Baum, que diz: “em comparação à Dialética negativa, a Dialética do esclarecimento aparece
como uma imagem profusa de conceitualidade cambiante, que somente poderia ser
tornada transparente pelo espírito do absoluto, ao qual a totalidade está sempre
presente”6. Ao se referir à relação entre os dois livros, Marcos Nobre, embora diga que
pretenda, no fim das contas, “apontar para rupturas ou fissuras num quadro geral em que
predomina a continuidade”7, salienta visivelmente o aspecto de discontinuidade. Após citar a
passagem do prefácio da Dialética do esclarecimento em que os autores dizem da necessidade
de reescrever todo o livro se quisessem atualizar todo o texto, conclui “que toda e
qualquer referência à Dialética do esclarecimento para explicar a obra posterior de Adorno (ou
6 Klaus Baum. Die Transzendierung des Mythos. Zur Philosophie und Aeshetik Schellings und Adornos. Würzburg:
Königshausen & Newman, 1988, p.73.
7 Marcos Nobre. A Dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminuras, 1998, p.16.
15
de Horkheimer) tem de ser tomada cum grano salis, respeitando as limitações” indicadas por
ele.8
Marcos Nobre, embora se qualifique como contrário à corrente majoritária
dos intérpretes adornianos, os quais partilhariam do que ele chama de “paradigma da
Dialética do esclarecimento”, em que esta é vista como fundamento histórico-filosófico da
obra tardia de Adorno, na verdade coloca-se como partidário de toda a gama de críticos
— particularmente centrados na crítica de Habermas a Adorno, como já apontamos
acima — de que a Dialética do esclarecimento é excessivamente homogeneizante em sua
consideração da história. Diz ele:
Acredito que a maneira mais simples de esterilizar o pensamento de Adorno é estabelecer — com
uma pretensa base na Dialética do esclarecimento — uma continuidade entre os diversos modos de
produção que ignora o fato de que a legitimação da dominação “tradicional”, “vinda de cima” foi
posta de lado sob o capitalismo. Só considerando a ruptura podemos compreender corretamente a
pergunta “por que a emancipação não se deu e continua a não se dar”, bem como o olhar histórico
alegórico que a acompanha e a proibição de sondar o futuro. 9
Ora, é preciso considerar, em relação ao advento do capitalismo, não
apenas a sua ruptura — que, evidentemente, é enorme — como, também, o que há de
continuidade em relação ao processo de racionalização do ocidente que começou a
ocorrer bem antes. A homogeneidade da massa do trabalho sob o princípio da livre troca
de mercadorias, em que o próprio trabalho converteu-se em uma delas, deve poder ser
pensada a partir de uma matriz cultural mais primitiva, da qual seria um desdobramento,
ao mesmo tempo em que funda uma ruptura qualitativa na experiência do indivíduo
consigo mesmo, com a natureza e com o outro. Ou seja, para pensarmos a ruptura
qualitativa do capitalismo é preciso pensar, também, o que há de continuidade com as
formas culturais antecedentes. Ou se poderia dizer que o capitalismo é algo absolutamente
original? É evidente que não. Se queremos pesquisar o fenômeno do capitalismo em sua
totalidade diacrônica, é preciso pensar, então, tanto a continuidade, quanto a diferença.
Como vamos ver no segundo capítulo, os autores não elidiram pura e simplesmente a
distinção qualitativa do capitalismo frente a outras formas de sociedade. Mas novamente
dizemos: o objetivo da Dialética do esclarecimento é o de pesquisar fundamentalmente o primeiro
aspecto, de fazer uma genealogia da recaída do humano na barbárie. Que haja vários
comentadores que negligenciam o aspecto da distinção qualitativa entre formas pré- e
propriamente capitalistas apoiando-se no livro de 1947, isso não pode ser visto como o
pecado original do livro, do qual emanariam os erros em relação à própria realidade, mas,
sim, como um erro de leitura, pois esse equívoco baseia-se, do mesmo modo que em
Marcos Nobre, num descuidado em relação àquilo que deve fazer toda crítica de um
texto: avaliá-lo de acordo com os objetivos que iluminam o sentido da construção do
texto.
A Dialética do esclarecimento é, sim, segundo pensamos, extremamente
profícua para estudarmos o pensamento de Adorno, desde que compreendida a partir dos
objetivos a que ela se propõe. Uma vez considerados os limites colocados pelo projeto
geral dos autores, esse pode ser avaliado de modo mais sóbrio, tendo muito mais chance
de ser assumido como válido, porque deixa de ser alvo de um mero preconceito
metodológico de leitura irrefletido. Simplificando enormemente, com fins didáticos,
podemos dizer que as formulações filosóficas crítico-negativas do texto de 1947 são, via
8 Marcos Nobre. Op. cit., p.32-3.
9 Marcos Nobre. Op. cit., p.50.
16
de regra, corroboradas pela Dialética negativa, ao passo que essa, além de expandir seu
campo de análise e de não tematizar alguns assuntos tratados naquele, incorpora reflexões
de modo a perceber o elemento de verdade no real e no pensamento, ou seja, aquilo que
ultrapassa o estado atual de negação do humano. Apesar dessa distinção inicial, podemos
ver que já a Dialética do esclarecimento coloca um elemento forte como aquilo que poderia ser
uma superação da racionalidade instrumentalizada: a idéia de uma “rememoração da
natureza no sujeito”, que será explicitada em detalhes no terceiro capítulo. Essa idéia,
vinculada ao processo de reflexão do esclarecimento sobre seus pressupostos históricos,
entretanto, não foi desenvolvida pelos autores naquele texto. Ela poderia ser mais bem
compreendida, em termos de sua explicitação, na Dialética de 1966. Naturalmente, é
inviável demonstrar de maneira cabal essa tese da continuidade entre a primeira e a
segunda Dialéticas de Adorno, mesmo porque esse não é o tema dessa tese, mas, sim, a
alteridade dialeticamente considerada — motivo pelo qual não se discutiu a relação entre
os textos de 1947 e de 1966. A Dialética negativa é invocada em diversas passagens como
apoio para nossa leitura da obra conjunta de Adorno e de Horkheimer. Mas há vários
comentadores que partilham da idéia de uma continuidade entre os textos, como por
exemplo Albrecht Wellmer: “no que concerne a Adorno, é surpreendente a continuidade
de seu pensamento, dos primeiros trabalhos frankfurtianos sobre filosofia e sobre
sociologia da música até suas obras tardias, a Dialética negativa e a Teoria estética” 10.
As críticas que levantamos acima afetam, e muito, o conceito de mímesis, que
é aquele que serve de guia mais geral para todos os nossos argumentos. Nesse aspecto, o
grande mal-estar em relação à Dialética do esclarecimento reside na idéia de que, como diz
Marcos Nobre,
se se pudesse determinar o “continuum da violência e da dominação” que caracteriza a Dialética do
esclarecimento como a base explicativa da filosofia de Adorno, teríamos simplesmente um sistema às
avessas, uma absolutização da razão instrumental em que o não-instrumental só encontraria seu
lugar unicamente na mímesis, na total extraterritorialidade frente à dominação sistêmica, quando,
ao contrário, já sabemos que a invasão do não-imanente ao sistema pertence também à dialética
imanente. 11
A expressão “unicamente na mímesis” mostra uma inquietude fundamental
de vários comentadores com tal conceito em Adorno, principalmente ao tratar dele na
Dialética do esclarecimento. Dada aquela abordagem de leitura indevida de cobrar do texto o
que ele não se propõe prioritariamente a fornecer, aquele conceito acaba sempre sendo
tomado pejorativamente como escape a um mundo sombrio ao qual não haveria
alternativa. Segundo pensamos, esse conceito tem sua validade no pensamento de
Adorno, não apenas na Dialética de 1947 ou na Teoria estética, mas na própria idéia de uma
dialética negativa, que se pensa como reflexão sobre a não-identidade entre conceito e
objeto, na medida em que o movimento de aproximação entre tais pólos pode ser
concebido sob o pano de fundo mais geral de uma relação mimética entre eles. Trata-se
da superação da ipseidade conceitual através da consideração de sua alteridade. Como diz
Wellmer, “na Dialética negativa, Adorno tentou caracterizar esta ultrapassagem do conceito
como sendo a admissão de um momento ‘mimético’ no pensamento conceitual” 12. Ora,
para mostrar que todo o desenvolvimento conceitual da Dialética negativa poderia ser
10 Allbrecht Wellmer. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1985, p.139.
11 Marcos Nobre. Op. cit., p.179.
12 Allbrecht Wellmer. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1981, p.153.
17
pensado em termos miméticos, seria importante mostrar que a mímesis não é um
“potencial contrafático, pré-histórico”13, mas pode ser concebida em termos da
historicidade imanente ao processo de constituição da experiência. Esse é o tema principal
do terceiro capítulo de nossa tese, que se serve precisamente de alguns dos
desenvolvimentos conceituais da Dialética negativa.
Entretanto, algo do que todas essas críticas apontam em relação à Dialética
do esclarecimento tem seu conteúdo de verdade. Se lermos adequadamente o que significa
esse continuum de violência e de dominação de que fala Marcos Nobre, podemos desnudar
uma idéia no texto de 1947 que é de suma importância para a determinação dos conceitos
de mímesis e de ideologia. A bem dizer, o vínculo entre esclarecimento e dominação é o
alvo da principal tese interpretativa que expomos no segundo capítulo. Mas essa nossa
análise é imanente e respeita as limitações da intenção crítico-negativa que o texto possui.
Resumindo drasticamente o que dissemos até agora e avançando um pouco,
diríamos que o tema mais amplo de nosso texto é o de estabelecer os contornos a partir
dos quais é possível pensar filosófica- e dialeticamente a relação entre a constituição do eu
no ocidente e tudo aquilo que é posto — ou está — fora da esfera dessa identidade,
principalmente através do conceito de mímesis. A tese maior de nosso texto, por sua vez,
reside, em primeiro lugar, na idéia de que a negação da mímesis pela abstração do
pensamento foi a origem da racionalidade ocidental denominada esclarecimento, que, ao
mesmo tempo em que propiciou as condições para a emergência do sujeito, enredou-o
em um solipsismo que obscurece a sua percepção da historicidade imanente ao real; em
segundo lugar, na idéia de que é através do processo reflexivo radicalmente crítico do
pensamento sobre si mesmo que este pode desfazer-se de sua inverdade, momento em
que a ruptura de seu solipsismo vincula-se a uma forma de percepção da dimensão da
temporalidade histórica — tanto no âmbito do pensamento, quanto no da experiência
concreta —, que deve poder ser pensada como a via pela qual é possível localizar
teoricamente a dimensão de alteridade constitutiva do sujeito, visualizável na experiência
estética do sublime, particularmente na arte moderna.
Para efetivar integralmente a explicitação dessa tese, precisamos recorrer,
no último capítulo, à Teoria estética, em que Adorno faz uma brilhante e abrangente
reflexão filosófica sobre o fenômeno da arte. Não perguntaremos por todas as
características mais relevantes da estética adorniana, mas, sim, somente por aquelas que se
situam no rol das determinações da dimensão de alteridade e de história, que agruparemos
sob o conceito de sublime. Pretendemos, em sentido mais estrito, fornecer, a partir dos
argumentos desse livro, um conceito de sublime artístico vinculado à dimensão temporal
e histórica da percepção.
Além da Dialética do esclarecimento, da Dialética negativa e da Teoria estética,
foram usados por nós também a Minima Moralia e Palavras e sinais. Modelos críticos 2,
principalmente os artigos “Progresso” e “Sobre sujeito e objeto”. Esses textos fornecem
auxílio na construção de vários argumentos, sem que tenham sido alvo de análise
específica.
13 Ulrich Rödel, Günther Frankenberg e Helmut Dubiel. Die demokratische Frage. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989,
p.158. Apud Marcos Nobre. A Dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminuras,
1998, p.184.
18
Capítulo I
Mímesis como forma de conhecimento
1. As dificuldades do conceito de mímesis
Antes de falar propriamente da relação mimética com o mundo, seria bom
salientar o enorme mal-estar causado nos leitores de Adorno pelo uso que ele faz desse
conceito. O tom geral que se produz em termos de receptividade é, salvo raras exceções,
que tal noção é por demais imprecisa, vacilante, à qual o autor faz referência em várias
circunstâncias, sem que, no entanto, se tenha um solo seguro a partir do qual se pudesse
saber o que, afinal de contas, ela quer dizer. Alo Allkemper diz explicitamente: “o
conceito de mímesis em Adorno é vago e impreciso”14. Uma posição agudamente crítica é
a de Jürgen Habermas, que via na mímesis adorniana algo que estaria no lugar de uma
concepção de racionalidade positiva:
Como substituto para essa razão primordial que foi desviada da intenção da verdade, Adorno e
Horkheimer nomeiam uma capacidade, a mímesis, à qual eles só podem se referir como a um
fragmento de natureza incompreendida. Eles caracterizaram a capacidade mimética, na qual uma
natureza instrumentalizada faz sua acusação muda, como um ‘impulso’. O paradoxo no qual o
crítico da razão instrumental está enredado, e que resiste tenazmente mesmo à mais dócil dialética,
consiste portanto nisto: Adorno e Horkheimer teriam de elaborar uma teoria da mímesis, a qual,
segundo suas próprias idéias, é impossível. 15
Fredric Jameson chega a ter uma posição até mesmo algo sarcástica, ou no
mínimo irônica em relação à noção de mímesis em Adorno:
um conceito fundacional jamais definido nem defendido, mas sempre referido, por nome, como se
houvesse preexistido a todos os textos (…). É como se (…) um tipo de nostalgia fundacional reprimida
forçasse o seu ressurgimento em seus escritos por ni termédio desses termos mágicos, que são
evocados para explicar tudo, sem, por sua vez, serem explicados, até que, com o tempo,
ficássemos persuadidos de que eles não poderiam jamais ser explicados ou fundamentados, e
assinalam a raiz de alguma obsessão arcaica privada, como nos “Ur-sons” e nomes dos grandes
poetas modernos.16
De onde viria esse incômodo compartilhado por inúmeros comentadores e
críticos de Adorno? Cremos que o principal motivo está na qualificação do
comportamento mimético como pré-conceitual, ou seja, a mímesis seria uma forma de
relacionamento com o mundo em que a mediação pelo conceito ainda não existe ou é
suprassumida. Mas como pensar, conceitualmente, algo que é, a rigor, não-conceitual, ou
seja, que escapa ao poder de compreensão dos conceitos? Dada essa a-conceitualidade da
mímesis, ela possui uma qualificação tripla: é pensada como um modo de conhecimento
que antecedeu a formação conceitual, indica um modo de regressão atual dessa última e
aponta para uma superação das mazelas da racionalidade fundada na onipotência do
conceito. Desse modo, a mímesis oscila, em termos de sua inserção contextual no
pensamento de Adorno, entre um modo rudimentar pré-histórico de conhecimento,
14 Alo Allkemper. Rettung und Utpopie. Studien zu Adorno. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1981, p.95.
15 Jürgen Habermas. The Theory of Communicative Action. Trad Thomas McCarthy. Boston, MA, 1984, vol. 1, p.382.
Citado por Fredric Jameson. Marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São
Paulo: Unesp & Boitempo Editorial, 1996, p.91.
16 Fredric Jameson. Marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo:
Unesp & Boitempo Editorial, 1996, p.90-1, grifos nossos.
19
passando pela colocação hiperbolicamente crítica da condição do pensamento reificado e
chegando a situar-se como “redenção” desse mesmo estado em uma concepção (negativa)
de utopia cognitiva!! Dado esse entrelaçamento de idéias tão díspares e, poder-se-ia
pensar, inconciliáveis, a dialética adorniana parece ter colocado, a vários de seus leitores,
obstáculos quase intransponíveis. Temos que reconhecer, por outro lado, que Adorno
não chegou a estabelecer uma conformação teórica de mímesis tão pormenorizada e
direta quanto o fez, por exemplo, em relação aos conceitos de sociedade, de razão
instrumental, de forma e de conteúdo da obra de arte, etc. O próprio autor reconheceu a
imprecisão desse conceito em sua obra.17 A crítica de Jameson de que “mímesis” seria
“um conceito fundacional jamais definido nem defendido, mas sempre referido, por
nome, como se houvesse preexistido a todos os textos” não é desprovida de fundamento,
pois essa noção é recorrente nos textos de Adorno, sem que se tenha um momento em
que seu significado teórico seja claramente delineado.
Não pretendemos, aqui, fazer o que o próprio Adorno não fez, ou seja,
fornecer uma teoria detalhada e completa do conceito de mímesis, principalmente pelo
fato de não nos determos em suas determinações presentes na Teoria estética, mas, pelo
menos, temos a intenção de fornecer alguns elementos teóricos concatenados de modo a
mostrar que é equivocada a idéia de Habermas de que é impossível uma teoria da mímesis.
Essa nossa atitude não é tomada pelos comentadores, pois eles se limitam a falar sobre esse
conceito tal como Adorno o usa, sem se preocuparem em arriscar um desenvolvimento
teórico do próprio conceito que foi deixado de lado pelos autores na Dialética do
esclarecimento. Além disso, vários intérpretes pecam por basearem sua análise em
considerações valorativas por demais genéricas, partindo de avaliações
prático-gnosiológicas que Adorno teria feito em relação ao comportamento mimético, em
vez de considerarem tal noção de um ponto de vista inicialmente isento de pejoratividade
ou de valorização positiva. A tentativa de estabelecer uma teoria que pretenda captar a
genealogia da representação mimética fica prejudicada por considerações desse tipo, das
quais a posição de Jean-Marie Gagnebin, seguindo Joseph Früchtl, é um exemplo:
“poderíamos afirmar que prevalece, no pensamento de Adorno (e de Horkheimer), na
época da Dialética do esclarecimento, uma certa condenação da mímesis, descrita antes de
tudo como um processo social de identificação perversa”18. Essa valorização negativa
somente tem sentido a partir da consideração da perversidade de formas sociais de leitura
do mundo e de integração sociais existentes na sociedade contemporânea, em que a
mímesis arcaica poderia ser rejeitada como uma falsa solução para as aporias do
conhecimento conceitual, e, por outro lado, considerando-se, como dissemos acima, que
o conhecimento reificado e algumas formas de organização sociais, como o nazi-fascismo,
apresentariam uma regressão mimética. É preciso fugir desse ponto de partida
apressadamente conclusivo em termos de valorização do comportamento mimético.
A tarefa teórica mais adequada em relação à noção de mímesis é a de
mostrar como ela se estabelece como substrato da formação da consciência humana. Assim, a
posição em que nos colocamos é radicalmente oposta à de Hauke Brunkhorst, que diz:
“O conceito de mímesis de Adorno não é nenhum esquema para construção teórica da
17 Theodor W. Adorno. Philosophische Terminologie I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p.83.
18 Jean-Marie Gagnebin. “Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”. In: Sete aulas sobre
linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.93.
20
autoconsciência e da autodeterminação, da identidade do Eu e da individualidade”.19 Essa
idéia do comentador somente seria verdadeira se a identidade subjetiva tivesse iniciado ab
ovo com a formação conceitual, ou seja, se não houvesse nada nas formas pré-conceituais
de relacionamento com o mundo que fornecesse elementos para essa construção. Como
procuraremos mostrar, o conceito de mímesis nos possibilita, sim, pensarmos, não
somente a pré-história da formação da consciência, mas, também, da constituição da
própria racionalidade, ou seja, a mímesis não somente é um passo para a construção da
identidade conceitualmente fundada, como a própria conceitualidade se estabelece
mimeticamente com o mundo. A afirmação de Brunkhorst está duplamente equivocada
de modo enfático.
Embora, como diz Martin Jay, o conceito de mímesis tenha diversas facetas,
como a zoológica, psicológica, antropológica e estética 20, por nossa parte, seguiremos uma
ênfase nitidamente gnosio- e antropológica. Devido a esse viés interpretativo, precisamos
investigar a genealogia do comportamento mimético, sendo necessário, inicialmente,
vermos quais pressupostos conceituais estão envolvidos nesse processo.
Para nossas reflexões, tomamos uma posição frontalmente contrária às
assertivas de Alo Allkemper de que “mímesis não é conhecimento [Erkenntnis]”, mas, sim,
uma “reação imediata” frente à natureza21. Essa posição de Allkemper parece ser
corroborada, em parte, pelo próprio Adorno, que, na Teoria estética, afirma que a interdição
da mímesis ao longo da história encontrou confirmação na própria arte, através da
“condenação da mímesis como um comportamento arcaico: que esta, praticada
imediatamente, não é conhecimento” (ÄT 169/131; tradução própria). Segundo Adorno,
a mímesis somente seria conhecimento na arte, uma vez que, nesse âmbito, há todo um
processo reflexivo de construção formal da obra, que retira a imediatidade da relação
mimética com o mundo, configurando o caráter de verdade e, assim, gnosiológico, para a
mímesis artística.
Ora, tal reação imediata é algo que poderíamos ligar ao conceito de
mimetismo, como veremos mais à frente. A idéia de absoluta imediatidade não seria,
segundo pensamos, totalmente adequada em relação à mímesis, strictu sensu, porque esta
deveria ser considerada como a própria mediação que se estabeleceu para que o homem
pudesse assimilar a realidade. Por isso, pode-se dizer que a mímesis é, sim, uma forma
cognitiva primeva. O que Adorno e seu comentador deveriam ter dito é que a mímesis não é
uma forma de conhecimento conceitual, e que não há mediação por conceitos na
representação mimética. A questão que se pode levantar é: seria possível falar-se de um
conhecimento em que não estivesse envolvida a mediação conceitual?
Para apoiar a idéia de que se pode responder sim a essa pergunta, façamos
uma distinção pormenorizada entre experiência, conhecimento e saber.
“Experiência” é uma palavra que deriva do prefixo grego ex- (para fora) e
do advérbio e preposição peri (em torno de, limite), derivado de peran (do outro lado, mais
além), afim ao substantivo peira (prova, experiência, ensaio; astúcia; intento de sedução (de
uma mulher)), que derivou o substantivo empeiria e o latim periculum (tentativa; perigo).
Todos esses estratos etimológicos mostram algo envolvido de modo explícito na palavra
19 Hauke Brunkhorst. “Die Welt als Beute. Rationalisierung und Vernunft in der Geschichte”. In: Willem van Reijen
& Gunzelin S. NOERR Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer,
1987, pp.178.
20 Martin Jay, Mimesis and Mimetology: Adorno and Lacoue-Labarthe. In: Tom Huhn & Lambert Zuidervaart (Org). The
semblance of subjectivity. Cambridge: MIT Press, 1997, p.31.
21 Alo Allkemper. Rettung und Utopie. Studien zu Adorno. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1981, p.96.
21
alemã correspondente, Erfahrung, tomada por Hegel em sua dimensão etimológica de
er-fahren (prefixo de reforço er-, mais o verbo fahren (viajar, passear, dirigir)), ou seja, a
ex-periência significaria propriamente o trânsito em relação a uma determinada realidade a
que se expõe em um movimento de: tentativa, ensaio, golpe, sedução, aliado à idéia de
perigo, de perda. Nesse âmbito, não entraria em jogo, propriamente, o que resulta dessa
exposição (embora, tanto no grego peira, quanto no português correspondente, haja o uso
associado a ela como significando “ter passado pela experiência”, mas que não é,
evidentemente, o significado mais original da palavra). “Conhecimento”, por sua vez, vem
do grego gnosis (conhecimento, noção; investigação, instrução judicial; relações de
amizade), derivado do verbo gignóska (aprender a conhecer; conhecer, reconhecer, saber;
julgar, pensar; decidir, resolver; ter relações íntimas com). Embora o dicionário de Isidro
Pereira, que é a fonte das consultas sobre as palavras gregas que estamos utilizando, não
explicite esta idéia, creio que poderíamos arriscar a tomar os últimos significados listados
para gignóska e para gnosis como exprimindo algo mais originário nelas, isto é, conhecer
estaria ligado, não apenas à ex-periência, à exposição a algo, mas, também, a uma qualidade
dela, qual seja, a de se ganhar uma intimidade com aquilo em relação ao qual nos expomos,
ou seja, gnosis incluiria uma qualificação de interioridade como resultado de um processo de
amadurecimento da ex-periência. O alemão Erkenntnis não possui ascendência etimológica
aparentada a essas noções; deriva do verbo kennen (conhecer), que se liga ao verbo können
(poder); ambos vêm do germânico *kannjan (fazer com que se saiba), que é derivado de
kunnan (faculdade intelectual, saber, compreender). Tomando a proximidade de kennen e
de können como significativa para a determinação do substantivo Erkenntnis, diríamos que
também aqui residiria uma qualificação afim à que demos de gnosis em relação à
ex-periência, ou seja, a de uma destreza, habilidade, na atividade de entrar em contado com
algo que se vê, que se pode fazer (note-se que Kunst (arte) deriva de können). “Saber”, por
outro lado, vem do latim sapere (ter paladar, julgamento; compreender, saber), algo ligado
à especificidade de ter passado pelos sentidos, que é também o caso de Wissen, no alemão,
que deriva do indogermânico *ueid- (ver, olhar), cujo passado é *uoida (eu vi, olhei, ou seja,
eu sei). Embora essas duas noções já apontem para a idéia de resultado de se ter entrado
em contado com o mundo através dos sentidos, são os verbos grego epístamai (saber, ser
capaz de; ser versado em, ser exercitado em; estar bem informado de, saber com certeza),
origem do substantivo epistéme, e o latim scire (saber), origem do substantivo scientia, que
mostram a idéia que queremos ressaltar: o saber estaria ligado a uma sedimentação, a uma
cristalização do conhecimento que obtemos para nós com a experiência que se faz com as coisas
como algo a ser utilizado. Ou seja, o saber inclui um elemento (em maior ou menor grau)
de reflexão, que não existe na experiência ou no conhecimento per se. Da experiência,
passando pelo conhecimento, até o saber, temos a interiorização crescente do que dá
sentido e especificidade à atividade em questão. 22
22 Assim, todo saber seria um conhecimento e uma experiência, mas nem todo conhecimento ou experiência seriam
um saber; todo conhecimento seria uma experiência, mas nem toda experiência seria um conhecimento — mas o que
seria uma experiência que não fosse conhecimento?
Prolongando essa linha de raciocínio, experiência-conhecimento-saber, passamos pela sabedoria, que, em grego é
sophia, ou seja, um conhecimento profundo e pleno de todas as coisas, até alcançarmos a philosophia, que dispensa
especificações.
Com base nessa distinção entre gnosis e epistéme, aproveitamos a ocasião para propor uma diferenciação semântica
entre gnosiologia e epistemologia. A primeira lidaria com tudo aquilo envolvido na produção do conhecimento, em
suas condições de possibilidade, etc., enquanto a outra diria respeito ao saber como algo instituído, já formado e
praticado. Como exemplo claro da primeira, temos a Crítica da razão pura de Kant, e da segunda, A estrutura das
revoluções científicas, de Thomas Kuhn. (Naturalmente que essa diferenciação não é estanque, nem excludente e nem
sempre claramente aplicável.)
22
Considerando todo esse desenvolvimento, pode-se dizer que a mímesis é
uma forma de experiência em que criamos uma intimidade, uma proximidade, com as
coisas, pelo fato de nos exercitarmos com elas, motivo pelo qual dizemos que ela seria
uma forma de conhecimento. Entretanto, não diríamos que ela seja, strictu sensu, uma forma
de saber, posto que, para tal, seria de se supor que houvesse nela uma forma de decantação
do conhecimento de modo a que se possuísse um mínimo de consciência sobre esse
próprio conhecimento como posse do sujeito. A mímesis seria, inicialmente, então, um
modo de conhecimento não-reflexivo. 23
Como tal, a mímesis tem que repousar sobre um elemento propriamente
humano como modo de representação. Precisamos investigar o que está envolvido nesse
conceito de representação, que, diga-se de passagem, é um dos mais problemáticos de
toda a teoria do conhecimento. Não pretendemos fazer um apanhado geral das inúmeras
variáveis relacionadas a essa idéia, nem elucidá-lo com vistas a dar uma nova definição
sua. O que nos é necessário é esclarecer brevemente duas noções importantes que lhe
estão intimamente vinculadas: a configuração imagética e a abstração.
2. Imagem: entre sensação e conceito
A concepção de imagem que subjaz a todas as nossas reflexões é
nitidamente de influência kantiana. O problema de Kant é, como Hegel já dizia
enfaticamente, o seu formalismo subjetivista, que procura compartimentar a razão, de
modo a compreender a estrutura do real através da estrutura do pensamento. Apesar
disso, algumas de suas distinções podem ser úteis, como a que se dá entre a abstração
conceitual e a materialidade das sensações.
É difícil definir cada um desses dois conceitos de modo a termos uma
noção satisfatória. O que queremos é explicitar o que nós vamos usar como conteúdo
semântico para eles. Consideraremos como sensação aquilo que é um dado sensível,
tomado em sua materialidade como resultante do processamento neurológico de impulsos
capazes de nos afetar, tanto de fora, quanto internamente. Embora isso seja uma idéia
abstrata, posto que a sensação em sentido estritamente material nunca seja percebida pelo
ser humano, em termos analíticos tem sua validade, uma vez que, embora tal
materialidade seja sempre acompanhada de elementos de cunho mais abstrato, como
conceitos, pré-disposições de toda ordem, formas de organizar previamente a estrutura de
tais dados, etc., ela tem, também, que ser pensada como componente daquilo do qual se
diz que estamos conscientes.
A dificuldade de referencialidade desse conceito é precisamente aquilo que
nos obriga a pensar que seja necessária uma forma de mediação para isso considerado em
sua materialidade. Uma dessas formas é a imagem. Consideramos uma imagem (Bild, em
alemão) a totalidade, a unificação, dos dados sensíveis, sem que esteja em jogo, nesse
momento, a interferência de conceitos para dar uma unidade abstratamente fundada para
a sensação. Apesar de o ser humano que fala sempre dar uma enformação conceitual para
aquilo que tem nos seus sentidos, o que dizer dos seres humanos que não possuíam
nenhum conceito para aquilo que viam? – o que se diz dos próprios animais, que não têm
nenhuma forma conceitual de perceber a realidade? É evidente que ambos têm que ser
pensados como experimentando uma forma de unificar os dados sensíveis em uma
23 O advérbio “inicialmente” está colocado aqui para ressalvar o lugar da arte, em que a mímesis, segundo Adorno,
como apontamos, toma um status bastante diferenciado, e que se caracteriza como, não apenas reflexiva, mas,
também, crítica da racionalidade vigente na empiria. Além disso, o mito também é uma forma de conhecimento
mimético e, como veremos, já poder ser qualificado como um saber.
23
totalidade mais ou menos estável, de tal forma que possam se locomover, apanhar
alimentos, distinguir sons, odores, etc. Se não houvesse nenhuma unidade para as
sensações, como se tudo fosse massa disforme de sensações desconexas, múltiplas e sem
nenhuma constância, dificilmente seria possível de se pensar a continuidade da vida
animal ou do homem antes da criação dos primeiros vocábulos. Que um cão aja sempre
de uma mesma forma em relação ao próprio dono, seja capaz de fixar elementos sensíveis
para agir de forma padronizada, é indício forte de que ele tem que ser apto a formar
blocos de dados sensíveis minimamente unitários para poder agir em relação às coisas.
Desse modo, damos o nome de imagem à conformação intuitiva das coisas
independente da consideração da unidade conceitual. Ela possui algo das sensações, pois
estas são sua matéria, algo que é imprescindível para que ela exista. Do conceito ela possui
a unidade, a inteireza, que é característica própria do nível abstrato das idéias. Desse
modo, a imagem é algo ambíguo: não se confunde com a materialidade tout court das
sensações, pois já apresenta certa estruturação, mas ainda está ligada a elas, porque é algo
ainda concreto; não se confunde com a unidade conceitual, pois tem sua característica de
unicidade (toda imagem é somente considerada em sua produção atual nos sentidos ou na
imaginação), mas está vinculada a ela, na medida em que já é um passo para a constituição
do processo de identificação das coisas.
É preciso notar que esse conceito de imagem diz respeito a qualquer
formação intuitiva, seja ela visual, auditiva, gustativa, etc. Embora a palavra “imagem” seja
usada normalmente para a visão, poderíamos, a partir da definição acima, falar de uma
imagem de algo formada através do paladar, de modo a podermos dizer da possibilidade
de diferenciar o gosto do abacaxi do da laranja pelo fato de termos imagens gustativas
diferentes desses elementos.
Embora, uma vez adquiridos os conceitos, toda imagem acabe vinculada, de
uma forma ou de outra, a eles, ela pode ser entendida como estando situada em um âmbito
com relativa autonomia, constituindo um âmbito próprio, específico. Essa autonomia, que,
na experiência comum, não pode ser experimentada, toma força e consistência em vários
momentos da relação do homem com o real. O que pretendemos pensar como parte
dessa dialética da alteridade que vamos explicitar é em que consiste o papel da imagem
como mediadora entre a identidade subjetiva e a exterioridade do mundo, representadas,
em termos cognitivos, pelo conceito e pela sensação, respectivamente. Essa característica
é que deverá ser pensada como estando na base do modo de comportamento mimético, que se
dá precisamente devido ao espaço de transitividade imagética entre a matéria bruta da sensação e a
abstração do conceito. Dado esse “campo” de atuação mimética, precisamos ver o que
caracteriza os âmbitos concreto e abstrato.
3. Abstração como conceito antropológico
a) O conceito “abstração”
A origem etimológica de “abstração” é abstrahere, que significa propriamente
retirar. É preciso investigar quando há tal retirada, o que é retirado e a partir de que ela é feita,
além dos conceitos que se associam necessariamente a esse processo. Primeiramente,
dizemos que o conceito de abstração está ligado ao de representação, ou seja, é esta que
dizemos ser abstrata ou seu contrário, concreta. Não há abstração sem representação e
vice-versa. Depois, que há graus de abstração, isto é, ser abstrato ou concreto não são
determinações absolutas, mas relativas, pois algo pode ser dito concreto se comparado a
X, mas abstrato se comparado a Y.
24
Ilustremos essas noções com um exemplo. Tomemos um objeto simples
como uma caneta. Se, para nos referirmos a ela, tomássemos ela própria, não haveria
nenhuma abstração nisso, uma vez que não teríamos retirado nada do próprio objeto para
nos referirmos a ele. Se, em vez disso, fizéssemos uma cópia absolutamente fiel (supondo
isso como possível), com o mesmo tipo de matéria, as mesmas cor e forma, etc., aqui já
haveria uma abstração mínima, uma vez que abstraímos a própria existência da caneta. Se
fizermos uma outra cópia fiel, só que apenas constituída de uma projeção tridimensional,
teríamos abstraído da matéria da caneta. Assim, a série de representações continuaria: foto
a cores bidimensional, foto em preto e branco, desenho com linhas, esquema genérico e,
por fim, a palavra “caneta”. A cada etapa, abstraiu-se cada vez mais. A primeira delas, não
contendo nenhuma abstração, não é uma representação, sendo absolutamente concreta; a
última, não contendo nada de sensível em relação ao objeto, é absolutamente abstrata.
Uma conseqüência importante que se tira dessa concepção é a de que,
quanto mais abstrata é uma representação, mais distante, separada, está de seu objeto. O
número é algo extremamente abstrato, porque se distancia radicalmente do âmbito
sensível, uma vez que sua relação com esse se dá, não como sendo uma representação de
algum objeto, mas como algo que se aplica a este. O número quatro não representa os pés
da cadeira, apenas é aplicado neles para formar uma noção abstrata de quantidade
específica desse caso, ao passo que o conceito “caneta” representa algo no mundo
perceptível, embora não contenha nada de sensível desse objeto. Concretude, portanto,
vincula-se à indistinção, à proximidade, enquanto que abstração, à distância, à diferença, à
separação.
Isso diz respeito a algo que é de fundamental importância no processo de
constituição e de desenvolvimento do pensamento: a abstração é marcada pela capacidade
de estabelecer distinções, divisões, diferenças específicas. Ora, mas para marcar diferenças
é preciso conceber semelhanças em um meio indiferenciado. A abstração é, assim, algo
ambíguo: estabelece uma separação entre coisas na medida em que capta, apreende,
semelhanças, conjuntos, unidades. O conceito “árvore”, por exemplo, marca as diferenças
dessa classe de objetos em relação a todos os outros, ao mesmo tempo em que estipula as
semelhanças entre os que caem sob tal significação. Tal capacidade de estabelecer
distinções é, segundo Adorno, uma capacidade inerente à própria razão:
Ratio não é mera συναγογη, elevação dos fenômenos dispersos ao seu gênero. Ela exige,
igualmente, a capacidade da diferenciação. Sem ela, a função sintética do pensamento, a unificação
abstrativa, não seria possível: unificar o igual significa, necessariamente, diferen ciá-lo do desigual.
Mas este é o qualitativo; o pensamento que não o pensa é ele mesmo cindido e desigual consigo.
(DN 53)
Além disso, quanto mais abstrata uma representação, mais amplo é seu
leque de aplicações possíveis, ou seja, mais genérica ela é. No exemplo acima, quanto mais
concreta era a representação, menor o número de entes que poderiam ser referidos
através dela. No primeiro caso, em que o próprio objeto era usado para nos referirmos a
ele, somente ele mesmo é que poderia ser alvo dessa “designação”. No segundo caso,
qualquer ente poderia ser alvo da representação, mas com a extrema limitação de ter que
possuir todos os elementos materiais e formais. Com o aumento da abstração, esse limite
para o vínculo de referência é diminuído cada vez mais, até ser estipulado por mera
convenção, arbitrariamente, como é o caso da palavra “mesa”. Mas, ainda assim, podemos
ver que no caso do número, até mesmo essa limitação arbitrária deixa de existir, uma vez
que a aplicação da idéia de quantidade é (virtualmente) infinita, pois, mantendo-se sua
25
qualidade própria (a idéia de um quantum), não há limite concebível para qualquer ser,
imaginário ou sensível, que não pudesse ser objeto de aplicação dessa idéia. 24
Dado que o conceito de representação é eminentemente relativo ao
conhecimento, sendo este algo propriamente humano; dada a vinculação entre representar e
abstrair, e dado o viés propriamente gnosiológico de nossa interpretação da Dialética do
esclarecimento, vejamos como o conceito de abstração pode ser usado como determinante
antropológico na genealogia do conhecimento e do próprio sujeito.
b) A genealogia do humano na abstração
A nossa idéia é a de que o homo sapiens teve sua existência como espécie
definida por uma separação, por uma abstração essencial, que se deu entre o ímpeto para
agir e a sede do poder que direciona a ação. No animal, o instinto contém tanto a
determinação que leva ao movimento, quanto o modo como essa ação será realizada.
Podemos dizer, metaforicamente, que o instinto contém, tanto a matéria, quanto a forma da
ação, ou seja, tanto o impulso para agir, quanto a determinação de como fazê-lo.25 Não há
distinção entre o que o animal processa do mundo em termos cerebrais para se pôr a agir
e o ímpeto para praticar a ação, ou seja, há uma indistinção entre o aspecto cognitivo e de
movimento, pois o instinto abarca ambas as determinações 26. O mundo do animal já está
enformado pela natureza, de modo que não há brechas por onde ele possa, de alguma
maneira, separar-se da realidade circundante. Uma vez que não há diferença entre o
âmbito cognitivo e o de ação, não há entre o animal e o mundo. Somente a partir de
alguma forma de diferenciação interna, é que poderia haver uma externa.
O ser humano, ao contrário, não recebeu da natureza a forma como
satisfará o ímpeto que o move. Esse ímpeto, que, em alemão, é denominado Trieb, é, por
assim dizer, indeterminado, indefinido. O homem, desde a feliz mutação genética que o
separou do âmbito da natureza, passou a experienciar uma abstração entre o núcleo
impulsionador para a ação e o núcleo que “gerencia” esse impulso.
Os animais, de modo semelhante aos doentes regressivos que sofrem de lesões cerebrais, só
conhecem objetos de ação: percepção, ardil, alimento são uma e a mesma coisa sob a coação, que
pesa mais sobre os que não são sujeitos do que sobre os sujeitos. O ardil deve ter-se
independentizado para que os seres individuais conquistassem essa distância em relação ao
alimento, cujo ‘télos’ seria o fim da dominação na qual se perpetua a história natural. 27
O ser humano, portanto, não possuiria instinto, mas, sim, pulsão, que deixa
em aberto se e como alguma ação será feita. Não há uma acoplagem entre o ímpeto de agir
e o saber que leva à decisão que determinará se e como agir. Desse modo, o elemento
pulsional é algo “estranho” à consciência, não se confunde com ela. Ute Guzzoni
24 Essa aplicabilidade tem algumas restrições, como é o caso de não se poder usar a idéia de quantificação em relação
ao próprio número, pois não se trata de um ser. Não haveria sentido em falar de cinco “quatros”, a não ser que
“quatro” se referisse à representação, ao algarismo, e não ao número.
25 Seria preciso fazer aqui uma série de observações, como a de que o instinto é algo flexível em alguma medida, pois
o animal pode condicionar-se a fazer alguma coisa de acordo com as condições ambientais a que está sujeito. Dessa
flexibilidade depende, por exemplo, o adestramento. Pode-se dizer que quanto mais evoluído é um animal na escala
biológica, mais flexível é o instinto, e mais facilmente o animal se condiciona a novas circunstâncias. Mas não nos
deteremos nessas observações por não serem importantes para o desenvolvimento da argumentação.
26 Cf. Henri Bergson. “A evolução criadora”, Cap. II. In: Bergson. Tradução de Nathanael Caxeiro. São Paulo: Abril,
1984, pp.177 ss.
27 Theodor W. Adorno. “Notas sobre teoria e práxis”. In: Palavras e sinais. Tradução de Maria Helena Ruschel.
Petrópolis: Vozes, 1995, p.213.
26
refere-se a Trieb como sendo algo a que estamos sujeitos, não algo pelo qual nos
esforçamos.
A expressão Trieb significa — em contraste com ‘Streben’ 28 , por exemplo — não primeiramente
que nós nos impelimos ou nos lançamos para algum lugar ou para algum fim, mas, sim, que nós
somos impulsionados, que algo nos acomete. (…) As pulsões vêm ‘de algum modo’ de nossa
natureza, e, não, precisamente por nós.29
O surgimento da nossa espécie no planeta é marcado essencialmente por
uma abstração: o que decide pela ação está separado daquilo que impulsiona a ela. O ser
humano é marcado, desde seu mais remoto instante na terra, por um alheamento em
relação a si mesmo e, por conseguinte, em relação ao mundo. Naturalmente, essa
abstração, em seu início, era por demais rudimentar, fraca, mas não desprezível, pois,
embora não perceptível, experimentável, de modo evidente, como nos dias de hoje, pôde
desenvolver-se indefinidamente. Podemos dizer que toda a história do desenvolvimento
da racionalidade da espécie humana é contada pelo modo como essa separação foi sendo
reforçada, modificada e conduzida. Nesse percurso, há que se considerar aquilo que deu o
sentido de todas as formas de conhecimento, isto é, cobrir essa separação que, em última
instância, é a que funda a identidade do sujeito e do objeto:
A abstração, cuja reificação na história do nominalismo desde a crítica aristotélica a Platão é
imputada ao sujeito como seu erro, é, ela própria, o princípio através do qual o sujeito se torna, em
geral, um sujeito, é sua própria essência. Por isso o recurso àquilo que ele não é, ao exterior, só
pode parecer-lhe violento. (DN 182)
Ora, tal “violência” não é algo apenas da ordem cognitiva, como essa
passagem da Dialética negativa enfatiza nesse momento do texto, mas tem sua raiz na prática
de vida de todos os homens, que percebiam sua distância para com o mundo. A primeira
forma de se recobrir esse “abismo” que se insinuava foi algo que remonta à origem animal
do homo sapiens: as reações orgânicas para sobreviver devido ao sentimento da alteridade
ameaçadora.
4. Assimilação imagética do real: mimetismo e mímesis
a) Alteridade, medo e similitude: o mimetismo
Na relação entre o ser animal e seu ambiente, a ameaça é aquilo que agudiza
a diferença, e o que surge como marca interna dessa percepção é o medo. Pode-se supor
que os animais irracionais tenham essa sensação; mas, como a percepção da ameaça é algo
inseparável do ímpeto de fugir, essa “diferença”, essa alteridade, de que falamos é algo um
tanto equívoco, uma projeção do que ocorre no âmbito humano. Nesse último, sim,
temos como falar da ênfase da diferença entre o ser e o mundo no medo de perder a vida.
Isso fez com que esse sentimento fosse um fator de capital importância para a emergência
e sedimentação do pensar:
o medo constitui um motivo subjetivo mais crucial da racionalidade objetiva. (…) No curso da
história, esse medo tornou-se uma segunda natureza; não é por nada que a palavra ‘existência’, não
contaminada pela filosofia, significa igualmente o fato de estar vivo e a possibilidade de
28 Streben: esforçar, em alemão.
29 U. Guzzoni, Über Natur, Freiburg, 1995, p.275. Apud Soung-Suk Nho, Die Sebstkritik und Retung der Auf klärung,
Frankfurt am Main: Peter Lang, 2000, p.53.
27
autopreservação no processo econômico.30
O medo é um sentimento fundamental, em que o alheio, o diferente, ganha
expressão viva, intensa, principalmente pelo fato de que, uma vez não recebendo
resistência, provoca dor, que, no extremo, coincide com a morte. Nos animais, dado que a
sensação de medo não se distingue do impulso para escapar do perigo, a “alteridade”
radical da ameaça, na verdade, não existe. Essa idéia talvez soe estranha, uma vez que, em
nossa experiência, o medo parece apontar indubitavelmente para a diferença, para a
distinção. Mas não é bem esse o caso, pois, uma vez que o outro recebe reconhecimento
claro, ou seja, torna-se eloqüente, o isolamento do ego desfaz-se, não por “sim-patia”,
mas, sim, por “anti-patia”. A estratégia de “identificação com o agressor”, difundida na
psicanálise, por exemplo, mostra como a ameaça e a identidade não são totalmente
excludentes. Mas o entrelaçamento de identidade e de diferença — marca expressiva,
evidente, de todo o comportamento mimético — pode ser visto de modo bem enfático
nos animais: a atitude de assemelhar-se ao meio ambiente para escapar do perigo. O que
vários insetos e pequenos animais fazem — fingirem-se de mortos —, sobreviveu nas
espécies mais evoluídas e até mesmo no ser humano como os movimentos incontrolados
de susto:
Eles reproduzem momentos da proto-história biológica: sinais de perigo cujo ruído fazia os
cabelos se eriçarem e o coração cessar de bater. (…) Determinados órgãos escapam de novo ao
domínio do sujeito; independentes, obedecem a estímulos biológicos fundamentais. O ego que se
apreende em reações como as contrações da pele, dos músculos e dos membros não tem um
domínio total delas. Em certos instantes, essas reações efetuam uma assimilação à imóvel natureza
ambiente. (…) A proteção pelo susto é uma forma do mim etismo. Essas reações de contração no
homem são esquemas arcaicos da autoconservação: a vida paga o tributo de sua sobrevivência
assimilando-se ao que é morto. (DA 189/168)
O mimetismo [Mimikry] é uma reação fisiológica, vital, orgânica, em que o
organismo, diante de alguma necessidade premente, tanto de fuga a uma ameaça, quanto
de obtenção de alimento, produz movimentos, alterações de sua conformação física,
emocional, etc., de tal modo que a continuidade da vida se vê facilitada através da similitude
com o meio ambiente. O que queremos, aqui, é marcar a enorme diferença que tem, em
termos de importância, esse ato de produção da semelhança na situação de medo perante a
alteridade ameaçadora nos animais e no ser humano. Naqueles, uma vez fechados em um
todo indiviso composto por impulsos vitais para ação previamente enformados por
natureza em relação à forma de agir, o produto “similitude” não representa propriamente
algo especial. No homem, ao contrário, dada a separação entre os âmbitos cognitivo e de
ação, esse “terceiro termo”, situado entre o eu e o mundo, que é a semelhança produzida,
pôde destacar-se de modo essencial 31. O ato de produzir tal similitude, confundindo-se
com o produto mesmo, ganhou um status sui generis, uma vez que não se confundia nem
com o produtor, nem com o mundo. A nossa idéia, não contida na Dialética do
30 Theodor W. Adorno. Zum Verhältnis von Soziologie und Psychologie. In: Soziologische Scriften II. Gesammelte Werke, vol. 8.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, pp.46-7. Citado por Fredric Jameson. O marxismo tardio. Adorno, ou a persistência
da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Unesp, 1996, p.133.
31 Nesse argumento, vale a pena chamar à atenção para a origem da palavra “produzir”, que deriva do latim producere,
constituída do radical pro-, que designa a direção para a frente, e o verbo ducere, que significa levar, mover, e que
resultou nos verbos conduzir, seduzir, induzir, etc. A produção seria, assim, o resultado de um movimento de trazer
à frente de todos alguma coisa.
28
esclarecimento, é que tal âmbito acabou hipostasiando-se como forma primeva de
pensamento 32.
Kipfer também se refere à origem do conhecimento no medo, embora não
faça nenhuma alusão à representação mimética como suporte para o desenvolvimento do
pensar, e apesar de que, também, esteja se referindo ao mito, que, mesmo relacionando-se
diretamente à mímesis, está em um nível de elaboração cognitiva mais elevado:
A experiência do medo na unidade indiferente do estado primordial permanece o ponto de partida
para a diferenciação cognitiva, que, com a gênese fundadora de identidade de subjetividade, tem
que produzir, de modo igualmente originário, as categorias para a estruturação do mundo.33
Problemática nessa passagem de Kipfer é a idéia de “unidade indiferente do
estado primordial”. Como veremos em detalhes ao longo desse item, essa noção, se fosse
aplicada ao ser humano, faria com que não houvesse ligação genealógica do medo para o
conhecimento. Para haver tal vínculo, seria necessário existir, pelo menos de forma
embrionária, o que virá a ser o espaço da consciência.
Na criança, por exemplo, a prefiguração desse espaço evidentemente existe,
o que faz com que seja possível falarmos da genealogia do pensamento a partir da
representação mimética em relação a ela, embora não ligada direta- ou necessariamente ao
sentimento de medo. Muito do que falamos nesse capítulo poderia ser transposto, mutatis
mutandis, para a experiência de conformação da consciência da criança atualmente em
nosso meio. Essa transposição está justificada pelo fato de o ser humano, em sua fase
inicial de vida, não ter à sua disposição um arsenal de conceitos e de noções abstratas para
identificar o mundo, de forma semelhante aos adultos de épocas em que a linguagem não
havia se desenvolvido plenamente ou não possuía o caráter abstrato que passou a ter no
ocidente helênico. A diferença fundamental da formação arcaica da consciência e das
formas primitivas de conhecimento mimético (preanimismo, magia e mito) em relação à
criança reside em que esta última rapidamente é ingressada em um meio conceitualmente
instituído, de modo a aprender a reprimir seu comportamento mimético em prol de uma
assimilação abstrata da realidade. Aquilo que, na história da humanidade, demorou
milhares de anos a acontecer, chegando a se dar de modo razoavelmente desenvolvido
somente a partir da época da revolução burguesa, ocorre de modo acelerado na formação
infantil. Considerando os primeiros seres humanos, essa diferença com a criança toma
contornos agudos, uma vez que eles não chegaram a possuir, em nenhum momento de suas
vidas, um aparato conceitual para enxergar a realidade — o que já acontecia, mesmo que
de modo fortemente imagético, no mito, por exemplo. Em relação a eles, a questão que se
coloca é: como é que puderam passar de um modo de comportamento quase que
exclusivamente fi siológico de se relacionar com a natureza para uma forma de assimilação
cognitiva mais elaborada?
32 “Hipóstase”: do grego hypos, debaixo, sub-, e histanai, ficar, permanecer. Essa palavra tem um uso médico
específico que é a concentração de alguma substância, mais propriamente o sangue, devido a uma sedimentação
durante longo repouso. Em Adorno, ela normalmente significa a substancialização de alguma idéia ou conceito
através de uma consideração não-dialética, tomando-a como absoluta, quando, na verdade, seria condicionada,
limitada, por várias coisas, das quais receberia alguma determinação para ser o que é. Na nossa frase, entretanto, ela
não contém esse elemento crítico presente em Adorno, indica mais propriamente apenas o resultado da
sedimentação de uma forma de relacionar-se com o mundo, que acaba se transmutando em uma de outro jaez.
33 Daniel Kipfer. Individualität nach Adorno. Tübingen: Francke, 1999, p.90.
29
b) Da semelhança à consciência da diferença: mímesis
Essa passagem de um estágio a outro situa-nos na diferença entre os
conceitos de mimetismo e de mímesis. Segundo W. Lüdke, os comentadores, em geral,
dedicaram-se bem a explicar o conceito de mímesis na Teoria estética e na Dialética do
esclarecimento, mas não prestaram atenção à sua diferença em relação ao mimetismo34.
Dezoito anos depois, em 1999, Daniel Kipfer ainda afirma a mesma coisa, dizendo que a
posição de Lüdke, juntamente com a de Habermas, é exceção a essa regra35. Segundo
Lüdke, “a adaptação coagida pelo poder superior da natureza, o fazer-se igual,
transforma-se de mimetismo em mímesis quando ela, como imitação, efetivada de modo
consciente e intencional, leva à duplicação da natureza” 36. Ou seja, o mimetismo seria algo
realizado sem a mediação da consciência, de modo automatizado, como um ato reflexo
ou, pelo menos, sem nenhum componente de ordem decisória, o que faria com que tanto
os animais irracionais quanto o homem possam praticá-lo, na medida em que, naqueles,
todas as ações seriam a-conscientes e, neste, algumas delas o seriam, como os
movimentos de susto, a que já aludimos acima. A ênfase desse comentador é a de que a
mímesis é caracterizada pelo aumento da intervenção do aspecto consciente. O mimetismo
tornar-se-ia mímesis, quando a submissão à natureza torna -se a técnica da dominação
desta.37 Jay diz que isso é verdadeiro, segundo lhe parece, “somente se o impulso
construtivo dessa duplicação não é entendido como sobrepujando [outweigh] o impulso
assimilativo” 38, ou seja, não se deveria diminuir a importância da questão da semelha nça
em prol da ênfase no aspecto de sua produção.
Por nossa parte, concordamos, tanto com a concepção de Lüdke, quanto,
embora com reservas, com a observação de Jay, mas consideramos ambas as idéias por
demais vagas, genéricas, pois seria algo realmente importante determinar como é que se dá
a relação entre os termos envolvidos: mimetismo, similitude, imagem, produção, mímesis
e consciência. Nessa relação, o que nos interessa, como objetivo último, é de mostrar
como o conhecimento (magia, mito, metafísica, etc.) pôde consolidar-se a partir do
exercício da produção da similitude, dando origem à consciência, mesmo que rudimentar,
do ego, fazendo com que o mimetismo se transformasse em um meio de apropriação
imagética consciente da realidade como mímesis.
Em todos os nossos argumentos que se seguem, todas as referências à
formação do ego devem ser rigorosamente tomadas como indicando apenas e tão somente o
caminho que estava sendo aberto para aquilo que, milhares de anos após a evolução da
espécie humana viria a ser considerado como indivíduo em sentido pleno ou
razoavelmente desenvolvido. Quando falamos da formação do ego na mímesis estaremos
sempre nos referindo a algo que seria uma proto-história da constituição do que virá a ser
a individualidade. Seria um anacronismo grosseiro pensarmos que houvesse qualquer
coisa parecida com a identidade individual, tal como a podemos perceber a partir da idade
moderna. Essa observação está sendo feita de modo tão enfático, para que não
precisemos sobrecarregar o texto com ressalvas a todo instante. O que queremos
34 W. Martin Lüdke, Anmerkungen zu einer “Logik des Zerfalls”: Adorno-Beckett. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981,
p.57.
35 Daniel Kipfer. Individualität nach Adorno. Tübingen: Francke, 1999, p.109.
36 W. Martin Lüdke, op. cit., p.58.
37 Cf. W. Martin Lüdke, op. cit., p.58.
38 Martin Jay, Mimesis and Mimetology: Adorno and Lacoue-Labarthe. In: HUHN, Tom & ZUIDERVAART (Org). The
semblance of subjectivity. Cambridge: MIT Press, 1997, p.48; nota n.º 18.
30
perceber, apesar de todas essas indicações, entretanto, é que, por mais distante que a
origem mimética esteja do sujeito contemporâneo, ela é a trilha primeva pela qual a
espécie humana passou para chegar onde chegou. Se não tivesse havido, na pré-história,
absolutamente nada do que podemos experimentar como sendo a consciência individual, não
conseguiríamos explicar como essa pôde se formar. A tese que sustentamos é que essa
consciência embrionária pode ser estudada a partir da mímesis, porque a própria mímesis
já era uma forma de conhecimento — embora não conceitual —, que é o que sempre foi a
única forma de constituir o espaço da consciência 39.
Para considerarmos essa origem do conhecimento, do pensamento mesmo,
é necessário levar em conta algo bastante rudimentar em termos de presença corporal,
orgânica do ser humano no mundo: o papel da ameaça de morte. A nossa tese é a de que o
medo fortaleceu a sede do pensamento, foi responsável por sua cristalização, na medida
em que, nas situações de perigo, a premência de fuga, de ação, acabou fomentando o
exercício de atitudes reiteradas de defesa. Como a natureza não forneceu ao homem a
forma com a qual se defenderia, foi-lhe necessário, desde sua emergência como homo
sapiens, aprender como agir em determinadas circunstâncias. Tal aprendizado, tanto no caso
do pavor diante de uma ameaça, como quando diante da possibilidade de morte devido à
necessidade de comida, ganha uma importância crucial, uma vez que, no medo, a questão
da diferença fundante, essencial, entre o eu e o mundo é colocada de modo radical, como
falamos acima. A percepção corporal continuada dessa diferença acabou gerando um
início tímido, bastante precário, da consciência da relação entre esses três elementos: o eu,
o agressor e a ação que mantém a vida. Dada a inexistência do elemento propriamente
conceitual, toda a ação do homem seria regida pelo princípio da imitação, pois não haveria
outra forma de aprendizado. Deste modo, a representação mimética 40 representaria o suporte
material, físico, para a constituição do pensamento.
Ora, é perfeitamente compreensível que, na ausência total de conceitos, o
elemento de assimilação da realidade funcionasse como um elo no qual o eu e o mundo
não se diferenciassem. Nos animais, essa indistinção não coloca um elemento novo na já
existente interação com o meio. A nossa tese, não explicitada na Dialética do esclarecimento, é
que, no homem, essa indistinção configura uma característica da percepção como um
todo, que é o aspecto projetivo:
Em certo sentido, todo perceber é projetar. A projeção das impressões dos sentidos é um legado
de nossa pré-história animal, um mecanismo para fins de proteção e para obten ção de comida, o
prolongamento da combatividade com que as espécies animais superiores reagiam ao movimento,
com prazer ou com desprazer e independentemente da intenção do objeto. A projeção está
automatizada nos homens, assim como as outras fun ções de ataque e de proteção, que se tornaram
reflexos. (DA 196-7/174-5; tradução modificada) 41
39 Note-se que a própria palavra “consciência” deriva do prefixo latino co- (junto, com) e do verbo scire (saber), ou
seja, a consciência, em termos etimológicos, seria aquilo que acompanha o conhecimento como sua condição, ou seu
lugar de realização.
40 Μíµεσι ς, em grego, é normalmente traduzido por imitação, por cópia, por reprodução, por representação. Não
precisamos entrar em pormenores sobre esse elemento definitório do conceito, uma vez que todo esse nosso
capítulo foi escrito precisamente para mostrar o que está envolvido nele. Entretanto, podemos tomar essas traduções
como a base semântica mais própria para nossa estratégia argumentativa. O que elas têm de impreciso ou de
equívoco cremos ser corrigido pela própria argumentação.
41 Seria difícil conceber que os animais projetassem algo na realidade, quando não há algo como um eu — que seria a
fonte do que é projetado —, nem sequer em estágio embrionário. Ao dizer que a projeção “é um legado de nossa
pré-história animal”, Adorno e Horkheimer, segundo pensamos, incorreriam em um qui pro quo, pois não se deveria
dizer que ela existia no âmbito animal, mas, sim, que, no homem, ela corresponde a essa integração total entre animal
e meio circundante, em que esse reage ao perigo ou realiza a caça através de adaptação orgânica ao outro ou através
31
A percepção depende de um elemento ativo por parte do sujeito: “para
refletir a coisa tal como ela é, o sujeito deve devolver-lhe mais do que dela recebe” (DA
198/176). A idéia que advogamos, que não é explicitada por Adorno e por Horkheimer, é
a de que a projeção seria proveniente da relação mimética com o mundo, porque esta
envolve nitidamente um elemento de pro-dução de semelhança, em que aquele que a
realiza encontra-se cindido no âmbito cognitivo e de ação, motivo pelo qual essa
produção arrastaria para si — e, por extensão, para a coisa percebida — o que é vivido no
interior do sujeito. Sem essa cisão interna do indivíduo — ou seja, no animal irracional —
não haveria como falarmos da assimilação imitativa como pro-dução, pois em que
consistiria essa exteriorização de algo através de um movimento? – de onde para onde, se
não há distinção entre tais “lugares”? A questão mais importante, entretanto, é a de como
se constituiu, em termos proto-históricos, a identidade do indivíduo, e, também, se seria
possível falar de algo do objeto que contribui para tal constituição e o que, do sujeito,
também o faz. A seguinte passagem da Dialética do esclarecimento fala sobre isso:
O sujeito recria o mundo fora dele a partir dos vestígios que o mundo deixa em seus sentidos: a
unidade da coisa em suas múltiplas propriedades e estados; e constitui desse modo retroativamente
o ego, aprendendo a conferir uma unidade sintética, não apenas às impressões externas, mas,
também, às impressões internas que se separaram pouco a pouco daquelas. O ego idêntico é o
produto constante mais tardio da projeção. (DA 198/176)
É preciso explicar, aqui, o que significa a “unidade sintética” praticada pelo
sujeito. Ela estaria ligada à capacidade adquirida lentamente pelo homem de agregar
elementos, em princípio pouco semelhantes, a um denominador comum. A idéia de que
tal unidade não seria simplesmente recebida através da repetição de impressões sensíveis,
mas, sim, formada por aglutinação de elementos um tanto diversos, qualifica-a como uma
sín-tese, ou seja, como justa-posição 42. O elemento tardio de que falam Adorno e Horkheimer
residiria no fato de que, de síntese em síntese, o sujeito acabou formando a mais ampla de
todas: a de que, em todos os elementos que vê, experimenta, sente, etc., algo permaneceu
constante, apesar de todas as impressões — externas e internas — poderem ter se
modificado o tempo todo, ou seja, o próprio ego.
Fica por esclarecer, ainda, algo de suma importância: como, ou a partir de que,
o sujeito foi sendo capaz de produzir tais sínteses. Isso tem, obviamente, sua dependência
em relação ao desenvolvimento biológico do ser humano, como dizem os autores: “em
um processo que só pôde se realizar historicamente com as forças desenvolvidas da
de reações as mais diversas de modo prospectivo, com antecipação frente a uma ameaça. Porém, não o faz por
projeção, mas, sim, por responder ao instinto que, diante de características físicas determinadas, incita o animal a agir
de modo específico. A expressão “independente da intenção do objeto” mostra a transferência indevida da dimensão
humana do aspecto projetivo para os animais, pois em nenhum momento está em jogo para o animal que ele leve em
conta tal intenção alheia para determinar sua ação, pois não se trata, para ele, evidentemente, de interpretar o que
poderia estar “por trás” de uma aparência de agressão ou de “amistosidade”. A “leitura” que o animal faz do mundo
só pode ser imediata, ou seja, vinculada diretamente a dados sensíveis, processados de acordo com o que seu impulso
motor o leva a agir. Não se trata de dizer que o animal projete em alguma coisa algo da ordem de uma ameaça, pois, se
ele foge, é porque algo fisicamente determinado no objeto o levou a isso. E isso sempre acontece “independente da
intenção do objeto”. – Embora não consideremos decisivo, cremos que o próprio Adorno mudou, na Dialética
negativa, essa idéia de que os animais projetem: “Os animais de presa são famélicos; o salto sobre a vítima é difícil e,
muitas vezes, perigoso, para arriscar-se, o animal precisa de impulsos adicionais. Estes se fundem ao mal-estar da
fome como fúria contra a presa e esta expressão, por sua vez, cumpre a finalidade de aterrorizar e paralisar a vítima.
Com o avanço do processo de humanização, isto se racionaliza como projeção. O animal rationale, com seu apetite
contra o adversário, já feliz possuidor de um super-ego, precisa encontrar uma razão. (…) O ser vivo que se quer
devorar tem, necessariamente, que ser mau. Tal esquema antropológico se deixa ver até na teoria do conhecimento”
(ND 33 – grifos nossos; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)
42 “Síntese”: do grego syn- (junto), e tithenai (colocar).
32
constituição fisiológica humana, o ego idêntico desenvolveu-se simultaneamente como
função unitária e excêntrica” (DA 198/176 — tradução própria), mas, naturalmente, não
pode ser relegado apenas a um componente desta ordem. A nossa idéia, não explicitada
por Adorno e por Horkheimer, é a de que foi a partir da repetição infindável do exercício
de assimilação imagética, da produção do medium da representação mimética, que se
começaram a fixar os primeiros elementos constituidores da identidade, mesmo que
precária, do ego.
Para explicar essa nossa tese, seria necessário distinguir, na passagem acima,
a unidade das impressões externas e internas. Inicialmente, vemos que ambas têm a ver
com a noção de semelhança, pois relacionam-se à unidade entre coisas; mas a primeira,
embora os autores digam ser algo que o sujeito “devolve à coisa mais do que dela recebe”,
é algo que tem um viés mais propriamente receptivo, de capacidade de ser afetado, de
sensibilidade, enquanto a outra é marcada mais propriamente pelo caráter produtivo, de
realização.
O processo de assemelhar-se ao meio ambiente, a adaptação orgânica ao
outro, uma vez que se supõe a distinção incipiente entre o aspecto cognitivo e prático no
ser humano, somente se realizou como um processo de efetivação a partir da
consideração dos momentos de ordem interna como material que deveria ser usado,
“manipulado”, digerido, de forma a se ter, como resultado final, o produto desejado, que
é a forma de ação que imita alguma outra coisa. No ser humano, desprovido da
indiferenciação do instinto, a imitação tornou-se um télos, uma meta a ser alcançada, não já
presente. Entre o ímpeto de imitar uma imagem e o resultado final da produção da
representação mimética abriu-se um fosso, que teve de ser recoberto por uma atividade
“introspectiva” e auto-operatória do sujeito. O olhar dirigido para dentro do eu, a atenção
para si mesmo, tendo como objetivo não-refletido a conformação dos componentes
internos de modo a constituírem uma unidade baseada na semelhança com o externo,
ensinou lentamente ao ego a saber operar com suas impressões e impulsos internos43, e, a
partir daí, pouco a pouco, a perceber-se como a sede de um poder de “gerenciamento” em
relação a elas. Vê-se, então, como é importante que se tome como ponto de partida a
distinção entre as esferas cognitiva e de ação no ser humano. Sem se considerar que o
saber está abstraído do impulso para agir, essa produção da semelhança não poderia levar
à conformação do ego, pois isso somente pode se dar na medida em que esse ímpeto de
assemelhar-se ao outro está imbricado na auto-percepção como um poder de lidar com
algo dentro dele como sendo, ao mesmo tempo, minimamente alheio a ele como
consciência. Enquanto na produção da unidade das impressões externas o sujeito exerce
um papel ativo, mas, de certa forma ou totalmente, inconsciente, na produção da unidade
das impressões internas esse “ativismo” toma contornos importantíssimos, uma vez que,
realizado na premência da defesa ou da caça — em ambos os casos fundado no
sentimento de medo pela morte —, gerou muito lentamente a consciência da primazia e
da premência do poder de unificação das impressões a favor da continuidade da vida.
Desse modo, o surgimento precário da identidade do ego é algo que resulta
de uma atividade prática dirigida por um conhecimento que dela se distingue. Mas esse
conhecimento teve sua identidade como aspecto consciente favorecida pelo fato de que o
43 É bom que se note, aqui, que evidenciamos o elemento pulsional como um dos que constituem o âmbito interno,
sendo que ele não é mencionado por Adorno e por Horkheimer, que, nesse ponto do texto, estão com sua atenção
voltada para o aspecto propriamente gnosiológico da formação do ego, embora falem também do aspecto mimético,
de assimilação ao outro. No nosso caso, é importante salientar aquele elemento, uma vez que consideramos a origem
prática do ego.
33
produto final desse “comando” em relação às impressões e impulsos internos
cristalizava-se em uma unidade que, no caso de seres humanos ainda desprovidos de
conceitos, era meramente em relação à forma física. A idéia que defendemos é a de que
não é algo extrínseco à formação do ego o fato de o seu produto dever ter uma unidade
em si mesmo. Mais ainda: dizemos que a identidade do ego somente se constituiu como
um poder unitário que dispõe dos componentes internos porque o resultado do uso de tal
poder também possuía uma identidade, que era a unidade formal da ação que imitava
algo. Em outras palavras, a identidade do ego é mediada pela identidade de seu produto.
Dada essa mediação, é preciso considerar mais de perto, como algo razoavelmente
autônomo, isso que propiciou a formação do eu. Entre a multiplicidade das coisas lá fora e
o ego que se formava, a unidade de suas ações imitativas contém um peso próprio, e é a
partir dessa relativa autonomia que podemos ler como essa representação pôde dar um
“preenchimento” total, pleno, ao poder de manipulação das impressões e dos impulsos
internos.
Antes de continuar, há que se ter claro o seguinte: o sujeito encontra-se, nos
primórdios da formação da consciência a partir da representação mimética, totalmente
mediado pela configuração da imagem. Isso significa dizer que, embora haja, de forma
incipiente, um delineamento do que virá a ser o espaço da consciência, ele se encontra
tomado, ou saturado, pela práxis de constituição da unidade da similitude, de tal forma que
poderíamos falar de uma radicalização hiperbólica da noção fenomenológica de que toda
consciência é consciência de…, sendo o caso de dizer que toda consciência é consciência
em… Ou, usando uma outra noção filosófica como metáfora — o ato ilocucionário de
Austin, no qual, ao dizer alguma coisa, queremos produzir um sentido —, diríamos que a
consciência, em sua origem mimética, é plenamente “ilocucionária”, no sentido de que é
somente no medium da imagem duplicada que ela se efetiva.
“Efetivação” é, aqui, a melhor palavra para expressar esse caráter
“ilocucionário”, uma vez que o que move o ser humano a alcançar a condição de ser
consciente é algo da ordem da prática, da ação. Aquilo que mostra os rudimentos da
separação do homem com o mundo é algo que indica como ele é radicalmente mediado
por aquilo a que ele se refere. Aqui ocorreria o que Adorno e Horkheimer chamam de
uma “unidade pré-conceitual de percepção e de objeto [Gegenstand]” (DA 198/176), na
medida em que não se pode distinguir, na representação imagética, o que seria ob- e
subjetivo, ligando-se materialmente a ambos, podendo ser considerada mais propriamente
como um campo de forças atuantes em um meio razoavelmente indiferenciado quanto à
origem destas. Essa ambivalência (ou anfibolia — para usar um termo kantiano da Crítica
da razão pura) da imagem pode ser mais claramente compreendida, se tivermos em mente
que a representação mimética não é uma duplicação apenas do objeto, mas, também, do próprio sujeito.
O ser humano vê-se integralmente refletido no produto de sua atividade; esta não é algo
externo a ele, fazendo parte de sua própria autoconsciência, ou mais, como dissemos, pois
afirmamos que é somente como produto subjetivo que a consciência pode existir como
valor agregado intimamente ao substrato físico da imagem produzida. O aspecto construtivo
dessa imagem, que Martin Jay diz que não deve ser pensado como sobrepujando o
aspecto assimilativo na mímesis, é um exercício da produção de uma assimilação do próprio
sujeito. Ou seja, o ato mesmo de produzir uma semelhança com o objeto é, para o ser
humano, uma duplicação de si mesmo. Nesse sentido, não haveria como se falar de uma
supremacia para o aspecto construtivo em detrimento do fator assimilativo, uma vez que o
primeiro também deve ser pensado como duplicação. Cremos que a inobservância desse
aspecto de duplicação do próprio sujeito é uma fonte importante para a incompreensão
geral em relação ao conceito de mímesis em Adorno.
34
Essa dupla representação na imagem mostra algo fundamental na assimilação
imagética do mundo: o sujeito não se separa do objeto. Dado que a consciência somente é
o que é devido a uma duplicidade do mundo, ela, de alguma maneira, se perde na própria
execução do duplo da realidade. Somente com a unificação conceitual do sujeito é que se
poderá falar de uma identidade pessoal minimamente desenvolvida, dadas as
possibilidades infindáveis da abstração conceitual se desenvolver. A unidade imagética,
por seu turno, é ainda por demais concreta, possuindo, de acordo com o que falamos no
item anterior, uma indiferenciação, uma proximidade com o que é representado, de tal modo
que o poder de representar, seu produto e o que é representado estão íntima e
profundamente entrelaçados.
O entrelaçamento entre sujeito e objeto pode ser expresso, também, com a
idéia de unicidade da imagem. Imitar corporalmente o movimento de uma fera, ou fazer
uma dança que se assemelhe à chuva, ou assumir uma aparência enlouquecida de um
demônio, etc., são modos de o sujeito relacionar-se aqui e agora com aquilo que é
representado. A mímesis é uma relação concreta com o mundo, uma vez que diz respeito a
semelhanças e diferenças específicas entre os dois. O que está sendo construído, muito
lentamente, através dela, é o distanciamento progressivo entre sujeito e objeto, pois, como
vimos, se no mimetismo a relação do homem com o mundo é essencialmente orgânica,
com o passar do tempo já se percebe que começa a haver um processo de cristalização do
meio “similitude” como mediação. Na mímesis, o sujeito duplica a realidade como meio de começar
a se separar dela. Mas esse construto ainda se dá em um meio por demais concreto. O sujeito
está ainda adstrito à materialidade do meio de que dispõe para assimilar o mundo, o que
mostra a ausência de distanciamento abstrato, de modo que se pudesse constituir a
identidade subjetiva em face a uma unidade do objeto.
A importância disso se deve ao fato de conter o elemento que nos
possibilita explicar outro caráter presente no conceito de mímesis, que é o de expressão.
Martin Jay observa que o conceito de mímesis em Adorno retoma um uso grego
pré-platônico do termo, pois, “nos hinos delianos de Píndaro, mímesis significava a
expressão de estados interiores em rituais de culto, em vez de uma reprodução da
realidade externa, rituais que incluíam música, dança e mímica”.44 O que nos interessa é
ver como a produção da similitude com o meio ambiente é algo expressivo em um duplo
sentido, não apenas nesse apontado por Jay.
O primeiro sentido de expressão, que é o que é colocado por Adorno e por
Horkheimer, não é propriamente o de transmitir “estados interiores”, mas, sim, o de
suspender os limites do ego e de se imiscuir no alheio.
De todos os sentidos, o ato de cheirar — que se deixa atrair sem objetualizar — é o testemunho
mais evidente da ânsia de se perder no outro e de com ele se identificar. Por isso o cheiro, tanto
como percepção, quanto como percebido (ambos se identificam no ato), é mais expressivo do que
os outros sentidos. Ao vermos, permanecemos quem somos, ao cheirarmos, deixamo-nos
absorver. (DA 193/171-2 – tradução modificada)
De acordo com nossos argumentos anteriores, como poderíamos explicar
essa comparação entre o olfato e a visão? O primeiro forneceria uma representação do
mundo que contém muito pouca unidade, pouca “inteireza”, dado que os limites da
44 Martin Jay, Mimesis and Mimetology: Adorno and Lacoue-Labarthe. In: HUHN, Tom & ZUIDERVAART (Org). The
semblance of subjectivity. Cambridge: MIT Press, 1997, p.32. Essa colocação de Jay, além de incompleta — como
veremos —, mostra-nos o que acontece com os comentários em geral sobre o conceito de mímesis em Adorno:
mencionam um determinado aspecto, falam sobre ele, estabelecem relações com outros conceitos, mas não se
arriscam a estabelecer a dinâmica conceitualmente delineada em sua estruturação.
35
percepção olfativa, de todos os sentidos, são os mais imprecisos, mais evanescentes, ao
passo que o olhar é capaz de dar uma configuração unitária para a imagem visual. Dada a
ausência de definição da representação sensível no olfato, o ego, mediado por ela,
também não possui tal delimitação, confundindo-se com o que seria objetivo na
percepção. É precisamente o entrelaçamento das dimensões ob- e subjetiva que configura
a expressão do relacionamento com o mundo. Esta não seria um “meio” de transmissão
de estados de alma. A arte, “refúgio do comportamento mimético” (ÄT 86/68), é um
meio em que o elemento expressivo do conhecimento tem, na filosofia da Adorno, um
status bastante especial. Na Teoria estética, lê-se que
a arte é imitação unicamente como a de uma expressão objetiva subtraída a toda a psicologia,
expressão que talvez outrora o sensório percebia no mundo e que em nenhum lugar subsiste senão
nas obras. A arte fecha-se, mediante a expressão, ao ser-para-outro que avidamente devora tal
expressão, e fala em si: tal é sua efetivação [Vollzug] mimética. Sua expressão é o contrário da
expressão de alguma coisa. (ÄT 171/131-2 – tradu ção modificada)
Essa última frase é suficientemente enfática e clara para vermos que o
conceito de expressão é algo avesso à idéia de comunicação de estados emocionais: “se o
expresso se torna o conteúdo psíquico tangível do artista e a obra de arte sua cópia, a obra
degenera em fotografia desfocada” (ÄT 171/132). A expressão é algo considerado uma
qualidade objetiva da obra de arte, não o resultado da veiculação da dimensão subjetiva. 45
Essa objetividade, voltando ao conceito originário de mímesis, pode ser lida
na indeterminação dos pólos ob- e subjetivo na imagem, que congrega, em si, elementos
dos dois âmbitos. Isso significa que o caráter expressivo da representação mimética como
proto-forma de conhecimento não é pensado como resultante apenas da explicitação dos
elementos subjetivos como vinculados ao sujeito de tal modo que tomem, a partir dessa
relação de pertencimento, sua importância. Na imagem, eles, imiscuindo-se aos elementos
do mundo circundante a ser duplicado, confundem-se com estes, de tal modo que
formam, nessa união, um continuum em que reina uma significante indiferenciação.
Por outro lado, esse conceito “objetivo” de expressão mimética exclui
aquele “subjetivo”, que considera a expressão como explicitação dos movimentos
emocionais do sujeito? Se essa explicitação é pensada como vinculada à idéia de
comunicação de tais sentimentos, então a resposta é sim; mas, de outro ponto de vista,
considerando tal explicitação como um movimento do sujeito para a imagem e dessa para
ele, então cremos que ambos os conceitos de expressão podem compatibilizar-se. De
acordo com a argumentação anterior, já se pode perceber em que consiste essa
compatibilidade: dado que a configuração imagética é o medium pelo qual a consciência se
efetiva, ela é constituída por toda a dinâmica de emoções que motivaram sua produção.
Isso somente pode ser concebido como expressivo, entretanto, devido à abstração entre
os elementos cognitivo e pulsional, ou de consciência e motriz, pois, não havendo tal
abstração, não há propriamente “ex-pressão” no sentido subjetivo do termo, ou seja, um
movimento de saída de algo que se pressuriza, que é premente, que não se contém em um
determinado âmbito, exteriorizando-se de forma enfática para outro âmbito46. A imagem
somente pode ser esse lugar que serve como vazão de estados de alma, pelo fato de ela
45 Para uma abordagem da dimensão expressiva da obra de arte, de sua relação com os conceitos de forma e de
linguagem, veja-se nossa dissertação de mestrado “Unidade instável. O conceito de forma da obra de arte na Teoria
estética de Th. Adorno”, capítulo IV, item 1; sobre a expressão como elemento fundante do discurso filosófico de
Adorno, cf. Rodrigo Duarte. “Expressão como fundamentação”. In: Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, pp.161-184.
46 Cf. Rodrigo Duarte. Op. cit., p.176.
36
não se confundir total- e absolutamente com aquilo que a produz. Assim, muito
lentamente, ao longo de várias gerações e após anos de exercício continuado de produção
de imagens que duplicavam, não apenas a natureza, mas, também, o próprio eu, suas
emoções, sentimentos, angústias, o sujeito pôde começar a perceber a si mesmo em todos
esses momentos. O mínimo distanciamento da imagem em relação ao seu produtor foi
sendo o suficiente para que o sujeito pudesse sentir de modo incipiente que ele “falava”,
ou seja, exprimia-se 47, através da imagem. Na Dialética negativa, Adorno irá dizer
explicitamente que o conteúdo da expressão é o sofrimento:
A liberdade do pensamento reside onde ele extrapola aquilo ao qual se atém obstinadamente. Ela é
conseqüência do ímpeto expressivo do sujeito. A necessidade de tornar eloqüente o sofrimento é
condição de toda verdade, pois o sofrimento é objetividade, que pesa sobre o sujeito; o que este
experimenta como o que lhe é mais subjetivo, sua expressão, é objetivamente mediado. (ND 29) 48
Desse modo, vemos que o sujeito somente pôde tomar consciência de si, na
medida em que sentia na imagem certa objetivação de suas emoções. Para haver tal
objetivação, foi necessário que ele percebesse no construto mimético uma certa unidade,
como dissemos acima. Para que a imagem pudesse “refletir” algo do sujeito, dando-lhe,
ao mesmo tempo, a oportunidade de se perceber como inteiro, ela, por seu turno,
também deveria ser pensada como contendo alguma unidade. Sem essa última, não seria
possível que a imagem funcionasse de modo especular ao indivíduo que começava a se
formar. De todos os sentidos, o olfato é o que menos pôde fornecer essa unidade
imagética para a constituição da identidade do sujeito, podendo ser considerado, em um
certo sentido, o mais “primitivamente mimético” deles.
Ao concebermos a relação entre a configuração mimética e a formação da
consciência, vemos que a unidade da imagem seria algo associado à sua autonomia relativa
emergente, fugindo da indeterminação olfativa, “espiritualizando-se” em algo que contém
um todo que pode, cada vez mais, servir de espelho para que o sujeito se mire como um
ser que contém alguma identidade, por mais incipiente que seja. Agora fica claro por que
dissemos que a identidade do sujeito é mediada pela identidade de seu próprio produto.
Devido a esse entrelaçamento dos fatores ob- e subjetivos na imagem, o “perigo” da
“sobrevalorização” do impulso construtivo em detrimento do assimilativo na imagem,
apontado por Jay — embora seja real, se não se atenta para o caráter de duplicação do
sujeito na imagem —, é um tanto falso, pois o que se deu, efetivamente, ao longo da
mutação das formas imagéticas de assimilação do mundo é que o aspecto construtivo foi
ganhando cada vez mais preponderância na medida em que o constructo passou a ter um
peso cada vez maior. E essa dinâmica é de suma importância, pois caracteriza o modo
como as primeiras formas de conhecimento (preanimismo, magia e mito) formaram-se
como sedimentos culturais do comportamento mimético.
A imagem, como dissemos, é uma duplicação do sujeito; por outro lado,
sua unidade, ao solidificar-se, fez com que ela fosse percebida como algo a que se deve
alguma coisa. A completude formal, ganhando unificação, “distanciou-se” do sujeito, ao
mesmo tempo em que levava consigo o “centro de gravidade” deste. A imagem passou a
gerar o sentimento irresistível de que ela deveria ser retomada, reapropriada, uma vez que
arrastava do sujeito sua egoidade que mal se formava. Tal sentimento somente possuía (e
47 Aqui a língua alemã tem uma palavra que indica precisamente essa “fala que exprime”: aussprechen, composta do
prefixo “aus”, que indica movimento para fora (correspondente ao “ex” do latim), e do verbo “sprechen”, que
significa falar.
48 Citado por Rodrigo Duarte. op. cit., p.176.
37
possui!) tal magnitude, porque o ego somente pôde se estabelecer através da imagem.
Quanto mais o sujeito se exercitou na produção de si mesmo através da construção
imagética que duplica o mundo, mais ele “assinava notas promissórias” para tal construto,
que, à medida em que ganha uma inteireza, uma relativa autonomia, “cobra” toda essa
dívida. O sujeito experimenta a constrição de repetir a imagem: ele repete o mundo para
formar-se e paga, como preço, a necessidade de continuar a repetir a imagem, posto que
sua identidade foi comprada com a reiterada alienação de si. A imagem unificada é
percebida como contendo um “mais” em relação ao sujeito, posto que ele sempre e
somente aprendeu a se reconhecer através dela, ou seja, durante milhares de anos (e isso
se repete na infância de cada um de nós), ser alguém significava produzir uma imagem
que duplica o mundo. Quando ela ainda possuía uma indeterminação “olfativa”, nada de
muito especial ocorria entre mediador (representação) e mediado (o ego), posto que a
indeterminação quase total entre sujeito e objeto evitava a tensão. Aprendendo a
conformar a identidade formal, e, portanto, ganhando um espelho com melhor nitidez
para se ver, o sujeito não soube ainda reconhecer na imagem “apenas” um outro de si,
mas percebia nela o que ele efetivamente era. Essa percepção, aliada à consciência
incipiente da separação entre si e o mundo, conservou na imagem o sentimento que ela
deveria apaziguar desde o início: o medo.
Esse sentimento sempre se fez presente movido pela premência da
autoconservação, e é evidente que esta é facilitada pela soma de esforços individuais em
um todo coletivo. A presença dos semelhantes sempre serviu para aumentar a confiança nas
próprias forças, o que até hoje é claramente visível no aumento de agressividade de vários
grupos de torcedores de futebol, gangues de rua, grupos de hardcore, etc. A similitude
sempre foi o instrumento para a determinação do que o mundo era, quando o conceito
ainda não existia para firmar uma similitude e, portanto, uma identidade (mais) abstrata.
Como a imagem especular sempre foi também aquilo que mediou radicalmente a
constituição da identidade do sujeito, e o isolamento sempre significou um
enfraquecimento da própria condição de ser vivente, as imagens adquiriram rapidamente
um conteúdo coletivo. Ou seja, a imagem assumida coletivamente possuía
simultaneamente uma tripla dimensão: constituía uma mediação formal unitária para
assimilação do mundo exterior, refletia a identidade dos indivíduos, ao mesmo tempo em
que condensava, nessa unidade, a força grupal fisicamente sentida. Dado que a imagem,
ao ser um amuleto contra o perigo de vida, era expressão do próprio terror, a imagem era
depositária do sentimento de medo coletivo.
Desse modo, a identidade individual sempre foi mediada pela dimensão
coletiva, ao mesmo tempo em que se vê que o conhecimento, já em sua proto-forma
imagética, estava associado ao poder, o que significa dizer que todo conhecimento se forma
socialmente. Por isso não se pode descrever de modo consistente o conhecimento sem
compreendê-lo em sua tecedura social. Ele somente faz sentido como algo que estabelece
uma mediação com o mundo a partir de uma dinâmica histórica que sedimenta em suas
formas um modo coletivamente instituído de preservar a imagem da sociedade e dos
indivíduos, que são radicalmente mediados por tal configuração imagética.
Embora toda essa nossa reflexão tenha tido como objeto a imagem
fisicamente considerada, que é o elemento mais originário e essencial na relação mimética
com o mundo, vários de nossos argumentos, principalmente esse desdobramento do teor
coletivo da imagem pode ser transferido para o nome dos objetos. Este último pode ser
pensado como uma duplicação simbólica das coisas que mantém uma ligação estreita com
elas, tal como vimos na imagem: “no estágio mágico, sonho e imagem não eram tidos
como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por semelhança ou pelo nome. A
38
relação não é a da intenção, mas do parentesco” (DA 17/25). Mas não apenas o nome das
coisas, mas toda a construção lingüística é uma duplicação simbólica do real que opera
como representação imagética deste: “como atestam os hieróglifos, a palavra exerceu
originariamente também a função da imagem” (DA 23/30).49 Ora, se a imagem já contém
uma nítida dimensão de coletividade, tanto mais o corpo lingüístico, que, evidentemente,
já é aprendido por cada indivíduo no meio social, e que sedimenta historicamente as
formas coletivas com que o real é assimilado.
É precisamente essa dinâmica socialmente estabelecida que servirá de fio
condutor para todas as nossas considerações ulteriores sobre a Dialética do esclarecimento, em
que investigaremos, no próximo item, as formas prioritariamente miméticas de
conhecimento (preanimismo, magia e mito), e, nos outros capítulos, a racionalidade
ocidental, a prefiguração do sujeito burguês na Odisséia de Homero, o caráter mimético do
pensamento filosófico em Adorno e a emergência da percepção do tempo histórico.
5. As formas primevas de conhecimento
Segundo Soung-Suk Nho, Adorno e Horkheimer não diferenciam entre
animismo e preanimismo:
O conceito de preanimismo permanece impreciso nos autores. Eles não estabelecem nenhuma
diferença entre preanimismo e animismo. Disso se segue a questão de se eles co n cebem o
preanimismo como contendo duas fases, pois, segundo eles, encontram-se no preanimismo
sobretudo o princípio do mana no sentido de indiferenciação da natureza e, também, uma
separação originária entre homem e natureza. Seria compreensível, se eles atribuíssem a separação,
não ao preanimismo, mas ao animismo, que pode valer como uma fase de transição para o mito.50
Essa passagem mostra claramente um dos males (talvez o mais pernicioso)
de inúmeros comentadores de Adorno: falta de percepção dialética. Não parece ser
sensata à comentadora a idéia de Adorno de que na “obscura indistinção do princípio
religioso, venerado sob o nome de ‘mana’ nos mais antigos estágios que se conhecem da
humanidade”, (…) “já está lançada a própria separação entre sujeito e objeto” (DA
21/28-9 – tradução modificada). A questão que a comentadora deve ter se feito é: “como
algo pode ser obscuramente indiferenciado e conter a separação entre sujeito e objeto”? –
ou: como algo pode ser e não ser ao mesmo tempo? Esse é o incômodo que o
pensamento dialético causa em geral, que é o que Diógenes Laércio teve em relação à
dialética platônica. Citando aquele, Adorno comenta:
“Com freqüência [Platão – vf] necessita de nomes diferentes para a mesma coisa. Assim, chama as
idéias também de Forma (eidos) (…) e Gênero (Genos) [isto é, a generalidade lógica – twa],
Modelo (paradeigma) e Começo (Princípio) [quer dizer, arché – twa] e Causa (aítion). Assim, necessita
de expressões opostas para a mesma coisa. Deste modo, ao percebido sensivelmente o chama de
ente como de não-ente. Ente, porque é o produto de um devir; não-ente, por sua mudança
constante. Também diz da idéia, nem que não se move, nem que está em repouso, e também que é
una e múltipla. Assim o faz também com outras coisas”. — O que diz Diógenes Laércio é
verdadeiro e falso, e pode revelar a complicação do assunto para um homem que vê a terminologia
filosófica viva desde o ponto de vista de um léxico morto.51
49 Note-se que “palavra” tem origem etimológica quase idêntica a “símbolo”: na primeira, tem-se o prefixo grego
para- (diante) e o radical ballein (lançar), e, no segundo, muda-se apenas o prefixo para syn- (junto).
50 Soung-Suk Nho, Die Sebstkritik und Retung der Aufklärung, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2000, p.46, nota.
51 Theodor W. Adorno. Terminología filosófica. Tradução de Ricardo Sanchez Ortiz de Urbina. Madri: Taurus, 1983,
p.39.
39
Incômodo esse que é, talvez, o que o leitor tenha experimentado no nosso
item anterior, em que falávamos em “unidade do ego” e, no mesmo item, de indistinção
entre sujeito e objeto.
A dialética é um pensamento que pretende perceber intimamente as coisas
como processo, não como algo estabelecido através dos critérios predeterminados pelo
princípio da não-contradição, que quer separar “quimicamente” as diversas determinações
das coisas, alheio à dinâmica histórica. Trata-se de pensar alguma realidade como
vinculada profundamente a determinações resultantes de sua relação com várias outras:
O objeto abre-se a uma insistência monadológica que é a consciência da constelação na qual ele
está: a possibilidade para a penetração no interno carece desse externo. Tal universalidade
imanente do singular, entretanto, é objetiva como história sedimentada. Esta existe nele e fora
dele, algo que o engloba, em que ele tem seu lugar. Perceber a constelação em que a coisa está
significa tanto quanto decifrar aquela que contém em si aquele elemento englobante como algo
que se transformou. O chorismós do fora e do dentro é, por sua vez, condicionado historicamente.
Somente um conhecimento consegue destacar a história no objeto, e que tem presente também a
importância histórica do objeto em sua relação com outros: atualização e concentração de um já
sabido, que o transforma. Conhecimento do objeto em sua constelação é o de seu processo, que
ele armazena em si. (ND 166)
Que se pense que a representação mimética contenha e não contenha a
distinção sujeito-objeto significa mostrar como esta já estava presente nela, mas não de
forma absoluta como se veio a pensar (erroneamente) no pensamento moderno e
contemporâneo. É preciso pensar como tal separação evoluiu, em que sentido ela era
mínima, mas, ao mesmo tempo, já presente, quais suas transformações qualitativas, etc.
Vejamos, em primeiro lugar, como essa relação dialética configurava-se na forma mais
primitiva de sedimentação do comportamento mimético.
a) Preanimismo
O que mais propriamente caracteriza essa forma de assimilação da realidade
é, como o próprio nome indica, que o mundo não é povoado de espíritos, mas, sim,
percebido como um poder infinitamente superior ao homem, o mana.
Primário, indiferenciado, ele é tudo o que é desconhecido, estranho: aquilo que transcende o
âmbito da experiência, aquilo que, nas coisas, é mais do que sua realidade já conhecida. O que o
primitivo aí sente como algo de sobrenatural não é nenhuma substância espiritual oposta à
substância material, mas o emaranhado da natureza em face do elemento individual. (DA 21/28-9)
A transcendência não é espiritual, mas de poder. O preanimismo tem em
comum com o animismo a incomensurabilidade com que é visto tal poder em relação aos
homens. A origem do mana é algo da ordem da condição física do ser humano: sua
fraqueza em relação à infinidade de elementos da natureza que podem causar a morte de
modo absolutamente incompreensível. É exatamente o escape a toda possibilidade de
assimilação que torna o poder de morte indiferenciado, englobando todo o real em uma
névoa de indeterminação causal, cujo efeito, entretanto, é claramente sentido: dor,
sofrimento e morte. A multiplicidade de fluxos torrenciais amedrontadores: feras,
tempestades, secas, pragas, avalanches, etc., configuram uma atmosfera em que, ao longo
de milhares de anos, chega-se à percepção precária de que o perigo é real e imenso, só não
se sabe de onde vem. É precisamente o vínculo do sentimento da concretude da ameaça e
da difusão absoluta de sua origem que levou à única possibilidade de solução: cristalizar a
fonte indiferenciada de ameaça em uma re-presentação simbólica sua:
O grito de terror com que é vivido o insólito torna-se seu nome. Ele fixa a transcendên cia do
desconhecido em face do conhecido e, assim, o horror como sacralidade. A duplicação da natureza
como aparência e essência, ação e força, que torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém
40
do medo do homem, cuja expressão se converte na explicação. (DA 21/29)
O mana somente pôde se cristalizar como o indiferenciado, porque ele é a
duplicação de algo que, de alguma forma, podia ser sentido precariament e como “o
mesmo”: o pavor perante a morte. Há que se ter em mente, entretanto, que a indiferenciação
do perigo está plenamente colocada na sua imagem como mana, posto que, como
dissemos, a representação imagética media radicalmente a experiência que o indivíduo faz
de si. Dada a indiferenciação do representado, conclui-se pela indiferenciação do que
produz a representação. Mas ela contém algo que mostra como a separação sujeito-objeto
“já está lançada” [ist schon angelegt 52]: embora o perigo seja sentido como difuso, já se vê
como fixado, sedimentado em uma representação. O fato de já haver a própria experiência
da transcendência através de uma duplicação imagética mostra que algo ultrapassa o
âmbito das meras relações corporais imediatamente sentidas. Aquilo que se desdobrará
plenamente como consciência em contraste com a unidade das sensações como objeto
exterior já se mostra no começo precário de distinção entre a materialidade da dor, da
morte, das coisas em geral, e a transcendência do que é difusamente ameaçador.
Quando uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas como testemunho de
uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a contradição de que uma coisa seria
ao mesmo tempo ela mesma e outra coisa diferente dela, idêntica e não idêntica. Através da
divindade, linguagem passa da tautologia à linguagem. O conceito, que se costuma definir como a
unidade característica do que está nele subsumido, já era desde o início o produto do pensamento
dialético, no qual cada coisa só é o que ela é tornando-se aquilo que ela não é. Eis aí a forma
primitiva da determinação objetivadora na qual se separavam o conceito e a coisa, determinação
essa que já está amplamente desenvolvida na epopéia homérica e que se acelera na ciência positiva
moderna. (DA 21-2/29)
Por que a fixação da transcendência numa representação simbólica é uma
forma de “determinação objetivadora”? Porque todo objeto somente tem esse status
porque pode ser percebido como o mesmo. Ora, a “mesmidade” de alguma coisa somente
pode ser percebida através de alguma relação re-presentativa desta que não se confunda
com o torvelinho de impressões sensíveis eternamente cambiantes, que não seja como é,
segundo Adorno e Horkheimer, o mundo dos animais irracionais: “(…) nenhuma palavra
existe para fixar o idêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos
exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações. (…) No fluxo, nada se acha que se
possa determinar como permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não
há nenhum saber sólido acerca do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro” (DA
263/230). No preanimismo, todas as coisas têm uma mínima e precária fonte de
identidade: são percebidas como partes, manifestações, emanações, de um mesmo poder
indiferenciado. São elas mesmas e outra coisa diferente delas.
Nesse ponto, devemos salientar uma idéia que os autores da Dialética
colocam e que é utilizada em outras partes do texto, a saber, que o mana não seria
resultado da atividade projetiva psíquica dos selvagens (nem mesmo os espíritos e deuses
míticos posteriores): “Não é a alma que é transposta para a natureza, como o
psicologismo faz crer. O mana, o espírito que move, não é nenhuma projeção, mas o eco
da real supremacia da natureza nas almas fracas dos selvagens” (DA 21/29). Ora,
considerando a idéia de que, “em certo sentido, todo perceber é projetar” (DA 196/174);
podendo-se assumir que, quanto mais fraco o ego, maior é a tendência a projetar os
estados interiores de alma no mundo circundante; considerando a idéia dos autores de
52 Guido de Almeida traduz como “já está virtualmente contida”.
41
que mesmo nos animais a projeção é um instrumento de sobrevivência, a qual herdamos,
sendo que, “na sociedade humana, porém, na qual, tanto a vida intelectual, quanto a vida
afetiva se diferenciam com a formação do indivíduo, este precisa de um controle
crescente da projeção; ele tem que aprender ao mesmo tempo a aprimorá-la e a inibi-la”
(DA 197/175), é fácil concluir que, quanto mais retrocedermos no tempo, mais forte é a
presença da projeção como elemento de assimilação do mundo, e que, portanto, é
inadequada a negação do aspecto projetivo no mana. Tal como pudemos ver no item
anterior, a duplicidade mimética pode ser pensada como projetiva pelo fato de que é uma
duplicação, tanto do sujeito, quanto do objeto. A própria idéia de que “o grito de terror
com que é vivido o insólito torna-se seu nome” (DA 21/29) mostra que essa duplicação
simbólica, o nome, é uma sedimentação de um estado interno do sujeito, o medo, gerado
pela experiência concreta da ameaça de morte. Assim, o aspecto projetivo é, não apenas
compatível com idéia de duplicação do perigo, mas, principalmente, ligado de modo
íntimo a ela.
Embora a crítica de Nho à concepção de preanimismo e de animismo de
Adorno e de Horkheimer peque por falta de dialeticidade, ela é adequada no sentido de
que os autores não especificaram o que constitua e explique a passagem do primeiro ao
segundo e o que os distinguiria propriamente em termos de comportamento mimético.
Com base no desenvolvimento que efetuamos no item anterior, façamos uma abordagem
desses assuntos.
O preanimismo, como se pôde perceber, é caracterizado como uma reação
plenamente negativa perante a natureza, ou seja, como fuga, como escape à ameaça de
morte, como expressão do terror. Não há, segundo vemos nas considerações de Adorno e
de Horkheimer, algo que aponte na direção de uma assimilação positiva da natureza. Essa
última é aquilo que caracterizará a magia e que funda a diferença para com o estágio
anterior. Mas o que favoreceu a emergência dessa “positividade”? O medo contém um
elemento prospectivo, de antecipação, que levou à tendência de apropriar-se do que
causava o terror como algo que poderia intervir favoravelmente na realidade.53 Como
vimos no item anterior, a representação mimética, tendendo a ganhar uma unidade, uma
identidade, pôde refletir igualmente a unidade emergente do indivíduo, o que levou àquele
movimento objetivador do real. Aliando-se a experiência reiterada de com-preensão da
realidade através da imagem, ao elemento nitidamente prospectivo presente na
necessidade de se antecipar ao que causava medo, vê-se que, muito lentamente, os
selvagens passaram a experienciar que, da mesma maneira que o indiferenciado, o
difusamente perigoso, era minimamente apaziguado com sua imagem, a mera evocação de
seu nome foi logo sentida como propiciando poder. O que marca propriamente a
passagem do preanimismo à magia é o estabelecimento de um sentimento de que a
duplicação simbólica do real pode ser usada como meio de escapar do perigo.
b) Magia
Segundo Nho, Adorno e Horkheimer, além de “não esclarecem a passagem
do preanimismo para o animismo”, “(…) tomam a fase do animismo apenas como fim do
preanimismo e como começo do politeísmo, em que aparecem os espíritos limitados
53 Esse elemento de prospecção do medo é o que caracteriza mais intimamente a idéia de projeção. Isso pode ser
facilmente percebido por cada um de nós. Quando sentimos medo de que algo ruim aconteça, essa “atmosfera” da
consciência é facilmente confundida com a premonição de que isso irá realmente acontecer. (Quantas vezes não ouvi
alguém dizer: “estou pressentindo que isso [algo ruim] vai acontecer”, ao que respondi: “na verdade, você está é com
medo de que isso ocorra”.)
42
localmente” 54. A consideração dos autores para diferenciar as duas fases é, realmente, “a
especificação do mana nos espíritos e nas divindades”, resultante do princípio de
dominação, que “fascinava o olhar nas fantasmagorias dos feiticeiros e dos curandeiros”
(DA 35/40). Não há, na Dialética do esclarecimento, uma explicação para tal multiplicidade de
deuses e de demônios oriunda do mana que a considere a partir da relação mimética com
a natureza. Segundo os autores, trata-se de uma relação de poder entre os homens, na
qual os poderes divinos foram absorvidos por uma minoria que os representa perante os
demais membros da coletividade.
Onde quer que a etnologia o encontre, o sentimento de horror de que se origina o mana já tinha
recebido a sanção pelo menos dos mais velhos da tribo. O mana não-idêntico e difuso é tornado
consistente pelos homens e materializado à força. Logo os feiticeiros povoam todo lugar de
emanações e correlacionam a multiplicidade dos ritos sagrados à dos domínios sagrados. Eles
expandem o mundo dos espíritos e de suas particularidades e, com ele, seu saber corporativo e seu
poder. A essência sagrada transfere-se para os feiticeiros que lidam com ela. (…) [S]e o selvagem
nômade, apesar de toda a submissão, ainda participava da magia que a limitava e se disfarçava no
animal caçado para surpreendê-lo, em períodos posteriores o comércio com os espíritos e a
submissão foram divididos pelas diferentes classes da humanidade: o poder está de um lado, a
obediência, do outro.55 (DA 27/33-4)
A idéia de que o mana é materializado à força [gewaltsam] tem que ser bem
entendida, pois a própria vivência dos membros da tribo que não possuíam contato
privilegiado com os espíritos tinha que legitimar a incorporação dos poderes mágicos nos
rituais dos sacerdotes. Em hipótese alguma haveria a possibilidade de as forças mágicas
serem impostas aos dominados se eles já não vivenciassem intimamente a presença delas
em todos os símbolos e imagens usados para invocá-las. Aquela dimensão coletiva a que
nos referimos anteriormente e que se caracteriza pelo fato de que as imagens sedimentam
um olhar coletivo em relação ao poder sobrenatural não tardou a ser afunilada em alguns
membros da comunidade que, por algum motivo — que poderia ser a força física, a idade
avançada, habilidade na produção de imagens e na invocação de poderes, etc. —,
passaram a investir seu comando da legitimação imediata propiciada pela vivência da
duplicação simbólica do real. O que os sacerdotes fizeram foi a transferência de algo
existente no símbolo para a coerção social que impingiam ao restante da coletividade: os
símbolos referiam-se à eterna repetição natural.
Os mitos, assim como os ritos mágicos, têm em vista a natureza que se repete. Ela é o âmago do
simbólico: um ser ou um processo representado como eterno porque deve voltar sempre a ocorrer
na efetuação do símbolo. Inexauribilidade, renovação infinita, permanên cia do significado não são
apenas atributos de todos os símbolos, mas seu verdadeiro conteúdo. (DA 23/30-1)
A constrição do agir em prol de conservar a própria existência foi algo que
sempre acarretou um enrijecimento da consciência de que é preciso uma ordenação
absoluta de todos os espaços: tanto sociais quanto de cada membro da comunidade, os
quais sempre foram impelidos a identificarem a autoconservação à continuidade da esfera
54 Soung-Suk Nho, op. cit., p.47, nota.
55 Essa última frase apresenta uma idéia que deveria ser investigada mais de perto, pois, ao afirmarem que “o
selvagem nômade ainda participava da magia que limitava sua submissão”, os autores querem dizer que, para o
selvagem, participar da magia que influenciava na natureza limitava sua submissão ao poder exercido pelos membros
da tribo. – Ora, uma vez disperso pelo reino da natureza selvagem, sem a solidificação da estrutura social sedentária,
sua experiência de vida deveria ser a de completa subordinação cega aos elementos anímicos e naturais que
constituíam um todo indiviso. É difícil comparar, em termos de atenuação ou crescimento, a emergência da
mediação do poder anímico pelos sacerdotes e pelos feiticeiros, pois não há parâmetros minimamente consistentes
para estabelecer valores dessa espécie em relação a algo que é recalcitrante em termos de analogia com nossa
experiên cia.
43
coletiva. O medo da morte foi sempre sublimado na vida dos indivíduos e estampado de
modo pregnante, por parte das classes que detiveram o comando, em todos os símbolos
que expunham o perigo da perdição e, ao mesmo tempo, a possibilidade de salvação, feita
através da adoração daquilo que poderia apaziguar a fúria dos deuses, ou seja, a submissão
ao poder de mediação que os sacerdotes possuíam. A simbologia mágica e mítica sempre
teve como seu verdadeiro conteúdo a eterna repetibilidade do processo de manutenção da
vida como sendo algo realizado por obra e graça do âmbito coletivo; dívida, culpa,
castigo, medo: essa constelação é o que determinou o sentido das imagens e sua magia nas
hordas dos povos que já experimentavam uma ordenação mais rígida do corpo coletivo,
na medida em que não mais se permitia, na esfera da comunidade organizada
hierarquicamente, a difusão e relação “promíscua” com a alteridade do âmbito da
natureza.
Os processos naturais recorrentes e eternamente iguais são inculcados como ritmo do trabalho nos
homens submetidos, seja por tribos estrangeiras, seja pelas próprias cliques de governantes, no
compasso da maça e do porrete que ecoa em todo tambor bárbaro, em todo ritual monótono. Os
símbolos assumem a expressão do fetiche. A repetição da natureza, que é o seu significado, acaba
sempre por se mostrar como a permanência, por eles representada, da coerção social. O
sentimento de horror materializado numa imagem sólida torna-se o sinal da dominação
consolidada dos privilegiados. (DA 27/34)
Mas por que os símbolos têm essa relação com a repetição natural? Nossa
tese é que se trata de mais uma forma de fixação da transcendência, através de uma
sedimentação imagética da força incomensurável da natureza. Mas, enquanto no
preanimismo o mana encarnava a totalidade difusa das forças ameaçadoras, nos símbolos
mágicos sedimentou-se uma regularidade dos processos naturais. A tomada de
consciência dessa regularidade foi favorecida pelo fato de que tudo e qualquer coisa
somente é o que é pelo fato de se repetir, ou seja, de se duplicar. Logo, não surpreende
essa “segunda” forma de sedimentação do que extrapola o dado imediato da percepção
sensível, ou seja, mais uma forma de abstração. Em vez de a natureza ser vivida e percebida
diretamente como eflúvio do mana, ela passou a ter uma mediação a mais: o símbolo, que
especificava a repetibilidade dos processos naturais. Não estranha em nada que o
indivíduo tenha aprendido a assumir um mediador entre os espíritos e a comunidade, ou
seja, o sacerdote, que, assumindo a força que atribuía aos deuses, exercia o poder social
plenamente legitimado.
O trabalho repetitivo feito sob coação só teve sua legitimação plena devido
ao fato de que a própria constituição do precário sentido das coisas somente se tornou
possível pela repetição reiterada da realidade. Em outras palavras: a repetição do trabalho
pôde ser vivenciada como o mais evidente a ser feito sob o jugo da coação simbólica,
porque a própria percepção do mundo e do indivíduo foi feita exclusivamente a partir da
repetição infinita, tanto das coisas, como do sujeito.
Mas, embora a percepção mimética da realidade tenha legitimado o jugo da
dominação sacerdotal, ainda resta explicar em que consiste aquilo que é próprio da magia:
o poder de influenciar a realidade através de imagens. Essa característica mostra
claramente a especificidade da magia em relação ao preanimismo, uma vez que ela contém
um aspecto teleológico claramente delineado.
Pode-se perceber, já através disso, que é na magia que a qualificação da
mímesis como técnica de dominação da natureza apontada por Lüdke pode ser vista de modo
claro (mas quantos conceitos, vínculos e questões estão envolvidos até que se chegue a
essa idéia!). A magia é um modo de comportamento mimético em que o aspecto teleológico
da ação já está configurado de modo claro, em outras palavras, ela contém uma
racionalidade orientada a fins. Como diz Kipfer, “a mímesis arcaica é, ao mesmo tempo, já
44
‘racional’, pressupõe a diferenciação entre sujeito e objeto, mas conserva,
simultaneamente, uma relação ao particular como particular, ainda não esquematizado
pela racionalidade autoconservadora”.56 É necessário ter em mente que tal racionalidade
não significa, de acordo com essa relação particular com a coisa, que haja uma abstração
do pensamento perante a realidade, como na concepção científica.
Como a ciência, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mímesis, não pelo distanciamento
progressivo em relação ao objeto. Ela não se baseia de modo algum na “onipotência dos
pensamentos”, que o primitivo se atribuiria, segundo se diz, assim como o neurótico. Não pode
haver uma “superestimação dos processos psíquicos por oposição à realidade”, quando o
pensamento e a realidade não estão radicalmente separados. A “confiança inabalável na
possibilidade de dominar o mundo”, que Freud anacronicamente atribui à magia, só vem
corresponder a uma dominação realista do mundo graças a uma ciência mais astuciosa do que a
magia. Para substituir as práticas localizadas do curandeiro pela técnica industrial universal foi
preciso, primeiro, que os pensamentos se tornassem autônomos em face dos objetos, como ocorre
no ego ajustado à realidade. (DA 17/25)
A “onipotência dos pensamentos” seria anacrônica, porque o próprio
mundo já é vivido como sendo uma totalidade que não se diferencia da representação
imagética que se faz dele. A plenitude do poder do mana é experimentada na mesma
representação usada para fazer com que o mundo seja o que é; em outras palavras, o
mundo sempre foi assimilado somente como poder, como emanações de forças que se
chocam o tempo todo com o sujeito como ser vivente, e o meio de compreender
minimamente este poder sobrenatural foi precisamente a representação imagética do real,
que congrega uma parcela da força do mana em proveito próprio. Apesar de qualificar-se
como mimética, a magia já contém uma forma de racionalização da relação mimética
entre sujeito e objeto, ou seja, um direcionamento calculado da relação de indeterminação,
de indefinição, entre os limites da subjetividade e da objetividade. A mímesis, como temos
visto, é uma forma de comportamento em que a identidade e a diferença entre sujeito e
objeto têm uma dinâmica em que nenhuma das duas absorve a outra ou a coloca a seu
serviço. A magia, por sua vez, já contém algo que aponta para a sedimentação futura da
diferença entre sujeito e objeto e que se estabelecerá com toda a força no processo de
esclarecimento, que é a perseguição consciente dos fins. Para que o ritual mágico tenha efeito, é
preciso toda uma hierarquia de procedimentos e dos indivíduos, em que somente alguns
são tomados como aptos para entrar em contato com os deuses e falar em nome deles. A
subjugação de toda a grande parte da coletividade excluída do conluio com as forças
mágicas já se afigura como uma “domesticação” da relação com a natureza e com a
contraparte desta, o âmbito daquilo que virá a ser o reino da consciência: os deuses.
A feitiçaria significa a consolidação da imagem como duplicidade poderosa
em relação ao mundo, cujo poder pode ser manipulado em prol da sub sistência. O
procedimento mágico consiste numa configuração imagética em que o que é retratado fica
à mercê de poderes mágicos, incorporados em sua duplicação simbólica. A imagem
duplicada é sentida como exercendo uma influência sobrenatural direta na existência do que é
representado. Isso está presente, por exemplo, nos bonecos de vudu, nas imagens de
animais desenhados nas cavernas do paleolítico, nos “despachos” de candomblé, nas
simpatias, etc. Como explicar esse poder mágico, transcendente, sentido em relação à
imagem?
Primeiramente, é bom salientarmos que tal poder sobrenatural sobrevive,
de forma secularizada, em diversas reações que nós, atualmente, temos com o mundo.
56 Daniel Kipfer. op. cit., p.108.
45
Explicando essa forma de reação, podemos esclarecer o que estaria em jogo com a
imagem poderosa magicamente. Usando um exemplo da História da arte de Ernst
Gombrich57, tomemos uma fotografia de alguma pessoa de quem gostamos muito, de
preferência em que ela esteja bem caracterizada, sorrindo, etc. Em seguida, furemos os
olhos da imagem lentamente com um cigarro aceso. Ora, nem é preciso fazer tal
experiência para que nos convençamos de que o sentimento que nós temos é de que não
estamos apenas danificando um papel colorido (embora saibamos perfeitamente que é esse
o caso), mas, sim, atingindo a própria pessoa representada. Esse mal-estar nos mostra
claramente que, embora a imagem seja pensada como mediação entre nós e o mundo, ela
não é sentida como mera mediação, mas, sim, como nos conectando diretamente com a
realidade representada.
O mesmo acontece em outra reação mimética que temos quando ouvimos
ou falamos que uma desgraça vai acontecer, do tipo “você vai morrer amanhã”, “eu vou
ter um enfarte”, “meu carro irá bater em outro na próxima viagem”, etc. Várias pessoas,
ao ouvirem tais frases, sentem que algo na realidade conflui contra aquele que é alvo das
frases, simplesmente devido ao fato de elas terem sido ditas. Embora não haja nada em
termos físicos, de imagem sensível, na fala, trata-se de uma duplicação simbólica, que
carrega, como vimos, o poder de imagem. Ora, se nós, mesmo depois de milênios (!) de
desenvolvimento da concepção racionalizada do real, ainda temos essa relação com a
realidade através da imagem, o que se dirá do que os membros das tribos primitivas não
sentiam diante de representações imagéticas nos rituais?
Mas, por outro lado, há a questão de por que o poder da imagem sempre
pôde ser vivido como transcendente, sagrado, mágico. Ou seja, por que se vinculou essa
relação da imagem com o mundo como uma relação através de forças transcendentes,
mágicas, sagradas? A imagem estabelece um “curto-circuito” em relação ao que é
duplicado, ou seja, ultrapassa-se as determinações físicas — percebidas como particulares,
concretas —, produzindo um efeito sentido como estando além de condicionamentos
espácio-temporais, pois a pessoa representada por boneco de vudu, por exemplo, seria
“atingida” por ele estando em qualquer lugar do planeta. É precisamente essa transcendência
estabelecida pela imediatidade da relação da imagem com o que é duplicado que mostra
claramente a vinculação da imagem com o que é incomensurável, infinito, transcendente. A
representação mimética é, portanto, profundamente ambígua: representação particular,
concreta, que, em sua imediatidade na relação com o que é representado, produz o
sentimento imediato de ligação com a infinidade da transcendência. Mas essa ambigüidade
também se dá no valor com que a incorporação do poder infinito na imagem particular é
vivida. A conjuração, como nota Jean Baudrillard, é algo ambíguo: atrair, para, com a
consciência forte da presença, expulsar.58 A magia é, nesse sentido, fortemente ambivalente,
pois a própria presença de um animal na imagem significa sua morte virtual; a força
mágica da imagem, a subjugação aos poderes de onde tal força provém e a quem a
corporifica; a presença do espírito maléfico, a cura da doença, e assim por diante.
Mas haveria outra relação da duplicação imagética com o âmbito do
sagrado, que é vista na dinâmica histórica de surgimento da representação mimética. A
imagem que duplica a realidade teve como seu motor, como seu impulso mais íntimo, o
sentimento de medo, ou seja, tratava-se de uma questão de ordem vital, de sobrevivência,
conseguir imitar o mundo circundante; o medo tem sua origem no perigo, naquilo que
57 Ernst Gombrich, História da arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1972, p.20.
58 Cf. Jean Baudrillard. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995.
46
foge às nossas forças, à nossa capacidade de domínio, que exerce uma violência em
relação à vida; o perigo, a ameaça de vida, é propriamente aquilo que, não apenas não
dominamos fisicamente, como, também, não compreendemos, não assimilamos, pois,
quanto maior é a compreensão do perigo, menor ele tende a ser; a incompreensão é o
fermento mais evidente da transcendência, do que acaba sendo concebido como
infinitamente poderoso, que ultrapassa as fronteiras do vivido, da concretude particular
das coisas que podemos compreender e manejar. Esse poder infinito, o mana (que,
segundo Adorno e Horkheimer, sobreviveu na magia, nos mitos e até na razão
esclarecida), teve sua especificação em deuses e em demônios na magia devido
propriamente à junção dos dois fatores: aquela imediatidade do poder da imagem de
afetar o que é representado, por um lado, e, por outro, essa ligação genealógico-histórica
da imagem com a transcendência. Em cada imagem que representava magicamente uma
determinada realidade parecia estar presente uma manifestação específica daquele poder
difuso por todas as coisas. Mas que determinada realidade seria essa? Os processos
cíclicos e regulares da natureza. Como dissemos acima, foi a consciência do mundo a
partir da repetição que possibilitou a consciência clara da regularidade dos fenômenos
naturais. Dada a relação entre a duplicação da natureza e a transcendência sagrada, nada
mais evidente do que a idéia de que os fenômenos naturais que se repetem infinitamente
fossem vistos como um poder divino. 59
Mas haveria outra questão, bastante fundamental, que parece difícil de
responder, que é a de por que se tem o sentimento de que a imagem carrega para dentro de si
algo do próprio real. No caso da fotografia, por exemplo, por que sentimos que estamos
afetando a própria pessoa (embora sejamos absolutamente conscientes de que não é esse
o caso)? Seria possível explicar por que a imagem é sentida como influenciando o real?
O poder da imagem sobre as coisas só é sentido porque o sujeito percebe que
a imagem tem poder sobre ele mesmo. Como vimos no item sobre mímesis, toda a
formação do ego, desde suas mais precárias manifestações, somente se deu com a
produção da imagem que duplica o mundo. Por isso é que a imagem, ao ganhar
independência, carrega para si todo o centro gravitacional do sujeito, gerando neste a
consciência de dívida para com a imagem, posto que sua identidade, a rigor, formou-se
nela. Esse aspecto de atração imagética em relação ao sujeito também pode ser ilustrado
através de um outro exemplo de sobrevivência da dimensão mimética nos adultos, que é o
fato de que, em geral, não se gosta que alguém nos imite. É difícil elidir o incômodo
causado pelo fato de que nossos gestos e modos de andar, etc., sejam duplicados
insistentemente. Para fugir a esse incômodo, o imitado geralmente faz uma posição
estranha, que causaria vergonha em quem está imitando ao faze-la, ou seja, quebra-se o
“encanto” criado pela imagem duplicada, ao se impedir, com os próprios meios do
encantamento, sua continuidade. Nesse caso, o que se percebe é que o imitado sente que
sua identidade estaria sendo extraída, expropriada, como se ele estivesse perdendo sua
singularidade tão acalentada (como se fosse sua propriedade — no duplo sentido de posse
e de qualidade) devido a sua duplicação reiterada.
No poder da imagem sobre o mundo exterior, o que se faz é transpor esse
elemento atrativo, constringente, da imagem em relação a si para as coisas duplicadas
59 Essa última frase, na verdade, deveria ser dita assim: “dada a relação entre a duplicação da natureza e a
transcendência sagrada, o poder universal e difuso da natureza do mana acabou sendo especificado em poderes
localizados, que, lentamente vinculados ao poder da imagem, possibilitaram a tomada de consciência dos fenômenos
repetitivos naturais como sede de tais poderes”. Essa diferença se deve ao fato de que o que é anterior é o poder
infinito, o mana, depois, os poderes localizados, e, somente mais tarde, a natureza como sede de tais poderes
47
imageticamente. Trata-se de uma “sub-repção” imediata, irrefletida, sentida, em que o
sentimento de termos nossa identidade afetada, ferida, roubada, etc., é transferido para a
identidade das coisas e das pessoas no mundo. Essa sub -repção ocorre pelo fato de que o
que é agredido na violência à imagem é o sentimento que temos em relação ao que é retratado. Ou
seja, ao agredirmos a imagem estamos agredindo o que sentimos pela pessoa, daí a
transferência dessa violência para o objeto da nossa afeição. Isso parece corroborado pelo
fato de que, no caso de a foto ser de alguém que não gostamos, a violência em relação à
imagem será experimentada com prazer, posto que a agressão vai ao encontro de nosso
sentimento em relação ao representado.60
É precisamente essa vinculação visceral entre o sujeito e o objeto que
mostra como ambos estão vinculados estreitamente na representação mimética. Não há,
nessa flutuação mimética da magia arcaica, nem uma identidade subjetiva, nem uma
unidade do objeto, de modo a se perceber um distanciamento claro entre sujeito e objeto.
Os ritos do xamã dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demônio dentro do
doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito que se dedicava à magia; ele
mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos. (…) O
feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar
assustadiço ou suave. (DA 15-6/24)
Apesar de a magia conter algo do preanimismo, a relação com o poder
infinito da natureza, ela, devido a seu aspecto teleológico, ou seja, de sua racionalidade
orientada a fins, possui algo que escapa essencialmente a seu antecessor, que é a idéia de
que é possível, de acordo com uma intenção bem estabelecida, substituir uma coisa pela
outra, mantendo-se integralmente a relação com a coisa. Havendo alguma duplicação de
algo do objeto representado, tem-se o sentimento de vinculação total com ele. A
universalidade do poder mágico e a particularidade da representação entrelaçam-se de
modo visceral. É precisamente tal ambigüidade que explica esta característica bem
peculiar na magia: a relação de pars pro toto, ou seja, em cada parte de uma representação
conflui o todo da coisa representada, posto que a imagem não é algo ainda percebido em
sua particularidade determinada apenas como parte de um todo apreendido
conceitualmente. É o que Adorno e Horkheimer chamam de substitutividade [Vertretbarkeit]
específica:
O que acontece à lança do inimigo, à sua cabeleira, a seu nome, afeta ao mesmo tempo a pessoa;
em vez do deus, é o animal sacrificial que é massacrado. A substituição no sacrifício assinala um
novo passo em direção à lógica discursiva. Embora a cerva oferecida em lugar da filha e o cordeiro
em lugar do primogênito ainda devessem ter qualidades próprias, eles já representam o gênero e
exibiam a indiferença do exemplar. Mas a sacralidade do hic et nunc, a singularidade histórica do
escolhido, que recai sobre o elemento substituto, distingue-o radicalmente, torna-o introcável na
60 Essa idéia de sub-repção é importante, por outro lado, pois diz respeito à característica fundamental da mímesis,
que é o fato de que ela é pré-conceitual. Essa propriedade está claramente configurada no fato de que, como foi dito
no exemplo da foto agredida, sabemos de modo explícito que se trata apenas de um papel, mas não sentimos como se
fosse apenas isso. A relação mimética com o mundo é tão fortemente pré-conceitual, que ela ignora, ou contraria a
determinação da realidade através de conceitos. (No caso da magia, esse caráter pré-conceitual explica como ela pôde
sobreviver em diversos segmentos da sociedade, em formas mais brandas, como simpatias, superstições, nas quais
vemos diversas pessoas com alto grau de erudição sentirem-se mal simplesmente por verem sua bolsa no chão ou
por passarem debaixo de uma escada.) Uma vez independente de conceitos, a relação mimética com a realidade é,
também, independente dos fatos, ou, em outras palavras, estes não enfraquecem o poder da imagem. Diga-se mil
vezes que uma desgraça irá acontecer; mesmo que nada de ruim, em nenhum momento, tenha acontecido, todas
aquelas frases de mal agouro terão propiciado um mal estar ligado diretamente à representação simbólica do real.
Essa independência da força da imagem em relação aos fatos é algo que continuou nos mitos, que são formas de
conhecimento mimético mais elaboradas que a magia. Tal característica é o que configura aquilo que se diz do mito
como tendo força de produção da realidade.
48
troca. (DA 16/24-5)
A magia, portanto, contém, em relação ao preanimismo, dois movimentos
de determinidade, de delimitação: o mana é especificado em poderes anímicos como
deuses e demônios que se corporificam em forças naturais; e o ritual mágico substitui a
relação direta e fluida com as divindades através da mediação substitutiva da parte que
representa o todo ou um ser diferente que toma o lugar da vítima no sacrifício. Mas, em
relação ao aspecto de organização social, essa determinidade também pode ser percebida,
pois, no preanimismo, Adorno e Horkheimer vêem uma estrutura social vinculada ao
nomadismo, a uma dispersão das relações coletivas; na magia, como vimos, já impera uma
divisão social vinculada à apropriação dos poderes sagrados por uma parte da coletividade
que os impinge ao restante do grupo. Em ambos os aspectos (gnosiológico e social),
trata-se da questão da tomada de consciência do poder como fonte de assimilação do
mundo. No primeiro aspecto, o que começou a se cristalizar foi a consciência da relação
entre uma causa e um efeito. Foi precisamente um processo histórico de amadurecimento
dessa consciência do mundo a partir de relações causais que deu origem a um modo
importantíssimo de assimilação da realidade: a narrativa mítica.
c) Mito
O mito é uma realidade bastante complexa, sendo alvo de inúmeras
abordagens de diversos matizes. Não pretendemos fazer justiça a toda essa complexidade,
pois vamos abordá-lo do ponto de vista de nossa temática geral, ou seja, queremos
perceber em que consiste sua dimensão mimética e como ela se relaciona com o processo
de abstração conceitual que lhe segue.
A Dialética do esclarecimento não toma o mito como objeto de estudo
específico, mas em função da idéia de desenvolvimento da racionalidade ocidental, o
esclarecimento. Destarte, as referências a ele estão sempre vinculadas àquilo que lhe
sucedeu, havendo poucas relações com as formas cognitivas anteriores a ele, fazendo com
que se gerasse uma expressiva confusão entre os comentadores sobre a distinção entre ele
e a magia, por exemplo. Um dos vários casos que vemos na literatura a respeito disso é a
notória miscelânea conceitual feita por Nho. Esta, falando sobre o mito, diz:
Na medida em que o homem tenta explicar o mundo, ele se destaca da natureza. Ele não está mais
desamparadamente exposto à onipotência da natureza, mas, sim, sai do co ntexto natural. Em sua
explicação do mundo, sua essência se mostra como poder, ou seja, como dominação sobre a
natureza. Nesta antecipação mítica, ele começa a conhecer a natureza como poder universal. Sua
primeira reação à onipotência que se lhe defronta é, portanto, mímesis. Para encontrar uma defesa
perante o poder invisível da natureza, ele se assemelha à natureza. Através da mímesis ele procura
vencer o medo da natureza e recobrir a distân cia dela. Na semelhança com ela, ele tem que aceitar
as regras da natureza e orientar-se por elas: “para assustá-los [os demônios] ou suavizá-los, ele
assume um ar assustadiço ou suave” (DA 15-6/24). 61
O “ele” dessa última frase refere-se ao feiticeiro, que Nho omite. A autora misturou,
nesse parágrafo, mimetismo, mímesis, preanimismo, magia e mito! A confusão entre
mimetismo e mímesis, de que falam Lüdke e Kipfer, estendeu-se, aqui, a todos os itens
desse capítulo. Considerando essa situação, vê-se que a assertiva de Habermas de que é
49
impossível uma teoria da mímesis parece ser aplicável, não apenas aos textos de Adorno,
mas, também, aos dos comentadores deste. Devemos, portanto, começar diferenciando o
mito da forma de apropriação mágica do mundo que ainda não havia se cristalizado como
narrativa mítica.
Como dissemos ao terminarmos o item anterior, o que diferencia a magia
do preanimismo é, em termos gnosiológicos, a especificação do mana em demônios e em
deuses e a apropriação da relação de poder entre imagem e mundo. É precisamente a
consolidação da relação causal entre a esfera da transcendência e o mundo materialmente
determinado que configura a passagem para o mito. Em vez de uma flutuação mimética
dispersa em várias potências anímicas, o que se tem é mediação da experiência da realidade
através de algo pseudo-categorial, que é a “noção” de origem. Como diz Daniel Kipfer,
Os símbolos míticos colocam à disposição, em um âmbito limitado, possibilidades de abstração,
dependências “causais”, que também tornam reconhecíveis regularidades. Mitos da origem do
mundo e do ser humano indicam o surgimento da experiência da diferença a partir da unidade
arcaica, mostram como o homem (…) se desmembrou do contexto natural e, ao mesmo tempo,
através de sua remissão à descendência do patriarca, etc., torna-se vinculado a um mundo
ordenado com sentido.62
A origem estabelece uma nova mediação entre o homem e o mundo, na
medida em que desloca a sede de explicação da rede de relações causais transcendentes
para um tempo anterior ao atual, um tempo “forte”, mágico, em que tudo veio a ser o que
é hoje por obra e graça dos deuses 63. O mito é caracterizado, de modo mais simples e
enfático, exatamente por essa remissão de todo ser e acontecer a eventos primordiais
situados para além da vida cotidiana. Tal é a definição que lhe dá Mircea Eliade:
o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o
tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos
Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas
um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É
sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e
começou a ser. 64
Essa sedimentação do poder de causalidade da esfera transcendente em
uma origem tem diversas conseqüências e uma pressuposição fundamental. Ela pressupõe
um desenvolvimento expressivo da linguagem, que tem de ser capaz de estruturar-se de tal
modo que consiga abranger as múltiplas determinações do sagrado em um relato. A
própria palavra “mito” significa, em grego, narrativa. Trata-se de um processo de
simbolização da realidade que assume que a concatenação de várias idéias seja capaz de
dar suporte ao poder mágico vivenciado no seio da natureza como totalidade. No mito, a
particularidade da representação e a infinidade da transcendência têm uma articulação
diferenciada em relação à magia. Nesta, a substitutividade específica estabelece um
relacionamento mais “puntual” frente aos poderes sagrados, enquanto o mito já se
61 Soung-Suk Nho. op. cit., p.60.
62 Daniel Kipfer. op. cit., p.90.
63 Cf. Mircea Eliade. Mito e realidade. Tradução Pola Civelli. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.21.
64 Mircea Eliade. op. cit., p.11.
50
configura como mediando esse relacionamento através de um saber 65. A magia é
eminentemente prática, concreta, pois configura-se como algo vinculado a um
procedimento de intercâmbio simbólico com a divindade em que esta é invocada através
de procedimentos cuja efetividade está ligada à sua unicidade, aos elementos concretos,
imagéticos, do arranjo do sacrifício. Não está em jogo o poder que se tenha de elaborar
um saber que fundamente essa prática. Haveria uma certa dispersão das ligações com o
poder sobrenatural, fundadas no aspecto flutuante da mediação mimética do sujeito e do
objeto, em que ambos parecem estabelecer-se precisamente no hic et nunc da
representação. A narrativa mítica, por seu turno, toma uma consistência epistemológica
diferenciada, uma vez que precisa congregar os elementos simbólicos em um corpus
lingüístico que assume uma relativa autonomização frente ao sentimento de contato com o
poder divino, uma vez que tal sentimento é gerado precisamente pela remissão a um
conjunto de elementos que não se constituem de modo dispersamente mimético como no
caso da invocação de poderes mágicos pré-míticos. O que se deve notar é a capacidade
que a linguagem teve que possuir de deslocar o “centro de gravidade” do real de modo a
que este passasse a ter uma mediação “localizada”, centrada na referência a eventos que
influenciam todo ser e acontecer a partir de um ponto que pode ser referido por um
discurso, por um relato.
Em relação às conseqüências de tal deslocamento, primeiramente vemos
que ele permite à consciência mítica estabelecer uma unificação razoavelmente estruturada do
real. A realidade é percebida como ordenada, uma vez que se estabelece de modo enfático a
diferenciação entre a esfera do sagrado e do profano, feita precisamente pela estruturação
da linguagem. Como diz Kipfer:
Os símbolos do mito apresentam uma ordenação do mundo e tendem a um sistema, a um
complexo total, a uma interpretação do mundo que abarca o todo. (…) Esta tarefa é efetivada pela
linguagem que surge com o mito. As regras de identificação que são fornecidas aos sujeitos com a
linguagem permitem-lhes uma relação com a natureza em seu todo, com uma ordenação do
mundo em geral, com a totalidade. 66
A sedimentação cognitiva do mito mostra-se enfaticamente na distinção de
estratos significativos do conjunto de símbolos lingüísticos, que se apresenta capaz de
situar, em âmbitos diferenciados, elementos vivenciais que se misturavam de modo
difusamente concreto na magia. O mito estabelece hierarquias para aquilo que sempre foi
o Leitmotiv das formas cognitivas primevas (e também das que virão com a racionalidade
esclarecida): as relações de poder. Os deuses são pensados em função de seu
posicionamento na grade de forças relativas deles entre si, para com a natureza e com os
homens. Essa gradação articulada de forças mostra a profundidade gnosiológica alcançada
pelo mito, fruto da negação do elemento de exterioridade mimética, compreendida pela
consideração que fizemos do caráter expressivo da mímesis, em que o sujeito se confunde
com o objeto no seio da duplicação imagética do real. Em outras palavras, o
aprofundamento cognitivo do mito mostra-se precisamente em seu distanciamento para com a
superfície fluida de relações de identidade e de diferença entre sujeito e objeto da magia.
Disso se conclui que a ordenação das relações de poderes transcendentes acarretou um
passo a mais — e significativo — na constituição da esfera do que virá a ser a
individualidade: a profundidade gnosiológica do mito correspondeu a uma profundidade
da esfera da consciência.
65 Recorde-se a diferenciação que fizemos entre experiên cia, conhecimento e saber no início do presente capítulo.
66 Daniel Kipfer. op. cit., p.90.
51
Do preanimismo, passando pela magia, até o mito, temos um aumento da
capacidade de especificação das relações de poder anímicas e naturais, sendo que tal
especificação, como vimos, começou na magia, chegando a uma cristalização na idéia de
origem e de ordenação dos deuses míticos. Desse modo, precisamos ver de perto a
seguinte idéia em relação ao mito de Kipfer e de Hubig, por ele citado:
Fala-se de um “princípio de diferenciação” nesse estágio, com o qual a relação de mundo mítica
começa; diferenciação do acontecer único (mana) que impera na natureza e nos sujeitos: “os
sujeitos individuais realizam apenas aspectos singulares, que somente constituem um sentido de
modo coletivo [gemeinsam]”.67
A idéia de Kipfer não é errada, pois, efetivamente, o mito produz uma nova
mediação de modo a propiciar uma diferenciação do poder infinito da natureza, mas, por
outro lado, dever-se-ia, por mor da clareza conceitual, dizer que a magia já fizera uma
diferenciação de tal poder a seu modo, como dissemos longamente no item anterior. O
que é realmente problemática é a afirmação de Hubig, pois ela é uma projeção da forma
de pensamento burguesa de que a sociedade é constituída por indivíduos, ou seja, de que
esta é resultado da soma das ações e dos conhecimentos particulares. Não é esse o caso
no pensamento de Adorno. Para este, mesmo na sociedade atomizada contemporânea, o
indivíduo é algo que somente existe como função do todo social: “O sujeito,
pretensamente ser em si, é em si mediado por aquilo de que se separa: o contexto de
todos os sujeitos” (DN 213). Essa mediação é algo radical, ou seja, a própria consciência
individual somente pode ser pensada, ou somente existe a partir da dimensão de
universalidade do pensamento, que é algo fundado socialmente. Segundo Adorno, a lógica
de Hegel fracassaria em sua tentativa de estabelecer uma dialética entre universal e
particular porque ela não lida “com o particular de forma alguma como particular, mas,
sim, meramente com a particularidade, que é já algo conceitual. O primado lógico do
universal assim estabelecido fornece o fundamento da opção hegeliana pelo social e pelo
político. Mas se deveria concordar com Hegel que, não apenas a particularidade, mas,
também, o particular mesmo, é impossível de ser pensado sem o momento do universal,
que o diferencia, cunha, e, em certo sentido, torna-o pela primeira vez um particular”
(DN 322). Ou seja, o surgimento da individualidade somente pode ser pensado a partir do
âmbito coletivo, que, portanto, é algo anterior ao indivíduo. Voltando à idéia de Hubig,
trata-se do contrário do que ele disse. Se o mito é um movimento de diferenciação do
cosmo, então é precisamente aí que encontramos um momento em que o indivíduo pode
começar a se perceber um pouco mais próximo da individualidade do que no período da
magia pré-mítica. A forma mítica de pensamento, algo instituído socialmente é que é o
meio, a mediação, de que se serve o próprio indivíduo para dar um passo a mais em sua
oportunidade de se perceber como particular, cuja efetividade, como bem sabemos, está
ainda longe de acontecer.
Essa distância para com a efetivação da individualidade estampa-se de
modo claro naquilo que o mito tem da magia: ele ainda é fortemente mimético. Vejamos
como a fundação da ordem cósmica na origem preservou de modo enfático a mímesis
mágica.
O que há de diferente em termos substanciais do mito em relação à magia é,
como dissemos, a sedimentação da noção de causa, uma vez que, no lugar de processos
67 Daniel Kipfer. op. cit., p.90; a passagem entre aspas é de Christoph Hubig. “Dialektik der Aufklärung und neue
Mythen. Eine Alternative zur These von Adorno und Horkheimer”. In: Hans Poser (ed.). Philosopnie und Mythos. Ein
Kolloquium. Berlin: 1979, p.223.
52
de interação dispersos com os poderes anímicos, o mito passou a mediar esse contato
com a transcendência através da concentração de tais poderes em um relato sobre a
origem das coisas em um tempo remoto, primordial. Apesar da ordenação do mundo
obtida por esse meio, o mito preservou integralmente a relação para com o poder infinito
da natureza como totalidade (mana), uma vez que tal poder ainda podia ser sentido em cada
uma de suas manifestações, compreendidas a partir do relato sobre os entes primordiais.
Dado o desenvolvimento da linguagem em relação às fases anteriores, o
mito já possui um status de mediação lingüística que o aproxima de nossa época, na
medida em que foi o primeiro passo — e decisivo — para a absorção do poder de
comprometimento imagético entre o sujeito e o mundo em um corpus lingüístico
estruturado. Como dissemos, à medida em que a imagem se solidifica, se sedimenta, no
comportamento mimético, ela parece arrastar para si o centro gravitacional do sujeito,
fazendo com que este se sinta compelido a se “reapropriar” da imagem como pagamento
de uma dívida. Ora, dada a sedimentação expressiva do poder transcendente em uma
imagem de seres sobrenaturais, fantásticos, poderosos, em um tempo distante, tal
cristalização e quasi-autonomia da imagem que duplica ou representa simbolicamente a
realidade passou a constituir um pólo atrativo com uma significação especial, posto que a
imagem do tempo sagrado já continha uma abstração significativa: a narrativa mítica não era
uma imagem que duplicava fisicamente a realidade, mas, sim, como dissemos, através do
conjunto de símbolos, que formavam um todo que necessitava de uma concatenação de
vários elementos. Desse modo, vê-se, ao mesmo tempo, um poder de unificação do
mediador em relação à transcendência (origem) e um estiramento do sujeito no continuum da
narrativa. Esses dois elementos, juntos, é que propiciaram a primeira oportunidade de o
ser humano constituir um saber sobre o mundo. Dadas a unificação do poder explicativo
do mundo e a necessidade de falar dele em um discurso prolongado, o indivíduo teve a
primeira oportunidade de iniciar um processo minimamente “reflexivo” sobre o mundo, uma
vez que o dis-curso sobre o real ganha certa densidade gnosiológica.
O que fascina em relação ao mito é como essa profundidade epistemológica
manteve intacta a força de constrição da imagem. A união desses dois elementos é que
caracteriza mais propriamente o que se diz em relação à produção da realidade pelo mito: a
imagem é percebida como influenciando diretamente o curso do mundo a partir da
sedimentação lingüística da narrativa. Essa imagem é a da criação primeva, originária, das
coisas. Tratam-se de eventos primordiais que devem se repetir em cada ser e acontecer como
sendo a realidade mais íntima e mais profunda de cada ente. A divisão filosófica entre
essência e aparência já estava sendo gestada na separação mítica entre sagrado e profano.68
Mas, dado o caráter profundamente vivencial dos dois elementos, o mito está muito longe
da abstração filosófica. Aquilo que é sentido como o mais profundamente real nas coisas há
que se repetir nelas como sendo a permanência do poder dos deuses. O evento primordial
instaura um processo que deve ser resgatado, retomado, de modo a se preservar a ordem
cósmica. O poder infinito da natureza como totalidade continuou no mito como seu
verdadeiro significado, e ele é reiteradamente cumprido em cada acontecimento pela
presentificação da origem. O evento primordial é algo que deve ser resgatado por um saber
acerca da realidade mais profunda de uma determinada realidade. Esse resgate é o que é
vivenciado como fazendo com que a realidade seja o que ela é: “no mito, tudo o que
acontece deve expiar uma pena pelo fato de ter acontecido” (DA 18/26). O discurso
68 Na verdade, ela já estava com seu caminho traçado no mana preanímico, mas esse era ainda por demais concreto,
vivido sem a mediação mais “densa” da linguagem, que é um elemento importante para que se possa falar de uma
“prefiguração”.
53
mítico é uma mediação (um saber) que ordena à natureza que ela continue em ordem, pois
ele é vivido como congregando, de forma hiperbólica, o substrato mais recôndito do real,
de onde brota a seiva que nutre os entes com sua dignidade mais pujante. Conhecer os
mitos significa fazer com que as coisas sejam o que elas já deveriam ser.
Em Timor, por exemplo, quando germina um arrozal, dirige-se ao campo alguém que conhece as
tradições míticas referentes ao arroz. (…) Recitando o mito de origem, obriga-se o arroz a crescer
tão belo, vigoroso e abundante como era quando apareceu pela primeira vez. Não é com o fim de
“instruí-lo” ou de ensinar-lhe a maneira como deve comportar-se que o oficiante lembra ao arroz
o modo como foi criado. Ele o força magicamente a retornar à origem, isto é, a reiterar sua criação
exemplar. 69
As coisas devem permanecer o que são devido à força instauradora de
significado que o evento primordial possui. Esse poder de produção da realidade a partir
da referência simbólica à transcendência é a força centrípeta que congrega toda a realidade
em um círculo cujos limites são a própria existência, que gira eternamente no movimento
do destino:
o destino mítico, fatum, e a palavra falada eram uma só coisa. A esfera das representações a que
pertencem as sentenças do destino executadas invariavelmente pela figuras míticas ainda não
conhece a distinção entre palavra e objeto. A palavra deve ter um poderio imediato sobre a coisa,
expressão e intenção confluem. (…) As palavras imutáveis permanecem fórmulas para o contexto
inexorável da natureza. (DA 67/65)
Tal destino significa a ratificação da imanência do real por força da
incomensurabilidade para com o poder transcendente:
O dualismo mítico não ultrapassa o âmbito da existência. O mundo totalmente dominado pelo
mana, bem como o mundo do mito indiano e grego, são, ao mesmo tempo, sem saída e
eternamente iguais. Todo nascimento se paga com a morte, toda ventura com a desventura.
Homens e deuses podem tentar, no prazo que lhes cabe, distribuir a sorte de cada um segundo
critérios diferentes do curso cego do destino; ao fim e ao cabo, a realidade triunfa sobre eles. (DA
22/29-30)
Esse poder de produção da realidade mítica aponta para algo importante: os
deuses estão incorporados aos elementos naturais como poder, como força manifesta.
Apesar de termos dito que a divisão entre sagrado e profano prefigura a divisão entre
essência e aparência, isso é ainda bastante precário, pois o caráter concreto do que estipula o
que virá a ser a essência é sobremaneira patente: não há abstração entre os dois âmbitos. Rá,
para os egípcios, é mais bem compreendido por nós como congregando o poder mais
profundo e substancial do que é percebido, sentido, no próprio sol enquanto calor e luz.
Se o trigo cresce com o calor do astro, é porque esse calor contém um poder
infinitamente grande, sagrado. Apesar de conter essa concretude, o mito, como vimos, já
era um processo de abstração se comparado à magia, que, por sua vez, o é em relação ao
preanimismo. Façamos um apanhado dessa escala de abstrações. 70
d) Abstração crescente
O mimetismo, como dissemos, é uma forma propriamente orgânica de
assimilação do real, bastante concreta, posto que se situa em um âmbito de não-consciência,
podendo ser dito como compartilhado pelos homens e pelos animais. Entretanto, ele é
69 Cf. Mircea Eliade. op. cit., p.19.
70 Não terminamos aqui nossas considerações sobre o mito. Ele será abordado em diversas outras passagens. No
presente item o que vimos foi precisamente a narrativa mítica como etapa da dialética da alteridade no âmbito da
configuração mimética do pensamento.
54
minimamente abstrato no caso dos homens, pois, em que pese os atos reflexos — que têm
seu ímpeto no sistema nervoso periférico —, ele se dá em um ser que já possui a
separação entre o princípio motor e o que gerencia o movimento. O que seria
absolutamente concreto seria o instinto, posto que, nele, o ser vivo não se distingue do meio
circundante pelo fato de não se distinguir internamente.
A mímesis já é algo que admite a mediação da consciência, configura-se
como algo que se funda, minimamente que seja, numa “decisão”. Mas não é possível falar
da abstração na mímesis tout court, uma vez que ela se dá de várias formas, no
preanimismo, na magia e no mito. Vejamos cada uma delas.
Enquanto forma mais primitiva de sedimentação cognitiva da mímesis, o
preanimismo é bastante concreto, pelo fato de que o poder infinito da natur eza como
totalidade é vivido, sentido, concretamente como um poder difuso pelas coisas. Não se
trata de uma concretude absoluta, como no caso da relação dos animais com o mundo,
posto que já existe uma mediação simbólica de tal poder, mas a forma como ele é
percebido ainda está expressivamente vinculada à materialidade do sentimento de medo, de
espanto, de êxtase, de incompreensão, de fascínio, etc. A “representação” (as aspas aqui
são necessárias) do mana está bastante próxima da concretude vivencial do poder.
A magia estabelece mais uma mediação para o poder da natureza, que são
as figuras dos deuses e dos demônios. Nesse passo, estabelece-se uma diferenciação entre as
potências anímicas. Para poder fazer essa diferenciação, foi necessário um quantum
mínimo de distanciamento para com a profusão indiferenciada das forças da natureza. A
representação simbólica, imagética, do poder natural em divindades é algo um pouco mais
abstrato do que o mana, pois, através delas, já se tem um distanciamento em relação à
natureza de modo a se poder diferenciá-la como poderes específicos. É como se, estando
por demais próximos a uma parede, não conseguíssemos distinguir seus planos, divisões,
etc. À medida que nos afastamos, podemos percebê-los. 71
O mito é mais um passo na abstração do pensamento, na medida em que
estipulou mais uma mediação para com a natureza, que é a noção de origem. Com essa
localização do poder da natureza em um tempo primordial, o indivíduo pôde começar a
se diferenciar dela através da solidificação do medium do saber lingüístico. Essa
qualificação epistemológica emergente do mito arcaico mostra como ele colocou um grau
a mais na capacidade humana de diferenciar os âmbitos do sagrado e do profano. Mas,
como vimos, essa abstração era ainda incipiente, posto que essas duas esferas eram vividas
como em conjunto, um misto de forças que se soprepunham e se atritavam.
A pergunta é: onde, afinal de contas, podemos falar de uma abstração
significativa entre pensamento e realidade, ou entre o sagrado e o profano? – ou, antes:
haveria esse começo “localizável” na história? Por que esse posicionamento é importante?
Quais as conseqüências da emergência e do desenvolvimento dessa abstração? Essas são
as questões que servem de Leitmotiv do próximo capítulo.
71 Não se deve confundir, aqui, o aspecto difusamente concreto do mana, com a amplitude de aplicação da
representação abstrata. Essa amplitude da abstração diz respeito ao alargamento do horizonte perceptivo propiciado
pela separação, ao passo que a difusão da concretude sensível mostra a indiferenciação resultante do contato com a
coisa. Embora sustentemos a idéia de que a abstração crescente aumenta o leque de aplicações da representação, ou
seja, quanto mais abstrata ela é, mais genérica, e quanto mais concreta, mais particular, mais específica, em um grau
de particularidade extrema, a proximidade gera o efeito contrário, ou seja, uma relação com o mundo cujo status
cognitivo é o de uma indiferenciação hipertrofiada.
55
Capítulo II
Abstração versus mímesis: a trajetória do esclarecimento
Uma vez que o movimento de apropriação cognitiva da realidade sempre
foi algo que progressivamente salientou a unidade, tanto do real, quanto do sujeito, o
pensamento sempre significou, desde que se abandonou minimamente a onipresença dos
movimentos de mimetismo inconscientes (não produzidos a partir de qualquer teleologia),
a tentativa de se afastar da realidade para poder discernir suas diferenças e especificidades,
ao mesmo tempo em que, com tal afastamento, proporcionava o espaço necessário para a
constituição da consciência. Por causa desse progressivo distanciamento, parece difícil
estabelecer um começo para um movimento decisivo de ruptura entre pensamento e
realidade.
A idéia que iremos sustentar nesse capítulo é, basicamente, que aquilo que
Adorno e Horkheimer chamam de “esclarecimento” deve ser entendido como se
fundando no conceito de abstração. Uma vez que consideramos que essa ruptura cognitiva
sujeito-objeto se deu em um crescendo, as questões do final do primeiro capítulo poderiam
ser reformuladas em duas: haveria como se falar que o esclarecimento sempre foi a marca
da existência humana? – ou podemos estabelecer uma etapa que, diferenciando-se
qualitativamente das que lhe precederam, instaura o processo do esclarecimento?
(Dado que a abstração conceitual se contrapõe ao duplo movimento de
identidade e de diferença entre sujeito e objeto na mímesis, o que vai nos interessar nessa
parte do texto não é propriamente a mímesis, mas sua negação. Trata-se de perceber qual a
trajetória seguida pela racionalidade ocidental em sua forma de instituir a sociedade, suas
relações de poder, sua legitimação epistemológica, etc.)
1. Onde começa o esclarecimento?
Como dissemos na Introdução, o conceito de esclarecimento na obra de
Adorno e de Horkheimer é bem incomum, na medida em que a palavra Aufklärung e a
que normalmente que se usa para traduzi-la, “iluminismo”, dizem respeito ao período
histórico contemporâneo da revolução francesa, sendo ela empregada de modo bem mais
extenso na obra que estamos comentando. O problema reside precisamente em saber até
onde vai essa ampliação praticada pelos autores. Os intérpretes do texto não tomam isso
como problema propriamente, pois já assumem uma posição teórica determinada, sem
considerar a dificuldade que o texto efetivamente nos coloca para assumir uma ou outra
hipótese de interpretação.
De acordo com nossa leitura do texto, podemos levantar, inicialmente,
quatro concepções de esclarecimento que estipulam para ele começos diferentes. Vejamos
quais são elas.
a) Quatro conceitos de esclarecimento
Caminhemos do sentido mais específico para o mais genérico. O primeiro
deles seria o do esclarecimento burguês, que é aquele que normalmente é usado pela
historiografia para localizar o começo do processo de construção da idéia de razão
moderna. Embora ele seja também usado pelos autores, qualquer leitor da Dialética do
esclarecimento sabe muito bem que ele é apenas uma parte de um processo mais amplo. O
segundo é o que começa com a Filosofia. Em diversas passagens, os autores referem-se
ao pensamento que surgiu com os filósofos pré-socráticos como esclarecimento filosófico,
56
em contraste com outro que o teria antecedido. Até aqui, não há propriamente problema
na consideração desses conceitos, posto que ambos são admitidos como se referindo
apenas a uma parte de um processo mais amplo.
O terceiro conceito, o de que o mito (em geral) é que seria o início do
processo de esclarecimento, em contraste com a magia, por exemplo, já coloca
dificuldades, pois, apesar de ser explicitado como uma das teses centrais do livro, há outro
conceito, bem mais amplo, que faz com que tomemos, inclusive esse esclarecimento mítico
como parte de um processo maior: trata-se da concepção de esclarecimento como
identificado com todo e qualquer pensamento em geral, mesmo o mais rudimentar e
precário da pré-história da humanidade.
Analisemos esses dois últimos conceitos.
Quando os autores dizem que “o mito já é esclarecimento” (DA 6/15),
Nho observa que se deve prestar atenção no advérbio “já”: “ele não significa, aqui, apenas
uma sucessão temporal, mas, sim, uma referência retrospectiva conceitual ao mito.
Através disso salienta-se ainda que o mito, em certo sentido, também já deve ser
conceituado como esclarecimento” 72. Não nos parece esclarecedora essa observação, pois
o que ela exclui é evidente, dado que não se trata mesmo de uma consideração
cronológica, no sentido de uma colocação de datas. Mas a continuação da passagem
também não acrescenta nada ao que a frase original já dizia, pois apenas diz o que
também é evidente, que o mito deve já ser conceituado como esclarecimento. O que
significaria, então, o advérbio “já”? Segundo pensamos, ele tem, de certa forma, uma
conotação temporal sim, mas em um sentido genealógico-histórico, ou seja, é preciso pensar
como o mito pode ser pensado como uma fase do desenvolvimento da consciência
humana. Considerando essa sua especificidade, ele deve ser diferenciado das formas de
assimilação do mundo anteriores e posteriores. Tal especificidade é precisamente aquilo
que apontamos no último item do capítulo anterior, condensada na seguinte passagem em
que os autores dizem explicitamente que o mito já é esclarecimento:
(…) os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento.
(…) O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas, também, expor, fixar, explicar. Com o
registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato,
para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem
como do processo a ser influenciado pela magia. Esse elemento teórico do ritual tornou-se
autônomo na primeiras epopéias dos povos. (DA 14/23)
A maioria dos comentadores usa esse conceito para referir-se àquilo que
poderia ser a primeira fase do esclarecimento. Essa concepção não salienta uma distinção
interna ao mito que consideramos de fundamental importância, que é a entre o mito
patriarcal grego e os outros mitos (africanos, orientais, etc.). Em um livro recentemente
publicado (1999), Kiepfer ainda toma o mito em geral como já sendo esclarecimento:
Em contraste com o mito — que já possibilitou um acesso estruturante à natureza (e, nessa
medida já era esclarecimento) —, a estruturação cognitiva da natureza e sua apropriação, através
do esclarecimento das imagens de mundo míticas, supõem imperativos metódicos e são
conduzidas metodicamente. 73
Hauke Brunkhorst chega a falar o contrário da idéia que advogamos, pois,
baseando-se em Max Weber, diz que ela não é válida:
(…) não apenas o relativamente tardio mito patriarcal, pois já o mágico arcaico é, para Weber, o
72 Soung-Suk Nho. op. cit., p.57.
73 Daniel Kipfer. op. cit., p.91.
57
primeiro protótipo do profissional racional, tal como Ulisses, para os autores da Dialética do
esclarecimento, é a primeira forma, ainda miticamente encantada, do burguês. A Razão, que, como
diz Weber, esconde-se na “mágica racional”, na “empresa” do “mágico profissional”, na “mais
antiga de todas as profissões”, é já a razão da autoconservação: a meta da magia é a “influência
racional do espíritos no interesse da ciência”. 74
Posição idêntica é a de Fredric Jameson, que engloba a magia no mesmo
processo global: “pois trata-se também de ‘esclarecimento’: o objetivo e função do xamã
— como dos filósofos e cientistas posteriores — consiste em controlar a natureza (…)”75.
Essa colocação de Jameson nos possibilita passar para a última da concepções de
esclarecimento, que o iguala ao próprio pensar que dispõe da natureza.
b) Esclarecimento qua dominação
Antes de dizer em que consiste essa concepção, vamos situá-la no corpo
argumentativo da Dialética do esclarecimento.
A nossa tese é a de que as três primeiras partes do livro de Adorno e de
Horkheimer, “Conceito de esclarecimento” e os Excursos I e II: “Ulisses ou mito e
esclarecimento” e “Juliette ou Esclarecimento e moral”, operam com duas concepções distintas
de esclarecimento. Segundo pensamos, a primeira delas procura conceber a relação do
homem em relação ao mundo prioritariamente em termos gnosiológicos, fundando as
relações de poder, de dominação social, de coletividade, etc., no modus cognoscendi
instaurado pela racionalidade ocidental em contraste com o do preanimismo, da magia e
do mito, ao mesmo tempo em que mostra seu entrelaçamento com essas formas arcaicas
de assimilação do mundo. Assim, o conceito mais fundamental para marcar o plano de
clivagem entre uma racionalidade e outra é o de abstração. Trata-se de uma categoria que
pode envolver um aspecto teleológico, é verdade, mas é mais propriamente epistemológica,
propiciando os meios conceituais necessários para construirmos uma teoria do
surgimento da mímesis — que se fez no primeiro capítulo — e para mostrarmos como a
razão surge precisamente a partir de uma dupla relação com aquela: reprimindo-a,
negando-a, e acabando por continuá-la, seja usando-a como seu meio (inconsciente), ou
desaguando nela como seu destino regressivo. É precisamente esse o conceito de
esclarecimento que explicitaremos no próximo item e que servirá de fio condutor para o
corpo principal desse capítulo.
Por outro lado, os Excursos I (sobre Ulisses) e II (sobre Juliette) constróem
uma abordagem prática da assimilação do mundo, ou seja, procuram compreendê-la a
partir do exercício de domínio sobre a natureza e sobre os outros, procurando conceber a
origem da subjetividade burguesa a partir da elaboração épica dos mitos gregos e da moral
do esclarecimento moderno. Dado esse ponto de partida fundante para o Excurso I —
que é o que analisaremos mais à frente —, o conceito que serve de base para a concepção
de esclarecimento é o de teleologia, em vez do de abstração. Além disso, é igualmente
basilar a idéia de que a dominação da natureza esteve desde sempre imiscuida de
má-consciência. O que os autores pretendem é derivar a astúcia esclarecida de lograr a
natureza a partir do engodo que eles vêem sempre ter existido em todo e qualquer sacrifício.
Inicialmente, no Excurso I, é invocada a idéia de Nietzsche de que o
esclarecimento tem um duplo aspecto histórico-social: por um lado, tornar os governantes
74 Hauke Brunkhorst. “Die Welt als Beute. Rationalisierung und Vernunft in der Geschichte”. In: Willem van Reijen
& Gunzelin S. Noerr Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987,
p.162.
75 Fredric Jameson. op. cit., p.135.
58
conscientes de seu procedimento como sendo “uma mentira deliberada”; por outro, servir
de instrumento para governar, tornando os homens, na democracia, por exemplo,
facilmente governáveis. Dada essa dupla característica do esclarecimento, “seu conceito
como pensamento progressivo é estendido até o início da história tradicional” (DA
51/54). Essa “porta de entrada” do Excurso mostra que o conceito de razão esclarecida
terá como Leitmotiv a questão do exercício do poder. Embora não esteja explícito o que
seria a história tradicional (se a partir do começo da escrita, por exemplo), é certo que se
inicia bem antes de qualquer início do processo de abstração significativo do pensamento:
De fato, as linhas da razão, da liberdade, da civilidade burguesa se estendem incomparavelmente
mais longe do que supõem os historiadores que datam o conceito do burguês a partir tão-somente
do fim do feudalismo medieval. Ao identificar o burguês justamente onde o humanismo burguês
mais antigo presumia uma aurora sagrada destinada a legitimá-lo, a reação neo-romântica identifica
a história universal e o esclarecimento. A ideologia na moda, que faz da liquidação do
esclarecimento a primeira de suas causas, presta-lhe uma reverência involuntária e se vê forçada a
reconhecer a presença do pensamento esclarecido até mesmo no mais remoto passado. (DA
51-2/54)
Dado que, desde os primórdios da história da humanidade, a sobrevivência
sempre somente foi assegurada através de algum processo de domínio sobre o que
poderia causar a morte, é de se esperar que a consciência da necessidade de impor tal
domínio tenha existido precocemente. Desde os movimentos de mimetismo que já
poderiam ser minimamente articulados de forma consciente, passando pela relação
dirigida teleologicamente com os deuses, até o mito mais desenvolvido, é claro que a
questão do domínio sobre um outro, seja ele a natureza ou a sociedade, sempre envolveu
a premência de conhecer para poder preservar a vida. Mas os autores não se contentam em
fazer o conceito de esclarecimento recobrir esse processo de domínio: eles dizem que este
sempre foi acompanhado de má-fé.
A substitutividade específica na magia, que analisamos sob a noção de
relação entre as partes e o todo, de acordo com a idéia de representação imagética,
envolve a prática de sacrifícios, sejam eles humanos ou através de representantes, como
de um carneiro em lugar do filho, etc. Segundo os autores, essa substituição tem um fim
precípuo: enganar o deus no mesmo ato em que este é satisfeito, “e o logro de que ele é
objeto se prolonga sem ruptura no logro que os sacerdotes incrédulos praticam sobre a
comunidade crédula” (DA 57/58). A idéia dos autores é que os sacerdotes sempre
souberam que seu procedimento era falso: “a experiência de que a comunicação simbólica
com a divindade através do sacrifício nada tem de real só pode ser [muß] uma experiência
antiquíssima [uralt]” (idem – grifos nossos). A relação com a transcendência mágica seria
apenas um meio de os sacerdotes racionalizarem o “assassínio pela apoteose do
escolhido” (idem). Em outras palavras, a substitutividade mágica do sacrifício — e, por
extensão, de todas as práticas — sempre teria sido ideologia. Segundo os autores, “pode
ser que, em determinada época dos tempos primitivos, os sacrifícios tenham possuído
uma espécie de racionalidade crua, que no entretanto já então mal se poderia separar da
sede de privilégios. (…) As ideologias mais recentes são apenas reprises das mais antigas,
que se estendem tanto mais aquém das ideologias anteriormente conhecidas quanto mais
o desenvolvimento da sociedade de classes desmente as ideologias anteriormente
sancionadas” (DA 59-60/59-60). 76
76 A concepção de ideologia de Adorno é tão extrema, que ela se estende a todo pensamento: “A ideologia deve sua
força de resistência contra o esclarecimento à cumplicidade com o pensamento identificador: com o pensamento em
geral” (DN 151); mas até mesmo ao âmbito animal (!): “se o leão tivesse uma consciência, sua fúria contra o antílope
que quer comer seria ideologia” (ND 342). Mais à frente teremos oportunidade de comentar em detalhes a
59
A intenção dos autores é derivar a astúcia esclarecida de Ulisses a partir da
conscientização da falsidade da relação com a transcendência: “o que Ulisses faz é
tão-somente elevar à consciência de si a parte de logro inerente ao sacrifício, que é talvez
a razão mais profunda para o caráter ilusório do mito” (DA 58 – grifos nossos). Não há
dúvida: os autores consideram realmente que a magia e o mito estão fundados em algo
falso, e que seus praticantes têm consciência disso. “O que Wilamowitz censura aos mitos
posteriores, o arbítrio da invenção, já devia estar presente nos mais antigos em virtude do
pseudos dos sacrifícios” (DA 55 – nota/245 – nota). Ora, se “a comunicação simbólica
com a transcendência” já era reconhecidamente falsa no sacrifício, o que nos leva a
concluir que os autores a tomariam como verdadeira para os sacerdotes em relação à
natureza em geral? Por que a magia seria tomada como verdadeira pelos sacerdotes para
fazer o trigo crescer, por exemplo, mas seria falsa em relação ao sacrifício humano? Os
sacerdotes, no momento do sacrifício humano, passariam a descrer no poder da magia em
que acreditariam quando o aplicavam nos processos naturais? Como chega a ser até
mesmo ridículo pensar que os sacerdotes viviam realmente a força de sua magia no
processo de controle da natureza, mas desacreditavam-na ao fazerem sacrifícios humanos,
somos levados concluir que Adorno e Horkheimer pensavam mesmo que a magia tout
court era concebida como algo falso pelos seus praticantes sacerdotais.
Ora, compare-se esse “desmascaramento” da operação de contato
simbólico com os deuses com a passagem da primeira parte do livro que citamos:
Os ritos do xamã dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demônio dentro do
doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito que se dedicava à magia; ele
mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos. (…) O
feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar
assustadiço ou suave. (DA 15-6/24)
Ora, à luz dos parágrafos acima, somos forçados a pensar que essa
passagem descreve uma cena de fingimento deliberado. Que valor esse procedimento do
xamã tem em termos de delineamento da mímesis como processo de assimilação do
mundo, se o que ele fazia era apenas uma “mentira deliberada” de modo a alcançar e
manter uma rede de “privilégios” no meio social? Se a ordem social é um espelho da
ordem da natureza, que é trazida para o meio coletivo através dos símbolos, e se tal
ordem, em que “o destino mítico, fatum, e a palavra falada eram uma só coisa” (DA
67/65), então essa comunicação com a transcendência que garante o ciclo eterno das
coisas valia apenas para os dominados, sendo usada pelos sacerdotes apenas como um
meio conscientemente fraudulento?
Cremos que a comunicação com a transcendência era algo que os
sacerdotes realmente colocavam a seu serviço, mas que eles tivessem consciência de que ela
era falsa é algo que não podemos compartilhar em hipótese alguma. Para justificar essa nossa
assertiva tão enfática, devemos reforçar a idéia de que os procedimentos de magia estão
todos incluídos naquilo que tentamos esclarecer como sendo algo imagético, que possui
uma característica pré-conceitual forte. A substitutividade mágica, incrustada em uma
época claramente carente da abstração conceitual, dificilmente deixaria margem para a
má-fé por parte dos sacerdotes.77 Se nós, herdeiros de todo o desenvolvimento conceitual
concepção de ideologia de Adorno e colocar, com base nas idéias desenvolvidas nesse e no próximo capítulos, um
novo conceito de ideologia.
77 Não que o caráter abstrato do pensamento configure, per se, a má-fé dele, mas institui sua condição de
possibilidade. A própria ideologia também pode ser pensada como se originando na abstração (sobre esse último
item, cf. capítulo III, item 2).
60
do ocidente, temos, de modo nítido e indelével, aquele sentimento de que, ao queimar
uma foto, estamos agredindo a própria pessoa, apesar de sabermos claramente que se
trata tão-somente de um pedaço de papel, o que se dirá — voltamos a perguntar — de
quem viveu em uma época cuja consciência era a de que o destino e a palavra não se
separavam? 78 Segundo pensamos, por mais que a magia tenha sido usada deliberadamente
como instrumento de domínio, não é forçado, apenas por essa instrumentalidade do
procedimento xamanístico, que seu realizador pensasse que se tratava de uma farsa. Tomar
a magia como instrumento de poder significa ter consciência de que ela seja ilusória?
Esse complexo argumentativo dos autores no Excurso I deixa muito pouca
margem para uma concepção de mímesis que a tome a sério como um procedimento
usado para assimilar uma determinada realidade, pois estende o conceito de razão
esclarecida muito além de um ponto em que consideramos razoável supor o começo de
uma diferença qualitativa entre os modos de assimilação esclarecido e mimético. A rigor,
essa extensão acaba sendo total, indefinida. Tal como comenta Fredric Jameson:
(…) deve-se notar que a originalidade peculiar da concepção de Adorno e de Horkheimer de uma
“dialética do esclarecimento” consiste em que ela exclui um início ou um primeiro termo, e
descreve o “esclarecimento” especificamente como um processo “sempre-já” 79 , cuja estrutura
reside precisamente em sua geração da ilusão de que aquilo que a precedera (que era também uma
forma de esclarecimento) era esse momento “original” do mito, da união arcaica com a natureza,
que é a vocação “própria” do esclarecimento anular. 80
O problema é que essa “originalidade” acabou dificultando a concepção de
mímesis que deveria surgir a partir da obra conjunta de Adorno e de Horkheimer,
fazendo com ela acabasse podendo ser vista por inúmeros comentadores como aquilo que
disse Habermas: “um fragmento de natureza incompreendida”. A primeira frase da
Dialética negativa: “a Filosofia, que outrora pareceu ultrapassada, mantém-se viva, porque o
momento de sua efetivação foi desperdiçado” (DN 15), poderia ser aplicada, com certo
exagero, à construção de uma teoria sobre a mímesis, posto que a obra que deveria
78 Esse argumento pode soar um tanto deslocado ao leitor de uma tese de filosofia, ao lhe parecer por demais
psicológico ou antropológico. Primeiro: essa dimensão antropológica parece-nos forte demais para ser relegada a
apenas uma extrapolação desmesurada de alguma forma particular de relação com o mundo, uma vez que ela é aquilo
que funda a própria experiência estética. O que faz milhões de pessoas ao redor do mundo estarem se emocionando
profundamente, nesse exato minuto que o leitor lê essas linhas, por verem cenas fictícias sendo apresentadas nas
telas dos cinemas? Trata-se de simplesmente uma vontade de ser enganado? Ou a representação imagética é vivida
como nos presentificando a própria coisa? É fácil para o leitor simplesmente deixar de se afetar ao ver uma cena de
terror que não gostaria de presenciar no cinema? Basta um ato simples de tomada de consciência de que se trata de
mera encenação para não se tocar pelo sentimento envolvido na cena? Quantas vezes não é necessário que deixemos
de olhar para a tela para não nos sentirmos mal? Ora, a nossa mentalidade esclarecida por milhares de anos de
racionalização não é suficiente para nos proteger desse sentimento irracional? Se não o é, o que se dirá, voltamos a
repetir (pela última vez), daquelas pessoas que viviam há milhares de anos?
Segundo: um dos males, tanto da filosofia, quanto da ciência, segundo Adorno, é a ruptura quase total que se
estabeleceu entre elas, isto é, sua desconsideração recíproca. Usando como exemplo a relação entre a teoria moral
kantiana e as ciências empíricas, Adorno diz que a filosofia, subtraída de todo conhecimento empírico, transforma-se
em mera expressão de Weltanschauungen (visões de mundo) ao passo que a ciência perdeu em poder conceituante
reflexivo. A idéia de Kant sobre a liberdade, expurgada de toda consideração psicológica, empírica, acaba sem
conteúdo algum (cf. ND 214). “A filosofia vive em simbiose com a ciência; não pode separar-se desta sem
dogmatismo, sem recair finalmente na mitologia”. Mas, de acordo com o que falamos na Introdução, a filosofia não
se recobre com a ciência, pois “seu conteúdo (…) consistiria em expressar o que foi desperdiçado ou descartado pela
ciência, pela divisão do trabalho e pelas formas de reflexão próprias do empreendimento de autoconservação”
(Theodor W. Adorno. “Razão e revelação”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel.
Petrópolis: Vozes, 1995, p.58).
79 Esse termo Jameson toma de empréstimo a Althusser.
80 Fredric Jameson. op. cit., p.134.
61
efetivá-la, colocou-lhe esse enorme obstáculo, que foi a hipóstase histórica da falsa
consciência dos meios de dominação.81
Segundo pensamos, o esclarecimento, como fenômeno histórico, acabou
sendo mitificado na obra conjunta de Adorno e de Horkheimer. A falsa consciência
esclarecida da dominação passou a ser considerada à maneira de um evento primordial
mítico, cuja presença “até mesmo no mais remoto passado” reclama sua atualização
compulsiva, tal como a origem deve se efetivar de novo em cada ser e acontecer,
obscurecendo as inúmeras diferenças qualitativas entre todos os fenômenos.
Como dissemos, esse conceito de esclarecimento qua dominação está
presente nos Excursos I e II, mas há duas passagens na primeira parte que também
apontam para ele. A primeira delas é precisamente a frase inicial: “no sentido mais amplo
de pensamento progressivo, o esclarecimento sempre perseguiu o objetivo de livrar os
homens do medo e de investi-los na posição de senhores” (DA 9/19 – tradução
modificada). O pensamento seria caracterizado pelo fato de, inevitavelmente, fazer
progressos, que é o que se vê explicitamente na segunda passagem:
Não é apenas o esclarecimento do século dezoito que é irresistível, como atestou Hegel, mas (e
ninguém sabia melhor do que ele) o movimento do próprio pensamento. Tanto o mais baixo,
quanto o mais elevado discernimento já contêm o discernimento de sua distância com relação à
verdade, que faz do apologeta um mentiroso. (DA 26/33 – tradução modificada)
Apesar dessas duas ocorrências, toda a primeira parte do texto está fundada,
segundo pensamos, em uma outra concepção de esclarecimento, que não considera este
processo de racionalização como recobrindo o absolutamente amplo espectro do
exercício de poder — o qual, efetivamente, sempre existiu. Esse primeiro capítulo enfatiza
a diferença qualitativa do esclarecimento em relação ao comportamento mimético que dá
sua especificidade como uma forma determinada de domínio da realidade. Esta residiria,
segundo pensamos, na emergência significativa do processo de separação do pensamento frente à
realidade, pois, como dizem os autores, a abstração “é o instrumento do esclarecimento”
(DA 19/27). Além disso, se, no Excurso I, é construída a história primeva da
subjetividade, e, de acordo com uma passagem da Dialética negativa que já citamos, “a
abstração (…) é o próprio princípio através do qual o sujeito se torna, em geral, sujeito, é
sua própria essência” (DN 182), logo o conceito de esclarecimento, mesmo no Excurso I,
deveria fundar-se no de abstração. A idéia dos autores explicitada no prefácio de 1969 da
Dialética do esclarecimento de que “atualizar todo o texto teria significado nada menos do que
um novo livro (DA X/10)” talvez se aplique mais propriamente a reformular o conceito
de esclarecimento qua domina ção que serve de guia para os dois Excursos. Qual a ligação
entre atualizar o livro e o conceito de esclarecimento enquanto dominação? Ora, sabemos
que o livro foi redigido sob o influxo da Segunda Guerra Mundial, em que o exercício do
poder se dava de uma maneira imediata e perversa, com o assassínio refinadamente cruel
de milhões de pessoas. Dada a meta dos autores de descortinarem, na razão, o germe que
conduziu ao nazi-fascismo como seu desdobramento último, nada mais compreensível do
que os autores terem estendido o conceito de esclarecimento “até o mais remoto
passado”, de modo a se perceber como as atrocidades do nazismo já se gestavam em
81 É verdade que os autores deixam margem para a mímesis em relação aos dominados, posto que dizem que estes
seriam crédulos, ao contrário dos sacerdotes. Entretanto, isso não é suficiente para salvarmos a teoria da mímesis,
uma vez que, ao ser instrumento de domínio, ela perderia sua especificidade. A tese que advogamos é a de que nem todo
exercício de dominação foi ideológico ou acompanhado de má-fé, exercido fraudulentamente, ou cogêneres. Cremos
que, sem essa ressalva, a teoria da mímesis, embora não seja simplesmente anulada, fica bastante prejudicada.
62
todas as formas de racionalidade, fazendo com que ficasse totalmente fora de questão a
idéia de que tal movimento totalitário fosse apenas um acidente de percurso da razão.
Sendo um tanto (ou bastante) ousados, dizemos que o que teria justificado
escrever um novo livro seria a idéia de reformular o conceito de esclarecimento dos
Excursos para um que contemplasse a abstração como fator que caracteriza propriamente
a emergência e desenvolvimento da razão esclarecida, em contraste com o
comportamento mimético. É precisamente o estabelecimento desse plano de clivagem
entre mímesis e esclarecimento que é feito, segundo nossa interpretação, na primeira parte
do livro, a qual os autores dizem que é o fundamento conceitual das outras.
A pergunta é: houve uma forma historicamente determinada de conceber a
realidade em que tal abstração se mostrou claramente distinta, se comparamos essa forma
com as que a antecederam? De acordo com o primeiro capítulo da Dialética do
esclarecimento, trata-se da mitologia grega.82
c) Mito grego como incício do esclarecimento
A passagem que citamos no penúltimo item, quando nos referíamos à
caracterização do mito (em geral) como já sendo esclarecimento — e que é
invariavelmente empregada pelos comentadores para justificar essa idéia —, terminou
dizendo que o elemento “teórico” do ritual de ser uma representação que quer infl uenciar
realidade tornou-se autônomo “nas primeiras epopéias dos povos”. Ora, é de se supor
que outros povos, além do grego, tivessem epopéias, ou seja, tudo o que se falou antes
sobre o aspecto ordenador e explicador dos mitos como configurando-os enquanto
esclarecimento poderia servir para todos os mitos em geral. Mas as próximas frases que se
seguem a essa última deixam pouca margem para dúvidas quanto a qual mito os autores
se referiam e o motivo para isso:
Os mitos, como os encontram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina e
poder que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar. O lugar dos espíritos e dos demônios
locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da
tribo, pelo sacrifício bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando. As deidades
olímpicas não se identificam mais diretamente aos elementos, mas passam a significá-los. Em Homero,
Zeus preside o céu diurno, Apolo guia o sol, Hélio e Éo já tendem para o alegórico. Os deuses
separam-se dos elementos materiais como sua suprema manifestação. De agora em diante, o ser se
resolve no lógos — que, com o progresso da filosofia, se reduz à mônada, mero ponto de referência
— e na massa de todas as coisas e criaturas exteriores. (DA 14/23 – grifos nossos)
Com essa separação, que, de acordo com o que vimos ao longo do primeiro
capítulo, possibilita a objetivação da natureza, os autores concluem: “o mito converte-se em
esclarecimento, e a natureza em mera objetividade” (DA 15/24 – grifos nossos).
Como dissemos no item sobre o mito em geral, este necessitou de um
desenvolvimento da linguagem capaz de sedimentar uma nova maneira de conceber o real
a partir de sua origem; também a língua grega propiciou mudança qualitativa em relação
aos mitos anteriores:
Enquanto totalidade desenvolvida lingüisticamente, que desvaloriza, com sua pretensão de
verdade, a crença mítica mais antiga — a religião popular —, o mito patriarcal solar é ele próprio
esclarecimento, com o qual o esclarecimento filósofo pode-se medir no mesmo plano. (…) A
82 Na verdade, os autores também se referem ao mito indiano como contendo as características que apontaremos.
Para simplificar a argumentação, vamos nos referir apenas ao mito grego, mas tendo-se em mente que elas também
se aplicam àquele outro.
63
própria mitologia desfechou o processo sem fim do esclarecimento 83 (…). (DA 17/25-6 –
tradução modificada; grifos nossos)
Cremos que essas duas passagens sejam suficientemente enfáticas para
mostrar aquilo que estávamos anunciando como pedra de toque de nossa argumentação: a
emergência do esclarecimento — como forma específica de relação com o mundo em que
se procura objetificar da natureza de tal modo a propiciar um domínio sobre ela a partir
de um novo modo de conhecê-la — é determinada pela abstração do pensamento frente à
realidade, o que começou a ocorrer de modo enfático com o mito grego, uma vez que as
divindades não se confundiam com as forças da natureza, “mas passam a significá-las”.
Trata-se de um processo de referência à distância, não de um sentimento de produção da
realidade tal como na dimensão imagética vivencial dos deuses das mitologias africanas,
egípcias, etc. Todo o âmbito do lógos já estava lançado na separação entre a divindade grega
e a natureza que ela representava. Ora, como dissemos, toda representação supõe uma
abstração e vice-versa. A mitologia grega é o passo, em termos de genealogia da razão
ocidental, que estabeleceu a distinção entre o pensamento e a vivência imagética, intuitiva,
corporal, concreta, em relação à natureza. Não havia essa diferenciação entre o
transcendente e a vivência concreta que se possuía em relação à imagem do poder da
natureza, percebido como sagrado. O que se vê como marca inconfundível da
racionalidade ocidental, os conceitos de eidos, de essência, de Idéia, de substância (em
oposição a hylé, a aparência, a manifestação, a acidente), já havia se configurado na
abstração dos deuses gregos, pois estes “separam-se dos elementos materiais como sua
suprema manifestação”, tal como a essência, por exemplo, é também pensada como, ao mesmo
tempo, separada (de modo enfático em Platão, e pelo menos em pensamento em
Aristóteles) e condensando o que há de mais real nas coisas:
As categorias, nas quais a filosofia ocidental determinava sua ordem natural eterna, marcavam os
lugares outrora ocupados por Ocnos e Perséfone, Ariadne e Nereu. As cosmologias pré-socráticas
fixam o instante da transição. O úmido, o indiviso, o ar, o fogo, aí citados como a matéria
primordial da natureza, são apenas sedimentos racionalizados da intuição mítica. Assim como as
imagens da geração a partir das águas do rio e da terra, que vieram do Nilo e chegaram até os
gregos, tornaram-se 84 aqui princípios hilozoístas, elementos, assim também toda a luxuriante
plurivocidade dos demônios míticos espiritualizou-se na forma pura das entidade ontológicas. (DA
11-2/21 – tradu ção modificada; grifos nossos)
Desse modo, vemos que o aspecto ordenador dos mitos não-gregos não
configura, per se, o aspecto propriamente esclarecido deles, mas tão-somente a marca que os
diferencia da magia plurianimista. O que marca o mito grego como esclarecimento é a
diferenciação radical entre os deuses e a natureza.
O título do livro de Paul Veyne, “Acreditavam os gregos em seus
85
deuses?” , ao qual o autor responde afirmativamente, é um indicativo para nossa
argumentação. Há como se falar de crença nos mitos fora da Grécia? Não, pois lá se trata
de uma vivência concreta, sentida, do poder imediato dos deuses em relação à vida, e não
de uma adesão consciente a uma idéia que poderia não ser realizada. Como dissemos no
primeiro capítulo, a relação com o poder imagético é pré-conceitual, independe do que
83 “Desfechou”, que Guido de Almeida verteu, erroneamente, no presente do indicativo, está como tradução de ins
Spiel gesetzt hat, literalmente: “colocou em jogo”. Mas o verbo usado na tradução é pertinente, pois, segundo o
dicionário Aurélio, um de seus significados é: “Lançar ou desencadear com ímpeto: desfechar uma campanha.”
84 Nesse ponto Guido omite a referência ao Egito, traduzindo
die vom Nil zu den Griechen kamen, hier zu
hylozoistischen… por simplesmente “se tornaram, entre os gregos, princípios…”.
85 Paul Veyne, Acreditavam os gregos em seus deuses? São Paulo: Brasiliense, 1984.
64
sabemos sobre o mundo. No caso da crença, já admite-se essa mediação do pensamento, do
conceito, em relação ao transcendente. Os mitos gregos puderam ser questionados, tal
como Xenófanes criticou o aspecto projetivo dos deuses 86, precisamente porque os
gregos acreditavam neles, não os vivenciando como uma imagem com poder de produção
da realidade. A crença, portanto, já é um afastamento em relação à transcendência, e radical,
se comparado ao que houve nas fases anteriores de assimilação do mundo.
O que marca mais profundamente a diferença do esclarecimento em relação
às formas miméticas de assimilação do mundo é o fato de que o homem, devido à
capacidade de conceber os deuses — agora tomados como meras representações mentais
—, passou a se considerar igual a eles. A passagem do Gênesis “façamos o homem à nossa
imagem e semelhança” e o pleno antropomorfismo da mitologia grega, precocemente
denunciado por Xenófanes, atestam a consciência de que é preciso se afastar daquilo que
deve sofrer o domínio humano, ou seja, a natureza. A proximidade em relação à força
divina de criação é a justificativa para a exploração, tanto do material caótico da natureza,
transformado em uma multidão de coisas a serem dominadas, quanto da maioria da
comunidade, que sempre teve que ser expulsa do conluio com as benesses das divindades.
Na magia, a diferença em relação aos deuses não é negada — o que se mostra precisamente
pela necessidade de o feiticeiro ter que se assemelhar a eles através do ritual. Esse
“reconhecimento” implícito da diferença acompanhado do movimento rumo à
identificação com o outro é algo próprio da mímesis. Unificando a fonte de
autodeterminação do sujeito, o esclarecimento deu fim a essa ambigüidade através da
abstração do pensamento. O ímpeto para tal abstração veio precisamente da consciência
de que “o pensamento só tem poder sobre a realidade pela distância” (DA 76/72).
2. Abstração, subjetividade e poder
a) Origem do sujeito nas relações de poder
A abstração do mito grego propiciou um importante hiato reflexivo entre o
saber e a realidade a que ele diz respeito, que possibilitou a tomada de consciência de que
o que estrutura a realidade é a dominação sobre ela. Se o mito em geral colocou a relação
de poder dispersa da magia no núcleo de explicação da origem, o mito grego, separando a
divindade da natureza, pôde fornecer o distanciamento suficiente para que se percebesse
que tal explicação possuía como seu fundamento a estruturação das coisas a partir de um
processo de ordenação através de domínio. Se as coisas são inteligíveis a partir da
transcendência sagrada, isso somente acontece devido ao fato de que elas são
reconhecidas como sujeitas ao poder dos deuses. Mas, ao mesmo tempo, o mito grego
também já reconhece que esse inestimável poder de intelecção do real proporcionado
pelos deuses tem um ônus: é preciso submeter-se àquilo que dá o poder sobre as coisas;
“perante os deuses, só consegue se afirmar quem se submete sem restrições” (DA 15/24).
É verdade que a supremacia dos deuses sobre tudo já estava estampada em todos os
mitos, mas a diferença fundamental é a de que ela, agora, ganha uma evidência
qualitativamente diferente devido ao fato de ela ter sido reconhecida em sua relativa
autonomia, ou em seu peso próprio:
86 “(…) se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem com elas desenhar e criar obras como os
homens, os cavalos desenhariam os formas dos deuses semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, e
fariam os corpos [dos deuses – vf] tais quais eles próprios têm”. Xenófanes, DK 21 B 15. In: Pré-socráticos. Tradução
de Wilson Régis. São Paulo: Abril, 1973, p.70. (Col. Os Pensadores – tradução modificada)
65
o despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como o princípio de todas as
relações. Em face da unidade de tal razão, a separação de Deus e do homem reduz-se àquela
irrelevância que, inabalável, a razão assinalava desde a mais antiga crítica de Homero. Enquanto
soberanos da natureza, o deus criador e o espírito ordenador se igualam. A imagem e semelhança
divinas do homem consistem na soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando.
(DA 15/24; grifos nossos)
O sujeito pôde configurar-se como tal em seu surgimento pelo fato de que
a consciência reflexiva do poder como sede da possibilidade de intelecção do real
proporcionou sua unificação. É exatamente pelo fato de reconhecer o domínio como fonte
de compreensão que ele pôde se ver como algo unificado em torno daquilo que seria a
fonte desse domínio. O correlato simultâneo dessa unificação do sujeito como origem do
poder é o nivelamento do objeto que sofre tal domínio, com a conseqüente separação,
distanciamento, de um em relação ao outro: “o preço que os homens pagam pelo
aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O
esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens.
Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los” (DA 15/24). Em vez de uma
relação difusamente mimética com o poder, em que o poder transcendente só é alcançado
a partir da igualação do sujeito a cada manifestação divina, tem-se, agora, a identificação
do sujeito com a fonte do poder em geral.
O feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar
assustadiço ou suave. Embora seu ofício seja a repetição, diferentemente do civilizado — para
quem os modestos campos de caça se transformam no cosmo unificado, no conjunto de todas as
possibilidades de presas — ele ainda não se declarou à imagem e semelhança do poder invisível. É
só enquanto tal imagem e semelhança que o homem alcan ça a identidade do eu que não pode se
perder na identificação com o outro, mas toma definitivamente posse de si como máscara
impenetrável. É à identidade do espírito e a seu co rrelato, à unidade da natureza, que sucumbem as
múltiplas qualidades. (…) Como a ciência, a magia visa a fins, mas ela os persegue pela mímesis,
não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. (DA 16-7/24-5)
Com base nisso, cremos que agora esteja clara a impropriedade de se
estabelecer um conceito de esclarecimento qua dominação, sem que se reconheça que a
cisão conceitual operada pelo processo de abstração do pensamento frente à realidade
tenha um peso expressivo para delinear a ruptura entre um conhecimento mimético e
outro conceitual esclarecido:
A distância do sujeito com relação ao objeto, que é o pressuposto da abstração, está fundada na
distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado. (…) A universalidade
dos pensamentos, como a desenvolve a lógica discursiva, a dominação na esfera do conceito,
eleva-se fundamentada na dominação do real. É a substituição da herança mágica, isto é, das
antigas representação difusas, pela unidade conceitual que exprime a nova forma de vida,
organizada com base no comando e determinada pelos homens livres. O eu, que aprendeu a
ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral
com o pensamento ordenador, e essa verdade não pode subsistir sem as rígidas diferenciações
daquele pensamento ordenador. (DA 20/28)
Mas há que se ter em mente que o mito grego ainda não contém o elemento
teórico que caracterizará a ciência esclarecida. Embora já tenhamos um processo de
abstração significativo entre pensamento e realidade através da separação entre deuses e
natureza, trata-se ainda de deuses, ou seja, de forças sagradas que exigem sua obediência,
que impõem um modo de vida, um sentido para a existência a partir da devoção a seus
preceitos, etc. No mito grego, sobrevive a experiência do poder infinito da natureza,
através do entrelaçamento entre os deuses olímpicos e os deuses ctônicos, assim como
“as potências do bem e do mal, a graça e a desgraça, não eram claramente separadas” (DA
20-1/28). Deus e o diabo são as duas faces de uma mesma moeda: um só faz sentido pela
proximidade do outro. A promessa de um paraíso sempre esteve ligada à ameaça de
66
perdição, assim como o progresso sempre só fez sentido como idéia legitimadora do
domínio da natureza na medida em que sua ausência ou diminuição era pensada como
levando ao retrocesso e à morte.
A construção simbólica do mito grego ainda era carregada da dimensão
vivencial, vinculada a um cosmo estruturado segundo uma vivência coletiva que se
decantava nos mitos antropomórficos. Apesar de a ciência moderna ter expurgado de suas
fórmulas essa dimensão imagética, prática, concreta, podemos ver que em todo o
processo de constituição de um pensamento que foi aos poucos se destacando mais e
mais da realidade múltipla e dispersa, a linguagem configurou-se como a depositária das
forças sobrenaturais e humanas.
b) Linguagem e coletividade; a metafísica como expressão de poder
Como vimos no capítulo anterior, “através da divindade, a linguagem passa
da tautologia à linguagem” (DA 21/29). A universalidade da designação, o acordo tácito
coletivo, intersubjetivo, em relação à percepção do mundo, não é algo neutro ou
desvinculado de relações de poder. O próprio acordo da força designativa da palavra
congrega, sublimada, a presença da força de coesão social. “Poder e conhecimento são
sinônimos” (DA 10/20) — a pregnância dessa fórmula, que lhe confere sua aparente
falsidade, parece obscurecer, aos olhos melosamente democráticos do leitor
contemporâneo, o que ela tem de profundamente verdadeiro em termos genealógicos, ou
seja, não apenas em termos históricos, mas de uma origem constituidora de um sentido que
não se perdeu apenas como um começo, mas subsiste enquanto pretensão de validar
estruturas de dominação, seja através de ideologias facilmente desmascaráveis, ou pela
formação, no indivíduo, da consciência da necessidade da adaptação, ou através de
infinitas formas de manutenção do status quo. Universalidade, poder, adaptação, subsunção
do singular constituem elementos de um complexo de determinantes da experiência com
o mundo que adquirem expressão e força na linguagem pretensamente neutra: a própria
neutralidade presumida do acordo intersubjetivo dos conceitos exprime relações de
poder, por mais que sejam mediadas, sublimadas.
A dominação defronta-se com o indivíduo como o universal, como a razão na realidade efetiva. O
poder de todos os membros da sociedade, que enquanto tais não têm outra saída, acaba sempre,
pela divisão do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido justamente da realização do
todo, cuja racionalidade é assim mais uma vez multiplicada. Aquilo que acontece a todos por obra
e graça de poucos realiza-se sempre como a subjugação dos indivíduos por muitos: a opressão da
sociedade tem sempre o caráter da opressão por uma coletividade. É essa unidade de coletividade
e de dominação e não a universalidade social imediata, a solidariedade, que se sedimenta nas
formas do pensamento. (DA 28/35)
Apesar de criticar a mitologia e os poetas por usarem imagens e serem
pedagogicamente suspeitos, a metafísica platônica — e também a aristotélica —, com sua
constituição de um âmbito destacado da realidade sensível, refletia, “com a mesma pureza
das leis da física, a igualdade dos cidadãos plenos e a inferioridade das mulheres, das
crianças e dos escravos.” (DA 28/35). A abstração das relações entre as Idéias, as normas
de hierarquia da República, a afirmação enfática do chorismós (separação), nada mais eram
que a hipóstase da relação de co-pertencimento dos dominadores a um nível de hierarquia
social que demandava o encadeamento rigoroso das funções, espelhada na relação
abstrata e rigorosa dos conceitos. Da mesma maneira que a sede do comando, do poder
social se afasta da coletividade para melhor dominá -la, o conceito se separa da fluidez da
relação mimética com a natureza.
Apesar de toda essa abstração do pensamento conceitual para com a relação
imagética frente ao real, a metafísica ainda mantinha algo da transcendência do poder
67
infinito como totalidade do mana, na medida em que congregava todo o cosmo em uma
unidade teleologicamente estruturada, que absorvia, tanto os homens, quanto as coisas:
“(…) os objetos conhecidos (…) não recebem do bem apenas a faculdade de serem
conhecidos, mas também lhe devem o ser e a essência (…)”87; “admite-se geralmente que
toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem
qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas
tendem” 88. O zoón politikón aristotélico é expressão inequívoca desse entrelaçamento
cósmico, ordenado em termos macro, da phýsis e da pólis, em que fica difícil de decidir qual
das duas é o modelo para intelecção da o utra.
A percepção estruturada da realidade a partir dessa integração é o que
podemos caracterizar como a razão objetiva, na medida em que o pensamento, mesmo se
afastando da realidade, ainda possuía algo daquela expressão objetiva da mímesis, em que
a auto-compreensão do sujeito passava radicalmente por sua amoldagem ao objeto. A
metafísica é ainda, apesar de toda a sua expressiva abstração, devedora de um
posicionamento externo do sujeito, que pretende fazer com que a fonte de intelecção do
real absorva e exprima um co-pertencimento do sujeito e do objeto.
Em contraste com essa razão, a modernidade presenciou a emergência da
razão subjetiva, ancorada no solipsismo fundacional da realidade. Ninguém melhor do que
Monsieur Descartes para servir como alvo de nossas considerações sobre o modo como se
deflagrou a ruptura decisiva entre o sujeito e o mundo.
c) Negação abstrata cognitiva da natureza: o cogito cartesiano
A primeira Meditação de Descartes é uma tentativa de, através de sucessivos
graus de dúvida, de negação de certezas de várias ordens, chegar a um “ponto
arquimediano do conhecimento”, que fosse indubitavelmente seguro. Descartes procura,
com o elemento próprio do ceticismo, a dúvida, afastar a possibilidade de se duvidar da
razão como faculdade capaz de certezas inabaláveis. Ele procura generalizar a dúvida
hiperbolicamente, mesmo que essa dúvida não nos acometesse em nossa experiência
cotidiana. Trata-se de uma investida deliberadamente feita de tal modo que toda e
qualquer possibilidade de erro deva ser extirpada do pensamento. O que o filósofo
pretende é encontrar uma verdade que seja exemplarmente segura, de tal modo que, a partir
dela, a razão se mostre o instrumento inquestionável para a construção do edifício do
conhecimento.
No processo de dúvida generalizada, não se trata de colocar em cheque as
verdades singulares, pois isso “seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos
alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei
inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam
apoiadas” (Meditações 85)89. Inicialmente, Descartes coloca em dúvida tudo aquilo que
nos vem dos sentidos: as cores, sons, a existência corporal, etc.; depois, através da idéia de
que tudo o que se sabe pode ser apenas um sonho, todos os conhecimentos científicos da
natureza, como física, astronomia, etc.; depois, com a idéia da possibilidade de um Deus
que tenha nos feito somente ter ilusões, ou de um gênio maligno que nos engane o tempo
87 Platão. A república. Belém: Editora da Universidade do Pará, 1980, p.280. (509b)
88 Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e de Gerd Bornheim. São Paulo: Abril, 1984, p.49
(1094a). (Col. Os Pensadores)
89 Nesse item citaremos a partir de: René Descartes. Meditações. Tradução de J. Guinburg e de Bento Prado Júnior.
São Paulo: Abril, 1984, pp.73-142. (Col. Os Pensadores)
68
todo, as certezas matemáticas: “pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane
todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um
quadrado, em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais
fácil do que isso” (Meditações 87).
Mas, por mais que a dúvida da verdade sobre toda e qualquer coisa exista na
mente, ela somente pode ser isso, uma dúvida, pelo fato de que exerço minha faculdade
de pensar. Por mais que haja um gênio maligno que pudesse me enganar sobre a realidade
atual ou formal — ou seja, externa à mente — de alguma coisa, ele jamais poderá pôr em
questão que, enquanto duvido de qualquer coisa, eu existo, “não poderá jamais fazer com
que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa” (Meditações 92). A existência do
eu é tomada como a primeira certeza na ordem das razões apresentada; “mas o que sou
eu, agora que suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dizê-lo,
malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganarme?” (Meditações 93). Descartes, então, investiga aqueles atributos que poderiam fazer
parte de mim como substância pensante:
Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade que não possuo corpo algum, é
verdade também que não posso nem caminhar nem me alimentar. Um outro é sentir; mas não se
pode também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o
sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente. Um outro é pensar; e verifico
aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu
sou, eu existo: isso é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso;
pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de
existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando
precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que
são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. (Meditações 94, §7)
Descartes nega que sentir seja absolutamente seguro com base no
argumento de que tudo pode não ter passado de um sonho; o que é efetivamente certo e
indubitável, portanto, é a pura capacidade de pensar, igualada à razão, ao entendimento,
ao espírito.90 O parágrafo seguinte (§8) ainda continua nessa linha de raciocínio,
terminando por excluir todo conhecimento proveniente da imaginação como útil para
conceber a natureza do eu.
No §9, entretanto, ele diz: “Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que
pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que
nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não é pouco
se todas essas coisas pertencem à minha natureza”. Ora, se é necessário ter corpo para
sentir — como foi dito no §7 —, e se sentir faz parte de mim como coisa pensante, a
conclusão imediata é que é igualmente necessário que se tenha corpo. Mas Descartes já
havia desconsiderado o próprio sentir como sendo parte essencial da res cogitans,
limitando-a à razão.
O §7 é sumamente problemático no corpus de todas as Meditações, posto que,
em várias outras passagens, Descartes assume o sentir como um dos modos da res cogitans,
equiparando a percepção sensível com a certeza do exercício da atividade da consciência:
“(…) conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente nada fora
de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que
chamo sentimentos e imaginações somente na medida em que são maneiras de pensar,
residem e se encontram certamente em mim” (Meditações 99). Essa passagem mostra
claramente que o sentir é tomado em geral, não como algo diretamente vinculado ao
90 Tal estratégia reaparece nos mesmos termos na Recherche de la verité (OP, II, p.1131-2).
69
corpo, como foi dito no §7, mas, sim, como um dos modos do pensamento, que, em
termos mais fundamentais, equivale a ser consciente: “pelo nome de pensamento,
compreendo tudo quanto está de tal modo em nós que somos imediatamente conscientes
dele [ut ejus immediate conscii simus]”91.
A questão que colocamos é: por que Descartes excluiu o sentir como algo
próprio ao eu no §7?
Nesse parágrafo, o autor estava estabelecendo a natureza daquilo que existe
indubitavelmente. Tratava-se de uma segunda certeza, após a primeira, que seria a
existência tout court do eu. Mas é preciso que se atente para o fato de que as duas certezas são
circulares, posto que a primeira somente pôde ser alcançada com o argumento de que o
gênio maligno “não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser
alguma coisa”. A natureza do eu como coisa pensante já deveria ser dada como conhecida de
modo claro e distinto, uma vez que foi exatamente pelo fato de pensar que se chegou à
certeza da existência do ego. Ou seja, se o pensamento é a condição de possibilidade para a
certeza da existência, então ele já é conhecido como indubitável, o que faria com que não
fizesse sentido perguntar pela natureza tout court do ego, mas, sim, somente por aquilo que
está incluído nela. Essa questão por esses modos do pensamento é o que estabelece e
responde o §9 da segunda meditação.
A nossa hipótese de leitura é uma suposição factual da construção do
próprio texto das Meditações: dizemos que os parágrafos 7 e 8 constituem uma interpolação
ao texto redigido em um primeiro momento, uma vez que eles — mais claramente o §7
— possuem um conceito de cogitare que destoa muito do restante das Meditações. Todo o
texto que se segue a tais parágrafos é homogêneo demais em sua articulação em torno do
conceito de pensamento como ligado à noção de estar consciente, de modo que os
parágrafos 7 e 8 não podem ser pensados como estando na mesma linha de
desdobramento da argumentação como um todo. Toda a idéia da terceira certeza — de
que o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo —, por exemplo, está fundada na
assunção de que, por mais falsas que sejam as imagens que tenho dos corpos, mais certo é
que eu me conheço como coisa pensante: “pois pode acontecer que aquilo que eu vejo
não seja, de fato, cera; pode também se dar que eu não tenha olhos para ver coisa alguma;
mas não pode ocorrer, quando vejo ou (coisa que não mais distingo) quando penso ver,
que eu, que penso, não seja alguma coisa” (Meditações 98). Além disso, a questão que o §7
levanta, como vimos, é supérflua. O que é estabelecido como segunda certeza — a natureza
do ego como pensante — é, na verdade, o que já foi tomado como conditio para a primeira,
ou seja, que o eu existe porque pensa.
Mas, mesmo admitindo essa argumentação como decisiva, a questão
permanece: por que essa interpolação? O único sentido interno ao texto do §7 é que ela
faz a equalização da sede do pensar à razão, ao intelecto, ao espírito (o que será desfeito
imediatamente a seguir). A questão pode ser mais especificada: por que Descartes fez essa
interpolação de perguntar pela natureza da coisa que já se sabia pensante, respondendo
que se tratava de um ser que é razão, entendimento, espírito?
Primeiramente, deve-se notar que essa equalização se dá em um momento
crucial, ou seja, quando Descartes está determinando aquilo que dá o suporte para a certeza
da existência do eu, pois o pensar possui um prius em relação à existência, uma vez que
esta é deduzida dele. Dado que essa certeza é o que há de mais fundamental na edificação
91 René Descartes. Obra escolhida. Exposição geométrica. Definição I. Apud Raul Landim Filho, Evidência e verdade no
sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992, p.50; tradução modificada. Sobre a equiparação do pensamento à noção de
consciência, cf. este texto de Raul Landim, pp.37-54.
70
do conhecimento racionalmente seguro, ela deve ser testemunho da autarquia absoluta da
razão como determinante da verdade sobre o sujeito e sobre o mundo. Tudo o que
Descartes pretende é fundar a autonomia incondicional da razão em relação ao seu outro,
ou seja, a natureza. Ele quis isolar o pensamento de tudo o que não estivesse contido no
próprio sujeito a partir de si como pura atividade.
Na primeira Meditação, o autor usa da idéia de dúvida generalizada em relação
a todas as verdades. Ora, o que nos chama à atenção nesse ponto é que Descartes dá um
salto que é referido pelos comentadores largamente como argumento pacífico, sem
qualquer problema: ele passa da condição de um ser que duvida de várias coisas para a
condição de um ser simplesmente que pensa (que é consciente). Apesar de o verbo
“duvidar” ter também a condição de verbo intransitivo, no sentido de se ser cético, no
contexto da primeira Meditação ele é sempre empregado transitivamente, ou seja, trata-se
sempre de se duvidar de… Ao passar para a certeza inabalável e exemplar do cogito, que
estabelece a âncora irremovível para apoiar a invocação da luz natural, ou seja, da
evidência das idéias claras e distintas, Descartes elide a transitividade do dubito da primeira
Meditação para a intransitividade do cogito da segunda Meditação. Embora ele sempre diga que,
mesmo duvidando da verdade da existência das coisas não pode se duvidar que elas
povoam o pensamento — ou seja, é igualmente claro e distinto tanto que se existe quanto
que se tem coisas nas quais se pensa —, o passo para estabelecer a existência do ego como res
cogitans abstrai dessa inevitabilidade do conteúdo do pensamento. Ou seja, Descartes, ao chegar à
conclusão da existência da res cogitans, quis tomar o sujeito única e exclusivamente como
mera atividade.
Ora, aqui podemos ver por que Descartes quis equalizar a determinação do
eu como coisa pensante à razão, excluindo o sentir como um de seus modos: trata-se do
fato de que o sentir também invoca o elemento transitivo da dúvida da primeira Meditação,
pois sempre diz respeito ao mundo. Como Descartes mesmo diz, é preciso ter corpo para
sentir, ou seja, este se liga a um obiectum, qualifica-se essencialmente como reação a alguma
coisa. Mas, ao mesmo tempo, Descartes quer tomar a primeira certeza apenas e tão-somente a
partir da determinação do sujeito como atividade, como pura atividade. A hesitação nãoresolvida para com o sentir expressa pela interpolação dos parágrafos 7 e 8 é explicada
por isso: pelo fato de Descartes ser suficientemente sincero para afirmar que a existência
da res cogitans é tão segura e indubitável, é tão clara e distinta, quanto a existência do
conteúdo no pensar, mas, por outro lado, sua ânsia de estabelecer a existência do sujeito
como coisa pensante somente a partir de sua condição de ser ativo, o fez elidir aquilo que é
inelidível: somente porque há coisas em meu pensamento é que eu posso saber que existo. A minha
certeza irremovível como algo que pensa depende de, funda-se em, que eu sempre penso em
alguma coisa, ou seja, sem essa “alguma coisa”, eu não poderia saber que existo. Para
conceber-me reflexivamente como um ser ativo, eu preciso que haja algo que sofra essa
atividade. É inconcebível — diríamos: é impossível — que a atividade seja percebida sem
que ela tenha um substrato sobre o qual ela é exercida. Em outras palavras: eu dependo do
obiectum para me determinar como subiectum.
Assim, deveríamos reformular a famosíssima expressão da primeira certeza
das Meditações: Cogito aliquid, ergo sum (penso algo, logo existo).
Essa idéia está muito claramente expressa por Adorno:
Nenhuma atividade do pensar enquanto ato seria possível de modo algum, se o pensamento não
estivesse em si mesmo de algum modo ligado, segundo sua própria configuração, ao que não é em
si mesmo o pensar: ali é onde se deve buscar o que se deveria decifrar no pensar. Onde o pensar é
realmente produtivo, onde é criador, ali ele é sempre também um reagir. A passividade está no
71
âmago do ativo, é um constituir-se do Eu a partir do não-Eu. (…) A objetividade, a verdade do
pensamento depende de sua relação com a coisa. 92
Pensar é, em seu sentido próprio, pensar em alguma coisa. Mesmo na forma lógica de abstração da
“alguma coisa” que é concebida ou julgada, que não precisa de qualquer ser para se estabelecer,
permanece vivo para o pensamento aquilo que não é idêntico, que não é pensamento, em que
pesem seus esforços para extinguí-lo. A razão torna-se irracional quando se esquece disso e
hipostasia seus produtos, as abstrações, contra o sentido do pensamento. O imperativo de sua
autarquia o condena ao vazio e, em último termo, à imbecilidade e ao primitivo. (ND 44; tradução
de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita; tradução modificada)
Em outras palavras, haver coisas das quais se duvida é condição de
possibilidade de duvidar, haver coisas nas quais se pensa é condição de possibilidade de
pensar. Isso significa que, se o pensamento é uma mediação necessária para o objeto, este
o é para o sujeito. A negligência “deliberada” de Descartes em relação a essa mediação do
objeto em relação ao sujeito é demonstrada na afirmação de que o cogito somente tem
validade epistemológica atualmente: “todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em
meu espírito”. “Atual” deriva de atuar, de agir, ou seja, o que é atual é aquilo que é
pensado como atuante, como ativo, que exerce uma determinada atividade presente.
Segundo Adorno, “desde que se procurou o fundamento de todo o conhecimento na
pretensa imediatidade do dado subjetivo, procurou-se — por assim dizer, submisso ao
ídolo do puro presente — expulsar do pensamento sua dimensão histórica. O fictício e
unidimensional ‘agora’ torna-se o fundamento cognitivo do sentido interno” (ND 63).
A autocerteza do sujeito em relação a sua existência quer extirpar do
conhecimento toda a dimensão histórica que ele tem pelo fato de lidar com objetos, com
coisas. A autodeterminação do sujeito dá-lhe a ilusão de que pode obter verdades isentas da
necessidade de referir-se à exterioridade do mundo, que acaba lhe mostrando a
necessidade de exprimir o contexto histórico em que tais coisas são pensadas. Como é
fácil admitir que ideologia não necessariamente é algo conscientemente construído, então
podemos dizer que a certeza pseudo-solipsista é ideológica: nega que o sujeito seja
determinado pelo objeto, na medida em que o é pela história que condicionou o modo
como este é configurado pelo conceito, isto é, que ele seja essencialmente constituído
como um ser que herda historicamente um poder de formar conceitualmente a realidade que
o rodeia. O espírito quer, não apenas mostrar sua superioridade sobre a natureza, mas,
também, negar que seja mediado por ela.
Por mais abstratas que fossem as idéias das velhas metafísicas platônica,
aristotélica e do medievo, a historicidade social imanente às formas do pensamento ainda
era reconhecida, na medida em que elas se situavam em um contexto político, ético,
social, etc. O conhecimento não estava isento da consciência da obrigação de exprimir o
pertencimento do homem ao mundo, sua presença corporal, sua dimensão de ser vivente,
etc. Em Descartes, o pensamento procurou fundar todo o real na autarquia absoluta do
espírito, negando a imbricação entre natureza e sujeito como fundante da identidade deste
último, ou seja, negando que o sujeito somente pode ser o que é a partir do que ele não é,
ou seja, do objeto: “O aparentemente insuportável: a subjetividade pressupõe o fático, e a
objetividade, o sujeito, é insuportável apenas para tal ofuscamento, para a hipóstase da
relação entre causa e efeito, do princípio subjetivo, ao qual a experiência do objeto não se
conforma” (DN 144).
92 Theodor W. Adorno. “Observações sobre o pensamento filosófico”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução
de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 17-8.
72
Mas essa negação da natureza não é algo absolutamente falso. Ela mostra o
caminho que o espírito efetivamente tomou para conhecer a si mesmo, a saber,
procurando ter a segurança em relação à natureza através do conhecimento seguro do que
ele mesmo é. Como já citamos anteriormente, o processo de abstração é o que dá a
essência do sujeito, é o que o faz se tornar aquilo que é, um su-jeito em contraposição a
um ob-jeto: “por isso, o recurso àquilo que ele mesmo não é, exterior, só pode parecerlhe violento” (ND 182-3). Além disso, esse autoconhecimento é a via, historicamente
delineada, de superação dessa ilusão de independência absoluta do sujeito frente ao
mundo: “O sujeito, no seu pôr-se a si mesmo, é aparência ilusória e, ao mesmo tempo,
algo sobremodo real do ponto de vista histórico. Ele contém o potencial da superação de
sua própria dominação”.93
O procedimento que Descartes usou em sua dúvida hiperbólica é um
exemplo impressionantemente literal de negação abstrata, tal como Hegel a formulou:
“positividade abstrata, ou seja, confirmada por arbítrio subjetivo” (ND 162). Em Hegel, o
caráter abstrato da negação é devido ao fato de que ela é total, é uma Vernichtung, um
aniquilamento do direito, da qualidade, da natureza própria do outro enquanto tal, e, não,
uma Aufhebung, uma negação determinada, dialética, um “suprassumir”, em que tal “direito”
do que é negado sobrevive no resultado da negação. De acordo com esse conceito de
determinidade da negação, a lei seria uma negação determinada do desejo do outro, na
medida em ela nega, não que o outro tenha qualquer desejo, mas, sim, aqueles desejos
incompatíveis com a vida em comum, ao passo que a opressão, a exclusão social, seriam
negação abstrata do desejo do outro. Essa última seria o resultado de uma posição
arbitrária, por que é, na verdade, uma imposição motivada subjetivamente contra, ou alheia a,
determinações do objeto da negação. Como diz Marilena Chauí, “etimologicamente,
violência vem do latim vis, força, e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir
contra a natureza de algum ser (…); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a
vontade e a liberdade de alguém (…)”94. Usando o primeiro significado, mais geral, e que
abrange o segundo e os demais que a autora cita, podemos dizer que a negação abstrata é
um ato de violência em relação àquilo que é verdadeiro em algum ser, ou que é o melhor
nele, o que determina sua natureza, sua qualitas, etc.
Mas, por outro lado, se aquilo que uma negação do objeto conserva dele é o
que o torna algo ruim, desnaturado, degenerado, então, segundo o que podemos ler da
Dialética do esclarecimento, então não se trata de uma negação determinada, mas, sim,
abstrata. Dizemos, portanto, que a razão — tal como se cristalizou na metafísica, na
ciência moderna, etc. — não é uma negação determinada do mito, embora possa parecer,
uma vez que o mito já era uma forma de explicar a realidade através da abstração dos
deuses, etc., e a razão negou o caráter sagrado dos deuses, tornando-se um pensamento
secularizado, conservando a abstração e o desejo de ordem dos mitos. Entretanto, a idéia
da negação dialética “negar conservando o negado” não pode ser aplicada nessa leitura da
relação entre mito e filosofia, pois o que esta e a racionalidade científica dela derivada
conservaram do mito já era índice da inverdade do próprio mito: a coerção natural transposta
para a imagem simbólica mítica. Deste modo, vê-se que, para Adorno, a dialética do
esclarecimento é fundada em sucessivas negações abstratas, porque todas as etapas de seu
desenvolvimento são reafirmações do caráter falso da cultura, que molda os homens à
imagem e à semelhança do que ela reteve da natureza: a ausência de liberdade. Mas se a
93 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.197.
94 Marilena Chauí. “Ética e violência”. In: Teoria e Debate. N.º 39. São Paulo: Perseu Abramo, 1998, p.33.
73
dialética moderna, fundada primordialmente na concepção hegeliana da “ciência da
experiência da consciência”, estabelece-se a partir da idéia de uma série de negações
determinadas, em que o antecedente é suprassumido pelo posterior, como dizer-se que
haveria uma “dialética” do esclarecimento? A trajetória da razão ocidental é configurada
como uma funesta relação entre o eu e seu outro, em que a racionalidade acaba sempre se
enredando no que a natureza tem de aprisionante. O termo “dialética” no texto de 1947
deve ser lido, não de acordo com a idéia otimista da Fenomenologia de Hegel, mas como
uma trama funesta em que o antecedente sobrevive mutilado na marcha do autoconhecimento do espírito. O eu absolutamente consciente de si a partir de seu solipsismo
metodicamente construído acaba ressoando aquilo que se queria expulsar totalmente da
civilização: o mito. O esclarecimento, que, desde Xenófanes, sempre protestou contra o
caráter projetivo dos mitos, contra a remissão de todo o conhecimento ao homem, “é
desmitologização não mais apenas como reductio ad hominem, mas, também, ao contrário,
como reductio hominis, como discernimento do engano do sujeito que se coloca como
absoluto. O sujeito é a forma duplicada tardia e, no entanto, a mais antiga do mito” (ND
187).
Em Descartes, pretendeu-se fazer com que a negação abstrata da natureza
possuísse, por si mesma, um conteúdo. A negação abstrata da natureza externa e interna e
dos homens tem como conseqüência funesta a recusa das mediações: uma indisposição
latente ou explícita de enfrentá-las em relação aos objetos da realidade sócio-empírica.
Nesse sentido, a dúvida hiperbólica de Descartes poderia ser lida como contendo uma
dimensão política essencial: a negação de todos os elementos naturais e sociais no
pensamento enquanto suas determinações intrínsecas é tomada como nos fornecendo a
condição necessária para deduzir a verdade sobre o mundo empírico a partir da ausência total
de mediação, ou seja, a partir da intuição da verdade da existência do eu como pura
atividade. A apatia política, o rancor contra toda tentativa não plenamente bem sucedida
de instaurar melhoras significativas, a preguiça em relação aos esforços pelo bem comum,
o desinteresse pelos movimentos sociais, etc., teriam, como uma de suas raízes mais
fundamentais, a forma de experiência do sujeito com o mundo: a negação da consciência de que a
mediação do eu operada pelo mundo constitua sua verdade mais fundamental.
Não se trata de negar, por outro lado, que o sujeito tenha um papel na
constituição do mundo, remontando a um realismo ingênuo pré-kantiano, mas, sim, de
perceber que tanto o universal quanto o particular são prejudicados pela má relação entre
eles. Esse prejuízo inestimável pode ser claramente percebido naquilo que dá o fio
condutor para o próprio conceito de esclarecimento: a ciência moderna experimental.
3. Positividade da ciência como Leitmotiv do esclarecimento
Embora o esclarecimento possa ser visto em grande amplitude no mito
grego, na cosmologia pré-socrática e nas metafísicas gregas e medievais, é no projeto
esclarecido da ciência moderna que ele se mostra de modo mais enfático. O projeto de
unidade da ciência, a redução de todo o saber à lógica, ao número, a ênfase na diminuição
dos princípios a partir dos quais se possa deduzir todas as outras coisas — tudo isso
configura a face mais pujante do pensamento antimitológico.
a) O mundo como tautologia do pensamento
A consciência dos homens foi cada vez mais levada a distanciar-se da
multiplicidade da natureza para poder abarcar, com maior raio de visão, a totalidade dos
elementos que poderiam ser dominados. O objetivo mestre do esclarecimento, de “retirar
os homens do medo e de investi-los na posição de senhores” (DA 9/19), teve, como uma
74
de suas condições (ou até mesmo como a sua condição), a consciência cada vez mais
desenvolvida da necessidade de o domínio e o progresso serem totais: “o esclarecimento é
totalitário” (DA 12/22). A idéia de que não se deve deixar restos no processo de
conhecimento (e, por conseguinte, de domínio) é apenas uma outra expressão para o fato
de o pensamento ter que se localizar para muito além das vicissitudes das relações com a
natureza em termos de comportamento mimético: “A intenção esclarecedora do
pensamento, a desmitologização, anula o caráter de imagem da consciência” (DN 205). O
que vale propriamente é a idéia de progresso, a qual orienta o desenvolvimento da
racionalidade: é preciso remover do próprio pensamento os resíduos de aproximações
miméticas para com o mundo, que retardam tal progresso cognitivo. É preciso
distanciar-se de tudo, inclusive de si próprio, para continuar o progresso: “só o pensamento
que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos” (DA
10/20). Tal marcha progressiva do pensamento, embora já existisse como uma prática dos
homens em várias fases da humanidade, não existia enquanto uma idéia que norteasse a
sua realização, o que somente ocorreu a partir da formulação da apologia da liberdade
burguesa:
Durante séculos, o problema do progresso carecia de sentido. Formula-se apenas depois de
liberada a dinâmica da qual foi possível extrapolar a idéia de liberdade. Embora, desde Agostinho o
progresso seja a transposição à espécie do ciclo de vida natural que se estende entre o nascimento
e a morte dos indivíduos, representação tão mítica quanto aquela segundo a qual o mandamento
do destino assinala aos astros sua trajetória, a idéia de progresso é, não obstante, a idéia
antimitológica por excelência, capaz de quebrar o círculo ao qual pertence. 95
O que é mais profundamente determinante do esclarecimento como um
modo de relação dos homens com o mundo e consigo é o fato de que a consciência
esclarecida cada vez mais percebeu que é preciso conceber todos os objetos de
conhecimento segundo relações de igualdade, de nivelamento, de comparações sem resto, para
que, com isso, se estabeleça uma distinção tranqüilizadora para com aquilo que é
propriamente objeto do pensamento. A racionalidade do esclarecimento é a da busca
incessante pela coerência sem resíduo no âmbito das idéias, a montagem de um sistema
que abarque, através de um menor número possível de princípios fundamentais, a
complexa rede de acontecimentos: a mathesis universalis. O sentido da percepção da
diferença reside, então, na oportunidade de se filtrá-la pela equalização através de algum
procedimento “abstratizante” de montagem de um quadro completo das ocorrências
possíveis. A realidade é domesticada através de uma linha mestra da auto-concepção do
pensamento como verdade: somente o que é digno de integração na árvore do
conhecimento unificado pode ser admitido como realidade. O mundo, então, torna-se
uma tautologia do pensamento, na medida em que tudo somente repete, em diversas formas, o
que já se queria dele: que ele se mostrasse como rebatível, comparável, equiparável, sujeito
a metáforas, a analogias, etc.: “A doutrina da igualdade entre a ação e a reação afirmava o
poder da repetição sobre o que existe muito tempo após os homens terem renunciado à
ilusão de que pela repetição poderiam se identificar com a realidade repetida e, assim,
escapar a seu poder” (DA 18/26). O mundo é lido a partir da inexorabilidade das leis do
pensamento, aplicadas em um material amorfo, que somente ganha status de realidade pela
força de constituição de que o sujeito é capaz. Desse modo, extirpa-se frente ao real a
experiência do novo, pois todo fato, para ser concebido como tal, deve se inserir numa lei
que estabelece sua inteligibilidade:
95 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: op. cit., p.47
75
o fato torna-se nulo, mal acabou de acontecer.(…) O que seria diferente é igualado. Esse é o
veredicto que estabelece os limites da experiência possível. O preço que se paga pela identidade de
tudo com tudo é o fato de que nada, ao mesmo tempo, pode ser idêntico consigo mesmo. (DA
18/26-7)
Mas, como vimos, é precisamente a eterna igualdade de tudo com tudo que
se afigurava como a essência do mito: todo acontecimento é visto como retribuição,
expiação, pagamento, resgate, reedição de algum evento primordial, situado em um
não-lugar, fora do tempo e da história comum dos homens, da mesma forma que as leis
lógicas de constituição do real não contêm nenhum conteúdo empírico. O mesmo
distanciamento do sujeito lógico em relação àquilo que ele constitui estava prefigurado no
distanciamento dos deuses para com a série infinita e contingente dos casos, os quais são
entendidos apenas na medida em que experienciados como emanações da vontade e do
poder divino de criação do real.
O que o esclarecimento fez foi secularizar de modo radical a transcendência
constitutiva dos deuses em uma razão desprovida de história, de alteridade e de diferença.
“Nada de novo sob o sol”: esse é o estatuto que a realidade adquire quando lida a partir
da adequação ao princípio de sua inteligibilidade. Como se a razão se transformasse numa
neurose recalcitrante à possibilidade de experienciar o abalo de ver a si mesma como
sendo diferente do que esperava ser. A duplicação dos fatos a partir de si mesma acaba
dando à razão a possibilidade de defender-se contra aquilo que poderia arranhar a imagem
que ela faz de si: até mesmo sua auto-percepção está subsumida na lei da duplicação, pois
é preciso que ela corresponda àquilo que sempre esperou de si: “o conceito de fim, ao
qual a razão se eleva por mor da conseqüente autoconservação, deveria ser emancipado
do ídolo do espelho” (ND 342). “Este princípio formal, obediente às legalidades
subjetivas sem consideração ao seu outro, assegura, sem abalar-se por nenhum tal outro,
seu comprazimento: a subjetividade aí goza, inconscientemente, a si mesma, o sentimento
de sua dominação” (ÄT 77/62; tradução própria).
A anulação da diferença corresponde ao esvaziamento de conteúdo. Do
lado da racionalidade, o sujeito torna-se um mero poder de calcular e de estabelecer
relações quantitativas, na mesma medida em que o mundo perde suas qualidades.
Podemos dizer que toda a tarefa de Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento é a
de mostrar a imbricação entre a capacidade de percepção e de concepção do mundo, por
um lado, e o poder, o domínio, por outro. Segundo Simon Jarvis, a grande questão que
Adorno teria perseguido em sua carreira é: “qual é a relação entre poder e
racionalidade?” 96; segundo C. Braun, o grande problema filosófico de Adorno seria a
relação entre o particular e o universal 97. Nas próximas páginas, procuraremos mostrar
que a linha mestra da Dialética do esclarecimento é a de conjugar esses dois elementos
diretivos gerais, na medida em que o poder inerente à racionalidade ilumina-se na relação
entre a dimensão social da razão e a determinidade do indivíduo particular mediada pela
hierarquia social em que este se insere.
Podemos dizer que a origem da razão é coletiva: “princípio de dominação
social emigrado para o sujeito”98. Pensada em termos de faculdade individual, ela seria o
96 Simon Jarvis. Adorno. A Critical Introduction. New York: Routledge, 1998, p.1.
97 Carl Braun. Kritische Theorie versus Kritizismus. Zur Kant-Kritik Theodor W. Adornos. Berlin-New York: Walter de
Gruyter, 1983, p.2
98 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: op. cit., p.50. Na verdade, não apenas a razão é pensada, em termos
genealógicos, como sendo social, mas, também, as próprias formas da intuição dos indivíduos: “O fato de que,
enquanto sujeitos cognoscentes, dependam de espaço, de tempo e de formas de pensamento, marca sua dependência
76
eco abstrato da voz coletiva, que prima por manter a ordem hierática do comando sobre
uma multiplicidade a ser organizada. Tal ordem, como vimos, já existia na coerção
coletiva dos rituais mágicos, em que a força difusa do mana era percebida como uma
universalidade tanto mais temível quanto mais incompreensível, transcendente à
experiência individual. O que o corpo social representava nesse sentido era a
corporificação dirigida e assimilável desse poder, mas ainda plenamente apropriada pela
elite que detinha o contato privilegiado com os deuses. A coesão social era a hipóstase, no
âmbito da cultura, da percepção da universalidade das forças cósmicas, que, pela sua
própria potência, exigia a sua repetição infinita em cada ato.
“Mas isso é o que os conceitos universais continuam a ser mesmo quando
se desfizeram de todo aspecto figurativo. A forma dedutiva da ciência reflete ainda a
hierarquia e a coerção” (DA 27/34). A dominação efetivamente praticada nos indivíduos
somente subsiste através de uma sedimentação, nas formas do pensamento, da mesma
hierarquia e rigidez presente na divisão do trabalho. Por quê? Porque é precisamente nas
formas do pensamento que o mundo se constitui enquanto estrutura organizada, ganha
realidade. Desse modo, a estruturação lógica do discurso fundamenta a hierarquização do
todo social como algo óbvio, natural, inevitável, tal como inevitável é a relação entre as
premissas do silogismo e sua conclusão. Essa inevitabilidade do pensamento, percebida
como uma força universal sem parâmetro de comparação frente à vida frágil, contingente
e efêmera do indivíduo, é, desse modo, a introjeção sublimada da dominação social, a qual
aparece sempre ao indivíduo como também universal e inevitável. E o que resta aos
sujeitos singulares diante dessa realidade assim formada? Do mesmo modo que entre duas
afirmativas contrárias, somente uma é verdadeira, só há uma possibilidade de
sobrevivência: a adequação ao todo coletivo. Do mesmo modo que somente o contato
com os deuses poderia garantir a vida, a adequação ao todo social — herdeiro daqueles —
é a única alternativa. Desse modo, a universalidade e a opressão da coletividade são
reforçadas, na medida em que os indivíduos, para subsistirem, adaptam-se àquilo do qual
querem uma porção da força para enfrentarem as adversidades para a vida.
Vemos, assim, que o esclarecimento está fundado na equalização entre a
ânsia de preservação e de aumento de poder, por um lado, e sua fundação no processo de
separar o núcleo universalizante do conceito em relação às vicissitudes da relação
mimética com a natureza. Essa transcendência do conceito acaba nivelando todos os seres
a um círculo nefasto de eterna repetição natural de sua própria existência e do todo
coletivo que os impinge a conformidade a ele e que se nutre dessa mesma conformidade.
O “derradeiro produto do esclarecimento”, o positivismo lógico, é uma expressão
inequívoca do entrelaçamento desafortunado de todos esses elementos de modo
hiperbólico.
b) Positivismo metafísico
Pudemos ver que a abstração presente na metafísica ainda era expressão da
injustiça social, pois estampava, na autarquia das idéias, a distância para com aqueles que
eram objeto da exclusão operada pelo domínio que almeja perenizar-se. Mas o poder não
necessita por muito tempo desse apoio da linguagem, e a ciência moderna acabou por
perceber, na separação universalizante dos conceitos metafísicos, a explicitação daquilo
que se queria aplacar: o medo pelas potências divinas. A suspeita da linguagem científica
em relação à espécie. Esta se sedimentou em tais constituintes; não por isso estes valem menos. O a priori e a
sociedade estão entrelaçados. A universalidade e a necessidade dessas formas, sua glória kantiana, não é outra coisa
do que aquela que constitui como unidade os homens” (Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.191).
77
em relação aos universais da metafísica está fundada no aspecto explícito que o chorismós
coloca para a injustiça que era praticada contra os dominados. A matematização do saber
deu fim a essa auto-assunção da injustiça no pensamento, e “o impotente perdeu
inteiramente a força para se exprimir, e só o existente encontra aí seu signo neutro. Tal
neutralidade é mais metafísica que a própria metafísica” (DA 29/35) — isso porque, se a
metafísica é censurada pelo fato de, em sua suprema abstração, afastar-se dos conteúdos
sensíveis, a ciência moderna matematizada nem sequer exprime a perda de sua referência
para com a realidade vivida. Assim, podemos dizer que a inverdade do esclarecimento é
que a abstração obscurece a falsidade do real, ou seja, a condição de subjugação perpétua a
que os homens estão sujeitos, na medida em que a abstração iguala, nivela, todos os entes
e não mais se exprime a diferença fundante entre dominados e domina ntes
Essa realidade oprimida é caracterizada pela diferenciação qualitativa, cuja
consideração é algo alheio ao desenvolvimento da ciência moderna:
A objetivação científica tende, de acordo com a tendência quantificadora de toda ciência desde
Descartes, a eliminar as qualidades, a transformá-las em determinações mensuráveis. A própria
racionalidade é, cada vez mais, igualada more geometrico à faculdade da quantificação. (ND 53)
A matematização da ciência, a desconfiança na ponderação sobre diferenças
qualitativas, é uma hipóstase daquilo que, na história da humanidade, teve um curso bem
definido: a repressão do comportamento mimético. A ciência sente-se tão dentro do
rumo do progresso, quanto menos espaço há, no âmbito de sua racionalidade, para a
alteridade diferenciada: “no ‘igual por igual’ de seus métodos quantificativos, há tão pouco
espaço para a formação do ‘outro’, quanto no sortilégio do destino.” (ND 216). Esse
elemento de sempre-igual pode ser visto enfaticamente no procedimento da ciência
matematizada — principalmente sob a ótica do positivismo lógico — de obediência cega
ao fato: “o factual tem a última palavra, o conhecimento restringe-se à sua repetição, o
pensamento transforma-se na mera tautologia” (DA 33/39).
A Dialética do esclarecimento foi publicada em 1947, época em que o
positivismo lógico ainda gozava de reputação no cenário intelectual europeu. Muito da
crítica de Adorno e Horkheimer à ciência é dirigida à leitura positivista da atividade
científica. Entretanto, não se deveria dizer que a Dialética do esclarecimento não tem validade
crítica atual pelo fato de o positivismo lógico não ser mais uma corrente filosófica
importante no cenário mundial. O positivismo não é criticado apenas pelas características
próprias dele enquanto movimento filosófico determinado, mas, fundamentalmente, por
ser o ápice, na época da publicação da Dialética, desse processo de equalização de todos os
fenômenos, de supressão das diferenças qualitativas em prol de um aperfeiçoamento do
poder de manipulação da natureza. Esse processo não terminou quando as teorias do
Círculo de Viena deixaram de ter espaço. As características do pensamento positivista,
criticadas por Adorno e por Horkheimer, podem ser expandidas para além do movimento
que se iniciou a partir de Wittgenstein. Jameson as resume exemplarmente:
“Positivismo” (…) deve ser em geral considerado significando um compromisso com os fatos
empíricos e fenômenos do mundo nos quais o abstrato — tanto a interpretação como as idéias
gerais, tanto as unidades coletivas sincrônicas mais amplas como as narrativas ou genealogias
diacrônicas — está cada vez mais restringido, quando não sistematicamente perseguido e extirpado
como uma relíquia e uma sobrevivência de categorias e pensamentos antigos tradicionais,
“metafísicos”, ou simplesmente obsoletos e antiquados.99
99 Fredric Jameson. op. cit., p.121.
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Essa definição é muito boa, principalmente porque mostra como a
mentalidade positivista se determina negativamente, a partir da negação dos universais, e, não,
positivamente (sem nenhum trocadilho). Essa recusa da consideração do elemento de
universalidade presente no real empírico denotaria um “medo pela verdade” (DA 4/13),
ou seja, por aquilo que realmente conta como origem das coisas, que são as relações de
poder. Em vez de tal mentalidade evitar a superstição — que é o aspecto antimitológico
por excelência —, ela acaba favorecendo-a (cf. DA 3/13), pois abre espaço para toda a
sorte de discursos ideológicos que se apoiam em interpretações absurdas dos fatos, como
a ideologia nazi-fascista.
Uma vez considerada essa ampliação do conceito de positivismo, as críticas
de Adorno e Horkheimer podem ser perfeitamente dirigidas a um crítico severo do
positivismo lógico: Quine.
c) A epistemologia naturalizada de Quine
Para Quine, a epistemologia, desde Descartes, trilhou um caminho
equivocado, que foi o de tentar derivar a estrutura do mundo da estrutura do pensamento,
ou seja, de vincular a determinação ontológica do real à da determinação lógica do pensar,
sendo que a última grande tentativa dessa natureza teria sido Die logische Aufbau der Welt
(“A construção lógica do mundo”), de Carnap.
Todo o projeto da epistemologia tradicional está fundado, segundo Quine,
na pretensão de dar ao conhecimento um ou mais critérios que nos permitam decidir
quais crenças são aceitáveis com base nele. Trata-se de um procedimento normativo, dado
que, uma vez estabelecidos os critérios e as crenças por eles justificadas, torna-se
imperativo aquiescer a tais crenças, e seria desprovido de sentido recusá-las. A palavra
chave é “justificação”, pois, uma vez conseguida, tudo o mais se segue necessariamente.
A epistemologia conteria duas características: o estudo conceitual e o
doutrinal. Partindo-se da idéia de que o conhecimento natural é baseado na experiência
sensível, o primeiro aspecto significa explicar a noção de corpo em termos sensoriais,
enquanto o outro significa justificar o nosso conhecimento de verdades da natureza
também em termos sensoriais.
O empirismo de Hume é o ponto de partida para uma série de tentativas de
tentar traduzir os dados dos sentidos em uma expressão lingüística: inicialmente, fazendo
corresponder a identificação dos corpos diretamente às impressões sensoriais; depois,
usando uma definição contextual, através da vinculação de um termo ao conjunto da frase
em que ele é empregado; mais tarde, empregando a teoria dos conjuntos, como classes de
impressões, classes de classes, etc. Mas, segundo Quine, embora se possa exprimir uma
sentença em temos de impressões sensoriais, lógicos e de teoria dos conjuntos, isso não
significa que ela esteja provada nesses termos. Por isso, segundo Quine, o projeto doutrinal
do conhecimento foi abandonado, mas não o conceitual, pois este ainda poderia ser útil
para esclarecer a evidência sensorial para a ciência ou para aprofundar o conhecimento de
nosso discurso sobre o mundo, tornando-o tão claro quanto os termos observacionais, a
lógica e a teoria dos conjuntos. Apesar dessa constatação, duas teses do empirismo
mantiveram-se intactas: (1) de que, em última instância, toda evidência tem que ser
sensorial, e (2) de que todo significado de palavras tem que referir-se às evidências
sensoriais.
Mas por que toda essa reconstrução criativa, por que todo esse simulacro? A estimulação dos
receptores sensoriais constitui, em última análise, toda a evidência na qual cada um terá podido
basear-se para chegar à sua imagem do mundo. Por que não ver simplesmente como essa
construção realmente se processa? Por que não ficar com a psicologia? A transferência das
responsabilidades epistemológicas para a psicologia havia sido condenada, anteriormente, como
79
um raciocínio circular. Se o objetivo do epistemólogo era o de validar os fundamentos da ciência
empírica, ao empregar a psicologia ou outra ciência empírica nessa avaliação, ele estaria frustrando
seus propósitos. Todavia, tais escrúpulos contra a circularidade terão pouca relevância, uma vez
que tivermos parado de sonhar com uma dedução da ciência a partir de observações. Se
estivermos procurando simplesmente compreender o elo entre observação e ciência, será de bom
critério empregar qualquer informação disponível, inclusive a que é oferecida por essa ciên cia
mesma, cujo elo com a observação estamos procu rando compreender. 100
Segundo Quine, em vez de perceber, nesse processo de abandono do
projeto original da epistemologia, sua derrocada, seria melhor situá-la como um capítulo
da psicologia, mudando seu status, que passaria de uma tentativa de justificação do
conhecimento, para a de uma explicação científica de algo da ordem da natureza: a relação entre
o recebimento de impulsos sensíveis e a produção de elementos teóricos.
[A epistemologia naturalizada] estuda um fenômeno natural, a saber, um sujeito humano físico.
Concede-se que esse sujeito humano recebe uma certa entrada [input] experimentalmente
controlada — certos padrões de irradiação em variadas freqüências, por exemplo — e no devido
tempo o sujeito fornece como saída [output] uma descrição do mundo externo tridimensional e sua
história. A relação entre a magra entrada e a saída torrencial é a relação que nos sentimos
estimulados a estudar um tanto pelas mesmas razões que sempre serviram de estímulo para a
epistemologia; ou seja, a fim de ver como evidência se relaciona à teoria e de quais maneiras as nossas
teorias da natureza transcendem qualquer evidência disponível. 101
Os procedimentos de reconstrução racional ainda poderiam ser usados,
desde que ajudassem na elucidação do processo psicológico de produção de teorias. A
epistemologia naturalizada é um capítulo das ciências naturais, mas ainda quer dizer
respeito a toda a ciência, inclusive a si própria, pois tudo não passa de modos de o sujeito
racional converter dados sensíveis em elementos conceituais. As sentenças de observação
têm importância tanto conceitual quanto de verdade: são as primeiras que aprendemos
quando tomamos conhecimento dos significados das palavras (tanto como crianças,
quanto como cientistas); e são a base para a aferição da verdade da ciência. Elas têm
importância semântica imediata, não sendo propriamente afetadas pela indeterminação da
tradução (de uma língua a outra e dos dados sensíveis para a estrutura lingüística).
Do mesmo modo que há padrões de percepção e de articulação da
linguagem a partir de elementos fonéticos mínimos (cerca de 30), deve haver um alfabeto
de normas perceptivas, “no seu conjunto bastante limitado, com respeito ao qual
tendemos inconscientemente a retificar todas as percepções. Essas últimas, se
identificadas experimentalmente, podem ser vistas como blocos de construção
epistemológicos, como os elementos de trabalho da experiência” 102.
O que Quine está nos propondo é que retiremos de nosso objetivo a
exigência de justificativa do conhecimento, ou seja, que deixemos de tentar saber se o
conhecimento é válido ou não; o que ele propõe é que façamos uma análise das relações
causais entre os impulsos sensíveis e aquilo que resulta deles, estabelecendo leis que
descreveriam a regularidade da passagem dos primeiros para os últimos, tal como se
estuda um fenômeno natural. Mas, como diz Jaegwon Kim, “se a justificação sai da
epistemologia, o próprio conhecimento sai da epistemologia, pois nosso conceito de
conhecimento está inseparavelmente ligado ao de justificação. (…) O conhecimento é, ele
100 Willar v. O. Quine. “Epistemologia naturalizada”. Tradução de Andréa Maria A. C. Loparic. São Paulo: Nova
Cultural, 1989, p.94.
101 Willar v. O. Quine. Op. cit., p.98; grifos nossos.
102 Willar v. O. Quine. Op. cit. p.102-3.
80
mesmo, uma noção normativa. A epistemologia naturalizada, não-normativa, de Quine
não tem nenhum espaço para nosso conceito de conhecimento” 103. Isso por que, se o
interesse de Quine é o de tentar pensar “como a evidência se relaciona à teoria”, não basta
fazer uma relação causal de dados sensíveis entre a primeira e a segunda, pois os dados
sensíveis somente têm força evidencial se já forem pensados conceitualmente como sendo
evidências. Se os dados sensíveis são tomados na epistemologia naturalizada como
contendo tal força, então já se assume que eles produzirão uma fonte de justificativa dos
conhecimentos, o que não pode ser pensado apenas em termos de relação causal entre
input sensível e output cognitivo. Ou seja, que os dados sensíveis causem o surgimento do
conceito, não significa que eles tenham força evidencial para estes.
Além disso, para estabelecer tal relação, a epistemologia naturalizada teria o
enorme problema de tentar explicar algo elementar em epistemologia, que é um mesmo
dado sensível poder ser interpretado de várias formas através de inúmeros conceitos. Se
há relação causal entre o primeiro e os últimos, seria difícil explicar como uma mesma
causa pode dar origem a virtualmente infinitos efeitos. É precisamente dessa relação entre
uma mesma sensação e a infinidade de interpretações possíveis para ela que se nutre um
aspecto da produção da ciência e do saber em geral — que nem sequer é mencionada por
Quine e nem por seus comentadores — que é o aspecto criativo do ato de conhecer. Uma
nova teoria é, muitas vezes, resultado de uma aplicação inusitada, insólita, muitas vezes
tomada inicialmente como absurda, de um conceito em um conjunto de dados sensíveis.
A criatividade do pensamento respira no espaço aberto entre a materialidade do mundo e
transcendência conceitual:
É apenas na distância em relação à vida que se desenvolve a vida do pensamento que realmente
atinge a vida empírica. Enquanto o pensamento se refere aos fatos e se move na crítica a eles, ele
não se move menos graças à diferença mantida. Ele exprime com exatidão o que é, pelo fato
mesmo de que o que é nunca é inteiramente tal qual o pensamento o exprime. A ele é essencial um
elemento de exagero, que o impele para além das coisas e o faz desembaraçar-se do peso do
factual, graças ao que, em fez de apenas reproduzir o ser, co nsuma de maneira rigorosa e livre a
determinação deste último. (MM §82. 110)
Se o positivismo de Viena queria fazer uma duplicação dos fatos na esfera
do pensamento, sem nenhuma consideração para com a história sedimentada
subterraneamente neles, ainda considerava que eles são algo diferente do pensamento, e tal
diferença, segundo seus membros pensavam, poderia ser recoberta através da
reconstrução lógica do mundo. Em Quine, por outro lado, temos a ausência até mesmo
da diferença entre o conhecimento e a materialidade do mundo. Se o positivismo queria
tra-duzir o mundo — considerado a totalidade dos fatos — em conceitos, Quine quer
perceber a própria assimilação conceitual como um fato, como uma ocorrência de ordem
física! Talvez não haja nada na história da “filosofia” — aqui é duvidoso o emprego dessa
palavra — que seja uma demonstração mais literal do que a Teoria Crítica chamou de
reificação da racionalidade.
d) Reificação do pensamento: a razão instrumental
A eficácia operativa, a tomada de seu objeto como “substrato da
dominação” (DA 15/24), empresta à racionalidade científica um estatuto peculiar a ela:
sua transformação naquilo que Adorno e Horkheimer chamam de razão instrumental, que é
caracterizada pela desconsideração, tanto da diferenciação qualitativa de seu objeto,
103 Jaegwon Kim. “What is ‘naturalized epistemology’?”. In: Hilary Kornblith (Edt.) Naturalizing Epistemology.
Cambridge: MIT Press, 1994, p.41.
81
quanto da necessidade de estabelecer fins. O adjetivo “instrumental” contém, assim, uma
dupla determinação, a saber, o nivelamento tanto subjetivo, quanto objetivo, na
experiência do sujeito com o mundo: “à tendência quantificadora corresponde, do lado
subjetivo, a redução do cognoscente a um universal sem qualidade, puramente lógico”
(ND 54), e, do lado objetivo, a natureza transforma-se em um material disforme, cujo
único sentido é a adequação a princípios formais abstratos, sem conteúdo vivencial,
subjugado à ânsia de progresso do conhecimento: “a equação do espírito e do mundo
acaba por se resolver, mas apenas com a mútua redução de seus dois lados” (DA 33/38).
É precisamente essa dupla redução (subjetiva e objetiva) — levada a cabo
de forma literal em Quine — que delineia o que podemos conceber em sentido mais
próprio como reificação. Na racionalidade instrumental, tanto o sujeito, quanto o mundo
igualam-se em um ponto bastante caro a Adorno: tornam-se um sempre-igual. Cada um
torna-se a própria medida daquilo que deve vir a ser devido ao esvaziamento, em si
mesmo, de elementos que instiguem, ou pelo menos apontem, para algo diferente (e,
evidentemente, melhor) do que se é. A abstração da racionalidade científica matematizada
é o resultado, então, de um modo específico de o sujeito experienciar o mundo que se
hipostasiou na equalização, por parte da linguagem científica, entre verdade e
número-lógica-princípios formais. A transformação do sujeito e do mundo em “coisas”
(que é o que está envolvido no substantivo “reificação”) traz para Adorno a conseqüência
filosófica de que tal concepção oblitera a possibilidade de pensar-se, tanto o sujeito,
quanto o objeto, como contendo em si mesmos, como algo inerente a eles — como sua
essência, se se preferir —, o que os levaria a serem melhores do que são: “o que é, é mais
do que ele é” (ND 164).
Ora, todos os fatos são radicalmente mediados pela prática social de
concepção do mundo, não são algo desprovido de historicidade. Precisamente porque
desconsidera todas as mediações históricas, sociais, humanas em sentido geral, dos fatos, a
ciência moderna matematizada apenas duplica a injustiça social que dá origem a eles, sem
exprimi-la, ocultando-a sob o véu de neutralidade axiológica de sua percepção isenta de
preconceitos. Tal concepção solidifica-se em formas de pensamento que dão o lastro de
autenticidade ao modo como os indivíduos percebem a realidade. Manter-se fiel aos fatos,
sem consideração para com o sedimento histórico no modo como eles são percebidos, é
apenas um modo de repetir o que a sociedade já colocou no mundo como resultado da
injustiça praticada a muitos por poucos em nome de todos. Falando em relação ao que
subjaz à factualidade do mundo como sua essência, diz Adorno:
A essência não deve mais ser hipostasiada como um em si espiritual. Em vez disso, a essência
transforma-se naquilo que se esconde sob a fachada do imediato, sob os pretensos fatos, e que os
faz ser aquilo que eles são; transforma-se na lei do infortúnio, à qual a história até hoje obedece; e
isso tão mais irresistivelmente, quanto mais profundamente tal infortúnio se esconde sob os fatos,
a fim de se deixar negar confortavelmente por estes. (DN 169)
Aqui entra em jogo um elemento caro a Adorno: falso não é apenas o
conhecimento, mas o próprio mundo: a injustiça, a desumanização, o sofrimento
injustificado. Assim, embora possa ser concebida como verdade em relação ao fato, a
ciência matematizada é falsa, pois apenas duplica a falsidade inerente ao real de modo
infinito, interminável.
O fascínio causado pelo progresso infindável e acelerado do conhecimento
factual, legitimado pela imagem repetidamente exposta do progresso tecnológico dele
decorrente, assume o status de uma transcendência tão inquestionável quanto a
universalidade bruta do poder do mana que “fascinava o olhar nas fantasmagorias dos
feiticeiros e curandeiros” (DA 35/40). “(…) [O] triunfo da produtividade técnica serve
82
para encenar que a utopia, irreconciliável com as relações de produção, já estaria realizada
e concretizada no âmbito dessas relações” 104. Naturalmente que a relação com o acúmulo
do conhecimento factual e com as benesses tecnológicas não é absolutamente a mesma
que com os poderes divinos na magia animista dos tempos pré-históricos, mas tem algo
em comum com esta em sentido forte: a tecnologia é vivida como um milagre
constante 105, como um conforto material que acarreta um outro espiritual, vinculado à
idéia de normalidade, de um progresso benfazejo que — isso é certo nas mentes de todos
— não cessará de presentear-nos com elementos de consumo que se adaptam como uma
luva às carências produzidas socialmente. 106 O factual é legitimado pelo poder social de
produção da própria factualidade!
Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia, da qual jamais soube escapar. Pois, em suas
figuras, a mitologia refletira a essência da ordem existente — o processo cíclico, o destino, a
dominação do mundo — como a verdade e abdicara da esperança. Na pregnân cia da imagem
mítica, bem como na clareza da fórmula científica, a eternidade do factual se vê confirmada e a
mera existência expressa como o sentido que ela obstrui. (DA 33/39)
A existência como medida de si mesma: essa é a conseqüência da desconsideração
das mediações que envolvem a factualidade do mundo. De modo semelha nte à mera
repetição factual no conhecimento científico, a mera repetição, continuidade, da própria
existência configura-se como aquilo que dá seu sentido.
4. Integração funcional do indivíduo na sociedade
A idéia de Adorno e Horkheimer de que “poder e conhecimento são
sinônimos” tem uma expressiva gama de conseqüências, das quais já falamos em parte.
Uma delas é de fundamental importância para nossa análise, que é a de que a
racionalidade científica não é algo que tem seu sentido encerrado no modus cogitandi
próprio à atividade cognitiva do cientista, mas se alastra por todo o corpo social:
Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em
funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo
de novo ao mundo dos anfíbios. A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a
incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com
as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas.
(DA 43/47)
O que é comum à “experiência dos povos” e à ciência é que se trata de um
modo de percepção do mundo atrelado a uma funcionalização do que é percebido: tanto da
natureza, quanto dos homens. A indústria e sua correlativa organização social do trabalho
impingem aos impotentes operários um empobrecimento radical de sua relação com as
104 Theodor W Adorno. “Capitalismo tardio ou sociedade industrial”. Tradução de Flávio R. Kothe. In: COHN,
Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p.69.
105 Cf. Jean Baudrillard. A sociedade de consumo. Tradução de Artur Morão. Elfos: Porto, 1998.
106 É preciso considerar, aqui, o aspecto de integração social que as próprias necessidades possuem: “Para além de
tudo o que à época de Marx era previsível, as necessidades, que já o eram potencialmente, acabaram se
transformando completamente em funções do aparelho de produção, e não vice-versa. São totalmente dirigidas.
Nessa metamorfose, as necessidades, fixadas e adequadas aos interesses do aparelho, convertem-se naquilo que o
aparelho sempre pode invocar com alarde. (…) Não só as necessidades são atendidas apenas indiretamente, através
do valor de troca, mas, em setores economicamente relevantes, são primeiro geradas pelo próprio interesse no lucro,
e isso às custas de necessidades objetivas dos consumidores, como a necessidade de moradias suficientes e a
necessidade de formação e de informação quanto aos eventos mais importantes que lhe sejam concernentes”.
(Theodor W. Adorno. “Capitalismo tardio ou sociedade industrial”. Tradução de Flávio R. Kothe. In: COHN,
Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p.68.)
83
coisas: “quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e
científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção,
tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz” (DA 43/47). O que marca
decididamente tal empobrecimento é uma abstração que é de suma importância para
Adorno: a negação abstrata da sensibilidade pelo afastamento do intelecto em relação a
ela. Do mesmo modo que o senhor se afasta do trabalho e se vê substituído pela força
bruta dos operários, resignando-se em ser apenas um centro decisor do que deve ser feito
em prol da eficácia da operação de domínio da natureza, o intelecto torna-se um ponto
vazio de controle de todas as decisões, abstraído de elementos de natureza: “a unificação
da função intelectual, graças à qual se efetua a dominação dos sentidos, a resignação do
pensamento em vista da produção da unanimidade, significa o empobrecimento do
pensamento bem como da experiência: a separação dos dois domínios prejudica a ambos”
(DA 42/47).
Como já dissemos anteriormente, tal separação é feita em função da
necessidade da autoconservação, vincada pela necessidade de integrar-se à força
incomensurável do todo coletivo, que se reforça com isso:
(…) o universal abstrato do todo, que exerce a coerção, é irmanado à universalidade do
pensamento, ao espírito. Isso permite a este, em seus portadores, retroprojetar-se naquela
universalidade como se ele estivesse efetivado nela e tivesse, por si, sua própria realidade efetiva.
No espírito, a consonância do universal tornou-se sujeito, e a universalidade afirma-se na
sociedade apenas através do medium do espírito, através da operação abstrativa, que ele realiza de
modo sumamente efetivo. (ND 310)
Quanto mais as leis do pensamento são purificadas de todo conteúdo
empírico, de sensibilidade, de toda posição de valores não universalizáveis em termos de
premissas da lógica matemática, tanto mais a existência como um todo fica limitada à
afirmação de sua continuidade como seu sentido.
A exclusividde das leis lógicas tem origem nessa univocidade da função, em última análise no
caráter coercitivo da autoconservação. Esta culmina sempre na escolha entre a sobrevivência ou a
morte, escolha essa na qual se pode perceber ainda um reflexo no princípio de que, entre duas
proposições contraditórias, só uma pode ser verdadeira e só uma falsa. O formalismo desse
princípio e de toda a lógica, que é o modo como ele se estabelece, deriva da opacidade e do
entrelaçamento de interesses numa sociedade na qual só por acaso coincidem a conservação das
formas e a dos indivíduos. (DA 37/42 – g rifos nossos)
A casualidade, contingência, da coincidência da conservação das formas
sociais (governos, empresas, instituições em geral) e dos indivíduos indica a relação entre
pensamento-sensibilidade e coletividade-indivíduo: o âmbito da vivência sensorial é algo
experimentado pelo indivíduo como relegado à contingência dos momentos em que sua
satisfação não interfere na condução de seu processo de manter a existência, conduzido
pelo “intelecto autocrático” (DA 42/47), ao passo que o indivíduo como um todo é visto
pelo coletivo (e vê a si próprio) como também relegado à esfera da contingência no que
concerne à sua satisfação, na medida em que ela não interfira na condução dos processos
de reprodução da vida social, assumidos pela elite dirigente.
Aqui podemos exprimir uma idéia que justifica nossa opção pelo viés
gnosiológico que assumimos em nossa interpretação da Dialética do esclarecimento: a
dominação da maioria por poucos tem sua legitimação na forma com que a experiência de
mundo é feita por todos, que acaba introvertendo aquela coerção.
A concentração de poderes econômico e, com isto, político e administrativo, reduz, em boa
medida, cada indivíduo à condição de mero funcionário da engrenagem. Os indivíduos estão
provavelmente muito mais comprometidos do que no auge do liberalismo, quando ainda não
ansiavam por vínculos. Sua necessidade de vínculos é, portanto, crescentemente uma necessidade
de reduplicação e de legitimação intelectuais da autoridade aliás já presente. (…) A desproporção,
84
crescente até o desmesurado, entre poder social e impotência social, prolonga-se no
enfraquecimento da composição interna do Eu, de modo que este não se mantém sem
identificar-se precisamente com aquilo que o condena à impotência. (…) Como a instauração de
uma ordem justa parece ser impossível aos homens, recomenda-se-lhes a existente e injusta. 107
O modo como a premência da autoconservação sublimou-se em uma
separação radical dos domínios intelectual e sensível determinou a regressão, tanto da
sensibilidade, quanto do pensamento. A hierarquia do poder intelectual em relação à
sensibilidade é uma introversão subjetiva da hierarquia externa estabelecida com a divisão
social do trabalho. Esta é fundada na possibilidade de as pessoas serem substituídas, trocadas,
umas pelas outras, o que somente pôde acontecer devido ao desenvolvimento das forças
produtivas, que dispensam a consideração pelas diferenças de habilidade e entre os
operários, chegando-se, no capitalismo, a algo que é essencial: a homogeneização do
trabalho.
O princípio da troca, a redução do trabalho humano ao conceito universal abstrato do tempo de
trabalho médio, é originariamente aparentado ao princípio de identificação. Na troca, este
princípio tem seu modelo social e ela não existiria sem este; através dela, seres singulares e forças
não-idênticos tornam-se comensuráveis, idênticos. A expansão do prin cípio conduz todo o mundo
a algo idêntico, à totalidade. (ND 149)
Essa igualização total dos trabalhadores no mercado de trabalho estabelece
claramente algo muito importante para Adorno: a idéia de que a realidade está
completamente mediada pela força da constrição social. O todo social adquire uma
opacidade tão grande ao indivíduo quanto era o poder do mana nos tempos primitivos.
“A experiência daquela objetividade pré-ordenada ao indivíduo e à sua consciência é a
experiência da unidade da sociedade totalmente coletivizada [vergesellschaftet]” (DN 309). A
partir dessa idéia, vemos que a afirmativa de Marcos Nobre de que “a legitimação da
dominação ‘tradicional’, ‘vinda de cima’ foi posta de lado sob o capitalismo”108, não é
totalmente correta do ponto de vista adorniano, uma vez que o próprio mercado, figura
elementar do liberalismo, além de nunca ter se dado de modo absolutamente desregulado
— mesmo porque isso seria inviável até do ponto de vista dos capitalistas, pois as leis
econômicas, ilustradas pela noção de Estado hobbesiana, que limitam as ações de cada
um, os protegem das irracionalidades alheias —, também constitui per se uma instância
“acima” das atitudes particulares de cada um: qualquer investidor de bolsa de valores,
lugar em que o livre mercado se exprime de modo enfático, com certeza já deve ter
sentido um profundo tremor diante de um movimento inesperado do fluxo de capitais,
que se lhe apresenta como desmesuradamente fora de controle, “transcendente”, talvez
tão destacado de sua vontade quanto a providência divina cristã ou o deus heraclítico que
de uns fez reis e de outros escravos.
Por paradoxal que seja, quanto mais forte é a coletivização da sociedade,
mais dispersos têm que estar os indivíduos; a bem dizer, a própria força do todo social
nutre-se precisamente da dispersão de seus membros:
O universal cuida para que o particular a ele submetido não seja melhor do que ele. Esse é o
núcleo de toda a identidade produzida até hoje. (…) Para que o interesse individual determinado
funcionalmente se satisfaça de alguma forma sob as formas subsistentes, ele tem que se tornar em
algo primário; o indivíduo tem que confundir aquilo que lhe é imediato com a próte ousía
107 Theodor W. Adorno. “Razão e revelação”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena
Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p.30-1, grifos nossos.
108 Marcos Nobre. A Dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. São Paulo: Ilumin uras, 1998, p.
50
85
[substância primeira – vf]. Tal ilusão subjetiva é causada objetivamente: somente através do
princípio da autoconservação individual, com toda a sua teimosia, o todo funciona. Este força o
indivíduo a olhar somente para si mesmo, deturpa sua compreensão da objetividade e
transforma-se, por isso, objetivamente, em algo ruim. (…) O prin cípio universal é o da
particularização. (ND 306-7)
Por isso podemos ver que a construção da identidade coletiva é fundada e
refletida na identidade individual, que se erige a partir de um fechamento dos sujeitos em
relação uns aos outros. Precisamos, ver, então, como se constituiu essa formação da
identidade pessoal a partir da negação individual em relação à natureza externa e interna e
em relação aos outros.
5. Negação abstrata prática da natureza
Em nossas considerações sobre a formação do eu, de acordo com a Dialética
do esclarecimento, é preciso dizer que a separação do ego em relação à natureza e sua
concomitante afirmação é uma promessa, em princípio, legítima para o ser humano. Em
hipótese alguma poder-se-ia pensar qualquer forma de liberdade, de autonomia, de
realização do humano, etc., sem haver a ruptura em relação à natureza. Essa ruptura é
absolutamente necessária e, em hipótese alguma, seria pensável a construção de todas as
possibilidades de um mundo justo humanamente sem o processo de repressão, de
dominação da natureza. É preciso começar por onde os comentadores de Adorno
costumam terminar, ao acusá-lo de dizer que a racionalidade dominadora da natureza é
absolutamente ruim, que não nos leva compreender sua faceta efetivamente racional, etc.
Mas é preciso, ao mesmo tempo, refletir radicalmente sobre o elemento de falsidade da
razão, para que possamos nos aproximar da efetiva realização de sua promessa de
redenção do humano, que é, repetimos, legítima em seus propósitos, embora não o seja
no modo como ela efetivamente se realizou, criando a ilusão socialmente estabelecida da
aparência apodítica do modo como a realidade como um todo é enformada
racionalmente.
Por outro lado, é preciso que salientemos que muito do que Adorno e
Horkheimer dizem sobre a formação do ego está baseado na idéia de sacrifício, que
absorve todas aquelas impropriedades da concepção de esclarecimento qua dominação
que apontamos no início desse capítulo. Assim, para que se pudesse falar, de modo
amplo, sobre a concepção dos autores sobre a formação da identidade pessoal a partir da
argumentação geral do Excurso I, seria preciso fazer o que os autores dizem no prefácio
de 1969 em relação ao livro todo: reescrevê-la. A abordagem a ser feita, então, será
limitada à consideração da emergência da identidade individual a partir do conceito de
astúcia como negação abstrata da natureza.
a) Obstinação identitária
Mito e epopéia são momentos diferentes no mesmo processo de
esclarecimento. O mito grego, como vimos no primeiro item desse capítulo, mostra sua
especificidade precisamente no fato de dar início ao processo de formação do
pensamento abstrato, em que os deuses separam-se da natureza para representá-la. Apesar
de representar esse passo, a mitologia grega ainda mantinha-se ligada ao contexto de
coerção natural, sendo as relações de poder socialmente estabelecidas reflexo da mesma
rigidez com que a natureza era percebida. Tanto o mito quanto a epopéia têm em comum
a exposição da violência e da dominação como os fios que sustentam a unidade coletiva.
A hierarquia presente no mito continua a existir na epopéia. Aliás, podemos dizer que isso
permanecerá no processo de racionalização do ocidente até o surgimento da ciência
86
matematizada, quando o processo de retirada das qualidades do cosmo instituiu um
processo de secularização radical das relações entre os entes, em que a explicitação da
hierarquia de forças e de valores cai na suspeita de ser remanescente da fundamentação
do poder “pelo princípio arcaico do sangue e do sacrifício” (DA 52/55).
Apesar dessas semelhanças, a epopéia mostra-se como uma etapa posterior
do processo de esclarecimento, na medida em que, nela, a dominação, a violência, ou seja,
as relações de poder, embora experimentadas nua e cruamente, adquirem a direção
interna ao indivíduo, iniciando a formação daquilo que é chamado por Adorno e
Horkheimer “o sujeito lógico do esclarecimento” (DA 89/83). Podemos dizer que, na
epopéia, o próprio poder torna-se mediação para o sujeito. É a partir de uma determinada
forma de experienciar as relações de poder e de força que o âmbito da subjetividade
começa a se delinear. Nesse sentido, pode-se falar de uma racionalização da violência, não
apenas no modo como ela é exercida, mas, também, no sentido que ela alcança, no
resultado que se obtém a partir dela.
Sendo a epopéia uma fase diferente do mito, nela já está sedimentada a
forma que será o protótipo do burguês: afirmação unitária do ego que encontra seu
modelo mais antigo no herói errante. A oposição do ego sobrevivente às múltiplas
peripécias do destino exprime a oposição do esclarecimento ao mito. Todos os perigos
que Ulisses atravessa são seduções [Verführungen] 109, rupturas em relação a seu ideal de
autoconservação e de retorno aos bens, à propriedade, ou seja, a si mesmo. A maturidade,
a rigidez, a unidade e a identidade do eu só são alcançadas com a travessia de todos os
perigos, de todas as possibilidades de dissolução da inteireza da autoconsciência. Mas o
fundamento mais íntimo, visceral, que faz com que todas as figuras míticas enfrentadas
por Ulisses tenham a força que têm, é o fato de que elas, na verdade, representam os
impulsos internos, os desejos, as pulsões incontroladas, que não foram ainda domesticadas
pela lei do pensamento rigidamente instituído. O que Ulisses realmente enfrenta em todo
o seu percurso é o perigo representado pela força de seu próprio desejo, que tende sempre a
desviá-lo do seu projeto de unificar a si mesmo através da consciência do poder que ele
mesmo tem em relação a si próprio. Tal unidade não se opõe simplesmente à
multiplicidade da natureza sedutora, mas é conquistada ao percorrê-la e superá-la: Ulisses
perde-se para se ganhar. Comentando uma passagem em que Ulisses tenta abafar o latido
de seu coração, dizem Adorno e Horkheimer:
O ímpeto é equiparado ao animal que o homem subjuga: a comparação da cadela pertence ao
mesmo nível de experiência que remete à imagem dos companheiros metamorfoseados em porcos.
O sujeito, ainda dividido e forçado a usar de violência contra a natureza tanto dentro dele quanto
fora dele, “pune” o coração exortando à paciência e negando-lhe — com o olhar posto no futuro
— o presente imediato. Bater no peito tornou-se depois um gesto de triunfo: com esse gesto, o
vencedor exprime o fato de que sua vitória é sempre uma vitória sobre sua própria natureza. (DA
54 – nota/ 243 – nota)
A própria esfera da consciência pode ser pensada como um resultado do
domínio em relação às próprias emoções, como uma parte da energia pulsional dirigida
contra a satisfação imediata dos desejos: “Geneticamente, a consciência autonomizada,
sumo da atividade nos poderes cognitivos, é uma ramificação da energia libidinosa do
109 As palavras portuguesa e alemã têm equivalência etimológica elucidativa, pois “seduzir” deriva do prefixo latino
se- (de lado, separado) e o radical ducere (levar), enquanto “verführen” é composta do prefixo de reforço ver- e do
verbo führen (conduzir, levar). Ou seja, trata-se de um movimento ou de ímpeto de desvio da rota normal e direta do
caminho predeterminado.
87
homem como ser genérico. (…) A consciência é função do sujeito vivente, seu conceito
está formado segundo sua imagem” (ND 186).
Segundo Seyla Benhabib, “(…) a interpretação de Ulisses já pressupõe um
eu com medo de perder a si mesmo na alteridade, um eu consciente dos perigos à sua
identidade contínua postos pelos impulsos internos” 110. Adorno e Horkheimer não
pressupõem a identidade do eu. Eles mostram que é precisamente o fato de ter que desafiar a
natureza, de se jogar contra as forças naturais (internas e externas) numa seqüência de
aventuras ousadas, que atesta que o eu ainda é frágil: “todas as vezes que o eu voltou a
experimentar historicamente semelhante enfraquecimento, ou que o modo de expor
pressupôs semelhante fraqueza no leitor, a narrativa da vida resvalou novamente para a
sucessão de aventuras” (DA 55/56). Ele já está suficient emente formado para que o medo
esteja presente perante sua desintegração, mas ainda está no processo de formação no
modo como ele enfrenta os perigos e na consciência de ter que enfrentá-los.
Ainda segundo essa mesma comentadora, “a extensão de categorias
psicanalíticas aos começos da civilização ocidental leva a um profundo anistoricismo, que
reduz enormemente a plausibilidade dessa genealogia do eu moderno” 111. Ora, o que
evitaria o que Benhabib denomina “anistoricismo”? Uma consideração de todas as fases,
figuras e formas da história da humanidade? Dizer, por exemplo, que o capitalismo, desde
seu início foi caracterizado pela consideração abstrata do trabalho, homogeneizado no
valor de troca das mercadorias, as quais obtêm tal valor na relação recíproca no mercado,
significa dizer que o capitalismo é algo que não sofreu mutações, que tal princípio básico
somente possui uma forma de se manifestar, etc.? Ora, que se considere estruturas mais
fundamentais que os modos com os quais essas são efetivadas em hipótese alguma pode
ser considerado anistórico. Se assim fosse, uma consideração verdadeiramente histórica
somente seria aquela que se ativesse a cada forma específica da história, a cada momento
singular, etc., e aí, sim, acabaríamos, num extremo, desconsiderando toda a carga histórica
que se deposita em cada forma social, pois iríamos negligenciar todo o peso que o
passado deposita no sentido das formas e instituições do presente.
Ulisses situa-se em um momento histórico em que o sujeito começa a tomar
consciência da diferença entre o si mesmo e o outro. Entre o télos da unidade do eu e as
seduções desviantes há uma mediação, que é aquilo que permite a Ulisses sobrepujar os
perigos tornando-se forte precisamente ao se lhes expor: a astúcia. Ela dá a medida da
racionalidade presente no sacrifício: relação proveitosa entre aquilo que se perde e se
ganha no processo de imolação. Ao ser assimilado pela civilização, o mito assume a forma
de um sacrifício do eu em função de si mesmo:
Eis aí a verdade da célebre narrativa da mitologia nórdica, segundo a qual Odin se pendurou numa
árvore em sacrifício por si mesmo, e da tese de Klages que todo sacrifício é o sacrifício do deus ao
deus, tal como ainda se apresenta nesse disfarce monoteísta do mito que é a cristologia. (DA
61/60)
Para se manter enquanto sujeito idêntico a si, o indivíduo perpetua a
irracionalidade mítica na medida em que, renunciando à vida, alimenta o corpo coletivo. A
negação da natureza no sujeito nega a finalidade a que o sacrifício serve, pois o que é
negado é exatamente o sujeito enquanto ser vivo.
A anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua fo rma
110 Seyla Benhabib. Critique, Norm and Utopia. A Study of the foundation of Critical Theory . New York: Columbia
University Press, 1986, p.168.
111 Seyla Benhabib. Op. cit. p.168.
88
objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele
ao extermínio dos homens — essa anti-razão está desenvolvida de maneira prototípica no herói
que se furta ao sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da introversão do
sacrifício. Ou, por outra, da renúncia. (DA 62/61)
O périplo de Ulisses mostra-o como fisicamente mais fraco que as potências
da natureza: é preciso vencê-las assimilando-as astuciosamente. É preciso avaliar
corretamente as relações de força: “o desejo não deve ser o pai do pensamento” (DA
62/61). O sujeito somente tem sua subsistência assegurada através de uma acomodação
calculada aos poderes superiores, ou seja, ele se situa no mesmo contexto natural de luta
de um ser vivo contra outro ser vivo, em que todo seu conteúdo como ser vivente deve
ser humilhado para que a continuidade da vida seja assegurada. A medida da racionalidade
burguesa é essa: a renúncia ao todo é o preço pela manutenção da vida empobrecida.
As potências demoníacas de dissolução representam o aprisionamento no
eterno ciclo repetitivo do mito: crime, castigo, culpa, remorso, vingança. “É a isso que se
opõe Ulisses. O eu representa a universalidade racional contra a inevitabilidade do
destino” (DA 66/63). Mas como essa inevitabilidade também é universal (a ela ninguém
pode escapar) sua racionalidade consiste em ser uma exceção à regra, ou seja, a razão se
mostra particular desde sua origem. Mas essa afirmação do sujeito somente é conseguida
ao se cumprir o contrato mítico, ou seja, é preciso desafiar as forças míticas que estão à
margem da sociedade patriarcal que quer se afirmar com base na constituição do sujeito
autóctone, consciente de sua inteireza. Mas para se alcançar essa autoconsciência é
necessário que se experimente o poder que se possui de resistir a elas, tornando-se duro e
forte contra as seduções de toda ordem.
Para mostrar a auto-afirmação do sujeito e seu entrelaçamento com a
coerção mítica transposta para a concepção esclarecida, Adorno e Horkheimer analisam a
passagem da Odisséia em que Ulisses, o proprietário de terras e senhor de todos os
trabalhadores, deixa-se atrelar ao mastro do navio para não sucumbir ao canto das sereias,
que, segundo a lenda, possuíam um poder de encantamento irresistível. Enquanto ele
pode ouvir a canção, sem, no entanto, jogar-se ao mar e morrer atraído por elas, seus
comandados têm os ouvidos tapados, remando com todas as suas forças para salvar a si
mesmos e a seu senhor. Ulisses, apesar de saber do perigo representado pelas sereias,
desconfia do poder da consciência de sua própria liberdade, motivo pelo qual tem que se
atar ao mastro do navio.
Essa passagem é emblemática para aquilo que dá um fundamento
significativo para a dialética da alteridade que estamos buscando: a natureza é
experimentada a partir de uma ambigüidade visceral, estampada em sua imagem mítica. Ela é
vista como uma promessa de felicidade plena, representada pela união indissoluta com as
sereias (ou seja, com a natureza, com o útero materno), mas, ao mesmo tempo, já é
apresentada no relato épico como fonte de desgraça absoluta: a morte. O poder de
discernimento esclarecido já atua de forma a cunhar na mente de todos — tanto de
dominantes, quanto de dominados — a diferenciação cristalina daquilo que era vivido de
forma indistinta no mito: a união com a natureza é apenas aparência. A narrativa homérica
é o testemunho da elevação à consciência de si do que já era experimentado nas mentes
mais esclarecidas da época, ou seja, de que a imagem mítica da natureza é perigosamente
ambivalente. Mas como essa consciência ainda era precária — na verdade ela estava em
processo de se afirmar —, o sujeito tem que buscar no próprio perigo a fonte de salvação
contra ele: “eis aí o segredo do processo entre a epopéia e o mito: o eu não constitui o
oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar em sua rigidez através dessa oposição,
89
unidade que é tão-somente na multiplicidade de tudo aquilo que é negado por essa
unidade” (DA 55/56).
É exatamente devido a essa diferenciação interna da imagem que o
esclarecimento deve ser diferenciado do comportamento mimético, ou seja, ele seria
caracterizado pela distinção abstrativa operada na indiferenciação própria do mito e das
formas de assimilação imagética do mundo. O mito, a rigor, nem sequer é unitário, mas,
sim, indistinto:
A indiferenciação, antes que o sujeito se formasse, foi o estremecimento do cego nexo natural, o
mito; as grandes religiões tiveram seu conteúdo de verdade no protesto contra ele. Além do mais,
indiferenciação não é unidade; esta exige, já segundo a dialética platônica, diversidade, cuja unidade
ela constitui. (…) Destino, a submissão à natureza dos mitos, procede de uma total menoridade
social, de uma época em que a autoconsciência ainda não tinha aberto os olhos, em que ainda não
existia o sujeito. Ao invés de evocar o retorno daquela época, mediante a práxis coletiva,
dever-se-ia extinguir o feitiço da antiga indiferenciação. 112
Mais uma vez temos aqui um argumento a favor da idéia de que é o mito
grego que deve ser colocado como princípio do esclarecimento, pois, como vimos, foi ele
que instaurou a separação entre deuses e natureza, contribuindo para essa tão importante
cisão entre pensamento e realidade. Como vimos no primeiro item do primeiro capítulo, a
abstração é o que nos capacita a perceber diferenças, e uma aplicação dessa idéia é
precisamente a possibilidade que a abstração grega propiciou de perceber e de exprimir a
cisão interna da imagem da natureza como sendo profundamente ambígua — índice de
felicidade e de morte.
Mas essa consciência esclarecida não é uma negação determinada da
imagem mítica, mas, sim, abstrata, pois, como veremos, a natureza é pensada como
meramente um veículo, um substrato, para a afirmação do sujeito, o qual não preserva em
nada o direito de existência da natureza enquanto natureza, enquanto algo que possui suas
qualidades e diferenças e que, possuindo tais diferenças, faria parte da constituição da
identidade subjetiva.
Qual a relação dos trabalhadores e de Ulisses com o perigo do canto das
sereias? Em um sentido, tais relações são opostas, mas noutro sentido, são idênticas. São
opostas, na medida em que, evidentemente, Ulisses ouve o canto da sereias, mas está
imobilizado, impedido de ir até elas, enquanto seus subordinados estão surdos para o
canto e trabalham desesperadamente. Mas elas são idênticas, na medida em que o sentido da
ação de ambos é o mesmo. Tanto o senhor, quanto os servos, ficaram reduzidos a apenas
reproduzir, duplicar, como coisas, aquilo que sabiam ser o melhor para todos: não sucumbir
à beleza do canto das sereias. Note-se: a idéia que Ulisses possuía do que deveria ser feito
não é algo vivo, concreto, para ele no momento em que está atado ao mastro, pois ela
sofreu uma metamorfose decisiva, dado que se mantém para muito além das condições reais
em que ela deve ser cumprida. No momento em que ela deve ser efetivada, ela já se
tornou algo abstrato demais, devendo ser concretizada à força, situação em que a fonte de
comando situa-se em oposição radical à vivência multifacetada do que contém elementos
dispersos e perigosos à sua execução. Essa é a direção que a história da humanidade
tomou: a voz de comando instaura, impõe, a verdade da experiência como necessidade de
abstrair-se da multiplicidade dos sentidos, para garantir o sentido da vida como adaptação
forçada à idéia socialmente instituída de autoconservação — e isso vale, tanto para o
senhor, quanto para os trabalhadores. É precisamente a experiência da distância
112 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.184.
90
radicalizada entre a sede do poder de comando, legitimada pela noção de verdade, de dever a
se cumprir, e a vivência multifacetada da natureza que desvia em relação a tal poder que
mostra, mais uma vez, que a abstração do pensamento em relação aos sentidos é aquilo
que institui a ruptura decisiva entre o comportamento mimético e o esclarecimento.
Quase todos os comentadores da Dialética do esclarecimento dizem que o
domínio da natureza externa tem como fundamento o domínio da natureza interna. Tal
como diz Alo Allkemper:
A dominação sobre as coisas funda-se na coerção para a autoconservação (…) A dominação sobre
o exterior, ou seja, tanto sobre a natureza, quanto sobre os homens — enquanto função da
autoconservação —, não permanece externa ao eu: a dominação externa somente existe mediada
pela dominação interna. O eu somente consegue se afirmar na natureza externa, se ele, ao mesmo
tempo, submete sua natureza interna ao eu. 113
Apesar da expressão “ao mesmo tempo [zugleich]”, as duas primeiras frases não deixam
dúvida da relação apriorística da dominação da natureza interna em relação à da externa.
Isso não está errado, mas cremos que é mais adequado, em termos de exegese do texto
como um todo, pensar não em termos desse “transcendentalismo” de um nível de
dominação em relação ao outro. Segundo pensamos, essa diferença entre ambos os níveis
está fundada em uma relação gnosio-teleológica com a natureza. A razão esclarecida tem sua
origem no discernimento do conluio fatal entre a força da natureza e as emoções subjetivas:
o espírito percebeu uma relação de cumplicidade mimética entre ambas, ou seja, os
sentimentos começaram a ser representados como eco da multiplicidade da natureza; é isso
que experimenta Ulisses quando amarrado ao navio: “a violência de seu desejo (…) reflete
a violência das próprias semideusas” (DA 67/64). É precisamente esse discernimento que
propiciou a emergência da identidade subjetiva, na medida em que favoreceu a tomada de
consciência da necessidade de dominar as próprias emoções, alcançando a rigidez de
caráter necessária à própria identidade. Desse modo, dominar as naturezas interna e
externa é, com um certo exagero, a mesma coisa: fruto da diferenciação cognitiva a partir
das relações de poder do espírito em relação ao seu outro.
Porém, mais uma vez, vemos como o esclarecimento regride à mitologia, na
medida em que esse ponto de unificação do sentido da experiência como atualização
113 Alo Allkemper. Rettung und Utopie. Studien zu Adorno. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1981, p.60.
91
forçada do que transcende a vivência atual tem correlação com a força de presentificação
do sentido no mito. Como já falamos, o mito estrutura-se como uma forma de vida
fundada na eterna repetição do significado presente no símbolo, que visa à natureza em
seu aspecto de permanência cíclica infinita. Ora, é precisamente a eterna repetição do
elemento coercitivo presente na natureza que se espelha no rigorismo abstrato das leis
lógicas e na decisão obstinada de manter a própria identidade. Isso quer dizer que o
sujeito acaba repetindo em seu caráter, através dos rituais sacrificiais duros que tem que
atravessar, a mesma rigidez e inexorabilidade que experimenta na natureza: “o sujeito é a
forma duplicada tardia e, no entanto, a mais antiga do mito” (ND 187).
Que a razão seja um outro da natureza e, entretanto, um momento dela, é a sua pré-história que se
tornou sua determinação imanente. Ela é natural ao ser a força psíquica transferida para os fins da
autoco nservação; mas, uma vez cindida e contrastada à natureza, ela se torna o outro dessa.
Rompendo em relação a esta efemeramente, a razão é idêntica e não-idêntica à natureza, é dialética
segundo seu próprio conceito. Nessa dialética, entretanto, quanto mais inescrupulosamente a razão
se faz o oposto absoluto da natureza e a esquece em si própria, tanto mais ela regride, como
autoconservação selvagem, à natureza; somente como reflexão dessa, a razão seria uma
sobre-natureza. (ND 285)
O empreendimento de Ulisses, como, num outro sentido, o de Robinson
Crusoé, é marcado pela astúcia que vence algo radicalmente mais forte: as forças da
natureza simbolizadas pelas figuras míticas. “Ele não pode jamais travar luta física com os
poderes míticos que continuam a existir à margem da civilização. Ele tem que reconhecer
como um fato os cerimoniais sacrificiais com os quais acaba sempre por se envolver, pois
não tem força para infringi-los (DA 64/62)”. A disparidade de forças legitima a conquista
pela astúcia, do mesmo modo que a burguesia mais tarde irá encontrar a legitimação
moral do lucro no risco de ruína. A sobrevivência está marcada pela necessidade de lograr
aquilo que se opõe a ela; Ulisses e Robinson — e, por extensão, o empreendedor burguês
— são solitários: somente sobrevivem “em total separação de todos os demais homens.
Estes só vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como
pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas” (DA 69/67).
Segundo Simon Jarvis, Honneth afirma que “Adorno e Horkheimer estão
tão fixados no modelo do controle instrumental da natureza — que é o interesse real de
sua filosofia da história — que eles querem conceber o funcionamento da dominação
intra-social também de acordo com este modelo”114. A resposta de Jarvis a essa objeção
de Honneth funda-se, basicamente, na idéia de que o objetivo da Dialética do esclarecimento é
o de pensar a possibilidade da reconciliação entre cultura e natureza. Para isso, seria
necessário ultrapassar a distinção idealista entre o âmbito constitutivo do espírito e seu
outro, que leva a uma hipóstase da cultura. Ora, diz Jarvis, “fixar uma separação entre
‘dominação da natureza’ e ‘dominação social’ é fixar uma separação entre as categorias de
‘sociedade’ e de ‘natureza’”. Essa resposta nos parece adequada, mas como Jarvis
argumenta a favor da imbricação qualitativa entre os dois tipos de dominação é rápida e
simples demais: “para uma teoria materialista, dominar outros seres humanos — dado que
seres humanos não são pura cultura — é já dominação da natureza tanto quanto
dominação social, não dominação social em vez de, ou ‘modelada sobre’ dominação da
natureza” 115. Essa justificativa, naturalmente, é correta, mas não considera o mais difícil e
importante na inter-relação entre as duas formas de domínio, pois considera que a
dominação social somente se iguala à da natureza pelo fato de os homens conterem
114 Simon Jarvis. Adorno. A Critical Introduction. New York: Routledge, 1998, p.35.
115 Simon Jarvis. Op. cit., p.35.
92
literalmente um elemento de natureza como corpos físicos. É preciso ver o que
homogeneiza ambas as formas de poder, para além de sua igualdade do objeto. Essa
questão também está em jogo no texto de Allkemper:
O medo da destruição, da auto-aniquilação, é o medo de todo desconhecido, estranho, e torna-se
total dominação sobre a natureza.(…) O outro é também o estranho, que, podendo escapar de
todo cálculo prospectivo, apresenta uma alta incomensurabilidade e, assim, uma ameaça, devendo
ser, portanto, dominado em favor do próprio eu.116
O elemento que subjaz à argumentação da Dialética do esclarecimento é,
segundo nossa idéia, que ambas as formas de dominação têm a mesma fonte de
legitimação. Algo que é próprio da relação de domínio frente ao outro é que a ameaça
deste em relação ao eu torna tal domínio legítimo, pelo fato de o outro ser inserido na
maioria, no todo social, no que é múltiplo, não apenas no sentido de não sintetizado, mas,
também, de mais de um, grande, mais forte fisicamente. A alteridade dos indivíduos entre
si está vinculada ao peso da coletividade que ela possui, e a alteridade natural, ao poder de
aniquilação, de dispersão. Como o que conta em ambos os casos é o caráter de ameaça de
algo mais forte sobre o mais fraco fisicamente, a fonte de justificativa para o domínio é a
mesma. A dimensão de todo social que serve para legitimar a dominação da alteridade do
semelhante está bem expressa no Leviatã de Hobbes, um escritor emérito do atomismo
burguês: “quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais
forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem
ameaçados pelo mesmo perigo”117. Nessa passagem, encontram-se expressos os dois
elementos: de astúcia, que está em jogo na fala de Allkemper, e da coletividade
ameaçadora, que sublinhamos.
O que é próprio da racionalidade ocidental é conjugar a abstração da
concepção de mundo (com sua falsificação das relações de poder), com a consciência
individual da necessidade, da naturalidade, da comodidade, da adaptação (astuciosa) ao
todo coletivo. O indivíduo sente-se como se seu pertencimento à sociedade derivasse de
sua astúcia, em sua capacidade de burlar o olhar coletivo (do mesmo modo que Ulisses
tinha que lograr as forças da natureza). Desse modo, a má-consciência, a culpa, são
resíduos presentes, em maior ou menor grau, na mentalidade daqueles que têm que se
considerar separados do todo coletivo para nele se integrar. A culpa é o resíduo
virtualmente necessário da astúcia, mas como ela não está de acordo com a premência de
otimizar o domínio da realidade social como um todo, a “frieza burguesa” é um valor que
deve acompanhar todo o estado de espírito, como se fosse uma recomendação para uma
receita de bolo, por menos fútil que seja a situação em que ela deva ser empregada. Esse
elemento propriamente moral do esclarecimento (visto por nós como residuário da
concepção abstrata de mundo) é a transposição da negação da mímesis (no âmbito
cognoscitivo-operatório) para o da valorização de si. A moral da frieza burguesa reflete a
negação da relação não-resolvida entre alteridade e diferença no comportamento
mimético, em função de uma indiferença para com o objeto. De modo semelhante a como
Hegel diz que a subsunção do desejo do outro no reconhecimento mútuo está a serviço
do auto-reconhecimento do espírito, a indiferença burguesa está a serviço da idéia de
adaptação para a sobrevivência. Talvez não seja absolutamente coincidência Hegel falar de
116 Alo Allkemper. Op. cit., p.60.
117 Thomas Hobbes. O Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e de Maria Beatriz da Silva. São Paulo: Abril,
1983, p.74 (Col. Os Pensadores).
93
uma astúcia da razão na história, uma vez que é de astúcia que se trata na relação entre o
eu e a natureza, e entre o indivíduo e o coletivo.
Diante de todas essas evidências interpretativas que alencamos para a idéia
de que a astúcia ulissiana é uma negação abstrata da natureza, surpreende-nos, e muito, a
posição de Klaus Baum. Quando se refere à lógica exposta por Adorno e por Horkheimer
de contraposição abstrata, absoluta, entre a idéia e a materialidade sedutora da natureza,
diz o comentador:
Se Ulisses tivesse seguido esta lógica, ele teria, precisamente por isso, ao passar pelas sereias,
tapado os ouvidos com cera: mas assim ele sofre uma tortura de tântalo118 . Ele está
irresistivelmente exposto à atração do canto: a ânsia é ativada até o extremo do suportável, e ele,
entretanto, não pode ceder a ela. A astúcia que se exprime em sua prisão é negação determinada do
poder do canto e, ao mesmo tempo, condição para a ruptura intensa, dolorosa, entre a ânsia e o
ímpeto para sua satisfação. 119
Na medida em que esta multiplicidade [dos perigos de morte – vf] é, segundo sua substância,
ameaça letal, a autoconservação de Ulisses, que aqui é caracterizada como formação da identidade,
não pode ser vista como imposição rígida de um eu que persiste abstratamente. O sofrimento de
Ulisses é avaliado de modo positivo, precisamente porque ele é tornado um pressuposto de sua
maioridade. 120
Rodrigo Duarte diz “concordar com a posição de Klaus Baum, segundo a
qual o interdito não pode ser pura e simplesmente igualado à autoconservação, caso essa e
a felicidade sejam postas numa relação de tertium non datur” 121.
Há várias noções contidas nessas afirmativas. Comentemos cada uma
122
delas.
A idéia de Baum é a de que a negação exercida por Ulisses em relação à
natureza somente seria abstrata se ele negasse total- e absolutamente o contato com o
perigo de sedução das sereias, tapando os ouvidos. Segundo o intérprete, nesse caso, ele
não teria extraído nada de sua relação com a natureza, tendo seguido, então, o que seria a
lógica que apontam Adorno e Horkheimer de opor abstratamente sua idéia e a natureza.
O comentador possui uma idéia de negação abstrata bastante literal. Ele
considera que negar abstratamente a natureza somente é feito se não se tem nenhum contato
com ela. Não é o caso. Como vimos anteriormente, a negação abstrata é caracterizada por
uma imposição subjetiva, arbitrária, em relação a algo. Se, por exemplo, numa disputa de
interesses em um grupo de pessoas, um desses grupos decide, pela força, que o restante
não terá seus desejos satisfeitos, então trata-se de uma negação abstrata, pois a resolução
da contenda se deu por tal imposição subjetiva. Não é necessário, para se caracterizar a
negação abstrata nessa situação, que o grupo excluído seja morto, por exemplo. O fato de
seu direito ser totalmente negado já mostra que a negação exercida é abstrata, “confirmada por
118 Tântalo é uma figura da mitologia grega que foi punido por uma divindade, tendo que ficar em uma lagoa, sendo
que toda vez que ele se curvasse para beber água, o nível desta ia se abaixando, sem que ele pudesse saciar sua sede.
Quando voltava para cima, o nível da água subia novamente.
119 Klaus Baum. Die Tranzendierung des Mythos. Zur Philosophie und Aeshetik Schellings und Adornos. Würzburg:
Königshausen & Newman, 1988, p.67 – nota; grifos nossos.
120 Klaus Baum. Op. cit., p.73.
121 Rodrigo Duarte. Mímesis e racionalidade. A concepção de domínio da natureza em Theodor W. Adorno. São Paulo: Loyola,
1993, p.93.
122 Na verdade há outra idéia, também importante — e mais surpreendente ainda —, que é uma conseqüência das
apresentadas, que é a tomada do procedimento de Ulisses como modelo (!) para própria concepção de dialética
negativa de Adorno. Essa idéia será examinada no próximo capítulo.
94
arbítrio subjetivo”. “Arbítrio” e “Willkür” (em alemão) têm equivalência etimológica, pois
derivam da noção de vontade (arbitrium e Wille). Ou seja, o que é decido como solução
para a tensão entre os desejos tem seu fundamento numa mera vontade de algum dos
lados de que seja assim e pronto, sem consideração para com a legitimidade da pretensão do
outro, que se vê anulado em sua qualidade própria. O outro é achatado, nivelado, de tal
modo que sua presença é destituída de dignidade própria, desqualificada, violentada. A
negação abstrata tem esse nome porque é total, mas o é em relação ao direito, à natureza, à
especificidade do outro enquanto outro, enquanto diferente. Para que haja essa negação
total não é necessário que o outro seja morto ou nem sequer ouvido, etc. Essas já seriam
abstratas, mas o fato de excluir o desejo do outro como irrealizável também é uma
negação abstrata dele. Nesse exemplo, uma negação determinada poderia ser o
estabelecimento de uma lei, que negasse, nos desejos em conflito, somente aquilo que não
fosse legítimo, racionalmente aceito, etc. 123 A lei manteria o direito do desejo do outro ao
mesmo tempo em que negaria que tal desejo se efetivasse de modo a prejudicar o
semelhante.
O que é indicado por Rodrigo Duarte na concepção de Baum é que
Adorno e Horkheimer contrapõem totalmente a felicidade enquanto perdição e a
resolução obstinada de subsistência como se inexistisse um terceiro termo (tertium non
datur).
Klaus Baum está certo ao descrever assim a leitura de Adorno e de
Horkheimer da Odisséia, pois eles, efetivamente, interpretam a relação de Ulisses com a
natureza como se fosse efetivamente uma relação de tertium non datur. O problema é ele
dizer que isso não é válido. É precisamente por excluir uma outra alternativa entre a
subsistência ou a felicidade/morte que a negação exercida por Ulisses em relação à
natureza é abstrata.
Uma outra passagem da Odisséia comentada por Adorno e por Horkheimer
mostra claramente o que está em jogo nessa questão, que é a estada de Ulisses na ilha dos
lotófagos, os quais, por comerem da flor de lótus, esquecem-se da civilização, dos
deveres, da própria identidade, levando uma vida vegetativa sem as agruras da vida
cultural.
Essa cena idílica (…) a razão autoconservadora não pode admiti-la entre os seus. Esse idílio é, na
verdade, a mera aparência da felicidade, um estado apático e vegetativo, pobre como a vida dos
animais e, no melhor dos casos, a ausência da consciência da infelicidade. Mas a felicidade contém
em si a verdade. Ela é essencialmente um resultado e se desenvolve na superação do sofrimento. Assim,
o sofredor tem uma justificação, a qual não o permite permanecer entre os lotófagos124 . Ele
defende contra estes a própria causa deles, a realização da utopia, através do trabalho histórico,
pois o simples fato de se demorar na imagem da beatitude é suficiente para roubar-lhe o vigor. Mas
ao perceber essa justificação, a racionalidade, isto é, Ulisses, entra forçosamente no contexto da
injustiça. Enquanto imediata, sua própria ação resulta em favor da dominação. (DA 70/67 –
tradução modificada; grifos nossos)
Como dissemos ao início desse item, a promessa de subsistência
autonomizada feita pela razão é legítima, válida, o problema é o modo como ela foi
conduzida: a partir de uma negação abstrata da natureza. Todo o problema do
desenvolvimento da racionalidade ocidental reside no preço que sempre se teve que pagar
123 Aqui apenas para ilustrar o conceito, sem entrar no mérito da questão se Adorno concordaria que a lei jurídica é
uma negação determinada do conflito político.
124 Aqui Guido de Almeida traduziu “so ist der Dulder im Recht, den es bei den Lotophagen nicht duldet” de modo
inco mpreensível: “é essa a justificação do herói sofredor, que não sofre permanecer entre os lotófagos”. Ele traduziu
o verbo dulden (suportar, permitir), como leiden (sofrer), confundido pelo substantivo Dulder (sofredor, paciente).
95
para superar o sofrimento imposto pela coerção natural, ou seja: a sujeição da grande
massa de operários, de marginais, de criminosos, etc., ao controle da máquina de
produção da riqueza distribuída de forma absolutamente desigual; o empobrecimento das
vivências que cada um — mesmo bem aquinhoado pelas benesses tecnológicas — sofre
pelos meios de comunicação de massa, pelo ritmo estressante do trabalho, etc.; a
incompreensão abissal das motivações que o levam a rejeitar in totum as propostas
políticas mais progressistas e libertadoras; a superfluidade alarmante da classe dirigente,
que faz até mesmo de seu próprio prazer um mero meio de despertar a inveja alheia, etc.,
etc., etc. O preço que se paga pela superação da ambigüidade da imagem é a repetição, no
âmbito da cultura, da mesma coerção que a natureza ameaçava impor aos homens.
Na passagem dos lotófagos que citamos acima — que é extremamente
profícua para embasar nossa argumentação em todo esse item —, desde a segunda frase
até “(…) roubar-lhe o vigor”, a leitura da proposta, do ideário, do télos, de Ulisses é
nitidamente positiva. Nas duas últimas frases, exprime-se aquilo que mostra o caráter
excludente da posição do herói, e, portanto, o caráter abstrato de sua negação da natureza:
a verdade contida na idéia de ter que superar a ambigüidade da imagem da natureza
transforma-se em legitimação para aniquilar o direito da natureza de ser aquilo que ela é,
com sua multiplicidade, com suas seduções, com suas diferenças, ou seja, com o seu
caráter de um ser que tem vida e que, por isso, merece ser considerado não apenas como
meio, mas, também, como fim em si mesmo. A verdade contida na utopia racionalizada de
Ulisses é tornada uma mentira quando é usada como mero meio de justificar a imposição
da autoconservação como única maneira de escapar ao sortilégio natural: “a essência do
esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre
tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu” (DA
38/43). Tal submissão é precisamente aquilo que constitui o processo de formação da
própria identidade subjetiva: é preciso excluir a alteridade natural para afirmar a si próprio
como inteiro, uno, idêntico: “que uma consciência individual seja una, isso vale apenas
sob a pressuposição lógica do tertium non datur: que ela não deva poder ser um outro.
Nessa medida, sua singularidade, para ser possível, é sobreindividual.”125 (ND 146 –
nota). Isso significa que a consciência singular somente se tornou isso, singular, porque o
pensamento, sedimentando a experiência coletiva de sua unificação, pôde fornecer-lhe sua
condição de possibilidade, que é a conscientização da abstração conceitual da exclusão de
um terceiro termo entre ser e não ser.
Pelo menos de acordo com a história real da civilização, essa inevitabilidade
tem, como sua essência, o fato de ser vivida como violenta, forçada — paradoxalmente,
tanto para Ulisses quanto para os trabalhadores, como vimos acima. Na passagem pelas
sereias, no caso de Ulisses, a ânsia (vivenciada) de ir ter com a felicidade plena é massacrada
pela idéia de ter que subsistir para se alcançar a verdadeira felicidade. Essa verdade contida
nessa idéia é o que justifica a relegação da natureza a um mero meio de o sujeito
experimentar o quão forte, decidido e perseverante ele é, elevando esse saber à consciência
de si, retirando dele a seiva necessária para fundar sua identidade livre das ilusões da
125 Por outro lado, Adorno chama à atenção para a necessidade de se pensar o outro lado da moeda, que é a
dependência que o próprio universal tem em relação à consciência individual: “nenhum dos dois momentos tem
prioridade perante o outro. Se não houvesse consciência idêntica, nenhuma identidade da particularização, tão pouco
haveria um universal, como o contrário. Assim, legitima-se gnosiologicamente a concepção dialética de particular e
universal” (ND 146 – nota). Todavia, enquanto crítica do modo como a particularidade efetivamente se estabeleceu,
vê-se claramente que a preponderância do universal sempre fez com que aquela parecesse menor: “O universal cuida
para que o particular a ele submetido não seja melhor do que ele. Esse é o núcleo de toda a identidade produzida até
hoje” (ND 306 – grifos nossos).
96
flutuação mimética — e ambígua — com a natureza. Para os trabalhadores, a violência é
exercida de fora, do alto, pois eles não têm nem sequer o direito de se exporem ao perigo
da natureza para poderem se reconhecer como ativos ao lidar com ela. A eles cabe apenas
a suprema abstração de saber que a natureza é perigosamente sedutora, sem nem ao menos
vivenciar esse perigo. De acordo com a concepção de negação abstrata de Klaus Baum,
esta seria praticada apenas pelos trabalhadores — ou melhor, praticada neles. De fato,
coube-lhes, tão-somente, a força de imposição da idéia de perigo que justifica o massacre da
natureza interna de Ulisses. Para eles, a negação da natureza é literalmente abstrata, pois a
repressão, recalque, negação, de seu desejo é algo já resolvido puramente no âmbito das
idéias, sem que o perigo tenha sequer se mostrado real. Em ambos os casos a idéia abstrata
de verdade é usada para aniquilar as qualidades próprias de cada ser, de cada indivíduo, de
forma violenta:
A abstração, que é o instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus objetos do mesmo
modo que o destino, cujo conceito é por ele eliminado, ou seja, ela se comporta como um
processo de liquidação. Sob o domínio nivelador do abstrato, que transforma todas as coisas na
natureza em algo de reproduzível, e da indústria, para a qual esse domínio do abstrato prepara o
reproduzível, os próprios liberados acabaram por se transformar naquele “destacamento” que
Hegel designou como o resultado do esclarecimento. (DA 19/27)
Porém, das duas posições diante do perigo, a de Ulisses é nitidamente a
mais proficiente em termos interpretativos, pois mostra a introjeção “voluntária” da
violência da natureza na obstinação de manter a própria identidade. Ela mostra aquilo que
os trabalhadores, em um período que já garante pelo menos formalmente sua liberdade,
terão que fazer: a formação da virilidade do caráter através da negação deliberada dos
próprios desejos. Em Ulisses, essa formação tem como seu fundamento a astúcia, que é,
como dissemos, a mediação entre a unidade do ego e a multiplicidade da natureza. Para
mostrar, segundo pensamos de modo decisivo, que ela é uma negação abstrata da
natureza, é preciso que consideremos uma questão fundamental sobre o périplo odisseico
que nunca é ressaltada pelos comentadores: de onde vem a necessidade de enfrentar os
poderes de dissolução da natureza? Quando do episódio que comentamos,
Ulisses não tenta tomar um caminho diverso do que passa pela ilha das sereias. Tampouco tenta,
por exemplo, alardear a superioridade de seu saber e escutar livremente as sedutoras, na presunção
de que sua liberdade constitua proteção suficiente. Ele se apequena, o navio toma sua rota
predeterminada e fatal, e ele se dá conta de que continua como ouvinte entregue à natureza, por
mais que se distancie conscientemente dela. (DA 66/64)
(…) o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da
experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o sobrevivente sábio é ao
mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna duro
e forte para a vida. (DA 54/56)
A astúcia é o exercício da afirmação da identidade do sujeito que se
sedimenta no orgulho de poder dar um sentido, uma significação ao mundo e obter prazer
com a verdade a partir de si como o ponto de origem de uma atividade, de um agir, de
uma pro-dução autóctone, autodeterminante. A autodeterminação dessa atividade tem
como conditio sine qua non o fato de que ela somente ocorre a partir da experiência de
eximir-se da dependência em relação à natureza, a qual configura aquilo que coloca a opacidade
radical, fundante, do espírito em relação a si mesmo. A afirmação da identidade é
radicalmente negativa, não apenas porque depende da negação da natureza, mas, também,
porque aquilo que é negado é concebido, não apenas como inimigo ou como
instrumento, mas, também, como algo que, pelo fato de possuir qualidades, diferenças,
deve ser utilizado como mero receptáculo do poder de constituição do real por parte do
97
sujeito, ou seja, como algo que passa a não possuir qualidades. A diferença qualitativa da
natureza é radicalmente um mero pré-texto para que o sujeito se afirme em sua potência de
constituir a identidade do mundo e de si mesmo no momento mesmo em que desqualifica a
própria natureza. É preciso que a natureza tenha qualidades próprias para que, ao
apagá-las, o sujeito possa conceber-se — no sentido propriamente etimológico de concipere
(gerar) — como capaz de autodeterminação. O prazer vinculado à afirmação da
identidade própria é, no esclarecimento, um prazer narcisista: derivado do olhar de
satisfação de poder experimentar a própria força como sendo superior ao seu outro, ou
seja, à natureza interna e externa, e à coletividade.
Desde que o trabalho espiritual separou-se do corporal sob o signo da dominação do espírito, da
justificação do privilégio, o espírito separado teve que reivindicar, com o exagero da má
consciência, aquele direito de dominação, que ele concluiu a partir da tese de que ele seria o
primeiro e o originário, e, por isso, teve também que se esforçar por esquecer de onde seu direito
provém, caso não devesse desmoronar. O espírito percebe intimamente que sua dominação estável
não é a do espírito, mas, sim, tem sua ultima ratio na violência física, da qual aquela dispõe. Seu
segredo não deve, ao preço de sua ruína, ser falado. A abstração — que, segundo o testemunho
dos idealistas extremos como Fichte, é o que torna o sujeito um constituinte — reflete a separação
do trabalho corporal, visível através da comparação com este. (ND 179)
Mas, por outro lado, é preciso considerar o outro lado da moeda, que se
exprime na última idéia contida nas afirmações de Baum que citamos, que é a de que o
sofrimento de Ulisses deve ser considerado algo positivo porque é pressuposição, ou seja,
necessário, para a maioridade.
A reificação é, de fato, algo indispensável para a constituição do sujeito,
pois sem algum esquecimento, sem um processo de domínio de si como natureza, não
haveria como formar-se a identidade do sujeito. Toda identidade supõe que as diferenças
sejam minimamente aplainadas. Para que haja uma identidade individual, é preciso que o
sujeito se perceba o mesmo, apesar das diferenças. Não é pensável uma identidade subjetiva
fundada em uma constante relação de alteridade fluida com o que é externo. O sujeito
tem que aprender a esquecer, a ignorar, a desconsiderar vários elementos de sua existência
em função de sua identidade:
Quem toma o que tem a qualidade de coisa como o radicalmente ruim; que gostaria de dinamizar
tudo em uma pura atualidade, tende à hostilidade contra o outro, o alheio, cujo nome, não
acidentalmente, ressoa em “alienação” (…) Dinâmica absoluta seria (…) aquela absoluta atividade,
que se satisfaz violentamente em si mesma e que abusa do não-idêntico meramente como sua
ocasião. (ND 191)
Em outras palavras, a reificação, a funcionalização do mundo, a identidade,
não podem ser negadas abstratamente. Faz parte da verdade, a consciência do que há de
falso no processo de constituição do sujeito, da sociedade e do mundo, mesmo que tal
falsidade seja algo necessário: “A negação que o sujeito exerceu foi legítima; mesmo a
exercida nele o é, e, entretanto, é ideologia” (ND 161-2); “a liberdade somente pode
tornar-se real através da coerção civilizatória, não como retour à la nature” (ND 148). Mas a
mentira do esclarecimento é dupla: toma o que há de falso na dominação como verdade e
coloca sistematicamente impedimentos de toda ordem à reflexão sobre ela. O
enclausuramento da razão é fruto do medo gerado pelo perigo que a alteridade representa
para o télos de sua própria inteireza:
O círculo da identificação, que, finalmente, sempre identifica apenas a si mesmo, foi traçado pelo
pensamento, que não tolera nada fora de si; sua prisão é sua própria obra. Tal racionalidade
totalitária e, portanto, particular, foi ditada pelo medo do que há de ameaçador da natureza. Este é
o seu limite. O pensamento identificatório, a igualação de todo desigual, perpetua-se no medo da
queda na natureza. (ND 174)
98
Esse delineamento do ego absoluto em contraste com a natureza que lhe
ameaça com sua sedução da particularidade desviante talvez não seja tão bem expresso,
em toda a história da filosofia, quanto na fundação do agir moral em Kant.
b) Moral como negação abstrata da natureza: a ética kantiana
Tal como dissemos que a positividade da ciência é o Leitmotiv do
esclarecimento, podemos dizer que a moral burguesa forneceria a explicitação do
Leitmotiv prático (ético) do esclarecimento, porque ela é fundada naquilo que
descrevemos nesse último item sobre Ulisses: a formação do eu a partir da negação
abstrata da natureza. Como expressão filosófica desse quadro, a moral kantiana é
insuperável. Vejamos por quê.
Na ética de Kant, não há um objeto determinado que possa fundar o
caráter moral da vontade, pois este está vinculado única e exclusivamente ao poder que a
razão tem de nos constranger a agir independentemente de — ou melhor, contra — todo e
qualquer interesse sensível. Se agimos moralmente, o fazemos porque a razão cria um
interesse em nós, que é o de agir por respeito à lei moral. Esta nos diz que nossa ação deve
ser conforme um princípio geral, que, ainda apenas no âmbito particular, Kant chama de
máxima, de tal modo que este princípio subjetivo se torne também objetivo, ou seja,
possa ser válido para todo e qualquer ser racional, mesmo para aqueles que não tivessem
corpo, ou seja, não somente para seres humanos, mas, também, para espíritos. Esse
mandamento de objetivar a máxima subjetiva é o imperativo categórico, que é um
mandamento incondicional, ou seja, obriga seu cumprimento independente de toda e
qualquer condição, ou seja, independente de todo e qualquer interesse particular 126. O
fundamento único e exclusivo da moralidade da ação é, portanto, a bondade da vontade,
que, por sua vez, se fundamenta na autarquia absoluta da razão de determinar o sujeito a
agir sem nenhum interesse sensível.
Novamente deveríamos ter corrigido essa última frase para “contra todo
interesse sensível”. Por quê? Kant diz que podemos agir conforme ao dever [gemäß dem
Pflicht] ou por dever [aus dem Pflicht]. Alguém pode agir honestamente, por exemplo, para
não prejudicar sua posição em uma empresa, ou simplesmente pela consciência de que se
deve fazê-lo, sem outra motivação. No primeiro caso, temos uma mera adequação externa
da ação ao dever, enquanto no outro, o móbil do agir é interno, a saber, a consciência de
dever. Por mais que no primeiro caso a ação possa resultar em algo bom, ela, segundo
Kant, não tem valor moral. Isso nós podemos concordar perfeitamente com o autor. O
que chama à atenção, entretanto, é sua insatisfação evidente com os atos moralmente
neutros, os quais lhe parecem não ter nenhuma relevância filosófica. Segundo o filósofo,
que nós ajamos o tempo todo conforme o dever não nos dá a devida clareza da força da
lei moral para nos determinar a agir, ou seja, nós não temos, na maioria de nossas ações
cotidianas, a oportunidade de ver a efetividade de tal força, uma vez que nossos prazeres
sensíveis não parecem nos desviar da moralidade. Somente em uma situação em que
seguir a lei seja acompanhado pela humilhação de nossos interesses sensíveis, é que nossa
condição de seres morais ganha visibilidade, ou seja, quando há contrariedade das nossas
inclinações para com o respeito pela lei moral: “como submissão à lei, ou seja, como um
126 Todo interesse como fundamento da vontade é particular; somente o interesse que a razão desperta em nós é
dito puro, mas ele não é o fundamento da vontade.
99
mandamento — que anuncia um constrangimento para o sujeito afetado sensivelmente
— ele não contém em si nenhum prazer, mas, ao contrário, até mesmo dor na ação” 127.
Nesse quadro, todos os prazeres sensíveis são relegados a algo estritamente
individual, não contendo nenhuma dimensão de coletividade strictu sensu, pois Kant não
concede nenhum valor moral, por exemplo, para uma ação fundada no prazer de ser
honesto. Que alguém faça algo tendo em vista tal sensação, isso não contém, segundo ele,
um princípio objetivável, válido universalmente, pois tal sensação de prazer, sendo
material, poderia ser válido apenas individualmente. Ora, o prazer de se ver agindo
honestamente não pode ser algo identificado, em termos de valor moral, ao prazer de
roubar alguém. Que se aja movido pelo prazer da honestidade pode significar que nunca
se faça, com base nesse mesmo móbil, algo como furtar, roubar, etc., pois o prazer sensível
não é algo que deva ser tratado como estritamente material, como algo totalmente
disforme, como matéria bruta. O ser humano não pode experimentar a pura materialidade
sem a enformação conceitual. A idéia de um prazer sensível desprovido de toda e
qualquer dimensão conceitual é uma abstração que, se já no âmbito gnosiológico falsifica
o problema do conhecimento, no âmbito prático, ao elucidar o móbil para ação,
contradiz-se flagrantemente, uma vez que esta somente acontece com base em toda a
complexidade da relação do homem com o mundo, supondo-se aí o entrelaçamento de
vários momentos que constituem a ponte entre a consciência e a realidade. O ímpeto para
a ação já é algo socialmente formado:
‘Carência’ é uma categoria social. Natureza, a ‘pulsão’, está contida nela, mas os momentos social e
natural da carência não podem ser separados um do outro como secundário e primário, a fim de
produzir-se uma ordem hierárquica de satisfações. (…) Cada impulso é tão mediado socialmente,
que sua qualidade natural nunca aparece imediatamente, mas, sim, sempre apenas produzida pela
sociedade. 128
O famoso rigorismo kantiano seria uma expressão clara de como a natureza
é absolutamente desqualificada. E não somente ela, pois até mesmo o outro como ser
humano. Mas, nesse ponto, Adorno aponta uma incongruência interna no pensamento de
Kant, pois se o imperativo categórico fosse apenas formal, não seria possível que ele
significasse tratar os seres humanos como fins em si mesmos, pois isso supõe que haja
uma distinção qualitativa entre aquilo que é objeto da ação, e, segundo Kant, a vontade só
é boa em termos absolutos se ela não é determinada por seu objeto, mas, sim, apenas por
sua lei universal (cf. ND 215). Em Kant, então, para garantir a moralidade da ação, ou
seja, a sua plena autonomia, a razão tem que desqualificar a natureza. Mas não apenas isso: a
garantia da consciência da moralidade se dá, em Kant, a partir da resistência que o sujeito
apresenta aos móbeis sensíveis. Os atos moralmente neutros não são suficientes para a
clareza da consciência moral. Esta somente surge através da negação dos impulsos
desviantes da universalidade, ou seja, não bastaria agir segundo uma máxima universal: é
preciso, para haver esse orgulho da razão como produtora autóctone do sentido da ação,
passar ileso por todo o calvário do desvio produzido pelos sentidos. Aqui se pode ver
aquele sentido narcisista do esclarecimento que apontamos ao final do item anterior: “a
liberdade, no conceito universal abstrato de um além da natureza, é espiritualizada como
liberdade do reino da causalidade, mas, deste modo, também como auto-ilusão. Em
127 Immanuel Kant. Critique of Practical Reason. Tradução de Thomas Kingsmill Abbott. Chicago: Encyclopaedia
Britannica, 1952, p.327.
128 Theodor W. Adorno. “Tesen über Bedürfnisse”. In: Werke, vol. Soziologische Scriften II. Gesammelte Werke, vol. 8.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p. 392.
100
termos psicológicos, o interesse do sujeito pela tese de que ele é livre é narcisista, tão
desmesurado, quanto tudo o que é narcisista” (DN 219).
No caminho do auto-conhecimento e da auto-afirmação da razão, Ulisses
acorrentado ao mastro para manter o próprio eu, o filho do Deus morrendo sangrando na
cruz para redimir os pecados dos homens e a consciência puramente moral que nega o
valor coletivo dos sentidos contêm diferenças apenas periféricas.
Essa hipóstase lúdico-narcisista da cultura tem como sua contraparte
funesta sua regressão àquilo do qual ela queria desde sempre sair: o contexto natural. Se o
domínio racional não reflete sobre si mesmo, então ele acaba redundando exatamente no
contrário dele: “A ratio transforma-se em irracionalidade tão logo ela, em sua démarche
necessária, ignora que o desaparecimento de seu substrato — por mais tênue que este seja
— é seu próprio produto, obra de sua abstração. (…) Regressão da consciência é produto
de sua falta de auto-reflexão” (ND 152 – grifos nossos).
6. Regressão mimética
A tese de que o esclarecimento recai no mito, que já parece por demais
ampla aos comentadores, tal como uma generalização provocativa, recebe agora uma
ampliação extrema, ao dizermos que a cultura recai na natureza, quanto mais tenta
desvencilhar-se de tudo o que percebe de natureza em si, ou seja, quando a nega
abstratamente. “Toda tentativa de romper as imposições da natureza rompendo a
natureza, resulta numa submissão ainda mais profunda às imposições da natureza” (DA
19/27). O testemunho histórico desse retorno da natureza como algo coercitivo é
precisamente o que os autores viviam; a ameaça, absolutamente desconectada com o
poder individual dos homens, presente no poderio extraordinário das potências bélicas de
destruir o mundo, reflete o poder universal e incompreensível com que os homens
percebiam a natureza nos tempos mágico e mítico. A opressão sem limites, universal,
intocável, que atrela a existência ao desejo de reproduzir o “cadinho” do próprio
cotidiano — continuar remando, remando… —, enforma a condução da vida como
subsumida a tal universalidade, desconectada da particularidade da experiência concreta.
Essa desconexão é o que funda a própria experiência da racionalidade
ocidental, na medida em que o próprio pensamento, endurecido pela premência de
domínio sobre o que lhe é diferente, espelha a coerção natural à repetição:
O pensamento, cujos mecanismos de compulsão refletem e prolongam a natureza, também se
reflete a si mesmo, em virtude justamente de sua conseqüência inelutável, como a própria natureza
esquecida de si mesma, como mecanismo de compulsão. (…) O esclarecimento é mais que
esclarecimento: natureza que se torna perceptível em sua alienação. (DA 45-6/49-50)
Note-se que, para dizer que o esclarecimento reflete a natureza, é preciso
considerar que tais reflexo, prolongamento e retorno dela são realizados a partir de um
esquecimento, alienação, frente à própria natureza. Ela retorna, não in totum, mas de modo
determinado, como mecanismo de coerção, uma vez que ela teve seu direito negado in
totum (tomada como substrato da dominação), não de modo determinado. O retorno da
natureza dá-se em sua mutilação, que se exprime na dominação irracional a que estão
sujeitos os membros da civilização completamente racionalizada, que, na época de
Adorno e Horkheimer, viviam “sob o signo de uma calamidade triunfal” (DA 9/19).
A natureza mutilada sob os escombros da razão positivista não é total- e
absolutamente negada. Isso não seria possível, simplesmente porque senão o espírito não
subsistiria. Aquela idéia de Klaus Baum de que a negação da natureza, para ser abstrata,
teria que ser total em sentido estrito, não faz justiça à idéia de Adorno de que o que há de
perverso na racionalidade ocidental é a preservação da natureza, da particularidade, do
101
indivíduo, etc., na medida em que estes são tomados por ela como males necessários para
a subsistência do sistema:
A desgraça não ocorre como uma eliminação radical do que existiu, mas na medida em que o que
está historicamente condenado é arrastado como algo de morto, neutralizado, impotente, e se vê
afundando de maneira ignominiosa. Em meio às unidades humanas padronizadas e administradas,
o indivíduo vai perdurando. Ele até mesmo ficou sob proteção e adquiriu um valor de monopólio.
Mas, na verdade, ele é ainda apenas a função de sua própria unicidade, uma peça de exposição
como os fetos abortados que outrora provocavam o espanto e o riso nas crianças. (MM §87,
p.118)
No âmbito individual, o retorno da natureza alienada de si mesma pode ser
visto na neurose, que é uma espécie de vingança da natureza pelo esquecimento a que está
sujeita. “Todo conteúdo de verdade das neuroses é o de que elas demonstram ao eu em si
o que é estranho ao eu, o sentimento do ‘eu não sou isso de forma alguma’, sua
não-liberdade; tal conteúdo de verdade existe aí, onde sua dominação sobre a natureza
interna fracassa” (ND 221). A neurose seria um momento em que a natureza recusar-se-ia
a ser tomada como mero material cognitivo e de dominação, contendo um ímpeto alheio
à pretensa liberdade do sujeito, ou seja, um momento em que ela se exprime como dor, ao
não poder ser percebida como subsumida na abstração tranqüilizadora do espírito.
Podemos ver, com Martin Jay, esse retorno da natureza como um retorno violento da
mímesis, expulsa do pensamento através do caráter abstrato do conceito: “quando o
reprimido retorna (…), o faz freqüentemente na forma distorcida de um mimetismo
sádico que mostra sua subordinação aos fins da racionalidade dominante,
instrumental” 129. É como se a imitação, o tornar-se semelhante ao outro para assimilá-lo
em sua diferença, retornasse como imitação imposta, em que o si-mesmo é assimilado
violentamente pelo que é radicalmente diferente — a natureza —: pelo fato de a
identidade ter sido constituída sem espaço para a diferença, esta reivindica sua presença
sem margem para a própria identidade!
A neurose pode ser vista como uma mutilação do conhecimento, que,
fechando o sujeito em um ciclo infinitamente repetido, o impede de experimentar o novo.
Nas palavras de Fredric Jameson,
A neurose é simplesmente esse aborrecido aprisionamento do eu em si mesmo, prejudicado pelo
seu terror em relação ao novo e ao inesperado, carregando consigo a sua mesmidade onde quer
que vá, de modo que tem a proteção do sentimento, e qualquer que seja a coisa para a qual ele
estenda a mão, jamais en contra nada que já não conheça. 130
É precisamente a impossibilidade de experimentar o novo que dá a esse
retorno mutilado da natureza a qualidade de uma forma des-historicizada de percepção da
realidade. De forma semelhante ao respeito mítico da ciência pelo factual, pelo
imediatamente dado, a diferença radical da natureza se impõe, na neurose, como a
igualdade pura e simples de sujeito e de objeto, na medida em que todas as mediações
entre eles foram suprimidas, impedindo aquele de perceber o novo como tal, sem que
esteja de antemão subsumido a uma compulsão de natureza ou de repetir, como no caso
da ciência, aquilo que a razão desde sempre já colocou no objeto como substrato da
dominação.
129 Martin Jay. “Mimesis and Mimetology: Adorno and Lacoue-Labarthe”. In: HUHN, Tom & ZUIDERVAART,
Lambert. Semblance of Subjectivity. Essays in Adorno’s Aesthetic Theory . Londres: MIT Press, 1997, p.35.
130 Fredric Jameson. O marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São
Paulo: Unesp, Boitempo Editorial, 1996, p.32 – tradução modificada.
102
Mas a questão que se coloca agora é: não seria possível que se pensasse uma
negação da natureza que não fosse abstrata? Se a razão, tal como se configurou no
processo de esclarecimento, não fez justiça à natureza como o outro do espírito, o que o
faria? Seria possível uma forma de concepção da realidade que ultrapassasse essa
racionalidade que anula o direito da natureza como imagem? — São essas questões que
norteiam o nosso próximo capítulo.
103
Capítulo III
Além da imagem e da razão
Se no capítulo I procuramos esboçar uma concepção de mímesis a partir da
noção de imagem, no que lhe sucedeu procuramos mostrar como a racionalidade foi, aos
poucos, suprimindo essa forma de apreender o mundo. Se o comportamento mimético
apontava para uma relação de identidade e de diferença entre sujeito e objeto no medium
da duplicação imagética, o caráter abstrato do conceito instituído racionalmente procurou
enfatizar a ruptura crescente entre eles. Mas, como vimos, a radical diferenciação entre
esses dois pólos acabou, no extremo do positivismo lógico, redundando na igualação
entre ambos, às custas da diferenciação qualitativa de cada um dos dois. O que
pretendemos, agora, é perceber como o pensamento pode ultrapassar essa dicotomia
estrita entre a imagem mítica, que atrela o mundo a uma eterna repetição de si mesma, e a
abstração niveladora do conceito.
Para isso, precisamos ver, inicialmente, como Adorno e Horkheimer
concebem o que seria uma negação determinada da natureza, que conservaria seu direito.
Depois, veremos o que, no pensamento racional, qualifica sua opacidade em relação
àquilo que permanece como o outro de si nele mesmo. As duas últimas partes desse
capítulo investigam em que consistiria, finalmente, o movimento da razão rumo a essa
possibilidade de ultrapassar seu solipsismo, sua afirmação abstrata em contraposição a um
objeto desprovido de qualidades
1. Conceito versus imagem
a) A necessidade da mediação imagética
Talvez o leitor tenha anotado na margem de alguma página de nosso texto
algo semelhante à seguinte crítica: “os conceitos de natureza e de imagem são flutuantes;
várias vezes um aparece no lugar do outro, sem definição clara da diferença entre eles”.
— Desculpe, mas foi de propósito.131
Essa prática da indefinição, da interpenetração, desses conceitos quer tornar
intuível um argumento conceitual: a natureza é sempre representada para o ser humano —
enquanto algo distinto do espírito — como imagem. O sentido da natureza como algo
desviante somente pode ser alcançado através de alguma consciência dela enquanto
fenômeno assimilável, compreensível. A mera sensação disforme, bruta, sem uma
totalidade formal, não faria o âmbito da intuitividade em geral ser algo que tivesse
significado como contraparte ao espírito — considerado como unidade daquilo que dá a
fonte de inteligibilidade da própria identidade. Se a natureza é vista, em sua multiplicidade,
como desviante, é porque ela, de alguma forma, pôde ser unificada por uma consciência
que foi capaz de dar alguma identidade, mesmo que precária, para ela. Ora, essa
consciência pressupõe que não lidemos com a mera sensação como uma porção caótica
de dados materiais dispersos. Desse modo, entre a unidade conceitualmente fundada,
fonte de formação do âmbito da identidade pessoal, e a matéria caótica sem qualidade,
tem-se a própria imagem, que, ainda não absorvida pela identificação abstrata do conceito,
131 Há outra flutuação que é entre imagem tout court e imagem mítica. Como o processo de esclarecimento é um
processo de desmitologização, a imagem da natureza negada por excelência — em termos macro-sociais e
epistemologicamente considerada como o contrário do sentido da própria racionalidade — é a mítica.
104
pôde ser associada ao que há de múltiplo, de desviante, na natureza. Note-se: até mesmo
para considerar a natureza como desvio, é preciso, de alguma forma, unificá-la
minimamente, para que se tenha, a partir da rota preestabelecida, ter a consciência de que é lá
onde reside o desvio. É precisamente essa consciência do “lá” que faz com que seja
preciso filtrar a experiência das sensações como algo razoavelmente uniformizado, de
modo a se formar uma contraposição entre a consciência da inteireza do ego
conceitualmente estabelecido e a materialidade das sensações. O caráter referencial da
relação com a natureza como perdição necessita dessa enformação minimamente unitária
dela. Desse modo, a negação prática abstrata que Ulisses exerce sobre sua natureza, na
verdade, em termos gnosiológicos, deveria ser pensada como uma negação abstrata da
imagem que ele tem dela. A negação abstrata da natureza significa eo ipso negação abstrata
da imagem da natureza.
Esse caráter mediador da imagem, entretanto, como vimos no primeiro
capítulo, pode ser reforçado ou diluído. Os sentidos do olfato, do paladar e do tato (nessa
ordem) são os que menos possibilitam a experiência da espessura mediativa da imagem
em relação ao objeto, ao passo que a audição e a visão favorecem mais essa experiência.
Nesses dois últimos é que podemos perceber mais claramente a dialética entre sujeito e
objeto como mediados pela imagem, pois tais sentidos já podem configurar uma unidade
suficientemente definida do objeto, ao mesmo tempo em que ainda mantêm-nos ligados a
ele. Dado o aspecto racionalizado da arte, como uma apropriação finalística do teor de
imagem, é fácil explicar porque as artes operam mais propriamente — em termos de
tradição — com esses dois sentidos. Visão, como diz Adorno, é algo ligado à
tridimensionalidade espacial externa, ao passo que a audição, como ligada ao sentido
interno do tempo (Kant), está marcada pelo aspecto introspectivo132. Apesar dessa
diferença, ambos são os que possibilitam a maior identificação da unidade da imagem,
configurando, assim, de modo mais claro, seu caráter de mediação.
Seja qual for a densidade mediativa que a imagem assuma, o certo é que ela
é aquilo que nos possibilita o trânsito gnosiológico com a natureza, mantendo todo o
caráter de copertencimento de sujeito e de objeto, de mediação do sujeito pela
configuração imagética, de “dívida” do sujeito para com a imagem, etc., que vimos no
capítulo I. A conclusão de todo o segundo capítulo poderia ser a de que o esclarecimento
— fundado no distanciamento conceitual em relação à imagem da natureza — é uma
negação abstrata desta : “a intenção esclarecedora do pensamento, a desmitologização,
anula [vernichtet] o caráter de imagem da consciência” (ND 205). A questão que se coloca
é: o que seria uma negação determinada da imagem? Segundo Adorno e Horkheimer, a
religião judaica ocuparia esse lugar.
b) Judaísmo: negação determinada?
A idéia de Adorno e de Horkheimer é que o judaísmo não é uma negação
abstrata do mito, da magia, ou seja, do poder das imagens na configuração de um estado
de bem-aventurança, de redenção. A idéia judaica de que “não farás imagem alguma do
teu Deus”, que o próprio Kant qualificou como a mais sublime, uma vez que nega a
positividade da transcendência 133, seria uma negação determinada, na medida em que “o
132 Theodor W. Adorno. Philosophie der Neuen Musik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, p.171ss.
133 “Talvez não haja passagem mais sublime no livro de leis dos judeus do que o mandamento: tu não deves fazer
nenhuma imagem [Bildnis], nem alguma metáfora [Gleichnis], nem do que há no céu, nem na terra, nem sob a terra,
etc.” (KdU B 124).
105
direito da imagem é salvo na execução fiel de sua proibição” (DA 30/36 – grifos nossos).
“Na religião judaica, onde a idéia do patriarcado culmina na destruição do mito, o liame
entre o nome e o ser permanece reconhecido através da proibição de pronunciar o nome
de Deus” (DA 30/36). O poder da imagem residente no nome, em sua capacidade de
presentificar o ser, de vincular o aqui e o agora à transcendência, não seria negado de
forma absoluta, total, não seria aniquilada a partir do imperialismo do conceito, pois o que
se negaria com essa proibição seria tão-somente o vínculo desse poder com a efetividade
de sua realização. O que o judaísmo faria, então, seria negar toda falsa projeção de um
mundo redimido:
A religião judaica não tolera nenhuma palavra que proporcione consolo ao desespero de qualquer
mortal. Ela associa a esperança unicamente à proibição de invocar o falso como Deus, o finito
como o infinito, a mentira como verdade. O penhor da salvação co nsiste na recusa de toda fé que
se substitua a ela, o conhecimento na denúncia da ilusão. (DA 30/36)
O direito da imagem que permanece seria o de invocação, ou de
posicionamento (mesmo que indeterminado) do locus da transcendência. Nega-se a
positividade do conteúdo desse “espaço” de redenção, mas mantém-se o vínculo com ele, a
esperança de ser redimido, salvo, etc., permanece. Esses três motivos (redenção, negação da
positividade da transcendência e esperança), são marcas inconfundíveis da própria idéia de
pensamento filosófico de Adorno: “a filosofia, segundo a única maneira pela qual ela
ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespero, seria a tentativa de
considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto
de vista da redenção” (MM §153, p.215); “nada positivo é alcançável pela filosofia, que
fosse idêntico à sua construção. (…) A idéia de reconciliação proíbe sua colocação
positiva no conceito” (ND 148-9); “no fim das contas, esperança — na medida em que se
arranca da realidade ao negá-la — é a única forma na qual a verdade se manifesta. Sem
esperança seria quase impossível pensar a idéia da verdade, e a inverdade capital é fazer
passar por verdade a existência reconhecida como má, simplesmente porque ela foi
reconhecida” (MM §61, p.85). O que Adorno pretende efetivamente combater de modo
enfático é que o pensamento se resigne a ser apenas uma cópia fiel de um estado de coisas
em que impera a injustiça contra o particular. Por isso, a idéia de um mundo que esteja
para além dessa falsidade é a única forma de concepção de algo que mereça a qualificação
de verdade.134 Consideramos que tais conceitos, no âmbito teórico-filosófico da obra adorniana
tenham sua legitimidade assegurada. Entretanto, o que dizer em termos de sua
significação concreta no judaísmo enquanto religião?
Todos os comentadores, até hoje, sempre fizeram referência à visão do
judaísmo por parte de Adorno e de Horkheimer, mas apenas tentando interpretá-la de
uma maneira ou outra — não havendo discrepância entre os comentários, dada a clareza
da idéia em jogo —; o que nenhum daqueles a que tivemos acesso fez foi questionar a
legitimidade, a pertinência, dela135. Será mesmo que a negação judaica do nome de Deus é
uma negação determinada do poder da imagem mítica?
Para responder a essa questão seria necessário distinguir dois elementos: a
adequação conceitual da negação judaica do nome de Deus à idéia de negação determinada
— desenvolvida por Adorno na Dialética negativa — e, por outro lado, o sentido que tal
134 Sobre os conceitos de reconcicilação, de idéia e de justiça ao particular em Adorno, veja-se os itens 4 e 5 à frente,
nesse capítulo.
135 Dado que consultamos vários livros bastante atuais, publicados em 1998, 99 e 2000, podemos, com pouco risco,
dizer que ninguém colocou em cheque — nem de modo imanente, nem externo à obra dos autores — a legitimidade
dessa idéia.
106
negação tem em termos práticos, ou seja, o que a negação do nome de Deus significa em
termos de configuração do modus vivendi judaico, ou, ainda, qual sua dimensão concreta em
termos de seu posicionamento histórico-social do povo de Israel. O que os autores teriam
feito, segundo pensamos, é confundir o que eles vêem como pertinência conceitual de tal
negação determinada com um elemento prático que está de acordo com tal dimensão
conceitual, concluindo, já por isso, pela qualidade da proibição do nome de Deus como
negação determinada.
Se, como dizem os autores, “a dialética revela (…) toda imagem como uma
forma de escrita”, ou seja, como algo que se deve decifrar, como um enigma, o que a
negação do nome de Deus tem enquanto tal? Adorno diz que a reflexão filosófica sobre o
objeto do pensamento consiste na “consciência da constelação na qual ele está: a
possibilidade para a penetração no interno carece desse externo. Tal universalidade
imanente do singular, entretanto, é objetiva como história sedimentada. (…)
Conhecimento do objeto em sua constelação é o de seu processo, que ele armazena em
si” (ND 166); se assim é, então que história se sedimenta na imagem da proibição das imagens? O
que afirmamos é que a própria proibição das imagens é uma imagem coletiva que
sedimenta uma dinâmica social, que, cristalizando-se enquanto símbolo, necessita de
decifração desse seu conteúdo inerente, mas sublimado no meio imagético.
Quando Adorno e Horkheimer dizem que “o direito da imagem é salvo”, a
pergunta é: que direito? – ele deve mesmo ser salvo? – qual é a dimensão histórico-social
de sua manutenção?
A nossa tese é que a negação judaica do nome de Deus não é algo que
apenas faz com que a esperança seja legitimada — essa legitimação é o que Adorno
procura trazer para o conceito filosófico —, mas, sim, dá um conteúdo prático, vivencial, ou
seja, dá uma positividade prática, a ela, a saber: que essa esperança está vinculada
coletivamente ao situs da transcendência. Os autores teriam percebido a adequação da
proibição do nome de Deus em termos conceituais com sua idéia de negação determinada
pelo fato de, em termos cognitivos, essa proibição esvaziar a transcendência de sua
positividade, mantendo o poder da imagem de referir-se a ela, mas tal poder não é algo
que deve ser pensado apenas como fazendo com que a esperança de um mundo
efetivamente humano tenha o direito à existência garantida. O sentido prático dessa
proibição mostra que ela não é uma negação determinada, mas, sim, abstrata. Trata-se de
uma outra forma de perpetuar o poder de constrição da imagem à sua duplicação infinita,
só que, mascarado pela negação explícita de sua positividade cognitiva. O que o judaísmo fez
foi negar o conhecimento positivo de Deus, mas conservou algo que não deveria ter sido
conservado: a positividade prática do vínc ulo da esperança de um mundo melhor à esfera da
transcendência. Essa permanência mostra que a coerção mítica continuou no pensamento
judaico.
Podemos elucidar claramente esse vínculo das dimensões cognitiva e prática
na negação da imagem de Deus através da contextualização histórico-social em que ela foi
criada. O povo judeu é um povo sem solo pátrio: fugindo da perseguição do povo
egípcio, ansiava pela terra prometida, Canaã:
Disse o Senhor a Abrão, depois que Ló se separou dele: Ergue os olhos e olha desde onde estás
para o norte, para o sul, para o oriente e para o ocidente; porque toda essa terra que vês, eu ta
darei, a ti e à tua descendência, para sempre. Farei a tua descendência como o pó da terra; de
maneira que se alguém puder contar o pó da terra, então se contará também a tua descendência. 136
136 Bíblia, Gênesis, cap. 13, versículos 14-16.
107
A nossa tese é a de que o fato de os hebreus não terem a terra fixa, o solo
pátrio, como experiência concreta, mas tão-somente como promessa, exprimiu-se
simbolicamente na negação do nome de Deus. O que poderia dar legitimidade atual à
positividade da imagem seria a propriedade coletiva fixa da pátria, pois toda imagem da
transcendência possui conteúdo coletivo. Dada a ausência desse solo, que estabeleceria
um lastro simbólico presente para o preenchimento gnosiológico da transcendência
estampada na imagem, o patriarcado emergente percebeu que a esperança de redenção
não poderia ter um conteúdo cognitivo, mas, evidentemente, teria que possuir um em termos
práticos, caso contrário a identidade da coletividade se esfacelaria — o que, de tudo, é o
que menos poderia ocorrer.
Analisemos duas passagens da Bíblia, das várias que poderiam ser
interpretadas como simbolizando o vínculo coletivo prático com Deus, ao mesmo tempo
em que negam a imagem deste. Na primeira, trata-se da prova que Deus colocou a
Abraão, em que lhe falou: “toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à
terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te
mostrarei”137. Mas no momento em que Abraão iria imolar o filho, Deus o impediu de
fazê-lo, pois o que ele queria era uma prova de fé. Uma vez satisfeito, o Senhor disse:
Jurei por mim mesmo (…), porquanto fizeste isso, e não me negaste o teu único filho, que deveras
te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a
areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos, nela serão benditas
todas as nações da terra: porquanto obedeceste à minha voz.138
A nossa idéia é que o fato de Abraão não matar Isaque indica que, na
imagem judaica de Deus, não há propriamente a consumação do poder divino enquanto
positividade de sua presença na dinâmica motivacional da existência, mas, por outro lado,
toda a carga vivencial estampada na imagem de um pai que se encaminha, desloca-se para
uma outra cidade para matar o único filho para mostrar, externar, a força de sua crença é
suficientemente enfática para se concluir que, apesar da negação daquela positividade
primeira, o seu conteúdo prático é inelidível.
Mas a negação do aspecto propriamente gnosiológico em função da
premência do prático está mais claramente configurada na expulsão de Adão e de Eva do
paraíso. Deus disse que ambos não deveriam comer o fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal, pois, se o fizessem, morreriam. Mas disse a serpente a Eva: “é certo que
não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os
olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal”139. Ora, como punição,
seguiram-se, dentre várias desgraças que pairam sobre os seres humanos, as dores do parto
para Eva e a fadiga do trabalho para Adão. Ou seja, sem a positividade do conhecimento,
tem-se a positividade da prática da vida; com a primeira, tem-se a negatividade da
corporeidade vital.
Se a “negação determinada não está imunizada pela soberania do conceito
abstrato contra a intuição sedutora” (DA 30/36), o povo judeu, na negação do nome de
Deus, pretende, através da imagem dessa negação, formar uma aliança com ele e entre seus
membros através da vivência da negação da sensibilidade como motor para o fluxo da vida
coletiva, o qual deveria desaguar na terra prometida. Esse vínculo interno e para com
Deus através da negação corpórea está nitidamente configurado na passagem bíblica da
137 Bíblia, Gênesis, cap. 22, versículo 2.
138 Bíblia, Gênesis, cap. 22, versículos 16-7.
139 Bíblia, Gênesis, cap. 3, versículos 4-5.
108
instituição da circuncisão: “circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal de
aliança entre mim e vós” 140. Ora, aqui estampa-se de modo absolutamente enfático a força
da presença da coletividade enquanto marca física, gerada pela intervenção corporal
agressiva em relação ao ser humano ao nascer (aos oito dias de vida), em que ele nem
mesmo pode decidir se quer ser circuncidado ou não. A exposição da glande mostra a
ênfase social na premência de entrelaçamento dos membros da comunidade israelita, que
não possuía a perenidade do sentido da palavra garantida pela propriedade territorial fixa.
Em suma: a negação da imagem positiva de Deus é, ela própria, uma
imagem, uma configuração simbólica, que estabelece um curto-circuito entre a idéia, o
conceito, de Deus e a materialidade da existência, na medida em que, experimentando a
instabilidade do sentido simbólico da palavra devido à ausência do solo nacional, o
patriarcado judeu precisou estampar, na positividade do conhecimento, a perdição que ele
via existir nos povos inimigos, de tal modo a legitimar, em termos práticos, no sofrimento
físico, a busca pela terra prometida.
Mas poderíamos fazer mais uma questão: por que foi o povo judeu que
instituiu essa vinculação entre a negação da positividade do conhecimento e a premência
da prática? Porque, na religião judaica, já se estampava aquilo que virá a ser o Leitmotiv da
religião racionalizada ocidental, o cristianismo, que dela nasceu: a fé. Esta é caracterizada
precisamente por conter um elemento prático, de motivação de vida, mas aliado,
inelutavelmente, a uma ausência de conhecimento. Faria sentido o leitor dizer que tem fé
que essa tese de doutorado existe? Claro que não, uma vez que ela está diante de seus
olhos, sem possibilidade de dúvida. Faz sentido dizer que temos fé que ela será publicada
por alguma editora? Sim, pois não temos provas cabais disso — talvez nem sequer
indícios… Quanto mais provas, demonstrações, indicações, há para um conhecimento,
menos espaço para a fé existe. É precisamente isso que Kant diz, quando afirma que quis
diminuir o espaço do saber (na Crítica da razão pura) para dar lugar à fé, pois bem sabe ele
que esta depende da negação daquele. Dizem Adorno e Horkheimer:
(…) a fé é um conceito privativo: ela se anula como fé se não ressalta continuamente sua oposição
ao saber ou sua concordância com ele. (…) Permanecendo inevitavelmente presa ao saber como
amiga ou inimiga, a fé perpetua a separação na luta para superá-la: seu fanatismo é a marca de sua
inverdade, a confissão objetiva de que quem apenas crê por isso mesmo não mais crê. A má
consciência é sua segunda natureza. (DA 26/33)
Um tanto problemática nessa passagem é a possibilidade de a fé ser amiga
do saber. Isso está certo se se refere apenas ao conteúdo do ato de fé, ou seja, esta é amiga
do saber na medida em que este confirma aquilo de que se tem tal crença. Entretanto, o
que está em jogo, aqui, é a fé como suporte da instituição da religião, logo algo que tem
função e significados sociais. Devido a essa magnitude coletiva, todos os diretores das
instituições religiosas sempre souberam muito bem que a dimensão motivacional da
existência religiosa, não somente é vinculada à fé, mas que o conhecimento racionalizado
sobre a transcendência, mesmo concordante com a crença, diminui esse elemento motriz
da condução da vida.141 Tal elemento consiste, precisamente, em forçar a reconciliação
140 Bíblia, Gênesis, cap. 17, versículo 11.
141 Aqui valeria uma referência à doutrina espírita, que trata diversos fenômenos no mundo como manifestações
consideradas por ela evidentes da existência de Deus, como operações mediúnicas, psicografações de falas de
espíritos, etc. Ora, é precisamente por causa dessa essa maior quantidade de “provas” da existência de Deus que a fé
não é algo tão forte para os espíritas quanto o é para o católico, por exemplo. Devido a esse enfraquecimento
motivacional pela diminuição do espaço da fé, podemos ler na sua idéia de reencarnação o locus do pólo atrator para
delinear o sentido da vida, que é o de aperfeiçoar-se cada vez mais, sob pena de retornar mais vezes nesse plan eta,
etc.
109
entre espírito e matéria a partir de um ato, de uma atitude, que é a crença cega no
transcendente.
Na secreta consciência da deficiência que lhe é necessariamente inerente, da contradição imanente
nela e que consiste em fazer da reconciliação sua vocação, está a razão por que toda a honestidade
dos fiéis sempre foi irascível e perigosa. Não foi como exagero mas como realização do próprio
princípio da fé que se cometeram os horrores do fogo e da espada, da contra-reforma e da
reforma. (DA 26/33)
Desse modo, vê-se que a negação da imagem de Deus no judaísmo e a fé
cristã têm o mesmo sentido gnosiológico e prático: negar a imagem positiva da
transcendência a fim de situar no âmbito prático, vivencial, moral, etc., a âncora para a
continuidade da vida individual e coletiva 142. Tal negação, que configura a anulação da
positividade cognitivo-imagética desse objeto, está, portanto, longe de ser uma negação
determinada do mito. Na verdade, ela efetua a mesma recusa que a Filosofia faz da
imagem estética, que pode ser lida de modo enfático na condenação platônica da poesia
em sua República.
c) A recusa logocêntrica da mímesis; a imagem estética
O banimento dos poetas da cidade, erigida segundo a razão [και το λóγος]
(369c), na República, é um dos temas mais comentados da história da filosofia da arte —
arriscaríamos a dizer que é o mais comentado.
Na tradição de comentários, o aspecto mais ressaltado é a questão
epistemológica que trata da mímesis como duplamente falsa. Como se sabe, a verdade
plena para Platão reside nas Idéias, que não se situam nem nas coisas, nem nos homens.
Os objetos sensíveis seriam algo como que imitações delas, tal como as sombras das
cavernas, em relação aos modelos que são iluminados pela luz radiante da idéia do Bem,
ou seja, da Razão cósmica teleologicamente estruturada. Dado que uma pintura teria que
se basear na aparência sensível dos objetos, ela estaria duplamente afastada do âmago do
real.
Aqui se vê claramente a reação daquilo que incorpora a expressão de poder
que se pretende universal contra a particularização. Somente deve ser situado na fonte de
inteligibilidade do real aquilo que possa receber a efígie da universalidade, pois somente
essa é indivisível — tal como a alma não parece ser divisível, em contraste com o
corpo.143 É precisamente a idéia de unificação que preside toda a construção da república
142 Aqui talvez o leitor faça uma objeção a essas idéias, dizendo que, no judaísmo, o que se nega é que haja um nome
para Deus, ou seja, nega-se uma imagem positiva dele, ao passo que, na fé cristã, o que é negado é um conhecimento da
existência de Deus; a confusão desses dois elementos teria possibilitado a utilização da passagem da expulsão do
paraíso como metáfora para a negação da imagem. Embora o conhecimento não seja uma imagem física, tal como
um quadro, entretanto ele delineia, configura, um estado de coisas, que, em sua inserção no conjunto da vida como um
todo, assume, evidentemente, uma dimensão imagética enquanto mediação intuitiva e conceitual entre nós e o
mundo, ou seja, qualquer conhecimento conceitual é também uma representação simbólica do mundo. Desse modo,
conhecer uma determinada realidade, possuir um saber sobre alguma coisa, é formar uma imagem positiva sobre ela.
143 Nesse ponto podemos fazer uma inesperada aproximação entre a condenação da mímesis em Platão e a
proibição das imagens dos judeus. Este povo comunga, com a consciência aristocrática expressa no lógos filosófico,
a idéia de que o poder somente se dá a partir de algo aquém ou além da materialidade visível das coisas. Quem lê a
alegoria da caverna na República pela primeira vez tem a impressão de que aquilo que dará a realidade ao real está
sempre postergado: sombra, bonecos, reflexo no lago e o sol. O fulcro de rotação da realidade parece sempre
evadir-se ao olhar. É isso que se estampa na proibição judaica das imagens: dada a vivência do solo pátrio como mera
promessa, como pro-jeto, é preciso postergar a relação direta com a transcendência em termos epistemológicos, para
manter a positividade da relação prática com ela, como vimos. Em ambos os casos, o pensamento passou por uma
abstração de ordem prática. Os gregos cindiram a realidade em um plano theo-noumênico e phýsico-aisthético em seus
mitos, ao passo que os hebreus viviam a abstração entre a promessa eterna de uma pátria em contraste com o enlace
110
platônica. A estrutura rígida das castas dessa cidade, como vimos, representava, na
elaboração filosófica, o discurso do poder que pretendia perenizar-se. 144 Agora estamos
vendo como é que isso foi efetivamente realizado: com a censura em relação à
particularidade, expressa claramente na difusão singularizada das representações
miméticas. A unidade leva à excelência [αρετ? ]; a fragmentação, à diferença qualitativa e,
portanto, ao contrário da eficácia:
A natureza humana, Adimanto, se me afigura dividida em pedacinhos ainda menores, de forma
que é impossível a qualquer pessoa imitar bem muitas coisas ou fazer as próprias coisas que a
imitação reproduz. (…) Se quisermos, portanto, manter de pé a primeira proposição, a saber: que
os nossos guardas, dispensados de qualquer outra ocupação, se dedicariam exclusivamente à
liberdade [αυτονοµια] da cidade, sem empreenderem senão o que tendesse para esse fim, será
preciso que não façam nada mais nem imitem coisa alguma. (395b-c)
O poder sempre percebeu que sua legitimação somente poderia se firmar se
ela se ligasse estreitamente àquilo que fornecesse a âncora de compreensão do real. A
força física, da qual o espírito provém, teve sempre que ser acompanhada de um estrato
subterrâneo, de ordem gnosiológica, para que ela pudesse cada vez mais ser dispensada,
devido à sua sublimação nas formas do pensamento, que, uma vez introjetadas pelos
indivíduos, contribuem para reforçar a consciência de legitimidade do poder, ao mesmo
tempo em que reforçavam seu exercício, ou seja, a dominação social, política. O problema
da mímesis para Platão, nesse sentido, não reside única e exclusivamente na
impossibilidade de a representação imagética alcançar o teor de universalidade do
pensamento, pois se ela não contivesse, como algo essencial, algo que expressa essa
universalidade, em nada seria necessária a veemência da condenação da mímesis. Como
diz Jeanne -Marie Gagnebin,
apesar de faltar totalmente ao ser verdadeiro, a mímesis tem uma força de arrebatamento à qual
toda a filosofia de Platão procura resistir. Talvez possamos dizer que a mímesis possui essa força
não apesar de não participar do ser verdadeiro, mas, mais secretamente, justamente porque ela não
participa dele, porque ela aponta para o engodo, para a mentira, para ilusão e a falta. Aprofundar
essa hipótese nos levaria longe demais.145
Vejamos, nós, aqui, quão longe podemos chegar.
A questão fundamental é: por que a imagem seduz? Por que “o engodo”, “a
mentira” e a “ilusão” constituem fontes de prazer e de perigo?
À época de Platão, a força da transcendência da imagem mítica já havia se
despontencializado, sofrendo um processo de sublimação estética: “desde o feliz e
malogrado encontro de Ulisses com as sereias, todas as canções ficaram afetadas” (DA
67/65), ou seja, perderam o poder de seduzir através do apelo imediato e letal da força
infinita da natureza, mas contêm, ainda, algo dessa força:
Pertence ao sentido da obra de arte, à aparência estética, ser aquilo em que se converteu, na magia
do primitivo, o novo e terrível: a manifestação do todo no particular. Na obra de arte, volta
sempre a se realizar a duplicação pela qual a coisa se manifestava como algo de espiritual, como
exteriorização do mana. (…) Enquanto expressão da totalidade, a arte reclama a dignidade do
vivencial na premência da jornada rumo a Canaã. Tanto a aristocracia grega, quanto o patriarcado judaico
perceberam o quão necessário é que os homens introjetem a fonte de legitimação do poder, para que a divisão hierática
de dominação mantenha-se estável, e isso é realizado através do distanciamento de tal fonte em relação à consciência
sensível dos indivíduos, o que é feito através da abstração do pensamento ligado à transcendência da fundação
ontológica do real.
144 Cf. capítulo II, item 2-b.
145 Jeanne-Marie Gagnebin. “Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”. In: op. cit., p.83.
111
absoluto. (DA 25/32 – tradução modificada146 )
“A manifestação do todo no particular” — eis o Leitmotiv de toda a
fervorosa censura platônica das imagens dos poetas. Não se trata de condenar a imitação
tout court. Qualquer leitor de Platão sabe muito bem que, para este, há “várias formas de
mímesis: uma filosófica, que representa autenticament e as essências, e as outras,
produtoras de simulacros, que devem ser combatidas e rejeitadas” 147. Mas não apenas a
imitação no lógos purificado conceitualmente é aceita. A própria imitação nos guardiães
da cidade pode ser realizada, desde que tenha como objeto algo digno, elevado:
no caso de imitarem, deverão fazê-lo desde a meninice o que lhes convier para se tornarem
corajosos, temperantes, santos, livres e tudo o mais do mesmo gênero, não devendo praticar nem
procurar imitar o que não for nobre nem qualquer modalidade de torpeza, para que por meio da
imitação não venham a encontrar prazer na realidade. (395c)
O problema de Platão com a imagem estética não é da mesma natureza que
com a sensibilidade. Os dados sensíveis, por si só, podem ser equacionados de acordo
com uma gradação epistemológica em termos filosóficos, ou seja, estão afastados, tanto
das figuras delimitadas das virtudes supremas, quanto daquilo que fundamenta o poder
racional delas como totalidade: a idéia do Bem. A imagem estética, por outro lado, não
cabe nessa grade axiológica. A imagem contém um movimento de autonomia, que faz com
que ela ressoe a mesma dignidade impositiva do lógos, sem abdicar da difusão dos dados
sensíveis. A universalidade do conceito parece tornar-se intuível no sentimento de
secularização da transcendência mágica operado na imagem estética.
Se a repressão de sua natureza interna de que se vangloria Ulisses é uma
negação abstrata dela, no entanto a cisão interna à imagem de que falamos, operada por
tal negação, fez com que a dimensão estética pudesse aflorar à consciência humana. A
rigor, a beleza é algo que sobreveio aos homens, quando a imagem deixou de ser vivida
como propiciando o curto-circuito entre a particularidade da vida e a transcendência
sagrada. “O canto das sereias”, que “ainda não se enfraqueceu como arte” (DA 39/44 –
tradução própria), não seria propriamente belo, pois ainda conteria o peso da sacralidade
imperando na intuição sensível, de tal modo que a indistinção (“olfativa”) mimética do eu
e do outro não permitiria um distanciamento de tal modo a perceber que falsidade da
imagem como algo que apraz, precisamente por estampar em sua pregnância “reflexiva” o
fato de que nós não somos mais natureza. “No artefato [da obra de arte – vf] o
estremecimento liberta-se do engodo mítico de seu Em-si, sem que ele seja nivelado ao
espírito subjetivo” (ÄT 124-5). O prazer da imagem “enfraquecida” reside precisamente
na confissão de sua insuficiência como ponte entre a particularidade infeliz e a plenitude
do gozo da indiferenciação com a natureza, ou seja, com a morte. As cinzas geradas pela
negação abstrata da natureza operada por Ulisses foram o solo do qual a imagem retirou a
matéria de sua qualitas: não apraz pelo contato com a plenitude do ser em-si-mesmo, mas
pelo testemunho de que “o que é, é mais do que ele é” (ND 164).
A ideologia cultural conservadora, que vê uma oposição simples entre esclarecimento e a arte, é
146 A primeira oração, que em alemão é: “es liegt im Sinn des Kunstwerks, dem ästhetischen Schein (…)”, Guido de
Almeida traduz erroneamente “pertence ao sentido da obra de arte, da aparência estética”, dando a entender que
pertença ao sentido da aparência estética o que se segue. A própria aparência estética é o que configura a unidade de
sentido da obra de arte. Mas nem seria preciso esse conceito extraído da Teoria estética, pois há um erro simples de
concordância na tradução, pois a partícula “dem” é regida pela preposição “in” (correspondente a “ao” da tradução)
da primeira parte da frase, e não pelo genitivo “des”.
147 Jeanne-Marie Gagnebin. “Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”. In: op. cit., p.84.
112
falsa também no sentido de que desconhece a dimensão de esclarecimento presente na gênese do
belo. O esclarecimento não dissolve apenas todas as qualidades às quais o belo é inerente, mas põe
ao mesmo tempo pela primeira vez a qualidade do próprio belo. (…) A magia estava ligada à
aparência de onipotência. Essa aparência dissipou-se com o auto-esclarecimento do espírito, mas a
magia sobreviveu como poder das coisas reluzentes sobre os homens, que antes tinham arrepios
diante delas e cujo olhar permanece fascinado por esse arrepio, mesmo depois de terem devassado
sua pretensão de dominação. A co ntemplação é ao mesmo tempo, enquanto resíduo de adoração
fetichista, um estádio de sua superação. (MM §144, p.196-7)
A arte é essencialmente uma rememoração do que se esconde por baixo do
solo exaurido de qualidades da razão que tudo queima, ao querer iluminar o mundo
“como tudo que é o caso”148 em busca da verdade:
Todo esclarecimento é acompanhado do medo de que possa desaparecer aquilo que ele pôs em
movimento e que ameaça ser engolido por ele: a verdade. Se ele retorna a si mesmo, ele se afasta
daquele ser-objetivo seguro, o qual ele gostaria de alcançar; por isso permanece-lhe o ímpeto de
afirmar aquilo que foi condenado em nome da verdade. A arte é tal Mnemosine149 . (ÄT 124/97;
tradução própria)
A promessa de transcendência interrompida é propriamente aquilo que dá à
imagem estética o valor de experiência que ela possui, que faz tremer a ânsia platônica de
ancorar o poder em um solo do conhecimento unificado pelo heliotropismo conceitual.
Segundo Heidegger, toda a metáfora é devedora da metafísica; segundo Derrida, todas as
metáforas da filosofia são heliotrópicas; a partir disso, diríamos nós: todo o deslocamento
referencial metafórico está calcado na ancoragem intelectiva pela passagem de um plano
obscuro para outro que “ilumina”, tanto o primeiro, quanto os demais, e isso vinculado a
uma unidade de compreensão da totalidade. A potência solar do Αγατóν na República é
signo da ânsia de graduar a indistinção epistemológica da vivência em relação às
diferenças miméticas, através de seu reconhecimento reflexivo e distanciado, fora da caverna,
de onde se poderia, mais uma vez, enfraquecer aquilo que ainda lembrava a escuridão
infinita e indivisa do interior dela. Na verdade, tal amplitude desmesurada dos espaços
sem arestas — isso Platão deve ter pressentido — está apenas sublimada em sua
contraparte benfazeja: a luminância ofuscante do Conceito. O fato de que “o nome de
Zeus era dado tanto a um deus subterrâneo quanto a um deus da luz” (DA 20/28) indica
que o Bem, não apenas se mistura ao Mal, mas, sim, é apenas uma outra expressão para a
mesma coisa: a escuridão está para o medo assim como o sol está para o desejo de
vencê-lo. A imagem estética não se confunde, nem com as sombras frias da caverna, nem
possui a arrogância esturricante do astro: ela está na agradável área de penumbra, que
permite ver que a extrema luz é apenas a experiência subjetivamente forjada na
consciência de todos de que a escuridão infinita não deve ser desejada. Ela é o momento
em que a falta de distinção conceitual ainda permite que não nos ofusquemos pela
potência niveladora do abstrato, de modo a percebermos o engodo que reside em se pensar
que nós não dependemos da natureza para sabermos o que somos – e isso apraz.
Tal significa que a imagem estética é um instante de reconhecimento de que
se é diferente do que a fonte de auto-compreensão permite que vejamos, ou seja, em que
percebemos que podemos nos visualizar para além do foco iluminador das relações de
poder. O enfraquecimento da noção abstrata e puntual da fundação unitária da identidade
através do exercício de poder está calcado na relação dialética de alteridade não-resolvida
148 Ludwig Wittgenstein. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo:
Edusp, 1994, p.135.
149 Rememoração, memória.
113
da imagem estética, expressão sublimada da indiferenciação expressiva entre sujeito e
objeto da mímesis arcaica (cf. capítulo I, item 2); é contra isso que o discípulo de Sócrates
vocifera enfaticamente. De nada adianta focar a crítica platônica à mímesis no aspecto
epistemológico desta enquanto cópia da cópia, posto que isso já resultaria numa
domesticação falsificadora do problema, incorrendo naquilo que estaria bem ao gosto do
próprio Platão: desviar o olhar do que realmente interessa, a saber, o co-pertencimento de
sujeito e de objeto no medium expressivo da imagem, que “traga” o sujeito para dentro de
si, ao mesmo tempo que o aproxima do objeto. O que realmente aterroriza a
autoconsciência do lógos aristocrático é a flutuação identitária da imagem estética.
“O que é a virtude?”, “o que é a justiça?”, “o que é o belo?” — o
questionamento socrático incessante, que Platão tomou a si como tarefa responder e que
alguns filósofos analíticos querem perceber como a origem grega de sua investigação dos
usos e dos abusos das palavras, é a emergência de um saber essencialmente reflexivo
sobre a necessidade urgente de dar às palavras a unicidade de que o lógos precisava. Em
vez do mimetismo polissêmico dos símbolos míticos — expressões pouco dissimuladas da
promiscuidade com a natureza —, a univocidade protegidamente estruturada dos signos
neutros:
Com a nítida separação da ciência e da poesia, a divisão de trabalho já efetuada com sua ajuda
estende-se à linguagem. É enquanto signo que a palavra chega à ciência. Enquanto som, enquanto
imagem, enquanto palavra propriamente dita, ela se vê dividida entre as diferentes artes, sem
jamais se deixar reconstituir através de sua adição, através da sinestesia ou da arte total. (DA
24/31)
d) Imagem, símbolo e signo
O caminho rumo ao esclarecimento é a trajetória da conscientização do
λoγος como σηµα , ou seja, da fala que se percebe como aquilo que não é mais a própria
coisa, mas apenas sua duplicação morta 150. Nesse percurso, vemos o pensamento ir
solidificando-se, desde mera duplicação reflexa da natureza no mimetismo, até o signo
neutro da matemática. Podemos dizer que no mimetismo não há símbolos. Tratam-se de
imagens que nem sequer se cristalizaram minimamente de modo a se falar de sim-bologia,
como algo que se lança junto de outra coisa. Não há o “junto”, porque não há “duas”
coisas na consciência que o ser humano faz de si mesmo que pudessem se juntar. O
símbolo poderia ser a marca distintiva da magia e do mito, na medida em que as imagens
e a linguagem já passam a se constituir com um relativo peso próprio, apesar de
continuarem no âmbito mimético por excelência, como vimos no primeiro capítulo. No
símbolo, o pensamento que irá aos poucos se conhecer como sema ainda não se separa de
si como eikón: “A doutrina dos sacerdotes era simbólica no sentido de que nela
coincidiam o signo e a imagem. Como atestam os hieróglifos, a palavra exerceu
originariamente também a função da imagem. Essa função passou para os mitos” (DA
23/30). O símbolo já configura a sedimentação da imagem como algo inteiro, cuja
integralidade já suporta a carga referencial às coisas. Esse trânsito “semântico” do símbolo
ainda é bilateral, ou seja, interpenetram-se pensamento e realidade como coisas que têm
um processo em que uma dimensão é constituída pela outra, tal como pudemos ver no
capítulo I. Apesar da bidirecionalidade mimética, a fixidez do todo da imagem já devia, de
150 Σηµα (sinal, insígnia, signo), em grego, tem, entre vários significados, “pedra tumular”; sema é origem etimológica
de “semântica”.
114
alguma forma, contrapor-se à inevitabilidade do destino, que, ao mesmo tempo, se refletia
nela (cf. DA 67/65).
O pensamento que começa a se perceber como sema já introduz a cisão
interna do símbolo, que distingue o caráter sígnico do imagético. Tal separação é o que está
em jogo em uma das passagens da Odisséia analisadas por Adorno e por Horkheimer:
Ela pertence a um folclore muito difundido. Em grego trata-se de um jogo de palavras; na única
palavra que se conserva separam-se o nome — Odysseus (Ulisses) — e a intenção — ninguém.
Para ouvidos modernos, Odysseus e Oudeis ainda têm um som semelhante, e é fácil imaginar que,
em um dos dialetos em que se transmitiu a história do retorno a Ítaca, o nome do rei desta ilha era
de fato um homófono do nome de Ninguém. (DA 75/71)
Ulisses faz um cálculo antecipatório de que os membros da tribo de
Polifemo indagarão quem o cegou, ao que o gigante responderia: Oudeis, ou seja,
“ninguém me cegou”. A mente primitiva do ciclope não consegue deslindar na palavra
aquilo que Ulisses, astuciosamente (como sempre), colocou nela: a intenção. Ulisses como
que introduz na palavra uma poção mágica, a sua vontade de escapar, que se imiscui no
símbolo lingüístico, que passa a transportá-la na fala do gigante, que, sem se aperceber da
estratégia, apenas efetiva a força da intenção de Ulisses, pelo fato de não possuir, ainda, a
consciência da diferença entre signo e coisa. Ao dizer aos seus semelhantes que “ninguém
me cegou”, Polifemo torna-se prisioneiro de sua própria estupidez, que consiste em não
ter ainda a visão de sobrevôo ulissiana que, em sua abstração, já permite perceber a cisão
intrínseca do símbolo entre pensamento e realidade. “A astúcia da autoconservação vive
do processo que rege a relação entre a palavra e a coisa” (DA 68/65). Ulisses percebe que
os nomes, na verdade, são relacionados às coisas porque se quer que eles assim sejam. A
convencionalidade do nome, esse proto-nominalismo na aurora da subjetividade, está
representada pela sagacidade do herói de ver que uma palavra pode se referir, da distância
em que se encontra do real, a várias coisas, sem a vinculação mágico-mítica do hic et nunc
da representação.
Ulisses descobre nas palavras o que na sociedade burguesa plenamente desenvolvida se chama
formalismo: o preço de sua validade permanente é o fato de que elas se distanciam do conteúdo
que as preenche em cada caso e que, à distância, se referem a todo conteúdo possível, tanto a
ninguém quanto ao próprio Ulisses. (DA 67-8/65)
Essa aparente racionalização tem um correlato funesto. Aquilo de que se
serve Ulisses como mero instrumento para se livrar do ciclope não é tão abstrato assim, pois
tem um conteúdo vivencial: refere-se a algo vazio, que não existe. Para o estágio de
desenvolvimento da racionalidade representado por Ulisses, o nome ainda vinculava-se
imageticamente ao nomeado; por isso o conteúdo semântico de Oudeis possui vínculo de
realidade em relação ao próprio Odisseus, o que significa que Ulisses precisou
transformar-se em ninguém para poder continuar a ser alguém.
Os dois atos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo — sua obediência ao nome e
seu repúdio dele — são, porém, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo
negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer. Essa adaptação pela
linguagem ao que está morto contém o esquema da matemática moderna. (DA 68/65)
A querela dos antigos, de se é o semelhante que conhece o semelhante ou o
dessemelhante que conhece o dessemelhante, foi respondida unilateralmente pela razão
ocidental: é através da imitação astuciosa do que se quer conhecer que esse outro foi
apreendido como algo emaranhado no poder de captação do real, tal como a aranha
apreende seu alimento enredando-o naquilo que ela mesma produz.
Mas o vínculo imagético, como dissemos, ainda persiste, e o nome de
Ulisses ainda tem poder de produção de realidade sobre ele, o qual precisa ser resgatado:
115
ao fugir, ainda ao alcance das pedras arremessadas pelo gigante, não se contenta em zombar dele,
mas revela seu verdadeiro nome e sua origem, como se o mundo primitivo, ao qual sempre acaba
por escapar, ainda tivesse sobre ele um tal poder que, por ter se chamado de Ninguém, devesse
temer voltar a ser Ninguém, se não restaurasse sua própria identidade graças à palavra mágica, que
a identidade racional acabara de substituir. (DA 75/71)
Aqui entra em jogo aquela dívida que a imagem cobra ao se autonomizar
perante o sujeito de que falamos no capítulo I. O nome de Ulisses, uma vez negado, deve
ser reapropriado, pois sua identidade, de alguma forma, decantou-se nele. Dado o estágio
esclarecido em que se encontra Ulisses, ele percebe que seu poder sobre as coisas depende
de uma dureza do caráter, que inclui a frieza suficiente para renegar aquilo em que se
reflete, ou seja, seu próprio nome. Isso mostra a emergência da necessidade de reconhecer
que “o pensamento só tem poder sobre a realidade pela distância — a qual é, porém, ao
mesmo tempo, sofrimento” (DA 76/72 – tradução modificada). É precisamente essa
distância que estabelece, em linhas mais gerais, aquilo que podemos chamar de condição
de possibilidade da ideologia.
2. Ideologia: opacidade entre o idêntico e o diferente
a) Ideologia como problema
Como vimos no início do capítulo I, o conceito de ideologia de Adorno é
impressionantemente amplo. Essa extensão tem, na Dialética do esclarecimento, um vínculo
estreito com o conceito de esclarecimento enquanto exercício fraudulento do poder,
como vimos. Segundo pensamos, é precisamente tal hipóstase do conceito de
esclarecimento qua dominação que é o impulso de todas as infindáveis críticas ao livro de
Adorno e de Horkheimer. Uma das primeiras críticas ao livro de 1947 foi a feita por
Habermas, que se apóia única- e exclusivamente nesse conceito hipertrofiado de
esclarecimento para desferir suas objeções:
A própria razão destrói a humanidade que a possibilitou — essa tese ampla é fundamentada no
primeiro excurso (…) através do fato de que o processo do esclarecimento desde sempre [von allem
Anfang an] está fundado no ímpeto para a autoconservação, a qual mutila a razão, porque ele 151
reivindica esta apenas nas formas de dominação da natureza e das pulsões, precisamente como
razão instrumental. 152
Segundo Habermas, é precisamente a assimilação da razão, enquanto
instrumental, ao poder, que fez com que ela perdesse sua força crítica: “esta é a última
descoberta de uma crítica da ideologia aplicada a si mesma”153. A crítica de autofagia do
pensamento adorniano tira sua seiva nessa desmesura da suspeição em relação a todo e
qualquer pensamento.
Precisamos, então, “focar” a idéia de ideologia de acordo com o plano
epistemológico traçado pela consciência de abstração do conceito frente à realidade, tal
como esboçamos na emergência do esclarecimento enquanto um saber abstrato
contraposto à identificação qualificada entre sujeito e objeto na mímesis. Para isso, vamos
partir da concepção de ideologia do próprio Adorno.
151 No original alemão é indiscernível se “ele” refere-se ao processo do esclarecimento ou ao ímpeto para a
autoconservação.
152 Jürgen Habermas. “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung”. In: Philosophische Discurs der Moderne.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p.135.
153 Jürgen Habermas, op. cit., p.85, p.144.
116
Antes, porém, vejamos os vários significados do conceito de ideologia
levantados por Terry Eagleton, que primam por sua abrangência de pontos de vista:
a) o processo de produção de significados, de signos e de valores na vida social;
b) um corpo de idéias característico de um determinado grupo ou classe social;
c) idéias que ajudam a legitimar um poder político dominante;
d) idéias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante;
e) comunicação sistematicamente distorcida;
f) aquilo que confere certa posição a um sujeito;
g) formas de pensamento motivadas por interesses sociais;
h) pensamento de identidade;
i) ilusão socialmente necessária;
j) a conjuntura de discurso e de poder;
k) o veículo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo;
l) conjunto de crenças orientadas para a ação;
m) a confusão entre realidade lingüística e realidade fenomenal;
n) oclusão semiótica;
o) o meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social;
p) o processo pelo qual a vida social é convertida em uma realidade natural. 154
O problema com todo o bom livro de Eagleton é o fato de ele centrar o
problema da ideologia no Leitmotiv da questão de um discurso ou de um construto
ideológicos determinados, especificados como “estratégias ideológicas” 155. Ele não
considera a ideologia como algo que se devesse ligar, por exemplo, à noção de
racionalidade em geral, pois isso levaria, segundo pensa, a um esvaziamento dessa noção.
Mas o problema principal com o livro, ao tomá-lo como referência para um
posicionamento sobre ele, é que o autor não chega a formular uma idéia própria do que
consistiria o conceito de ideologia, pois se propõe apenas a fazer uma análise de vários
autores que se dedicaram ao tema, desde Marx até os teóricos mais recentes.
A análise que Eagleton faz do conceito de ideologia de Adorno é
instrutivamente grosseira e precária. Segundo o autor inglês, o conceito de ideologia de
Adorno está fundamentalmente ligado à noção de troca, que remete ao princípio de
abstração generalizada entre os homens, cujo fundamento último é o “pensamento de
identidade”. Este último tenderia a extirpar as diferenças em prol da unificação
niveladora. Segundo Eagleton, essa idéia passa por cima de diversos fenômenos que não
se adequam a uma idéia de que a ideologia consiste sempre em desconsiderar a diferença:
A escola marxista de Frankfurt, entre cujos membros havia vários refugiados do nazismo,
simplesmente projeta o universo ideológico “extremo” do fascismo nas estruturas inteiramente
diferentes dos regimes capitalistas liberais. Toda ideologia funciona pelo princípio de identidad e,
extirpando impiedosamente tudo o que é heterogêneo a ela? O que dizer, por exemplo, da
ideologia do humanismo liberal, que, por mais especiosa e restrita que seja, tem espaço para a
variedade, pluralidade, relatividade cultural, particularidade concreta? (…) Adorno (…) não quer
simplesmente substituir a identidade pela diferença, mas sua sugestiva crítica da tirania da
equivalência leva-o com muita freqüência a “demonizar” o capitalismo moderno como um sistema
154 Terry Eagleton. Ideologia. Tradução de Luís Carlos Borges e de Silvana Vieira. São Paulo: Unesp, 1997, p.15-6.
155 Título do segundo capítulo de Eagleton.
117
uniforme, pacificado (sic!), auto-regulador. 156
Parece que Eagleton infelizmente não teve acesso a um texto de Adorno
que tem por título precisamente Beitrage zur Ideologielehre [“Contribuição à teoria da
ideologia”], em que este fala bem mais sobre ideologia do que foi comentado pelo autor
inglês.
b) O conceito adorniano de ideologia
Inicialmente, devemos dizer que Adorno, tal como costuma acontecer com
alguma noção específica em seus textos, não se dedica propriamente a delinear uma
definição ou explicitar os desdobramentos do conceito de ideologia. Seu interesse reside
mais na consideração do estatuto histórico do conceito.
Primeiramente, Adorno salienta algo que considera comum a muitas
tentativas de delineamento do fenômeno da ideologia: a crítica da abstração do espírito e
sua concomitante cristalização para além da dinâmica histórica. Isso, segundo ele, vai
contra a posição tradicional da filosofia, que toma partido pelo imutável, contra o devir da
experiência, tal como se pode ver em Platão, em Descartes, em Kant, etc. Posição que
ainda encontraria ressonância na filosofia em moda na época pré-fascista na Alemanha
(que, embora não explicitado, refere-se à ontologia fundamental de Heidegger). Mas, por
outro lado, a dinamização dos produtos espirituais não deveria esquecer que a própria
doutrina da ideologia está sujeita a uma dinâmica histórica — é precisamente um pouco
dessa dinâmica que Adorno quer expor.
Desde o século XVI, “fez-se notar as condições universais dos conteúdos
falsos de consciência” 157, como a crítica de Bacon à racionalidade medieval, através de sua
doutrina do ídolos do pensamento. Essa doutrina tem dois pontos questionáveis: 1o: o
enganos dos homens é tomado como se ocorresse a seres naturais, eternos, e não devido
a determinadas condições históricas em que são formados; 2o: a mentira é imputada à
falibilidade do homem, sem considerar a dinâmica histórica.
Ao mesmo tempo em que especificam a crítica de Bacon aos ídolos como
formas sociais de manutenção do poder — o que pode ser caracterizado como um avanço
na consideração dos impulsos históricos da formação da ideologia —, os enciclopedistas
franceses foram superficiais ao procurarem as formas ideológicas apenas como expressão
de “maquinações” dos poderosos, embora Helvétius tenha visto a vinculação mais geral
das idéias com a sociedade como um todo. Destutt de Tracy, que inventou a palavra
“ideologia”, queria perceber a motivação gnoseológica de todas as formas de pensamento,
falsas ou verdadeiras. Tratava-se de uma descrição “zoológica” do conteúdo das próprias
idéias, procurando deslindar “cientificamente” as condições da vida social e política, o que
Adorno considera um elemento precursor da hegemonia da sociologia em relação a todas
as formas de saber preconizada por Comte. A doutrina dos ideólogos franceses tinha a
intenção de domínio político a partir da investigação da “química” dos processos de
produção das idéias.
A intenção de Adorno, ao falar do desenvolvimento desse conceito, é a de
examinar a íntima relação entre ideologia e a dinâmica histórica do mundo burguês.
A ideologia não se sobrepõe ao ser social como uma camada destacável, mas, sim, é-lhe inerente.
156 Terry Eagleton, op. cit. p.117.
157 Theodor W Adorno. “Beitrage zur Ideologielehre”. In: Soziologische Schriften I. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1972, p.458. (Nesse item, as próximas citações desse texto serão referidas no próprio corpo da tese como Beitrage,
seguido do número da página.)
118
Ela se funda na abstração, que conta essencialmente para o processo de troca. Sem abstrair do ser
humano vivo, não se trocaria. Isso implica a aparência necessariamente social no processo de vida
real até hoje. (ND 348)
Na origem dessa noção, a idéia de que bastava colocar a consciência em
ordem para fazer a sociedade ficar em ordem é, não apenas burguesa, mas a essência da
própria ideologia.
Enquanto necessariamente objetiva e ao mesmo tempo falsa consciência, enquanto
entrelaçamento do verdadeiro e do não-verdadeiro, diferenciando-se tanto da plena verdade
quanto da mera mentira, a ideologia pertence a uma economia de mercado citadina, mesmo que
não seja moderna, mas pelo menos desenvolvida, pois ideologia é justificação. Ela requer, tanto a
experiência de um estado social já problemático que deve ser defendido, quanto a própria idéia de
justiça, sem a qual uma tal necessidade apologética não subsistiria, e que tem seu modelo na troca
de coisas comparáveis. Onde imperam relações de poder imediatas, não há propriamente
ideologias. (Beitrage 465)
Onde há esse caráter imediato, não haveria uma construção racional
minimamente estruturada para dar suporte a uma forma sutil de domínio político. Para
que haja crítica da ideologia, é preciso que esta tenha um núcleo racional a ser atacado.
Criticar a “ideologia” nazista, por exemplo, seria inocência, segundo Adorno, uma vez que
os escritos nazistas estão abaixo de qualquer nível mínimo (fazendo um trocadilho,
podemos dizer que eles estariam “abaixo da crítica”). Tratar-se-ia de mera manipulação de
poder, e os próprios poderosos não esperavam que se concordasse com eles. Nesses
casos, em vez de crítica ideológica, há que se analisar o absurdo da situação. “A crítica
ideológica é negação determinada no sentido hegeliano, confrontação do espiritual com
sua realização, e tem como pressuposto tanto a diferenciação do verdadeiro e do nãoverdadeiro no juízo, quanto a aspiração à verdade no que é criticado” (Beitrage 466). As
ideologias totalitárias não devem ser criticadas enquanto tal, pois não têm a pretensão de
autonomia e consistência, ou, se o fazem, somente de forma precária. Por isso, há que se
analisar quais disposições de espírito dos indivíduos são aproveitadas por elas, quais elas
favorecem, além dos motivos sociais que levam as pessoas a precisarem de discursos
desse tipo, e não o conteúdo ou a estrutura deles:
O que é ideologia hoje é o estado de consciência e de inconsciência das massas como espírito
objetivo, e não os produtos usuais que o imitam e o superam, a fim de o reproduzirem. Para haver
ideologia em sentido próprio, são necessárias relações de poder opacas, mediadas e, nessa medida,
suavizadas. Hoje, a sociedade que se transformou em injustiça por causa de sua complexidade
tornou-se por demais transparente para tal. (Beitrage 466-7)
A autonomização do espírito perante sua origem social é sempre aquilo que
configura a falsidade do pensamento ideológico, tal como os críticos da ideologia
afirmam. Mas a dialética de Adorno é surpreendente nesse ponto, pois diz que até mesmo
isso tem seu momento de verdade, pois esse isolamento do espírito perante a realidade
social é o que permite que o pensar não se restrinja a uma mera duplicação do que
simplesmente existe tal como é factualmente. Até mesmo no simples pensamento de
identidade, na ligação de um sujeito a um predicado, de forma a se dizer que “S é P”, sem
consideração para com as contradições que cercam a vida real dos entes, “nele encontrase também o momento de verdade da ideologia, a indicação de que não deveria haver
nenhuma contradição, nenhum antagonismo” (ND 152-3).
Por outro lado, a dinâmica histórica da ideologia não mais permite se falar
dela como pura hipóstase do espírito: “hoje a marca das ideologias é antes a ausência
dessa autonomização do que o engano de sua pretensão” (Beitrage 474). O que é
ideológico hoje diz respeito à manipulação técnica e fixação da mentalidade dos
indivíduos sob a indústria cultural. O conteúdo ideológico desta é a produção e
119
manutenção do conformismo, da adequação da consciência individual às normas e aos
padrões implícita- ou explicitamente veiculados pela mídia. “A fixidez do pensamento
incapaz de fazer experiência imperante na sociedade de massas é enrijecida ainda mais por
essa ideologia, enquanto, ao mesmo tempo, um extremo pseudorealismo, que oferece em
todo exterior a cópia exata da realidade empírica, impede que aquilo que é oferecido seja
compreendido como algo já preformado no sentido do controle social” (idem).
Apesar do empobrecimento crasso da mentalidade sob a manipulação dos
meios de comunicação, uma vez mais Adorno surpreende-nos, ao afirmar que isso
contribui para que se veja aí um enfraquecimento do poder ideológico do sistema, na
medida em que, ao ter como seu conteúdo mais próprio, a idéia de que as coisas são
assim, tal como já se configuram na realidade, “sua própria inverdade se afunila ao estreito
axioma de que as coisas não poderiam ser de outro modo além do que são” (Beitrage 477).
Dado esse entrelaçamento raso entre a mera existência e a ideologia, “o espírito necessita
apenas de um pequeno esforço para retirar de si a ilusão poderosa e ínfima” (Beitrage 477).
Como dissemos no início, Adorno não se interessou em delinear
especificamente o conceito de ideologia. Podemos, entretanto, salientar algumas das
noções envolvidas em suas reflexões que contribuiriam para fornecer uma possível
definição do conceito.
1o: a ideologia configura-se na ausência de consideração da dinâmica
histórica, tanto da realidade, quanto do pensamento sobre esta; 2o: a ideologia diz respeito
a uma situação complexa de relações de poder, em que é necessário um processo de
justificação do exercício de domínio, que não aparece nua e cruamente, mas, sim,
mediado por idéias que visam legitimá-lo; 3o: o problema dialético da ideologia é o de que
ela é falsa consciência, mas não apenas isso. “O véu que reside necessariamente entre a
sociedade e sua introspecção em sua essência exprime, ao mesmo tempo, devido a essa
necessidade, essa própria essência. As próprias ideologias tornam-se falsas somente
através de sua relação com a realidade subsistente. Elas podem ser verdadeiras ‘em si’, tal
como as idéias de liberdade, de humanidade, de justiça, o são, mas elas se mostram como
se já estivessem realizadas” (Beitrage 472-3); 4o: é ideológica a má relação entre o espírito e
a natureza, na medida em que este, ou se separa absolutamente desta, cristalizando-se
acima de todas as contradições dos seres viventes, ou se reduz a mera duplicação do
âmbito natural, absorvendo em si, como seus determinantes, as relações entre causa e
efeito naturais, como se a história do espírito fosse, inevitavelmente, história natural: “a
legalidade natural da sociedade é ideologia, na medida em que ela é hipostasiada como um
dado natural imutável. Mas a legalidade natural enquanto lei de movimento da sociedade
a-consciente é real, como O Capital expõe, desde a análise da forma da mercadoria até a
teoria da ruptura conjuntural em uma fenomenologia do contra-espírito” (ND 349); 5o: o
que é ideológico nas formas de comunicação de massa é o atrelamento da consciência
àquilo que já existe pura e simplesmente, sem possibilidade de saída dos padrões de
comportamento e de percepção já estipulados previamente.
Cremos, ao contrário da tendência adorniana de evitar definições, poder
delinear um conceito de ideologia que abrange todos esses aspectos e que permite pensar
o caráter ideológico de várias formas de pensamento e da própria racionalidade ocidental
tout court.
c) O pensamento ideológico: tabu reflexivo
Antes de qualquer coisa, seria preciso dizer que não se deveria referir à
ideologia, mas, sim, à qualificação de ideológico de algo, seja um discurso, a racionalidade, etc.
O conceito “ideologia” já é uma reificação, e já poderia ser qualificada de ideológica em
120
alguma medida. Isso se dá pelo fato de que uma determinada representação deveria ser
considerada ideológica pelo aspecto funcional que possui em relação ao que se refere. A
expressão “ideologia burguesa” já tira a atenção daquilo que realmente conta, que é o fato
de a representação de mundo burguesa ser usada, ter uma função, ter um sentido, no meio
social. A palavra “ideologia” é uma reificação, entre outros motivos, também pelo fato
que não há ideologia, mas, sim, discursos, racionalidades, representações, etc., que são
ideológicos. Se se usa essa palavra, como, por exemplo, em “a ideologia soviética”, ela
tende a enfocar o aspecto do que já existe de representação de mundo, do que já está
cristalizado nela, ao passo que as idéias soviéticas devem ser consideradas ideológicas pelo
fato de que elas estabelecem uma determinada forma de operar com o mundo. Além disso,
o substantivo tende facilmente a retirar o caráter perverso, reificador, mistificante,
presente no emprego do adjetivo, como em “esse partido político não tem ideologia
consistente” ou “cada um tem sua própria ideologia”. Nesses casos, o caráter ideológico
foi totalmente dissimulado, ou extinto, na medida em que o substantivo se iguala a
“princípio gerais de ação ou de visão de mundo”. O adjetivo, por outro lado, tende a
evitar isso, pois ninguém diria que sua própria visão de mundo é ideológica; isso se dá
precisamente pelo fato de que ele conserva o aspecto operacional em jogo nessa noção. Se
uma determinada forma de conceber a realidade é ideológica, ela o é pelo fato de fazer
com que nossa relação com o mundo seja realizada de alguma maneira, em alguma
direção, etc. O que faz algo ser ideológico é o efeito funcional que ele tem.
Consideramos ideológica alguma forma de representação, cuja aparência de verdade
produz, e/ou depende do, progressivo obscurecimento da reflexão sobre a fonte de legitimidade do valor que
se dá ao que é objeto dessa representação ou que está vinculado ele.
Como toda definição sucinta, esta precisa ser explicada.
O que pode ser ideológico é uma forma de representação da realidade, ou seja,
um discurso, uma forma de racionalidade, uma obra de arte, etc. Isso exclui as ações como
podendo ser ideológicas. Por mais diferentes que possam ser os conceitos de ideologia,
não creio que algum considerasse a tomada da bastilha como ideológica, mas, sim, que ela
estivesse ancorada em um discurso ideológico. A explicação que os revolucionários dariam
para sua ação poderia ser ideológica, mas não sua ação em si mesma. Esta poderia ser
tomada como tal, somente se considerássemos que os meios empregados para efetivar uma
idéia que qualificamos como ideológica também o fo ssem. Mas, nesse caso, fica claro que
a qualificação de ideológico está dirigida fundamentalmente para o modo de compreender
a realidade, e não para a ação decorrente dela.
Devido a desse aspecto eminentemente representacional, as formas arcaicas
de conhecimento mimético não seriam ideológicas, uma vez que não podem ser
consideradas uma representação strictu sensu, pois a imagem presentifica a realidade de
modo a não haver espaço de consciência suficiente para que a representação pudesse ser
vivida enquanto tal. Um construto discursivo ou um modo de pensar a realidade somente
é ideológico, se se constitui como uma representação destacada do objeto a que se refere.
Isso também já poderia ser visto na concepção de Adorno de que somente onde as
relações de poder admitem ou exigem mediações discursivas, razoavelmente
racionalizadas, pode-se falar de ideologia.
O efeito propriamente ideológico de uma concepção do real reside, por um
lado, no enfraquecimento progressivo de um processo de reflexão por parte daqueles que
estão sob a ação dela. Mas pode ser que seu caráter ideológico resida no fato de que ela
dependa, viva, da ausência de tal atitude reflexiva, que seria vinculada àquilo que diz, que
estabelece, que o valor que damos a uma atitude, a um modo de vida, a uma idéia, a um
pensamento, etc., é legítimo, é aceitável, tem razão de ser, está justificado.
121
Por causa desse enfraquecimento da reflexividade, da rememoração, da
explicitação, daquilo que dá a base para a legitimidade que está em jogo no discurso sobre
a valoração de algo, o aspecto ideológico está vinculado a: (1) reificação. Segundo Adorno,
toda reificação é um esquecimento, uma hipóstase de algo que tende a se cristalizar na
consciência como algo natural, inevitável, inteiro, quando, na verdade, constitui-se como
em processo, em mudança, em devir, etc. Trata-se de um esquecimento da dimensão
histórica do que é objeto da representação ideológica; (2) manutenção astuciosa do poder. A
mistificação envolvida na ausência da reflexividade mostra os construtos ideológicos
como estratégias — conscientes ou não — de engodo em relação ao olhar dos que são alvo
deles. Como tendem a evitar a reflexão sobre a sua própria legitimidade, fazem com esta
se mantenha como a única aceitável, ou até se perpetue como tal; (3) distanciamento
progressivo do construto ideológico em relação à vivência concreta, conflituosa, ligada à
natureza de ser vivente dos seres humanos. Ou seja, ele tende a se cristalizar muito acima
das vicissitudes dos seres humanos, resolvendo-as, mas de modo ilusório.
Cremos que nossa definição do caráter ideológico de uma representação
seja suficientemente boa para esclarecer a questão da relação entre ideologia e falsidade,
que tortura os filósofos que se dedicam a pensar o conceito de ideologia, tal como
torturou Terry Eagleton em seu livro que citamos, e que até mesmo Adorno tomou como
o problema dialético da ideologia, ou seja, o fato de que esta é falsa consciência, mas não
apenas isso. É evidente que nem tudo que é falso é ideológico, como, por exemplo, “o sol
é quadrado”. Mas, por outro lado, também é evidente que o aspecto mistificador,
deturpador, dos discursos ideológicos pode ser pensado como falsidade, na medida em
que contribui para uma atitude violentadora das vivências a que se está sujeito. Esta é a
solução adotada por Eagleton para esclarecer a relação entre os dois conceitos. Ela está de
acordo com nossa definição, mas lhe falta um esclarecimento mais abrangente, conceitual,
da relação entre os dois termos. Cremos que a falsidade158 seja ideológica quando envolve
a questão de um desvio em relação ao que consideraríamos ser a verdade, de tal modo que
esse desvio tem o sentido gnosiológico de barrar, de frustrar, de dificultar, de obscurecer, etc.,
o acesso ao que seria a verdade. Assim, o que deveria ser considerado ideológico, em
sentido estrito, não é a falsidade, mas a falsificação. Por causa disso, a verdade positiva
sobre algo pode ser tão ideológica quanto a falsidade, na medida em que também poderia
provocar esse desvio mistificador sobre o que realmente interessa em algum caso.
A partir dessas considerações, vejamos alguns exemplos do que se poderia
considerar como ideológico.
Ao contrário de Adorno, que considera o Nazismo como um exercício
imediato de poder, este seria ideológico, pelo fato de que seu discurso tende a mistificar,
obscurecer, a tomada de consciência crítica de seus doutrinados, sobre o que fundamenta
o processo de legitimação de suas atrocidades. Ele toma estas últimas como justificadas
pela colocação do judeu como o outro, como o radicalmente diferente, como ameaça que
deve ser extinta a bem do povo considerado saudável, digno, etc. Para que ele sobreviva,
ele tem que evitar que seus dominados reflitam sobre os fundamentos de seu processo de
auto-legitimação. Para fazer isso, ele constrói toda uma imagerie de perdições, de
inautenticidades e de perigos dos quais a única saída é apresentada como sendo a
acomodação à clareira instaurada pelo ser autenticamente engajado na constituição do
verdadeiro destino do povo. (Qualquer semelhança com algum filósofo — apologeta da
158 As idéias de falsidade e de verdade, aqui, pressupõem, é claro, que se possa assegurar o que seja verdadeiro e
falso. Entrar no mérito dessa distinção nos desviaria de nosso argumento principal.
122
autenticidade como o que é próprio do modo de existência do que seria a clareira do ser;
que diz que sábio é “aquilo que se pode ater àquilo a que foi destinado, nele pode
instalar-se e pôr-se a caminho por amor a ele” 159 — não é mera coincidência: “(…) para os
filósofos do fascismo, confessos ou não, valores como autenticidade, perseverança
heróica na existência individual ‘lançada ao mundo’, situação-limite, tornam-se meios de
usurpar o páthos religioso-autoritário desprovido de qualquer conteúdo religioso” (MM
§99, p. 134). 160)
O cristianismo é ideológico porque funda seu discurso também nessa
relação de tertium non datur entre o inferno da vida desregrada, sujeita a luxúrias, pecados,
etc., e a bem-aventurança do sofrimento justificado pela ascese em relação a um reino
espiritual situado muito além da vida concreta, temporalmente localizada, dos homens.
Ele vive da aceitação incondicional de seus dogmas, dizendo, inclusive, que o que dá valor
ao homem seria precisamente o fato de se acreditar sem provas, como quando Santo
Agostinho disse que, se Deus nos desse provas de sua existência, nossa fé nele perderia
todo o seu valor. A idéia de podermos asseverar que Deus tenha desígnios, embora tenhamos
que aceitar a adversativa de que não podemos saber quais eles são, mostra que a doutrina
cristã somente pode subsistir como um construto que resolve as contradições da vida ao
colocar o núcleo fundante de sua construção em um ponto que, apesar de
irrevogavelmente além da visão racional humana, determina, de lá, o sentido de toda a
vivência carnal, sofrida, dos homens.
Os preconceitos acríticos, como as idéias de que “toda mulher dirige mal”,
“todo político é corrupto”, “os homens são superiores às mulheres”, “uma raça é superior
à outra”, etc., são ideológicos, pelo fato de conterem uma disposição perene de manipular
os fatos de modo apenas a constituírem um material para reforçar a si próprios. Eles
vivem do exercício de uma percepção seletiva viciada dos fatos. Ou seja, selecionam-se aqueles
que entrariam na “estatística” de acordo com um impulso interno que faz essa seleção ser
viciada, tendenciosa. O mundo é lido a partir de algo que já determina, de antemão, o que
ele vai ser. O vício da percepção consiste em que o fato já traz a marca interna, subjetiva,
que determina o que será percebido, de modo semelhante a um dado com seis faces
numeradas que dizemos ser “viciado”, pois tem mais peso em uma das faces, de modo a
que o resultado já esteja conhecido antes de seu lançamento. É precisamente esse ímpeto
inercial da percepção que dá seu caráter ideológico. A idéia de que “todo político é
corrupto” é insistentemente veiculada pelos meios de comunicação de massa, de modo a
viciar a percepção das pessoas, pois estas tendem a levar em consideração somente os
fatos políticos que a confirmam: se se descobre um caso de corrupção, isso confirma a
idéia em jogo; se é executado um projeto de urbanização de uma favela, isso é
simplesmente negligenciado ou é anulado com a idéia de que o governante não fez nada
mais do que a obrigação. Ou seja: o que vai a favor da idéia, confirma-a, e o que vai
contra, não a enfraquece. Desse modo, todo o mundo acaba sendo relegado a um enorme
e mero pretexto, apenas e tão-somente um substrato razoavelmente indiferenciado, para
que escrevamos nele o texto que gostaríamos de ler, avessos à necessidade imperiosa de
refletir sobre o que nos motiva a fazer essa leitura.
A ciência seria, segundo essa nossa concepção, o que há de mais
ambiguamente ideológico. Por um lado, ela seria bastante anti-ideológica, na medida em que
159 Martin Heidegger. Logos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril, 1973, p.122. (Col. Os Pensadores)
160 Sobre o caráter fascista da filosofia de Heidegger, cf. Victor Farias, Heidegger und der Nationalsozialismus. Frankfurt
am Main: 1989 e Theodor W. Adorno. Jargon der Eigentlichkeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972. Para um
comentário sucinto da crítica adorniana, cf. Rodrigo Duarte. Mímesis e racionalidade. São Paulo: Loyola, 1995, pp.61-5.
123
desmistifica as concepções preestabelecidas de senso comum, em que cada uma das que
apontamos acima poderia ser desmascarada através de uma investigação que tenha
parâmetros de objetividade científica. Por outro lado, essa mesma objetividade tem um
preço bastante alto: ela é comprada com a negligência de todo o elemento de reflexão
sobre a dimensão histórico-social que se decanta nos fatos que são estudados objetivamente
por ela. Por isso, ela é profundamente ideológica, posto que o status de objetividade de seu
saber — glorificado nos sete continentes — funciona precisamente como uma armadura
contra nossas investidas à sua irreflexão sobre a historicidade imanente aos fatos.
Paradoxalmente, quanto mais objetivamente anti-ideológica ela é, mais ela se afunda em
seu aspecto ideológico, na medida em que perde a consciência reflexiva sobre as
motivações mais profundamente históricas para os fatos serem aquilo que eles são. Mas
sua ambigüidade é ainda maior, posto que o que faz ela precisamente progredir — para
que o leitor possa, por exemplo, atender ao telefone celular transmitido via o ndas de rádio
em algum momento dessa leitura — é precisamente aquilo que dá seu aspecto ideológico.
A desconsideração imediata da teoria em relação ao aspecto prático do mundo é conditio sine
qua non para sua excelência de iluminar a prática e fornecer-lhe os meios para melhorá-la.
Isso vale inclusive para a própria teoria filosófica, embora, como veremos mais abaixo, a
filosofia não contenha, necessariamente, aquele elemento ideológico de meta de
objetividade não-histórica. Como diz Adorno:
Precisamente aquelas teorias que não foram concebidas com vistas à sua aplicação são as que têm
maior probabilidade de serem frutíferas na prática, mais ou menos analogamente ao que ocorreu
nas ciências naturais entre a teoria do átomo e a cisão nuclear: o geral, o relativo a uma práxis
possível estava contido na razão orientada em sentido tecnológico, e não porque esta tivesse em
vista a aplicação. 161
Cremos que seja por causa dessa profunda ambigüidade ideológica que haja
uma querela infindável sobre a relação entre ciência e ideologia, em que se chega a dizer
que a primeira é o oposto radical da última.
Talvez o exemplo mais pregnante de uma representação intencionalmente
ideológica seja — como parte da indústria cultural analisada por Adorno — a publicidade.
Segundo Jean Baudrillard, a realidade publicitária é a produção de um âmbito imagético
que tem força mítica, através da manipulação técnica, tecnológica, de um conjunto de
imagens, de códigos, de sinais, de signos, que ganham autonomia, vida própria, a partir do
próprio meio em que são produzidos, e que são avaliados, medidos, não por sua
referência ao real histórico, conflituoso, mas pela tecnicidade de sua estruturação,
acabando por “substituir” a este último. Não se trata de uma interpretação “tendenciosa”
do que seria o conteúdo autêntico da realidade historicamente vivida, mas da produção de
uma nova realidade, uma “neo-realidade” (termo de Baudrillard), que pode influenciar na
vivência diária, ser avaliada e gerar prognósticos acerca de sua eficácia.
Não é uma questão válida, em relação à publicidade, se o que se diz é
verdadeiro ou falso. O objeto (a ser vendido) é tratado como se fosse um acontecimento, é
louvado como um fato substancial, digno, elevado, que vale por si mesmo, pelo fato de ser
narrado, referido pelo discurso publicitário. Se os publicitários mentissem, seria fácil
desmascará-los. O que acontece, efetivamente, é que eles produzem miticamente a realidade
que dizem apenas enunciar. É uma profecia que se cumpre pelo simples fato de ser
161 Theodor W. Adorno. “Notas marginais sobre teoria e práxis”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de
Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p.228. O próprio Marx, diz Adorno, contrário ao aspecto
excessivamente contemplativo da filosofia, não quis fazer de sua teoria um instrumento de aplicação imediata na
práxis: “não se poderia deduzir da teoria da mais-valia de que modo haveria de ser feita a revolu ção” (idem).
124
pronunciada no meio reluzentemente técnico e será tornada real no ato de compra, que
apenas testemunha a veracidade (isto é, a força de constrição imagética) já contida na
narrativa publicitária. Esse discurso é tautológico, ou seja, gira em torno de si mesmo,
referindo-se a si próprio o tempo todo como meio de reforçar o caráter de evento
primordial do objeto, cuja imagem deverá ser resgatada no ato de compra. Pode haver
propaganda enganosa, mas não publicidade enganosa, uma vez que esta não se vincula, ao
contrário daquela, à transmissão de conteúdos, mas, sim, à glorificação imagética da
marca.162
Mas, de todos os exemplos de representações ideológicas, o que nos é mais
importante — e que justifica a inserção desse item sobre ideologia nesse capítulo — é o
da racionalidade ocidental (esclarecimento).
Como procuramos mostrar, a abstração do pensamento — marca da razão
esclarecida —, nasceu da sedimentação das relações de poder como configurando o reino
do espírito. Ora, todo exercício de poder exige a unificação da sede de comando em
contraposição ao que deve ser o material a ser pensado, ou seja, sintetizado, de modo a
ser absorvido na esfera da consciência: “É índice da falsidade da identidade, de que o
concebido absorve-se no conceito. E, no entanto, a aparência da identidade reside
intrinsecamente no próprio pensamento, em sua forma pura. Pensar significa identificar”
(ND 16). Essa operacionalidade fundamental do conceptum que precisa reunir para gerar163
mostra que, originando-se precisamente da hipóstase do poder nas formas de pensamento
— que, nesse processo, se distanciaram daquilo a que se referem —, a racionalidade
ocidental constituiu, nessa separação, o espaço próprio do que veio a ser sua essência
ideológica. Desse modo, a racionalidade esclarecida não tem como negar em termos
absolutos aquilo que lhe dá a condição de possibilidade de sua existência: a falsificação do
pensado como conditio sine qua non de ele ser pensado.
Assim, podemos tomar as Meditações cartesianas como sendo a declaração da
essência ideológica da racionalidade ocidental, na medida em que, como vimos, a filosofia
de Descartes procurou conceber, gerar, produzir, a partir de sua pura atividade, o ponto
arquimediano da dimensão racional da realidade. Nessa visão absolutamente introspectiva,
o pensamento procurou esquecer completamente do quanto a certeza de si depende do
objeto, tentando, a partir desse esquecimento, arrancar de seu puro vazio o que há de
mais indubitavelmente real em tudo o que pode existir!
Mas é por essa fenda primeira entre o pensamento e a realidade, sob a qual
se descortina o mais lúgubre abismo da mistificação da onipotência subjetiva, que podem
passar os raios tímidos da luz da verdade.
Se o processo de abstração marca toda formação de conceitos com a ilusão de grandeza, nele
também se encontra preservado — graças à sua distância do objeto da ação, graças à reflexão e à
transparência — o antídoto: a autocrítica da razão é sua mais autêntica moral. (MM §81, p.110)
Ao mesmo tempo em que eleva à consciência de si sua essência ideológica,
o pensamento pôde afastar-se de si mesmo para poder discernir em si aquilo que lhe é
inerentemente falso. Quando Ulisses, ao descobrir que seu nome era apenas uma coisa,
teve que se tornar uma coisa como preço por essa descoberta, o pensamento passou a ser
objetivamente ideologia; quando Descartes, ao descobrir que o espírito é diferente das
162 Cf. Jean Baudrillard. A sociedade de consumo. Tradução de Artur Morão. Elfos: Porto, 1998, pp.132-6
163 “Conceito” deriva do latim concipere (compreender; tomar para si; compor em palavras), que deriva de capere
(pegar, tomar); derivou o verbo português conceber, ou seja, gerar.
125
coisas, teve que se reconhecer como coisa, o pensamento absorveu a objetividade de sua
essência ideológica, trazendo-a para o âmbito da consciência.
Se a ideologia tem seu momento de verdade na assunção de que o
pensamento difere da realidade, de que, afinal de contas, sujeito e objeto não são a mesma
coisa — o que aponta para a possibilidade de as coisas serem diferentes —, e se, na
mímesis arcaica (preanimismo, magia e mito), palavra e objeto são o mesmo, então ela
não pode ser ideologia. Assim, ela é verdadeira, pois diz que homem e natureza
co-pertencem; mas, ao mesmo tempo, ela é falsa, pois não tem consciência desse
co-pertencimento. O esclarecimento objetivo (mito grego, lógos pré-socrático e
metafísica) tem seu momento de verdade em que fez essa descoberta da diferença entre
ser e pensar164; mas sua falsidade reside em que essa diferença foi estabelecida pela
supremacia do segundo em relação ao primeiro, como sedimentação de relações de poder;
mas, mesmo aí, ele ainda continha sua verdade na medida em que tal sedimentação refletia
a dinâmica social de tais relações, e mostrava a imbricação de natureza e de cultura. O
esclarecimento subjetivo de Descartes a Hegel é verdadeiro, na medida em que o pensar
pôde refletir sobre si próprio como sendo distinguido do objeto, tomando consciência da
distância que o separa do mundo na tentativa de recobri-la; mas ele é falso, na medida em
que hipostasiou-o como âncora absoluta do sentido de toda a realidade, mas contendo aí
mais um momento de verdade, na medida em que reflete, filosoficamente, o caminho
socialmente real que o espírito tomou para se auto-conhecer. O esclarecimento francês da
revolução e o materialista dialético são verdadeiros na medida em que puderam
reconhecer claramente a falsidade inerente à hipóstase do espírito como contraparte
abstrata da natureza, denunciando-a e fazendo de sua superação o mote da ação
transformadora: foram os revolucionários franceses que cunharam a palavra “ideologia” e
foi Marx que a celebrizou; mas eles têm sua falsidade em sua insuficiência de reflexão
sobre os subterrâneos da formação do pensamento através das relações de poder — o
que favoreceu a hipóstase das relações de poder econômico-político das democracias
ocidentais e do socialismo do leste europeu. O “esclarecimento sombrio” de Adorno e de
Horkheimer tem seu momento de verdade quando pretende aclarar a magnitude
insondável das trevas subjacentes ao exercício de poder decantado em toda forma de
pensamento; mas tem seu momento de falsidade na medida em que hipostasiou a falsa
consciência como substância de toda dominação.
Desse modo, é preciso ver a dinâmica do pensamento e sua essência
ideológica como etapas sucessivas de uma dialética da alteridade entre sujeito e objeto,
que considere a mediação entre eles como o fulcro que determina a qualidade do
pensamento como aquilo que leva à descoberta de si como exercício de poder, ao mesmo
tempo em que mostra como a razão ainda não perdeu totalmente o vínculo com a
natureza.
Nessa trajetória, podemos ver que a filosofia, enquanto definida como
pensamento eminentemente crítico é aquilo que pode ser considerado mais propriamente
anti-ideológico. Qualquer texto de filosofia é, segundo seu conceito, crítico não apenas de
seu objeto de estudo, mas também do modo como ele está sendo abordado. A reflexão
filosófica é, nesse sentido, crítica inclusive de si mesma, ou seja, sempre de novo coloca a
questão sobre a legitimidade da própria maneira de criticar — não é suficiente, de um ponto
164 O fragmento de Parmênides de que ser e p ensar são o mesmo apenas mostra a consciência do que, na verdade, já
não era.
126
de vista filosófico, colocar-se criticamente em relação a algo: é preciso criticar a própria
maneira como que se faz essa crítica.
Apesar das inúmeras diferenças existentes entre as diversas concepções de
filosofia ao longo da história, a idéia de que a Filosofia deve ser crítica não apenas do
mundo, mas também da própria maneira de exercer essa crítica, perpassa a todas. A
não-aceitação do dado da tradição, daquilo que nos chega como verdadeiro, legitimado por
algum tipo de autoridade, é condição indispensável para o exercício da filosofia. A nossa
posição, diferente da de Adorno, consiste em considerar que o importante é que inclusive
as próprias perguntas pretensamente críticas podem ser oriundas ilegitimamente da
tradição, e as respostas, pelo fato de se vincularem a questões “viciadas”, giram em torno
de um padrão e não chegam às vezes àquilo que mais precisaria ser questionado: os
pressupostos envolvidos nas questões. 165
Como nem mesmo essa crítica constante é um antídoto para o caráter
reificado do pensamento, que tende a hipostasiar sua diferença e sua supremacia perante a
mera realidade empírica, é preciso que este se volte constantemente sobre si próprio. A
verdade do discurso filosófico reside precisamente aí: nesse re-fluir do pensar sobre si
mesmo, que é o que Adorno se propôs a fazer em sua obra individual. Segundo
pensamos, toda a Dialética negativa pode ser pensada como a tentativa de cumprir a tarefa
posta pelos autores do livro de 1947, ou seja, fazer com que o esclarecimento volte a si, ou
seja, que ele finalmente possa cumprir aquilo que sempre foi seu Leitmotiv mais
fundamental: livrar os homens da servidão.
Não alimentamos dúvida alguma — e nisso reside nossa petitio principii — de que a liberdade na
sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a
mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas
concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, co ntém o germe para a
regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão
sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. (DA 3/13)
Todos os intricados passos seguidos na Dialética de 1966 constituem talvez
a mais pujante demonstração da tentativa do pensamento de se desenredar da trama
funesta em que assumidamente se encontra devido à sua própria estrutura conceitual.
Ora, de acordo com nossa definição de ideologia, podemos considerá-la o mais enfático
movimento anti-ideológico da razão. O programa de filosofia de Adorno consiste
precisamente em apropriar-se do movimento das idéias que se sedimentaram na história,
de modo a que se consiga, com base em uma justaposição radicalmente reflexiva delas,
fazer-lhes uma crítica imanente, a fim de que o conjunto como um todo possa explicitar e
combater a falsidade inerente a cada uma delas e ao próprio pensamento que as critica.
Para mostrar em que consiste propriamente esse processo de auto-reflexão
crítica do pensar, vamos dividir nossa abordagem em duas partes. Na primeira, veremos
como Adorno assume e, ao mesmo tempo, nega a dimensão imagética do mito. Na
segunda, vamos investigar o processo de negação determinada daquilo que constitui o
165 Segundo Adorno, “certamente deve-se negar a problemática filosófica tradicional, mas acorrentados [gekettet ] a
suas perguntas” (ND 28). Parece-nos inevitavelmente estranho que um filósofo tão expressivamente crítico como
Adorno tenha dito que se deva permanecer acorrentado às questões da tradição. A questão de Descartes nas
Meditações de se Deus é bom; a questão pré-escolástica de se os nomes estão ligados substancialmente às co isas; a
questão pré-crítica de se podemos conhecer positivamente a Deus — são questões que nós consideraríamos válidas
para nós hoje? Com certeza elas giram em torno de problemas atuais, e têm interesse histórico, mas cada uma coloca
um problema que julgamos necessário ou útil resolver?
Não se nega, aqui, a relevância de questões tradicionais como um possível estímulo para a reflexão. Mas dizer que
elas sejam o referencial obrigatório não nos parece realmente adequado.
127
núcleo de toda a racionalidade ocidental: a identidade, mostrando como isso explicita a
dimensão intra-temporal do pensamento filosófico.
3. Negação determinada da imagem: a dialética particular-universal
a) Eikón, conceptum e sema
Como essa primeira abordagem do movimento crítico do pensamento é em
relação à imagem mítica, o elemento mais próprio que deve ser explicitado é precisamente a
inter-relação entre imagem, símbolo, signo e conceito.
Em linhas gerais, o que pretendemos investigar é em que medida a
experiência comum dos homens ainda ressoa o caráter imagético do mito. Trata-se de
explicitar o que seria a herança da constrição imagética de sua duplicação infinita na relação
entre conceito e coisa. A idéia mais geral que pretendemos advogar é a de que a
insolubilidade do real empírico no conceito é a sublimação da impossibilidade mítica de o particular
resgatar imagem simbólica. Ou seja, que a particularidade do objeto e a universalidade do
conceito não sejam coincidentes, mas tenham que ser, é uma forma sublimada da força de
presentificação onto-gnosiológica da imagem simbólica. Naquela relação entre imagem,
símbolo e signo que apontamos no item 2-c, este último nunca chegou a ser puro sema,
pois somente é o que é pelo fato de que é, ao mesmo tempo, um conceptum, que “arrasta”
para si algo do eikón, a saber: o poder de atrair o particular para se repetir nele — e, nisso,
fazer com que o particular “respire” a possibilidade de ser o que precisa. 166
Como vimos, a imagem mítica é caracterizada pela força de presentificação
do sentido das coisas através de sua duplicação. Essa força de re-produção infinita da
imagem está ligada à transcendência, a um poder de geração e de morte infinito,
incomensurável. Ora, cada ser ou acontecer que é explicado miticamente por sua remissão
a um evento primordial carrega a eterna mácula de ser apenas um, em contraste com a
presença distentida ad infinitum do evento primordial. É por isso que Adorno e
Horkheimer dizem que o destino mítico funda uma rede infindável de relações de culpa:
A inevitabilidade mítica é definida pela equivalência entre essa maldição [das figuras míticas – vf],
o crime que a expia e a culpa que dele resulta e reproduz a maldição. A justiça traz até hoje a marca
desse esquema. No mito, cada ponto do ciclo faz reparação ao precedente e ajuda assim a instalar
como lei as relações de culpa [Schuld]. (DA 66/63)
“Schuld” é a palavra alemã que designa igualmente dívida e culpa
(Nietzsche). O culpado é o devedor que não saldou sua dívida. No mito, o evento
primordial é sempre mais do que qualquer ser ou acontecer profano, que somente se torna
inteligível, real, digno, se referido àquele. Como há sempre um resto (infinito, a bem
dizer) entre a pobreza e insignificância do particular e a magnitude incomensurável da
origem, todo particular é sempre visto como estando em uma dívida impagável perante o
evento primordial. Todo o cosmo mítico é essencialmente deficitário, posto que a realidade
empírica encontra-se sempre em um minus ontológico perante as potências
teo-numênicas. Ora, mas não é precisamente isso que se exprime de modo absolutamente
enfático nas filosofias de Platão, de Agostinho, de Santo Tomás, de Kant e de Hegel? A
escassez ontológica das sombras da caverna e a abundância substancial da luminosidade
166 É preciso salientar, aqui, que essa idéia, apesar de ser afim aos conceitos de Adorno, não foi explicitada por ele,
muito menos a de que suas noções de nome, de idéia e de reconciliação sejam uma negação determinada da imagem
mítica correspondente a cada um dos elementos da imagem que iremos ver. Trata-se de uma hipótese de leitura algo
exógena à Dialética negativa. O que é combatido explicita- e longamente nesta última é aquele prolongamento da
coerção mítica na identidade conceitual que procuramos desenvolver no capítulo II.
128
do eidos solar — certidão de nascimento de toda a filosofia ocidental — nada mais
exprime que essa relação deficitária mítica da particularidade em relação à universalidade:
“o universal cuida para que o particular a ele submetido não seja melhor do que ele. Esse
é o núcleo de toda a identidade produzida até hoje” (ND 306 – grifos nossos). Essa
supremacia do universal necessário em contraste com a deficiência do particular está
muito bem expressa em Hegel:
O que é da natureza do contingente, a ele cabe o contingente, e este destino é precisamente a
necessidade tal como, em geral, o conceito e a filosofia fazem desaparecer o ponto de vista da
mera contingência e reconhecem nela, em sua aparência, sua essência, a necessidade. É necessário
que o finito, a posse e a vida sejam postos como contingentes, porque é este o conceito do finito.
Esta necessidade tem, por sua parte, a forma da violência da natureza e todo finito é mortal e
efêmero. (Passagem de Die Vernunft in der Geschichte, citada em ND 350)
A falta de determinidade concreta do conceito de subjetividade é explorada como vantagem de
uma objetividade mais elevada de um sujeito eximido da contingência; isso facilita a identificação
de sujeito e de objeto à custa do particular (ND 343).
Ou seja, segundo Hegel, não apenas é da natureza do particular que ele seja
contingente, como sua continuidade mesma o é, sendo a tarefa da filosofia perceber na sua
morte, no seu desaparecimento a necessidade inelutável que subjaz ao curso do mundo.
Adorno comenta: “não foi nada diferente disso que os mitos ocidentais da natureza
ensinaram aos homens” (ND 350; grifos nossos).
Como a filosofia platônica marca a origem da razão ocidental propriamente
dita, livrando-se da dimensão claramente cosmológica do lógos pré-socrático, é instrutiva a
determinação da fonte de inteligibilidade do real como eidos (aspecto exterior, forma,
figura; forma mental, idéia, conceito). Esse substantivo deriva do verbo eído (ver; olhar,
observar; imaginar, representar), que mostra claramente o teor imagético-visual na
dimensão metafórica do aparato conceitual da metafísica platônica. A tarefa filosófica de
Platão poderia ser sintetizada enquanto intenção de retirar do lógos seu caráter de eikón, de
modo a constituí-lo tendencialmente como sema. A linha divisória dos entes e de sua
respectiva hierarquia ontológica na República mostra as idéias como estando acima das
entidades matemáticas, que primam pela unicidade do vínculo semântico. Mas, como
pôde ser comentado inumeráveis vezes, esse projeto platônico é marcado por um
malogro constitutivo, uma vez que o próprio discurso socrático construído pelo filósofo
usa, em seus momentos decisivos, não apenas metáforas, mas, também, mitos, como a
alegoria da caverna, essa linha dos entes e de sua realidade ontológica, o mito de Er, etc.
Ora, dito de uma maneira um tanto poética e retórica, podemos dizer que esse fracasso
inerente à filosofia platônica seria índice do que acompanha todo e qualquer conceito
como sua sombra, ao ser empregado para iluminar o mundo: a intelecção conceitual da
realidade empírica ressoa a constrição de resgatar a imagem simbólica.
Esse resgate, no mito, tem tripla determinação temporal: a origem é pensada
(seria melhor dizer vivida) como sendo o instante em que a infinitude do poder da
transcendência era atual, atuante, presente, sem a cisão para com a particularidade
insuportavelmente precária do existente empírico; por outro lado, cada ritual pretende
selar a conjunção do sagrado e do profano no tempo fraco, cotidiano, na presentificação
do poder criacionista no agora, garantindo a continuidade do ser e de sua inteligibilidade;
por último, o próprio mito configura a dimensão da escatía (extremidade, último confim,
limite extremo), ou seja, o destino a se realizar nos confins da realidade através da
129
acoplagem entre o lúmen teo-numênico e a aspereza grísea da multiplicidade dos entes,
sob o influxo incomensuravelmente forte da constrição imagética da origem. 167
Devido à herança mítico-imagética de todo conceito, dizemos que, mesmo
iluminado pela dissecação analítica das palavras para torná -las fichas neutras (cf. DA
11/21), unívocas — aliás, tão unívocas quanto o próprio fatum mítico —, esse mundo
ainda está virtualmente saturado de infindáveis motivos de culpa, de dívida, de
insatisfação, etc., pois cada objeto, cada ente, cada sensação, é sempre percebido como
deficitário em relação ao que estabelece sua inteligibilidade. Mas alguém poderia redargüir:
mas na pura relação entre as idéias, como na lógica silogística, esse déficit não existe;
muito bom! É precisamente nessa acoplagem perfeita entre sema e ón (signo e coisa) da
tautologia do pensamento lógico, expurgado da grosseria do particular, que a plenitude do
contato do deus consigo mesmo da narrativa mítica se realiza sublimada.
Como toda imagem mítica possui, como seu conteúdo mais substancial, a
força de unificação da sociedade, essa herança imagética do conceito é aquilo que ressoa o
peso da coletividade, da história, do devir conflituoso da vida dos homens; peso que a
filosofia analítica quer expurgar das palavras, dissecando-as de modo a retirar delas o
repugnante aspecto pegajoso da relação promíscua com a alteridade da natureza e dos
homens, que não as permite constituir sua cristalinidade unidimensional, apta ao desejo de
tornar a pura existência factual a única medida de si mesma.
Mas essa vinculação entre a imagem mítica e o conceito não é algo que
pode ser experimentado com uma vivacidade e nitidez suficientes para tornar essa sua
concepção teórica algo plausível de ter ressonância verificacional na práxis. E isso tem
uma explicação bastante clara: ninguém pode experimentar a mesma coisa através da lente
conceitual que o outro usa. Cada um se percebe como origem primeira do ato
constitutivo do significado das coisas. Dado esse isolamento monadológico, a infinita
diversidade entre as leituras conceituais do mundo (levando-se em conta inclusive as
diferenças entre culturas: do Tibet à Califórnia) não pode ser sentida, experimentada. A
diferença perceptiva do outro é sempre vista de fora, como algo exótico, a ser
compreendido, aceito, tolerado, etc., mas nunca pode ser vivenciado.168 O nosso
argumento é que, quanto mais nos defrontamos com a diferença de percepção do outro,
mais a dimensão valorativa imagético-societária da própria percepção ganha evidência. É
o solipsismo da própria percepção que torna opaca essa dimensão imagética/mítica dos
conceitos para a consciência individual. Mas ele é, como vimos, causado objetivamente:
Para que o interesse individual determinado funcionalmente se satisfaça de alguma forma sob as
formas subsistentes, ele tem que se tornar em algo primário; o indivíduo tem que confundir aquilo
que lhe é imediato com a próte ousía. Tal ilusão subjetiva é causada objetivamente: somente através
do princípio da autoconservação individual, com toda a sua teimosia, o todo funciona. Este força
o indivíduo a olhar somente para si mesmo, deturpa sua compreensão da objetividade e
transforma-se, por isso, objetivamente em algo ruim. (ND 306-7)
Tal como procuramos mostrar longamente no segundo capítulo, todo
universal contém elementos de constrição social, “mas o nominalismo difundido como
consciência pré-científica, que hoje comanda, de lá, novamente a ciência, e que faz da sua
ingenuidade sua profissão (…), não se importa com os coeficientes históricos na relação
entre universal e particular” (ND 307). Tal negligência é ideológica: “ela esconde o quanto
o particular tornou-se função do universal” (idem), o quanto as reações subjetivas “são,
167 Sobre a dimensão temporal do mito, cf. capítulo IV, item I.
168 É precisamente através da idéia desse enclausuramento monadológico das experiências que explicaríamos a idéia
de Adorno de que a comunicação atualmente não é uma comunicação entre homens, mas entre sujeitos.
130
há muito, apenas restos fetais [Nachgeburten] daquela universalidade, que enfeitiça
ativamente os homens para esconder-se melhor atrás deles, a fim de manipulá-los
melhor” (ND 308). Assim, a opacidade do sujeito em relação ao teor imagético-mítico
dos conceitos seria algo sistemicamente provocado e proveitoso.
Talvez o que seja mais opaco à visão introspectiva em relação ao caráter
imagético do conceito é precisamente o aspecto de culpa, ou seja, de dívida não paga, de
déficit resgatável, que as coisas e acontecimentos em geral teriam. Explicitemos melhor,
com base nessas últimas considerações, como podemos perceber isso.
Como vimos em diversas ocasiões, o poder de unificação social prolonga-se
na constituição identitária individual, que precisa unificar e comandar suas sensações e
seus impulsos para ser um Eu. Essa cristalização da identidade subjetiva é, então, o ponto
de inflexão entre o universal coletivo e as coisas concretas, que são assimiladas, unificadas,
individualmente através do aparato cognitivo social introvertido pelo sujeito. O
isolamento monadológico do sujeito produz a ilusão sistematicamente cultivada de que
“eles, os indivíduos, seriam o substancial” (ND 306), e configura-se como um véu em
relação ao peso da coletividade sobre o indivíduo. Mas é interessante notar como essa
afirmação da ipseidade, que dá ao sujeito a aparência de que ele seja a origem de seus
impulsos, ou seja, que ele seja livre, é, ao mesmo tempo, a fonte do sentimento de
inferioridade perante a sociedade e perante o que ele espera de si, ou seja, fonte de culpa:
Quanto mais liberdade o sujeito e a comunidade dos sujeitos atribuem a si mesmos, maior sua
responsabilidade, e, perante essa, o sujeito fracassa na vida burguesa, cuja práxis nunca garante ao
sujeito a autonomia plena que lhe é passada teoricamente. Por isso, ele tem que se sentir culpado.
Os sujeitos percebem os limites de sua liberdade, tanto em seu próprio pertencimento à natureza,
quanto, de modo total, em sua impotência frente à sociedade que se autonomizou perante eles.
(ND 220)
Vê-se, nessa passagem, que a inadequação entre a auto-concepção do
sujeito e seu pertencimento à sociedade entrelaçam-se de modo a fazer com que o agir
humano seja sistematicamente percebido como deficitário, o que é vivido como culpa, uma
vez que o indivíduo já sempre se formou como um projeto de se fazer corresponder ao
que seu conceito lhe dizia que ele era: dono de si. Colocar a culpa na sociedade sempre foi
ouvido como declaração de impotência, de derrota, de não-ser, posto que a identidade
sempre foi alcançada através da igualação entre a capacidade de burlar o outro e a unidade
individual. O indivíduo tem que se virar: essa é a lei da sociedade individualista; é preciso
dar um jeito de escapar, de sobreviver, de obter a melhor parte, etc. Dada a contingência
infinita da vida na sociedade comandada abstratamente de cima ou entregue ao
mecanismo cego do mercado — o que dá no mesmo —, essa efetivação da identidade
como ego vencedor das batalhas está virtualmente sempre acompanhada do sentimento
de culpa por um lado e, por outro, da necessidade de se conformar, de se resignar, etc.
O indivíduo é marcado, então, pela contingência de seu ser, pelo déficit que
ela produz, ou seja, pela inadequação ao que ele era para ser e pela culpa de não conseguir
efetivar sua essência devido precisamente à contingência do mundo. Algo muito parecido
é o que vemos na idéia aristotélica da relação entre a ousía (essência, substância) e os ónta
(coisas).
Em um convincente e esclarecedor artigo, Maria do Carmo Bettencourt de
Faria propõe que se traduza a expressão de Aristóteles tò tí ên einai — que normalmente é
traduzida como simplesmente essência ou qüididade — como o que era para ser 169
169 “O que era para ser. Ensaio sobre uma nova leitura da essência”. In: Classica. Suplemento 1. Belo Horizonte:
So ciedade Brasileira de Estudos Clássicos, 1991, pp.53-61.
131
Apoiando-se em vários autores, como Heidegger e Aubenque, a autora explicita o que
eles enfatizam como próprio do ên naquela expressão: que algo deveria ser alguma coisa,
mas cuja contingência material o impediu. Essa última coloca uma opacidade inelutável em
relação àquilo que constitui sua ousía, tomada como algo anterior à existência atual da coisa.
Heidegger diz:
A coisa deve necessariamente ser vista em relação à sua realidade, pois ela somente pôde ser
efetivamente realizada, atualizada, na medida em que ela seria pensável a título de possibilidade,
devendo ser atualizada. (…) Na essência, no tò tí ên einai, o momento do passado, da anterioridade
encontra-se implicado. 170
Segundo a autora do artigo, tò tí ên einai diz que todos os entes devem ser
entendidos a partir de um horizonte que determina o que eles deveriam ser. “Por outro
lado, designa uma frustração, um projeto não integralmente realizado”171. Dado esse
entrelaçamento entre o elemento prospectivo do que era para ser e o retrospectivo, de que
era para ser, mas acabou não sendo, a autora diz:
podemos afirmar que o que é tende inexoravelmente [a,] e baliza-se sobre[,] isto que era para ser,
frente ao qual, por um olhar retrospectivo, manifesta-se sua carência. O ente move-se por si
mesmo, por um movimento espontâneo, em direção ao seu télos, a essa plenitude projetada pela
definição como horizonte, da qual estará por outro lado irredutivelmente separado por um hiato
intransponível. 172
Como respaldo para essa tradução, a autora expõe algumas passagens do
livro VII da Metafísica em que o tò tí ên einai é usado:
“Da substância [ousía] se fala em pelo menos quatro sentidos principais: com efeito, o que era para
ser, o universal e o gênero parecem ser a ousía de cada coisa.” (VII, 3, 1028b 35)
“Em primeiro lugar, façamos acerca disso alguns esclarecimentos de caráter lógico, a saber, que o
que era para ser cada coisa é o que diz que ela é por si mesma.” (VII, 4, 1029b 20)
“Pois o que era para ser é o mesmo que a qüididade [tí estí].” (VII, 4, 1030a 5)
“Há ciência de uma coisa quando conhecemos o que era para ser essa coisa.” (VII, 6, 1031b, 6)
“E chamo o que era para ser à substância [ousía] sem matéria” (VII, 7, 1032b, 14)
Vemos que o tò tí ên einai, além de ser realmente bem traduzido pela
expressão proposta, está de acordo com essa idéia de colocação das coisas efetivamente
existentes entre dois pólos: um que o antecede como projeto não realizado e seu télos, uma
vez que todas coisas tendem a um bem, como já citamos na passagem da Ética a Nicômaco.
Uma vez situado entre esses dois termos, o particular é tomado como carente em termos
ontológicos, tendo o conceito do que era para ser como sua possibilidade de compreensão.
O que ressoa, uma vez mais, aquela determinação mítica tríplice da transcendência em
relação ao profano.
A determinação da carência do particular por sua contingência material é
algo que, no plano da obra aristotélica, apesar de explicitar a cumplicidade cósmica de
todos os entes, é pensado em termos propriamente teóricos, epistemológicos. Na
experiência comum dos homens, ela permaneceu, transmutada, como lamento constante
em relação à imperfeição do mundo, ou seja, com um conteúdo prático, vivencial, que
170 Martin Heidegger. Les Problèmes fondamentaus de la phenomenologie. Paris: Gallimard, 1975, p.56. Apud Maria do
Carmo Bettencourt de Faria. “O que era para ser. Ensaio sobre uma nova leitura da essência”. In: Classica. Suplemento
1. Belo Horizonte: Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, 1991, p.56.
171 Maria do Carmo Bettencourt de Faria. Op. cit., p.58.
172 Maria do Carmo Bettencourt de Faria. Op. cit., p.58.
132
tende a fazer com que leiamos todas as coisas a partir, não apenas do que era para elas
serem, mas, sim, do que queríamos que elas fossem. No uso comum dos conceitos na vida
cotidiana, esse déficit ontológico transforma-se em um déficit lógico-volitivo. O prisma
não é o do theorós aristotélico, mas de um oréxis [desejo], que coloca como substrato da
coisa o desejo que se tem do que ela fosse.
Talvez possamos ver aí algo que caracteriza propriamente a burrice, como
uma poluição emocional, volitiva, do nosso contato com o mundo, em que, em vez de nos
abrirmos à objetividade das coisas, à sua verdade, usamos de um idealismo de quinta
categoria, espraindo os tentáculos de nossa ânsia de colar nosso desejo a elas.
No último fragmento do livro de 1947, Adorno e Horkheimer falam da
burrice como cicatriz, como algo decorrente de inumeráveis impedimentos de algum
exercício de contato com o mundo, que acabam enrijecendo uma porção de nossa mente
que queria se dirigir a esse locus da realidade. Tal como um caracol, que retira sua antena
de um lugar que o agride, e demora cada vez mais a colocá-la para fora se o perigo se
repete, a burrice seria o resultado do entrave constante em relação a nosso desejo em
relação ao mundo, fazendo com que as perguntas sobre o mundo se tornem desajeitadas,
sem rumo definido, como se quiséssemos escapar daquele perigo vivenciado outrora (cf.
DA 274-5/239-40).
Essa idéia dos autores está de acordo com o que falamos, só que ela limita a
genealogia da burrice ao que contraria os desejos em relação à nossa atuação no mundo.
Cremos que a falta de inteligência também residiria naquele aspecto mais amplo, em que o
desejo se alastra por todo o campo perceptivo, de tal modo que o valor gnosiológico das
coisas é, ao mesmo tempo, o volitivo. A incapacidade de resolver um problema, de achar
uma saída, uma solução, estaria vinculada a um medo de que o objeto se mostre como
aquilo que não queríamos que fosse ou — o que é psicanaliticamente mais forte — que
ele seja exatamente o que esperávamos, mas para o qual nos impedimos
sistematicamente. 173
Cremos que essa argumentação seja suficiente para que vejamos que a
dimensão imagética do mito continua a existir na assimilação conceitual do mundo,
mesmo sem que seja percebida, uma vez que ela produz sistematicamente uma opacidade
em relação à nossa percepção de sua presença.
É preciso ver, agora, como Adorno nega dialeticamente cada um dos
elementos que vimos na relação entre a imagem mítica e a realidade.
b) Nome, idéia e reconciliação
Nossa hipótese de leitura do pensamento adorniano a partir da sublimação
da imagem mítica no conceito nos parece assaz profícua hermeneuticamente, porque, a
partir dela, podemos delinear com clareza os três pólos através dos quais se estende o
processo de reflexão crítica do pensamento na Dialética negativa. São eles: a dimensão
pregressa do conhecimento preenchido ontologicamente, a condição atual de carência do
particular em relação ao que possibilita sua intelecção e a escatía de salvamento desse
173 Uma das vantagens do pensamento racionalizado parece residir precisamente no cultivo da abstração do valor
emocional das idéias que nós temos para explicar o mundo. O velho lema de Max Weber teria seu co nteúdo de
verdade, não na pretensa ausência de valores para ler os fatos, mas, sim, na perspectiva axiológica de que, embora
todos os nossos conceitos contenham valores de várias espécies, nossa explicação do mundo não deve conter um
valor emocional, sentimental, para nós, de tal modo a que não nos sintamos abalados emo cionalmente por termos
tais idéias jogadas por terra. Querer proteger essas idéias como se elas fossem parte daquilo que estabelece o valor para
nossa pessoa somente polui o discurso teórico, científico, filosófico. É precisamente esse curto-circuito entre saber e
viver que produziu todos os horrores da inquisição: se você está co ntra mim, fogueira, se está a meu favor, riquezas.
133
particular. Cada um desses é assumido e, ao mesmo tempo, negado. Ao primeiro, Adorno
relaciona o nome, ao segundo, o vínculo entre o particular e a idéia, e ao terceiro, a
reconciliação. Vejamos cada um deles.
α) Nome
A Dialética negativa tem, como seu fio condutor mais geral, aquilo que Carl
Braun falou em relação à filosofia de Adorno como um todo: pensar a relação entre o
particular e o universal. Como procuramos mostrar longamente no segundo capítulo, a
abstração tende a exercer um achatamento das particularidades, uma violência em relação
à sensibilidade, que é subsumida em um meio abstrato que toma cada coisa como
exemplar do que é explicitado no conceito. Mas e o nome próprio? Não seria algo puntual,
algo que aponta para o tóde tí (isso aí)? Ora, os nomes próprios atuais, embora tenham sua
aplicação particular, não estão ligados intrinsecamente a seus objetos. Segundo Walter
Benjamin, a linguagem pode ser entendida como se tivesse possuído, em um tempo
primordial, a mesma força de presentificação gnosiológica das coisas, quanto a possuía o
verbo divino de criação delas. O homem conhecia as coisas na medida em que lhes dava
nomes, como extensão do poder divino de criar a partir da fala, ao passo que as próprias
coisas também possuíam uma linguagem, mas sem palavras, muda. A queda do paraíso
representou uma mudança radical, em que a linguagem passou a ter o seu teor semântico
externo a ela, na medida em que passou apenas a transmiti-los, ao passo que no ato
primevo de nomeação, tratava-se de algo inerente à palavra. Em vez de presentificação
gnosiológica, tem-se agora mera comunicação. 174
Essa concepção de verdade da linguagem enquanto nomeação é
propriamente mítica, na medida em que a verdade seria concebida como uma espécie de
restauratio do ato primevo de criação da particularidade a partir da infinitude do poder
divino de gerar a partir do verbo. A justiça ao particular está vinculada ao fundamento
rememorativo de uma conjunção imediata entre o universal divino e a particularidade da
criatura. Destarte, a puntualidade do nome é pensada como ideal de verdade do conceito
filosófico, uma vez que é aquilo que, na palavra, relembra aquele ato original de criação.
A reflexão de Adorno é uma secularização e uma negação determinada
dessa idéia benjaminiana altamente religiosa. Segundo ele, um pensamento que não fizesse
violência ao particular “tem seu longínquo e obscuro modelo no nome, que não
sobrecarrega categorialmente a coisa, mas ao custo de sua função cognitiva” (ND 61). Ele
toma da formulação de Benjamin a idéia de que o ato de nomeação/criação toma o
particular como fim em si, ao passo que a síntese intelectiva, como material.
Adorno não pode assumir a dimensão religiosa do pensamento
benjaminiano, segundo cremos, porque ela ressoa perigosamente algo que vimos na
origem da razão esclarecida: o reconhecimento do poder como fonte de intelecção de
tudo, em que os homens puderam reconhecer a si mesmos e ver-se diferentes do mundo
na medida em que se igualaram aos criadores de todas as coisas.
A gratuidade da criação, estampada na auto-teleologia do próprio ato
criacionista/nomeante, é que coloca, ao mesmo tempo, aquilo que fará com que o nome
sirva a Adorno como modelo do pensamento filosófico, mas que o leva, segundo essa
nossa leitura, a ter que rejeitá-lo. Ela ressoa fortemente um constituinte da relação da
narrativa mítica com o mundo, pois a mesma dívida que a criatura passa a ter em relação
ao criador, o objeto, de modo sublimado, continua a ter em relação ao sujeito. Essa graça
174 Cf. Rodrigo Duarte. “Expressão como fundamentação”. In: Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1997, p.176.
134
do ponto de vista do objeto é introvertida, assumida de modo sublimado pelo sujeito
como orgulho de ter podido dar ao obiectum aquilo que lhe subjaz como condição de sua
possibilidade: o poder criacionista do conceptum. Quanto mais autotélico o ato de
criação/nomeação, tanto mais o sujeito, proud of himself, espelha a imagem de um deus que
se contenta em ser puro poder. Nossa idéia é que Benjamin somente considerou o lado
do objeto no conceito de ónoma/génesis/gnose. Do lado do sujeito, essa força de
instauração onto-epistemológica do nome é devedora de tudo aquilo que leva a uma
negação abstrata da natureza.
O distanciamento de Adorno frente a essa assunção do poder cognoscente
do nome já se mostra na qualificação de “longínquo e obscuro” para o vínculo
paradigmático do nome para o conceito filosófico. Além disso, o nome, enquanto
desprovido desse poder mágico/místico, não tem poder epistemológico, pois, apesar de se
dirigir para o objeto, não retorna dele como extraindo-lhe uma determinação objetiva. Mas a
crítica explícita e decisiva ao poder cognoscente do nome reside na falta total de abstração
frente ao objeto: “um conhecimento não-restringido almeja aquilo perante o qual foi
adestrado a resignar-se e para o qual os nomes ofuscam, pois estão próximos demais;
resignação e ofuscamento completam-se ideologicamente” (ND 61). Tanto a extrema
abstração do número da fórmula da física matemática, quanto a imersão do nomen na
particularidade do hic et nunc não fazem justiça ao particular, posto que ambos acabam por
suprimir a distância mediada entre o sujeito e o objeto, que é necessária para que nenhum
dos dois seja sacrificado em função do outro.175
A puntualidade do nome tem sua maior importância para Adorno como
índice de insuficiência do conceito, que situa-se abstratamente além da espessura
ontológica do particular. Mas como renunciamos a um contato mágico/criacionista com
as coisas, resta-nos assumir que temos que nos haver com a universalidade conceitual,
mesmo com toda a injustiça que sua abstração comete contra o singular:
Somente conceitos podem realizar, o que o conceito impede. O conhecimento é um
τρωσας ιασεται 176 . O erro determinável de todo conceito obriga a invocar outros; nisso surgem
aquelas constelações, nas quais unicamente sobrevive algo da esperança do nome. A este
aproxima-se a linguagem da filosofia através de sua negação. O que ela critica nas palavras, seu
anseio de verdade imediata, é sempre quase a ideologia da id entidade positiva, existente, entre
palavra e coisa. (ND 63)
A consciência da necessidade de colocar os conceitos de forma constelatória,
advém do reconhecimento de que a identidade mítica entre palavra e coisa, que ressoa
como pretensão muda em cada ato identificatório, é falsa. A própria tarefa auto-reflexiva
de Adorno é realizada, em termos de sua performance escritural — já na Dialética do
esclarecimento, mas de modo programaticamente enfático na Dialética de 1966 —, através de
um esforço de distensão dos limites da linguagem como um todo, dos conceitos, das idéias, das
palavras, das frases, dos parágrafos, etc. Trata-se de trazer para a escritura — usando um
termo de Derrida — algo da imagem: um conjunto de elementos sensíveis (conceituais no
caso da filosofia) em uma inter-relação que não seja subsumida em uma totalidade maior e
externa.
Somente constelações representam, de fora, o que o conceito retirou no interior, o “mais”, que ele
tanto quer ser, quanto não pode sê-lo. Na medida em que os conceitos se agrupam ao redor da
coisa a ser conhecida, determinam potencialmente seu interior, alcançam, pensando, o que o
175 Isso é mais um dos indícios que mostram o quanto são equivocadas as interpretações de Adorno que o vêem
como fazendo a apologia de um retorno à natureza.
176 Ferida aberta.
135
pensamento necessariamente extirpou de si. O interno do não-idêntico é sua relação com o que ele
mesmo não é e com o que sua identidade com si mesmo organizada e congelada lhe recusa. (ND
164-5)
O que pôde ser assumido por Adorno da idéia benjaminiana do ato
nomeante/cognoscente é a teleologia particularizante do nome e sua inevitável
consciência da insuficiência do conceito perante o particular. É precisamente esse minus
essencial do conceito em relação ao particular que está envolvido na idéia da metafísica tal
como Adorno a considera em sua validade.
β) Idéia
A identidade conceitualmente estabelecida não pode ser negada
abstratamente. Na predicação conceitual, lógica, de algo em relação a um sujeito, do tipo
A é B, “isso é um livro”, existe uma relação tensa, dialética, entre o que é empiricamente
determinado e aquilo que o ultrapassa:
Já no juízo identificador simples, o elemento pragmático, dominador da natureza, é aco mpanhado
de um elemento utópico. A deve ser aquilo que ele ainda não é. Tal esperança vincula-se
contraditoriamente ao lugar onde a forma da identidade predicativa é interrompida. Para isso a
tradição filosófica teve a palavra “idéias”. Elas não são, nem χωρις177 , nem eco vazio, mas, sim,
sinal negativo. A inverdade de toda identidade alcançada é a forma reversa da verdade. As idéias
vivem nos espaços entre o que as coisas aspiram a ser e o que elas são. (ND 153)
A posição de Adorno é bastante parecida ao que vimos no tò tí ên einai de
Aristóteles. A recusa da separação platônica das idéias já é algo que o estagirita havia
enfaticamente realizado, colocando sua exigência de pensar a essência manifesta. A
negatividade da determinação ontológica das coisas, ou seja, de sua falta de ser comparada
ao conceito já está explícita no que era para ser. Mas, é evidente, já não se compartilha,
desde Kant, o anseio metafísico de querer alcançar a própria essência das coisas. Adorno
coloca as idéias em uma posição intermediária, entre a concretude das coisas e a
transcendência conceitualmente estabelecida. Esta última, como já em Aristóteles,
estabelece um télos de plenitude de ser, a que as coisas aspiram. Isso é assumido
enfaticamente por Adorno, que liga tal idéia à noção de esperança, a que já tivemos a
oportunidade de nos referir como essencial para a idéia de verdade.
Dado o estado de opressão dos homens e da natureza, dada a violência
cognitiva e prática a que ambos estão sujeitos, o conceito, com sua universalidade, contém
uma determinação bem mais ampla, irrestrita, que o singular oferece em sua
particularidade concreta. Esse plus do conceito perante este último é que estabelece aquilo
que Adorno qualifica como a esperança do singular em vir a ser mais do que ele é, através
da idéia que se tem dele. Isso é exemplificado por ele através do conceito de liberdade.
Que se diga de um homem que ele seja livre, isso não diz da especificidade multifacetada
de suas experiências, pois estas são sempre mais difusas e sobredeterminadas do que uma
expressão conceitual seria capaz: “o conceito de liberdade permanece sempre atrás de si
tão logo é aplicado empiricamente” (ND 154). Mas, por outro lado, se nosso conceito de
liberdade somente tivesse validade na adequação do tipo positivista dessa idéia àquilo que
nós experimentamos no mundo atual como liberdade, então somente teríamos um
conceito muito pobre de liberdade. Entre o que estipula o conceito universal e a coisa
concreta há um espaço, que é o da esperança de as coisas serem diferentes.
177 Separadas.
136
Essa esperança tão fundamental em Adorno é algo pensado como tarefa
conscientemente colocada para o pensamento filosófico. Por causa disso, vemos que a
carência do particular na sublimação conceitual da relação com a imagem mítica difere da
que Adorno fala, devido ao fato de que, lá, a força de presentificação do sentido do
mundo foi transmutada em uma dimensão cognitiva que é ofuscante em relação à sua
dimensão prática latente. No caso de Adorno, essa dimensão prática subterrânea é uma
vez mais sublimada, e, agora, em vez de abandonar ao ente singular essa dimensão
pseudo-prática, toma-a como uma tarefa do ser humano. O aspecto filosófico dessa
ressublimação mostra uma reflexão de segundo grau, na medida em que centra aquela
dimensão prática de carência no conceito, deixando ao particular a carência
onto-epistemológica, a qual a dialética negativa se esforça por desnudar aos nossos olhos.
Trata-se de uma re-cognitivização que extrai a dimensão prática da carência do ente para
elevá-la à consciência de si como constituinte objetivo do pensamento. O mundo das coisas
se desfaz de sua indigência mítico-imagética, passando a ser visto como carente
objetivamente, ou seja, não como projeção da carência vital do ser humano, de sua visão
lógico-volitiva, mas, sim, como refletindo o sofrimento objetivamente imposto a todo
particular pelo todo. A contradição do todo e do particular não mais se faz como culpa
deste em relação àquele, mas, sim, como resultado da ação do primeiro em relação ao
segundo. É tarefa precisamente do pensamento expor o quanto essa contradição pesa
sobre o particular: é preciso fazer-lhe justiça. Nessa re-cognitivização operada em relação
ao mito, ganha -se em termos prático-filosóficos com a desmistificação da praticidade
inconfessa dos conceitos.
Mas a originalidade adorniana é mais visível no outro lado da moeda: o
singular é mais que sua determinação universal, porque o conceito é uma forma de
compreensão abstrata, ou seja, que abstraiu, retirou, muito das coisas para que possam ser
pensadas. Por isso, o conceito é sempre visto como ultrapassando a contingência das coisas,
mas como sendo insuficiente em relação a elas:
O singular é mais e menos que sua determinação universal. Mas porque somente através da
superação daquela contradição, através, portanto, da identidade alcançada entre o particular e seu
conceito, o particular, o determinado, viria a ser si mesmo, é o interesse do singular assegurar para
si não apenas o que o universal lhe subtrai, mas, também, aquele “mais” do conceito em
comparação com sua carência [Bedürftigkeit]. Ele experimenta isso, até hoje, como sua própria
negatividade. A contradição entre universal e o particular tem por conteúdo que não há ainda
individualidade e ela é ruim, onde se estabelece. (ND 154)
Essa identidade é ruim, porque obscurece o quanto o particular é oprimido, amputado,
nivelado, para que alcance tal identificação, que é algo da ordem da necessidade de
sobrevivência, de continuidade. Por isso Adorno pôde dizer que
identidade é a forma primeva de ideologia. Ela é fruída como adequação na coisa oprimida nesse
contexto; adequação sempre foi também submissão a objetivos de domínio, e, assim, sua própria
contradição. (…) A identidade torna-se instância da doutrina da adaptação, na qual o objeto, para
o qual o sujeito deve se orientar, devolve a este aquilo que o sujeito lhe concedeu. Ele deve aceitar
a razão contra a sua razão. Por isso a crítica da ideologia não é algo periférico e interno à ciência,
algo limitado ao espírito objetivo e aos produtos do espírito subjetivo, mas, sim, filosoficamente
central: crítica da própria consciência constitutiva. (ND 151)
Aquilo contra que Adorno mais se esforça por lutar é precisamente a
aparência de resolubilidade do mundo em sua conformação e conformidade atuais. Ou
seja, que este seja a medida da verdade de si mesmo, que é, talvez, a conseqüência mais
137
funesta do positivismo aos olhos de toda a Teoria Crítica. Por isso a metafísica, com sua
imagerie eidética, de essências que não se recobrem ao mundo como conjunto de fatos, não
pode ser negada, segundo Adorno, pois “contestar que haja uma essência significa
colocar-se no lado da aparência, da total ideologia, na qual, entretanto, a [própria]
existência se transformou” (ND 171).
Nesse ponto, Adorno faz uma crítica um tanto surpreendente a Nietzsche,
que, “opositor irreconciliável da herança teológica na metafísica, rejeitou a diferença entre
essência e fenômeno, e relegou o mundo escondido [Hinterwelt] aos que se escondem nas
florestas [Hinterwäldler], unificando-se ao positivismo em geral. Em nenhum outro lugar,
talvez, seja tão perceptível o quanto os homens sombrios se utilizam do esclarecimento
infatigável” (ND 171). Naturalmente que não é o caso, aqui, de adentrarmos naquilo que
seria uma resposta nietzscheana a essa crítica, mas queremos observar que a comparação
entre o filósofo da Gaia ciência e o positivismo é inadequada, uma vez que este último,
como vimos, nega a transcendência das idéias metafísicas devido ao anseio de considerar
o mundo como conjunto de fatos manipuláveis cognitiva e tecnologicamente. Não entra
em jogo, em hipótese alguma, a consideração valorativa da tensão entre os particulares,
como situados em um campo de força, que, segundo Nietzsche, estabelece o fluxo da vida
que quer se afirmar. Esse plus de ordem prática como constituindo o sentido da doutrina
de Zaratustra, a transmutação de todos os valores, faz com que a negação da
transcendência metafísica em Nietzsche não possa ser igualada, sem mais, à dimensão
gnosio-tecnológica da consideração positivista do mundo dos fatos como medida de si
mesmo. Vamos além: talvez a radicalidade da negação nietzscheana da transcendência
metafísica possa ser pensada como um corretivo para a herança religiosa que permanece em
Adorno, a qual pode ser claramente vista em sua idéia de reconciliação, que é o tópos
filosófico da utopia, da liberdade para o particular, de sua liberação frente ao domínio da
universalidade.178
γ) Reconciliação
A tarefa de Adorno de constituir um pensamento que vá além da dicotomia
entre identidade e diferença tem como mola propulsora a consciência daquela
insolubilidade recíproca entre o particular e o universal. No particular determinado
conceitualmente, “o conceito é sempre, ao mesmo tempo, seu negativo; ele amputa o que
aquele próprio é e o que, todavia, não se pode dizer imediatamente, e o substitui através
da identidade. Este ‘negativo’, ‘falso’, mas ao mesmo tempo ‘necessário’, é o palco da
dialética” (ND 175). Se esse é o palco, o roteiro que dá a direção a ser seguida é a da idéia
de uma identificação não-forçada entre o conceito e o objeto:
A dialética desenvolve a diferença, ditada pelo universal, entre o universal e o particular. Como a
diferença, a ruptura entre sujeito e objeto que penetrou em toda a consciência, integra
necessariamente o sujeito e rompe tudo que ele pensa, até o que pensa de objetivo, só pode
encontrar seu fim na reconciliação. Esta emanciparia o não-idêntico, o desembaraçaria da coação
espiritualizada, inauguraria a multiplicidade do diverso sobre a qual a dialética não mais teria
qualquer poder. A reconciliação seria a rememoração deste múltiplo, que hoje aparece como
anátema à razão, mas que estará então desprovido de hostilidade. À reco n ciliação é que serve a
dialética. Ela desmonta o caráter de coação lógica a que obedece; eis porque a acusam de
178 Mas note-se: falamos de correção, não de uma negação pura e simples, posto que a idéia de reconciliação, embora
influen ciada pela idéia judaica de proibição das imagens, não se iguala à dimensão religiosa desse pensamento. Dito
de um modo paradoxal, podemos pensar a filosofia da vida de Nietzsche como negação determinada da idéia de
reconciliação de Adorno. Entretanto, não temos como desenvolver essa idéia nesse nosso texto, pois extrapolaria
demais seus objetivos. O que faremos é explicitar como a própria idéia de reconciliação em Adorno é pensada por
ele como negação determinada da coerção mítica da identidade.
138
panlogismo. (ND 18; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)
A reconciliação de que fala Adorno não significa, em hipótese alguma, uma
identificação total entre sujeito e objeto, tal como uma imersão no indiferenciado, como
se se tratasse de uma nostalgia por um estado de natureza perdido, ao qual se devesse
voltar. A tão famosa quanto mal compreendida “rememoração da natureza no sujeito” de
que já falavam os autores da Dialética de 1947 deve ser pensada como resultado da
auto-reflexão do pensamento que tenta perceber o que há de múltiplo, de disperso, de
contingente, de não totalmente unificado, na própria racionalidade, de modo a que a
leitura simbólica que fazemos da natureza, tanto externa, quanto interna, não exerça a
violência que o conceito sempre lhe impinge ao ser usado. Relembrar a natureza significa
fazer justiça ao particular que é sempre o conteúdo da consciência que se forma a partir
do aparato analítico-conceitual inelutável, ou seja, trata-se de um processo de
auto-reflexão do pensar que, voltando-se sobre si mesmo, pode medir a injustiça que
pratica aos entes que são seu objeto: “através dessa rememoração 179 da natureza no
sujeito, cuja realização contém a verdade elidida de toda a cultura, o esclarecimento
contrapõe-se à dominação em geral” (DA 47/50 – tradução própria).
A natureza tout court nunca é, para Adorno, índice de verdade sobre o
sujeito. É uma brutal incompreensão de seu pensamento considerar a natureza, em seu
movimento espontâneo, como algo que seria qualquer modelo, mesmo que distante, para
o agir humano. A natureza segue um fluxo cego, sem nenhuma forma de reflexão, sem
nenhuma dimensão crítica, de distanciamento. Seu desenvolvimento, suas formas de ação
nos animais, por exemplo, encerram o total sortilégio, que é o que se prolonga na cultura
sob a forma da imagem mítica e de seu remanescente no conceito, a identidade
conceitualmente imposta aos entes particulares. O conceito de reconciliação do espírito
com a natureza deve ser visto do ponto de vista que o autor quis lhe dar, não de outro,
saudosista, que é devedor da idéia de retour à la nature de Rousseau. Este último, sim,
valoriza positivamente a natureza como modelo de vida, através da idéia do bom
selvagem, por exemplo. Adorno, ao contrário, está definitiva- e absolutamente afastado
dessa valoração. Contrariaria flagrantemente todo o esforço hercúleo de Adorno, e, a bem
dizer, de toda a Teoria Crítica, tomar a natureza como parâmetro de vida para o ser
humano. É certo que a expressão “rememoração da natureza no sujeito” pode, realmente,
dar ensejo a interpretações rousseauísticas, mas o contexto em que ela é usada, já pela
primeira vez na Dialética do esclarecimento, mostra que o que é entendido por natureza é tudo
aquilo que se constitui como obiectum para a consciência, tanto interna, quanto
externamente. Relembrá-lo significaria reconciliar-se com ele, ou seja, medir, através de
um processo reflexivo, a distância que o conceito colocou entre a unidade da
autoconsciência e seu objeto, para poder dar voz a ele.
Se se pensasse a natureza como modelo de vida para o homem, isso
significaria a supressão da subjetividade, que seria propriamente o que apregoa o
positivismo pretensamente desprovido de preconceitos, que anula o poder da
subjetividade de transcender a factualidade do mundo. A auto-reflexão do pensamento, ao
contrário, exige um plus de subjetividade, um fortalecimento do sujeito, não seu
enfraquecimento ou sua naturalização. Sem esse reforço, não se poderia pensar uma
reconciliação da consciência com a diferença qualitativa da natureza, que é o que está em
jogo no pensamento que pretende a utopia.
179 Nesse ponto, Guido de Almeida traduziu Eingedenk por simplesmente “consciência”. A bem dizer, toda frase está
mal traduzida.
139
Na coisa, o potencial de suas qualidades espera pelo sujeito qualitativo e não por seu resíduo
transcendental, ainda que o sujeito só se fortaleça para isto através da limitação própria da divisão
do trabalho. Quanto maior a censura às reações do sujeito como meramente subjetivas, tanto
maior é o número de determinações qualitativas da coisa que escapam ao conhecimento. (…) [No
postulado da diferenciação qualitativa] de fazer a experiência do objeto (e a diferenciação é tornar
a experiência do objeto uma forma de reação subjetiva), encontra guarida o momento mimético do
conhecimento, o momento da afinidade eletiva entre o sujeito cognoscente e o conhecido. No
processo total do esclarecimento, esse momento gradualmente vai se dissolvendo, mas nunca
desaparece completamente enquanto não aceita anular a si mesmo. (…) Se esse momento se
extinguisse completamente, a possibilidade de o sujeito conhecer o objeto se tornaria
simplesmente incompreensível e a racionalidade desenfreada se tornaria irracional. (ND 54-5;
tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)
Dito de uma maneira paradoxal, quanto menos do sujeito se exige, como
um mero poder calculador e “colecionador” dos dados sensíveis estampados no
pensamento como borboletas empalhadas sob o título de sentenças protocolares, mais
reificação e mais subjetivismo, pois toda a atividade do espírito fica reduzida a um
instrumento de exercício do poder de manipulação do material amorfo da natureza. Tal
como psicologismo é o excesso da consideração psicológica em um fenômeno, ou o sexismo
o é em relação ao aspecto da diferença de gênero, etc., o subjetivismo seria precisamente a
preponderância exacerbada da teleologia social na lida com a natureza. Quanto menos
sujeito individual, mais a violência dos fins impostos socialmente têm espaço para se
fazerem presentes, esmagando tendencialmente as possibilidades de crítica deles. O que
Adorno quer mostrar — e talvez isso seja o objetivo mais importante da Dialética negativa
— é em que consiste o que ele chama de Vorrang des Objekts [primado, primazia,
preponderância, do objeto].
A Dialética negativa, como um movimento do pensar que pretende romper
sua ilusão de auto-suficiência, pretende apontar para a reconciliação entre sujeito e objeto,
na medida em que, invertendo a prioridade subjetiva de todo o idealismo alemão de Kant
a Hegel, almeja mostrar como o sujeito, que se percebe constituinte do objeto, é na
verdade, mediado por este. Isso não significa que o objeto tenha um acesso franco e
direto à consciência, como se não houvesse a necessidade da mediação subjetiva em
relação ao objeto. Não se trata de restaurar aquilo que a escolástica pretendia como uma
intentio recta, ou seja, um dirigir-se não-mediado ao obiectum, à sua essência — isso está
totalmente fora de questão; o que se pretende é fazer justiça ao particular através da
intentio obliqua da intentio obliqua, ou seja, uma refração sobre a refração que o conceito
exerce sobre o objeto.180 O que Adorno quer dizer é que um é mediado pelo outro: “o
sujeito não é, na verdade, nunca totalmente sujeito; o objeto, nunca totalmente objeto;
entretanto, nenhum é parte de um terceiro que os transcendesse” (ND 177). Ora, mas se
há essa dupla mediação, porque Adorno fala da preponderância da mediação objetiva em
relação ao sujeito? Por que ele não quis falar de um nivelamento dos dois nessa
interdependência recíproca?
Primeiramente, o sujeito deve ser pensado como também objeto, na medida
em que, sendo uma consciência que opera com um obiectum, precisa ser algo. Mesmo para
ser pura atividade como quer o idealismo transcendental de Kant, é preciso que o sujeito
seja algo, posto que qualquer atividade somente pode ser exercida se referida a um agente.
E isso não depende das circunlocuções racionalistas de Descartes que pretendia chegar à
idéia de res cogitans pela negação de todo e qualquer conteúdo do pensamento. Pelo
contrário. O que mostra precisamente esse aspecto de coisa do pensamento é o fato de
180 Cf. Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.188.
140
que ele sempre e inelutavelmente está ligado algo sobre o qual exerce seu poder de
intelecção. O fato de necessitar da ligação com alguma coisa para se conhecer como agente
mostra que o sujeito é também mediado pelo objeto. Se toda e qualquer atividade da
consciência somente pode ser o que é pelo fato de que há, existe, alguma referência a um
objeto, então a conseqüência que Adorno tira é a de que, se o conceito é uma mediação
intransponível para o objeto, a matéria deste também é uma mediação para o sujeito.
O sujeito é radicalmente mediado pelo objeto, também, pelo fato de que
todas as categorias e formas intuitivas de que se serve o indivíduo já são preformadas pela
dinâmica histórica do contato do homem com o mundo. Essa dinâmica é propriamente
social: “a sociedade é imanente à experiência e não allo genos 181. Somente a tomada de
consciência do social proporciona ao conhecimento a objetividade que ele perde por
descuido enquanto obedece às forças sociais que o governam, sem refletir sobre elas.
Crítica da sociedade é crítica do conhecimento, e vice-versa” 182. O homem aprende a lidar
com as coisas lidando com elas, e o modo como se pensa, hoje, reflete precisamente o
que se aprendeu ao longo de milhares de anos com tal contato. Logo, ao se ver um
objeto, todo o arsenal intuitivo e intelectual já está formado pela história da coisa que se
sedimentou nele. O mundo, tanto da natureza, quanto dos homens é uma realidade
sócio-empírica:
Que os dados, segundo sua pretensão, sejam percebidos assim e não de outra maneira é algo pelo
qual se preocupa a ordenação pressubjetiva, que, por sua vez, constitui essencialmente a
subjetividade que seria a constituinte segundo a teoria do conhecimento. (ND 173)
Nesse ponto, a análise adorniana do sujeito transcendental kantiano é
instrutiva. Ele é a suma inverdade, pois coloca todo o fulcro de rotação do real no âmago
recôndito da alma humana, que teria precedência absoluta sobre toda consciência
individual, empiricamente determinada. Mas essa suprema falsidade é índice precisamente
de sua verdade mais pujante, posto que a conformação do particular é tão imposta por
uma universalidade dominadora, que toda a sociedade acaba contendo realmente esse
caráter apriorístico extremamente opaco em relação a todo e qualquer sujeito singular.
O a priori e a sociedade estão entrelaçados. A universalidade e a necessidade dessas formas, sua
glória kantiana, não é outra coisa do que aquela que constitui como unidade os homens. Estes
necessitariam dela para sua survival. Seu cativeiro foi interiorizado: o indivíduo não está menos
cativo dentro de si que dentro da universalidade, da sociedade. Daí o interesse em reinterpretar sua
prisão como liberdade. O cativeiro categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de
cada indivíduo.183
A Dialética negativa tem como tarefa quebrar o encantamento [Bann] que o
sujeito lança sobre o objeto e sobre si próprio, esse enclausuramento categorial, herdeiro
da rigidez do destino mítico, que ele toma como a verdade mais pura. Essa ruptura é, ao
mesmo tempo, uma forma de abrir o sujeito à objetividade do mundo, fazendo justiça ao
objeto. Desse modo, não se pode pensar em justiça ao particular, às contradições, às
diferenças qualitativas, etc., sem a idéia de reconciliação. Trata-se de duas noções
entrelaçadas em Adorno. Não se faria justiça ao particular oprimido sem que se pensasse,
ao mesmo tempo, que o sujeito tenda a se reconciliar com ele. “Reconciliação” e “justiça
ao particular” significam praticamente a mesma coisa.
181 De outra espécie.
182 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.189.
183 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.192.
141
(…) a dialética se lança sobre o conteúdo como algo que está aberto e não pré-fixado pela
estrutura, ou seja, é oposição ao mito. O mito é o que é sempre igual e que, assim, acaba se
diluindo na legalidade formal do pensamento. Um conhecimento que quer o conteúdo, quer a
utopia. Esta utopia, a consciência da possibilidade, liga-se ao concreto como aquele que não está
deformado. Quem barra a utopia é o possível e não o imediatamente real; no meio do que está
estabelecido este aparece, portanto, como abstrato. O colorido que não pode ser apagado procede
do não-ser. Quem o serve é o pensar, uma parte da existência [Dasein] que, por via negativa,
alcança o que não é. A proximidade só começa na distância mais extrema; a filosofia é o prisma
que capta seus coloridos. (ND 66; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)
Dois momentos chamam à atenção nessa passagem: 1) A idéia de que
“quem barra a utopia é o possível e não o imediatamente real”. Ora, isso, segundo
pensamos, somente pode significar que o estabelecimento positivo do possível obscurece
mais a busca pela utopia, pelo diferente, pelo melhor, do que o olhar categorial dirigido ao
existente empírico, pois este, mesmo prensado sob a armadura conceitual subjetiva, ainda
não foi totalmente anulado em sua diferença, que ainda é perceptível, até mesmo pelo
pensamento mais reificado; como vimos em uma citação acima, se o pensar extinguisse
todo o seu conteúdo mimético, isso significaria a impossibilidade tout court do
conhecimento — lembrando, aqui, aquela indicação que demos ao início do primeiro
capítulo do gignóska, que tem, como um de seus significados, precisamente o de travar
relações íntimas com. O estabelecimento positivo do que seria a reconciliação entre
sujeito e objeto é propriamente ideológico, posto que falsifica aquilo a que se deve aspirar,
mesmo se a realidade atual não deixe entrever o que ela seria. A esperança de um mundo
melhor somente pode ser legitimada, segundo Adorno, através da negação obstinada de
todo e qualquer conteúdo positivo para esse télos:
O que seria diferente ainda não começou. Isso afeta todas as determinações singulares. Cada uma
que aparece como não contraditória mostra-se tão contraditória quanto os modelos ontológicos
Ser e Existência. Nada positivo é alcançável pela filosofia que fosse idêntico a sua construção. No
processo de desmitologização, a positividade deve ser negada até o cerne da razão instrumental,
que almeja a desmitologização. A idéia de reconciliação proíbe sua colocação positiva no conceito.
(ND 148-9) 184
2) O outro momento daquela passagem acima que deve ser ressaltado é a
idéia de que é somente a abstração conceitual que pode fazer justiça à utopia do pensamento;
somente ela poderia extrair da factualidade do mundo aquilo que subjaz a ele como o que
não foi deformado. A utopia liga-se necessariamente àquilo que a obscurece. A
continuação da última passagem que acabamos de citar é: “entretanto, a crítica ao
idealismo não despreza aquilo que a construção alcançou em discernimento a partir do
conceito, e o que a condução dos conceitos ganhou em energia a partir do método” (ND
184 Esse tabu da positividade da reconciliação foi de certa forma quebrado por Adorno na Minima Moralia, em que
ele diz que não se deveria pensar um estado reconciliado em que todas as potencialidades humanas fossem
desenvolvidas e exercitadas, em que toda a riqueza interior do homem se atualizasse, etc., pois tudo isso ressoa a
ânsia de produção cada vez maior inerente ao estágio capitalista da humanidade. Em vez disso, trata-se simplesmente
de que “ninguém passe fome”.
Ora, mesmo que não houvesse ninguém no mundo que passasse fome, que não houvesse mortes por desnutrição,
que houvesse alimentos suficientes para todos, mesmo assim — chega até a ser evidente — toda a humanidade
poderia não passar de um fantoche nas mãos dos grandes trustes internacionais, que talvez pudessem, em um
vislumbre de um futuro possível, sustentar sua primazia e poderio econômico -político precisamente através do
discurso ideológico de que ninguém mais no mundo tem fome: “vejam como é bom que estejamos no poder! Antes,
muitas pessoas morriam de fome, mas hoje nenhuma nem sequer chega a senti-la!”. Toda a desgraça do
depauperamento da sensibilidade através da indústria cultural e da publicidade poderiam elevar-se a escalas telúricas,
acompanhadas pela ideologia do “alimento para todos” — o que está, evidentemente, anos-luz de qualquer coisa que
se conceba como reconciliação.
142
149). É precisamente essa necessidade de se utilizar dos conceitos que nos leva ao último
item desse capítulo, que se dedica a mostrar em que consiste a constituição da verdade
como algo processual.
4. Negação determinada da identidade: a dimensão intra-temporal do pensamento
A posição adorniana em relação ao que a razão tem de falso é muito clara:
não se trata de negar a força imanente ao pensamento identificatório. Toda a “energia” do
conceito que é capaz de sintetizar o múltiplo e dar-lhe uma unidade espiritual deve ser
aproveitada. De várias críticas que se lhe fazem, a de irracionalista talvez seja a menos
adequada de todas. Adorno não nega abstratamente a identidade conceitual. O que é
necessário é o reconhecimento da falsidade envolvida nessa unificação violenta dos
particulares, de tal modo que o pensamento se coloque em marcha para se corrigir:
Devemos nos opor à totalidade, na medida em que ela é demonstrada não-idêntica a si mesma.
Por isso, a dialética negativa está ligada, em seu início, à mais elevada categoria da filosofia da
identidade. Nessa medida, ela também permanece falsa, lógico -identitária, permanece até mesmo
aquilo contra o qual ela pensa. Ela tem que se corrigir em sua démarche crítica, que afeta aqueles
conceitos, os quais ela trabalha como se fossem, também para ela, os primeiros. (ND 150)
Apesar de o próprio Adorno ter sido sempre avesso a definições, elas
podem ser úteis em um texto que pretenda explicitar seus argumentos. Embora qualquer
conceito de verdade a partir de Adorno seja bastante múltiplo e com várias determinações,
nesse aspecto que estamos enfocando nesse item, uma das definições que poderíamos lhe
dar com base na Dialética negativa e que condensa algumas idéias que já expusemos é: a
verdade das coisas reside apenas no processo reflexivo de desfalsificação do discurso por si mesmo. Essa
expressão contém diversas idéias-chave do pensamento adorniano:
1) O real, e não apenas o pensamento, é falso; isso porque aquele é
resultado de um processo histórico de supressão das diferenças, da liberdade, em função
da integração homogeneizadora ao todo social, “onde nada é realmente real porque tudo
obedece à lei de troca” 185. O pensamento que se queira verdadeiro por sua adequação ao
real empírico imediato é falso por duplicar a injustiça subjacente aos próprios fatos. —
Nesse ponto vemos uma semelhança curiosa entre Platão e Adorno, uma vez que ambos
consideram a factualidade do mundo como residuais em relação ao âmbito universal do
pensamento, só que por motivos totalmente diferentes, pois o primeiro fala desse minus
ontológico do real a partir da comparação frente a uma plenitude congregada na Idéia, ao
passo que o outro fala da carência do particular como resultado objetivo da violência
imposta a ele pelo pensamento.
2) É inicialmente necessário que o pensar tome consciência dessa falsidade
do real, ou seja, do que, em termos históricos, decantou-se nas coisas como sua
determinação atual e que é tomada como verdade factual para o pensamento alheio à
reflexão segunda sobre si mesmo. A ciência, diz Adorno, tem uma reflexão primeira; ela é,
na verdade, mais um fluxo ditado pela premência de domínio cognitivo-operatório, do
que um re-fluir da razão sobre si mesma. É preciso dar um segundo passo: “a dialética, ao
mesmo tempo cópia do contexto universal de ofuscamento e sua crítica, tem que se voltar
contra si mesma em um último movimento” (ND 397).
3) A verdade (digna desse nome, para além dessa constatação da falsidade
do real e do pensamento) somente pode ser alcançada como mediação no interior do próprio
pensamento; isso significa que seria ilusório tentar perceber a verdade de modo imediato
185 Lambert Zuidervaart. Adorno’s Aesthetik Theory. The Redemption of Ilusion. Cambridge: MIT Press, 1991, p. 181.
143
na realidade, como se ela já existisse: “não há vida correta na falsa” (MM §18, p.33).
Através dessa idéia de inevitabilidade de mediação do pensamento em relação a si próprio,
com sua conseqüente assunção de sua falsidade, poderíamos lembrar a falsidade da
tentativa habermasiana de conceber uma racionalidade não-repressiva na esfera da
comunicação. A oposição dos dois autores é bem explícita: enquanto Habermas tenta
escapar da violência do pensamento, procurando na intersubjetividade um refúgio contra
ela, Adorno assume, reelabora e nega a violência armazenada nas formas conceituais.
4) Tal mediação é algo processual, ou seja, algo que está imbricado com a
historicidade imanente ao próprio discurso. Aquela filosofia que nega essa determinação
histórica negaria, como conseqüência direta, a única possibilidade de fazer justiça ao
conceito de verdade. Tal historicidade também é prospectiva, como tarefa, como télos
imanente ao discurso, que se realiza em uma marcha cujo fim não necessariamente tem
que ser vislumbrado para que possamos conceber a legitimidade de seu próprio caminhar.
Mas além disso: essa dupla determinação temporal, ou seja, de retrospecção histórica e de
prospecção teleológica, dizem respeito ao próprio homem: “o que o ser humano deva ser
em si é sempre aquilo que ele foi: ele é preso nas rochas de seu passado. Mas ele não é
apenas o que foi e é, mas, também, o que ele pode vir a ser; nenhuma determinação é
suficiente para antecipar isso” (ND 6).
5) Trata-se de uma verdade das coisas, ou seja, não se trata de mero
construto idealista que se fecharia em si e atribuiria sua verdade aos objetos: “a verdade é
objetiva e não plausível” (ND 52). Ela não é nem imediatamente perceptível, nem
dispensa a mediação subjetiva. Não inclui a idéia de uma junção total de sujeito e objeto.
A separação entre estes é algo, ao mesmo tempo, real e falso, pois, em termos históricos,
ela realmente se sucedeu como única forma viável de auto-compreensão do sujeito, e
reconhecer essa cisão faz parte do conhecimento verdadeiro, mas é falsa enquanto
hipostasiada em um construto que ignora as determinações de natureza no próprio
pensamento, ou seja, que mascare o quanto o sujeito é mediado pelo próprio objeto.186
6) Tal processo somente pode ser pensado a partir do próprio pensamento,
o que significa considerar que a racionalidade ainda deve ser predicada nele, apesar de ele
voltar-se contra sua positividade primeira. Isso exclui qualquer possibilidade de intuições
originárias da essência, da apreensão de dados imediatos para a consciência, etc. Além
disso, recusa totalmente a possibilidade de que seria possível que se tivesse um acesso ao
que é múltiplo, disperso, de modo direto: “A mera tentativa de voltar o pensamento
filosófico ao não-idêntico em vez de à identidade seria absurdo; ele reduziria a priori o
não-idêntico a seu conceito e o identificaria assim” (ND 158).
Embora tenhamos insistido no item anterior na expressão “justiça ao
particular”, a auto-reflexão quer, também, fazer justiça ao próprio pensamento, na medida
em que pretende fazer com ele realmente alcance aquilo para o qual não obteve sucesso:
instituir o reino da liberdade.
O que não suporta nenhum particular denuncia a si mesmo como o que domina de modo
particular. A razão universal disseminada já é a limitada. Ela não é apenas unidade dentro da
multiplicidade, mas, sim, como colocação frente à realidade, imposta, unidade sobre algo. É, assim,
segundo sua pura forma, antagônica em si. Unidade é a cisão. A irracionalidade da ratio efetivada
particularmente dentro da totalidade social não é externa à ratio, não é culpa apenas de seu
emprego. É, antes, imanente a ela. Confrontada a uma razão plena, a vigente revela-se já, em si,
segundo seu princípio, como polarizada e, nessa medida, irracional. (…) A razão onipotente, que
se instala sobre um outro, estreita-se necessariamente a si mesma. O princípio de identidade
absoluta é em si contraditório. Ele perpetua a não-identidade como oprimida e prejudicada. (ND
186 Cf. Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.182-3.
144
312-3)
Essa opressão prejudica, tanto o sujeito, quanto o objeto, pois mantém-nos
em um sortilégio que exime da consideração da multiplicidade qualitativa em ambos.
Como vimos, a hipóstase da unidade subjetiva leva a uma des-historicização da cultura. O
próprio conceito é algo que tende sempre, segundo sua própria constituição, a reforçar a
continuidade, a invariância, em detrimento da diferença, da efemeridade, da historicidade.
Isso, segundo Adorno, é um arcaísmo do conceito, na medida em que ressoa aquela
invariância eterna do fatum mítico (cf. ND 156), o sempre-igual [das Immergleich]. Ou seja,
a diferença qualitativa está ligada ao processo, ao devir, enquanto a identidade, ao estático,
ao fixo. Isso já havia sido falado até mesmo por Platão, no Teeteto, quando ele diz que a
teoria da verdade de Protágoras como aparência, como aquilo que aparece a cada um se
ligava ao fluir incessante de todas as coisas em Heráclito, ao passo que Parmênides se
ligava àqueles que diziam da unidade e da perenidade do real.
A idéia de um primado do objeto como passo para a reconciliação com o
sujeito inclui, portanto, dois elementos, tanto no lado objetivo, quanto subjetivo: a
explicitação das diferenças qualitativas e a percepção da historicidade imanente. O
pensamento somente pode fazer jus à sua ânsia de verdade, na medida em que percebe
que, tanto o real, quanto o pensamento, são mediados historicamente. É preciso perceber
que a aparente fixidez e naturalidade que o real possui é, embora socialmente necessária,
mera aparência, posto que tudo o que existe somente tem a forma que possui devido ao
fato de que se tornou assim sob condições específicas, historicamente determinadas.
Este devir desaparece e habita a coisa, e não deve ser, nem imobilizado, nem separado de seu
resultado e nem esquecido. A ele assemelha-se a experiência temporal. Na leitura do ente como
texto de seu devir convergem a dialética idealista e materialista. (…) Aquilo com que a dialética
penetra seus objetos enrijecidos é a possibilidade sobre a qual a realidade efetiva lhes enganou e
que, entretanto, se reflete em cada um deles. (ND 62)
Para poder explicitar essa história sedimentada nos objetos, o pensar precisa
assumir a historicidade imanente a ele mesmo. Isso significa que, apesar de toda a crítica à
tradição ter seu momento esclarecedor na medida em que se livra da hipóstase de
elementos petrificados, ela pode redundar na falsidade de que o pensamento poderia
começar ab ovo, sem perceber que toda a força que ele possui deriva precisamente da
energia armazenada ao longo da história do pensamento:
Mesmo em sua forma subsistente sem conteúdo, o conhecimento participa da tradição como uma
recordação inconsciente. Nenhuma pergunta poderia sequer ser formulada se o conhecimento do
passado nela não estivesse se conservado e não continuasse atuante. A configuração do
pensamento como intratemporal, motivado por movimento em pro cesso, iguala antecipada e
microcosmicamente a configuração macrocósmica, histórica, que está entranhada na estrutura do
pensamento. (ND 63; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)
Toda a formação da racionalidade ocidental é contada pelo modo como se
relacionaram as dimensões de devir e de estaticidade no pensamento. Via de regra,
preponderou a segunda delas. Mesmo em Hegel, cujo projeto de filosofia inclui
precisamente a ânsia de elevar o saber à consciência de si como desdobramento da
verdade na história, acabou sucumbindo à estaticidade do fatum mítico, na medida em
que todas as etapas da experiência da consciência estão a serviço do autoconhecimento do
absoluto, que deve já estar pressuposto no início do trajeto, para que todas as outras
figuras se mostrem como formas imprecisas do que ele é. Por isso é que Hegel pôde falar
de uma astúcia da razão, que nega o particular como efêmero, contingente e que deve
necessariamente perecer em vista da verdade congregada no Todo.
145
Mas a estaticidade do pensamento está muito mais claramente visível na
abstração lógica da ciência moderna matematizada e em sua contraparte funesta na
filosofia, o positivismo. O projeto da dialética adorniana é o de reverter isso: “o processo
da objetivação filosófica seria, metaforicamente dito, vertical, intratemporal, contraposto à
quantificação horizontal, abstrata, da ciência” (ND 57).
Por outro lado, como já dissemos, a ausência de toda determinação
identificadora, que pereniza o real, acaba degenerando no contrário do que pretendia: “a
duração tornada absoluta, o puro devir, o actus purus se confunde na mesma
atemporalidade, censurada por Bergson na metafísica desde Platão e Aristóteles” (ND
20).
Analisando a Dialética do esclarecimento, Friedrich Schmidt diz há que se
ampliar a abrangência da negação da natureza enquanto pulsões, para negação da morte,
que faz com que uma mortalidade terrena seja negada em função de um além da vida que
a falsifica: “A história do desencantamento, da desmitologização e do esclarecimento
fracassa até hoje não apenas na repressão da natureza no homem, mas, também, na
negação da morte”187. Segundo o autor, a religião faz parte do processo de esclarecimento
e sucumbe à sua dialética, uma vez que nega, não apenas a multiplicidade dos desejos e
dos sentidos, mas, também, a experiência da própria finitude. Em relação a isso, embora
sem se referir diretamente a Schmidt, Simon Jarvis diz que a morte já está inclusa na
determinação da natureza enquanto algo a ser negado, posto que a natureza contém, em
seu próprio conceito, o de efemeridade, de transitoriedade. Por nossa parte, dizemos que
a dialética funesta do esclarecimento teve como seu elemento mais próprio, em relação a
esse aspecto, o obscurecimento, a falsificação, o entrave, em relação àquilo que pudesse
ser uma forma verdadeira de percepção da dimensão histórico-temporal do mundo, não
apenas em relação a uma forma dessa historicidade se manifestar, como é o caso da
morte.
Ora, se Kipfer está certo quando diz que a Dialética do esclarecimento “vê na
marginalização e na liquidação do indivíduo, de sua individualidade, o signo essencial da
negatividade do estado social (…)” e se os escritos posteriores de Adorno procuram
“fazer justiça ao indivíduo, recuperar a individualidade através de uma teoria adequada a
ela”188; se, como diz Adorno, a tarefa essencial da filosofia é a da objetivação
intra-temporal, que pretende compreender a história sedimentada nos entes; se essa
objetivação é aparentada à experiência temporal; se, como diz Kant, o tempo é a condição
de possibilidade de todos os fenômenos, tanto internos, quanto externos; se Hegel está
certo ao dizer que “o eu existe no tempo, e o tempo é o ser do próprio sujeito” (citado
por Adorno, ND 325); e se, como dizem os próprios autores da Dialética de 1947, “a
forma de organização interna da subjetividade” é o tempo (DA 54/56) — então não
causaria surpresa no nosso leitor que Adorno não tenha se dedicado a explicitar em que
consiste precisamente a experiência temporal, ou seja, a fornecer um conceito enfático de
tempo? — É a isso que nos dedicaremos no último capítulo de nosso texto.
187 Friedrich Schmidt. “Die Vergeblichkeit des Opfers und die Irrealität des Todes”. In: Willem van Reijen &
Gunzelin S. Noerr Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987,
p.142.
188 Daniel Kipfer. op. cit., p.111.
146
Capítulo IV
A experiência mimética do tempo
Nesse capítulo, pretendemos fazer uma aplicação dos conceitos que
desenvolvemos ao longo das partes precedentes, de modo a construirmos um conceito da
experiência histórico-temporal. Esse objeto de estudo tem sua relevância precisamente
devido às noções importantíssimas vinculadas a ele que levantamos ao final do capítulo
III — tanto no âmbito da identidade subjetiva, quanto na construção do discurso
filosófico que transcenda as agruras da racionalidade instrumental. É preciso que se tenha
claro, entretanto, que, embora trabalhemos com a noção de tempo, não pretendemos
fornecer um conceito que faça justiça a toda a amplitude dos elementos envolvidos nela.
Não nos interessamos em nada pela dimensão objetiva do tempo, tal como é, por exemplo,
a intenção da física newtoniana e da teoria da relatividade. O que pretendemos tratar é
propriamente da experiência dele, e isso em duas partes: primeiro, no processo de formação
da consciência perceptiva do tempo dividido em passado, em presente e em futuro;
segundo, na experiência do tempo histórico em termos de experiência estética.
Na primeira parte, nosso campo temático ainda é o da genealogia da esfera da
subjetividade. Por causa disso, trataremos, basicamente, de três momentos da gênese da
percepção histórico-temporal: a imagem mítica da origem, a teleologia da autoconservação na
emergência da subjetividade na Odisséia e a interioridade distendida entre o paraíso, a queda
e juízo final do homem cristão. Consideraremos ainda, sem muita ênfase, o papel do
tempo enquanto forma da intuição pura em Kant e a história como desenrolar das etapas de
autoconhecimento do Espírito em Hegel.
Na segunda parte, trataremos daquilo que consideramos a experiência do
tempo histórico tal como fazendo justiça à importância filosófica desse conceito. Para
isso, tomaremos a arte moderna como aquilo que estabelece os parâmetros para o que
chamamos de uma experiência mimética do tempo, que, segundo pensamos, é o que foi
falsificado, obscurecido, deturpado, ao longo do processo de constituição da subjetividade
no ocidente no que concerne à experiência da percepção histórico-temporal. Dado que a
arte tem, segundo Adorno, um enorme significado filosófico para se refletir sobre a
própria racionalidade, pensar sobre a dimensão histórico-temporal da sua experiência
congrega todos os conceitos que procuramos desenvolver até o presente momento de
forma a percebermos a concretude do télos do pensamento como sua tarefa mais própria:
ultrapassar, através de sua démarche crítica, a falsidade do real e de si mesmo.
1. A genealogia da percepção temporal
Falar sobre o tempo é algo realmente difícil. A enorme oscilação para seu
estatuto ontológico: como algo objetivo, como uma realidade em si, como uma
propriedade das coisas, como uma relação, como um modo de percepção, como
simplesmente inexistente, como mera abstração, etc. — tudo isso mostra como sempre
foi difícil um acordo sobre sua natureza, sobre sua especificidade. Tal é a inquietude de
Santo Agostinho ao dizer o que é o tempo: “se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser
explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” 189. É como se nossa vivência mais
imediata já estivesse satisfatoriamente esclarecida por nossa compreensão irrefletida,
operacional, prática e pragmática com as coisas. Ao pretendermos fornecer um conceito
189 Santo Agostinho. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos. São Paulo: Abril, 1973, p.244. (Livro XI, item 14)
147
da natureza do tempo já assumimos algo que nossa consciência cotidiana não precisava
assumir: que o tempo tenha uma determinada natureza, uma qualitas. A vivência cotidiana
pode assumir tacitamente que o tempo exista enquanto valor agregado ao fluxo das
coisas, sem que seja preciso concebê-lo como existindo per se.
A questão que nos move é a de como se originou a percepção do tempo
como dividido entre o passado, o presente e o futuro. Para isso, precisamos distinguir,
inicialmente, três conceitos vinculados a essa questão: o devir, o tempo e a hi stória.
a) O devir, o tempo e a história
O devir pode ser localizado, em termos de experiência com o mundo, em
duas acepções básicas: 1) a percepção do fluxo incessante das coisas e de seus estados: o
transformar-se, o vir-a-ser, o tornar-se, a mudança; 2) a consciência da continuidade, da
perenidade, da permanência, do perseverar. Essas duas noções parecem contraditórias,
pois dizem respeito, em sua formulação inicial, a dois elementos objetivamente situados
de forma antagônica, isto é, o movimento e o repouso. Entretanto, algo as une: do ponto
de vista interno, é a representação mental que considera uma linha de desdobramento
variável possível para o que se tem como seu objeto. O devir seria vinculado propriamente
à percepção de inquietude latente ou explícita para o que é objeto da consciência. Essa
possibilidade intrínseca àquilo com o qual nos defrontamos marca a consciência de que,
mesmo não se realizando, a mudança é sempre sentida como possível. Mas, como essa
possibilidade é sempre presente, atual, o fluxo do tempo instaura-se como esse valor
agregado à consciência da mesmidade da representação. Devido a essa definição, vemos que
a eternidade, definida em Santo Agostinho como um eterno presente, sempre atual em
toda sua extensão, é o contrário do devir, uma vez que ela exclui precisamente a
possibilidade de mudança.
O devir pode ser caracterizado como algo essencialmente prático, de ação,
posto que se relaciona à expectativa de mudança (ou de manutenção) de algum estado de
coisas. Trata-se de um modo de se posicionar perante as coisas, um modo de percepção
vinculado à vivência corporal, mental, a um exercício de atenção para com o fluir, com a
instabilidade latente de todas as coisas. Diríamos que o devir é o aspecto mais concreto da
percepção temporal, vinculado a um modus vivendi em relação a toda a realidade, interna e
externa à consciência. Por isso, dizemos que ele seria algo que estaria, de alguma forma, já
presente nos animais. Por mais precária que seja a conformação cerebral dos animais
superiores se comparada à consciência humana, vemos que eles podem estimar
instintivamente relações entre mais de um movimento de modo rudimentar, mas que já
nos indicam que sua percepção do fluxo das coisas não é total e absolutamente caótico.
Quando, por exemplo, um jaguar começa a correr em direção a um antílope, tem que ser
capaz de estabelecer uma relação entre o deslocamento próprio e o da vítima, pois, se não
conseguisse fazer um “cálculo” mínimo das coordenadas atuais e as que decorrem das
velocidades, dificilmente as situações de caça teriam o sucesso que têm em várias
situações bastante complexas. Quando, também, vemos um cão deixar de atravessar a rua
porque um carro está próximo demais ou chega a atravessar quando o veículo está longe,
isso somente pode ser entendido se pressupomos que ele possui, mesmo que de modo
bastante precário, uma capacidade de vincular o movimento do carro com seu próprio
movimento corporal. Em todos esses casos, vemos que a percepção atual do fluxo das
coisas pode existir, mesmo sem nenhuma consideração abstrata, como a de uma
representação das dimensões do futuro ou do passado enquanto tais.
Embora o devir possa ser dito como existindo para os animais, diríamos
que o tempo não existiria para eles, e isso precisamente por causa do aspecto um tanto
148
abstrato envolvido dessa noção. Para que possamos falar do tempo, é preciso que se tenha
um parâmetro que possibilite avaliar, mensurar, o fluxo do devir de um ponto
minimamente afastado dele. Embora não precisemos considerar o tempo como mera
relação, ele possui, entretanto, uma dinâmica propriamente relacional, na medida em que
somente se tem a consciência do tempo, não mais meramente como devir, quando é
percebido como contendo, de alguma forma, mesmo que elementar, a sedimentação do
locus do futuro e do passado. A nossa tese é que essa fixidez teve, como sua origem mais
remota, a ação de produzir imagens do mundo. Uma vez que toda a realidade somente pôde ser
apreendida inicialmente através de sua duplicação imagética, a cristalização do ícone que
duplicava a realidade propiciou o ponto de partida para a gênese da consciência de
referencialidade ao fluxo constante das coisas. A consciência somente pôde surgir no
momento em que o devir pôde ser deslocado da vivência íntima do si-mesmo. Foi preciso
que se cristalizasse um hiato entre o âmbito da consciência e o fluir de todas as coisas, de
modo a que se pudesse estabelecer a transitividade referencial, que contém um elemento
de in-tencionalidade para com a mudança dos estados das coisas. O elemento de
duplicidade imagética fornece essa ponte, mas ainda fortemente vinculado ao próprio devir,
uma vez que ela ainda é um produto que não se distingue radicalmente da própria ação de
produzir, e do ser que é duplicado. Somente na cristalização imagética da palavra, da
linguagem, é que podemos dizer que há a emergência do teor referencial forte para com o
devir, de modo a que já se possa falar de tempo propriamente dito, pois somente na
dimensão da linguagem é que temos uma âncora razoavelmente bem estabelecida para
que se possa estabelecer uma relação entre elementos heterogêneos: idéia e coisas, ou seja,
entre o fixo e o móvel.
Mesmo que as primeiras palavras ainda estivessem carregadas de forte teor
imagético, entretanto elas obrigatoriamente já possuíam alguma abstração do meio
lingüístico, pois senão não seriam palavras, e sim, imagens físicas. A abstração do elemento
imagético strictu sensu operada na palavra não pode ser desconsiderada simplesmente.
Trata-se de um passo importante, pois a palavra pôde congregar alguma coisa que não
mais existe no âmbito dos animais, que é a noção de valor. Que os animais utilizem coisas
como instrumentos, isso é indiscutível, pois até mesmo pequenos pássaros servem-se de
gravetos para construir ninhos, atrair insetos, etc. Até mesmo a teia da aranha pode ser
considerada um instrumento, pois é algo que somente vale em relação a uma outra coisa,
que é a imobilização da vítima. Mas, dado o aspecto essencialmente prático, de ação,
envolvido na vivência dos animais irracionais, todos esses objetos somente são
instrumentos aqui e agora. Sua utilização está adstrita ao ímpeto de se servir dele dado
pelo instinto, que deve sempre existir para que o objeto também seja percebido como
vinculado a sua função. Essa pontualidade da relação prática com a coisa pode ser vista
em casos nos quais um primata consegue manipular um objeto em uma situação até
mesmo complexa de relacionar meios e fins, sendo que, após o uso, o instrumento é
jogado fora. O primata, por mais surpreendentes que sejam suas ações de lidar com
instrumentos, não os toma como ferramentas, ou seja, como algo em que se deposita uma
relação um tanto abstrata que é a de valer, não somente aqui e agora para essa coisa, mas
para outras do mesmo tipo e para outros fins, como instrumento de defesa, de caça, de
moradia, etc. Desse modo, que algo possa valer de infinitos modos em situações passadas,
agora e no futuro, isso depende de um modo de percebê-lo através de um ponto que não
pode estar no mesmo âmbito material da própria coisa. Esse valor somente poderia se
decantar em algo abstraído do fluxo dos fenômenos físicos. Esse tópos da estabilidade do
ponto de vista “privilegiado” é dado precisamente pelo conceito, pela palavra, que pôde
149
se desligar minimamente da unicidade da representação imagética sensível. Em outras
palavras, para haver tempo, é preciso haver conceito. Sem este, o que se pode ter é o devir.
O mundo do animal é um mundo sem conceito. Nele nenhuma palavra existe para fixar o idêntico
no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos exemplos, a mesma coisa na
diversidade das situações. Mesmo que a recognição seja possível, a identificação está limitada ao
que foi predeterminado de maneira vital. No fluxo, nada se acha que se possa determinar como
permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber sólido acerca
do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro. O animal responde ao nome e não tem um eu,
está fechado em si mesmo e, no entanto, abandonado; a cada momento surge uma nova
compulsão, nenhuma idéia a transcende. (DA 263/230)
Aqui o leitor poderia objetar: mas se o devir é caracterizado como fluxo das
coisas e de seus estados, e se todo fluxo sempre supõe algo fixo para poder ser percebido
como tal, como os animais poderiam experimentar o devir, se não há essa âncora
conceitual da fixidez à qual o fluir pudesse ser referido? Como dissemos anteriormente,
há de se supor que eles tenham a capacidade de estabelecer conformações imagéticas
minimamente unitárias para os dados sensíveis, pois senão seria inviável que eles tivessem
modos de comportamento baseados no “reconhecimento” de características peculiares a
algum ser, como o dono de um cachorro, aquela fêmea específica no caso dos pombos,
que são monogâmicos, etc. É precisamente essa unidade imagética que dá a possibilidade
de percepção do devir. Mas como ela é algo físico, submetida às mesmas vicissitudes do
fluxo de mudança dos estados físicos, não há propriamente o tempo, mas tão-somente o
devir.
O tempo poderia ser distinguido conceitualmente do devir pela decantação da
ruptura qualitativa entre os planos do futuro, do presente e do passado. Usando uma
metáfora que desenvolveremos nos três itens seguintes, podemos dizer que o devir seria
caracterizado pela imersão em um meio, ora pacífico, ora agitado, acompanhada da eterna
premência de lidar com as coisas em um mesmo nível, posto que todas as coisas parecem
atritar-se reciprocamente de modo contínuo. O tempo seria caracterizado pelo
distanciamento mínimo propiciado pela superfície desse meio, em que se pudesse
vislumbrar, minimamente que seja, os movimentos tais como foram, são e serão. É
evidente, por outro lado, que isso se deu em diversos graus, de diversas maneiras e nem
sempre de modo unívoco, de modo que se poderia falar de uma interpenetração do
presente, do passado e do futuro em um continuum em diversas de suas manifestações.
Dizemos que essa ruptura somente se deu de modo enfático quando o conceito se desfez
de sua dimensão imagética, no surgimento da racionalidade ocidental helênica. Nesse
momento, é que surge aquilo que podemos considerar o tempo histórico, em que o passado
pôde ser apropriado a partir de uma narrativa que o coloca distanciado do presente,
afastado da vivência do aqui e do agora.
Apesar da irrupção dessa consciência histórica, poderíamos ainda dizer que
a unidimensionalidade linear do tempo tal como experimentamos na modernidade é algo
que não necessariamente existe. Isso somente será possível a partir da colocação enfática
do tópos do futuro, vinculada ao espelhamento, na consciência, da distensão do passado
irrecuperável até o futuro inexistente. — O que veremos agora são três momentos da
genealogia dessa percepção do tempo histórico, começando pela decantação do passado
na origem mítica.
b) A profundidade imagética do tempo: o mito
Como vimos no primeiro capítulo, o mito é caracterizado pelo
aprofundamento epistemológico através da sedimentação do núcleo de intelecção do real
no tópos da origem. Embora a linguagem tout court já fosse, segundo nossa conceituação
150
anterior, suficiente para que se pudesse falar da existência do tempo, a flutuação mimética
do preanimismo e da magia não permite que falemos de uma expressiva fixidez do ponto
de vista necessário para cindir de modo claro o sedimento do passado em relação ao fluxo
do presente. Ao dizer da hipóstase ontológica do real em um âmbito deslocado para o
passado, o mito mostra sua preeminência na percepção do tempo pela colocação desse
âmbito a partir da imagem solidificada lingüisticamente. O evento primordial é isolado do
fluxo incessante das coisas e passa a constituir aquele ponto de vista razoavelmente mais
fixado para que a consciência da distinção passado-presente exista minimamente. Mas,
como dissemos, essa origem ainda é carregada do poder de constrição imagético, e deve
se atualizar em cada ser e acontecer no tempo do agora:
A singularidade do evento mítico, que deve legitimar o evento factual, é ilusão. Originariamente, o
rapto da deusa identificava-se imediatamente à morte da natureza. Ele se rep etia em cada outono, e
mesmo a repetição não era uma seqüência de ocorrências separadas, mas a mesma a cada vez.
Com o enrijecimento da consciência do tempo, o evento foi fixado como tendo ocorrido uma
única vez no passado, e tentou-se apaziguar ritualmente o medo da morte em cada novo ciclo das
estações com o recurso a algo ocorrido há muito tempo. Mas a separação é impotente. Em virtude
da colocação dessa ocorrência única do passado, o ciclo assume o caráter do inevitável, e o medo
irradia-se desse acontecimento antigo para todos os demais como sua mera repetição. (DA 34/39)
O deslocamento do evento primordial para o passado é ambíguo, pois,
apesar desse deslocamento, a origem é vivida como explicação, como razão de ser, do
agora, que é vivido em função dessa referência ontológica ao passado. Cada
acontecimento presente é vivido, no ritual, a partir da rememoração forte do que ocorreu
há muito tempo. Resgatar a imagem do passado vincula-se à constrição imagética de
atualização perene do significado que deve se manter. Digamos que o passado não morre,
não se esvazia da força vívida do presente; pelo contrário: é precisamente por agregar, na
memória, o sumo dos acontecimentos vividos, que ele vai arrastando para si o núcleo de
dignidade (ontológica) das coisas presentes. Ora, a memória é essencialmente imagética.
Os fatos passados vão se acumulando em uma imagem que os congrega em um todo que
irradia, do ponto distante do passado, a conditio sine qua non para tudo existir e ser
compreendido.190
Se o tempo seria visto, naquela metáfora acima, como a superfície que se
destacou da imersão do devir, a consciência mítica poderia ser considerada como um sulco
operado nessa superfície a partir do aprofundamento epistemológico do recuo temporal
da origem. Dado o teor ainda fortemente imagético do mito, essa profundidade do
passado pôde apenas ser vivenciada concretamente, ou seja, estaria adstrita a um modo
concreto de relacionamento com o mundo, faltando-lhe aquele momento da dialética
hegeliana da consciência de si. A dimensão tátil presente nessa metáfora da constituição
do passado explicita um elemento importante: o espaço, “esquema irrevogável de todo
tempo mítico” (DA 54/57). Segundo Ernst Cassirer,
Toda orientação no tempo pressupõe a orientação no espaço (…) É uma e mesma intuição
fundamental concreta, é a mudança de luz para escuridão, de dia para noite, em que se
fundamentam a intuição primitiva do espaço e o desmembramento primitivo do tempo. O mesmo
esquema da orientação, a mesma diferença, sentida inicialmente de modo puro, entre as regiões e
direções do céu, domina igualmente a partição do espaço e do tempo em porções individuais
determinadas. Tal como as relações espaciais mais simples, como esquerda e direita, para frente e
190 Esse processo é o que poderia explicar a dinâmica da transformação de alguma coisa em tradição. Um processo,
uma atitude, um evento, vira tradição quando deve ser feito por já ser feito há algum tempo. Essa transformação
mostra como o passado pode pesar sobre o presente pelo simples fato de já cristalizar os fatos ocorridos em um
núcleo cuja densidade ontológica prepondera sobre a contingência da fluidez do presente. Este alcança sua
dignididade por repetir aquilo que ele mesmo foi outrora.
151
para trás, separam-se devido a que o curso do sol determina uma linha fundamental, a do lesteoeste, e esta é então dividida verticalmente por uma segunda, a do norte-sul, assim toda a
apreensão das partes temporais remete a essa separação e a esse cruzamento.191
Algumas elaborações culturais mais avançadas dão testemunho dessa
espacialização do tempo na linguagem, que é o caso da palavra tempus, derivada de
templum, que indica propriamente um cruzamento, uma cisão espacial. Do mesmo modo
que se pode indicar um caminho que vai para leste ou oeste em um entroncamento, podese indicar as “direções” da manhã ou da tarde, a partir da mesma percepção do
deslocamento do astro diurno. “A separação do espaço em direções e regiões individuais
é paralela à separação do tempo em fases singulares — ambas representam apenas dois
momentos distintos naquele processo da progressiva iluminação do espírito, que emerge da
intuição do fenômeno físico primevo da luz” 192.
Poderia parecer difícil conciliar essa origem espacial do tempo com aquela
dimensão interiorizada da imagem do evento primordial, mas não é o caso. É preciso
lembrar que toda configuração imagética — e mesmo ainda a do mito — depende de uma
conformação física, espacial, concreta. O ritual, elemento mais propriamente mítico, na
medida em que visa a presentificar a substancialidade profunda do real, também acontece
quando o sacerdote traça o círculo mágico, dentro do qual se pode sentir a influência
atuante do poder oriundo do evento primordial. As danças, as máscaras, os movimentos,
o deslocamento ritmado dos instrumentos de imolação, os arremessos dos objetos rumo
ao centro do círculo, etc., tudo isso mostra como que a presentificação da origem é vivida
em termos espaciais. “Regiões do tempo” e “regiões do espaço” são algo que não se
separam — ao contrário: a vivência do sagrado, que se vincula sempre à rememoração do
tempo forte da origem, apenas se dá em um processo de delimitação espacial, em uma
configuração imagética, em que a força divina se fará vívida. É precisamente essa
imbricação do sagrado, do tempo e do espaço que nos mostra que as divisões do tempo
não são separações em um meio indiferenciado, homogêneo, tal como virá a ser a
temporalidade na época moderna. Trata-se de um fluxo temporal plenamente qualitativo,
em que o número ainda não é, com sua abstração, o que poderia dar a medida da
existência temporal.
Da mesma forma que o passado configura-se, no mito, a partir de uma época
que se destaca das outras, a origem, assim todo o curso do tempo profano também se
configura em fases, que estabelecem ciclos de morte e de renascimento. Assim como
vários mitos narram o tempo da origem como dividido em fases, em épocas, em dias, etc.,
o tempo profano, para ser entendido a partir do sagrado, é também dividido em fases
caracterizadas por rupturas qualitativas, como o início da puberdade, em que a criança
“morre” para fazer “nascer” o jovem, e este “morre” para “nascer” o homem maduro,
etc.193 Podemos dizer que o aspecto cíclico experimentado na natureza é introjetado na
cultura como processo de manutenção da possibilidade de com-preender o fluxo das coisas,
na medida em que as transformações são acorrentadas a medidas específicas com que são
vistas em um olhar de sobrevôo. É isso que ainda podemos ver no processo de
comemoração ritualístico no aniversário, no reveillon, nos dias dedicados à mulher, ao
trabalhador, etc., em que a memória da dignidade do real ou de porções dele deve ser
revivida periodicamente, de modo a que não se perca o contato com a própria realidade.
191 Ernst Cassirer. Philosophie der symbolischen Formen. Vol. II. Berlin: Bruno Cassirer, 1925, p.135-6.
192 Ernst Cassirer. Op. cit., p.136.
193 Cf. Ernst Cassirer. Op. cit., p.138.
152
Embora o que seja mais característico do mito seja o aprofundamento rumo
ao passado, nele também está presente, como vimos, a dimensão da escatía, do extremo
confim das coisas. Mas mesmo este está marcado pela eterna repetição, uma vez que o
fatum somente pode se realizar com base naquilo que já se projeta a partir da origem. “Na
consciência temporal mítico-religiosa concreta vive-se sempre uma determinada dinâmica
do sentimento — uma intensidade variada, com a qual o eu se entrega ao presente, ao
passado ou ao futuro, e a move, nesse ato de entrega e através dele, em relação a um ou a
outro numa relação determinada de dependência ou de pertencimento”194. Dada essa
imbricação do passado, do presente e do futuro, podemos dizer que não haveria, no mito,
aquilo que podemos perceber como tempo histórico, que é o que começa a se delinear com
o surgimento da abstração conceitual, que podemos ver na interpretação de Adorno e de
Horkheimer da Odisséia.
c) A tridimensionalidade temporal através da abstração
Quando falamos da constituição da identidade subjetiva na figura de
Ulisses, um elemento importantíssimo foi elidido: a individualidade emerge com a
distinção clara dos três domínios do tempo. Isso é explicitado no encontro de Ulisses
com as sereias. O poder de sedução das cantoras é percebido como a irresistibilidade de
se perder no passado.
Mas o herói a quem se destina a sedução emancipou-se com o sofrimento. Nos perigos mortais
que teve de arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua própria vida e à identidade da pessoa.
Assim como a água, a terra e o ar, assim também separam-se para ele os domínios do tempo. Para
ele, a preamar do que já foi recuou da rocha do presente, e as nuvens do futuro estão acampadas
no horizonte. O que Ulisses deixou para trás entra no mundo das sombras: o eu ainda está tão
próximo do mito de outrora, de cujo seio se arran cou, que o próprio passado por ele vivido se
transforma para ele num outrora mítico. É através de uma ordenação fixa do tempo que ele
procura fazer face a isso. O esquema tripartido deve liberar o instante presente do poder do
passado, desterrando-o para trás do limite absoluto do irrecuperável e colocando-o à disposição do
agora como um saber praticável. (DA 39/43-4)
A sedução do passado é a da imagem mítica: imiscuir-se naquilo que, ao
passar pelo presente, arrastou consigo o peso ontológico do real. A sedução das sereias
consiste na tentação de voltar a ser o que se foi, recuperando a substância que escoou no
fluxo do tempo, congregando-se na imagem do canto, e atraindo, de lá, aquele que ainda
se identifica mimeticamente com a natureza. É preciso quebrar esse encanto através da
recusa da imagem como substrato encantador, atraente, que oferece o retorno do passado
ao preço de seu futuro. A unidade de consciência vem para romper essa flutuação do
presente em relação ao passado. Este não deve ser algo vivido em sua pregnância vital,
mas, sim, como algo que deve ser assimilado como valendo como uma ex-periência, em
que o perigo aponta para aquilo que pode ser usado como material, que, uma vez digerido,
assimilado, serve como baliza para os acontecimentos vindouros. O futuro dá a medida da
legitimidade do aproveitamento em relação ao passado. O pro-gresso é caracterizado
precisamente como essa consciência da justificativa que se dá para a manipulação das
imagens do passado, que devem ser despotencializadas em vista da construção do futuro.
O sacrifício a que Ulisses se submete para formar a rigidez de seu caráter
somente tem a função de unificar a consciência devido ao fato de a preservação do futuro
estar vinculada ao amor de si. É a vinculação entre o tópos conceitualmente estabelecido do
futuro e a própria pessoa que mostra como o presente e o passado foram sendo
194 Ernst Cassirer. Op. cit., p.150.
153
iluminados cada vez mais pelo ponto de vista de sua empregabilidade em função da
manutenção da identidade. A noção de história nasce precisamente da enformação
conceitual do futuro como um processo de legitimar a ação presente, embasado pela
memória enfraquecida mimeticamente em relação ao passado. Segundo Adorno,
Historicamente, o próprio conceito de tempo formou-se tendo por base a ordenação da
propriedade. Mas a vontade de possuir reflete o tempo como angústia diante da perda, diante do
irrecuperável. Fazemos a experiência do que é em relação à possibilidade de seu não-ser. Com isso,
é aí que ele se torna mesmo uma posse, e é precisamente nessa rigidez que se torna algo funcional,
passível de ser trocado por outra posse equivalente. (MM §49, p.68)
Ora, é preciso ver que o sentido de posse sempre existiu em certa medida, até
mesmo já nos animais, que, obviamente defendem aquilo que lhes dá prazer, que os
alimenta, os próprios filhotes, a fêmea, etc. Desse modo, se se vincula a noção de tempo à
de posse tout court, na medida em que ela aponta para a percepção da efemeridade (leia-se:
da perda), então essa noção é bastante antiga, primordial, em nada distinguindo da
estruturação da identidade delineada na Dialética do esclarecimento, em que é elaborada a
história primeva da subjetividade. O que de original é esboçado aí é uma determinada
concepção de tempo, que é o que estamos chamando de tempo histórico, em que o passado
e o futuro são concebidos como patrimônios do sujeito, que se concebe a partir deles. Ora,
a noção de propriedade, como se pode saber claramente por qualquer doutrina jurídica mais
elementar, diferencia-se da de posse pela legitimidade (social) da posse. O que faz, então,
com que o tempo alcance um novo estatuto no despertar da subjetividade no ocidente é
precisamente a maneira nova com que o passado e o futuro são tomados como propriedade,
e não apenas como posse, ou seja, é preciso ver qual é o ingrediente que fez com que o
tempo no esclarecimento passasse pelo crivo de uma legitimação inusitada. A
especificidade da filosofia ocidental, claramente delineada em Platão, é a consciência da
necessidade de legitimação atual do discurso (e, por extensão, da posse, ou vice-versa, isto
é, o próprio discurso pode ser pensado como um caso particular do que cai sob a
percepção de propriedade ou como expressão sublimada do senso de posse em geral), ou
seja, sem apelo à tradição ou ao peso das forças míticas. É evidente que não foi a Grécia
que inventou a legitimação da posse rumo à consciência da propriedade, mas instituiu
uma maneira nova de fazê-lo, através da abstração do discurso que legitima tal posse. A
legitimação do discurso que se pretende verdadeiro se dá na atualidade lógica de sua
estruturação.
Baseando-nos nessa distinção entre a profundidade imagética no mito, a
materialidade do devir das sensações atuais e o escalonamento abstrato do futuro,
podemos dizer, metaforicamente, que o passado é vivenciado como imagem, o presente,
como sensação e o futuro, como conceito. O passado está vinculado a uma cristalização do
que ocorreu como presente, ou seja, contém a materialidade do presente, mas já
sedimentada em uma totalidade, uma vez que já é tomado como um todo, definido pelo
fato de não ser, nem absolutamente fugidio, como a sensação, nem fixável de modo
abstrato como conceito. O passado, nesse sentido, não é, nem absolutamente distante,
nem totalmente perto. Reivindica uma presença como algo a ser retomado, resgatado,
mas impossível de ser presentificável na sua materialidade. O passado diferencia-se do
futuro pelo fato de ser mais real, na medida em que contém a concretude distanciada do
presente, já digerida, embora não totalmente real. O presente vincula-se à torrente
incessante das sensações 195. O fato de o tempo não parar, de ser impossível a consciência
195 “Incessante”, aqui, é usada para qualificar, algo fenomenologicamente, o fato de a consciência ser caracterizada
pelo seu preen chimento constante.
154
sem que haja o fluxo do tempo, é algo que marca a qualidade própria da sensação como
algo materialmente preenchido, ou seja, como algo que flui incessantemente, que precisa
de outra coisa, além dele, para ser moldado, para que tenha um sentido razoavelente
estável. O futuro, como algo que não contém preenchimento material, situando-se na
esfera da mera prospecção, é algo eminentemente vinculado ao conceito, à idéia do que o
mundo deva ou virá a ser.
É evidente que todas essas três dimensões do tempo estão vinculadas às
noções de imagem e de conceito. O que está em jogo com a vinculação da imagem ao
passado e do conceito ao futuro é o apelo que estes produzem em relação ao presente. O
passado como algo a ser recordado é eminentemente imagético, ao passo que o futuro é
essencialmente algo idealizado, próprio de uma idéia. Embora a palavra “idéia” tenha,
como vimos, a origem etimológica de eidos, que significa propriamente “forma” em grego,
ou seja, algo vinculado à experiência sensível, imagética, o sentido que eidos e “idéia”
ganharam no vocabulário filosófico é o de uma abstração radical, em que se fez a retirada
de quase todo o conteúdo sensível ou imagético. O pensamento fundante da metafísica
ocidental, ou seja, de toda a Filosofia, a ontologia do Bem de Platão, incumbiu-se de
forjar a abstração da imagem no conceito de um ponto de vista filosófico. Ela mostra
como a experiência do ideal, vinculado ao futuro, solidificou-se com a tomada de
consciência do caráter abstrato do conceito. Mas como é resultado de um processo de
depuração imagética, instituído social- e individualmente, o futuro ainda mantém-se
vinculado ao peso da imagem — o que, uma vez mais, é ironicamente mostrado na
malfadada tentativa platônica de dizer conceitualmente das coisas sem recorrência ao
mythos, ou seja, à imagem. De qualquer forma, a consciência ocidental do futuro mostra
sua pregnância precisamente na tendência à depuração do teor imagético em direção ao
caráter abstrato do conceito. Na medida em que foi tomando consciência dessa
depuração, o pensamento ocidental foi se apercebendo da diferença entre passado,
presente e futuro. A abstração conceitual favoreceu o destacamento do futuro e do
passado em relação ao presente.
A leitura qualitativa do cosmos — como na física aristotélica — é um
resquício da assimilação simpatética da imagem a todas as coisas. A física das quantidades
inclui um passo no processo de racionalização na medida em que extirpou essa
assimilação imagética ao outro. Isso está vinculado à consciência da desconecção do
futuro em relação ao presente e ao passado. Tal momento pode ser clara- e
inequivocamente exemplificado no empirismo de Hume, que diz que as relações entre
fatos são totalmente contingentes, de tal modo que não haveria como estabelecer-se
relações necessárias entre os fatos presentes e os futuros, sendo o conceito de causa algo
meramente derivado do hábito de presenciar repetidas associações de fatos semelhantes
com fatos semelhantes, gerando a crença de que o futuro será igual ao passado. Não é
mera coincidência que essa convicção da ruptura do futuro em relação ao presente esteja
em um conjunto de reflexões que separa tão nitidamente “questões de fato” e “relações
entre idéias”, pois é precisamente a tomada de consciência da diferença entre conceito e
sensação que permite a consciência da diferença entre futuro e presente. Essa mesma
ênfase na contingência absoluta dos fatos pode ser vista no Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein, que, no aforismo n.º 6.3, diz que nenhum fato tem relação de necessidade
com nenhum outro, e que só há necessidade no âmbito da lógica. Essa esfera, das idéias,
que representa o espaço próprio do sujeito, de sua unidade de consciência, assimilou,
introverteu, como vimos, toda a carga de inexorabilidade do fluxo das coisas no tempo
que a natureza possuía nos tempos mágico e mítico.
155
A distinção das três dimensões do tempo é o modo como o homem pôde
distanciar-se do mundo e percebê-lo como mundo, ou seja, como diferente dele, podendo
abarcá-lo com sua perspectiva conceitual. Ora, como o mito era uma fase em que o
homem ainda não se distanciara totalmente do mundo, o passado reinvindicava sempre
sua quota do presente e do futuro. O tempo mítico não permitia a separação
conscientemente clara das três esferas. Apesar disso, algo da diferenciação temporal já
existe, na medida em que a imagem do passado, embora hipostasiada e enrijecida como
repetição, contém um elemento que a distingue do eterno presente em que vivem os
animais, na medida em que o passado é vivido como profundidade, como um sulco na
realidade, eliminando a planura absoluta da vida animal. Nessa medida, o passado seria o
elemento mais originário do tempo — não mais como mero devir —, e, não, o presente,
posto que, historicamente, o tempo constituiu-se a partir da profundidade imagética do
real. Mas foi preciso o conceito abstrato para que tal profundidade ganhasse o relevo que
deveria ganhar no desenvolvimento da história do ocidente. Somente a partir da
luminosidade elevada do conceito é que o vinco da imagem pretérita pôde ser percebido em
sua amplitude e em sua significação. Sem essa luminosidade, a imagem pretérita como que
traga todo elemento significativo de diferenciação, na medida em que as semelhanças e as
diferenças dissolvem-se em um torvelinho de relações mágico-místico-animistas. A
consciência de futuro introduz o ponto luminoso a partir do qual as sombras podem ser
colocadas onde devem ser, sem cobrarem o presente e o futuro como pagamento pela
culpa da diferença perante o fato originário.
A tripartição passado-presente-futuro é, assim, o que caracteriza mais
propriamente o tempo, pois, sem ela, este virtualmente não existe. Assim concebido, o
tempo mostra-se como a etapa de constituição da subjetividade que faz com que o
mundo, instituído com a diferenciação do sujeito em relação a ele, fosse visível como
mundo, como objeto, como aquilo que ob-jaz ao sujeito. O mundo somente ganha tal
visibilidade a partir da lente da tripartição do tempo, que é aquilo que estrutura intimamente
o sujeito. Somente do ponto de vista dessa consciência é que o mundo tem substância. O
tempo (tripartite) é aquilo que, distanciando o mundo, faz com que ele possa ser vivido,
vivenciado, como mundo propriamente.
Entretanto, a realidade grega ainda não conhecia a profundidade interior da
individualidade. O saber continha a exterioridade do compromisso político que se espelhava
em todos os diálogos de Platão e nos tratados de Aristóteles. Essa qualitas do
entrelaçamento relacional dos homens presente no conhecimento espelha-se na
concepção grega de tempo ainda circular, presente até mesmo na elaboração filosófica
platônica. O aspecto imagético do passado, por exemplo, era tomado em um sentido
propriamente mítico-religioso, que continha a dimensão coletiva das imagens: “o eu ainda
está tão próximo do mito de outrora, de cujo seio se arrancou, que o próprio passado por
ele vivido se transforma para ele num outrora mítico” (DA 39/44). Foi com o advento do
homo interiors cristão que se pôde, suprassumindo a abstração grega, falar de uma
linearização da experiência temporal, em que as três dimensões do tempo foram
interiorizadas.
d) A distensão interna do tempo: Santo Agostinho
Como citamos anteriormente, a reflexão agostiniana do tempo se inicia com
a explicitação de um estranhamento, que é o da inefabilidade da natureza do próprio
tempo. A passagem do intelectualismo político grego para a interioridade religiosa cristã,
em referência à temporalidade, é marcada pela tomada de consciência de que o tempo não
pode ter uma existência per se, como algo objetivo, mas, sim, apenas vinculado à dimensão
156
subjetiva. A rigor, pergunta-se Agostinho, como se pode falar do futuro como uma
“coisa”, se ele, propriamente falando, não existe? O que se dizer do presente, se ele não
tem dimensão, isto é, não se demora, posto que, se o fizesse, o tempo não seria o que é,
como um fluxo constante? Como se pode referir ao passado como “algo”, se ele não tem
mais existência? “Deste modo, é uma tentativa frustrada conceber-se o tempo unicamente
a partir da sucessão dos acont ecimentos, pois ele seria a passagem de algo que ainda não
existe, através de algo que não tem dimensão para desaparecer em algo que não mais
existe” 196.
Apesar desse paradoxo, diz Santo Agostinho, falamos do tempo, de fatos
passados, presentes e futuros. Como isso pode ocorrer, sem que estejamos falando
absurdos? Segundo o filósofo, embora o passado não tenha uma realidade em si mesma,
como algo objetivamente forte, algo dos fatos que passaram pelo presente continua,
permanece, de modo a que possamos nos referir a eles como algo real: a lembrança que
temos deles. A meminisse é aquilo que, no sujeito, dá o fundamento da qualitas do passado
como algo a que se possa referir como real, isto é, como presente, atual. É a referência à
faculdade de presentificação das imagens do passado que confere sentido ao discurso sobre
a realidade delas. Embora o presente não contenha dimensão alguma, tratando-se de um
fluxo incessante, cuja especificidade é propriamente ser a-dimensional, outra faculdade
subjetiva pode ser usada como âncora referencial para sua realidade: a atenção. No
attendere, o sujeito pode perceber a continuidade do ser do presente, posto que, embora o
próprio presente sempre escoe, aquilo onde ele sempre se realiza em sua efemeridade
radical permanece de modo enfático. Apesar de o futuro ser marcado enfaticamente pela
inexistência, uma vez que nem sequer passou pelo presente, é possível referirmo-nos a ele
também na esfera da faculdade subjetiva: na expectativa. O exspectare atualiza o possível, o
ainda-não-existente, de modo que se faça real, contínuo e presente, ao ser antecipado no
animus. “Assim pode-se conceber o tempo como a passagem do que se espera, através do
que é intuído para o que se lembra”197.
Essa reflexão é o ponto de partida para responder à questão da medida do
tempo. Pois, com efeito, como medir o passado e o futuro, se eles mesmos não existem?
– como medir o presente, se ele carece de dimensão? Entretanto, diz Agostinho, medimos
o tempo, dizendo que uma viagem foi mais longa que outra, que um som é mais curto que
outro, etc. Como isso é possível? Responde o filósofo: “in te, anima meo, tempore
messui”. Se dizemos que o passado foi mais longo que outro, isso significa dizer que,
comparando dois eventos na memória, um deles se mostra mais longo. Se dizemos que
um passeio será mais curto que outro, é porque podemos presentificá-los na expectativa
atual, e compará-los.
Mas tais considerações pressupõem uma identidade do sujeito percipiente que permanece, apesar
da incessante passagem do tempo. Caso contrário, o tempo não poderia ser apreendido nem
mesmo através de sua relação com o sujeito, pois se tudo passasse, se tudo não fosse nada mais
que apenas transitoriedade, não seria, por exemplo, possível medir-se o tempo. (…) Se não
houvesse essa medida que se mantém, não haveria algo a que o tempo pudesse ser referido, e nem
mesmo o próprio sujeito teria uma continuidade que pudesse constituir sua própria identidade. Ou
seja, subjetividade e temporalidade estão intimamente relacionadas, imbricadas, e o sujeito
somente tem a capacidade de não se perder no turbilhão incessante dos acontecimentos que
escoam, na medida em que reflete a estrutura triádica do tempo como constituidora de sua própria
identidade. Sem transcender sua temporalidade, a passagem ininterrupta dos fatos do futuro ao
196 Rudolph Berlinger. Augustinus dialogische Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1962, p.53.
197 Rudolph Berlinger. Augustinus dialogische Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1962, p.53.
157
passado, o homem não alcança sua identidade. 198
Seguindo, uma vez mais, a idéia adorniana de perceber a história
sedimentada em uma dada realidade, que dinâmica histórica se sedimentou nessa
concepção agostiniana do tempo, com sua correlativa constituição da identidade
subjetiva?
O indivíduo cristão possibilitou a consciência interior da separação entre
passado, presente e futuro, porque a figura do Cristo colocou uma mediação entre a
transcendência, tomada como intemporal, e a vida profana, percebida em seu devir
incessante. Propiciando essa mediação entre a universalidade da transcendência em
relação à particularidade do profano, o cristianismo forçou a emergência da consciência
de que era necessário a concepção de uma mediação de uma espécie bem determinada
entre os dois âmbitos. Ora, o Cristo é um ser que faz essa mediação de uma maneira tal
que a idéia de um resgate da dívida passada através do sofrimento presente, tendo em
vista a redenção no futuro, estabelece uma Versinnbildlichung199 da eternidade de modo
temporal. A figura de Cristo é uma forma de mediação imagética — com toda a sua carga
vivencial forte — entre a eternidade plenamente conceitual e a sensibilidade plenamente
material. Se o intelectualismo grego ainda não era capaz de estabelecer uma profundidade da
consciência do fulcro de rotação do tempo histórico, ou seja, o homo interiors, a
“remitificação” da consciência temporal no cristianismo propiciou as condições para esse
passo. Por que essa remitificação, em vez de retroceder na consciência do tempo
histórico, fê-la progredir?
Como vimos, foi precisamente o deslocamento do centro de gravidade do
tempo, do presente para o passado, que possibilitou a tridimensionalização da consciência
temporal. Ora, uma vez tendo absorvido a consciência de si de tal tridimensionalidade, ou
seja, tendo passado pela abstração conceitual grega, essa mitificação em segunda potência
do tempo tomou essa dimensão iluminante do futuro conceitual e aprofundou-a, ou seja, o
futuro ganhou um preenchimento vivencial aprofundado, de modo análogo ao que o passado
ganhou com sua escavação no solo do presente. Mas não só o futuro, mas o próprio
presente sofreu essa granulação de experiência interna com tal remitificação, uma vez que
ele passou a se colocar estirado, tensionado, entre dois momentos que passaram a exercer
sobre ele uma força, não apenas de um saber acerca do futuro — próprio do eidos
platônico — e do passado como algo a se apropriar como material — presente no esforço
ulissiano de se livrar da sedução da imagem irrecuperável do já foi e refletido na ιστορια
de Heródoto —, mas, sim, de dois campos que, na consciência presente, colocam-se
como imagens cuja atração emocional, afetiva, sentimental, ou seja, de forma mítica, pôde
fazer com que o sujeito se estendesse por essa malha — viva em cada uma de suas células
—, determinando-se, fundando sua identidade nesse movimento de aprofundamento
imagético-mítico nos dois pólos fundamentais do tempo histórico: a memória do passado
e a expectativa do futuro. O que permitiu a Santo Agostinho a consciência clara do
passado como memória foi a memória da culpa; o que lhe permitiu a consciência clara do
futuro como expectativa foi a expectativa da redenção.
Mas essas duas figuras, da culpa primordial e da redenção, já existiam no
judaísmo, só que não mediadas pela consciência abstrata, conceitual, da transcendência.
Essa mediação foi importante, imprescindível. Ela colocou, como vimos, o elemento de
198 Rudolph Berlinger. Augustinus dialogische Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1962, p.54.
199 Difícil falar essa idéia em língua portuguesa: “simbolização de uma noção abstrata em uma configuração intuitiva,
imagética”
158
reflexão, de tomada de consciência indispensável para a consciência de legitimação radical
do presente a partir da idéia abstrata do futuro. Percebemos que essa legitimação
diferenciava-se de todas as outras, pelo fato de instaurar uma legitimidade atual do
presente em função de sua vinculação com o eidos do futuro. O que o cristianismo fez foi
aproveitar a anulação do vínculo prático imediato do futuro em relação ao presente, de
modo a fazer com que a legitimação atual do presente pelo futuro constituído
abstratamente se convertesse na fonte da conscientização da dinâmica existencial do tempo
profano. O fluxo do tempo presente passa a ser assimilado a partir de uma consciência
abstrata, que, uma vez tornada prática, interioriza a vinculação de futuro e de passado na
consciência do que motiva o fluxo do presente. O cristianismo colocou de essencial, em
relação a esse aspecto, um elemento reflexivo, que aponta sempre na direção da
interioridade, de tal modo a perceber que a legitimação atual do presente pelo eidos do
futuro possibilita ver o que subjaz à linha de continuidade do tempo profano como algo
que lhe serve de Leitmotiv, como mola propulsora. Devido a essa interioridade
reflexionante acerca dos subterrâneos da relação vivencial entre os momentos do fluxo do
tempo, o sujeito pôde reconhecer-se como sede privilegiada de constituição do próprio
tempo, dada a posição privilegiada do olhar sobre a torrente de momentos que
constituem a vida.
Dito de forma sumamente paradoxal, o cristianismo estabelece uma relação
mimética mediada conceitualmente do eu consigo mesmo: percebe-se como outro de si e
consigo se identifica no medium da representação imagética que tem de si próprio através
da figura de um deus crucificado. A divindade — que não mais é algo pura- e plenamente
imagético, mítico, mas, sim, estabelecido a partir de um edifício conceitual — é arrastada
para o fluxo do tempo, imiscuindo-se na materialidade conflituosa do presente. A
crucificação do Deus racionalizado é a ambivalência fundamental estabelecida para a
concepção, para a fundação, do homem interior do cristianismo: este se concebe a partir
de um Deus que não é mais ligado em termos práticos diretamente a si no meio
mimético-mítico, mas, sim, através da abstração, da separação, conceitual; e, ao mesmo
tempo, com-padece desse Deus pelo sofrimento imediato, carnal. Esse movimento de
aproximação e de afastamento de si mostra a ambigüidade da concepção de si próprio, na
medida em que, distanciando-se de si através da absorção do momento conceitual grego,
voltou a ganhar uma proximidade imagética desse seu outro, constituído conceitualmente,
através da figura da mediação corporal de cristo. Esse movimento ambíguo é o que
possibilitou perceber o aspecto linear do tempo profano, só que de modo transparente, de
modo a enxergar a atração recíproca de todos os momentos que constituem tal linha. O
que virá a ser a planura da linha do tempo ainda possuía uma profundidade existencial.
Por que a intelectualidade grega não possibilitou essa tomada de consciência
do tempo tal como no cristianismo? A mesma coisa que formava a rede que tecia a
dimensão política grega é a que não deixava que sua construção imergisse no âmbito da
interioridade, ou seja, a abstração conceitual formava um arcabouço contra esse
aprofundamento vivencial intimista da doutrina cristã. 200 Dito metaforicamente — o que,
aliás, tem acontecido amiúde nesse capítulo —, a distensão do indivíduo cristão possibilitou
200 Mas essa nossa reflexão não deveria ser lida tal como uma fenomenologia hegeliana, como se a interioridade
cristã fosse uma espécie de etapa necessária para o auto-reconhecimento do Espírito. O que fazemos é uma análise de
como a consciência do tempo efetivamente se constituiu. — Uma especulação algo ociosa em termos históricos, mas
interessante, é a de pensarmos como seria possível a constituição da subjetividade aos moldes da modernidade sem
que se tivesse passado pelo cristianismo. Como isso é algo apenas imaginável em termos ficcionais, continuemos a
exposição levando em conta o desdobramento histórico real.
159
que ele imergisse no âmbito subjetivo, tal como a dispersão das partes pesadas de uma
embarcação a faz afundar. O realismo exagerado de Platão é índice dessa exterioridade
logocêntrica, na medida em que as Id éias são tomadas como estando, nem no sujeito,
nem nas coisas, mas em um reino separado. Esse kóris, que é o que possibilitou a
iluminação conceitual para elevar a profundidade do sulco do passado à consciência de si,
é o mesmo que impediu que essa tridimencionalidade pudesse ser vivida internamente.
Foi preciso um outro ponto de vista, que não o da potência solar ofuscante, mas, sim, o
da penumbra interior, para que toda essa construção tridimensional fosse tomada apenas
como projeção daquilo que o sujeito experiencia em si mesmo: a lembrança do talho na carne
que pecou, o sofrimento atual que demora para passar e a expectativa de cura da ferida que
um dia se fechará totalmente.
Entre a terra de Canaã do judeu, a República platônica e a Civitas Dei de
Santo Agostinho, pode-se fazer uma comparação instrutiva a esse respeito. Todas as três
dizem respeito à constituição, no pensamento, de um ideal. A primeira é eminentemente
prática, concreta, pois trata-se de uma figura que tem um forte apelo de ordem vivencial,
ou seja, mítica. A segunda é claramente abstrata, ainda espelhando o entrelaçamento entre
ontologia e ética, mas esforçando-se por fundar o éthos no lógos epistêmico. A terceira
reassumiu a dimensão vivencial do vocativo teológico, mas expurgado de seu aspecto
imagético-mítico imediato, tendo passado pela experiência do esforço de legitimação
atual-lógico do pensamento racionalizado.
Mas, apesar de se aproximar bastante daquilo que será a experiência do
tempo linear quantificado dos modernos, o tempo agostiniano ainda está marcado por
distinções qualitativas de ordem subjetiva. A memória e a expectativa são marcos de
vivência que cunham, no próprio conceito de tempo, a carga imagética que ambos
possuem, com todo o seu apelo existencial. O começo cartesiano da modernidade, que o
próprio Hegel já havia visto, também pode ser empregado para esclarecermos o
desenvolvimento do conceito de tempo. Descartes marca o ponto de inflexão necessário
para a consciência matematizada do tempo: a consideração do ego como poder, como
atividade auto-determinante. A desqualificação da capacidade de apreender as coisas a
partir do cogito — desprovido de relação de alteridade como fundante do próprio ego —
mostra o passo que foi dado rumo à desqualificação do substrato para o tempo, o qual
pôde passar a ser concebido como mera forma, como intuição pura.
e) A apropriação burguesa do tempo: Kant e Hegel
Segundo Kant, o tempo não é uma propriedade das coisas, nem tem uma
realidade objetiva, desligada do sujeito. Trata-se de uma forma de nossa sensibilidade,
juntamente com o espaço. O tempo não é um conceito empírico, que pudesse ser deduzido
das coisas, pois é condição de possibilidade de todo e qualquer fenômeno, seja ele interno
(do movimento da mente) ou externo (em que somos afetados pelos objetos do mundo).
Ele é a condição de que se possa perceber a anterioridade, a simultaneidade ou a
posteridade dos fenômenos. Segundo Kant, não se pode abstrair o tempo dos objetos,
mas se poderia abstrair todos esses dele, ou seja, pode-se pensar o tempo sem nenhum
objeto, mas não algum objeto que não seja determinado temporalmente. O tempo nada
mais seria do que uma maneira inevitável através da qual podemos ter consciência de
qualquer fenômeno. Trata-se de um ponto de vista propriamente humano de intuir
qualquer coisa. Apesar de o próprio tempo não ser intuível, pois é anterior a qualquer
intuição, a melhor maneira de representá-lo, diz Kant, é a linha, que, não tendo nenhuma
extensão lateral, expressa, nesta unidimensionalidade, que não é possível haver mais de
um tempo simultâneos, mas, sim, sucessivos.
160
Apesar de excessivamente breve — porque contamos, aqui, com a
familiaridade da Estética Transcendental ao leitor —, essas características da concepção
kantiana podem servir de estímulo para uma reflexão, também sucinta, sobre sua
motivação histórica.
A Filosofia de Kant é marcada por ser a expressão conceitual da vivência de
um iluminismo não-revolucionário, pelo menos não em termos de prática de vida. Distante
do centro conturbado da Europa da revolução burguesa, no interior da Prússia oriental,
marcado pela vida ascética do puritanismo pietista e pela predileção individual para com
as formas abstratizantes platônicas (incluindo as matemáticas), Kant operou o que
podemos conceber como uma “re-teorização” radical da concepção do fluxo do tempo,
mediada pela existencialidade temporal cristã.
Uma vez estirado o sujeito entre os pólos atrativos do passado e do futuro, o
que o iluminismo kantiano fez foi retirar esse elemento de atratividade destes. O que
sobrou foi a consciência da planura do tempo a partir do ponto de vista privilegiado da
interioridade subjetiva, sem a vinculação à dinâmica motivacional da existência. Uma vez
dando-se um salto a mais na escalada abstracional, nada mais evidente que aquele
movimento de consciência da determinação tripartite do tempo propiciada pelo conceito
helênico se fizesse em escala telúrica, uma vez liberto da rugosidade existencial do
sofrimento cristão. O que propiciou essa planura absoluta de um tempo como mera
forma do sujeito foi a leitura do mundo a partir do número, que é o que de mais abstrato
há em termos de pensamento aplicável ao mundo. Lembre-se, a esse respeito, que o
próprio Kant quis escrever sua Crítica da razão pura como fundamentação da matemática e
da física newtonianas, todas as duas fundadas na noção de tempo e de espaço absolutos e
contínuos, concebidos numericamente. Além disso, o próprio número é pensado por ele a
partir do tempo: “o número não é senão a unidade da síntese do múltiplo de uma intuição
homogênea em geral, mediante o fato de que produzo o próprio tempo na apreensão da
intuição”201. Em suma: foi a suprema abstração numérica, como chave de leitura do
mundo, que serviu de âncora para a visada globalizante do sujeito, exercida sobre um
tempo estirado em um plano infinito e totalmente desprovido da espessura de qualquer
conteúdo, tal como vazio é o próprio número.
Hegel, por sua vez, não vive um iluminismo idealista pré-revolucionário,
mas, sim, um romantismo que comemora a vitória do sujeito sobre a exterioridade
opressiva. Sua Filosofia é fruto do vínculo entre sua formação teológica cristã, sua
proximidade com os eventos vitoriosos da revolução e a influência da filosofia formalista
de Kant. Em vez do projeto de um eidos futuro a se realizar sob a égide do rigor conceitual
(tal como a República platônica ou o reino dos fins na vida moral kantiana), tem-se o
olhar de Minerva que pretende ver, no rio (e não na linha) do tempo heraclítico, a imagem
de si mesmo mediada pela torrente de acontecimentos em seu fluxo incessante rumo ao
mar infinito do saber que superou todos os limites.
O tempo é tomado como o medium por excelência do desdobramento da
identidade subjetiva, mas um tempo preenchido, um tempo histórico strictu sensu. Trata-se
de uma repraticização do tempo, só que, agora, em termos da mirada retrospectiva
resultante do ligamento daquela abstração à materialidade sobre a qual ela é exercida. O
caráter pro-jetual do iluminismo é apropriado como enformador do passado, constituindo,
erigindo, um saber que se percebe, a um só tempo, como instaurador e executor de uma
201 Immanuel Kant. Crítica da razão pura. Tradução de Valerio Rohden e de Udo Baldur Moosburger. São Paulo:
Nova Cultural, 1996, p.147 (“Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento”, §9)
161
tarefa de resgatar o que existiu como algo que mostra o que o pro-jeto do futuro pode
conter como verdadeiro, real.
A questão que Adorno coloca a essa concepção é que todo o fluxo histórico
é sempre visto, investigado, sob o prisma do universal. Diríamos que, paradoxalmente, a
mesma abstração do eu kantiano é transposta para esse olhar astucioso da razão teológica
universal que pretende reconhecer-se no embate cego da forças particulares em Hegel:
Seu espírito universal [Weltgeist ] é a ideologia da história da natureza. Ela se chama espírito
universal por causa de sua violência. A dominação torna-se absoluta, projetada no próprio ser, que
é o espírito. Mas a história, a explicação de algo que sempre já deve ter sido, adquire a qualidade do
anistórico. Hegel volta-se, em meio à história, para o lado do imutável, do sempre-o-mesmo, da
identidade do processo, cuja totalidade é glorificada. Ele deve ser vin culado de modo nãometafórico à mitologia da história. (ND 350)
pura:
Contra Kant, Adorno diz que o tempo não deve ser concebido como forma
De fato, seria academicismo ruim se a dialética fosse atribuída ao conceito de tempo expurgado de
todo conteúdo temporal. O tempo dialetiza-se à reflexão crítica, entretanto, como unidade
mediada de forma e de conteúdo. A estética transcendental de Kant não teria nada a responder à
objeção de que o caráter puramente formal do tempo como “forma da intuição”, seu “vazio”, não
corresponde a qualquer intuição que seja. (…) O tempo absoluto como tal, alienado de todo e
qualquer substrato fático que existe e transita nele, não seria mais absolutamente o que, segundo
Kant, o tempo, inapelavelmente, tem que ser: dinâmico. Nenhuma dinâmica sem aquilo no qual
ela se realiza. Por outro lado, não há como representar-se alguma facticidade que não possuísse sua
posição no continuum do tempo. A dialética carrega essa reciprocidade até mesmo no âmbito mais
formal: nenhum dos momentos essenciais e que se contrapõem aí existe sem o outro. (ND 325-6)
A mesma objeção que se fez ao cogito cartesiano, de que o pensamento
somente pode se conceber como tal a partir de seu objeto, a consciência do tempo
somente pode ser o que é pelo fato de que há coisas que estão no tempo. Ora, a
concepção do preenchimento material do tempo está vinculada diretamente à concepção da
alteridade em relação ao sujeito, a suas formas de intuição e de pensamento. A marcha do
pensamento esclarecido teve a direção prioritária de ratificar a autonomia do espírito. O
capitalismo não apenas empobreceu nossos sentidos físicos em função da hipóstase do
sentido abstrato do ter, como disse Marx, mas, também, o do sentido, da percepção, do
tempo histórico, devido à tendência majoritária da razão em hipostasiar sua autarquia frente a
seu outro, orientada pela idéia de progresso, que sempre teve, como sua conditio sine qua non,
o isolamento frente ao outro: “o momento mítico do progresso intramundano está em que,
como o reconheceram Hegel e Marx, ele ocorre sempre sobre as cabeças dos sujeitos e os
forma à sua imagem” 202. Que o leitor nos permita citar um trecho um tanto longo do
artigo “Progresso”, em que Adorno sintetiza de modo absolutamente didático e magistral
a imbricação entre o solipsismo do espírito e a negação de seu caráter dinâmico:
A realidade produz a ilusão de desenvolver-se para cima e, no fundo, permanece sendo o que era.
O espírito que quer algo novo, enquanto ele mesmo não é mais que uma engrenagem, dá com a
cabeça na parede em cada tentativa desesperadamente reiterada, tal como um inseto que se
chocasse contra o vidro ao voar para a luz. O espírito não é o outro, tal como ele se entroniza a si
mesmo, transcendente em sua pureza, mas, também, é parte da história natural. Já que esta se
apres enta como dinâmica na sociedade, o espírito — desde os Eleatas e Platão — crê possuir em
si mesmo o outro, em imutável identidade consigo mesmo, apartado da “civitas terrena”, e suas
formas — antes de mais nada a lógica, intrínseca em estado latente a todo o espiritual em geral —
são feitas sob medida para esse padrão. Nelas, o espírito cai sob o poder estacionário, ao qual
resiste, e do qual, mesmo assim, continua fazendo parte. Pelo feitiço que a realidade impõe ao
202 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel.
Petrópolis: Vozes, 1995, p.54.
162
espírito, fica-lhe vedado fazer aquilo que, em oposição ao meramente existente, o seu próprio
conceito quer: voar. Sendo mais delicado e fugaz, é também muito mais suscetível à opressão e à
mutilação. 203
É precisamente esse nó entre o solipsismo do espírito e o empobrecimento
da historicidade que pretendemos desfazer em termos teóricos no restante desse capítulo,
e isso através da investigação do vínculo que se pode estabelecer entre um modo de
experienciar a alteridade em que esteja em jogo a irrupção da dinâmica histórico-temporal.
Essa tarefa será cumprida em duas etapas, em que investigaremos o que consiste o
contato com essa alteridade de modo enfático — a experiência do sublime — e o caráter
de historicidade para tal experiência na arte a partir da Teoria estética de Adorno.
2. Transcendência e alteridade: o sublime em questão
a) A pertinência do conceito de sublime
Dentro de um movimento que qualificaríamos como próprio da tendência
contemporânea de desfazer diferenças qualitativas, o conceito de sublime —
tradicionalmente vinculado à grandeza, à imponência, à desmesura física e intelectual — é
visto como não mais nitidamente distinguível do de beleza — tradicionalmente vinculado
à idéia de harmonia, de ordem, de limitação, de continência —, carecendo, assim, de
relevância como categoria per se. A arte moderna é que teria propiciado o impulso para essa
homogeneização das duas noções, posto que os elementos negativos nela presentes, tais
como a cacofonia e a dissonância na música, a ininteligibilidade da poesia, o feio e
desordenado na pintura, etc. — que se vinculariam à noção mais tradicional de sublime
—, acabam entrando em um continuum, em uma totalidade, que acaba passível de ser
açambarcado pelo conceito de beleza. O próprio Adorno situa-se nessa tendência, posto
que, na Teoria estética, fala do belo natural e do sublime como se ambos se fundassem em
um mesmo solo comum, o da alteridade indeterminável conceitualmente em relação ao
sujeito. Em relação ao poder da arte moderna de lidar com o feio, ele diz:
O peso deste elemento aumentou na modernidade de tal forma que surge daí uma nova qualidade.
Segundo a estética tradicional, aquele elemento contradiz a lei formal que domina a obra, é
integrado por ela e a confirma através disso, aliado à força da liberdade subjetiva na obra de arte
frente aos temas. Estes, entretanto, tornar-s e-iam belos em um sentido mais elevado: através de
sua função na composição pictórica, por exemplo, ou na produção de um contrapeso dinâmico
(…). (ÄT 74-5/60)
Ora, uma vez que nossa argumentação se funda precisamente no conceito
de sublime, é de se esperar que possamos argumentar a favor da possibilidade de distinguilo de modo legítimo do de beleza. A pergunta que se faz é: por que se deve fazer essa
distinção? Por que ela é boa, necessária, pertinente ou verdadeira? Cremos que a melhor
maneira de responder a isso seja mostrando, inicialmente, que tal distinção pode ser clara
no âmbito da natureza, para, depois, questionar sua aplicação no caso da arte.
Há coisas na natureza que chamaríamos sem nenhuma dúvida de belas, mas não
de sublimes? Tomamos como certo que a resposta seja sim: uma folha de árvore caída no
outono; um canário; uma margarida; uma flor de laranjeira; um peixe de aquário simples;
uma pedra pequena de cristal e uma infinidade de outros seres são exemplos de seres a
que normalmente atribuímos o adjetivo “belo”, mas não o “sublime”. Por seu turno, há
coisas na natureza chamaríamos sem nenhuma dúvida de sublimes, mas não de belas?
203 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: op. cit., p.55-6.
163
Novamente tomamos como inequívoco que a resposta é sim: um trovão ocorrido perto de
nós; a fúria de um elefante; um furacão que arrasa uma cidade; um leão devorando um
antílope que agoniza; um terremoto avassalador e vários outros são exemplos de eventos
e de seres naturais em que o sublime é inequivocamente aplicável e em que o conceito de
belo não o é. 204 Isso nos indica, de início, que, mesmo que não tenhamos uma definição
clara de belo e de sublime, nossa concepção prévia, cotidiana, de ambos já nos capacita a
dizer que, em muitos casos, eles são nitidamente excludentes entre si. Por outro lado,
haveria casos em que poderíamos inequivocamente aplicar ambos os conceitos?
Novamente temos que dizer que sim: o céu estrelado; o mar, visto em sua profundidade
sem limites e em relativo repouso; uma cordilheira imensa; uma planície que se perde ao
longe, etc., são casos em que tanto podemos dizer que há beleza e sublimidade. Esse
entrelaçamento de ambos as noções deveria nos levar a desconsiderar a diferença entre
eles? – faz com que tenhamos que descartar tal distinção?
Ora, que haja a aplicação simultânea das duas idéias em vários casos não
nos autoriza a desprezar a consciência clara de que, como conceitos e em casos concretos, eles
podem ser distinguidos de modo satisfatório. E isso se dá não apenas em relação a
conceitos complexos como esses, mas, também, a outros simples e usados normalmente
no cotidiano: que haja várias coisas no mundo que não sejam perfeitamente legíveis sob o
conceito de “árvore”, situando-se entre um arbusto, uma planta grande, etc.,
evidentemente não nos autoriza a descartá-lo; e assim com todos os conceitos que temos.
Eles não podem ser tomados como responsáveis únicos pelo fato de não serem aplicáveis
clara e distintamente a tudo o que nos cerca. Esse mal-estar um tanto paranóico, típico da
mentalidade científica positivista em relação à ambigüidade do conceito, expressa
visivelmente um elemento do discurso teórico em geral que Adorno combate através da
idéia da forma de escrita filosófica do ensaio. Este é contra o procedimento filosófico que
opera através de definições prévias:
Sem apologia, assume a objeção de que é impossível saber acima de qualquer dúvida que idéia se
deveria fazer dos conceitos. Pois percebe que exigir definições estritas contribui há muito tempo
para eliminar, mediante a manipulação dos significados dos co n ceitos através de sua fixação, o
elemento irritante e perigoso das coisas, que vive nos conceitos.205
Embora seja necessário considerar esse elemento de opacidade do conceito,
é preciso, entretanto, considerar que isso não leva a simplesmente negar abstratamente
nossa capacidade de defini -lo, como Adorno também o afirma. A seguinte passagem,
relativa ao conceito de belo, bem pode servir para todo e qualquer conceito da estética ou
filosófico em geral:
Tão pouco se deve definir o belo, quanto desistir de conceituá-lo — uma estrita antinomia. Sem
categorias, a estética seria disforme, descrição relativístico -histórica do que foi visado alhures, em
diversas sociedades ou em diversos estilos, como beleza; uma unidade de caracteres destilada a
partir daí transformar-s e-ia inevitavelmente em paródia e destruir-s e-ia a seguir perante algo
escolhido concretamente. (ÄT 82/66)
Dado que há, como podemos perceber claramente pelos exemplos acima,
uma diferença substancial nas aplicações dos conceitos de sublime e de beleza, a pergunta
204 Em ambos os casos, entretanto, há que se notar que não se pode falar em geral que todas as margaridas são belas e
que todos os furacões são sublimes, seguindo-se a idéia kantiana de que o juízo estético é sempre singular, pois é
preciso ver, em cada caso se tais conceitos são efetivamente aplicáveis. Os exemplos mostram apenas aqueles seres e
eventos que normalmente são considerados belos ou sublimes devido à sua relativa homogeneidade de formas.
205 Theodor W. Adorno. “O ensaio como forma”. In: Theodor W. Adorno. Tradução de Flávio R. Kothe et ali. São
Paulo: Ática, 1986, p.176.
164
que resta a responder — que é a tarefa mais difícil e que ficará para o próximo item — é a
de se tais distinções podem ser percebidas também na arte.
Há que se considerar, também, uma questão que pode ser considerada
periférica, mas que se torna importante por envolver toda a determinação do âmbito da
estética. No exemplo que demos acima do leão devorando um antílope, alguém poderia
dizer que o conceito de belo seria aplicável na medida em que percebemos nesse ato toda
a “beleza” da ordem natural, que faz com que ela siga seu curso, com a luta pela
sobrevivência das espécies mais aptas, etc. Ora, esse argumento não é válido,
simplesmente porque a “beleza” que se pretende ver nele é propriamente conceitual, e, não,
estética. Trata-se de tomar o ato dos animais como figuração de alguma coisa que é pensada
como mais digna, nobre, elevada, que é a noção de ordem, de harmonia. Não se trata de
uma beleza estética, que é a que nos interessa. Mas poder-se-ia objetar, ainda, que não há
experiência estética pura, isenta de relações conceituais. Isso é correto, mas há algumas
maneiras de o elemento conceitual relacionar-se ao estético de modo a prejudicá-lo ou até
mesmo destruí-lo, como é o caso de se condenar uma obra de arte porque os valores
morais que ela veicula são abjetos, como racismo, etc. A arte não tem função moral direta,
ela não deve ser medida pela qualidade de seus enunciados cognitivos ou morais. Que ela
tenha elementos dessa espécie, isso é verdade, mas eles devem ser considerados partes de
sua constelação de momentos, não tomados como seu sentido total ou critério de valor.
Quanto ao entrelaçamento das noções de belo e de sublime, poderíamos fazer
uma comparação com os de forma e de conteúdo na Teoria estética de Adorno. “Contra a
divisão pedante da arte em forma e em conteúdo, é preciso insistir em sua unidade e
contra a concepção sentimental de sua indiferença na obra de arte, insistir no fato de sua
diferença subsistir ao mesmo tempo na mediação” (ÄT 221-2/169). Naturalmente, a
relação entre forma e conteúdo não é a mesma entre os dois conceitos que examinamos,
mas algo dessa idéia de Adorno poderia ser aplicada a estes, na medida em que somente
faremos justiça a ambas as idéias se concebermos, tanto sua diferença, quanto sua
semelhança, ou somente faremos justiça à diferença entre elas se concebermos sua
identidade e vice-versa.
Para caracterizarmos a especificidade do sublime, não há autor mais
significativo do que Kant, que forneceu uma concepção tornada modelo — ou, pelo
menos, referência obrigatória — para todas as reflexões contemporâneas sobre o tema.
b) A introversão da transcendência: o sublime kantiano
Vejamos, primeiro, a concepção kantiana da beleza para contrapor-lhe,
depois, o sublime.
O belo, em Kant, diz respeito a um comprazimento em relação a uma forma
de um objeto que nos parece possuir uma finalidade sem que, ao mesmo tempo,
tenhamos como explicar conceitualmente por que temos essa percepção. Parece que tal
forma foi feita para nos dar prazer, para se adequar a nós, sem que consigamos
estabelecer intelectualmente um fundamento para essa percepção. Em termos de
estruturação formal do objeto, isso significa, nas palavras de Kant, que ele é conforme a
fim (final, finalístico) sem que haja um fim estabelecido conceitualmente: “beleza é a
forma da conformidade a fim de um objeto, desde que ela, sem representação de um fim,
seja percebida nele” (KdU B 61).
A beleza em Kant é propriamente formal, na medida em que diz respeito a
um processo de contemplação do objeto, sem que esteja em jogo o prazer que tenhamos
pela materialidade dele. Isso significa que não é a sensação advinda do contato com a coisa
que é fonte do prazer da beleza, mas, sim, a mera forma do objeto, a qual provém de uma
165
postura ativa do sujeito no seu contato com o mundo. Nas palavras de Kant, o gosto, a
faculdade de apreciar a beleza das coisas, não tem interesse pela existência material do
objeto que julgamos belo. Tal interesse existe quando julgamos algo agradável (que agrada
mediante a mera sensação) ou bom (útil para alguma coisa ou bom moralmente); nesse
primeiro caso, o objeto agrada meramente em termos materiais, no segundo, através do
preenchimento material de algum conceito determinado.
Diferentemente do prazer do agradável, que é meramente individual, a
beleza contém universalidade. O prazer da beleza é de tal modo constituído, que
gostaríamos que todas as pessoas concordassem com nosso juízo sobre a beleza do
objeto. Essa concordância, todavia, não é baseada em conceitos, como é o caso do prazer
do bom, ou de qualquer juízo sobre as propriedades objetivas de algo. Ela se funda no
fato de que, numa representação sensível pela qual um objeto é trazido a nossa
consciência, a imaginação, a capacidade de formar imagens das coisas, fornece uma
unidade para o múltiplo da representação, cuja unidade contém aquela conformidade a
fim, sem que o entendimento, a faculdade dos conceitos, consiga abranger essa
conformidade a fim com um conceito determinado (de fim). Essa situação, em que a
faculdade imaginativa não está submetida — ao contrário do que normalmente acontece
— a uma determinação conceitual, caracteriza o que Kant chama de livre jogo entre ela e
o entendimento. A universalidade do juízo de gosto, pelo qual atribuímos beleza a um
objeto, reside precisamente em que esse livre jogo se dá em um âmbito que escapa das
determinações individuais da esfera da sensibilidade. Trata-se de uma atividade
meramente formal, diz Kant, que ocorre em uma esfera na qual todos os homens podem
concordar entre si, sem a mediação dos conceitos. É como se todos nós possuíssemos um
sentido comum, uma faculdade universal de sentir, de perceber, nosso estado mental como
prazeroso.
Mas note-se: por mais universal que o juízo sobre a beleza pretenda ser, há
duas observações importantes. A primeira diz respeito à factualidade da concordância
intersubjetiva. Não se trata de dizer que os homens efetivamente concordem que esse objeto
específico seja belo, pois o que acontece normalmente é que eles discordem. A
universalidade da beleza é tal que ela é o fundamento do juízo de gosto, ou seja, um dos
elementos que fazem com que tal sentimento seja prazeroso, é o fato de que gostaríamos
que todos estivessem julgando como nós nesse momento, isto é, conta como um
determinante de nosso prazer o fato de nos vermos livres, momentaneamente, da nossa
limitação individual no uso de nossas faculdades. Pode existir — o que é, aliás, mais
freqüente — que haja mais concordância entre algo considerado agradável, como o sabor
de um vinho, do que sobre algo belo, como uma obra de arte. A outra observação diz
respeito ao fato de que, embora a sensação não conte como fundamento para o juízo de
gosto, ela é necessária para que este aconteça. Somente numa representação sensível é que
podemos experimentar aquele livre jogo de imaginação e de entendimento. A beleza é,
para Kant, algo que somente seres sensíveis e racionais podem sentir. Nem animais, nem
deuses, poderiam fazê-lo.
Como a arte pode ser bela? Ela inclui um determinado conceito de fim,
posto que é o resultado da atividade humana, não da natureza, nem do mero acaso.
Entretanto, esse conceito não transparece na forma da obra. Segundo Kant, as belas-artes
têm sua especificidade precisamente pelo fato de que nós, conscientes de que se trata de
um produto humano, não percebemos esse fim em sua forma, o que significa dizer que as
belas-artes, embora sejam resultado de uma atividade orientada a um fim específico,
parecem ser natureza. O artista, para produzir essa obra, tem que possuir um talento, um
dom natural, em que ele coloca uma conformidade a fim nela sem que esteja consciente
166
das regras que segue ao fazer isso. Segundo Kant, esse talento é a genialidade, que é o
meio através do qual a natureza dá as regras à arte. Fazendo um contraponto, Kant diz
que a natureza, ao parecer bela, é tomada como arte (como se tivesse sido feita por um ser
sobre-humano para nos agradar), e a arte, ao parecer bela, é tomada como natureza (pois
não conseguimos discernir o fim humano posto em seus produtos). 206
Diante dessa caracterização sumária, podemos tirar dois elementos
argumentativos importantes sobre o belo: 1) ele é pensado essencialmente como harmonia
entre nós e o mundo e entre as faculdades da mente, e 2) diz respeito à delimitação formal
do objeto, uma vez que, para ajuizar beleza de algo, devemos poder apreender sua forma
em uma unidade da representação sensível. Ambas as características são negadas no
sublime.
Podemos dizer que as concepções kantianas do sublime e da moral
compartilham das duas características que vimos na negação do nome de Deus judaica:
negam ao âmbito sensível a positividade gnosiológica ou prática, ao mesmo tempo em
que a deslocam para o âmago recôndito da alma humana. Assim, ambas estão ligadas
intimamente. Como dissemos antes, Kant considerava sublime a proibição judaica de
formar uma imagem de Deus:
Este mandamento pode explicar o entusiasmo que o povo judeu sentia por sua religião em sua
época de civilidade, quando se comparava a outros povos, ou aquele orgulho que o maometismo
inspirou. Precisamente o mesmo vale também para a representação da lei moral e da disposição
para a moralidade em nós. É uma preocupação totalmente equivocada pensar que, se se retira dela
tudo aquilo que ela pode recomendar aos sentidos, então ela não perceberá em si nenhuma outra
aprovação além de uma fria e enfraquecida, nem alguma força motriz ou comoção. É exatamente
o contrário; pois lá, onde os sentidos não vêem nada mais diante de si e, entretanto, ainda resta a
inelidível e indissolúvel idéia de eticidade, seria necessário moderar o ímpeto de uma imaginação
ilimitada, para não deixá-lo alçar o entusiasmo, mas, em vez disso — por medo da fraqueza dessas
idéias —, ajudá-las com imagens e um aparato infantil. (KdU B 125-6)
A depreciação hiperbólica da intuição frente à infinitude do espírito está na
base, tanto da moralidade — como já tivemos a oportunidade de comentar —, quanto do
sublime kantianos. Vejamos como esse último está delineado na Crítica da faculdade do juízo.
Em Kant, o sentimento do sublime, como um juízo estético puro, ou seja, que
se funda somente na relação entre as faculdades da mente (no caso, imaginação e razão), e
não em conceitos ou nas sensações provenientes dos sentidos, caracteriza-se
primeiramente pela insuficiência da imaginação em fornecer uma unidade para o múltiplo
dos dados da sensibilidade. Ou seja, na contemplação do objeto, aquela faculdade
experimenta um fracasso essencial na atividade que lhe é própria, a de fornecer uma
totalidade do que lhe é apresentado pelos sentidos, isto é, a de dar uma forma para aquilo
que é objeto da intuição sensível. Nesse primeiro momento, tal objeto (e
conseqüentemente a própria atividade da imaginação) parece ser contra-final [zweckwidrig]
para a mente considerada em sua totalidade, ou seja, o esforço [Bestrebung] da imaginação
em apresentar numa totalidade intuitiva a infinidade (ou quase infinidade) do que lhe vem
através dos sentidos é percebido como desarmonia entre ela e a razão, o que nos mostra
que o estado da mente do sujeito é de desprazer. O papel desse fracasso é importante, tanto
para nossos argumentos, quanto para a interpretação do texto kantiano como um todo.
Lyotard enfatiza tal momento como essencial e fundante do sentimento do sublime:
(...) essa grandeza [da natureza — vf] só é bruta, e só suscita o sentimento sublime, porque escapa
da forma, porque é ‘informe, formlos oder ungestalt’ (KdU 128). E é esta ‘ausência de forma, esta
206 Sobre a beleza artística em Kant, veja-se todo o primeiro capítulo de nossa dissertação de mestrado, intitulado
precisamente “O conceito de forma da obra de arte na Crítica da faculdade do juízo de Kant”.
167
Formlosigkeit’, que Kant evoca para começar a análise do sublime pela quantidade (KdU 90). 207
Outro autor que também pensa desta forma é Wolfgang Bartuschat, que
diz: “O sublime ganha (...) sua característica primeiramente através da posição que resulta
da tendência de quebrar toda estrutura [Gestalt] formada tal como o belo a apresenta”208.
Entretanto, se formos considerar a letra do texto da Crítica, como nos mostra Allan
Lazaroff, aquela insuficiência imaginativa não seria sempre necessária. O seguinte trecho da
Crítica da faculdade do juízo mostra essa ambigüidade:
O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação; o sublime, ao contrário,
deve ser encontrado também (grifos nossos) em um objeto sem forma, desde que seja representada
ilimitação nele, ou por sua ocasião, mas que seja pensada, além disso, totalidade dessa ilimitação (...)
(KdU B 75).
Lazaroff chega a dizer, baseado nessa passagem e em sua interpretação do
final da seção sete da Introdução, que o sublime “concerne antes a algo diverso de forma
e, assim, não se relaciona a forma ou a sua ausência” 209. Seguindo-se toda a “Analítica do
sublime”, todavia, podemos perceber que a ênfase que Lyotard coloca na impossibilidade
da imaginação em conceber a forma do objeto deve ser considerada mais pertinente do
que a importância conclusiva que Lazaroff dá à passagem que citamos acima. Com efeito,
mesmo que possamos dizer que Kant considere a possibilidade de algo com forma
proporcionar o sentimento de sublimidade, o que desperta tal sentimento é antes a
impossibilidade, em uma determinada situação, de a imaginação fornecer uma totalidade
intuitiva do objeto. Nesse ponto, Adorno concordaria com essa concepção kantiana que
estamos enfatizando, pois diz que o sublime se relaciona ao problema da apresentação do
infinito, e este, enquanto tal, naturalmente não comporta a idéia de uma totalidade
formal.210
Mas isso é apenas o começo — e que assim o seja é, como veremos, de
grande importância. A impossibilidade de a imaginação fornecer uma limitação para a
multiplicidade intuitiva não é ainda o sentimento do sublime. Se fosse, este seria um
sentimento de desprazer apenas, e não de prazer. Este último vem, segundo Kant, do fato
de que, embora a atividade da imaginação seja, em um primeiro momento, contra-final,
entretanto o próprio fracasso da imaginação é considerado como conforme a fim
[zweckmäßig] para a razão, em que há “a exigência de totalidade absoluta, como de uma
idéia real” (KdU B 85); trata-se de idéias práticas da razão: Deus, liberdade e imortalidade
da alma. Devido precisamente ao entrelaçamento entre o esforço — constitutivamente
irrealizado — da imaginação de um progresso ao infinito e tal exigência da razão de
tornar sua idéia algo real, efetivo, então “aquela inadequação mesma da nossa faculdade
da estimativa da grandeza das coisas do mundo dos sentidos é, para aquela idéia, o
despertar do sentimento de uma faculdade supra-sensível em nós” (idem). Que a
207 Jean-François Lyotard. Lições sobre a Analítica do Sublime. Tradução de Constança Marcondes Cesar. São Paulo:
Papirus, 1993, p. 78.
208 Wolfgang Bartuschat. Zum systematischen Ort von Kants Kritik der Urteilskraft. Frankfurt: Vitorio Klostermann, 1972,
p.120. (Grifos nossos)
209 Allan Lazaroff. “The Kantian sublime: aesthetic judgement and religious feeling”. In: Kant-Studien, Berlin:
Walter de Gruyter, 1980, vol. 71, caderno 2, p. 206.
210 Devido exatamente a essa dificuldade é que Lyotard formula da seguinte maneira, sem responder, a questão: “(...)
é possível, e como, testemunhar o absoluto por meio de representações artísticas e literárias, que são sempre
submetidas a formas?” Jean-François Lyotard. Lições sobre a Analítica do Sublime. Tradução de Constan ça Marcondes
Cesar. São Paulo: Papirus, 1993, p.144.
168
imaginação, diante de seu fracasso, passe a ter uma finalidade que lhe escapa, ou seja,
apresentar o que ela não mais consegue delimitar formalmente como uma representação das
idéias da razão, aí precisamente surge o sentimento do sublime, pois, nesse momento, o uso
que a faculdade do juízo faz do objeto é grande acima de toda comparação, ou seja,
infinita- e absolutamente grande. Mas a descoberta dessa faculdade supra-sensível, que é
auto-referente tanto por estar acima dos dados sensíveis quanto por ser grande acima de
toda comparação, somente é alcançada porque o sujeito está em contato com algo que lhe
é exterior, que é um outro em relação a ele. A ipseidade absoluta daquela faculdade apresentase, portanto, paradoxal — o que foi muito bem delineado por Bartuschat:
(...) a maneira em que o sublime pode se tornar objeto do sujeito é aquela em que o sujeito tem
que tornar intuitivo o sublime como expressão de um poder residente no sujeito, isto é, tem que
relacionar expressamente este poder a um outro, para sentir, a partir de lá, o que ele pode como
sublime. (...) O sublime é um tal [ser sentido, Gefühlwerden — vf] que traz à apresentação uma
determinada faculdade do sujeito no “outro” do sujeito e somente nisso deixa ver a faculdade
enquanto faculdade. 211
O sentimento do sublime resulta, portanto, de uma dupla reflexão:
primeiramente da inadequação da atividade imaginativa em relação ao nosso ímpeto de
conhecer as coisas, em que a tentativa frustrada da imaginação de abarcar numa totalidade
intuitiva o infinito parece ser contra-final para a razão — o momento do desprazer, como
mediação do sublime; depois, de uma nova reflexão, em que o próprio fracasso da
imaginação é tomado como conforme a fim para as idéias da razão; ou seja, o jogo das
faculdades, que, considerado em si mesmo, somente pode suscitar desprazer, é prazeroso
apenas na medida em que é referido a algo “para o qual o próprio fracasso é fonte de
prazer, e que não pode ser o próprio jogo-comum [Zusammenspiel] dos poderes na forma
de um jogo imanente de imaginação e razão”212, que é, segundo Kant, “o sentimento de
nossa determinação supra-sensível” (KdU B 98) enquanto faculdade que está em nós e
que, assim, ultrapassa as determinações sensíveis. O sublime, portanto, não deve ser
referido a nenhum objeto sensível, mas somente a um determinado estado da mente, que
se mostra destarte auto-referente.
Essa caracterização deve ser pensada em relação às duas possibilidades de a
natureza despertar o sentimento de sublimidade: o matematicamente-sublime e o
dinamicamente-sublime. O primeiro está ligado à infinitude atual da grandeza física dos
objetos, como o céu estrelado, uma cordilheira que se perde no horizonte, etc.; o
segundo, à infinitude de poder do objeto frente ao sujeito, o qual se vê totalmente
desprovido de forças físicas para resistir minimamente, que é o caso da visão das forças
de uma catarata gigantesca, da fúria de um tornado, etc. Nesse último caso, salienta Kant,
é necessário que o espectador esteja em segurança, sem estar ameaçado de modo real em
sua integridade física, pois, caso contrário, não seria possível haver o elemento próprio
dos juízos estéticos, que é a contemplação. O perigo real retiraria esse distanciamento
necessário para configurar-se a esfera da esfera estética propriamente dita. Em ambos os
casos de sublimidade, trata-se daquela dinâmica subjetiva que apontamos, em que a
impossibilidade de abarcar a infinitude (seja de magnitude ou de poder) em uma
representação sensível faz a imaginação tomar essa sua insuficiência como uma apresentação
negativa da infinitude das idéias da razão.
211 Wolfgang Bartuschat. Op. cit., p.126-7.
212 Wolfgang Bartuschat. Op. cit.,, p.122.
169
Mas há varias representações do que seria o sublime em que tal sentimento
estaria vinculado precisamente a um delineamento positivo do objeto que nos causaria tal
comoção. Seria o caso do mal sublime, que parece sempre ligado a uma imagem positiva
da transcendência, como Kant diz sobre algumas religiões e sobre alguns governos (Cf. KdU
B 126), nos quais o elemento de consolo, de compensação, pela fraqueza ou pela nulidade
física é absorvido e utilizado como manipulatório.
Entretanto, apesar de negar veementemente toda positividade para a
atividade da imaginação, insistindo na negatividade do prazer do sublime, a concepção
kantiana fornece a estrutura teórica acabada da introjeção secularizada dessa imagem
positivamente posta nas religiões. A força moral e o caráter de absoluto do sujeito são, não
apenas afirmados — como sublinha Adorno (cf. ÄT 396/297) —, mas, também, tomados
como aquilo que tomou, na ética protestante, o lugar da fonte privilegiada da lei divina,
que, no catolicismo, assumia uma exterioridade cristalizada na figura da Igreja. Essa
interioridade do sujeito, mesmo negando a positividade do transcendente, transformou-se
na fonte de compensação e de consolo para sua própria fraqueza física. A positividade da
imagem, embora recusada inicialmente, permaneceu, dissimulada pela negação da imagem
externa, mas traída na constituição de uma interna: a afirmação da autonomia moral
corrompe a intenção de tomar a sério a negatividade da imagem no sublime. O que Baldine
Sint Girons diz do sublime kantiano, que ele deixou de ser estético para se tornar
intelectual 213, pode ser expresso de uma maneira mais enfática e aguda pela qualificação de
ensejo para a apologia do sentimento cristão-pietista de reforço hiperbólico da interioridade
do sujeito que tem fé, alheio à sociedade. Kant diz explicitamente que a recusa do
convívio social é, ela própria, sublime: “ser suficiente para si mesmo, portanto não
precisar da sociedade, sem, entretanto, estar só, isto é, sem fugir dela, é algo que se
aproxima do sublime, tal como toda elevação acima das carências” (KdU B 127).
Essa introversão do transcendente tem relação forte com a genealogia
imagética da própria transcendência. Uma vez que a morte é o obstáculo intransponível, que
atesta a superioridade da natureza (cujos reflexos, atualmente, fazem-se presentes na
ameaça constante do desemprego no capitalismo, no qual o trabalhador é efetivamente
livre para morrer de fome), não resta ao indivíduo, diz Schiller, nenhuma outra alternativa
frente ao desespero da nulidade que não
suprimir total e absolutamente uma relação que lhe é desvantajosa e aniquilar, segundo o conceito, uma
violência que ele, de fato, tem que sofrer. Aniquilar uma violência segundo o conceito, entretanto,
significa nada mais do que se submeter a ela espontaneamente. A cultura que o torna capaz disso
chama-se a [cultura] moral. 214
Nós experienciamos, através do sentimento do sublime, que o estado de nosso espírito não se guia
necessariamente pelo estado dos sentidos; que as leis da natureza não necessariamente são também
as nossas; e que temos em nós um princípio autônomo que é independente de toda comoção
sensível. 215
213 Baldine Sint Girons. “Sublime (Philosophie)”. Paris: Encyclopaedia Universalis, 1990, p.724.
214 Friedrich Schiller, “Über das Erhabene”, In: Sämtliche Werke. München: Carl Hanser, 1989, p.794. Estamos
apoiando nossa interpretação crítica de Kant na leitura que Schiller faz do sublime kantiano, porque, como o próprio
Kant já afirmara e Heidegger também disse, ele foi “o único que, relativamente à doutrina kantina do belo e da arte,
compreendeu o que lhe era essencial” (fala de Heidegger citada por Lacoue-Labarthe em “La verité sublime”, in:
Jean-François Courtine et al. Du sublime. Belin, 1988.)
215 Friedrich Schiller, op. cit., p.796.
170
O sujeito, que tem sua ipseidade ancorada no sentimento moral, é tomado
como consolo metafísico para a impotência de sua condição de um ser de natureza. A
faculdade moral acaba usurpando o lugar da transcendência religiosa ao glorificar sua
independência perante a natureza. Como diz Adorno,
(…) o que é fixo, permanente, impenetrável do Eu é mímesis do que é percebido pela consciência
primitiva como impenetrabilidade do mundo exterior para a consciência que o experiencia. A
impotência real do sujeito tem seu eco na onipotência deste. O princípio do Eu imita sua negação.
(…) Sua auto-elevação é reação à experiência de sua im potência, que impede a auto-reflexão; a
consciência absoluta é a-consciente. A filosofia moral de Kant fornece um grande exemplo disso
na insofismável contradição de que o mesmo sujeito, que, segundo ele, é livre e sublime, é,
enquanto ente, uma parte do contexto natural, a que sua liberdade se subtrai. (ND 181)
Na Crítica da razão pura, como já vimos, Kant diz que retirou espaço do
saber para dar lugar à fé; no sublime, poderíamos dizer que ele retirou o espaço da fé —
tomada como impulso determinado à idéia de um Deus efetivamente existente —, para
dar lugar à autonomia do sujeito, à moral. Mas a fé permanece nessa autonomia moral,
posto que ela já é resultado do deslocamento copernicano na apreensão do mundo, ou
seja, a fé participa da constituição do mundo a partir das categorias subjetivas e está
precisamente ancorada na diminuição do espaço do saber; o que acontece no sublime é a
reaplicação — ou se se quiser, a radicalização — do giro copernicano da esfera cognitiva,
agora no âmbito da fé, que fica expurgada do resíduo “realista” que poderia ainda
impregnar-lhe na constituição imagética daquilo que é objeto da fé.
A redenção kantiana da esfera inteligível não é apenas, como todos sabem, apologética protestante,
mas, sim, gostaria também de intervir na dialética do esclarecimento onde esta culmina na
demissão da razão. Mas o quanto a ânsia kantiana de redenção se funda somente no desejo crédulo
de manter algo das idéias tradicionais em meio ao nominalismo e co ntra ele é testemunhado pela
construção da imortalidade como um postulado da razão prática. Isso condena a insuportabilidade
do existente [ Bestehenden] e reforça o espírito, que a conhece. (ND 377-8)
Na concepção kantiana, a transcendência foi positivamente colocada no âmbito
interno da moral, o que pode ser visto de modo claro, também, na insistência de Kant pelo
cultivo de idéias morais como condição para a experiência do sublime (Cf. KdU B 112).
Mas se nem o objeto nem o sujeito devem se situar nesse ponto que delineia, mesmo que
de modo sublimado ou transfigurado, o que transcende a imanência natural, então o que
poderia fazê-lo?
c) Da transcendência à alteridade
A resposta a essa questão será dada, aqui, através de uma mudança de
paradigma conceitual. Embora a concepção de Kant não seja a única forma aceita nas
estéticas moderna e contemporânea, ela estabeleceu um paradigma importante, que foi a
vinculação entre a grandeza e o poder desmesurados a uma qualidade espiritual
mediatizada. Adorno vê, nesse ponto específico, uma qualidade louvável da estética
kantiana, na medida em que essa interiorização do significado da imponência natural
exprime uma concepção progressista do sujeito:
Kant já não elidia de forma alguma que o quantitativamente grande não era sublime como tal: com
toda razão [mit tiefem Recht] ele definiu o conceito de sublime através da resistência do espírito
contra o poder. O sentimento do sublime não se aplica imediatamente ao que aparece; as altas
montanhas falam como imagens de um espaço liberto de cadeias e de entraves, e da possível
participação nessa liberdade, não na medida em que esmagam. (ÄT 296/225; tradução própria)
Embora a estética de Adorno possa ser perfeitamente compreendida como
uma apologia da arte moderna, com sua recusa reiterada dos ideais clacissistas, a estética
da natureza desempenha um importante papel na conceituação do que seja a própria
171
arte.216 Segundo Adorno, a estética da natureza foi relegada a uma posição francamente
desfavorecida a partir da estética de Hegel, cuja apologia das formas espiritualizadas da
beleza levou a uma supremacia irrestrita da arte como manifestação do espírito absoluto.
A última manifestação enfática da importância estética da natureza teria se dado no
pensamento de Kant. No que toca ao conceito de sublime, segundo Adorno, a admiração
kantiana pela natureza em sua grandeza e em sua imponência foi, na história da arte,
efêmera. A auto-reflexão artística tomou consciência de que a grandiosidade na arte,
enquanto figuração de temas pomposos, era índice de amusia, pois o que a arte cada vez
mais tomou para si como próprio dela não coincidia com o que se pode ler imediatamente
em seus temas e materiais. “Ta mbém a grandeza abstrata da natureza, que Kant ainda
admirava e comparava à lei moral, é olhada como reflexo da megalomania burguesa, do
gosto pelo record, da quantificação, e também do culto burguês dos heróis” (ÄT 110/86).
Apesar de esse elemento de grandiloqüência existir efetivamente na concepção kantiana,
ele não deve nos fazer ignorar um outro que aponta para um conteúdo de verdade
presente nela. Segundo Adorno, “acima de tudo, não se vê que esse momento na natureza
proporciona ao espectador algo de inteiramente diferente, algo onde a dominação
humana tem seus limites e que recorda a impotência da empresa [Getriebe] humana” (ÄT
110/86; tradução modificada).
Os dois elementos importantes que ressaltamos acima constituem dois
pontos de apoio fortes para os argumentos que serão explicitados em detalhes
posteriormente, a saber, o fortalecimento da esfera subjetiva e a ruptura para com o
contexto de entrelaçamento funesto da natureza e do espírito na rede categorial subjetiva.
Por enquanto, o que nos interessa é o tom geral da concepção do sublime derivada da
idéia de que este não tem seu momento de verdade vinculado à positividade da
transcendência, mas, sim, à relação de alteridade radical entre sujeito e objeto representada
na experiência estética.
Nesse ponto, é preciso focalizar um conceito que marca a diferença entre
uma e outra concepções, que é o de infinito. A tese que se pretende defender aqui é a de
que, em vez de pensar que o sublime seja uma relação com a infinitude, é de se conceber,
inicialmente, que o seja com a impossibilidade: de conceber um sentido, de empatia, de
conhecer, etc. A concepção metafísica do sublime, que Kant inaugurou, restringiu essa
impossibilidade à infinitude (matemática e de força) porque esta carrega uma
especificidade afim à herança religiosa (isto é, de transcendência positivamente dada) que
grande parte da filosofia possui, e que oblitera a consideração do sublime no âmbito do
humano por excelência. Precisamente por isso é que Th. Weiskel diz ser o sublime intrahumano algo contraditório: “sem noção alguma do além, ou discurso plausível do sobrehumano, o sublime soçobra ou torna -se um ‘problema’. Isso é verdadeiro tanto para o
Romantismo quanto para a Antigüidade. Diz Schiller: ‘o belo é valioso apenas em relação
ao ser humano, mas o sublime o é em relação ao puro demônio [dämon]’ no homem, ‘aos
estatutos do espírito puro’. Um sublime humanístico é um oxímoro” 217. Diríamos que a
história da filosofia tornou-o um oxímoro por sua própria conta, afunilando a noção de
alteridade radical para a de infinitude (de grandeza e de força), o que favoreceu a
216 Veja-se, a esse respeito, a definição da arte que Adorno reelabora a partir de Valéry como um movimento de
determinação da indeterminidade da beleza natural: “A arte não imita nem a natureza, nem um belo natural singular,
mas o belo natural em si. (...) ‘O belo exige talvez a imitação servil do que é indefinível nas coisas’ (Valéry)” (ÄT
113/89).
217 Thomas Weiskel. O sublime romântico. Estudos sobre a estrutura e psicologia da transcendência. Tradução de Patrícia Flores
da Cunha. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.17.
172
consideração de Kant de que somente a natureza (e em seu aspecto disforme, bruto) é
capaz de suscitar o sentimento de sublimidade. É preciso perceber que não rejeitamos in
totum idéia kantiana de considerar o sublime como resultado de uma reflexão segunda por
parte do sujeito: recusamos a consideração do momento de negatividade como residindo
no conceito de infinitude, e também, a consideração de que essa reflexão segunda seja
causada por uma espécie de compensação pela negatividade do fracasso de nossas faculdades
físicas ou intelectuais.
A nossa tese é: nem a natureza em sua sublimidade, nem a arte moderna,
dizem respeito à idéia de impossibilidade de apresentação do absoluto ou do infinito.
Trata-se, antes, de uma alteridade radical, isto é, não-conciliada. Ela retém alguma coisa da
transcendência metafísica que é a de distanciamento, de impossibilidade de conciliação
cognitiva, imaginária, de compreensão, etc., ou seja, trata-se de uma ruptura qualitativa
essencial entre sujeito e objeto. O afunilamento dessa ruptura qualitativa na infinitude de
grandeza e de força favoreceu a interpretação da reflexão segunda como sendo vinculada
àquilo que, no sujeito, ecoa a transcendência positivamente colocada no mundo através da
idéia de Deus. Por que esse favorecimento? Porque o infinito contém uma ruptura
qualitativa em relação ao sujeito que pôde ser apropriada pela metafísica como ameaça de
morte. Nesse aspecto, a interpretação schilleriana do praticamente-sublime como sendo
mais expressivo que o teoricamente-sublime — e isso devido ao fato do primeiro incluir
uma ameaça a toda a nossa dimensão sensível, leia-se: à nossa vida — é expressão
inequívoca disso. Mas essa morte também pode ser lida com toda a clareza na infinitude
matemática ou de grandeza. “O céu estrelado sobre mim” é uma imagem enfática de um
abismo em que o “retorno” do olhar não existe, como uma expiração que jamais se finda
para permitir que se aspire novamente para continuar vivendo. A vida é algo fundado
essencialmente na idéia de retorno, de possibilidade de voltar, de fazer de novo, de
recomeçar um ciclo, de chamar e de ser ouvido, de interagir, de comunhão, etc.; em
outras palavras, ela se funda em relações finitas — tudo isso é tragado pela infinitude do
cosmo. Essa é a imagem com que se leu a natureza de modo a projetar nela aquilo que,
afinal de contas, é o resultado do medo dos homens perante a própria natureza: a
divindade. Em suma: o medo perante a natureza é a origem da idéia de deuses, que,
sublimada, modificada e transformada, deu origem à idéia de transcendência, a qual, no
sublime, foi projetada na natureza como infinitude, que ressoa aquele mesmo perigo de
morte que a natureza infligia à mente dos homens infinitamente fracos perante ela — ou
seja, trata-se de uma série de ciclos viciosos, em que cada um deles sublima o anterior,
mantendo a mesma estrutura fundamental de superlativização da natureza perante os
homens.
A nossa tarefa, de agora em diante, é a de dizer em que consistiria, então, a
experiência do sublime como desvinculando-se desse contexto metafísico e voltando-se
para a idéia de uma alteridade radical entre sujeito e objeto — o que será feito através da
análise do conceito adorniano do sublime.
3. O sublime na Teoria estética
Diversos comentadores de Adorno propuseram uma interpretação do
conceito de sublime presente na Teoria estética.218 De todos eles, três merecem destaque
218 Veja-se, por exemplo, Martin Seel, “Dialektik des Erhabenen. Kommentare zur ‘ästhetischen Barberei heute’”.
In: Willem van Reijen & Gunzelin S. Noerr. Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987.
Frankfurt a. M.: Fischer, 1987, pp.11-40; Wolfgang Welsch. “Adornos Ästhetik: eine implizite Ästhetik des
Erhabenen”. In: Ästhetisches Denken. Stuttgart: Reclam, 1993, pp.114-156 (esta edição é uma reimpressão de um artigo
173
por sua originalidade: Welsch, Wellmer e Rosiek. Embora sua concepção seja a mais
antiga, Welsch é o que mais se aproxima do espírito geral de nossa tese de considerar o
sublime na sua qualidade de experiência estética propriamente dita, motivo pelo qual será
objeto de nossas considerações separadamente.
Wellmer, ao comentar o conceito de sublime na Teoria estética, vincula as
idéias de Adorno ao conceito de comunicação, concebido à luz da racionalidade
comunicativa de Habermas. Para Wellmer, o sublime adorniano poderia ser conc ebido
propriamente como um momento em que as relações não resolvidas entre o absurdo e o
sentido que se estabelece lingüisticamente adquirem a oportunidade de comunicação
através da arte: “comunicação do incomunicável, representação do irrepresentável são
características da arte, através das quais esta pode lidar com todos os possíveis aspectos de
nossa experiência do mundo”219. Apesar de essa concepção mostrar-se em grande parte
fiel ao texto adorniano e ser muito bem construída, ela tem uma estrutura argumentativa
que faz com que ela não tenha muita importância para nossos argumentos, uma vez que
os conceitos de falta de sentido e de comunicação que a sustentam derivam de um
paradigma filosófico muito distante da concepção filosófica de Adorno, que é o da
racionalidade comunicativa de Habermas. Wellmer quer substituir o pessimismo sombrio
que ele vê presente nas filosofias de Nietzsche e de Adorno pelo otimismo da concepção
política habermasiana. Não nos cabe, aqui, pois extrapolaria em muito os limites dessa
tese, entrar na questão de quanto os paradigmas filosóficos de Adorno e de Habermas são
inconciliáveis em vários aspectos; para uma abordagem desses aspectos já se tem uma
literatura farta.
O terceiro desses comentadores, Rosiek, produziu um verdadeiro tratado
sobre o conceito de sublime, tanto no que concerne a Heidegger, quanto a Adorno. De
todas as concepções sobre o sublime em Adorno, é a mais abrangente — dado que já no
número de páginas tem enorme vantagem, posto que, enquanto todos os outros
comentadores dedicaram apenas um artigo ou capítulo ao tema, Rosiek relegou-lhe mais
de 220 páginas. Apesar dessa proeminência, sua leitura está seriamente comprometida
pelo conceito geral de sublime que serve de baliza para toda sua obra, que é o da
“tradução religio-literária do metafísico” 220. O autor procura, em vários momentos,
ressaltar as ligações do sublime com a experiência religiosa e teológica, fazendo com que
aquilo que é concebido como o totalmente outro seja absorvido pela experiência do
sagrado. Trata-se de perceber a sublimidade como expressão estética do contato com a
transcendência religiosa. Com base nessa opção geral, ao tratar do sublime em Adorno,
Rosiek subjuga todos os elementos de ruptura da subjetividade à idéia geral de um
contato (positivo) com a transcendência.
Como o próprio autor diz, a partir do posfácio da edição original da Teoria
estética, esta obra foi escrita em um estilo paratático, em que vários conceitos posicionamse igualmente distantes de um centro temático, expresso por meio de uma constelação de
noções sem hierarquia definitória. Por causa dessa característica, qualquer abordagem de
publicado originalmente em 1989); Allbrecht Wellmer, “Adorno, Modernity, and the Sublime”. In: Max Pensky
(edt.). The Actuality of Adorno. Critical Essays on Adorno and the Postmodern. New York: State of New York Press, 1997,
pp.112-134 (esta edição é uma tradução de um artigo publicado originalmente em 1991); María Isabel Peña Aguado.
“Theodor W. Adorno. Die Transformation des Erhabenen in der Ästhetischen Theorie”. In: Ästhetik des Erhabenen.
Wien: Passagen-Verlag, 1994, pp.73-90; Jan Rosiek. Mantaining the sublime. Heidegger and Adorno. Berna: Peter Lang,
2000.
219 Allbrecht Wellmer, op. cit., p.131.
220 Jan Rosiek, op. cit., pp.3 ss.
174
algum tema específico dessa obra poderá facilmente priorizar alguma tendência
argumentativa ou outra, dependendo daquilo que se “colher” no emaranhado de
conceitos.
Falando sobre o sublime como uma promessa de um outro em relação ao
atual estado de coisas, Rosiek diz que
Adorno reitera que a própria forma da obra de arte é uma articulação da promessa que abre para o
outro; mas, mais que isso, a promessa é vista como uma garantia atual de sua possibilidade,
embora não ainda como uma garantia de sua existência atual. A articulação dessa pequena
esperança não é típica do discurso de Adorno sobre promessas; ele é mais apto a enfatizar as
rupturas do que sua realização potencial. 221
comentador:
Abordando a ligação entre a obra de arte e a transcendência, diz o
A transcendência sugerida pela obra de arte é sua “fala” ou “escrita”, mas fala e escrita que, devese observar, são “sem significado” — ou, para ser mais preciso, e, de fato, faz muita diferença —
“com um significado truncado ou velado” (ÄT 122/96). O adjetivo “velado”, zugehängter, indica
uma cobertura por uma cortina de teatro e a ocultação da cena da transcendência mencionada
anteriormente. (…) no que se segue, tentarei levantar a cortina. 222
A primeira passagem mostra o reconhecimento por parte de Rosiek de que
Adorno está mais próximo da negação de uma efetividade da promessa da alteridade
transcendente do que de sua afirmação, e insiste, apesar disso, em ressaltar o aspecto
afirmativo em sua análise. A segunda passagem mostra como Rosiek opta, explicitamente,
por romper com o paradigma adorniano de manutenção da idéia de que o significado
transcendente da arte permanece velado. Ora, como veremos, essas duas opções
interpretativas ferem totalmente o cerne da filosofia de Adorno.
Embora todo o texto de Rosiek seja muito bem elaborado, com muitos
detalhes, com muitas referências textuais e bem argumentado, todo seu vigor
interpretativo foi dirigido em prol de uma concepção parcial e, principalmente,
tendenciosa. Não é por mero acaso que a primeira metade do livro seja dedicada a
Heidegger, um filósofo que Adorno procurou combater em vários momentos,
principalmente em Jargon der Eigentlichkeit e em toda a primeira seção de sua principal obra,
a Dialética negativa. O livro de Rosiek pretende interpretar a ontologia fundamental de
Heidegger e a dialética negativa de Adorno a partir de uma mesma concepção religiosa do
sublime, chegando até, no final do livro, a apontar convergências filosóficas dos dois
pensadores.
No início da abordagem sobre o sublime em Adorno, Rosiek faz um
apanhado das concepções de Wellmer e de Bohrer, deixando de lado o texto de Welsch,
que, segundo ele, não compartilha da idéia diretiva geral do sublime como vinculado à
metafísica. Ora, precisamente esse motivo que levou Rosiek a desconsiderar a concepção
de Welsch leva-nos a toma-lo como significativo para estudarmos o sublime em Adorno.
a) Sublime como justiça ao particular
Segundo Wolfgang Welsch, toda a filosofia da arte de Adorno é uma
“estética implícita do sublime” 223; ele interpreta toda a Teoria estética como concebendo a
221 Jan Rosiek, op. cit., p.383.
222 Jan Rosiek, op. cit., p.390-1.
223 Wolfgang Welsch. “Adornos Ästhetik: eine implizite Ästhetik des Erhabenen”. In: Ästhetisches Denken. Stuttgart:
Reclam, 1993, (doravante referido como ÄD no corpo do texto), pp. 114.
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arte essencialmente a partir dessa categoria. Tal interpretação tem sua validade em algumas
de suas colocações, mas se mostra equivocada em algumas passagens, principalmente no
que concerne à sua concepção do conceito de reconciliação em Adorno.
Aquilo que caracteriza de modo mais resumido a posição de Welsch é a de
que a Teoria estética deve ser lida como um abandono crescente da idéia de reconciliação
[Versöhnung] na arte em favor da de justiça [Gerechtigkeit] ao particular, às suas contradições,
movimento em que o sublime se mostra como o ponto teórico mais relevante e
inequívoco a este respeito. Welsch estabelece as relações Versöhnung-belo e Gerechtigkeitsublime. O conceito de belo estaria ligado à idéia de reconciliação dos conflitos dos
particulares, e o sublime, à de exposição não-conciliada das contradições e antinomias
entre eles: o foco da arte passaria então “da reconciliação para a irreconciliabilidade, do
nivelamento das contradições para sua articulação, da aparência de salvação [Erlösung] para
a evidência do conflito” (ÄD 134). Segundo o autor, a idéia de reconciliação na obra de
arte deve ser enfraquecida até se tornar apenas uma figura de pensamento, apenas uma
maneira (cada vez menos potente) para se pensar a arte na Teoria estética. O belo seria,
“segundo toda sua estrutura, apenas um pseudônimo para o sublime” (ÄD 122), ou seja,
onde Adorno fala da beleza estaria em jogo propriamente este último, que seria, por assim
dizer, o que caracteriza mais essencialmente todo o pensamento de Adorno sobre a arte.
Para fundamentar sua posição, Welsch parte da crítica explícita que Adorno
faz aos procedimentos sublimes em algumas formas de arte, as quais tomam objetos já
considerados sublimes enquanto matéria ou tema [Stoff], o que caracterizaria o que
Adorno chama de sublime oco [hohles Erhabenes] (cf. ÄT 294):
Que obras adquiram a sua dignidade ao ocuparem-se de quaisquer acontecimentos sublimes —
cuja sublimidade é quase sempre apenas fruto de ideologia, de respeito do poder e da grandeza —
é desmascarado desde que Van Gogh pintou uma cadeira ou alguns girassóis de tal modo que os
quadros ribombam com a tempestade de todas as emoções, em cuja experiência o indivíduo da sua
época registrava pela primeira vez a catástrofe histórica. (ÄT 224/171)
Mas não é toda concepção de sublime que deve ser evitada, mas sim aquelas
que deturpam a verdadeira. Como início histórico dessa categoria, considerou-se sublime
um conceito bombástico de espírito, considerado um dominador e opressor da natureza,
como Adorno vê em Kant: “a ‘grandeza do homem como um espiritual e que oprime a
natureza’ (ÄT 295) forma o ponto de partida da carreira do sublime” (ÄD 118). Segundo
Welsch, Adorno nega essa concepção em favor de sua transformação: “da dominação
sobre a natureza para a experiência da própria naturalidade” (idem). Essa passagem seria
feita a partir da concepção da natureza como um poder infinito que não pode ser
dominado, em que ela é vista não como aquilo que oprime efetivamente, mas que
participa em uma libertação da constrição subjetiva. Haveria, assim, um duplo movimento
rumo à liberdade: “emancipação do sujeito da obrigação de domínio soberano sobre a
natureza”, experimentado por ele como um abalo [Erschütterung] de sua subjetividade, “e
libertação da natureza da ‘conexão perversa da naturalidade [Naturwüchsigkeit] e soberania
subjetiva’ (ÄT 293)” (ÄD 120). Tais momentos se ligariam aos de desprazer e prazer no
sublime:
Pois o que o sujeito que pretende subsistir experimenta como desprazer de seu abalo, tal
apresenta-se para o saber mais profundo, que acompanha subterraneamente toda a tensão
subjetiva, como uma felicidade [Glück], como realização propriamente de sua ‘nostalgia’ p elo ‘que é
vetado ao sujeito pelo bloco subjetivo’ (ÄT 396)”. (ÄD 121)
Mas tudo isso concerne até agora à interpretação que Adorno faz em
relação ao sublime na natureza em Kant. Vejamos então como Welsch interpreta a Teoria
estética considerando a arte como sublime.
176
O esquema geral da interpretação de Welsch é o seguinte: já que o que é
experimentado como sublime na natureza é a negação feita por esta sobre a dominação
subjetiva sobre ela, a arte é considerada sublime quando nega a dominação subjetiva
precisamente ao negar seu próprio conceito, o qual exige dela uma disposição racional dos
particulares na obra, uma vez que estes não aceitam de antemão o que lhes é imposto. Se
para a obra se afirmar como arte é necessário o elemento de dominação racional, a arte
sublime exerce uma dominação que tende a negar aquele, expondo e articulando as
contradições em vez de conciliá-las (o que seria o caso da arte bela). Sem essa negação do
elemento de dominação que toda arte tem, a obra apenas afirmaria a perniciosa
dominação externa, prática, da natureza. “A arte se completa não em sínteses, mas sim ao
rompê-las, mas ela o faz ‘com a mesma força’ (ÄT 209) que antes as realizava” (ÄD 126).
Segundo Welsch, a negação interna da dominação racional na arte é índice da
“reprodução da natureza oprimida e entrelaçada na dinâmica histórica” (ÄT 198, cf. ÄD
126), o que já se afigurara como pertencente ao sublime como libertação da natureza do
contexto de dominação subjetiva. Assim, conclui o autor, “a arte, como a Teoria estética a
pretende, realiza a estrutura não do belo, mas do sublime. A estética de Adorno
representa tanto em seu coração [Herzen], como em suas leis [Gesetzen], uma estética do
sublime” (ÄD 127).
O restante do texto de Welsch é dedicado a mostrar o enfraquecimento do
conceito de reconciliação em favor do de justiça ao particular, em que a arte se mostra
como uma reconciliação de contradições radicalmente recusada. A ascendência do sublime
na arte seria, nesse movimento, índice da “dissolução do ideal de reconciliação” (ÄD 132).
Tal ideal reconciliador teria sido promovido pela estética filosófica, que acolheu em seu
interior antes a estética do belo, que se realizou sob a égide da reconciliação (entre o reino
da liberdade e da natureza, em Kant, por exemplo), em detrimento da do sublime, que
rejeitou tal ideal, pois “articulou contraposições, rupturas e momentos de conflito que
resistiam a uma última integração” (ÄD 138). 224
Ao fazermos uma análise da interpretação de Welsch, o primeiro ponto que
nos parece problemático é justamente uma tese central sua de que a reconciliação em
Adorno somente deve ser tomada como válida na medida em que se enfraquece para dar
lugar à idéia de justiça ao particular, em que o ideal reconciliatório cede sua vez à
articulação das contradições.
A fraqueza de sua concepção está, inicialmente, na unilateralidade do
conceito de reconciliação. Welsch toma esta noção como vinculada quase exclusivamente
à idéia de resolução de antagonismos, de fim das contradições. É claro que esse
significado é pertinente para aquele conceito, mas ele não expõe algo mais difícil de
perceber no pensamento de Adorno — que procuramos mostrar no capítulo III —, que é
a idéia de que a reconciliação significa a consciência da distinção entre sujeito e objeto. Mas,
mesmo tomando-se apenas o primeiro sentido para o conceito de reconciliação, a idéia de
Welsch mostra-se inadequada. Como muito bem apontou Klaus Baum, as noções de
utopia e de reconciliação, estreitamente ligadas em Adorno, recebem na Teoria estética a
determinação de que elas incluem necessariamente em si a negação do que elas prometem,
ou seja, na própria idéia de reconciliação o seu não-cumprimento é signo de sua
verdade225. Naturalmente tal concepção não é a mesma que se pode ler em Kant, por
224 Há ainda mais uma seção no texto de Welsch em que são comparadas as concepções de Adorno e Lyotard; mas
em relação ao que nos interessa, o que é dito nesta última parte não acrescenta nada de importante.
225 Cf. Klaus Baum. Die Tranzendierung des Mythos. Zur Philosophie und Ästhetik Schellings und Adornos. Würzburg: 1988,
pp. 261-275.
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exemplo, mas o que parece escapar a Welsch é que a recusa da efetividade da
reconciliação na arte não acontece em favor da justiça ao particular (que se lhe oporia) e
em detrimento da própria idéia de reconciliação, mas sim em favor de si própria, ou seja,
somente porque a época de hoje recusa mais do que qualquer outra a efetividade da
reconciliação, é que sua presença na arte se faz premente, como testemunha da
possibilidade do possível, caso contrário a arte seria tão indiferente ao sistema quanto o
seria se o afirmasse acriticamente. Deste modo, propomos uma inversão do
estabelecimento valorativo que Welsch dá a esses dois conceitos: a justiça ao particular é
compreendida em sua força justamente porque se coloca no horizonte de compreensão
estabelecido pela idéia de reconciliação, que, segundo pensamos, é o elemento conceitual
na Teoria estética que nos permite conceber a possibilidade — mesmo que não mais do que
isso — de superação do estado de inconciliação subsistente. O que funda a possibilidade
de a justiça ao particular, de sua articulação em suas contradições e conflitos, ser
verdadeira, é que ela se dá no interior de um movimento conciliatório na obra de arte, ou
seja, ela somente existe enquanto verdade em relação aos próprios particulares porque
aponta para a possibilidade de superação dos próprios antagonismos. Se o conceito “justiça
aos particulares” é concebido como negação da reconciliação (tal como a concebe
Adorno) então aquele conceito é autocontraditório e anula a si mesmo, pois negaria adialeticamente o que lhe garante a verdade. Cremos que a leitura de Welsch peca por não
apreender a dialeticidade presente na cisão, na negatividade, interna do conceito de
reconciliação. Tal aspecto dialético foi assim descrito por Alo Allkemper:
Na estruturação de seus momentos reside o elemento utópico e, inseparável dele, o crítico da arte:
na medida em que ela torna os elementos do ente real em momentos de um idêntico reconciliado,
ela exerce a crítica ao que é, e cai em conflito com o existente, ao mostrar o que poderia ser. 226
Uma vez colocada essa primeira crítica, fica claro que as relações que
Welsch estabelece tão nitidamente para belo-reconciliação e sublime-justiça ao particular
se mostram problemáticas. Cremos que elas tenham uma maior validade em relação às
suas análises referentes às estéticas anteriores à Adorno 227, mas, frente a este, elas são
equivocadas, e isso de modo mais claro ainda se consideramos que o conceito de
reconciliação inclui a idéia-mestra de uma primazia do objeto, de uma quebra do
encantamento que o sujeito lança sobre o objeto e sobre si mesmo, de tal modo a se
perceber, na distância mediatizada de ambos, o espaço que pode configurar o solo da
liberdade. Como dissemos no capítulo anterior, a justiça às contradições do particular
exprime praticamente a mesma coisa contida na idéia de reconciliação. A unilateralidade
do ponto de vista de Welsch pode ser explicada a partir da crítica que Rosiek lhe fez, ou
seja, que ele estaria interessado em aproximar a concepção adorniana do sublime à de
Lyotard, tomado por ele como expoente e fundador da filosofia pós-moderna. 228
O ponto forte da concepção de Welsch, entretanto, é sua ênfase na
dimensão constitutiva da experiência estética como conflituosa, contraditória, não
apelando para estruturas situadas em outras esferas (como a da comunicação ou da
teologia) a fim de “apreender” o significado dessas contradições. Mas, mesmo nessa
226 Alo Allkemper. Op. cit., p. 130.
227 Em relação a essas análises, que são realmente muito interessantes, cf. pp. 137-143.
228 Mas, falando em unilateralidade, vemos que tanto Wellmer quanto Rosiek também padecem desse mal. O
primeiro, procura ler Adorno sob o parâmetro da racionalidade comunicativa de Habermas, e o último, a partir da
perspectiva religiosa, metafísica. (Talvez aqui o leitor se faça a questão de se esta tese também teria um ponto de
apoio que gerasse uma interpretação unilateral; mas isso ficará por ser decido pelo próprio leitor.)
178
“vantagem” de sua concepção, ele tem uma fraqueza, pois, embora a subjugação do
movimento de negatividade da arte por um âmbito extra-estético para sua apreensão de
sentido não nos pareça válido, algo deve ser pensado como situando-se nesse ponto. Aqui
podemos invocar novamente a idéia de Thomas Weiskel de que o sublime humano é um
oxímoro: é preciso ver que esse oxímoro reside apenas no modo de conceber a alteridade.
Nossa intenção é a de mostrar como que a transcendência pode ser negada dialeticamente
no interior da obra de arte, e, mesmo sendo negada, pode constituir o medium para o
reconhecimento da alteridade no processo de constituição da identidade subjetiva.
b) A experiência da alteridade: abalo, comoção
As obras de arte representam as contradições enquanto todo, a situação antagonista enquanto
totalidade. Só através de sua mediação, não mediante seu parti pris direto, é que são capazes de
transcender, graças à expressão, a situação antagonista. As contradições objetivas sulcam o sujeito;
não são por ele postas, nem produzidas por sua consciência. Eis o verdadeiro primado do objeto
na composição interna das obras de arte. (...) Os antagonismos são tecnicamente articu lados: na
composição imanente das obras, que torna a interpretação translúcida às relações de tensão no
exterior. As tensões não são copiadas, mas dão forma à coisa; só isto constitui o conceito estético
da forma. (ÄT 479/355-6)
Essa passagem contém dois elementos importantes para se ver o sentido
geral da presente interpretação: a negatividade estética é algo que deve ser procurado no
movimento de constituição da obra de arte de arte como um todo organizado, em cuja
unidade formal se decantam os antagonismos sociais vividos pelo sujeito, e a
ultrapassagem dessa negatividade situa-se no âmbito da própria estruturação da obra: as
obras de arte “produzem sua própria transcendência, não são seu palco, e, por isso, estão
novamente separadas da transcendência. O lugar desta última nas obras de arte é a
articulação [Zusammenhang] de seus momentos” (ÄT 122/95-6; tradução própria).
Inicialmente, é preciso ver o que configura aquela sulcagem das
contradições objetivas no sujeito. “A experiência da arte enquanto experiência de sua
verdade ou inverdade é mais do que uma vivência subjetiva: é a irrupção da objetividade
na consciência subjetiva” (ÄT 363/274). Tal irrupção é a marca daquilo que Adorno
chama de Erschütterung (abalo, comoção, estremecimento). Trata-se do momento em que o
sujeito deixa de estar fixado à sustentação causada pela inércia da condição normal de ser
vivente: “ele perde o solo sob seus pés; a possibilidade da verdade que se incorpora na
imagem estética torna-se-lhe concreta [leibhaft]” (ÄT 363/274; tradução própria). Trata-se
de uma perda do referencial previamente estabelecido, como que uma invasão da esfera
da subjetividade por um processo alheio, em que a consciência percebe-se como
determinada intimamente através de algo que lhe retira o centro de sua própria fixidez
identitária. É um momento de desprazer, associado à dor da ruptura da consciência em
relação às mediações usuais em relação ao mundo em geral e ao próprio corpo. Nessa
medida é um instante de imediatidade, mas, paradoxalmente, causado por uma mediação
radical, operada pelo contato com a obra de arte. Segundo Adorno, todo esse processo
solicita do sujeito não apenas uma parte de si, como se se tratasse de uma vivência, de
uma emoção localizável em meio a várias possíveis, como se fosse possível uma
determinação psicológica dele; está em jogo a necessidade de o sujeito distender-se, fazerse presente com toda a extensão da consciência. O sujeito deve responder ao peso da
objetividade com que a obra de arte se afirma perante ele. Adorno usa como exemplo a
imponência do vigor da entrada da reprise da Nona Sinfonia de Beethoven: “ela retumba
como um grandioso ‘é assim’. (…) A reação espontânea do receptor é mímesis da
imediatidade desse gesto” (idem; tradução modificada). Mas tal imediatidade não
necessariamente é verdadeira. É preciso submetê-la à crítica: “a experiência plena,
179
desembocando no juízo sobre a obra desprovida de juízo, exige a decisão a seu respeito e,
por conseguinte, o conceito” (ÄT 364/274).
Esse abalo tem uma dimensão filosó fica importante: é o instante que marca
uma espécie de anulação do Eu, de ruptura dos contornos da subjetividade como
absolutos, inquestionáveis. Nesse momento, o Eu percebe a nulidade de sua pretensão de
colocar-se como ponto de ancoragem do sentido do real. Mas, de modo paradoxal, é
precisamente nesse instante de nulidade e de finitude que o sujeito mais experimenta sua
constituição subjetiva como sua força: “a fim de olhar apenas um pouquinho para lá da
prisão que ele próprio é, o eu precisa, não da dispersão, mas da mais extrema tensão; isso
preserva o abalo, de resto um comportamento involuntário, da regressão” (idem; tradução
modificada). Adorno considera a teoria kantiana do sublime precisamente um momento
em que essa tensão no sujeito é tomada como condição para que a sublimidade seja
possível, mas em vez de ligar o momento de prazer na experiência do sublime a uma
determinação moral íntima, vinculada ao reforço da autonomia do sujeito perante a
natureza, Adorno vê a tomada da consciência do sujeito de seu poder de resistência
perante o estado de coisas que se lhe defronta.
Essa idéia foi muito bem expressa por Etienne Souriau, quando diz que “o
sublime é o que é, tanto porque ele transporta e transtorna as almas de qualidade, quanto
porque ele repug na aos corações indisponíveis e porque ele coloca em fuga as
mentalidades pequenas. Os três são apenas um” 229. Ele, entretanto, não deve ser
confundido com tudo o que causa emoções fortes e que abalam a sensibilidade: “o
sublime não é o patético. E menos ainda o melodramático” 230.
Há algo de conflituoso no sublime, mas não é um conflito entre nossas
faculdades, mas, sim, “entre nós mesmos e a coisa sublime, desde que ela exige demais de
nós, e o exige de uma maneira por demais urgente, imediata. Ela pode requerer de nós
muitas coisas a longo prazo; mas já imediatamente ela o exige muito. Ela exige que nós
sejamos capazes dela. Ela exige que nós nos coloquemos no mais alto de nós mesmos
para acolhê -la. Ela exige que dilatemos nosso psiquismo à sua dimensão espiritual”231. O
que explicaria que muitos recusem o sublime, devido à incapacidade de tal esforço de
grandeza de alma.
Em Adorno, essa concepção, entretanto, ainda conserva o duplo
movimento de desprazer e de prazer que Kant já apontava, mas com a ressalva de que
ambos os momentos se entrelaçam em uma dialética vertiginosa, em que é precisamente a
ruptura com as próprias auto-determinações que se situa o prazer do sujeito, mas
vinculado também à dor da perda da referência empírica:
O prazer subjetivo na obra de arte aproximar-se-ia, não da empiria, mas do estado que se esquiva
da empiria enquanto totalidade do ser-para-outro. (…) A felicidade nas obras de arte é uma fuga
súbita, não um fragmento daquilo a que a arte se subtraiu; é sempre acidental, mais inessenci al para
a arte do que a felicidade do seu conhecimento. O co n ceito de deleite artístico enquanto
constitutivo deve ser eliminado. (…) Poder-s e-ia objetar ao hedonismo estético a passagem da
doutrina kantiana do sublime que ele, timidamente, recusa à arte: a felicidade da nas obras de arte
seria, quando muito, o sentimento de resistência que elas mediatizam. (ÄT 30-1/27)
De modo semelhante a como Kant diz que a violência presenciada na
natureza em sua força deve ser neutralizada, posta à distância, pois senão não haveria uma
229 Etienne Souriau. “Le sublime”, Vocabulaire d'esthétique. Presses universitaires de France, p.275.
230 Etienne Souriau, op. cit., p.275.
231 Etienne Souriau, op. cit., p.280.
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experiência estética, mas, sim, física, materialmente afetada, Adorno diz que o
aniquilamento do eu no abalo estético não é literal. Não se trata de dizer que o sujeito
efetivamente desvaneça e perca a unidade de consciência que o constitui como pessoa:
isso tornaria impossível a própria experiência estética. Mas também não é o caso de se
afirmar que as emoções do sujeito sejam fictícias, pois elas são reais. “Não é o abalo
estético que é aparência, mas sua posição em relação à objetividade: na sua imediatidade,
sente o potencial como se estivesse atualizado” (ÄT 364/275; tradução modificada). O
que é ilusório, então, é a transposição que se pode fazer da ruptura qualitativa na relação
com a obra de arte com a objetividade tout court. Aqui ressoa uma vez mais a idéia da arte
como uma promessa de transcendência interrompida. Dito de um modo sumamente
paradoxal, podemos dizer que a ruptura em relação ao imperialismo subjetivo na arte é
efetivo enquanto momento em que o objeto solicita do sujeito um excesso de suas forças
subjetivas, para que possa ir além daquilo que ele mesmo já sempre foi capaz de conceber
de si mesmo, mas é irreal por que o sujeito não pode deixar de apoiar em uma unidade de
consciência, pois senão cessaria de existir como tal; mas esse abalo é também real na
medida em testemunha a favor de uma relação possível com o objeto, e isso exatamente
mediado pela constituição subjetiva; mas esse movimento também é ilusório se lido a
partir do contexto geral do que se confronta ao sujeito como ser vivente, que recusa a este
a experiência de ir além de si próprio.
Todo esse processo traz à tona o mote da Dialética do esclarecimento da
rememoração da natureza no sujeito, ou seja, de uma nova relação entre sujeito e objeto.
c) A dialética espírito-natureza
A emergência da arte moderna é um momento em que o caráter espiritual
da obra de arte deixou de se vincular à exclusividade com que os princípios formais
imperavam sobre um material amorfo, que, sem dignidade alguma enquanto tal, precisava
passar pela enformação subjetiva ditada pelos cânones de estruturação do artefato. A
modernidade testemunha o desejo do espírito de acolher em si algo da naturalidade crua
dos materiais. Estes não parecem mais confinar-se aos ditames estabelecidos pela unidade
previamente espiritualizada da obra. A nova arte pretendeu elevar a esfera espiritual a uma
nova dimensão, em que seu conteúdo de verdade não fosse legível na estrutura
imediatamente definida pela unidade formal. A arte passou por um processo de
espiritualização enquanto natureza, ou seja, o espírito começou a tomar consciência de si
a partir da intromissão do elemento natural em um meio tradicionalmente reservado às
suas categorias. Nesse ponto, o que salta aos olhos é o gosto da arte moderna pelo
sensivelmente abjeto, socialmente não aprovado, como se o agradável acabasse
espelhando a aprovação social em relação ao prazer da continuidade do estado de coisas
existente.
O primado do espírito na arte e a infiltração do outrora proibido são dois lados do mesmo estado
de coisas. Ele vale para o que não está ainda aprovado e preformado socialmente e torna-se uma
relação social de negação determinada. A espiritualização realiza-se, não através de idéias que a arte
apresenta, mas, sim, através da força co m que ela penetra camadas não-intencionais e que vão
contra idéias. Esse não é o último motivo pelo qual o que é condenado e proibido atrai o gênio
artístico. (ÄT 144/112)
A dissonância, a cacofonia, o feio, acolhidos em um medium inicialmente
não suscetível a tal negatividade, tornam-se meios de constituição do conteúdo de
verdade da obra, que passa a exprimir, em sua totalidade, a consciência do espírito de sua
própria naturalidade. Mas, diferentemente da estética kantiana, que absorve a negatividade
no âmbito sensível na positividade do eu numêmico, e da dialética hegeliana, que a
181
suprassume numa negação positiva, tal movimento conflituoso do espírito e da natureza
não conhece uma resolução, nem um ponto de apoio fixo, sólido:
A ascendência do sublime confunde-se com a necessidade de a arte não triunfar sobre as
contradições fundamentais, mas de as combater em si até ao fim; a reconciliação não é para elas o
resultado do conflito, mas apenas que este encontra uma linguagem. (…) A arte que insiste num
conteúdo de verdade em que se esvanece o aspecto heterogêneo das contradições não é senhora
daquela positividade da negação, que animava o conceito tradicional do sublime como algo de
presentemente infinito. (ÄT 294/223)
O sublime é o momento na arte em que se torna visível o estremecimento
entre o espírito e a natureza, e esse abalo é que configura a liberdade (mesmo que apenas
vivida como imagem no âmbito estético), e não a idéia que o sujeito pretende fazer de si
como um eu livre muito acima da natureza. Essa elevação do indivíduo, ao mesmo tempo
preso às contingências de sua dimensão sensível e concebendo-se como portador do
espírito absoluto, é o esquema do cômico. Neste, a incapacidade de o finito açambarcar a
carga significativa do infinito mostra seu fracasso como algo lúdico, como mera
puerilidade de um ser que, abandonando a seriedade da vida do trabalho, dedica-se ao
prazer de regozijar-se com seu poder imaginário de vencer as agruras do cotidiano: “o
sublime e o jogo convergem” (ÄT 295/224).
Mas essa dialética entre espírito e natureza tem também outra face, que é a
relação entre o sublime na natureza e na arte. Como vimos, Kant considerava que
somente a natureza é que proporcionaria o sentimento do sublime, e não a arte. Adorno,
repetidas vezes (nove, ao todo), referiu-se explicitamente ao fato de que Kant recusava o
sublime à arte (cf. ÄT 29, 79, 101, 292, 293, 295, 296, 401, 496), e, o que é mais
significativo, considerou essa recusa uma grande limitação histórica: “excetuando-se a
doutrina do comprazimento, que resulta do subjetivismo formal da estética kantiana, a
limitação histórica desta é mais visível em sua teoria de que o sublime caberia somente à
natureza, e não à arte” (ÄT 496-nota/367-nota). Nenhum dos comentadores que se
referiram ao sublime em Adorno consideraram importante essa questão. Ela, entretanto,
pode ser considerada de capital importância, ao situar-se em um “nó” conceitual que
estabelece um significado relevante para essa dialética entre espírito e natureza no
sublime.
Embora Adorno diga expressamente que “em qualquer experiência da
natureza está envolvida toda a sociedade” (ÄT 107/84), o aspecto histórico do belo da
natureza está mesclado ao aspecto natural, sem preponderância para nenhum dos lados:
“no belo natural, entram em jogo intimamente unidos, ora de modo musical, ora à
semelhança de um caleidoscópio, elementos naturais e históricos. Um deles pode assumir
o lugar do outro e é nesta flutuação, não na univocidade da relações, que vive o belo
natural” (ÄT 111/87-8). Essa indeterminação do belo na natureza é sua marca segundo
Adorno, e um dos elementos característicos da arte é precisamente fornecer uma
determinação para essa indeterminidade: “com efeito, na arte, o incaptável é objetivado e
intimado à duração: nesta medida é conceito, só que não à maneira da lógica discursiva”
(ÄT 114/89). Situado nesse situs de fugacidade sui generis, de indeterminidade, “o belo
natural é história suspensa, devir interrompido” (ÄT 111/88).
A arte, diferentemente, é, no contexto do estremecimento estético,
“metamorfoseada no que ela é em si, porta-voz histórico da natureza oprimida e, em última
análise, crítica perante o princípio do eu, agente interno da opressão” (ÄT 365/275; grifos
nossos). A vinculação da arte à dimensão histórica é absolutamente enfática em Adorno:
“a história pode se chamar o conteúdo das obras de arte” (ÄT 132/103); “o conteúdo de
verdade das obras de arte, do qual sua qualidade depende finalmente, é histórico até o
182
mais profundo de si mesmo. (…) A história é imanente às obras, não é nenhum destino
exterior, nenhuma avaliação flutuante” (ÄT 285/217). A verdadeira experiência frente à
obra de arte enquanto arte passa pela apreensão da historicidade que se decanta nela como
seu conteúdo de verdade: “analisar as obras artísticas eqüivale a perceber a história
imanente nelas armazenada” (ÄT 132/103).
Assim, dado esse inelidível entrelaçamento enfático entre a determinação
radical da arte como determinada pela história e o sublime como expressão de um
processo de reflexão radical sobre as relações entre sujeito e objeto, podemos exprimir a
tese de que o que estabelece a distinção entre o sublime na natureza e na arte reside
precisamente no fato de que, na esfera artística, a irrupção da sublimidade tem, como um
de seus momentos, uma determinada forma de consciência do processo histórico de
constituição da realidade.
Ora, diz Adorno: “as obras em que a forma estética se transcende sob a
pressão do conteúdo de verdade ocupam o lugar que outrora o conceito de sublime
significava” (ÄT 292/222). Como é possível falar-se de uma auto-transcendência na arte?
E como isso se liga à sua dimensão histórica?
d) A transcendência secularizada
Como dissemos brevemente acima, a natureza é aquilo que estabelece o
ponto de fuga da alteridade indeterminada a que a arte aspira alcançar através de um
movimento de objetivação. O belo natural é precisamente o momento em que a natureza
parece manifestar um mais para além de sua determinação empírica: “o belo natural é o
vestígio do não-idêntico nas coisas, sob o sortilégio da identidade universal. Enquanto
este agir, nenhum não-idêntico existe positivamente. Por isso, o belo natural permanece
tão disperso e incerto quanto o que ele promete ultrapassa todo o intra-humano” (ÄT
114/90; tradução modificada). A idéia da arte está associada à tarefa de objetivar a
indeterminação fugidia da natureza, apoderando-se de sua transcendência, a que o belo
natural aponta de uma maneira velada: “como linguagem humana que dispõe das coisas
tanto quanto é reconciliada, a arte gostaria de alcançar novamente aquilo que é obscuro
aos homens na linguagem da natureza” (ÄT 120/94; tradução própria). Ao contrário da
obscuridade do mais da beleza natural, a transcendência estética na arte é algo fabricado,
posto. Ela vincula-se diretamente ao contexto em que se articulam todos os momentos
que constituem a obra. Essa totalidade estruturada não é apenas um espaço em que a
transcendência se manifestaria, como seria o caso dos símbolos religiosos, em que a
epifania se dá de forma positiva. As obras de arte, devido a seu caráter de artefato,
separam-se dessa transcendência.
A ultrapassagem da obra por si mesma diz respeito à eloqüência com que
ela fala, na medida em que é algo espiritual, ou seja, que não se confina a sua
determinação como coisa na realidade empírica. Essa espiritualização, entretanto, não
pode ser destilada diretamente de seus significados diretamente. Essa transcendência
espiritual mostra-se como um significado descontínuo, interrompido, tal como uma cifra
em cujo código nos faltam alguns de seus elementos.
Um critério legítimo para a qualidade da arte contemporânea reside em que
ela não pode renunciar à meta de apontar para sua própria transcendência — sob pena de
se tornar insignificante —, mas, também, não pode afirmar que possui a transcendência
por si mesma. A completude de seu sentido torna -se ou um engodo teológico-religioso,
ou uma mera coleção de elementos justapostos sem valor.
O mais das obras de arte não é simplesmente aquilo que a totalidade possui
além da soma de suas partes. Essa determinação psicológica do todo como transcendendo
183
o conjunto de seus momentos não toca na determinação da obra como incorporando,
como lei de sua constituição, a ruptura desse mais, em favor da força que seus elementos
materiais obtêm através precisamente pelo fato de serem mediados pela totalidade da
obra. Na medida em que a totalidade necessariamente entra em conflito com o aspecto
cru e disperso dos elementos que a constituem, a arte viu-se enredada, na modernidade,
em uma antinomia histórico-filosófica, pois a transcendência não pode ser negada pura e
simplesmente, mas a arte moderna tem, como seu princípio, a negação daquilo que
Benjamin caracterizou como aura, como sua “atmosfera”. A desartização da arte tornou-se
lei de seu movimento, de constituição de sua identidade. Exemplo de como esse
movimento de negação da própria transcendência não pode ser tomado como absoluto
são as poesias de Brecht, que, mesmo comportando-se como descrições de mundo,
alcançam um nível artístico tal que as distingue de algumas de outros artistas que, negando
todo elemento aurático, regridem a um âmbito pré-estético.
A mais enfática convergência da transcendência com seu desencantamento
pode ser vista na obra de Beckett, em que a linguagem proíbe a colocação de um sentido
legível a partir da articulação dos momentos que compõem a obra. A expressão estética é
radicalmente mediada por seu mutismo, pela recusa enfática de ter seu sentido dado
positivamente. Nesse movimento, a arte toma como seu télos implícito a tentativa de
deixar aflorar a pura materialidade de seus elementos como índice da natureza que ela
pretende resgatar. Estes, entretanto, por mais que queiram situar-se como contendo
valores expressivos por conta própria, somente alcançam sua eloqüência através do
momento objetivador, o qual, devedor da difusão material de seus elementos, acaba
denunciando a obra de arte como irreal, fictícia: “as obras de arte tornam-se aparições em
sentido pregnante, isto é, aparições de um outro, quando o acento incide sobre o irreal de
sua efetividade” (ÄT 123/97; tradução própria). Isso faz a obra de arte tornar-se um
instante, algo momentâneo, surpreendente. Essa característica vincula-se a seu caráter de
ato, de um movimento que dá vida a seus elementos materiais.
A arte é um processo de secularização da transcendência, o que não
significa uma negação abstrata desta, mas, sim, determinada. A arte é um momento de
objetivação do que é radicalmente outro e efêmero em relação à existência empiricamente
determinada. Segundo Adorno, a arte é uma cópia [Nachbild] do estremecimento [Schauer]
perante a incomensurabilidade do mana. Essa duplicação objetivadora expõe a arte como
esclarecida, pois torna o estremecimento comensurável ao homem, devido à força da
enformação subjetiva que preside radicalmente a constituição da obra como artefato. A
alteridade in extremis com que o mana era vivido outrora liberta-se, nesse processo, de
ilusão de ser literal, posto que é cristalizada em um confinium humano. Esse cerceamento
da suprema ilusão metafísica corporificada no estremecimento mítico é um momento de
alienação corretiva, em que a obra se defronta ao espectador como anamnese de um radical
outro, mas mediada pelo espírito subjetivo. “As obras de arte são epifanias neutralizadas,
e, assim, qualitativamente modificadas” (ÄT 125/98).
O deslocamento aprofundado do núcleo ontológico do cosmo em um
ponto originário da criação no mito, a fluidez do poder infinito e amorfamente disperso
pelos poderes naturais no preanimismo e na magia são aquilo que empresta à alteridade
radical da natureza sua evanescência suprema. A arte é um momento que procura
conjurar essa efemeridade ao por-se como sua cópia objetivadora: prolongamento do
transitório no artefato. Nisso as obras de arte aproximam-se da apparition, a aparição
celeste, momento de manifestação enobrecida de algo que se subtrai às coisas empíricas e
à intenção humana.
184
A imagem prototípica do caráter momentâneo da arte é a do fogo de
artifício: uma aparição celeste que rompe repentinamente com o peso da duração
empírica. Ao passo que toda a tradição metafísica sempre enfatizou o mero ente como
transitório e efêmero, e glorificava a transcendência eterna do mundus inteligibilis, aqui
Adorno enfatiza a alteridade radical frente à empiria através da efemeridade absoluta da
apparition. As obras de arte não se separam da realidade empírica por sua suprema
perfeição incorruptível, mas, sim, tal como o fogo de artifício, por terem, como sua
determinação intrínseca, a necessidade de atualizarem-se como aparições, fenômenos,
manifestações de uma outra coisa: “elas não são apenas o outro da empiria: tudo nela
torna-se um outro” (ÄT 126/99).
O conceito de imagem foi, talvez, como instrumento analítico, o mais
usado de todos os que foram empregados nessa tese. Como parte concludente de toda a
argumentação, é importante circunscrever de modo enfático o caráter de imagem da arte
na Teoria estética como elemento que configura o núcleo da argumentação na passagem da
transcendência estética para o caráter processual, histórico, imanente às obras.
A obra de arte é imagem, não porque copia, duplica, uma outra, mas por
colocar-se como momento de irrupção pontual de um outro. A alteridade radical no
mundo pré-histórico sempre esteve associada à relação entre a universalidade do poder
infinito do mana e a contingência dos seres individuais. Esse antagonismo visceral
reproduz-se na “simples” polaridade sujeito-objeto. A radical impossibilidade póskantiana de assenhorar-se do objeto, relegado a um contexto que dita sua essência como
objeto de uso, de troca, como signo de status, etc., reflete a incomensurabilidade do mana.
O caráter de imagem da arte não simplesmente evoca o poderio revelado do espírito que
se move, difuso, pela natureza: ele é um momento de explicitação dessa alienação perante
o objeto. Ao tornar intuível essa contradição, a arte não apenas a denuncia, como tenta
torná-la comensurável à experiência. A imagem estética é o nó entre a universalidade
opressora e a particularidade que, tal como uma mônada leibniziana sem janela, reflete
essa universalidade. A face subjetiva desse enlace é o estremecimento mítico que a arte
seculariza. Como oposta ao desenrolar funesto do esclarecimento, que labora no sentido
de ocultar as contradições insuperáveis no processo de busca da verdade, a arte coloca-se
como irracional, ao exprimir, com suas dissonâncias, cacofonias e degenerações, a
irresolubilidade conflituosa entre sujeito e objeto. Nesse sentido, a arte é verdadeira
enquanto movimento de objetivação da irracionalidade da sociedade completamente
coletivizada. Na arte, a denúncia da inverdade é um lado da moeda; o outro é a
antecipação de uma reconciliação com o objeto que advém da tomada de consciência da
antinomia inconciliada entre sujeito e objeto.
O caráter de imagem da arte é um momento de sua determinação como não
redutível à mera efemeridade ou à pura duração. Trata-se de uma paradoxal cristalização do
momentâneo, através da experiência em relação à obra como em processo de objetivação. Que as
obras sejam algo objetivo em sentido pleno contradiz sua lei de movimento, embora não
possa ser negado in totum, posto que senão de nada contariam como coisas. A experiência
perante a arte como algo objetivo diz respeito à circunstância de ela tentar tornar
comensurável à intuição uma universalidade que se coloca tal como um absoluto acima
dos indivíduos, que lhes escapa por entre as tramas dos conceitos e da intuições. O
caráter de imagem da arte é o instante em que essa fluidez é objetivada no totum do
artefato.
O redemoinho dessa dialética, entretanto, dá mais giros.
Dado que toda imagem, como uma totalidade intuitiva, carrega o fardo de
ter que se completar para ser o que é, a imagem estética é acompanhada da ruptura
185
substancial de sua carga de universalidade que tinge sua configuração. A arte não apenas
se erige sobre o campo fecundo de sua imagerie: ela se determina, também, pela explosão
dessa sua pretensão à dignidade de apreender o universal em sua fuga do campo de força
empírico. O choque que as obras de arte recentes causam no espectador são indícios de
uma certa decepção constitutiva da arte, que se recusa como receptáculo de um poder
absoluto de instauração de um significado pleno. Nesse momento, é como se fizesse parte
da lei de movimento da arte que ela negue a transcendência estética — uma estrita
antinomia. Mas como faz parte do pensamento dialético conceber o desenvolvimento
histórico como movido intrinsecamente pelas contradições internas, diz Adorno:
O aparecer e sua explosão na obra são essencialmente históricos. A obra de arte é em si — não
como agrada ao historicismo, segundo sua colocação na história real — não um ser subtraído ao
devir, mas, sim, enquanto ente, algo em devir. O que nela aparece é seu tempo interior, e a
explosão da aparição rompe sua continuidade. Ela é mediada para a história real através de seu
núcleo monadológico. A História pode chamar-se o conteúdo das obras de arte. Analisar obras de
arte significa tanto quanto perceber a história imanente nelas armazenada. (ÄT 132/103; tradução
própria)
Vejamos, agora, como se dá essa historicidade imanente à obra como
elemento dinâmico de sua estrutura formal.
e) A historicidade como forma
É preciso ver, inicialmente, o que Adorno concebe como uma falsa
concepção da historicidade artística: “O contrário de uma genuína relação com o
elemento histórico das obras como seu próprio conteúdo é a sua apressada subsunção na
história, sua remissão ao lugar histórico” (ÄT 290/220;tradução própria). Essa tomada de
posição condenada pelo autor da Teoria estética é o que ele chama de historicismo
[Historismus]. Ela consiste nessa subsunção da obra na história enquanto um dos
elementos de uma seqüência que se desdobra temporalmente. De acordo com essa
concepção, a arte seria histórica porque faria parte de um continuum histórico que unifica e
dá sentido a todos os seus integrantes. Podemos interpretar o qualificativo “apressada”
[eilfertige] para o ato dessa subsunção como a eliminação de uma série de considerações
que devem ser feitas, de várias mediações que devem ser levadas em conta para
apreender-se o caráter histórico da obra de arte. Sem tais mediações, a história se
apresenta para a arte como um destino exterior (cf. ÄT 285/217), ou seja, como algo que
englobaria o que há de legítimo na seqüência das manifestações estéticas. Dado que no
historicismo há, como na concepção hegeliana da história, um desdobramento de um
sentido que subjaz aos acontecimentos, ou remetemos a obra de arte para a seqüência
histórica, ou então ela não vale nada por si como verdade acerca do espírito 232, ou seja,
perde sua legitimidade em si mesma.
Contra essa concepção historicista assim delineada, a historicidade da arte é
tomada como imanente a ela, como um caráter processual [Prozeßcharakter] constitutivo da
identidade da obra enquanto obra de arte. Há que se perceber em que consiste o que
Adorno chama o núcleo temporal [Zeitkern] da obra, pois “o caráter processual das obras
de arte não é outra coisa que seu núcleo temporal” (ÄT 264/201; tradução própria).
“A obra de arte é processo essencialmente na relação do todo e das partes.
Não podendo reduzir-se nem a um nem a outro momento, essa relação é, por sua parte,
232 “Se não se sabe nada dessa [a verdade eterna do espírito — vf], então não se sabe nada de Verdadeiro, Justo ou
Ético”. Georg W. F. Hegel. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte. Vol. I: Die Vernunft in der Geschichte.
Hamburg: Felix Meiner, 1970, p. 45.
186
um devir” (ÄT 266/202; tradução própria). A impossibilidade de a arte manter-se
enquanto tal optando ou pela totalidade fechada de seus momentos, ou pela dispersão
absoluta de suas partes obriga-a a buscar um equilíbrio instável, que não se resolve em
definitivo para nenhum dos dois pólos. Os antagonismos reinantes entre as
particularidades dos elementos introduzem um fator de destruição e morte no núcleo da
arte que tende a desfazer a sua própria identidade. Mas a ânsia mítica pela sobrevivência
por sobre o desconhecido, o não capturado através da malha dos fios tecidos com
elementos de universalidade, ânsia de imortalidade, herdada das origens mágicas da arte,
leva-a a separar-se da empiria multiforme e dispersa através da colocação de uma esfera
idêntica a si mesma, no “‘reino autóctone do espírito’”, mas que precisa, para conservar
tal auto-identidade, do seu “não-idêntico, heterogêneo, não-ainda-formado” (ÄT
263/200). Por isso Adorno diz que o próprio conceito de “equilíbrio” para definir esse
estado se contradiz a si mesmo (cf. ÄT 266/202), posto que deveria se situar onde, a
rigor, não pode, ou seja, onde pode tornar visível a tensão entre as partes e o todo. Mas
tal posição exige uma certa totalidade, pois sem ela como falar de uma “obra”, um ser, um
algo que efetivamente existe? O resultado, portanto, é, paradoxalmente, um equilíbrio em
devir:
Se a obra de arte não é em si nada fixo, definitivo, mas sim algo móvel, então sua temporalidade
imanente se comunica às partes e ao todo no fato de que a relação destes se desdobra no tempo, e
de que eles podem denunciá-la. Se as obras de arte vivem, graças a seu caráter processual, na
história, então elas podem se perder nela. (ÄT 266/202; tradução própria)
A dinâmica da obra de arte é precisamente esse caráter de irreconciliabilidade
entre o aspecto de dispersão, de multiplicidade, de alteridade, em relação ao espírito e a
necessidade de a obra se constituir como algo idêntico a si, como algo de espiritual, de
fabricado, que, portanto, precisa encerrar-se em um todo. Sem poderem inclinar-se
definitivamente para nenhum dos dois pólos, sob pena de perderem-se em meio à mera
contingência sem pretensão a voz, ou igualarem-se à violência do universal abstrato da
razão instrumental, a única chance de prosseguirem na história é exporem seu “núcleo
temporal”, o que as torna, por outro lado, frágeis, diante da necessidade reinante de uma
universalidade definitiva (petrificada porque instrumental) no sistema de autoconservação
da dialética do esclarecimento. Essa característica da arte — uma dialética irrealizável —,
agudizada na modernidade, reflete-se, segundo Adorno, em procedimentos como o de
Stockhausen, em que a música eletrônica não possui anotação, é “realizada” diretamente
sobre o material e se esvanece com ele: “uma arte de ambição enfática, que entretanto
estaria pronta para se desfazer” (ÄT 265/202).
Mas se o sentido da obra — e isso tomado em um significado forte: o
sentido de existência da arte — é referido por Adorno à construção de sua unidade (cf.
ÄT 229-235/175-179), e se tal unidade não é o ponto definitivo por meio de que a obra
alcança a duração, mas, como vimos, em um equilíbrio insatisfeito entre os antagonismos
dos particulares e a totalidade formal, a consecução e o alcance de um sentido para a
própria arte seria a anulação de si mesmo. Assim, “seja o que for que no artefato se pode
chamar a unidade de seu sentido não é estático, mas sim processual (...)” (ÄT 262/200;
tradução própria), ou seja, o sentido da própria arte não é algo dado de antemão, nem
possível de ser alcançado em definitivo através de seu desdobramento “histórico” 233.
233 Colocamos essa palavra entre aspas, porque o sentido com que ela está aqui empregada não é o que Adorno lhe
confere, e sim próxima do historicismo por ele criticado.
187
Adorno faz um jogo com a polissemia da palavra “processo”, dizendo que
“é objetivo o caráter de processo imanente das obras de arte — mesmo antes que elas
assumam um partido qualquer—, o processo que elas promovem contra o que lhes é
exterior, o mero subsistente” (ÄT 264/201). A palavra ganha uma conotação jurídica, em
que a radical separação da obra de arte em relação à existência reificada exterior procura
fazer justiça ao que é oprimido na realidade empírica, mostrando a esse “que ele mesmo
deve ser de outro modo: esquema a-consciente de sua modificação” (idem). Daí o caráter
polêmico de toda a obra de arte autêntica, mesmo as que aparentemente mostram em sua
totalidade formal uma harmonia que é signo do puro caráter espiritual das obras, como
em Mozart, mas cuja “reconciliação, que elas presentificam, tem sua doçura dolorosa,
porque a realidade até hoje a recusou” (idem).
Esse caráter processual, histórico, das obras, traduzido em termos das
relações entre o todo e as partes é transposto por Adorno também para o conjunto das
obras: “Imanentemente dinâmicas, entretanto, são não apenas as obras de arte individuais,
mas também sua relação recíproca” (ÄT 263/200; tradução própria). Ora, se a dinâmica
das obras se faz nas relações de antagonismo entre os particulares, que, assim, “não se
encontram em justaposição, mas atritam-se ou atraem-se mutuamente, um querendo ou
repelindo o outro” (ÄT 275/209; tradução própria), e se essa dinâmica está presente na
esfera das relações entre as obras — o que, diga-se de passagem, nos parece bastante
razoável —, então se nos afigura totalmente incompreensível como Adorno pode dizer,
em seqüência à primeira citação deste parágrafo, que “a relação da arte é, entretanto,
histórica somente através das obras individuais, imóveis em si, não através de sua relação
exterior, ou mesmo através da influência que elas devem exercer uma sobre a outra” (ÄT
263/200; tradução própria, grifos nossos). Ora, como seria possível perceber uma
dinâmica, um caráter histórico, processual, portanto, em que haja atrito, repulsão e
atração, sem que os elementos em jogo — no caso as obras individuais — exerçam
influência uma sobre a outra, sem que isso contribua na constituição da identidade de
cada obra? Em outras palavras: que sentido faz dizer que as relações entre as obras
individuais tenham também uma dinâmica imanente e que tais relações não contribuam
para o caráter histórico, ou seja, de uma dinâmica imanente, para a arte? – e que as
influências recíprocas das obras também não contribuam para a dinamicidade de cada uma
delas?
Esse impasse, para o qual não vemos solução dentro da argumentação de
Adorno, não possui, entretanto, segundo pensamos, grande importância, dado que
podemos, sem grandes prejuízos para sua concepção global acerca do caráter de processo
da arte, abstrairmo-nos dessas passagens conflitantes.
Mas se é problemático o estabelecimento das relações entre as obras
particulares como histórico, processual, por outro lado é importante para nossos
propósitos o fato de que Adorno considera esse caráter processual como algo objetivo, ou
seja, não se trata apenas de um desdobramento temporal tomado apenas do ponto de
vista da recepção:
As obras de arte não se modificam apenas com o que a consciência reificada considera a atitude
dos homens, que varia de acordo com a situação histórica, relativamente a elas. Tal transformação
é superficial frente à que se produz nas obras: o destacamento de seus estratos um após o outro,
imprevisível no instante de seu aparecimento; a determinação de tal transformação através de sua
lei formal emergente e com isso dissociante; o endurecimento das obras tornadas transparentes, o
seu envelhecimento, seu mutismo. (ÄT 266/203; tradu ção própria, grifos nossos)
Que as obras de arte se modifiquem isso é devido, segundo Adorno, devido
à sua lei formal, ou seja, essa modificação tem seu fundamentum in re, é uma característica
188
objetiva delas, de forma alguma acontece somente de acordo com a recepção que se tem
delas em cada época histórica. Que as obras estejam na história isso é devido ao caráter de
devir gerado pelas tensões internas da obra, na relação, como vimos, do campo de forças
antagônico entre sua totalidade e as contradições reinantes no seio das particularidades.
Ora, tais relações constituem a própria lei formal da obra. Ao contrário de Kant, que
considerava nosso juízo sobre a arte e a beleza em geral fundado apenas na disposição das
faculdades da mente, e que, portanto, possuía validade universal apenas subjetiva, para
Adorno nosso discurso sobre a arte (que, diga-se de passagem, inclui mais do que o
atributo de beleza) tem valor objetivo, ou seja, sua universalidade é tomada em sentido
forte 234.
Mas temos em Adorno ainda várias outras considerações acerca desse
caráter de universalidade. Ele é tomado em conta também pelo lado da recepção, por
exemplo. Adorno concorda com Benjamin, quando este cita Proust ao dizer dos vestígios
“que os incontáveis olhos dos contempladores deixavam em várias obras” , ou seja, “não
se deve abstrair esquematicamente da recepção” (ÄT 288/219; tradução própria). Embora
as obras de arte tenham uma parcela da vontade mítica de sobrevivência espelhada em sua
“fixação na pedra, na tela, no texto literário ou de notas musicais”, elas não escapam da
modificação temporal, pois “o fixado é signo, função, não em si; o processo entre ele e o
espírito é a história da obra” (idem — grifos nossos). Aqui entra em jogo uma dimensão
nova: a historicidade da obra se dá entre ela e o espírito, o que significa que a lei formal da
obra, isto é, aquilo que determina seu caráter processual, é por sua vez determinada
também pela recepção, pela crítica, pela interpretação que se faz dela: “se as obras de arte
acabadas tornam-se o que elas são porque seu ser é um devir, então elas são por seu turno
remetidas a formas em que aquele processo se cristaliza: interpretação, comentário e
crítica” (ÄT 289/220; tradução própria). Se como vimos, o ponto de equilíbrio instável
que caracteriza as obras como um devir (seu núcleo temporal) não reside nem no seio da
particularidade por si só, nem na unidade de todos os seus momentos, mas em um lugar a
rigor inconceituável, de forma semelhante esse mesmo caráter histórico, processual, das
obras não se situa nem na própria obra, nem na própria soma das formas de sua recepção,
mas entre esses dois planos. Tais formas de recepção não são, assim, elementos exteriores
ao que constitui a própria identidade (histórica) da obra, mas são
o palco do movimento histórico das obras em si e por isso formas por direito próprio. Elas se
prestam ao conteúdo de verdade das obras como a algo que as ultrapassa e separam-no — a tarefa
da crítica — dos momentos de sua inverdade. Que o desdobramento das obras seja bem sucedido,
para isso aquelas formas de recepção devem agudizar-se até a filosofia. (idem)
Essa vinculação entre a historicidade da arte e a filosofia também pode ser
pensada diretamente em relação ao sublime. Segundo Adorno, “o sublime, que Kant
reservou à natureza, tornou-se após ele um constituinte histórico da própria arte” (ÄT
293/222-3; tradução própria). Ou seja, a grande arte subjetiva burguesa absorveu tudo
aquilo que a natureza prometia como sublime, ou seja, como expressão de um
absolutamente outro, de uma liberdade do âmbito das relações concretas de produção.
Isso, como vimos, é o que se deu na arte com a antinomia fundante da arte moderna da
234 Essa expressão se deve ao fato de que a universalidade subjetiva em Kant não admite provas e/ou argumentos
conceituais; ela, como diz o próprio autor, deveria apenas ser chamada de validade universal (Allgemeingültigkeit ). Ao
julgarmos algo belo imputamos (ansinnen) tal juízo a todos os outros homens, mas não podemos exigi-lo, tal como o
podemos em relação a um resultado de uma operação matemática. A rigor poderíamos dizer a universalidade no
juízo de gosto kantiano é apenas um horizonte descortinado pelo atual jogo das facu ldades subjetivas, mas não
indubitavelmente presente.
189
necessidade de produzir sua própria transcendência, sem poder situar-se para além dos
limites do artefato humano, nem desistir da persecução desse ideal de transcendência. Mas
a interpretação que fizemos do vínculo entre tal transcendência secularizada e a
historicidade na arte permite-nos, por outro lado, fazer uma paráfrase da idéia de Adorno
citada acima, dizendo que, diferentemente da natureza, na arte a história tornou-se um constituinte
do próprio sublime.
f) A arte moderna como historicamente-sublime
Ao definir o sublime na natureza, Kant, como vimos, dividiu-o em dois
momentos: o matematicamente-sublime [Mathematisch-Erhabene], que diz respeito à
natureza em sua infinidade de grandeza física, e o dinamicamente-sublime [DynamischErhabene], que se relaciona à incomensurabilidade da força física das potências naturais.
Schiller rebatizou-os como teoricamente-sublime e praticamente-sublime.235 De acordo
com os conceitos que usamos para circunscrever a arte moderna como sublime,
poderíamos dizer que ela seria historicamente-sublime. Apesar do vínculo aparente que essa
denominação tem com a concepção kantiana, há uma diferença fundamental. Em Kant,
os advérbios que antecedem “sublime” dizem respeito ao que provoca o sentimento em
jogo, ou seja, as infinidades de grandeza e de força naturais. Em nossa definição, o
advérbio “historicamente” vincula-se mais propriamente ao efeito que a experiência de
contato com a obra proporciona, embora também se ligue ao que a provoque.
Segundo Adorno, a categoria do sublime é aplicável à arte como um todo, e
não a cada obra particular. Em dois momentos ele afirma isso:
Dever-s e-ia contrapor ao hedonismo estético aquela passagem da teoria kantiana do sublime, que
ele, timidamente, recusa à arte: a felicidade nas obras de arte seria, quando muito, o sentimento da
resistência, que elas mediatizam. Isso vale antes para o domínio estético como um todo do que
para a obra de arte individual. (ÄT 31/27; tradução própria)
Frente a obras de arte concretas não se deveria falar mais do sublime sem a ladainha da religião
cultural, e isso é derivado da dinâmica da própria categoria. (ÄT 295/224)
O sublime em relação a cada obra singular, portanto, somente poderia ser
considerado como oco, vazio, já apontado por Welsch, em que a sublimidade reside antes
em procedimentos e temas de antemão considerados grandiosos, pomposos, e que, com
justa razão, são rechaçados por Adorno.
A idéia de que o domínio estético como um todo, historicamente
considerado, reserva um lugar para o sublime na arte nos parece correta, mas que esse
lugar somente existe se se considera a totalidade desse domínio, tal concepção se apresenta
incompatível com a que apontamos acima de que “obras em que a forma estética se
transcende, sob a pressão do conteúdo de verdade, ocupam o lugar que outrora o
conceito de sublime significava”. Com efeito, se se pode perceber que há essa
auto-transcendência da forma nessas obras, por que não se poderia falar delas
adequadamente segundo a categoria do sublime? Por que a interpretação filosófica não
seria capaz de perceber, em cada uma dessas obras em que a forma se transcende, o seu
caráter de sublimidade?
Aqui seguimos, não como argumento, é verdade, mas como mais do que
uma mera indicação, a exigência enfática do próprio Adorno de que “a estética pressupõe
235 Schiller acrescenta outro, o pateticamente-sublime, que diz respeito à relação de empatia com o sofrimento
alheio. Cf. “Vom Erhabenen”. In: Sämtliche Werke. München: Carl Hanser, 1989, pp.489-512.
190
incondicionalmente a imersão na obra de arte individual” (ÄT 268/204 — grifos nossos). A
questão reside, assim, em dizer qual o significado que tal transcendência possui em termos
de experiência com cada obra de arte.
De acordo com todo o desenvolvimento temático dos itens anteriores,
dizemos que essa transcendência está ligada a um modo de percepção histórico-temporal
diferente da que fazemos na experiência comum. Vimos, mais de uma vez, que o
solipsismo engendrado pelas formas herdeiras da racionalidade ocidental liga-se
estreitamente à ausência da apreensão da dinâmica histórica de si e do mundo. Como
mostramos no item sobre ideologia, a razão tout court, tal como se desenvolveu no
esclarecimento, contém uma opacidade fundante em relação a si mesma, pois o cerne de
sua constituição — pari passu com a identidade individual — são as relações de poder.
Considerando toda a dinâmica do movimento de alteridade radical proporcionado pela
obra de arte, vemos que a experiência estética na modernidade proporciona um modo de
apreensão do objeto como não vinculado estritamente à ânsia de determinar o sentido das
coisas em um “fictício e unidimensional agora”. Para a percepção temporal cotidiana, o
passado e o futuro, uma vez abstraídos do presente através do desencantamento radical
da realidade, permanecem meras idéias e/ou imagens, que servem de parâmetros para
avaliar o instante atual. O que dizemos em relação à arte é que, nela, o fluxo histórico em
que o presente se insere é vivido como determinação viva, atual, fundante da própria
experiência, uma vez que o olhar que pretende apreender o objeto não é capaz de fazê-lo
a partir de um ponto de referência onipotente. A percepção cotidiana é já enformada
historicamente, como diz Horkheimer:
Os homens não são apenas um resultado da história em sua indumentária e apresentação, em sua
figura e seu modo de sentir, mas também a maneira como vêem e ouvem é inseparável do
processo de vida social tal como este se desenvolveu através dos séculos. Os fatos que os sentidos
nos fornecem são pré-formados de modo duplo: pelo caráter histórico do objeto percebido e pelo
caráter histórico do órgão perceptivo. 236
Entretanto, essa historicidade é surda, subterrânea; podemos ignorá-la
simplesmente — o que normalmente se faz —, e se a levamos em consideração, esse é
um conhecimento que, embora altere substancialmente o modo como encaramos as
coisas, continua por demais abstrato, continua um saber sobre o desenvolvimento histórico
do mundo. A experiência estética da arte moderna é aquela em que a historicidade do
mundo e do eu invade a percepção. De um modo um tanto análogo a como Kant diz que a
imaginação, em seu fracasso constitutivo em fornecer uma totalidade intuitiva do objeto
em sua infinidade, passa a tomar esse fracasso como uma apresentação negativa das idéias
da razão, dizemos que a experiência de alteridade para com a obra de arte é o momento
em que o abalo do solipsismo subjetivo constitui-se como a mediação radical para
descentrar a experiência de sua referência temporal puntiforme. Na arte, a história não é
mera enformadora pressuposta para a experiência: ela é trazida à tona por um estiramento
do sujeito em relação a um objeto que escapa ao poder de conhecimento abstrato,
centralizado nas relações de poder.
O absurdo que a obra de arte parece nos colocar como desafio, a
irresolubilidade essencial de seu enigma, o prolongamento de nossa relação com ela, a
promessa interrompida de uma transcendência, o impasse entre o universal e o particular,
a exigência de interpretação continuada, a necessidade de sua inserção no contexto
236 Max Horkheimer. “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. Tradu ção de
Edgard a. Malagodi e Ronaldo Pereira Cunha. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.125 (Col. Os Pensadores).
191
histórico, a crítica ao estado de coisas e ao sujeito, a paradoxal fixação da evanescência do
transcendente em uma imagem que se recusa o caráter simbólico mágico-animista, os
choques surpreendentes que o novo nos coloca na arte — tudo isso, que procuramos
desenvolver brevemente nos itens anteriores, leva-nos a dizer que a arte nos proporciona
uma experiência mimética do tempo histórico e, nesse sentido, é historicamente-sublime.
192
Conclusão
O percurso dessa tese foi trilhado nas linhas que demarcam os limites da
ipseidade subjetiva, instituídos historicamente na produção do conhecimento, que, ao
mesmo tempo em que possibilitou a apreensão do objeto enquanto outro, levou ao
enredamento do sujeito na mesma malha estreita que este lançava sobre tudo o que se
contrapõe à esfera da consciência.
Para caracterizar essa dialética, começamos com a apresentação daquilo que
foi sendo desenvolvido de forma drástica na história da civilização ocidental: a abstração.
O ser humano jamais existiria como tal se não tivesse havido uma ruptura fundamental
entre o núcleo diretivo de suas ações e os impulsos que o levam a agir. Toda a alteridade
que o homem poderá experimentar pelo resto de sua história somente veio a ser possível
porque ele tornou-se estranho a si mesmo. Essa estranheza não existe nos animais, uma vez
que podemos observar neles um recobrimento expressivo do ímpeto para agir e a forma
como ele será satisfeito. É exatamente porque o homem não trouxe da natureza aquilo
que dá forma à sua pulsão, que ele teve que aprender a ser o que ele é, e, assim, pôde
instaurar esse véu entre o si e o outro. Foi preciso que ele encontrasse algum ponto que
servisse de âncora para gerenciar o redemoinho de ímpetos desconexos que recebia e
produzia em seu corpo. Esse nexo entre a profusão interna de movimentos e aquilo que
viria a ser a tão acalentada Consciência não foi nem a materialidade das sensações, nem a
abstração do conceito.
No início, a imagem… Para vir a ser si mesmo, o homem precisou imitar o
outro. O mimetismo foi o elemento mais rudimentar dessa interação imagética, mas algo
meramente automático, pouco mais que um ato reflexo em alguns momentos. A mímesis
em sentido pleno pôde ser qualificada quando o exercício contínuo dessa imitação acabou
por evidenciar a imagem como sendo forte, pesada, ganha ndo uma densidade cognitiva
tal, que aquilo que viria a ser o sujeito já possuía uma superfície para ver sua face refletida
nela.
Medo de tudo e do todo… O antílope “sabe” como escapar da morte. O leão já
está “programado” pela natureza para fazer o que precisa para não morrer de fome. Mas e
o homem? Como acabar com a dor? O que evita a morte? A indistinção de seus ímpetos
internos e de suas sensações tinha como correlato a indiferenciação de tudo lá fora, e a
fonte generalizada do perigo foi, aos poucos, apreendida como poder infinito da natureza,
tal como um ápeiron de eflúvios poderosos, o mana. Como uma alteridade radical, na
verdade o próprio indivíduo entrelaçava-se nesse turbilhão de forças e sentia-se
concretamente subjugado a elas.
O poder da imitatio… A limitação imagética da potência natural difusa deu
origem à magia. Foi assim que os poderes naturais tornaram-se especificações do mana, e
os ícones que duplicavam tais poderes foram vividos como sedes de forças anímicas. Em
vez de uma totalidade indivisa, rituais que invocavam os poderes da natureza a serviço
dos fins humanos.
O evento primevo… Em um outro tempo, cravado no âmago abissal do
universo tecido por forças poderosíssimas, os espíritos foram encontrar o puncto
originário, o foco instaurador da verdade ôntica de tudo. O mythus da origem sedimentou
a fonte de compreensão da realidade no evento primordial, de onde promana a substância
de todo ser e acontecer relegados a meras cópias. A méthexis platônica em relação às idéias
já era vivida de forma concreta, sem a abstração metafísica, no terror que resplandecia a
partir da incomensurabilidade assustadora perante aquilo que rememorava a
transcendência infinita do poder da origem. Quanto mais longe do instante do agora, mais
193
o evento primordial cobrava a dívida pela existência, com a força com que o abismo atrai
aquele que ousa medir-se com o que não conhece medidas. O curso do mundo segue a
trilha que se desdobra a partir da palavra que não se separa do ser: o fatum incorpora a
substancialidade da origem que se eterniza, garantindo a permanência do significado
coletivo estampado no horror do símbolo das forças naturais.
Para além da natureza…A Grécia Antiga estabeleceu um modus vivendi e
cognoscendi sui generis: o esclarecimento. Sua mitologia institui uma cisão qualitativa frente às
outras através do plano de clivagem que fez os deuses abstraírem-se das forças da
natureza. Das primeiras divindades ctônicas até os deuses da luz olímpica, a abstração teonumênica perante a esfera phýsico-aisthética foi cada vez mais reforçada. O que virá a ser
o lógos filosófico já povoava a imaginação abstrativa dos mitos gregos. A mera
representação mental reconheceu-se como depositária do que configura a fonte de
intelecção do real: as relações de poder. O espírito nasce com a autoconsciência de sua
separação perante o contexto dos mais fracos. A aristocracia logocêntrica helênica firmouse a partir da vinculação do poder à âncora cognitiva unitária da Idéia, que expulsa da
utopia cristalina da unidade política sem conflitos a promiscuidade mimética com o outro
no medium por demais granuloso da imagem estética.
A res operandi… Apesar de sua suprema abstração, as metafísicas grega e
medieval ainda espelhavam um mundo teleologicamente estruturado, ao mesmo tempo
em que denunciavam a injustiça das relações de poder no chorismós do eidos perante a phýsis.
O mundo cartesiano não conhece tal teleologia, e o fato de o autor das Meditações não
construir uma ética fundada na res cogitans, propondo apenas uma moral provisória, é
emblemático da suprema abstração que se delineava: procurou-se a ratio essendi do sujeito
na pura atividade cognoscendi. “Não quero precisar do outro para saber que eu sou”, diria
Cartesius — uma falácia.
Wissen zur Macht… O mundo que se abre com a consciência do saber como
coisa desnuda aquilo que sempre foi o cerne do esclarecimento: o saber orienta-se para o
exercício distanciado de poder sobre a natureza e sobre os outros. A ciência moderna
nasceu com o universo burguês não por acaso. Ambos originam-se da consciência de que
a idéia de universalidade deve valer para tudo: desde o movimento do servo para fora do
feudo até o refinamento absoluto da extrema simplicidade lógica do “Eu=Eu” de Fichte.
O saber como técnica desvela a disseminação social da abstração cognitiva, espelhada na
hierarquia da divisão do trabalho.
Senhor de si…Mas essa divisão já se podia ver na formação do mundo grego,
e também de um modo microscópico no sujeito mesmo. Este emerge precisamente, em
sua forma proto-burguesa, no reconhecimento de que as relações de poder devem ser
internalizadas. O núcleo da subjetividade a se formar, expresso alegoricamente na Odisséia,
é conquistado na medida em que se rompe o nexo com a imagem beatífica e sedutora da
natureza, lida como um prazer de dissolução a ser evitado a todo custo. A força enrijecida
do caráter é o prêmio para uma razão suficientemente astuciosa para desmistificar o
engodo ambivalente da imagem mítica.
O retorno do recalcado… Qual uma neurose coletivamente monstruosa, o
poderio militar que desaba sobre o mundo na 2a. Guerra Mundial pôde ser lido como
uma vingança da natureza, como um retorno da onipotência do radicalmente diferente,
que, negado abstratamente em sua alteridade, instaura-se sem espaço para a constituição
livre do si. A própria neurose em termos individuais pode ser lida como um mimetismo
que se dá em termos compulsivos, posto que o ser humano passa a não mais determinar a
si mesmo livremente, mas, sim, a partir de impulsos naturais descontrolados.
194
A opacidade da representação… O grande problema filosófico que se delineia
nesse quadro não é que ele seja uma descrição catastrófica relativo a uma situação
pretérita, pois ele não é apenas isso. A racionalidade como tal contém algo da
instrumentalização do saber como sua espinha dorsal, posto que se funda em relações de
poder na apreensão do objeto. A razão tout court é ideológica, pois contém uma opacidade
inamovível sobre seu solipsismo constitutivo.
Pensar mimeticamente… A tarefa filosófica de Adorno: instaurar um processo
crítico radical sobre o próprio pensamento, a fim de encontrar, nos interstícios paratáticos
dos conceitos não-hierarquizados, o reflexo monadológico de um objeto que insiste —
para nossa sorte — em não se enquadrar na trama conceitual de nosso pensamento,
podendo, então, ser conceituado em sua diferença — o oxímoro adorniano. Entre a
decepção constitutiva de abocanhar o objeto por inteiro em sentenças protocolares e a
idéia metafísica que flutua “chorismática” para além de todo sensível, há o espaço que a
filosofia preenche com sua noção de esperança, que é a única que nos permite constituir,
com algum direito, a idéia do que seja verdadeiro.
O devir no pensamento… O esclarecimento teve como um elemento bem
próprio a negação da dinâmica histórica como fundante da relação para com o objeto. A
dialética negativa de Adorno pretende fazer o pensamento mover-se através da negação
determinada da força com que as categorias sintetizam aquilo que se encontra no objeto
como algo a ser moldado. Trata-se de perceber a história sedimentada nas coisas, como
índice da violência perpetrada contra elas ao longo da civilização.
Quid tempore est?…O tempo tem uma longa história. Nasce com a abstração
ainda fraca dos primeiros conceitos, aprofunda-se com a imagem mítica e ilumina-se com
a abstração conceitual grega. Alcança a intimidade subjetiva necessária com a inquietação
agostiniana sobre esse ponto que sempre passa, nunca pára e jamais volta, que parece não
existir, mas que é sempre falado… A modernidade aplainou-o bem ao gosto da ciência
matematizada e, com a teodicéia pseudo-secularizada do espírito absoluto, passou a ter
como sentido o desdobramento de uma história teleologicamente estruturada rumo à
Liberdade. Mas nem a planura do tempo unidimensional, nem uma História como palco
do espírito que se auto-reconhece, faz justiça à historicidade constitutiva e inalienável do
próprio pensamento que deve reconhecer a si como constituído pelo objeto. É preciso
pensar o que seria um tempo mimeticamente constituído.
A imagem do tempo…A arte moderna é um momento em que o espírito
atrita-se com a natureza em um continuum de tensões não-resolvidas. A herança do sublime
como um estremecimento entre o reino da liberdade e da natureza, que Kant retirou da
arte, é, na modernidade, a vivacidade com que a dissonância integra a obra de arte como
um de seus momentos inalienáveis. A degeneração da arte, a perda de sua atmosfera
aurática, tornou-se para ela o que a faz ter alguma chance de sobrevivência em um mundo
totalmente desencantado. A negação da transcendência estética é o modo com que a arte
procura escavar à procura de sua própria transcendência, posto que resignar-se a não fazêlo seria sua capitulação frente ao próprio sistema que pretende denunciar. Com essa
estrita antinomia histórica, a arte é sempre uma irrupção momentânea e cristalizada de
uma alteridade radical fugidia, em que o todo e o particular, não encontrando repouso,
obrigam a um estiramento do sujeito por sobre si mesmo, suprassumindo a experiência
cotidiana do tempo puntualmente determinado em uma experiência mimética do tempo.
*
195
Nesse trajeto que percorremos, é possível extrair quatro teses fundamentais,
que são os fios condutores de cada um dos capítulos respectivamente.
1) O conceito de mímesis, bastante discutido em geral, e muito mal
compreendido entre os comentadores de Adorno, foi delineado, aqui, através da idéia de
que a representação mimética, fundada em uma imagem que duplica o mundo,
possibilitou um substrato físico, material, por meio do qual o sujeito pôde criar um meiotermo entre a esfera mental, diretiva de suas ações e a materialidade de seus impulsos
sensíveis e motores. A indeterminação desse conceito, até mesmo na obra de Adorno,
pode ser explicada pelo fato de que não se atentou para o fato de que a duplicação
imagética sempre representou para o sujeito um momento de expressão, uma vez que, ao
produzir a imagem duplicada da realidade, ele precisou projetar-se nela. Por mais
rudimentar que seja o processo de expressão de algo interno que, a rigor, nem sequer se
formou ainda, é preciso que se tenha claro que o movimento de pro-dução da imagem
deve ter sido realmente muito significativo para seres que não possuíam um vínculo de
“curto-circuito” entre o que dirige suas ações e os ímpetos motores. O entrelaçamento de
sujeito e de objeto é compreendido facilmente a partir desse conceito de mímesis, pois o
sujeito ainda está totalmente mediado pelo medium material da imagem, que congrega de
forma enfática o que seria o objeto e a esfera subjetiva.
O processo de formação do conhecimento instaura-se de forma definitiva
com a autonomização da imagem, que adquire cada vez mais um peso próprio na relação
com a realidade. O fato de a imagem ser vivida como poderosa frente ao real é um
momento revelador da dívida que o sujeito sempre contraiu para se formar. Do
preanimismo até o mito, a imagem cristaliza-se cada vez mais em um núcleo explicativo
do mundo, mas nunca deixando de exercer uma força atrativa como princípio vivencial.
2) A Dialética do esclarecimento opera com dois conceitos distintos do que seja
“esclarecimento”. Um deles, usado normalmente pelos críticos vinculados a Habermas,
diz que se trata de um processo sem começo nem fim. Buscar uma etapa “anterior” a ele
caracterizaria precisamente o que ele é, ou seja, um modo de taxar alguma coisa de nãoesclarecida em contraste com uma “nova” fase, em que a luz de uma racionalidade
especial teria brotado na mente humana. Em vez de alguma ruptura decisiva, essa vertente
apela para o vínculo imediato entre poder, coletividade, conhecimento, opressão. Dada a
relação constitutiva entre conhecimento e poder, faz-se igualar a formação do saber ao
esclarecimento tout court. O outro conceito desse processo de racionalização, que, segundo
pensamos, é o que norteia a primeira parte da Dialética de 1947, diz do mito grego como
seu início. O que marca a mentalidade “esclarecida” não seria simplesmente um exercício
do poder através de alguma forma de representação do real, mas, sim, a abstração do
pensamento perante toda a massa de seres que deve se subjugar a ele. A astúcia esclarecida
consiste precisamente em tomar consciência cada vez mais clara dessa cisão radical. A
emergência da subjetividade proto-burguesa em Ulisses é emblemática para isso. Somente
com a abstração fundamental da força unívoca da razão perante a ambigüidade do
comportamento mimético é que o sujeito pôde emergir do seio indistinto da natureza, ao
mesmo tempo bem-aventurança e dissolução.
Podemos admitir que a dominação seja parte do pensamento; que ela
constitua a falsidade dele; mas ela não pode ser tomada como algo que caracterizou a
falsidade do pensamento indistintamente, ou seja, sem que se considere a mediação da
especificidade do saber.
3) Por outro lado, essa falsidade não é um destino inamovível, que condena
o homem à passividade perante as forças sociais, que, condensando e dirigindo esse
núcleo de opacidade do pensamento perante si mesmo, perpetuam a injustiça como algo
196
natural. Chamamos de ideológica essa propriedade de uma determinação representação em
dificultar o processo de reflexão sobre o que legitima o valor que se dá a alguma porção
da realidade. Trata-se de algo próprio da constituição do todo social que ele procure
instituir modos de os indivíduos esquecerem, negligenciarem, os porquês, as causas, os
fundamentos, de sua existência. O olhar dirigido para frente, ancorado em uma
consciência razoavelmente satisfatória de que a vida vale a pena ser vivida, de que há um
sentido para tudo — inclusive para o sofrimento —, é o elemento propriamente
ideológico da estrutura social como um todo.
Mas ideológicos não são apenas determinados construtos, inseridos em
contextos sociais específicos, mas a própria racionalidade ocidental. Adorno queixa-se de
falta de historicidade no trato com o conceito de ideologia. Mas perceber-se uma raiz
comum a todas as formas ideológicas não é ser anistórico, pois tal raiz é precisamente
aquilo que nos permite aplicar essa qualificação a todas elas. Se não fosse possível
distinguir esse fundamento comum a elas, como poderíamos dizer que todas são
“ideológicas”? A rigor, podemos dizer que o próprio Adorno é que desprezou a
historicidade desse conceito, ao imputar até mesmo à manifestação do desejo do predador
de devorar sua vítima como ideológica, caso ele tivesse consciência, como se todo e
qualquer exercício de poder fosse ideológico.
Com base em nosso conceito do caráter ideológico do pensamento, podese conceber a tarefa da Dialética negativa como sendo a de voltar-se radicalmente contra
essa opacidade da razão perante seu outro, através da marcha crítica dos conceitos contra
a dureza de sua abstração, que nivela as diferenças e as particularidades em prol da
constituição da única coisa que permite pensar: a identidade. É precisamente essa démarche
que caracteriza a assunção de uma temporalidade para o pensamento, que procura ler nas
coisas a história armazenada nelas como uma escrita.
4) Aliando as três temáticas anteriores: a constituição mimética da
consciência, a abstração solipsista da razão esclarecida e a historicidade do pensamento
como conseqüência da crítica do pensamento a si mesmo, somos levados a tematizar o
vínculo entre a alteridade e o tempo histórico. A tese mais ou menos implícita que
governava os três capítulos iniciais era que a ipseidade subjetiva reforçava
tendencialmente a anistoricidade da representação do mundo. O cogito cartesiano e o
formalismo de Kant mostram muito bem como que o tempo do qual se abstraiu a história
é a contraparte de uma filosofia que pretende fundar o sujeito a partir da mera atividade
do pensamento. A ciência moderna positiva, fundada em abstrações crescentes, e alheia a
uma investigação crítica de seus pressupostos, trabalha com uma noção de tempo deshistoricizado.
Somente a arte moderna, sob o signo da alteridade radicalmente
experimentada no sublime, é o meio que se abre a uma experiência do tempo histórico
que não é puramente abstrata, como um agora a-dimensional. A tese que tentamos
mostrar é que no sublime artístico a história é trazida para o âmbito da própria
experiência, não permanecendo mera forma subterrânea com que o mundo é vivido. Para
isso, não basta “reconhecer” a história pregressa do objeto, nem inseri-lo em um saber
positivo sobre seu desenvolvimento histórico; é preciso que a própria apreensão do objeto
inclua uma nova maneira de situá-lo nesse desdobramento de seu sentido. Como a
mímesis foi, durante toda a tese, o “campo” conceitual privilegiado para determinar as
relações entre sujeito e objeto que não se resumiam ao pólo doador de sentido por parte
do primeiro, e considerando a imbricação de alteridade e a dinâmica histórica da arte,
dizemos que a arte moderna proporciona essa experiência mimética do tempo.
*
197
Para finalizar, invocamos a tese central do segundo capítulo, que foi, desde
as primeiras leituras, aquela que resultou, após seus desdobramentos, na presente tese.
Se Adorno e Horkheimer tivessem mesmo que reescrever o livro que
analisamos em parte, eles deveriam começar pelo título. Pois não se trataria,
propriamente, de uma dialética do esclarecimento, como se todas as etapas de constituição da
racionalidade humana fossem apenas fases de uma dinâmica que se perde “até o passado
mais remoto” e que hipostasia a dominação enquanto má-fé inerente a toda forma de
exercício de poder. Tratar-se-ia, em vez disso, de um processo em que a identidade e a
diferença entre homem e natureza conheceu diversas facetas, diversas maneiras de se
estabelecer mediações entre o si mesmo e o outro, de modo a constituir a identidade
através da separação crescente em relação ao que se lhe contrapõe como espírito. No
desenrolar da racionalidade, o esclarecimento é apenas um minuto, o “mais soberbo e
mais mentiroso da ‘história universal’”, mas que se diferencia radicalmente dos demais,
pois pode medir, com seu olhar de fênix, a distância que o separa da felicidade. A partir
desse prisma, ele pôde vislumbrar as cores refratadas do que seria um mundo melhor; mas,
da mesma maneira que a luz branca, em sua totalidade, in vero facto, não tem cor alguma,
essas cores somente são visíveis a nós pela refração, pela quebra, que nosso conhecimento
produz ao tentarmos ver de onde elas poderiam provir. A consciência dessa refração está
irmanada à satisfação de sabermos que, na verdade, a beleza reside em que não
conhecemos a luz branca: não somos nem deuses, nem natureza; é precisamente esse o
prazer da autoconsciência reflexiva humana: o reconhecimento de que é na penumbra,
entre a claridade solar do théos e o abismo uterino da phýsis que o redemoinho instável
dessas cores preenche a imagem que o ánthropos faz de um “diferente”, de um além do
fatum. Na experiência estética do transcendente secularizado pelo poder da enformação
subjetiva não-arbitrária, o sujeito se estende por sobre um tempo prenhe de seu outro,
crítica radical de uma violência surda contra o diverso, contra o que se subtrai ao domínio
categorial esclarecido. — No processo percorrido sucintamente nessas páginas, todos os
conceitos, idéias e argumentos constituíram os degraus hesitantes dessa contribuição para
uma dialética da alteridade.
198
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Resumo
A tese interpreta o conceito de alteridade a partir do pensamento de Th.
Adorno, analisando a constituição histórica da subjetividade. A primeira parte analisa
detalhadamente a mímesis desde suas manifestações mais rudimentares até o pensamento
mítico. A segunda parte fala da racionalização ocidental, o esclarecimento, usando o
conceito de abstração como base da ruptura desse processo em relação à mímesis. O
terceiro capítulo enfoca a proposta adorniana de um pensamento radicalmente crítico em
relação ao solipsismo da razão esclarecida, com sua exigência de conceber a historicidade
do real e do pensamento. O último capítulo aborda a emergência e desenvolvimento da
consciência do tempo histórico, vinculando o conceito de sublime à sua manifestação na
arte moderna como expressão de uma experiência mimética do tempo.
Abstract
The thesis interprets the otherness concept from the thought of Theodor
Adorno, analyzing the subjectivity historical constitution. The first part analyzes in details
the mimesis since its more rudimentary manifestations until the mythical thought. The
second part boards the occidental rationalization, the enlightenment, using the abstraction
concept as rupture base of this process in relation to mimesis. The third chapter focuses
the Adornian proposal of a radically critical thought regarding solipsism of the
enlightened reason, with its exigency of conceiving the real and thought historicity. The
last chapter boards the historical time conscience emergency and development, entailing
the concept of sublime to its manifestation in the modern art as expression of a mimetic
experience of time.
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