número de lançamento de nossa revista Lindonéia

Transcrição

número de lançamento de nossa revista Lindonéia
LINDONÉIA # 0
Antônio Berni. Ramona adolescente, 1976
caderno de imagens
índice
expediente |
04
editorial |
05
Lindonéia e Ramona: um amor impossível | Maria Angélica Melendi
Textos |
Às vezes fazer algo poético pode vir a ser político, e às vezes fazer algo político pode vir a ser poético | Ariel Ferreira
07
O complexo de Sansão: como demolir um templo sem danifcar suas paredes | Lucas Delfino
12
Cosmococas e Objetos Relacionais: a participação na encruzilhada entre o público e o privado | Lais Myrrha
18
O outro em Sebastião Salgado e Santiago Sierra: modos de usar | Fabíola Tasca
24
Arquivos na era digital | Hélio Alvarenga Nunes
29
Três antinomias e uma tautologia: comentário e reflexão a partir do texto Antinomies in Art History de Hall Foster | Adolfo Cifuentes
38
Coletivos de arte: Kaza Vazia, entre sacada e dispensa | Melissa Rocha e Tales Bedeschi Faria
41
Arte, arquitetura e filosofia no contexto das práticas artísticas contemporâneas que invadem o espaço cotidiano | Rachel Falcão Costa
49
caderno de imagens |
54
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
3
expediente
edição e coordenação | Maria Angélica Melendi
comissão editorial | Adriano Gomide, Hélio Nunes e Lais Myrrha
revisão | Hélio Nunes, Tales Tales Bedeschi, Maria Angélica Melendi
projeto gráfico | Lais Myrrha
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
4
caderno de imagens
editorial
Maria Angélica Melendi | dezembro de 2010
Lindonéia e Ramona: um amor impossível
A saga de Ramona está narrada pelo artista numa multidão de
pinturas, colagens, gravuras e objetos. Ramona nasce no subúrbio e, cheia
No avesso do espelho
Mas desaparecida
Ela aparece na fotografia
Caetano Veloso
de esperanças, chega ao centro. Para sobreviver e porque deseja uma vida
Os desaparecidos reaparecidos
no triste instante de glória de
uma foto no jornal; as manchetes
com o suor e o sangue de todos
os que, de repente e brevemente
ganham nome na ‘geléia geral’...
Roberto Pontual
mitologia urbana, encarnando de uma vez e para sempre todas as heroínas
Um dia qualquer do ano 2000, paseando pelas livrarias de Buenos
melhor, passa, ao longo do tempo, pelas mãos de distintos “protetores”: um
marinho, um militar, um amigo espiritual, um conde, um bispo, um embaixador
e, finalmente, vence na vida. Com os olhos vazios e o coração doce, entra na
do tango — las milonguitas — seduzidas pelas luzes da cidade.
****************************************************************************
Desde a primeira vez que vi Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio, 1966,
Aires, vi, entre as publicações, um display de acrílico que anunciava Ramona,
de Rubens Gerchman, fixou-se na minha memória. Não sei se foi por causa
revista de arte, e que continha simples folhas dobradas ao meio. Era gratuita e
da moldura de espelho que se plantava insolentemente no meio do quadro,
se pedia uma colaboração aos interessados. O aspecto austero da revista me
pelo rosto triste, ou pela frase trágica: Um amor impossível - A bela Lindonéia
surpreendeu — uma revista de arte sem imagens nem cores — e a continuo
de 18 anos morreu instantaneamente.
lendo até hoje, quando ostenta, ainda sem imagens nem cores, quase 100
páginas de papel couché. As artes visuais argentinas reverberam em Ramona,
cujo centro está fixada a moldura de um espelho bisotado. No espelho,
cujo objetivo foi, desde o primeiro instante, devolver a palavra aos artistas.
ou onde estaria o espelho, impresso sobre o cartão, aparece um rosto de
Imediatamente supus que Ramona homenageava Ramona Montiel, um
mulher; a reprodução ampliada e reticulada de uma foto 3 x 4 em branco
personagem criado por Antonio Berni. Nunca confirmei a suspeita; mas ainda
& preto. Por cima da moldura, contornando-a, lê-se: UM AMOR IMPOSSÍVEL
acredito nela. Ramona Montiel é uma alegoria da historia da Argentina, dizem
e, na parte inferior do suporte: A BELA LINDONÉIA - DE 18 ANOS MORREU
alguns, uma mina de arrabal, disse Berni.
INSTANTANEAMENTE.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
Lindonéia é um quadro pequeno, uma montagem de papelão em
5
Roberto Pontual a incluiria na incômoda galeria de tipos que nos
Do outro lado da vida
Despedaçados,
Atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
anos 60 saem do jornal, da classe média, do subúrbio ou das periferias das
metrópoles. Está claro que a imagem e a manchete pertencen à crônica
policial. Lindonéia seria uma entre os tantos populares que passaram a se
incorporar — apenas com um nome ou uma imagem — à mitologia dos anos
60. Uma a mais a se inscrever no inventário dos homens infames que Foucault
enumera a partir das lettres de cachet do século XVIII.
A breve história da bela Lindonéia,
morta aos 18 anos, é esboçada apenas por
A partir da imagem precária o poeta inventa uma Lindonéia parda e
tímida — não a mulata gloriosa da mitologia brasileira — uma moça suburbana
que some na frente do espelho e que nos abandona para sempre:
escassas palavras.. Uma história trágica ronda
Lindonéia: sabemos que não morreu de dor de
Oh, meu amor
A solidão vai me matar de dor
Vai me matar
Vai me matar de dor
amor porque isso supõe uma morte vagarosa,
lenta e sofrida. Suicidou-se, então, ou foi
assassinada? Foi executada? (Ressoam ainda
perto de nós os 13 tiros que Clarice contou
na morte de Mineirinho, os mais de cem
que mataram Cara de Cavalo ou aquele com
que Alcir Figueira da Silva, imortalizado na
bandeira de Hélio, suicidou-se a beira do Rio
Timbó, para não cair nas mãos do esquadrão.)
Há também a Lindonéia de Caetano que,
inspirada no quadro de Gerchman, se
Tudo isto é para explicar porque nossa revista se chama Lindonéia:
para homenagear a Ramona que já anda por ai há mais de 10 anos — em
papel e digital — e porque, como os fundadores de Ramona, queremos dar a
palavra aos artistas, aos estudantes de arte e aos apaixonados, como nós pelo
poder das palavras. Enquanto Ramona deve ser hoje uma senhora decente,
a tímida Lindonéia continua desaparecida, mas essa é sua vantagem, sua
vingança, sua revanche: ela impregna todas as espécies de espaços:
confunde por um momento com ela, mas logo
em seguida se dispersa pelas ruas daquela ou
desta cidade perturbada.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
Na igreja, no andor
Lindonéia desaparecida
Na preguiça, no progresso
Lindonéia desaparecida
Nas paradas de sucesso
Lindonéia desaparecida
6
Às vezes fazer algo poético pode vir a ser político, e às vezes
fazer algo político pode vir a ser poético.
por Ariel Ferreira
O título deste artigo é também sua epígrafe. É o nome de uma
exposição do artista Francis Alÿs na galeria David
Zwirner1
em Manhattan,
Os
sempre
trabalhos
parecem
de
Alÿs
governados
em 2007. A sentença parece ser traduzir uma atitude próxima ao Paradoxo da
pela ambiguidade, à míngua de
práxis, onde confirmamos que às vezes fazer algo não leva a nada, enquanto
dramatização de suas personagens,
não fazer nada às vezes leva a algo. Este artista é escorregadio ante quase
de rostos imparciais e neutros,
todas as vontades de classificação, ou melhor, as classificações da crítica de
cristalizadas num momento da
arte nem sempre dão conta da tarefa de delimitar seus trabalhos. Gostaria
narrativa, que nos conta algo por um
de sugerir neste breve artigo que essa questão, além de pertinente à obra de
fragmento, como um frame de um
Francis Alÿs, é um bom prisma para entender a arte mais ambiciosa 2 feita nos
longo filme sem título, cujo o roteiro
dias de hoje.
seria suposto mas não conhecido.
Francis Alÿs. Paradoxo da
praxis 1, 1997.
Documentação de uma
ação. (vídeo 5’)
Francis Alÿs. Estudo para The last Clown, 2003.
animação e desenho.
Tal ambiguidade é descrita por Cuauhtémoc Medina pela palavra “quase”:
“'Quase' descreveria com perfeição o processo imperfeito da triangulação
do sentido em que cada descrição possível (palavra, objeto, imagem) 'quase'
corresponde ao significado da experiência” 3. Quase belga, quase mexicano;
quase arte, quase vida; quase uma revolução e quase que não acontece. À
primeira vista, as imagens nos surpreendem com um impacto típico do nonsense. Com tempo, nos demoramos frente a elas, corremos a vista na legenda,
e vamos desvelando sugestões e interrogações, relacionando-as aos outros
trabalhos do artista. Mas dificilmente encontramos uma resposta última; a
busca de sentido está sempre aberta, sem apaziguamento, sem nomeação
estanque. Seguir alguém que enquanto caminha não está fazendo, não está
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
7
Francis Alÿs. Para R. L.. Zócalo, 1999.
sabendo, conhecendo nem falhando4 é
coragem e astúcia para enfrentar o mundo. A cada projeto de Alÿs, é lançado
vagar pelo desconhecido, é pisar em terreno
um livro com fotografias e textos de críticos competentes, o que o faz ser
proscrito, em contínuo exílio ambulante.5
um contador de histórias [fábulas?] nas quais ele mesmo é protagonista.
“Deslocamento” parece ser a palavra-
Mas, se uma vida não pode se transformar num conto7, podemos sugerir
chave que pode abrir sendas em sua obra.
três camadas de significação sobrepostas em cada um de seus trabalhos: a
Já não será da periferia ao centro – o
primeira corresponderia à vida de Francis Alÿs, às ações reais acontecidas nas
movimento esperado que sempre leva a
ruas, nos espaços públicos e que podem envolver a vida de outras pessoas
vanguarda ao museu – mas o deslocamento
e as relações sociais imediatas; a segunda seriam as histórias contadas de
do centro (Europa) para a periferia (México);
boca em boca pelos habitantes e moradores da cidade, que criam um rumor
sem esquecer, entretanto, que a Cidade do
e transformam os acontecimentos numa mitologia urbana; a terceira seria
México é a maior megalópole do planeta.
tudo aquilo que adentra o “mundo da arte” – como arte contemporânea –,
Podemos mesmo perguntar qual a eficácia
seriam as instalações, os vídeos, entrevistas, críticas, pinturas, objetos, este
de determinar o que seria o centro, ou
texto.
onde estão as bordas nesse mundo já tão
O político é um tema tradicional da arte moderna. Poderíamos escrever
mediatizado. Corremos o risco de um turismo incauto pelas imagens que nos
dois capítulos sobre os primeiros pintores modernos do século XIX: um sobre
chegam; logo, tentemos considerar que se trata de um movimento político.
os que pintavam os vales, os bosques e a lagoa; e outro para os contrapor
A América Latina é um continente conturbado onde Política é sempre a
àqueles que pintaram as fábricas, as ruas, as prostitutas e os revolucionários.
ordem do dia, recortada nas silhuetas das cidades, ou lavando o pára-brisas
Todavia, o tipicamente “moderno”, como Baudelaire o entendia, mereceria
do carro. Em um ambiente assim, um artista que realize seu trabalho na rua
um terceiro capítulo que citasse Manet como paradigma, pois com ele
estará inexoravelmente tratando de política, das linhas de frente de uma
aprendemos que a representação de novos modos de vida requer novos
modernização que avança e recua de esquina em esquina6. O mundo pós–
modos de representação.
11 de Setembro afirma a perpétua situação de exceção na qual a história
se desenrola. E a América do Sul seguirá como laboratório vivo e visível das
inserir comentários ou mesmo ações de cunho político em suas poéticas.
contradições políticas cotidianas.
De certa forma, a evidência deste tema ora se torna mais visível, ora menos.
Os trabalhos do belga sempre contemplam um tema político,
Estamos num momento em que esse aspecto é privilegiado institucionalmente,
mas, ao mesmo tempo, graças à ambiguidade descrita acima, a política é
como pode ser constado pelo interesse despertado pelas neo-vanguardas
apresentada poeticamente. Ela é legível por alegorias e, não raras as vezes,
latino-americanas, pela recorrente citação de Hélio Oiticica, pela emergência
com bem humorada ironia, acompanhada do frescor de um conto de fadas.
de coletivos, criação de bienais no terceiro mundo, etc. Não é novidade que
Walter Benjamin via nas histórias infantis um imaginário que transmite
a história da arte sofre constantes reenquadramentos. O desafio hoje é situar
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
No decorrer do século XX, inúmeros artistas se preocuparam em
8
a arte como fazer singular na sociedade – qual é a função do artista quando
e podemos vê-la em “termos puramente esculturais, como uma descrição
a História da Arte sofre uma explosão e perde suas justificativas? Doravante,
da forma no espaço” 9, e inclusive equacionar o dispositivo fotográfico na
não devemos mais tratar a arte como um campo autônomo ou exterior ao
composição da imagem; nas cenas de Cuando la fe mueve montañas, uma
mundo que o contém, mas como processos, ainda que tímidos, de feitura
linha de gente armada com pás anima uma montanha, realiza um milagre 10.
desse mesmo mundo. Pois a arte participa daquilo que Jacques Rancière
Não seria o caso de modernos tratores e escavadeiras como aqueles usados
chama de “partilha do sensível” .8
por Smithson, falamos de pessoas.
Com falsa displicência, Alÿs recorre a uma história canônica que
remete à land art e ao minimalismo, mas, em vez de trabalhar com materiais
supostamente inertes, naturais ou industriais, constrói sua poética num
ambiente urbano onde as tensões sociais não podem ser escamoteadas.
Devemos reajustar nosso olhar: o objeto não será um corpo localizado a
uma distância segura do real, mas estará incluído nele, participará, vai lograr
e sofrer com ele. A negociação não deverá ser ‘material’, mas ‘materialista’,
entre o artista e a comunidade próxima.
Política como poética, ou poética como política, a coincidência entre
os dois termos é ilustrada aqui pela composição textual de Júlio Plaza, que
se dirige à utopia de realização estética de uma arte porvir em território
latino. Gostaria de alinhar a produção de Francis Alÿs a essa tradição de ações
políticas entendidas sob um quadro estético. Usando as palavras de Luis
Camnitzer, que localiza melhor a questão:
“(…) há determinados casos em que a guerrilha urbana atinge
níveis estéticos, transcendendo amplamente a função puramente
política do movimento. É quando o movimento alcança esse
estágio que ele realmente se encaminha para a criação de uma
nova cultura, em vez de simplesmente fornecer novas formas
políticas a velhas percepções.” 11
Francis Alÿs. Quando a fé move montanhas, Lima, 2002.
Do deserto do Peru, em 1972, Richard Long trouxe uma fotografia
demarcada com uma linha de sua caminhada. Quando Alÿs participa da
Bienal de Lima (2002), compõe uma linha de pessoas com fé para mover uma
montanha. Se na foto de Long, uma vivalma se presentifica na paisagem,
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
O que está em jogo nessa utopia, é a crença de que a emancipação
do homem – e não digo meramente do ponto de vista econômico e social,
mas uma emancipação cultural, para não dizer espiritual do ser humano –
aconteceria por intermédio da arte. Esta utopia inquietou mentes artísticas
9
na América do Sul, mas não é monopólio desta região. A proximidade que
Se a política é estetizada, a arte pode responder se politizando. Ela
mais rápido vem à mente seria com os situacionistas. Todavia, se queremos
pode, nada ainda garante seu sucesso. Num contexto assim, às vezes fazer
atualizar teoricamente as colocações sobre “guerrilha urbana”, ações políticas,
algo poético pode vir a ser político, e às vezes fazer algo político pode vir a
etc., devemos lembrar que uma revolução socialista se afigura hoje mais
ser poético.
como uma nostalgia do que uma possibilidade. As ações políticas da arte
contemporânea, doravante, lidam com um vazio partidário, o que significa
a perda de uma bandeira vermelha comum. Comunismo parece hoje um
termo desgastado, assim como o fascismo pode ser alargado até englobar
a estrutura do Estado de Israel. Podemos trocar as palavras se estamos de
acordo com o significado que devem tomar.
Depois de mais de 70 anos, A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica continua a ser o texto de Walter Benjamin mais
citado quando se escreve sobre arte. “Aura” já se tornou jargão. Entretanto,
o ensaio foi escrito num tempo de guerra iminente, de catástrofe antevista,
e acredito que este fato é o que o torna mais presente. Transcrevo sua última
linha como um prognóstico: “Eis a estetização da política, como a pratica o
fascismo. O comunismo responde com a politização da arte.” 12
A estetização da política é característica do Estado Fascista. A
barbárie ocorre por um processo de “auto-alienação” da sociedade onde
a própria destruição da humanidade é assistida como espetáculo, “como
um prazer estético de primeira ordem”. Se hoje, estamos certos de que
Notas
1
Francis Alÿs: SOMETIMES DOING SOMETHING POETIC CAN BECOME POLITICAL AND SOMETIMES
DOING SOMETHING POLITICAL CAN BECOME POETIC, February 15 – March 17, 2007, In. : < http://
www.davidzwirner.com/exhibitions/127/index.htm >
2
Arte ambiciosa, assim é traduzido Hal Foster para o espanhol quando este quer denominar
uma atitude artística ”avançada”. Atualmente, “vanguarda” não pode mais ser usado pois se
torna um termo datado a partir dos anos 1980 . Além disto “afirma Hal Foster que el crítico
de arte es una especie en extinción. La crítica de arte atraviesa profundas reconsideraciones
señaladas en diversos textos de teóricos (“Art critics in extremis” de Hal Foster en 2002 y “What
happened to art criticism” de James Elkins en el 2003). La crítica de arte actual se diversifica
en análisis cultural, alegato académico, ensayo filosófico, relato descriptivo y escrito poético. El
crítico se confunde en papeles de curador, y las disciplinas de su procedencia se amplían. Ante
este estallido sobre la identidad y función de la crítica de arte, apuntaría, siguiendo a James
Elkins, tres cualidades que debería poseer el texto crítico: Una, el texto de crítica de arte debe ser
abiertamente ambicioso buscando comparar la obra con pasados trabajos, relacionándolo en
contexto histórico. Dos, el texto debe ser fundamentado en conocimiento teórico elaborando
un juicio sustentado con argumentos, y no sólo creado a partir de opiniones viscerales intuitivas.
Y tres, el texto de crítica de arte debe procurar enlazar lo periodístico con lo académico en arte
como testimonio y reportaje del arte contemporáneo [grifo meu]. In.: < http://www.criticarte.
com/Page/file/art2004/replica21.html>
3
detalhes13 , ponto por ponto; também ponto por ponto, micropoliticamente,
Cuauhtémoc Medina, Casi cuadros, Casi objetos, Alÿs, Galeria Arte Contemporáneo, México,
1992 (catálogo), citado por Bruce W. Ferguson, Creaciones Inquietas, In. : Passeos/ Walkings,
Museu de Arte Moderno (catálogo).
ela pode ser questionada ou subvertida. É o que percebemos das peripécias
4
a espetacularização se entranhou nas relações humanas até os mínimos
de um estrangeiro que, desde 1986, caminha por dez quarteirões do centro
histórico da Cidade do México: intervindo na tessitura social da paisagem,
ele é o mais recente participante de uma partilha do sensível, do visível ao
invisível, que ali dura pelo menos 600 anos.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
“Faço alusão a um traballho intitulado: “As long as I am walking…”(1992). Pode ser encontrado
em: In.: MEDINA, Cuautémoc: Diez cuadras alredor del estúdio, Textos e entrevista, Talleres de
Offset Rebosán, Cidade do México, 2006, p. 22-23.
5
(…) lo que crea este exílio ambulante es precisamente aquel cuerpo de leyendas que ahora se
añora tanto en nuestro entorno; es una ficción, que además tiene la doble característica, como
los sueños o la retórica peatonal, de ser el efecto de los desplazamientos y la condensación...
podemos medir la importtancia de estas prácticas (contar leyendas) como prácticas que sirven
para inventar espacios. Michel de Certeau, The practice of Everyday Life, Walking in the City,
10
University of California Press, Berkeley, 1984, pp.106-107. Citado a partir de : Passeos/ Walkings,
Museu de Arte Moderno (catálogo) .
6
Tenho em mente que escrever sobre F. A. do Brasil será diferente se escrevesse de outro lugar.
7
Los cuentos solo existen en los cuentos (mientre la vida pasa sin dejarse volver en un cuento),
anotação sem assinatura (provavelmente Francis Alÿs) In. : : Passeos/ Walkings, Museu de Arte
Moderno (catálogo) (ano ?), p. 31.
13 Excederia
em muito o artigo relacionar a concepção de espetáculo para W. Benjamin e Guy
Debord, no entanto, acredito que seria um trabalho muito produtivo. Além de espetáculo como
prática política do facismo; a necessidade que os dois teóricos reclamam de se “despertar do
sonho de alienação espetacular”; a mercadoria como não-vivo; etc. DEBORD, Guy, A Sociedade
do Espetáculo.
8
É claro, que “as artes nunca emprestam à manobras de dominação ou emancipação mais
do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas:
posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E
a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a
mesma base.” In.: RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: EXO
experimental org.; Ed. 34, 2005. p. 26
9
É claro que o trabalho de Long problematiza outras questões: mas havia uma outra direção
importante para esse trabalho. Os materiais de um lugar específico podiam ser removidos e
expostos na galeria. Aqui a questão não é tanto“a obra real está na paisagem ou na galeria?”quanto
“que contribuição a paisagem dá para efetividade específica da obra na galeria, dado que a
origem dos materiais faz a diferença? Desde o início, Long foi descrito como continuador de
uma tradição especificamente britânica de artistas da paisagem”De qualquer forma, gostaria
de sublinhar que as paisagens de R. Long serão discutidas em torno da questão institucional da
arte, da contribuição destas questões dirigidas à história da escultura como categoria artística.
“Mas também traz a mente a observação de André de que a paisagem inglesa é a maior “arte
da terra” do mundo” In. : ARCHER, Michael. Arte contemporânea. Trad. Alexandre Krug e Valter
Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 95. Conscientemente capcioso, pergunto:
A paisagem da Inglaterra se estende pelo globo como um império virtual que não poupa o
território do Peru? Richard Long cumpre o papel de colonizador, no caso?
10
Em Cuando la fe mueve montañas nunca poderíamos nos descuidar que a localização da
paisagem não pertence apenas a uma realidade natural, dada às especulações românticas sobre
o sublime, mas ela está entretecida a uma paisagem política (no sentido de polys). Uma relação
mais direta entre F. Alÿs e R. Long pode ser verificada em 1999, uma ação que se chama: PARA
R. L. Um varredor de rua, com uma vassoura “elabora uma linha com detritos (de fato, guimbas
de cigarro) em um espaço cuja carga política absorve qualquer intento de atividade estética ou
formal” In.: MEDINA, Cuautémoc: Diez cuadras alredor del estúdio, Talleres de Offset Rebosán,
Cidade do México, 2006, p. 77.
11
CAMNITZER, Luis, Arte Contemporânea Colonial, In.: Escritos de Artistas, Anos 60/70. Orgs.:
Glória Ferreira e Cecília Cotrim. Ed. Jorge Zahar,2006. p.273
12
BENJAMIN, Walter, Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad: Sérgio Paulo Rouanet. Editora Brasiliense. SP., 1994, p. 196
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
11
O complexo de Sansão:
como demolir um templo sem danifcar suas paredes
por Lucas Delfino
I.
Em certo momento do documentário Vingue Tudo Mas Deixe Um De
O suicídio heróico de Sansão – e a morte dos 960 zelotes
Meus Olhos (2005), do cinegrafista israelense Avi Mograbi, somos conduzidos
entrincheirados na fortaleza de Masada – é esmiuçado no documentário
para o interior de uma gruta debilmente iluminada pelo fogo de velas
através de cenas que escancaram seu culto e a disseminação de sua história
alojadas por entre as fendas da rocha. Diante da parede da caverna está um
tanto nos sítios arqueológicos como nas salas de aulas, mostrando a relação
judeu ortodoxo que conduz o fogo por cada uma das velas, proclamando:
da população atual de Israel com seus mitos bélicos, escancarando um
projeto ideológico que visa propagar a glória das façanhas de Sansão e dos
Essa é a gruta de Sansão o Herói, que como está escrito foi
poderosamente imbuído do espírito do Senhor. Ele foi um
homem de valor que salvou da extinção o povo judeu. Lutou
sozinho. Quando esteve em Gaza, o leão quis matar Sansão o
Herói, mas foi executado por suas mãos nuas. (...) Sansão era
como uma serpente na grama. Tinha pernas curtas e voou por
sobre um burro através do vento de sua respiração. Nele havia
um poder espiritual. Cada soco de seu punho era capaz de
derrubar 10.000 homens.
Ao longo do documentário nos é mostrado como a narrativa bíblica
de Sansão está para Israel como um mito fundador de resistência, um herói
e um juiz, que subjugou os inimigos dos israelitas até mesmo no momento
de sua morte, quando, escravizado e humilhado pelos filisteus, na cerimônia
pagã que comemorava seu aprisionamento, instalou-se por entre os pilares
de sustentação do templo, e num abrir de braços, dotado de força divina, pôs
o prédio abaixo ceifando sua vida e a de todos os milhares de presentes.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
zelotes como exemplo de transcendente abnegação e incondicional recusa
à rendição ante os povos inimigos. O extermínio dos inimigos é primordial,
ainda que enviesado por ações autodestrutivas.
Essas narrativas ganham ares controversos quando são entremeadas
às cenas da habitual humilhação a que são submetidas às populações
palestinas nas fronteiras do país, criando um díspare paradoxo que
parece justificar igualmente os ímpetos terroristas do radicalismo árabe,
escancarando a dificuldade israelense de projetar e igualar a injustiça que
moveu seus mártires do passado ao programa de sujeição e sitiamento dos
povos da Cisjordânia.
II.
Ao final de algumas vias sinuosas, margeadas por palmeiras e sob
o sol escaldante que provê a elas o seu lento e extravagante crescimento,
chegamos à Galeria Lago no Centro de Arte Contemporânea de Inhotim,
onde, ao passar por uma frondosa mangueira cravejada de bromélias e
12
atravessar
as
largas
portas
de
vidro
transparente que se abrem sozinhas ao
nosso passo, nos deparamos com Sansão
perpetuamente cristalizado em seu momento
glorioso.
Refiro-me à instalação do artista
norte-americano
Chris
Burden
Samson,
concebida em 1985, anexada já há alguns
anos ao acervo de Inhotim e exibida desde
2004 na antecâmara da Galeria Lago. Entre
os arte-educadores do museu, a Galeria
Lago é conhecida por estabelecer uma
“mostra histórica” em Inhotim, alojando
obras de artistas que tiveram suas carreiras
consagradas dentro dos ânimos da década de
70 – o passado mítico da arte contemporânea:
Artur Barrio, Hélio Oiticica e o próprio Chris
Burden.
Sua obra Samson (Sansão) é uma
espécie de mecanismo que conecta uma
catraca a uma engrenagem de rodas dentadas,
Chris Burden. Samson, 1985.
de onde parte uma tira de couro ligada a um
macaco mecânico alojado entre duas toras de madeira suspensas como dois
conectado a um sistema de transmissão e uma catraca. O macaco pressiona duas
braços pelo espaço da galeria. Na extremidade de cada um deles, há uma placa
grandes vigas apoiadas contra as paredes da galeria. Para entrar, o visitante deve
de aço quadrado que se apóia contra as paredes.
passar pela catraca e esta, a cada passagem, aciona quase imperceptivelmente
O título Sansão não se justifica através de uma relação ilustrativa com a
o mecanismo. O Sansão de Chris Burden, portanto, apropria-se da prosaica
obra - já que a estrutura é pouco ou quase nada antropomórfica - mas está ligado
energia gerada por cada passante ao cruzar a catraca transvertendo-a numa
ao potencial imanente de suas engrenagens, e relacionado ao espaço onde o
força incomensurável a tensionar, aos poucos, as paredes do prédio – capaz de,
trabalho se insere. Samson consiste em um macaco mecânico de 100 toneladas
potencialmente, arruinar suas estruturas e trazê-lo abaixo.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
13
Às vezes, ao percorrer os olhos pela parede, imediatamente acima dos
Um ano depois Burden afirmou “minha arte é um exame da realidade.
braços de madeira, é possível distinguir uma rachadura que se estende até o
Ao ambientar situações aberrantes, minha arte passa a funcionar em uma
limite do elevado pé-direito. Como um raio, ela marca sutilmente as paredes
realidade elevada, em um estado alterado. Eu vivo para esse tempo”. Suas
alvíssimas da sala, assinalando, discreta, a reticente ameaça do Sansão de
práticas desse período evidentemente logravam que também o público
Inhotim.
acessasse, imperiosamente, uma porção de realidade à qual poderiam estar
imunes, segundo o projeto de condicionamento da subjetividade levado a
III.
Chris Burden notorizou-se no cenário artístico norte-americano da
cabo pelas transformações nas tecnologias da imagem e da comunicação
década de 70 por suas performances arriscadas, que submeteram seu corpo
de massa que caracterizam o período - o “sonhar a vida e o tempo na era da
a situações de extremo estresse físico e psicológico, sendo responsável por
televisão – ou antes, o que é ter pesadelo enquanto vítimas que se preparam
algumas das mais radicais propostas em body art do período. Seus trabalhos
para desastres já chegaram (...)” 2. Em Velvet Water, Burden força o seu público
iniciais tinham como mote não só testar o impacto de forças naturais sobre o
a defrontar duplamente um evento traumático, tanto através dos rumores
corpo de um indivíduo empenhado em beirar os abismos de sua resistência
de sua execução ocultada como também por sua reprodução instantânea
– ao lidar com situações de perigo e desastre iminente - como o de elevar
através dos meios tecnológicos da TV e do som.
igualmente os níveis de ansiedade e tensão de seu público cúmplice.
Tomemos como exemplo a performance Velvet Water (“Água de
IV. Samson foi desenhada e exposta pela primeira vez para a exposição
Veludo”), executada em 1974 na Escola do Instituto de Arte de Chigago. Nessa
No! Contemporary American Dada, na Henry Art Gallery da Universidade de
ocasião o artista anunciou: “Hoje respirarei água, o que é oposto a se afogar
Washington. A proposta da exposição estava em reunir artistas americanos
porque quando se respira água você acredita ser a água um oxigênio mais rico e
herdeiros do negativismo dadaísta, ressoando em seus trabalhos o
espesso, capaz de sustentar a vida”. Ele mergulhou a cabeça numa bacia com
enfrentamento de todos os tipos de autoritarismo e a atitude contestadora
água, mantendo-a submersa pelo mais longo tempo que pôde, tragando a
pela qual ficou conhecida essa vanguarda histórica – “anti-arte, anti-social,
água pelo nariz e pela boca. Quando puxava a cabeça para fora, arfando e
anti-tudo” 3.
soluçando por ar, rapidamente voltava a afundá-la na bacia e assim a ação
se desenrolou até o correr de cinco minutos, no fim dos quais Burden caiu
dadaísta de “ir contra a arte, ao enxergar além da fraude da qual a arte é uma
asfixiado. Durante todo esse tempo ele esteve ocultado de seu público por
válvula de segurança moral” e assim sua investida de 100 toneladas contra as
uma parede improvisada com um escaninho e seus espectadores, sentados
paredes das galerias pelas quais passou talvez tenha privado “os burgueses
como num auditório, assistiram suas repetitivas investidas na bacia de água
da oportunidade de ‘comprar arte com essa justificativa’”. Pode ser que esse
somente através de um monitor de vídeo e, ainda que fosse possível escutá-lo
Sansão esteja mesmo resoluto e crente de que “toda arte deve ser destruída”,
através do armário, seus grunhidos foram amplificados por caixas de som1.
assim como estiveram imbuídos os dadaístas históricos em “toda a veemência
de sua natureza limitada” 4. De fato, Chris Burden salienta a forma como sua
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
Talvez o Sansão de Burden possa assinalar efetivamente a resolução
14
instalação/escultura subverte a noção de museu como espaço sacro, o templo
que abriga a arte como num asilo; mas no percurso de seu Sansão hesitante
específica de Samson: a de se colocar sempre na prévia das exibições onde
não existem ruínas.
esteve instalado, tornando a ultrapassagem de sua roleta um obstáculo
Antes de ser retido e fixado na antecâmara da Galeria Lago em
imperativo ao público, segundo o uso corrente das catracas em outras esferas
Inhotim, Samson, para além de sua estréia em Seattle, já foi exibido na
sociais em que a obrigatoriedade e o controle restringem a livre passagem
prestigiosa galeria Zwirner & Wirth de Nova York. No catálogo dessa exposição
do sujeito de acordo com normas implícitas do contrato social – pagar
Kristine Stiles lê a obra segundo sua citação mitológica, “uma acusação que
bilhetes, adentrar empresas, acessar ambientes restritos com a prudência do
associa, tanto ingênua como astuciosamente, a falha fatal de Sansão [devido
isolamento. A catraca de Samson é o bloqueio ao qual têm que se submeter,
às suas atrações eróticas pela filistina Dalila, que o traiu e o entregou] à uma
um por um, o contingente ávido dos “amantes da arte”, cuja passagem será
crítica da procura por prazer visual por parte dos amantes das artes (escopofilia)
orçada na base do desastre tramado por Sansão – que, como metaforiza o
e a forma como a inter-relação entre a exibição de arte e a compulsão por ver
próprio Burden, movimenta-se como geleira, permanecendo o retesamento
(como gratificação sexual) comprometem a própria capacidade da arte em
de seus braços poderosos invisíveis ao olho nu de quem o observa.
existir.” 5
compenetrado em tornar o público cúmplice do atentado que está
Chris Burden. Samson, 1985. Catraca, engrenagem de rodas dentadas, tira de couro, macaco
mecânico, toras de madeira e placas de aço | dimensões variáveis.
Em termos freudianos, Stiles remete a uma característica bastante
Naturalmente, Samson de Chris Burden pode estar mesmo
destinado a ameaçar pelo resto de seus dias, à espera da massa de passantes
escopófilos que ativarão em definitivo sua potência destruidora, libertando
sua alma contestadora. Mas a leitura de Stiles talvez não leve em conta que
o Sansão de Burden está agora e daqui para frente encerrado em um museu,
e sua vocação subversiva deverá ser substituída pela delicadeza dos tratos
museológicos, a encerar perpetuamente as ranhuras que insiste em riscar nas
paredes brancas do cubo branco onde está instalado.
No último domingo em que estive em Inhotim, às vésperas do feriado
de sete de setembro, a sinuosa estrada de terra que leva até os portões
de entrada do museu abarrotava-se de carros enfileirados, desvelando
uma insólita cena de congestionamento bucólico. Intermitentemente, o
relinchar de tratores e máquinas de construção civil quebrava o costumeiro
repouso daquela via, cujo terreno, em função das escavações e das grandes
quantidades de terra revolvida descortinava-se no escarpado cenário dos
grandes parques de obra, metamorfoseando-se para engendrar uma vultosa
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
15
estrada de asfalto por entre suas colinas, que dará acesso imediato ao museu.
íntima com os projetos de elitização e distinção na esfera da cultura e seus
Transformando de forma incisiva suas vias acesso, Inhotim vai se preparando
enlaces pantanosos com os círculos políticos e financeiros dominantes – prova
para multiplicar os milhares de visitantes que recepciona a cada semana, ao
ser uma espécie de fênix irredutível, que engole regozijante as sabotagens
mesmo tempo em que expande seus pavilhões aos confins mais selvagens de
arquitetadas para expô-la ou desacreditá-la, frustrando os desejos daqueles
seu terreno, transfigurando-se paulatinamente em um dos destinos turísticos
que, torcendo por Sansão, “nada deixaria mais felizes e contentes do que
mais desejados e intrigantes de Minas Gerais.
assistir ao desastre ocorrendo em uma sociedade rica e excessiva de um lugar
distante”.8
V. Se em Inhotim, como num entrave mítico, forças de perpetuação
Por fim, o público, ao mesmo tempo em que é convidado a despertar
e construção coexistem com as necessidades de destruição e reinvenção
de sua vigília contemplativa e compreender seu papel ativo e colaborativo
constante de seu sítio, a sala envidraçada onde espreita Samson, a partir de
como vetor de transformação incluído no cerne da obra de arte, vê suas
todas as nuances discutidas anteriormente, pode ser mesmo o buraco negro
pegadas sendo computadas pela instituição tanto como o lastro numérico
para o interior do qual converge a infindável gama de questões continuamente
que celebrará seus empreendimentos, quanto como um rebanho corrosivo
a enviesar o conturbado relacionamento entre artistas, instituição e público.
ao qual devem estar blindadas da destruição as obras de arte consagradas a
No que concerne ao artista, figurar entre as atrações de Inhotim pode
durarem pelo tempo sobre-humano do futuro museológico. Entremente, o
custar o escancaramento de “gestos insinceros” embutidos em sua
público é enredado nas tramas ficcionais da arte contemporânea e através
prática, principalmente quando nela estão prescritos modelos operativos
do trabalho de Chris Burden pode expurgar e enfrentar como a um monstro
pretensamente críticos, desejosos de tornar transparentes mecanismos e
o medo de ser irrelevante em uma sociedade massiva, cada vez mais difícil
convenções das instituições de arte com as quais comungam.6
de ser compreendida e resoluta em permanecer inexorável à sua passagem
efêmera, como ondinas a roçar um inquebrantável monolito.
“Depois de passar pela roleta, ir buscar o nome do artista e ter
o prazer de me deparar com o nome de Burden, chamam-me a
atenção para o fato que a correia que deveria fazer o mecanismo
girar milimetricamente a cada passagem dos espectadores estava
girando em falso e que, obviamente, as paredes não estavam
sendo pressionadas (...). Era a última galeria que estávamos
visitando e com ela Inhotim vinha abaixo – de maneira diversa
da imaginada por Burden”. 7
No que diz respeito à instituição, ao absorver e amestrar em seu
acervo trabalhos que, segundo o entusiasmo das últimas décadas, atentaram
e denunciaram sua estrutura opressora de legitimação – além de sua relação
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16
Notas
1
O’DELL, Kathy. Contract with the skin: masochism, performance art, and the 1970’s. University
of Minnesota Press, 1998. p. 24-25.
2
FOSTER, Hal. O retorno do real. IN: Concinnitas número 8, Revista do Instituto de Artes da UERJ,
julho de 2005. p. 167.
3
Extraído do release da exposição, no arquivo virtual da galeria. http://www.henryart.org/
exhibitions/past/711/1985 - acesso em 28/09/09.
4
Todas as citações desse parágrafo são atribuídas a Richard Huelsenbeck, um dos fundadores
e defensores do dadaísmo alemão, citado por STEWART, Home. Assalto à cultura – Utopia
subversão guerrilha na (anti) arte do século XX. São Paulo: Editora Conrad, 2004. p. 10-17.
5
STILES, Kristine. Chris Burden Free Physics. IN: Chris Burden Early Work. New York: Zwirner &
Wirth Gallery, 2004.
6
A insinceridade dos gestos do artista pode ser eventualmente assumida como o fez Marcel
Broodhaers na célebre frase lançada no texto do convite de sua primeira exposição “A idéia
enfim de inventar alguma coisa insincera me veio à cabeça e, de uma vez por todas, me pus
a trabalhar”. Devo muito das idéias contidas nesses últimos parágrafos a BASBAUM, Ricardo.
Deslocamentos rítmicos: O artista como agenciador, como curador e como crítico. IN: 27.Bienal
de São Paulo: Seminários. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. p. 60-61.
7
Retiro esse relato do blog do professor universitário MIGLIORIN, Cezar. Inhotim 3 – Chris
Burden. Texto de 11/10/2007 disponível em: http://a8000.blogspot.com/2007/10/o-isolamentode-inhotim-talvez-cause.html - Acesso em 01/10/2009.
8
Esse comentário do próprio Chris Burden está inserido no contexto da obra Mini Vídeo Circus
de 1994, projeto que o artista desenvolveu para uma mostra na França que incluía entre as
suas muitas instâncias a projeção incessante em monitores de vídeos de cenas de desastres
californianos – incêndios, terremotos, violência.
Fontes das imagens
http://www.inhotim.org.br/arte/obra/view/160 (fotos: Eduardo Eckenfels)
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
17
Cosmococas e Objetos Relacionais:
a participação na encruzilhada entre o público e o privado
por Lais Myrrha
“(...) a maioria criou um academicismo dessa relação
ou da idéia de participação do espectador, a ponto
de me deixar em dúvida sobre a própria idéia.”
Hélio Oiticica
de 1990 e que crê ser distinta da arte participativa dos anos de 1960, já está
plenamente desenvolvida e madura nas obras de Lygia e Hélio; arrisco-me
a dizer que de forma ainda mais radical e anárquica do que ele (Bourriaud)
conseguiu conceber no seu Estética Relacional. Nesse livro o autor cria uma
Sei do risco de recair em possível redundância ao escrever mais
algumas páginas sobre esse ou aquele aspecto das obras de Lygia Clark e
Hélio Oiticica. Entretanto arvoro-me a fazê-lo. Menos com o propósito de
constituir uma “nova” concepção, do que para organizar algumas das minhas
impressões e reflexões sobre as noções relativas à participação, à interação, à
convivência e ao relacional nos trabalhos desses artistas.
Tomando como ponto de partida “o fim” de suas respectivas trajetórias
(os Objetos Relacionais de Lygia e as Cosmoscocas de Hélio e Neville D’Almeida),
minha hipótese geral é de que ambos os artistas transformam profundamente
as noções de espectador/participador/público — e assim daquilo que
é chamado de objeto da arte ou arte — ao negarem, de certa forma, suas
invenções (para utilizar um termo de Oiticica) à esfera pública. Talvez, fosse
melhor dizer que ambos recolheram suas invenções à esfera privada e creio
que por motivos distintos e até em prol da esfera pública.
A noção de arte ou estética relacional que Nicolas Bourriaud atribui
a uma fatia (para ele a mais importante) da produção artística da década
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
série de falsas oposições e “novidades” que só podem ser aceitas à custa de
se aceitar um reducionismo eurocêntrico que coloca todas as experiências
artísticas, européias e norte-americanas, dos anos 1960 e 70 no mesmo bojo
e, ao mesmo tempo, em que desconhece aquelas realizadas no hemisfério
sul.
Grosso modo, o que ele diz ser a principal diferença entre a arte
(participativa) produzida nos anos de 1960 e da arte (relacional) dos anos
de 1990 é que a primeira estava comprometida em definir, ampliar, testar
e tencionar os limites da arte, ou seja, convidava a uma subversão pela
linguagem 2 ; enquanto a segunda, a arte relacional dos anos 1990, privilegiava
as relações externas de uma cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao
rolo compressor da “sociedade do espetáculo” 3 e estaria voltada sobretudo à
criação de novos modelos de sociabilidade.
Aqui vale a pena mencionar que meu objetivo não é refutar os
argumentos de Bourriaud e sua estética relacional (embora esteja tentada
a fazê-lo). Entretanto como este livro tem sido amplamente utilizado como
referência teórica tanto por curadores e quanto por artistas aqui no Brasil,
18
penso que vale a pena trazê-lo à baila a partir dos dois pontos citados no
“No Brasil não quero aparecer nem fazer coisas públicas, pois
seria uma compactuação com o regime; além disso, se eu não
ficar quieto prendem-me”. 5
parágrafo anterior, e confrontá-lo, demonstrando como o relacional e a
problemática do(s) outro(s) e (seja este outro o crítico, o historiador, o co-autor,
o espectador, o leitor, o participador ou o público), já eram preocupações
arraigadas e aprofundadas na produção de Oiticica e Clark, tendo sido uma
das linhas de força propulsoras de suas pesquisas artísticas. Começando pela
situada na esfera pública, mas participar mesmo da sua constituição. Por isso,
relação entre Hélio e Lygia que, em 1986, ela mesma assim define:
a partir do momento em que essa esfera foi colocada sob o controle repressivo
“Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo
exterior. Eu, era a parte de dentro. Nós dois existíamos a partir do
momento que há uma mão que calce a luva.” 4
Afora as imagens dicotômicas que Lygia usa e que nos podem soar
ultrapassadas, o mais importante desse depoimento é a dimensão do diálogo,
da relação. O que ela marca é como a sua produção (e a de Hélio), dependiam
desse diálogo, dessa relação e da relação com o outro, com o mundo
exterior e esse mundo exterior não era restrito ao mundo da arte, mas estava
intimamente relacionado à idéia de uma esfera pública compartilhada e não
homogênea.
Principalmente nas Cosmococas de Hélio e Neville e nos objetos
relacionais de Lygia, suas preocupações não se limitavam a redefinir o campo,
domínio ou linguagem da arte. Para eles a questão da esfera pública e da
presença da arte na constituição e significação dessa esfera, deveria darse através de processos dinâmicos que envolvessem negociações, jogos,
confrontos, protestos, fricções.
Por isso, a partir do momento que, aqui no Brasil, essas possibilidades
foram restringidas, tolhidas, e a liberdade de expressão cerceada - em função da
ditadura militar que instituiu o AI5 nos fins de 1968 -, Hélio, conscientemente,
se retrai. Literalmente, declara sua retirada de cena. Em carta de vinte e três
de dezembro de 1969 à Lygia, Hélio diz:
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
Aqui fica claro que para Hélio a arte não deveria estar simplesmente
e violento de um governo militar golpista, Hélio sai de cena. Graças a bolsa
Guggenhein que recebeu em 1970, passa quase todos os anos dessa década
em Nova York (retorna ao Brasil só em 1978). Nesse período envolveu-se com
experiências em torno da expansão da linguagem cinematográfica - que
para ele deveria ser não-narrativa -, e com a construção de uma ambiência
anárquica. De certa forma é uma expansão dos penetráveis e ambientes onde
as pessoas poderiam se dedicar ao delírio-deleite (ao crelazer), ao play-papo.
Uma diferença que merece ser remarcada entre as Cosmococas, os
penetráveis e os demais ambientes criados por Oiticica (incluindo ai o seu Éden)
é que as experiências CC 6 que foram realizadas, o foram em sessões privadas,
no apartamento do próprio artista em Nova York. Depois, que retornou ao
Brasil, nunca chegou a mostrá-las. Durante os anos de 1978 e 1980 (ano em
que morreu), Oiticica atuou em alguns filmes, construiu um de seus penetráveis
para servir de cenário para um filme, participou do evento Mitos Vadios (São
Paulo) no qual realizou a performance Delirium Ambulatorium e escreve texto
homônimo. Promove o evento Caju-Kleemania, proposta para participação
coletiva no que denominou acontecimento poético-urbano.
Esse evento
realizado no Bairro do Caju no Rio de Janeiro também foi definido pelo artista,
da mesma forma que as Cosmococas, como programa in progress.
Paulo Herkenhoff argumenta que as experiência CC de Hélio são uma
crítica à sociedade de consumo (e do espetáculo) norte-americana, e que no
Bólide Cara de Cavalo a critica é remetida à sociedade brasileira7, e na base de
19
ambas as obras subjaz a questão do crime. Numa o crime é duplo: a imagem
Enquanto isso Lygia Clark desenvolve em Paris suas experiências
do temido ban dido Cara de Cavalo (que já seria a imagem do criminoso e
sensoriais coletivas com grupos de alunos ou outros interessados: Baba
assim a encarnação do crime) e, de outro lado, o seu assassinato pela polícia
Antropofágica, Cabeça Coletiva, etc. O que mais irá interessar aqui é no
que também era um outro tipo de ação criminosa. Já as Cosmococas, segundo
que essas experiências culminaram: nos Objetos Relacionais, com os quais
Herkenhoff, atuam como provas materiais de um crime. As fotos projetadas
Lygia irá trabalhar entre 1976 até sua morte em 1988 como elementos nas
mostrando, as Mancoquilagens desenhos feitos por “carreiras” de cocaína
suas sessões de Estruturação do Self. Durante esse período a artista afirma
— que funcionavam como uma espécie de maquiagem sobre retratos de
categoricamente que o que está fazendo não é arte, mas uma prática
celebridades (Merlin Monroe, Jimi Hendrix, Buñuel) para serem consumidos.
terapêutica. Não há mais aqui espectador ou participador, há simples e
Os slides (momentos-frames), não mostram o ato, a inalação, mas toda a
puramente a relação, ela e seu “cliente”, não há terceira pessoa, não há
parte material envolvida onde a ação ocorreu. Em algumas imagens chega a
testemunha, apenas duas versões, a dela e a do “cliente”.
aparecer uma mão fazendo (ou retocando) o desenho.
terapêutica, não há mais coleção, museu, exposição. Adentrar o campo da
Não há mais mercado da arte, ela cobra o tempo de uma sessão
psicoterapia de certa maneira é (re)fazer a torção e o corte contínuo que ela
propõem com seu Caminhando de 1963. Ela “entra” para arte em função de
uma crise deflagrada após o nascimento de seu terceiro filho em 1947 e “sai”
da arte para continuar revertendo, não mais só as suas, mas as crises do(s)
outro(s). Ela está caminhando sobre uma fita na qual não há nem um dentro
nem um fora, onde passa-se de um ao outro num movimento contínuo. A
partir dessa outra volta, o que irá interessar à Lygia será a possibilidade do
sujeito reinventar-se, de criar uma nova maneira de estar no mundo8 de
relacionar-se.
Assim, o recolhimento a um domínio privado nas obras de Hélio e de
Clark não nascem apenas de uma necessidade de criar um espaço autônomo
para suas práticas, mas sobretudo, vêm de uma necessidade de terem suas
obras consumidas, tragadas pelo mundo, pela vida, pelo outro, pois desejam
de alguma forma serem canibalizados, devorados porque, ao mesmo tempo,
Hélio Oiticica e Neville D’Almeida. Cosmococa 5 Hendrix-war 1973.
em que repudiam a estetização da participação não se sentem mais como
detentores da potência engendrada pelas suas proposições. Nas palavras de
Hélio:
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20
“O que acho é que o lado formal do problema (da participação)
foi superado, há muito, pelo da “relação nela mesma”, dinâmica
pela incorporação de todas as vivências do precário, do nãoformulado, e às vezes o que parece participação é apenas um
detalhe dela, porque na verdade o artista não pode medir essa
participação, já que cada pessoa vivencia de um modo.” 9
Lygia Clark. Objetos relacionais, 1976-82.
É justo essa relação nela mesma que vai gerar a radicalidade, tanto
das Cosmococas quanto dos Objetos Relacionais. A relação nela mesma, o
acontecimento, o imponderável e imaterial da obra é que pode estender-se
pelo mundo e modificá-lo, mesmo que em pequena parcela. É dessa parte
imaterial, daquilo que não está lá, é que nascem os relatos, que se dá a criação
do outro sobre qualquer proposição artística. Não basta o factual: isso e aquilo;
as palavras e a escolha dos termos e a construção (como num poema) é que dão
a dimensão ao relato da coisa10 é o que recria, modifica ou destrói a coisa.
Mas, à Hélio, incomodava a emergência de uma cultura da participação, ou
melhor, que um maneirismo participativo deixasse a descoberta/invenção do
artista ser reduzida às mesquinharias idiossincráticas do espectador que não
existe mais. Quem vive o que você (Lygia) propõe e dá ou vive ou não vive, mas
nunca fica na posição de “assistir” como de fora! Voyeurs da arte! 11
Esse espectador foi eliminado definitivamente da obra de Lygia que o
transformou em cliente ou em nada/ninguém, no qual-quer; naquele a quem
desafiou com sua prova do real. Com um seixo colocado entre a sua mão e a
do outro construiu uma ponte , a única na qual ainda acreditava que pudesse
caminhar.
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Notas
Bibliografia
1
BATTCOCK, Gregory (Org.) A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1968. Debates)
Este texto foi escrito como trabalho final da disciplina “Tensões entre intimidade e esfera
pública na arte moderna: perspectivas na arte contemporânea”ministada pela profa. Dra. Sônia
Sazstein no curso de pós-graduação da ECA/USP, I semestre de 2009.
2
Cf. Estética Relacional, p. 43.
3
idem
4
FIGUEIREDO, Luciano (org). Cartas: 1964-74. Depoimento usado como epígrafe das
Cartas:1964-74 .
5
Hélio Oiticica, 23 de dezembro de 1969.
6
Abreviação com a qual Hélio designa as Cosmococas (CC1, CC2, CC3 e assim por diante).
7
Herkenhoff, Paulo in Oiticica, Hélio e Almeida, Neville: cosmococa programa in progress
p. 247.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional; (trad.) Denis Bottmann. São Paulo: Martins Fontes,
2009.
CLARK, Lygia e OITICICA, Hélio. Cartas 1964-74 (org.) Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 1998.
Hélio Oiticia e Neville D’Almeida. Cosmococa programa in progress. (Catálogo)
Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde a você cabe o sopro. Exposição
organizada pelo Musée des Baux-Arts de Nantes, França e pela Pinacoteca do estado de São
Paulo. Curadoria: Suely Rolnik e Corinne Deserens.(Catálogo da exposição).
PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em crise (org.) Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva,1986.
(Debates).
8
Tunga em entrevista para Suely Rolnik, abril de 2005 in Lygia Clark da obra ao
acontecimento.
9
FIGUEIREDO, Luciano (org). Cartas: 1964-74. Carta de Hélio Oiticica enviada a Lygia Clark, 18
de novembro de 1968 (p.70)
10
_____ Carta de Hélio Oiticica enviada a Lygia Clark, 11 de julho de 1974 (p.227)
11
Idem
12
Ponte para Lygia era o que designava o vínculo entre ambos: mesmo depois de retirada da
mão, ainda pode-se sentir por um instante o peso da pedra sendo uma dos modos do que
denominou de prova do real. In Breve descrição dos objetos relacionais in Lygia Clark da obra
ao acontecimento.
Fontes das imagens
(fig.1)http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/galeria/open_art/1485(acessado
em 28 de novembro de 2010, 17h02)
f(ig.2)http://dezeranja.blogspot.com/ (acessado em 28 de novembro de 2010, 17h03)
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23
O outro em Sebastião Salgado e Santiago Sierra:
modos de usar
por Fabíola Tasca
O Outro excluído de certas instâncias de saber e poder exerce um
sobre a produção contemporânea, identificando o crescente interesse pelo
apelo considerável sobre a arte contemporânea, e também sobre a literatura
Outro como uma virada etnográfica na arte e na teoria, em torno dos anos 80.
e o cinema. As Paredes pintura de Mônica Nador (desde 1996), o Veículo do
Mas para Foster o que distingue este interesse daquele expresso em “O autor
sem-teto de Wodiczko (1988 – 1ª versão), bem como seu trabalho Tijuana
como produtor” é que o Outro que interessa à produção contemporânea não
Projection (2001), o Canal Motoboy, de Antoni Abadi (2007) e os inúmeros
é definido em termos socioeconômicos, mas culturais ou étnicos. Em ambos
projetos da dupla MauWau, que envolvem a participação de grupos sociais
os modelos o lugar do Outro é visto como o lugar da transformação, o espaço
específicos, são apenas alguns exemplos.
em que a cultura dominante será subvertida.
Diana Irenge Klinger1
cita vários filmes e romances latino-americanos
Embora o texto de Foster esteja mais próximo temporalmente, o
nos quais as “outridades” socioculturais ocupam um lugar central, como os
de Benjamin atrai uma atenção especial, na medida em que a relação entre
filmes Mundo Grúa, de Pablo Trapero, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles
qualidade estética e relevância política é um de seus motores. Benjamin está
e Carandiru, de Hector Babenco; romances sobre índios, como Nove noites
preocupado em discutir estética e política, instigando o artista a ser mais
(2001), de Bernardo Carvalho e O enteado (1983), de Juan José Saer; ou sobre
do que simplesmente solidário com o proletário em seus temas ou em suas
a marginalidade social, como Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, ou Inferno
atitudes políticas, propondo que este se coloque a serviço da luta de classes,
(2000), de Patrícia Melo. Embora reunidos sob um mínimo denominador
mas a partir de uma reflexão sobre sua posição no processo produtivo; a
comum, isto é, um certo movimento de empatia em relação ao Outro, esses
partir de sua compreensão como produtor.
trabalhos apresentam procedimentos, intenções e processos distintos.
Como ler esse conjunto de esforços em se solidarizar com
da cultura burguesa, intervindo na técnica. Benjamin coloca perguntas bem
determinadas minorias? Que teorização é possível aqui? Uma sugestão está
pragmáticas nesse sentido: “Consegue promover a socialização dos meios de
na atualização que Hal Foster propõe para o trabalho seminal de Benjamin:
produção intelectual? Vislumbra caminhos para organizar os trabalhadores
produtor”2.
O modelo de Benjamin estimula o artista político a alterar o aparato
No texto “O artista como etnógrafo”[nota 3],
no próprio processo produtivo? Tem propostas para a refuncionalização do
Foster discute a proeminência que a antropologia como discurso exerce
romance, do drama, da poesia?” 3 O artista político que compreendesse sua
“O autor como
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24
posição no processo de produção e não pretendesse abastecer o aparelho
Diferentemente de Sierra, Salgado afirma que espera que os espectadores
produtivo sem modificá-lo, deveria responder afirmativamente a tais
de suas fotografias sejam transformados pelo contato com as mesmas,
questões. Será que o modelo de Benjamin é pertinente para essa discussão?
enquanto o primeiro, numa perspectiva algo cínica, reitera sua compreensão
e aceitação de que a arte não tem o poder de mudar nada.
Santiago Sierra. 3.000
buracos de 180 x 50 x
50 cm cada um. Dehesa
de Montenmedio.
Vejer de La Frontera
(Cadiz). Espanha, julho
de 2002.
É justamente o caráter anti-humanista das intervenções de Sierra o que
as colocam como foco do escrutínio de leituras críticas indignadas com a sua
poética. É o fato de, enquanto artista, colocar-se deliberadamente no “lugar
do patrão” 4 o que provoca polêmicas e destrói algumas crenças firmemente
enraizadas em nossas compreensões sobre a arte, como algumas noções que
herdamos da arte moderna e que informam a doxa, conforme citadas por
Anne Cauquelin 5 : a ideia da arte em ruptura com o poder instituído, o artista
contra o burguês, os valores da recusa, da revolta, o artista como o exilado da
sociedade.
São intervenções perturbadoras as que Sierra elabora quando
contrata trabalhadores africanos, sob o comando de um capataz espanhol
(um alter ego do próprio artista?), para escavarem, em 2002, 3.000 buracos
Consideremos agora dois produtores de arte: o artista espanhol
de 180×50×50 cm cada um, em Montenmedio, um terreno da província
radicado no México, Santiago Sierra, e o fotógrafo brasileiro, Sebastião
de Cádiz voltado para o estreito de Gilbraltar, onde as águas separam a
Salgado. Em ambos, o apelo que o Outro exerce em relação à produção atual
Europa da África. A tarefa desses homens foi cavar, durante um mês, 3.000
está presente. Mas, eles não poderiam estar mais distantes entre si, pelo
buracos nas medidas descritas pelo título do trabalho, recebendo em troca
menos no que se refere às suas declaradas intenções. Santiago Sierra vem
o equivalente ao salário mínimo oficial: 54 euros por oito horas diárias de
provocando polêmica pelo modo como faz uso da participação de pessoas em
atividade. As dimensões precisas para acolher um corpo humano dão ao
ações “encenadas” no contexto da arte. Nas suas ações as pessoas executam
trabalho uma conotação trágica, fazendo referência aos inúmeros corpos
tarefas braçais, muitas vezes humilhantes e sem propósito aparente, mediante
que poderiam/poderão ocupá-los, já que a travessia do Estreito interrompe
uma remuneração que replica as condições desiguais às quais tais pessoas já
a vida de inúmeros migrantes em busca de condições melhores de vida. A
se veem submetidas. Sebastião Salgado recusa a designação de artista e se
extensão impressionante da intervenção pode ser estimada a partir de vistas
assume como um fotojornalista interessado em provocar a consciência dos
aéreas que compõem as fotografias resultantes da ação, como acontece com
leitores de suas imagens em relação ao contexto de um mundo globalizado
os trabalhos de Land art.
que acirra as desigualdades existentes, ao mesmo tempo em que cria outras.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
25
Santiago Sierra. 3.000 buracos de 180 x 50 x 50
cm cada um. Dehesa de Montenmedio. Vejer
de La Frontera (Cadiz). Espanha, julho de
2002.
“Impressionante” também é
o adjetivo que podemos utilizar
visual de Salgado, com suas composições, cortes, iluminação e escolha de
ao nos referirmos às tomadas
ângulos numa perspectiva que privilegia a dramaticidade, pode-se dizer que
que Sebastião Salgado realiza
em ambos a capacidade da fotografia em embelezar o mundo, como adverte
em Serra Pelada. As fotografias
Susan Sontag, parece evidente. Não é especialmente bela a imagem de seis
são
de
jovens de costas com uma linha tatuada de ombro a ombro? — Refiro-me
uma
ao emblemático trabalho de Sierra, no qual jovens cubanos desempregados
imagem que bem poderia ser a
são remunerados para terem uma linha contínua tatuada em suas costas.—
da construção das pirâmides por
Acaso a beleza não é um dos ingredientes fundamentais da obra de Salgado e
escravos, como alude a própria
muitas vezes o alvo das críticas que repudiam sua presença na representação
legenda. Tais imagens compõem
da miséria dos outros?
vigorosas:
garimpeiros
o álbum
milhares
compõem
Trabalhadores6,
no qual
percebemos o caráter reverente
de
Salgado
em
relação
e crianças que trabalham em
condições muitas vezes adversas.
“Força”, “`beleza”, “perseverança”,
são todos adjetivos que participam
de alguma forma do texto e das
imagens e exaltam o trabalhador.
Muito diferente é a abordagem de Sierra, que não trata de celebrar
o trabalho como definidor do ser humano; suas figuras são antes aquelas
submetidas ao esforço de um labor que não dignifica, que é antes tratado
como castigo. Empurrar cubos de cimento de um lado a outro da galeria,
sustentar pesados paralelepípedos nos ombros ou elevá-los a uma altura
mínima são ações que visam sublinhar o esforço físico bem como o fato de
que desde que seu tempo seja remunerado, o trabalhador submete-se a
qualquer tarefa.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
Nessa perspectiva, Ingrid Sischy é enfática:
Salgado está ocupado com os aspectos compositivos de
suas imagens – com encontrar a ‘graça’ e a ‘beleza’ nas formas
contorcidas de seus sujeitos agonizantes. E tal embelezamento
da tragédia produz imagens que em última instância reforçam
nossa passividade para com a experiência que revelam. Estetizar
a tragédia é o meio mais rápido de anestesiar os sentimentos
daqueles que a estão testemunhando. A beleza é uma incitação
à admiração, não à ação. 7
ao
contingente de homens, mulheres
Embora as fotografias de Sierra não invistam na direção da retórica
As fotografias de Sierra e Salgado ocupam espaço nos lugares
reservados à arte, como museus e galerias, embora Salgado sublinhe que
suas imagens circulam em diferentes instâncias e que a primeira delas é
o jornal, depois as organizações humanitárias e somente num momento
posterior os espaços institucionais da arte. De qualquer forma, soa paradoxal
sua recusa em definir seu trabalho como arte, ao mesmo tempo em que
aceita o acolhimento dos lugares da arte para suas fotografias. Aurora Garcia
reconhece em Sierra uma contradição também. Em palestra pronunciada no
Seminário Internacional Museu Vale 2008, Garcia manifesta seu incômodo
com a obra de Sierra pelo modo como as ações são transformadas em
26
mercadorias de luxo, quando circulam sob a forma de imagens fotográficas
e fílmicas comercializadas como objetos de arte. Ela se refere ao trabalho de
trabalhos de Sierra e Salgado a partir das posições destes produtores em
Sierra como
relação ao processo produtivo. Para Benjamin a relação entre estética e
[...] um exemplo de como a arte destes tempos pode cair em
contradição ao tratar aspectos candentes da indigência material
de uma parte do planeta, se o que se pretende denunciar inclui,
desde o princípio, a vontade de cooperar sem condições com
um modelo global de comércio carente de escrúpulos, para
o qual o importante é a mera transação do produto, em que a
consciência acaba se diluindo em gestos próximos ao vazio, em
uma espécie de afirmação da indigência espiritual que destila o
setor poderoso. 8
Retomando Benjamin, poderíamos pensar o caráter crítico dos
relevância política passa justamente por modificar o aparelho produtivo.
Nem Sierra nem Salgado parecem propor uma transformação do aparelho
produtivo no sentido socialista como Benjamin advoga. Ambos alimentam
esse aparelho com suas imagens e ações. Ambos estão muito bem instalados
no lugar do autor.
As sérias e boas intenções de
Salgado não seriam suficientes
para garantir sua eficácia crítica,
segundo
Mas há mesmo contradição no projeto de Sierra? Seu trabalho parece
de
com o outro que importa não
na impotência da arte — e os procedimentos que leva a cabo parece muito
é relativa aos temas nem às
bem sintonizada. Será “denúncia” um termo pertinente para tratar do caráter
atitudes políticas. Sierra sequer
crítico, ou da ausência deste, no trabalho do artista? O trabalho de Sierra
enuncia boas intenções, está
parece muito mais exibir, como Garcia salienta, uma vontade de cooperar
confortavelmente instalado no
com o sistema capitalista, do qual se coloca deliberadamente como agente.
lugar do patrão que desafia os
É como se Sierra nos dissesse que já sabemos como as coisas funcionam, já
limites do eticamente aceitável
sabemos da exclusão, submissão e exploração do outro, somos confrontados
em suas ações. Se a resposta
com estas questões em nossa vida diária. Só restaria, portanto, encenar nossa
de ambos às perguntas de
participação nesse processo. Daí a estratégia em propor ações incômodas a
Benjamin são negativas, o que
uma audiência cúmplice. A questão então seria pensar em que medida esta
dizer então da relação entre
pode ser uma estratégia crítica ou simplesmente uma reprodução acrítica
estética e relevância política?
dos mecanismos reguladores do sistema. Porque se o trabalho de Sierra
é recorrentemente criticado por limitar-se a repetir os procedimentos e
argumento
Benjamin de que a solidariedade
possuir uma coerência mordaz. A relação entre seu discurso — a insistência
costuma ser visto como uma crítica ao capitalismo, é verdade também que
o
Sebastião Salgado. Serra Pelada. Pará. Brasil. 1986.
Como alcançar um bom termo
para esta equação?
situações que compõem este sistema.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
27
A relevância política da obra desses produtores poderia ser pensada
nos termos do binômio ética/estética. Parafraseando algumas questões
Notas
1
colocadas por Ivana Bentes em “Sertões e favelas no cinema brasileiro
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2007.
contemporâneo: estética e cosmética da fome” 9, poderíamos considerar que
2
o binômio ética/estética está diretamente relacionado à representação do
BENJAMIN. O autor como produtor. In: _______. Magia e técnica, arte e política. Tradução
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: editora brasiliense, 1985. p.120-136.
outro na arte contemporânea. Uma questão ética é: como representar os
3
territórios da pobreza, dos deserdados, dos excluídos, sem cair no folclore,
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In:_______. Magia e técnica, arte e política. Tradução:
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: editora brasiliense, 1985, p.136.
no paternalismo ou num humanismo conformista e piegas? Uma questão
4
estética é: como criar um modo de expressão, compreensão e representação
dos fenômenos ligados a esses territórios? Como levar o espectador a
experimentar a radicalidade dos efeitos da pobreza e da exclusão por meio
de um trabalho de arte?
Bom, é evidente o contraste entre as boas intenções de Salgado e o
cinismo de Sierra, mas não seria tal cinismo uma estratégia mais eficiente para
Adolfo Cifuentes discute este aspecto em seu texto: Depois da etnografia (No lugar do patrão)
– diálogo cruzado com Santiago Sierra e outros artistas pós-etnográficos, a partir de Foster e
Benjamin. Manuscrito, 2008.
5
CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p. 18.
6
SALGADO, Sebastião. Trabalhadores: uma arqueologia da era industrial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
7
provocar o debate? Penso aqui, de maneira geral, na relação entre o sucesso
SISCHY, Ingrid. Boas Intenções. The New Yorker, 9 de setembro de 1991. Tradução de Ruy Cesar.
Manuscrito.
de público de Salgado e a polêmica desencadeada pela obra de Sierra em
8
certos setores da crítica. Conforme nos adverte Cuauthémoc Medina:
GARCIA, Aurora. Sobrevivência da arte em tempos de indigência. LOPES, Almerinda e PESSOA,
Fernando (orgs.). Seminários Internacionais Museu Vale. Vila Velha: Museu Vale, 2008, p. 19.
9
[…] muitas das recentes formas de arte provenientes da periferia
já não satisfazem os anseios utópicos nem buscam a aprovação
das boas consciências de seus consumidores liberais do norte e
do sul, nem tampouco sugerem a promessa (ou ameaça) de uma
forma mais conveniente de prática política redentora. 10
BENTES, Ivana . Sertões e Favelas nel cinema brasiliano contemporâneo: Estetica e Cosmetica
della Fame. In: Gian Luigi De Rosa. (Org.). Alle Redici del Cinema Brasileiro.. 1 ed. Milão: Salerno,
2003, v. 1, p. 223-237.
10
MEDINA, Cuathémoc. Una ética obtenida por su suspensión. In: Situaciones artísticas
latinoamericanas. San José, Costa Rica: TEOR/ética, 2005. p. 105-116.
Estamos, portanto, distantes do anseio utópico do texto de Benjamin,
mas ainda próximos da reflexão para a qual ele nos convida.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
28
Arquivos na era digital
por Hélio Alvarenga Nunes
e até gíria. Mas o que significa, para o artista, trabalhar com arquivo? No dia
a dia, a variedade do senso comum não é incapacitante. A secretária não terá
dúvidas ao arquivar as pastas; o tempo fará seus arranjos para tornar um
arquivo morto; a consciência do mandante não ficará pesada com a “queima
de arquivo”; o burocrata não terá escrúpulos ao “engavetar” um projeto; o
tecnófilo desligará o computador sem receio de “perder o arquivo”; o jovem
entenderá o “arquiva aí, hein!”. Por mais que essas noções sejam interessantes
para o artista, não são, claro, utilizadas por ele de forma literal. Os trabalhos de
Rosângela Rennó, por exemplo, não se relacionam com arquivos porque ela
usa gavetas e fichas. O interesse geralmente é o arquivo como instrumento
de memória, por um lado, e como aparelho de esquecer, por outro. Esses
dois aspectos, entretanto, não são suficientes para definir a relação entre arte
Captura de tela dos resultados do Google Images para ‘sierra tattooed line’
e arquivo. Eles não dão conta de que, implicitamente, todo artista trabalha
com arquivos. Nossa intenção aqui é perseguir a possibilidade de se definir
“Arquivo” é uma palavra muito utilizada na arte contemporânea. Muito
a arte contemporânea, sobretudo, como uma arte que se relaciona de um
empregada, mas raramente definida em termos realmente aplicáveis aos
modo novo com seu arquivo.
trabalhos que a utilizam. Não existe uma noção teórica estável e partilhada
do conceito de arquivo que possa ser aplicada sem hesitação à criação e
antecipadamente: os arquivos do nosso título são e não são as salas
crítica artísticas. E mesmo o senso comum guarda inúmeras variantes: móvel
empoeiradas abarrotadas de áridos documentos do conhecimento
de escritório; sala fechada; arquivo morto; “queima de arquivo”; a gaveta que
acadêmico. “São e não são”, uma adulteração da primeira frase1 do texto
“engaveta”; um conjunto definido de endereços na memória do computador;
Archives of Modern Art, de Hall Foster, que usaremos aqui como guia para
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
Dentre as diversas acepções de arquivo, cumpre estocar
29
algumas reflexões sobre o que viria a ser essa nova relação arquivística da
arte na Era Digital, e que o autor esboça como uma intensificação da dialética
catálogos de exposições10 , que apresentam uma espécie de dubiedade ora
entre reificação e reanimação da tradição.
contraditória, ora sintética, no que se refere à construção da memória. O
A frase original adianta os termos de um discurso sobre os discursos
gatilho da pesquisa foi a percepção de que os catálogos se transformaram no
possíveis. O arquivo é discutido na acepção de Foucault2: uma figura que
principal meio de contato do pintor com pintura – ao menos nas periferias
participa do complexo poder-saber, sendo o lugar onde o poder se atualiza,
artísticas –; daí ampliando-se para a discussão sobre as possíveis perdas e
onde define visualidades e enunciados. Trata-se de uma delimitação para
ganhos nessa relação, que envolve necessariamente instituições identificadas
discutir as relações arquivadas entre prática artística, museu de arte e história
como “fábricas de catálogos” 11. Ateliê, museu (também galeria) e construção
da arte desde a aurora do Modernismo até a Segunda Guerra3. A palavra
histórica interagem com/no catálogo, formando tanto arquivos-estratos
“arquivo” adquire um sentido muito específico: o que é possível conhecer.
quanto arquivos-lugares. E a relação de poder entre artista e “agências da
E tem um fundamento importante: é impossível saber o poder, pois poder
arte” difere em cada caso.
si4.
A necessidade dessa reunião surgiu de nosso estudo sobre
O poder
Por um lado, os catálogos se comportam como instrumentos mnemotécnicos,
é uma relação que não se captura, ele é exercido segundo um diagrama5 ;
servindo como referência ou auxílio na construção de uma memória que
e, por isso, não é possível determinar ao certo quem o detém. Mas sempre
poderíamos chamar “verdadeiro medium da pintura”12. Isso ocorre quando
temos certeza sobre quem não o possui, porque em algum momento ele se
estão individualizados; na consulta, no folhear. Neste momento, são
e saber têm naturezas diferentes, apesar de se articularem entre
estratifica, se estabiliza, se atualiza em instituições – que não são sua
fonte6
,
exemplares do primeiro arquivo, daquele estratificado, que contém o que
mas tornam visível a direção de seu vetor.
é possível conhecer e que não é necessariamente crítico. O poder não se
O arquivo que Foster discute, portanto, não se confunde com, nem está
encontra em exercício; ao contrário: vemos e ouvimos – ou fingimos isto –,
dentro das instituições. Quando ele fala de uma coprodução da estrutura-
com clareza e boa dose de liberdade, o artista e sua obra. Estabelecemos uma
memória nas diversas “agências da arte”, não está considerando instituições
relação de proximidade que nos coloca como que em presença: as mediações
específicas – museus-instituição, galerias, universidades, etc. Trata-se de um
são tornadas desimportantes.
arquivo “que não é nem afirmativo, nem crítico per
se” 7
e que também não
Essa sensação de contato íntimo ao folhear poderia ser explicada
segundo um cruzamento da noção benjaminiana de miniaturização da obra
está localizado.
Aqui, entretanto, aquele exergo (são e não são) adianta a intenção
de arte13 com a proposta de Barthes sobre o vínculo umbilical entre corpo
de reunir esse arquivo que não é e que não está, com outro que está em
fotografado (isto-foi)14 e corpo que vê a fotografia (isto-é) . Quando temos o
(e que muitas vezes se confunde com) um lugar. O segundo arquivo é o de
catálogo em mãos, sabemos das perdas ocorridas na reprodução – mudança
Ele é, sim, afirmativo.
de meio, redução ou ampliação do formato15 , e até a possibilidade de a obra
Ele individualiza, marca e afeta. E nele a crítica é imanente, já que é domicílio
não existir mais. Mas esse saber se reveste de possibilidade: vejo o que é
do privilégio9 .
possível, apreendo o que é possível saber. A necessidade de conhecer, então,
Derrida, indissociável de um suporte para a
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
inscrição8.
30
acaba transformando o isto-foi em isto-é. Esquecemos e nos convencemos
mais maravilhoso para o artista; um espaço onde estaremos em presença do
estar vendo um Manet, o Manet, por exemplo. É necessário, portanto, abdicar
todo, buscando estabelecer um sentido “Arte” através da comparação infinita
de certa postura crítica para consultar um catálogo. Caso contrário, nossa
de todos os registros de arte. Mas quando finalmente entramos nela, somos
percepção recairá somente sobre o arquivo, nunca sobre o arquivado.
forçados a perceber o suporte. E quando ele é palpável, quando não pode
Alguns artistas, como Sandra Gamarra16, por exemplo, parecem buscar
ser sublimado, nos encontramos abandonados frente a um arquivo que, ao
justamente essa crítica impraticável do arquivo. São poéticas que parecem
contrário de reunir, fragmenta.
nos dizer: “o que vejo aqui neste catálogo é uma obra de arte fotografada em
uma exposição que já ocorreu e que está longe; a obra não está presente, não
causado pelo acúmulo além da força humana. É que, na sala de arquivo,
a vi, nem vou ver”. Buscam a exacerbação da postura tautológica do “não há
só não é singularidade a ordem – “1, 2, 3...”, remetendo a uma origem, e
nada” diante do “vazio da tumba”, criando quase-demonstrações da cisão do
também ordem, comando. Nela, só é homogênea a marca do poder daqueles
ver17
no arquivo. Trata-se de uma espécie de choque de realidade, de susto
que guardam (e montam guarda) e detêm o privilégio da interpretação. A
ao acordar. A miniaturização deixa de ter um aspecto positivo e a relação
totalidade, então, se resume ao índice19. E, no caso específico dos catálogos,
umbilical é rompida. As páginas do catálogo tornam-se lisas e intransponíveis.
à indexação dos indícios.
Deixam de ser, até mesmo, espaço de melancolia.
O segundo arquivo, o de Derrida, começa justamente nesse ponto.
Imaginário de André Malraux20, texto emblemático em que procurava
É um acontecimento forçado, que ocorre quando os catálogos são reunidos,
compreender os novos tipos de relação com a obra de arte comprimida
quando os arquivos individuais são arquivados. Não os temos mais à mão;
nesse paradoxal espaço reprodução-biblioteca. Um resumo de sua hipótese
eles se encontram alhures, armazenados, guardados. Localizados, eles
é que a reordenação da arte pelo viés da fotografia permite a sondagem de
adquirem a forma de outra memória que não é mais a das obras de arte nele
novas comparações entre obras de arte e a criação de relações inéditas, que
reproduzidas ou descritas. É uma memória que exige outra relação, que não
vão além da autoria e do estilo.
a da proximidade e da presença. Trata-se de uma memória-marca, impressa
sobre um suporte. É um arquivo totalizante onde o poder torna-se visível e
muito às conclusões de Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica. Mas tal
invisível, porque está em exercício18.
relação geralmente é ignorada, como consequência de uma leitura adorniana,
Explicar a formação desse arquivo não é simples, pois é mais uma
que desconsidera a positividade da difusão das imagens21 . É costume ler os
sensação que um dado experimental. Imaginemos uma sala de arquivo
dois autores como contraditórios: “onde Benjamin viu uma ruptura definitiva
(uma figura que não é necessariamente física) contendo todos os catálogos
do museu forçada pela reprodução mecânica, Malraux viu uma expansão
de todas as exposições já realizadas, em todo o mundo. E ela continuará
infinita”22. Mas seria assim tão simples: um comemora o museu, enquanto
recebendo catálogos. Como no sonho das bibliotecas nacionais, já guardará
outro demonstra sua extinção? O museu imaginário parece sofrer mais com
até mesmo o que está por vir. Fora dela, idealizando-a, talvez não exista lugar
o preconceito à palavra “museu” que com a leitura adorniana23. A crítica mais
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
A questão não é a impossibilidade de totalidade, nem o sufocamento
Não sem maldade, saltemos da sala de arquivos total para o Museu
É óbvio para o leitor atento de Malraux que o museu imaginário deve
31
apressada não leva em conta a dualidade do texto onde oscila o significado
tradicional da palavra e um outro que é exatamente a ultrapassagem dessa
desdobramos um vetor ao comparar a produção de catálogos impressos e a
tradição.
divulgação via internet. Mesmo com a facilitação da produção de impressos
É uma dualidade comparável à de Benjamin, entre modernismo
com as novas tecnologias e a consequente desoneração da empreitada,
militante e melancolia crítica. Mas Malraux absorve de Benjamin a fé na difusão
percebemos que as maiores fábricas de catálogo ainda são as instituições
das imagens, na possibilidade de a fragmentação da tradição, inicialmente
públicas28. As galerias comerciais passaram a utilizar quase exclusivamente
destrutiva, tornar-se potencialmente construtiva. Foster historiciza o otimismo
a web. Mesmo podendo significar alguma diminuição de credibilidade, sem
benjaminiano, limitando-o ao período
pré-stalinista24.
Na pesquisa sobre catálogos, em salas de arquivo longe da totalidade,
Não podemos,
dúvida há um cálculo de custo-benefício, dando demonstração de que,
entretanto, deixar de considerar a possibilidade de se tratar de uma dialética
ao menos para o mercado, vale mais a divulgação na rede. Se o artista já é
não conciliatória que mantém, na crise justamente, a força do despertar 25.
consagrado, entretanto, há um esforço pelo imprima-se. Isso demonstra haver
um vínculo importante entre impressão e autoridade29.
A partir dessa relação com Benjamin, podemos resgatar o museu
imaginário como referencial crítico. A hipótese dele não deixa de ser uma
reanimação que se comprova utópica, solapada pela reificação. Mas a cada
instância, criando uma unidade das autoridades. Não há nela um único item
dia assistimos à concretização de um arquivo-lugar que se parece muito com
sem a marca da instituição que o produziu, ladeada da marca da instituição
o sonho de Malraux: a internet. Em seus primórdios, ela foi comemorada
que o guarda. O historiador não verá nisso qualquer problema, pois aborda
em discursos de inspiração humanista não muito distintos dos dele. Hoje,
o arquivo sob a perspectiva do documento na duração. Mas o artista entra
entretanto, o próprio desenvolvimento e difusão da rede demonstrou uma
na sala para se ver refletido: ele diz “meu catálogo” e dá autógrafos sobre a
capacidade ímpar de fragmentar até mesmo as relações mais íntimas do ser
página impressa; ele reverencia catálogos de artistas que idolatra como se a
humano.
impressão fosse esse artista presente. Em suma, o artista confunde o arquivo-
E, no caso da arte, essa fragmentação parece se aprofundar à medida
lugar com o arquivo-estrato e isso é, sobretudo, um sintoma das séries de
que mecanismos como Google, Flickr, Youtube, Technorati e até mesmo
recalques necessários na tentativa de ser parte da memória em uma era de
Wikipédia se desenvolvem como centros unificadores, respectivamente,
total fragmentação30.
das imagens (catalogadas e acumuladas), dos vídeos, das críticas e da
história da
arte26.
O poder de consignação na sala de arquivo acaba, em última
E quanto mais próximos estamos da sala de arquivo total, mais nos
Com eles, fica claro o que foi dito sobre a sala de arquivo:
damos conta de que não se trata de um sonho do artista, mas das instituições.
a impossibilidade da totalidade não é a questão. Nunca houve índices tão
No evitamento de seu maior medo, o fim memorial, torna-se essencial recalcar
vastos na história! Mas a contrapartida disso é uma capacidade assustadora
tal fato para seguir vivendo. Mesmo artistas totalmente anti-institucionais
e aparentemente irrefreável de consignar, formando algo como um super-
em suas negociações com a instituição, acabam abdicando dessa postura no
poder de consignação27.
momento da produção do arquivo. O arquivo torna-se inegociável.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
32
Voltemos então à internet, procurando estabelecer um paralelo com
Nem a reanimação universalizante da arte ideada por Malraux e muito
o arquivo-lugar. Nos primeiros anos de eclosão da web, costumávamos ler
menos o “outro lado da reificação” buscado por Benjamin. O impacto disso no
com frequência frases ingênuas como “Que lindo!”, seguidas de algum link
ensino, principalmente, e também na pesquisa não pode ser subestimado:
para um site de arte criado por algum artista completamente desconhecido.
é necessário fazer esforço por lembrar o que está por trás dessas máquinas
Existia um gosto por esse tipo de descoberta e a sensação de que a qualidade
aparentemente democráticas: em última instância, são elas mesmas como
do trabalho era o principal critério para sua difusão nas redes de hiperligações,
espetáculo.
nas relações entre os interessados em arte, através de seus sites e das listas
de discussão. A qualidade gerava mais links e o cômputo destes, um grau
seus similares é a cegueira crítica diante de quase-universos de visibilidade.
de pertinência. Criar um site na internet e manter relacionamentos era o
A possibilidade da totalidade arquivada nunca foi tão vívida, mas a
bastante para garantir uma boa visibilidade. A partir disso, estabeleceram-
contrapartida é a invisibilidade a plena luz, em uma espécie de panoptismo,
se as principais teorias para a elaboração de algoritmos de busca quase
no qual a promessa do todo se apaga, não no nada, mas no nada em presença
mediúnicos. Mas o desenvolvimento natural destes mecanismos acabou
e disponibilidade do todo.
gerando uma distorção inesperada, mas óbvia em retrospecto: a criação de
uma periferia muito pertinente, mas invisível, sufocada por sites centrais
da indissociabilidade entre máquina e visualidades33 . Talvez devamos ampliar
realmente idiotas, mas muito conhecidos. A imagem é lisa, intransponível e
o conceito para pensar nessas novas salas de arquivo, em seus mecanismos
suportável.
(de busca), como panópticos funcionando pela via do masoquismo, dentro da
“reprodução simples do espírito”: “O amor funesto do povo pelo mal que a ele
Com isso, qualquer busca sobre arte, que não seja específica, nos
O grande problema do Google Images, do Youtube, do Flickr e de
Em Foucault, o panóptico, que permite ver tudo sem ser visto, é exemplo
faz sofrer um processo muito semelhante ao da sala de arquivo: somos
se faz, chega a se antecipar à astúcia das instâncias de controle” 34 .
fragmentados no processo.
Para ancorar a discussão, propomos que reproduzam uma experiência
Além disso, o suporte parece ainda mais inevitável. As distinções
ocorrida durante uma das reuniões de nosso grupo de pesquisa35. Estávamos
técnicas entre fotografia digital e analógica,mudam nossa percepção
nos questionando sobre qual seria o lugar de Santiago Sierra em relação
da reprodução. Apesar de noções como “passagem da representação à
às duas posições pós-vanguardistas possíveis: resistência, por um lado, e
simulação”31
não serem partilhadas, pressentimos uma mudança no estatuto
“fim do jogo”, por outro36 . Sua crueza é tal que muitas vezes ele parece ser
da imagem quando a vemos no monitor. A insistência do senso comum em
mesmo um enfant gâté do sistema, disfarçado de terrible. A questão é que
denominar tais imagens como “virtuais”, em errônea oposição com as “reais”
seus trabalhos criam um paradoxo insolúvel entre engajamento político
32, parece uma demonstração de que a reprodução digital rivaliza com a obra
e exploração espetacularizada. Procurávamos uma imagem específica em
de arte, ao contrário do que pressupunha Malraux, sem, entretanto, entregá-
que esse paradoxo é particularmente visível – Línea de 250 cm Tatuada sobre
la à crítica, como esperava Benjamin.
6 Personas Remuneradas
tattooed line”.
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37
– e digitamos, então, no Google Images: “Sierra
33
A imagem aparece já na primeira página de resultados e até em
duplicidade. A primeira questão de nota é que nenhuma delas leva ao site de
Sierra38
humanizadora; essa aventura do museu imaginário, parece muito com as
primeiras aventuras da internet:
; e nem mesmo a expressão “Santiago Sierra” resulta em imagens de
A problemática levantada pelo museu imaginário é exatamente
a da abolição da dicotomia e da hierarquia, e a possibilidade do
estabelecimento de um diálogo que reúne Oriente e Ocidente,
pintura e escultura, filme e pintura, e até mesmo as mais
modernas técnicas audiovisuais que permitem a difusão da arte
[...] 41
seu site pessoal. Para encontrá-lo, é necessário recorrer à busca tradicional. A
segunda questão – talvez a mais importante – é a forma como tal imagem,
extremamente crítica39 , aparece em meio a uma miríade de lugarescomuns.
Impossível não relacionar a linha de Sierra às tatuagens dos campos
de concentração e daí nos remetermos à memória-marca no corpo, que é
Na verdade, a internet pode ser o museu imaginário, dependendo
a inscrição paradigmática de onde Derrida induz sua análise40. Em Sierra,
de nosso pressuposto ao acessá-la e formá-la. É a estatística do nosso acesso
entretanto, não há nem aliança, nem necessariamente desastre. O paradoxo
que “formata” o arquivo da arte hoje. Qual internet você deseja?
insolúvel está justamente na inutilidade, na superfluidade, até, dessa
impressão. Em última instância, a tatuagem mesma é um arquivo da arte e
Sierra é aquele que exerce o poder da consignação. Os homens enfileirados
consignam, confiam, seus corpos a um vetor, uma linha que os con-signa em
uma unidade que só existe localizada, e que só tem razão em si mesma.
Mas o que acontece quando estes homens são “teletransportados”
para a internet e são catalogados, indexados? A imagem parece perder seu
poder crítico, ela se reúne. Ela é re-consignada e com isso rompe-se qualquer
possibilidade de vínculo umbilical entre aqueles corpos e os nossos. A
reificação atinge a imagem e os homens, sem deixar paradoxos ou dúvidas. A
imagem é lisa, intransponível e suportável.
Os arquivos da arte na Era Digital são regulados por um mecanismo
que fragmenta a coletividade, um a um, como no panóptico, impondo uma
ficção única e afirmando a leitura adorniana da tese de Benjamin.
Mas pura melancolia é imobilismo. É necessário recuperar a dimensão
dialética dessa nova forma de acessar o arquivo. O museu que imaginamos
com as obras que temos presentes e que a reprodução faz ser inumeráveis, o
museu descentralizado e disponível, que nos permite sonhar uma totalidade
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
34
Notas
1
No original, “Os arquivos do título não são salas empoeiradas [...]” (Foster, 2002: 65. Trad.
nossa).
publicam catálogos nesses contextos nos levaram a considerar o peso da máquina de impressão,
típico da economia do arquivo de Derrida, como determinante para a legitimação e “artificação”
desses espaços.
4
“[...] o conhecimento nunca remete a um sujeito que seria livre face a um diagrama de poder,
mas este nunca é livre face aos saberes que o atualizam” (Deleuze, 1988: 83).
12
Não deixa de ser anacrônico retomar um tema do século XIX. Mas a única forma de aprender
a pintar (ou desenhar, esculpir etc.) continua sendo ver pintado. É importante mencionar que
Baudelaire (2005) propõe ser “a memória [lembrança: souvenir] o grande critério da arte” para
se opor à busca do ideal, “esse absurdo, essa impossibilidade” (30. Trad. nossa). Estabelece-se
aí, portanto, a noção de que não existe uma forma de representação “natural”. A primeira parte
do texto de Foster (2002) confronta a afirmação de Baudelaire de que arte é “mnemotécnica da
beleza” com a espécie de “pastiche de citações explícitas” criado por Manet. “Para E. Delacroix,
a natureza é um vasto dicionário cujas folhas consulta com um olho seguro e profundo; e tal
pintura, que provém sobretudo da lembrança, fala sobretudo à lembrança” (Baudelaire, 2005:
17). Poderíamos dizer que o que Manet estabelece é um outro dicionário – o arquivo da arte –
continuando a lembrança a ser origem e destino.
5
13
2
Por concisão, aqui discutimos Foucault através de Deleuze (1988).
3
Foster (2002) discute quatro pares – Baudelaire e Manet, Valéry e Proust, Wölfflin e Warburg,
Benjamin e Panofsky – cada um representando determinado estágio da dialética entre
totalidade e fragmentação da arte. O próprio autor propõe substituir o último por Malraux, que
nos interessa mais aqui.
“É uma máquina abstrata [...] quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar” (Deleuze,
1988: 44).
“Em última instância, os métodos de reprodução mecânica constituem uma técnica de
miniaturização e ajudam o homem a assegurar sobre as obras um grau de domínio sem o qual
elas não mais poderiam ser utilizadas” (Benjamin, 1993: 104).
6
“As instituições não são fontes ou essências, e não têm essência nem interioridade. São práticas,
mecanismos operatórios que não explicam o poder, já que supõem as relações e se contentam
em ‘fixá-las’ sob uma função reprodutora e não produtora” (Deleuze, 1988: 83).
7
Foster, 2002: 65.
8
Como se sabe, Derrida (2001) analisa o conceito freudiano de arquivo e a psicanálise como
arquivo. O mote principal é a notícia arquivada da circuncisão de Freud (uma dedicatória do
pai em uma bíblia). O suporte primeiro é o corpo onde se inscreve a instituição e a tradição
da lei; é dele que derivam os demais. “Neste caso, ler é trabalhar nas escavações geológicas
ou arqueológicas sobre suportes ou superfícies de peles, novas ou velhas, as epidermes
hipermnésicas ou hipomnésicas de livros ou de pênis [...]” (35). E a marca que se inscreve no
corpo põe em reserva antes uma aliança e depois um desastre. A última parte do nosso texto
retoma esse tema, que é a tatuagem.
9
“Habitam este lugar particular, este lugar de escolha onde a lei e a singularidade se cruzam
no privilégio. No cruzamento do topológico e do nomológico, do lugar e da lei, do suporte e da
autoridade, uma cena de domiciliação torna-se, ao mesmo tempo, visível e invisível” (Derrida,
2001: 13).
10
O tema central da dissertação de mestrado Pintura para catálogos: notas sobre o arquivamento
da arte, a ser defendida na EBA-UFMG.
11
Não é necessariamente um exagero. A fragilidade das instituições que expõem obras de
arte em periferias artísticas – como Belo Horizonte, por exemplo – e a deificação daquelas que
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14
“De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou
aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como
os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo
da coisa fotografada” (Barthes, 1984: 121).
15
Malraux (2000) chama atenção para essa “criação pela fotografia”, principalmente quando
ocorre sobre “artes menores”: “O álbum isola, ora para metamorfosear, por ampliação, ora
para descobrir ou comparar, ora para demonstrar. E pelo fragmento, o fotógrafo reintroduz
instintivamente essas obras no nosso universo privilegiado, como as obras do museu de outrora
ali eram introduzidas pela sua parte de italianismo” (102).
16
A artista peruana cria pinturas a partir de catálogos e muitas vezes as intitula com o número
da página original. P. 179 (2006, óleo sobre tela, 195 x 162 cm), por exemplo, baseia-se no
trabalho de Vik Muniz com chocolate a partir de uma das famosas fotografias de Pollock por
Namuth. O trabalho faz parte da série Aquisições Brasileiras, que encontra contexto crítico no
projeto Museo de Arte Contemporáneo de Lima (Li-MAC), um museu definido pela carência,
que existe na internet (cf. http://www.li-mac.org/) e dentro de outros museus: “O LiMac se
define assim [um museu de projetos e um projeto de museu] a partir de suas carências. Em um
país onde as instituições culturais são escassas e onde as galerias e salas de arte substituem o
trabalho do museu, é necessária uma máscara que agrupe todos estes esforços e, ao mesmo
tempo, os projetos que não se realizam, os textos que não são publicados, as críticas que não
são impressas. Este museu pretende preencher o vazio institucional criado pelo trabalho que
se realiza efetivamente em Lima. Não trabalha com a ausência do próprio museu, mas, pelo
contrário, essa ausência mesmo é o que o impulsiona a existir e a se realizar livremente. Este
tipo de museu não busca propor uma nova classe de museu, não quer ser nem um espaço
35
virtual nem, muito menos, um museu online. Tão-pouco espera possuir realmente um espaço
físico, ainda que, apesar disso, não deixe de ter um projeto arquitetônico” (Gamarra, 2007. Trad.
nossa).
17
Didi-Huberman, 1998.
27
Uma exacerbação deus ex machina do que discutimos na nota 18.
28
A partir de levantamento no acervo de mais de 4000 catálogos da Biblioteca da EBA-UFMG,
que não é restrito a Belo Horizonte. Em BH esse fato é patente.
“Visível e invisível”, na citação da nota 9, remete à domiciliação. Mas como Derrida (2001)
esclarece pouco adiante, trata-se da necessidade de o depósito e a hermenêutica legítima (o
visível) caminharem juntos com o que ele chama de “poder de consignação”. Co-n-signar para
reunir, pois, “num arquivo, não deve haver dissociação absoluta” (14). Claro, esse “poder” não é
mais o de Foucault, já que está atuando na forma.
29
Trata-se de um processo hipócrita, mas aparentemente inevitável: a instituição pública fornece
o catálogo début e com isso mantém uma multidão de sequiosos concorrentes aos seus salões;
a galeria privada espera que o patrimonialismo funcione e, sem gastar nada, agrega valor aos
seus produtos; o artista precisa vender e busca reconhecimento comprovável; quando já está
consagrado, artista e instituição passam a trocar fichas simbólicas de autoridade: ambos dão
lugares em troca de lugares.
19
30
18
Convém aproveitar e circunscrever o conceito inicial de Derrida (notas 9 e 18) com sua revisão
posterior, na mesma obra: “E, certamente, a palavra e a noção do arquivo parecem, numa
primeira abordagem, apontar para o passado, remeter aos índices da memória consignada,
lembrar a fidelidade da tradição. Ora, se tentamos sublinhar este passado desde as primeiras
palavras destas questões é também para indicar outra problemática. Ao mesmo tempo, mais
que uma coisa do passado, antes dela, o arquivo deveria pôr em questão a chegada do futuro.”
(Derrida, 2001: 48).
Fragmentação do sujeito no arquivo e dos corpos, em geral.
31
Na edição original, 1949, compunha a primeira parte de Pyschologie de l’Art. Aqui usamos
tradução recente em separata, já citada: Malraux (2000).
“Enquanto para cada ponto da imagem ótica corresponde um ponto do objeto real, nenhum
ponto de qualquer objeto real preexistente corresponde ao pixel. O pixel é a expressão visual,
materializada na tela, de um cálculo efetuado pelo computador, conforme as instruções de
um programa. Se alguma coisa preexiste ao pixel e à imagem é o programa, isto é, linguagem
e números, e não mais o real. Eis porque a imagem numérica não representa mais o mundo
real, ela o simula. Ela reconstrói, fragmento por fragmento, propondo dele uma visualização
numérica que não mantém mais nenhuma relação direta com o real, nem física, nem energética”
(Couchot, 2001, p. 42).
21
32
20
Sobre isso, somos devedores ao Prof. Edson Rosa da Silva, que discute principalmente a
incorreta absolutização e negativização da perda da aura, ao que contrapõe o conceito de “aura
insubmissa”. Cf., Silva (2004).
22
Foster, 2002: 78. Trad. nossa. Cf. tb. Hollier (2000: 59): “Malraux não parece ter sido sensível a
essa alternativa entre museu e cinema que é o núcleo do argumento de Benjamin”.
Virtual não se opõe a real, pois é “real em potência”. A imagem no monitor é virtualidade em
atualização.
33
“Da mesma forma que os enunciados são inseparáveis dos regimes, as visibilidades são
inseparáveis das máquinas. Não que toda máquina seja óptica; mas é uma reunião de órgãos e
de funções que faz ver alguma coisa e que coloca sob as luzes, em evidência (a “máquina-prisão”,
ou as máquinas de Roussel)” (Deleuze, 1988: 67).
23
Exemplo disso é Crimp (2005) que chega a propor Malraux como defensor do Estilo e de uma
ficção totalizante, em suas piores acepções. Mas Malraux propõe justamente o contrário: todos
os estilos possíveis, ficções infinitas, metamorfoses!
34
24
35
Estratégias da Arte na Era das Catástrofes, http://www.eba.ufmg.br/grupo, coordenado pela
Profª Drª Maria Angélica Melendi.
Mas com a supressão stalinista da vanguarda no início dos anos 1930, essa miragem já havia
evaporado, e Benjamin nunca alcançou o outro lado da reificação. O que parecia iminente em
seu ‘O Autor como Produtor’ (1934) se tornou utópico apenas quatro anos depois em seu ‘Teses
sobre a Filosofia da História’” (Foster, 2002: 75-76. Trad. nossa).
36
Adorno & Horkheimer (1994: 125).
Foster (1996).
37
25
Didi-Huberman (1998).
26
O interesse são os sites que “uniformizam” a web, mas poderíamos estender a análise a alguns
sites temáticos, inclusive nacionais.
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Cf. http://www.santiago-sierra.com/996_1024.php. Intervenção realizada no Espacio
Aglutinador (La Habana, Cuba), em 1999. Ver também: http://www.santiago-sierra.
com/200014_1024.php.
38
http://www.santiago-sierra.com.
36
39
Imagem crítica como propõe Benjamin (1993), isto é, imagens dialéticas por seu valor de
crítica, de crise, por apresentar um objeto no lugar de outro, e pelo seu valor desfigurativo.
40
Cf. nota 8.
41
Edson da Silva (2002).
Bibliografia
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar,
1994.
MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa: Edições 70, 2000.
SILVA, Edson Rosa da. A fotografia e a arte, ainda o diálogo entre André Malraux e Walter
Benjamin. In: COUTINHO, Eduardo; BEHAR, Lisa Block de; RODRIGUES, Sara Viola (Orgs.). Elogio
da Lucidez. Porto Alegre: Evangraf, 2004. p. 113-117.
SILVA, Edson Rosa da. O Museu Imaginário e a difusão da cultura. Semear, Rio de Janeiro, n. 6,
2002. Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/6Sem_14.html>. Acesso em:
12 mar. 2009.
SILVA, Edson Rosa da. O “Museu Imaginário” na “Era da Reprodutibilidade Técnica”: Malraux,
leitor de Benjamin? In: CONGRESSO ABRALIC, 4, 1994, São Paulo, Literatura e diferença: anais.
São Paulo: Abralic, 1995. p. 245-251.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BAUDELAIRE, Charles. Salon de 1846. Charles Baudelaire: sa vie, son œuvre. Litteratura.com,
2005. Disponível em: <http://baudelaire.litteratura.com/salon_1846.php>. Acesso em: 25 abr.
2008.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 5ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras
escolhidas, 1).
COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da
figuração. In: PARENTE André (org.). Imagem-máquina: a Era das Tecnologias do Virtual. 3ed. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 2001. p. 37-48.
CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
FOSTER, Hall. Design and crime: and other diatribes. London: Verso, 2002.
FOSTER, Hall. Recodificação. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.
GAMARRA Heshiki, Sandra. LiMAC en el Musac. LiMAC. 2007. Disponível em: <http://www.
li-mac.org/index.php?id=41>. Acesso em: 29 abr. 2008. Publicado originalmente no Catálogo
Emergencias, Museo de Arte Contemporáneo de Castilla y León, 2005.
HOLLIER, Denis. On Paper. In: DAVIDSON, Cynthia C. Anymore. New York: MIT Press, 2000.
p. 58-61.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
37
Três antinomias e uma tautologia: comentário e reflexão a
partir do texto Antinomies in Art History de Hall Foster
1
por Adolfo Cifuentes
Antinomia: Contradição entre duas leis ou princípios. Conflito
entre duas asserções demonstradas ou refutadas, aparentemente
com igual rigor.
Tautologia: Raciocínio que consiste em repetir com outras
palavras o que se pretende demonstrar
dicionário AURÉLIO, 2005.
1ª antinomia: autonomia versus subordinação? (compromisso?)
Vale lembrar um episódio esclarecedor ocorrido durante a 2ª Guerra
Mundial: um passeio de carro em Paris. Depois da bem sucedida campanha da
França, onde Hitler efetivamente testou a eficácia da sua blitzkrieg, as tropas
nazistas ocuparam Paris em junho de 1940. Os detalhes daquele vergonhoso
momento da história da França são aqui irrelevantes: o Marechal Pétain, a
República de Vichy… Importa-nos um episódio: o passeio de carro que Hitler,
o conquistador, fez em Paris, logo depois de firmado o armistício. Paris não
é somente uma cidade, é um mito que, por quase um século e meio, tinha
dominado a arte e a cultura europeias. O 3º Reich pretendia assentar as bases
de um império milenar; e Hitler ia acompanhado, nesse passeio, por dois
artistas convidados: o escultor Arno Breker e o arquiteto Albert Speer, que
já haviam colaborado em vários projetos cruciais à transformação da nova
nação alemã. Aliás, os artistas e intelectuais tinham sido decisivos: Goebbels,
por exemplo, jornalista, escritor, amante das artes, grande orador e chefe do
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
Departamento de Propaganda, havia logrado grande sucesso na conquista
do coração do povo alemão.
O passeio tinha um propósito claro: estudar o exemplo de Paris
para fazer de Berlim a grandiosa capital que o novo império precisava. O
arquiteto e o escultor, criadores de grandiosos projetos públicos erigidos em
homenagem à raça e à nação alemãs, eram indispensáveis ao planejamento
desse novo universo simbólico que o povo vencedor estava construindo.
Também Richard Strauss, Leni Riefenstahl e Martin Heidegger, dentre outros,
haviam sucumbido à sedução da nova ideologia, de maneira semelhante
à adesão de D’Annunzio ou Marinetti (e o movimento futurista em geral) à
atração fatal do fascismo italiano.
Mas essa aliança entre arte e poder político não acontece somente
nos regimes imediatamente identificados como totalitários. Hoje, quando
alguns arquivos da CIA já ultrapassaram o período de segredo e foram abertos
ao público, sabemos que várias exposições e eventos ligados à explosão
do expressionismo americano na década de 1950 foram financiados pela
tristemente célebre agência. O movimento era perfeito para fazer oposição ao
realismo socialista soviético: era abstrato e exaltava a liberdade individual…
Além disso, na virada de poder que estava acontecendo, os EUA precisavam
de uma boa vanguarda americana para estabelecer definitivamente Nova
Iorque como a capital mundial das artes e da cultura.
38
Uma primeira dificuldade se faz evidente, então, no próprio
2ª antinomia: cultura versus imagem
estabelecimento dessa primeira antinomia abordada pelo texto de Hall
Foster, e a partir da qual se desenvolvem as demais: qual que é o antônimo
de “autonomia”? Seria “dependência”, ou “vinculação”, ou “conexão”, ou
dialético marxista, do mesmo modo que entre a evolução da consciência
“cumplicidade”, ou “compromisso”? Talvez tudo dependa, por sua vez, do
histórica em Hegel e dos sistemas econômicos em Marx, são muito difíceis
significado do conceito de autonomia. Ele é sinônimo de “liberdade”, de
de traçar. Mas a relação desses dois grandes nomes com o desenvolvimento
“capacidade de autodeterminação”? Ou de “isolamento”, “torre de marfim”, de
e a aparição do campo das ciências sociais e humanas ao longo do século
“auto-complacência”, “autismo”? Ou, ainda, de “masturbação”?
XIX é um fato incontornável. Talvez seja Foucault quem tenha assinalado
Desde o nascimento do pensamento moderno e do campo da estética,
com mais clareza a natureza da dobra na qual se aloja todo o pensamento
aparece já a antinomia: na teoria kantiana do juízo, o juízo estético apresenta-
contemporâneo: estamos em uma época antropológica. Tudo virou cultura,
se desligado, independente, dos juízos de moral e de verdade. O resultado?
no sentido etnográfico do termo: a religião, a filosofia, a economia e, claro
Não aceitaríamos hoje que um filme como Crash, de Cronenberg, por exemplo,
está, a arte. Não é por acaso que, como Foster analisa em outro texto2 , a
fosse proibido sob a acusação de corromper a sociedade. Foi também em
virada etnográfica seja um dos traços característicos da arte contemporânea.
nome dessa autonomia do campo estético que os surrealistas resgataram e
Nessa virada, a arte talvez ganhe em termos de expansão de campo (a “obra”
exaltaram a obra do Marquês de Sade, condenada até então por ser obscena e
como field-work), mas, por outro lado, esse seu desdobramento como simples
perigosa... era literatura (romance, ficção) e não podia ser lida sob a óptica da
“prática simbólica” faz com que se corra o risco de apagar sua especificidade.
moral ou da religião... mas também não a partir dos códigos legais de corrupção
Ao mesmo tempo, a história da arte corre o risco de se fragmentar e de se
de menores de idade, por exemplo.
perder na impossibilidade de abarcar os inumeráveis tipos de imagens aos
quais as práticas artísticas fazem referência.
Mas outro grande fundador da estética contemporânea, Hegel, liga
Os nexos e assimetrias entre a dialética hegeliana e o materialismo
o desenvolvimento da consciência (na sua Fenomenologia) e da arte (na sua
Estética) aos processos da história: a arte torna-se o signo da sua época. Como
adequar aos novos regimes aos quais o campo fora submetido pela irrupção
conjugar, porém, a ideia de uma absoluta autonomia com a de uma absoluta
da imagem fotográfica impressa, como Malraux analisou no seu Museu
ligação com a sua época? Nessa antinomia paradoxal se movimentou desde o
Imaginário. Mas, será que o campo ainda estará apto para passar no teste
seu nascimento a própria ideia de uma história da arte.
da mídia: o que poderia sobrar da obra de arte se ela for percebida somente
Entretanto não é a natureza filosófica dessa antinomia o que preocupa Foster
como mais um campo de produção simbólica de imagens em um universo
(em primeiro lugar, talvez, porque ele sabe que no fundo ela é insolúvel). São os seus
cultural dominado pela onipresença das indústrias do entretenimento e da
desdobramentos – no campo geral da arte e das ciências sociais contemporâneas –
informação?
A noção de arte e de obra de arte foram ainda capazes de se
que o preocupam; e é a lucidez do assinalamento desses desdobramentos o que dá
toda beleza e consistência ao olhar abrangente do seu texto.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
39
3ª antinomia: estudos culturais versus estudos visuais
Uma saída e uma tautologia
Mas, se na virada midiática tudo é igualado na noção genérica de
Diante das perplexidades dessas perguntas, a única conclusão possível
imagem-mercadoria (midiática), nessa outra virada epistemológica, a dos
não poderia ser outra senão uma tautologia. Foster, em outro artigo3, nos
estudos culturais, tudo torna-se representação. E aí o outro termo da antinomia
fala que o funeral da arte foi para um cadáver errado e nos apresenta uma
não poderia ser senão o dos estudos visuais. Não se trata aqui de questionar
prova contundente: ainda se produz arte e, sobretudo, arte significativa.
nenhum dos dois campos, porque a pergunta inicial não é a de quem está
Aqui podemos repetir a sua conclusão: apesar dessas antinomias insolúveis
errado, mas aquela que visa definir se sobra algum espaço para a arte, se
(na antinomia, por definição, os dois lados opostos estão certos, ou então
ela ainda tem um objeto e uma especificidade ou se ela, definitivamente,
estão errados), apesar da política, da antropologia, do assédio da mídia, da
se dilui nesse corpo que poderíamos chamar (nesse caso) “campo de luta
economia e das ciências sociais em seus velhos ou novos paradigmas, mas
social pelas representações” (mas que nas outras antinomias chama-se
também a partir deles, a arte continua encontrando sempre um espaço para
“política”, “sociedade”, “cultura”, “economia” etc.). Porque talvez sejam isso
ser produzida, para questionar e assinalar essas próprias antinomias. Ou seja,
os estudos culturais e sua contraparte, os estudos visuais: a desconstrução
que a arte não está morta porque está viva. Ou ainda que está viva porque
das microfísicas de poder que regulam a conformação dos campos e regimes
não está morta! O seu funeral será sempre para um outro cadáver.
discursivos a partir dos quais a realidade é representada. É obvio que a arte
– como caldo primitivo (pré-simbólico?) no qual se elabora e molda a pasta
essencial com a qual damos nome e rosto à realidade – tem muito a ver com
esses jogos de poder que estão por baixo e por cima das representações.
Mais uma vez, podemos reduzir a arte a isso apenas? E, por outro
lado, porque a arte teria o direito de aspirar ser algo mais que isso? Nessa
virada antropológica (a arte como mais um elemento desse grande universo
chamado “cultura”), “autonomia” virou uma palavra ruim, e o seu sinônimo
passou a ser “autismo”, mas isso justamente porque, no fundo, o seu termo
oposto na antinomia é percebido como “engajamento” ou, ainda, como
Notas
1
FOSTER, Hall. Design and crime. Chapter 6. Pages 83 – 103. Verso, London, New York, 2002.
2
FOSTER, Hall. O Artista como etnógrafo. Arte & Ensaio, Rio de Janeiro, n. 12, 2005 (Revista do
Progra-ma de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV/EBA/UFRJ). Pág. 137 – 151.
3
FOSTER, Hall. The Funeral is for the wrong corpse, in Design and crime. Chapter 8. Pages 123 –
143. Verso, London, New York, 2002.
“responsabilidade”. Mas, será que lutar para que a arte tenha o seu próprio
espaço seria só isolamento masturbatório, ou ainda soberba das pessoas que
pertencem ao campo das artes? Ou seriam só restos das filosofias essencialistas
e idealistas, que fazem com que ainda acreditemos nesse fantasma chamado
de “Arte”, com 'A' maiúsculo?
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
40
Coletivos de arte:
Kaza Vazia, entre sacada e dispensa
por Melissa Rocha e Tales Bedeschi Faria
“Qual pode ser o papel dos artistas no desenvolvimento de sociedades
transição”?1
Os coletivos apresentam formas de produção que muitas vezes
Esta pergunta foi feita para coletivos de diferentes partes
comprometem o recolhimento sugerido pelo objeto artístico. Vão além da
do mundo, em um encontro em Jacarta, em 2002, realizado pela RAIN
possibilidade de confecção de um objeto a ser exposto em espaços separados
(Rijksakademie van beeldende kunsten Amsterdam). Muito antes das respostas
e limpos, a serem fruídos silenciosa e individualmente. Em suas práticas são
aludirem a um eventual papel social da arte, elas remetem à influência dos
embutidas estratégias, que mergulham no caos da heterogeneidade urbana e
artistas sobre o desenvolvimento sócio-cultural do seu entorno, como sugere
lançam maneiras de como lidar com o fenômeno da cidade usando o próprio
a História da Arte. “Como qualquer outro fenômeno, a arte bombardeia a
corpo e a própria experiência. Experimentações que contam com um ou mais
imaginação com uma pletora de questionamentos sobre a realidade da
autores e incorporam o público como agente de uma obra em aberto, tornando
existência”, escreveu o Centre Soleil, de Mali.
ainda mais complexa a questão da autoria.
em
Como demonstram diversos depoimentos colhidos para a publicação
do Shifting Map, a variedade da experiência desses artistas em diferentes
Kaza Vazia, a “galeria de arte itinerante”
contextos transita entre a imposição de uma censura por parte dos governos e
o apoio sedutor de empresas multinacionais que oferecem financiamento em
troca de uma aliança de “amizade”. Os relatores e debatedores dessa publicação,
um conjunto de artistas2 advindos da EBA/UFMG em busca de um espaço
além dos organizadores e críticos convidados, são todos integrantes de coletivos
dinâmico e independente para produção e disseminação artística. Às margens
de arte. São artistas que desenvolvem, às vezes em paralelo às suas carreiras
da Lagoa da Pampulha, e vizinha ao MAP (Museu de Arte da Pampulha) uma
individuais, iniciativas ligadas a formas de organização coletiva, movidos pelo
casa em ruínas se converte em atelier aberto por duas semanas. Durante este
interesse em mudar algo em seu ambiente local e criar condições favoráveis à
período, a casa acolheu os artistas e suas intervenções temporárias. Diante da
experimentação em arte e ao trabalho em grupos.
reflexão sobre o espaço público, do embate entre os interesses da instituição
e os do artista surgem inúmeras possibilidades de desdobramento da prática
Em dezembro de 2005, Belo Horizonte abriga a primeira ação de
artística. O desejo pelo desate das amarras institucionais viabilizou a criação
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
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de um espaço alternativo, de um circuito poético paralelo ao convencional.
aproximasse de uma casa. A falta de água potável e energia elétrica delinearam
Iniciativas dessa espécie, que convidam à ação ou à participação, caracterizam
os limites das atuações do grupo, estabelecidas por um período efêmero entre
um “espaço-movimento”, o qual encontra-se “diretamente ligado a seus atores
o exercício experimental criativo e a exibição dos trabalhos. A concretização
(sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços quanto
de uma mostra temporária e coletiva, a criação de um ambiente de troca,
aqueles que os constroem e os transformam continuamente”. (JACQUES,
produção e reflexão, desprovido de regras e curadorias externas propiciou um
2003:149).
impulso visceral para que esta situação não findasse em uma única edição. Os
artistas instituíram então, o coletivo aberto e horizontal “Kaza Vazia - galeria de
arte itinerante” como via de atuações futuras.
Concretizou-se nessa data, a gênese de um coletivo nômade, disposto
atuar no espaço da cidade, ansioso por um terreno desprovido de limites
formais, de restrições espaciais, materiais e de conteúdo que não viessem
senão das demandas reais dos artistas e do grupo. Dessa forma, as conexões,
afetiva e ideológica, entre os artistas favorecem a formação de um espaço
errante, híbrido, de permutas, invenções e experimentações, que culminou
por expandir o campo de ação/reflexão sobre inserções e circuitos de arte
Do circuito aos outros circuitos
As ações dos coletivos acabam por criar um circuito alternativo aos
espaços ditos “oficiais” e “institucionais” da arte nas cidades. Na verdade, eles
disponibilizam uma outra oportunidade de acesso e distribuição da arte
fundada em bases diferentes, propondo uma institucionalização, também
alternativa, que desenvolve novas relações entre espaço, obra, artista e públicos.
Tales Bedeschi, ‘Cozinha Belo Horizonte’, Kaza Vazia 8
Por um lado, essas novas relações se fundam a partir de princípios e formas de
organização que não condizem com o espaço ideal, com as regras de seleção
A idéia inicial consistia em invadir um terreno abandonado, ocioso da
e atestados de qualidade de produto presentes nos circuitos financiados por
cidade e nele intervir, o que resultou em um repertório de espaços possíveis,
empresas e pelo Estado. Por outro, se valem de modos de produção muitas
levantados pelos artistas em questão. Entretanto, não havia interesse em
vezes caóticos, que além de não conter um formato definido de exibição,
muros e terrenos baldios, mas em um espaço que, mesmo que insalubre, se
elegem como prática o desenvolvimento de vários trabalhos artísticos, os
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quais cada um encerra em si diferentes relações entre obra, espaço, artista,
ilegalmente em dias de jogo como estacionamento do estádio Magalhães
público, a política, a cultura, o social e a cidade. Engendra-se um campo aberto
Pinto, o Mineirão. Por um fim de semana, trocaram-se os automóveis pela
de criação.
experimentação. As dimensões agigantadas da residência encorajaram os
Abrigadas sob um formato específico que reúne um grupo
integrantes a estenderem em sua rede de contatos, o convite à participação.
heterogêneo, obras ou ações podem ter apenas alguns pontos em comum.
Em meio aos trabalhos individuais realizados, somavam-se outros coletivos,
O “espaço-movimento” Kaza Vazia alimentou nos integrantes os anseios pelo
plurais, concebidos a partir de parcerias espontâneas promovidas pelo
direito de agir sobre o espaço com autonomia, de poder intervir nesse terreno
encontro e o convívio fomentado na ação.
de inúmeras maneiras que a inventividade permitisse, sem se preocupar em
restabelecer a pintura das paredes e vãos ao estado anterior. A constante
caráter aberto e não-hierárquico do coletivo provocou a desistência de uns
imprevisibilidade, inerente à proposta espacial e compositiva do coletivo,
e a admissão de novos membros, o que evidenciava o traço idiossincrático
variantes a cada edição, incentivou a incorporação das adversidades, dos
do grupo, aproximando-o da proposição de Hélio para manifestação coletiva
destroços, do lixo, da vegetação, da narrativa local, como aliados poéticos: uma
Apocalipopótese (1968):
Na medida em que as ações seguintes do Kaza Vazia ocorreram, o
espécie de mola propulsora para a concepção artística. O horizonte temático
“Grupo aberto(...) posso imaginar um grupo em que participem
pessoas “afins”, isto é, cujo tipo de experiências sejam da mesma
natureza; mas, numa experiência desse calibre, o ponto comum
seria a predisposição em os participantes admitirem a direta
interferência do imponderável: a desconhecida ‘participação
coletiva”. 4
das abordagens, liberto de censuras externas, tornou-se amplo de dimensões
adequadas para acolher a vastidão de formas expressivas possíveis.
Frente ao desconhecido
A concretização bem-sucedida do KV I, dentro dos moldes
Novos Formatos
estabelecidos, intensificou o interesse de artistas estranhos aos integrantes
iniciais. A disseminação da ação em meios virtuais3 , aliada a uma cobertura
discreta da imprensa local, inspirou artistas, atores, arquitetos, indivíduos ou
duas primeiras, ao acontecerem em um contexto mais dinâmico - tratavam-se
coletivos de origens diversas a se comunicarem com participantes do KV,
de espaços efetivamente habitados - onde as relações de troca e negociação
em busca de interação com esse “espaço-movimento” em formação – uma
foram exercitadas com mais intensidade, gerando um ambiente propício ao
oportunidade autêntica para tecedura de conexões, de uma trama atravessada
estabelecimento de conexões pessoais e afetivas entre os participantes e
por outras formas de agir e pensar arte no espaço de Belo Horizonte.
os habitantes do espaço. O terreno escolhido para a terceira ação KV não
Seguiu-se na “casa de asas” - novamente situada na orla da Pampulha,
foi uma casa, mas duas salas ociosas de um dos edifícios mais boêmios e
de onde se avistava bem próximo, o estádio carinhosamente apelidado
tradicionais do centro de Belo Horizonte - o Archangelo Maletta. Enquanto
de “Mineirinho”. A segunda ocupação do KV foi num casarão, explorado
na quarta, atuando naquele que foi o primeiro conjunto habitacional da
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As Kazas Vazias III e IV foram intervenções que se diferenciaram das
43
cidade, o IAPI, um ambiente de vultuosas proporções (eram 11 prédios
A associação do coletivo a uma demanda institucional possibilitou,
interligados), altamente vivo, orgânico, optou-se pela instauração de uma
por um lado, fomentar a projeção das ações do Kaza Vazia inserindo o coletivo
ação relacional: os moradores foram convidados a partilhar o sensível, com
em circuitos de ampla divulgação, assim como para além das fronteiras de sua
a redação e o envio de cartas entre si, em detrimento de uma ocupação
cidade natal. Por outro lado, contribuiu para a diluição de pontos importantes
espacial. Ao entremear-se pelas caixas de correios do edifício IAPI, o “Projeto
que foram base da sua proposta primeva. As ações mais recentes do grupo
Cartas”, irradiou-se pelo domínio privado, íntimo e afetivo dos moradores,
ocorreram em caráter bem diverso de seus ideais originais, mediante incentivos
construindo uma rede subjetiva de construção poética.
financeiros - mesmo que reduzidos - e restrições estabelecidas através do trato
A prática do convívio, intensificado
com as instituições. Pode-se constatar, por exemplo, a censura, na sua sexta
pelas ações recentes, projetou na Kaza
edição, uma vez integrante do evento “Arte Hoje - intervenções urbanas” em
V (2007) a oportunidade de efetuar-
Ouro Preto (2008): a proibição de qualquer ato que envolvesse a nudez fora
se uma proposta de vivência, desta
uma das condições impostas para as atividades na cidade histórica. Nesse
vez entre os próprios integrantes:
evento, as ações ocorreram nas vias públicas de Ouro Preto e não houve um
uma ação-residência. A idéia pôde ser
terreno fixo e determinado para intervenção, uma vez que a Produção do
concretizada, pois, ao contrário das
evento não conseguiu uma casa para o grupo.
duas primeiras edificações, o casarão
eleito possuía uma estrutura básica de
Códigos de interesse
abastecimento: tratava-se de um espaço
tombado pelo patrimônio histórico
do antigo bairro Floresta, gentilmente
constar em um código artístico para os espaços institucionais. No entanto,
cedido pela Casa de Cultura Simão de
experimentação, ousadia e insubordinação podem ser concebidas como
Cataguazes. Inaugurou-se nessa
perigosas armas subjetivas de enfrentamento. As instituições almejam retorno
edição, o primeiro vínculo de interesses institucionais no coletivo Kaza Vazia.
midiático e financeiro e, para isso, exigem estabilidade e controle, características
Em contrapartida à estrutura fornecida, exigia-se a menção das ações do
avessas ao estímulo da invenção. Há de se ressaltar que o sistema das artes,
coletivo vinculadas aos sites e impressos da Casa de Cultura Simão.
como um braço do capitalismo, aspira associar-se a qualquer meio rentável
Sucederam-se às cinco primeiras ocupações, uma série de convites
que eleve a acumulação. Isso resulta na absorção, por esse sistema de formatos,
para que o grupo integrasse uma agenda de eventos formais: o seminário
dos modos de fazer e das experimentações marginais ao circuito estabelecido,
“Arte Hoje”, organizado pela Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP), na antiga
para o seu interior, de onde, posteriormente, seriam regurgitados com suas
capital do estado mineiro (KV 6), e o VAC, Verão Arte Contemporânea, gerido
potências críticas anuladas, revestidas “em estilo ou atitude associados à
pelo Grupo Oficcina Multimédia (GOM), sétima e oitava edições.
mercadoria” 5.
Tales Bedeschi, ‘idem’, Kaza Vazia 8
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
A conjuntura libertária presente nas primeiras ações do KV poderia
44
Situação semelhante àquela vivida pelos grafiteiros, na década de 80
Instituições alternaticas
em Nova York, em que uma série de espaços do circuito convencional ansiava
abrigar os trabalhos que amanheciam colorindo os vagões do metrô. Porém,
de que maneira o ambiente confortável da galeria conservaria o viço e a carga
engajamento sócio-político e o crescente interesse pela arte não-ocidental6
emotiva daqueles traços produzidos sob a excitação do proibido? As paredes
(FLENTGE, 2004: 1). No entanto, ao lado da aceitação das iniciativas de
das galerias e museus seriam como um
“aliança” com os coletivos, temos grande estatística de rejeições que se
“veículo de imagem inadequado no qual falta espírito de desafio.
Em comparação com o metrô, o museu assume a dimensão de um
distinto cemitério no qual acaba paralisada uma eficaz energia,
capaz de envolver a sociedade. O museu então representa
somente um bom espaço de protesto, se o protesto é feito contra
a arte. O protesto contra as coações que comprometem a própria
vida, o desenvolvimento pessoal, deve ter lugar nas ruas, nas vias
públicas” (OLIVA, 1998: 72).
pautam em uma postura bem definida. Prática recorrente entre alguns
coletivos é a firme negação do sistema da arte, incluindo a aversão a qualquer
tipo de institucionalização. Nesse sentido, alianças são negadas e acordos
são deixados de lado para a vivenciação de uma utopia anarquista ou um
discurso libertário. Como coloca Ivana Bentes,
“...vemos grupos de artistas contemporâneos com uma visão
estreita e dogmática de Arte, Criação e Resistência.. Se escondendo
no conceito de "coletivo de arte" (...) mostra a fragilidade dos
grupos que se comprazem na rejeição infantil das "instituições",
do "mercado de arte"(...): com a galeria, com a instituição, com
o colecionador, com a mídia, com o curador. São essas relações
duras, difíceis, penosas mesmo, que precisamos problematizar.
Não demonizando, mas expondo e explicitando o que se passa
ai, nessas relações ambíguas. Pois é preciso ter uma ética de
artista muito grande pra não se dar mal nessas relações. Aqui se
pode aprender muito mais sobre Resistência e Criação do que
propagando regras de fora ou criando uma dinâmica de grupo
fechado que se auto-legitima e se auto-celebra” (BENTES, 2004).
O poder que determinadas associações culturais proporcionam aos
órgãos instituídos aponta para uma vertiginosa ascensão de uma estratégia
de marketing vigorosa, promotora de uma recolocação imagética, de um
polimento na alcunha da instituição - muitas vezes embotada por atos indevidos
ou suspeitos, entre outras razões - perante a sociedade e ao mercado. Não
há como deixar de sublinhar o caso da dinastia Rockefeller que, no início do
século XX, imersa em escândalos éticos, cedeu aos apelos de seu profissional
de relações públicas que indicava a associação do nome da família às “obras
de beneficência e cultura. Assim se chega à criação da Rockefeller Foundation
e do Museu de Nova York” (OLIVA, 1998: 10). Logo, é cada vez mais freqüente
as proposições artísticas converterem-se em projetos direcionados aos editais
e leis de incentivo, abundantemente adornadas por rótulos aprazíveis como
“culturais”, “educativos”, de “cidadania” como forma de aproximarem-se da
construção de uma imagem positiva e do crescimento das possibilidades de
subvenção.
Em todo o mundo, o sistema da arte vem dedicando atenção ao
Vale perguntar: porque essas plataformas de artistas não poderiam
ser consideradas uma instituição? Essa aversão à palavra seria proveniente
de uma generalização equivocada? Não estaríamos falando, de fato, de uma
instituição cujo foco, diferentemente do museu e da galeria, é colocado
em processos horizontais de operação que engendram territorialidades
específicas a quebrar a continuidade da malha urbana? Instituições que atuam
na contramão de um sentido falseado da cidade ligado à “manifestação de
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
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um ‘discurso competente’, instituído, o ‘discurso do especialista’, proferido de
circuitos de arte experimental da cidade, tem o intuito de divulgar a “produção
um ponto determinado da hierarquia organizacional” (Chauí apud PALLAMIN,
de arte de qualidade não divulgada” em Belo Horizonte em forma de um
2000: 44).
grande festival. Depois de alguns anos produzindo o evento com recursos
Segundo Laddaga, essas iniciativas têm uma predisposição muito
próprios, em 2009 o GOM atuaria frente a fundos de leis de incentivo fiscal,
maior em “consagrar operações de concepção institucional alternativa, mais
o que proporcionaria ampla circulação de um material de divulgação de alta
que desenvolver práticas de desinstitucionalização”. Numa sociedade onde o
qualidade. Esse seria o ponto principal de troca entre o Verão e o KV. Uma
estoque de práticas democráticas é bem pequeno, a palavra“institucionalização”
vez que não existiram restrições, mas sim ampla liberdade de atuação dentro
é convocada a assumir novos significados (LADDAGA, 2004, p. 3).
dos prazos definidos pelo evento, o KV se mobilizou e se esforçou para entrar
O “circuito alternativo” pode valer-se do “circuito oficial” para se orientar, formar
dentro dos limites colocados.
e até legitimar. No entanto, é claro, desde o princípio, alguns distanciamentos
entre as lógicas embutidas. Seguindo o pensamento de Laddaga, a respeito
Concluindo
das plataformas de artistas, essas “iniciativas buscam dinâmicas democráticas
e o rompimento com as relações de poder existentes – formas alternativas
de institucionalização”. São “lugares onde as relações sociais e a utilização do
características encontradas nos circuitos alternativos dos coletivos não podem
espaço público são redefinidas” (LADDAGA apud FLENTGE, 2004, p. 1).
ser vistas no sistema de galerias e museus. Sabemos que não há uma linha
As edições 7 e 8 da Kaza Vazia foram realizados em 2008 e 2009,
de separação entre a natureza de trabalhos oriundos de diferentes contextos,
respectivamente, dentro da programação do VAC. Na sétima edição, as
mas, antes, um profícuo fluxo de trocas e alimentação que os permeia. Antes
interferências do grupo aconteceram no Parque Municipal de Belo Horizonte
de fazer uso de qualquer generalização, devemos nos voltar para zonas de
e no Mercado Novo; enquanto na oitava, retornou-se ao formato anterior: a
probabilidades, ou fertilidades, e fundamentos diferentes.
ocupação de uma casa abandonada. O casarão inacabado, que na realidade
encontrava-se precariamente habitado por uma família em condições insalubres,
com os transeuntes e propõem a reorganização da experiência do urbano.
teve seus inquilinos desalojados em função da aquisição do imóvel por um
Esses artistas invadem espaços não reservados para a arte e socializam
novo proprietário. Em meio a esse processo, efetivou-se KV8: uma proposta de
referências, reconfigurando não só a visualidade da via pública como a sua
residência artística temporária em que as intervenções confundiram-se com
função. São práticas artísticas articuladas a processos de emancipação social,
a demanda por estruturas básicas, de acesso e sobrevivência. A necessidade
que, no entanto, estão longe de passarem por práticas assistencialistas.
de recursos para concretizar a moradia resultou na construção de pequenas
A busca pelo cotidiano das comunidades estaria ligada a uma série de fatores
gambiarras líricas que em seu contexto alcançaram potência poética.
em mudança no cenário das artes. Uma reação ao “abandono seletivo do
Pela segunda vez consecutiva, o Kaza Vazia aceitava participar da
financiamento da arte ou a tentativa de associar tal financiamento a critérios
programação do Verão Arte Contemporânea. Evento interessado em fomentar
de eficiência econômica ou social, determinados por aparatos burocráticos
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Faz-se importante ressaltar, todavia, que não estamos afirmando que as
Os coletivos são movidos pelo interesse em dividir o espaço público
46
crescentemente ‘ideologizados’”. Justamente nas comunidades, vias e espaços
Notas
públicos se dão fenômenos “com os quais entram em relação ou ressonância”
1
(LADDAGA, 2004: 3).
Shifting Map. RAIN Artists’ Initiatives Network. 2004. ISBN 90-5662-368-0
2
próprios integrantes, suas necessidades e desafios. Integridade, no entanto,
Na ocasião, participaram da ação, Aline Midori, André Hauck, Anderson Silva, Bárbara Ahouagi,
Carlos Ranna, Daniel Mendes, Daniella de Moura, Leo Arruda, Luisa Rabelo, Melissa Rocha, Natalya
Dimov, Paulo Nazareth, Théo Amaral, Wallace Barros entre outros, já que o caráter informal da
ação permitia a integração imediata ao acontecimento em processo. Tales Bedeschi, Felipe
Abranches, Alessandro Lima e outros artistas participaram na concepção da Feira de Gravuras e
também com a exposição de gravuras, que ocorriam concomitantes ao evento.
constantemente ameaçada pelas formas de trocas propostas por patrocinadores
3
Ainda marginais ao Mercado de Arte, de certa forma, e não contando
com outras instituições, curadores ou colecionadores que os financiem, a
princípio, os coletivos não têm quem os oriente ou dê regras, a não ser seus
e pela própria estrutura das leis de incentivo à cultura. De um lado, o grupo
de artistas engajados numa pesquisa por novas formas de distribuição de
imagens, textos e ações em arte. Do outro, profissionais que fogem de grande
parte dos financiadores interessados em produtos garantidamente rentáveis.
Além do blog <http://www.kazavazia.blogspot.com> o coletivo sustenta uma rede comunicante
entre seus pares no “Kaza Vazia Yahoo Grupos” e também em outros blogs criados para registro
de uma ação destacada das demais. Kaza Vazia V disponível em: <http://ruadonaleonidialeite68.
blogspot.com> e Kaza Vazia 8 disponível em: <http://kazavazia8.blogspot.com> e <http://
kazavazia613.blogspot.com>.
4
No desenrolar das atividades vindouras do Kaza Vazia, poderemos constatar se as
OITICICA, Hélio.Apocalipopótese. Disponível em:<http://itaucultural.org.br/aplicexternas/
enciclopédia/ho/detalhe/docs/dsp_imagem.cfm?name=Normal/0387.69 p01-369.JPG.> Acesso
e 18/11/2008
associações entre o grupo e as instituições, destino comum de muitos coletivos
5
outrora independentes, se revelará como formas de parcerias profícuas para a
ADAMS, Gavin. Como passar um elefante embaixo da porta? Disponível em:< http://www.
rizoma.net/interna.php?id=286&secao=artefato.> Acesso e 18/02/2009.
atuação no espaço público, ou maneiras de atar sua produção e sua existência
6
a uma agenda de convites e encomendas para a ação “institucional”.
Flentge usa este conceito para determinar uma arte produzida nas regiões do chamado terceiro mundo, ou países em desenvolvimento. Essas práticas não coadunariam com a lógica do
grande circuito da arte. In: Shifting Map. RAIN Artists’ Initiatives Network. 2004, p. 1.
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ADAMS, Gavin. Como passar um elefante embaixo da porta? Disponível em:< http://www.rizoma.net/interna.php?id=286&secao=artefato.> Acesso e 18/02/2009
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LADDAGA, R. Arte e organizações. In: Shifting Map. RAIN Artists’ Initiatives Network. 2004. ISBN
90-5662-368-0
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
47
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PAES, Brígida Moura Campbell; MELENDI, Maria Angélica; Universidade Federal de Minas Gerais.
Canteiro de obras: deriva sobre uma cidade-pesquisa habitada por práticas artísticas no espaço
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Escola de Belas Artes, 2007.
PALLAMIN, Vera Maria. Arte Urbana: São Paulo: Região Central (1945-1998): obras de caráter
temporário e permanente. São Paulo; Fapesp, 2000. ISBN 85-7419-138-8
PEIXOTO, Nelson Brissac; SESC; SENAC. Intervenções urbanas: arte/cidade. São Paulo: SESC: SENAC, 2002. 375p.
VIVACQUA, Flávia (org.). Reverberações 2006. São Paulo, 2006.
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
48
Arte, arquitetura e filosofia no contexto das práticas
artísticas contemporâneas que invadem o espaço cotidiano
por Rachel Falcão Costa
Buren e Miwon Kwon); temos, ainda, artistas que propõem e realizam
Deve ser dita nobre a mente que tenha o dom de tornar infinitos,
pelo modo de tratamento,
mesmo o objeto mais mesquinho e a mais limitada empresa.
É nobre toda forma que imprime o selo da autonomia àquilo que,
por natureza, apenas serve (é mero meio).
Um espírito nobre não se basta com ser livre;
precisa pôr em liberdade todo o mais à sua volta,
mesmo o inerte.
Schiller 1
intervenções arquitetônicas e urbanas (como Mônica Nador, Rirkrit Tiravanija
e Navjot Altaf – para citar apenas três) e arquitetos que participam das mais
importantes mostras de artes plásticas do mundo (como foi o caso de Jorge
Mário Jáuregui, na 12ª. Documenta de Kassel).
Neste contexto, como considerar as aproximações e indefinições
no universo das práticas contemporâneas desenvolvidas por artistas e
arquitetos – sobretudo entre aquelas que envolvem interações, participações
Não é de hoje que arte e arquitetura se esbarram, atuam
e colaborações?
conjuntamente e muitas vezes se fundem na mesma obra ou no mesmo autor.
Desde os renascentistas – Michelangelo (1475-1564) –, passando por figuras
por outro, as artes visuais e performáticas quase sempre foram vistas como
como Gaudí (1852-1926) – com sua arquitetura plasticamente artística – e
objetos e espetáculos contemplativos. E se hoje a arquitetura busca “modelos
Hundertwasser (1928-2000) – com sua arte aplicada à arquitetura (a ponto
alternativos de ação no mundo”, busca tornar-se um “agregado sensível”, capaz
de tornar-se conhecido como “o médico da arquitetura”), pela proposta
de redesenhar ou mesmo reinventar as relações entre sujeitos e ambientes,
de integração das artes da Bauhaus (1919-1933), pelos Penetráveis e pelas
preocupando-se também com a criação de espaços imateriais para além dos
Manifestações Ambientais de Hélio Oiticica (1937-1980), pelos situacionistas –
espaços físicos, a arte há muito deixou de se pautar na visualidade e no objeto,
com suas derivas, situações construídas e desvios (1957-1972), até chegarmos
passando a acontecer no fluxo dos deslocamentos e nos espaços cotidianos
às práticas artísticas contemporâneas.
da própria vida, adentrando definitivamente o espaço real (vide, em especial,
Além dessa constatação, atualmente temos a ideia de “arte como
Mazzucchelli)2
Se, por um lado, a arquitetura sempre foi pensada como “arte utilitária”,
as propostas de community-based art). Se antes se falava em “usuário” para
, as propostas
a arquitetura e em “público” para a arte, agora se fala em “participante”,
site-specific ou in situ (discutidas por nomes como Clare Doherty, Daniel
“colaborador” ou “coautor”, para ambas. O próprio site-specific deixou de ser
projeto” (conforme colocada pela crítica Kiki
Lindonéia | ano 1, número 0, dezembro 2010
49
“categoria” artística e passou a ser encarado muito mais como “metodologia”
ou “estratégia” de desenvolvimento de “projetos” artísticos.
Entre ser arquiteto e ser artista
(“ ‘Programar’ ou ‘projetar’? ‘Fazer arte’ ou ‘viver a arte’?”)
Assim, um dos caminhos possíveis talvez seja analisar tais práticas
enquanto “modos de operação”, enquanto formas de “pensamento-ação”
Arte e arquitetura se encontram, primeira e fundamentalmente, em
contemporâneo em busca de novas possibilidades de se habitar o mundo,
sua relação essencial com a questão espacial. Se na arquitetura a lida com
que dão origem a interações e intervenções que se desenvolvem no âmbito
a questão do espaço – tridimensionalidade e ambiente físico – sempre
do coletivo, do colaborativo e do compartilhado, estreitando e trabalhando
foi a própria razão de ser da atividade do arquiteto, na arte sua influência
de maneira natural as relações entre o real, o simbólico e o imaginário.
vem se fazendo sentir de várias formas: através do espaço-ambiente
Como exemplos, temos as práticas apresentadas no livro Espaços
expositivo da obra, do espaço-representação figurado na obra, do espaço
Colaterais 3 (que são versões de arquitetura não hegemônicas infiltradas no
transformado em obra – no caso dos environments e das instalações – ou
cotidiano), e as resultantes das residências artísticas InSite#05 4 (em que os
através do espaço-motivo das obras – no caso dos site-specifics. Mas, para
projetos desenvolvidos na fronteira Tijuana-San Diego trabalham práticas
além da tridimensionalidade, arte e arquitetura têm considerado, cada vez
de arte no domínio público com ênfase na colaboração da comunidade) e A
mais, o espaço enquanto ambiente subjetivo, relacionado ao perceptivo e
Quietude da Terra (em que artistas plásticos internacionais contemporâneos
ao afetivo; o que passa a envolver a concepção de lugares especiais, que
desenvolvem trabalhos com crianças do Projeto Axé, em Salvador, como
discutem questões históricas, sociais, políticas, econômicas e pessoais
fruto de um processo criativo coletivo).
específicas. E é justamente quando analisadas por este viés que as práticas
Diante de tais “experiências-ações” (propostas por “pensamentos-
contemporâneas artísticas e arquitetônicas se aproximam de maneira
ações”) em que a prática se sobrepõe, em primeira instância, à teoria,
definitiva, ao considerarem a “potencialidade da substância” e a “virtualidade
permitimo-nos expor, analisar e discutir alguns pontos que envolvem o fazer
do evento”. 5
artístico contemporâneo e o conceito de projeto, bem como estabelecer
articulações com algumas ideias filosóficas que consideramos capazes de
é aquilo que tende a ou pode vir a ser atual. Podemos articular tais noções
apoiar nosso raciocínio.
à diferenciação entre “programa” e “projeto”, para começarmos a adentrar a
análise do modus operandi das práticas contemporâneas.
Nessa primeira parte do texto, as reflexões giram em torno das
“Potencial” é aquilo que tende a ou pode vir a se tornar real e “virtual”
diferenças entre “programar” e “projetar”, e entre “fazer arte” e “viver a arte”.
Pois bem. Argan, em seu livro História da arte como história da cidade 6,
Já na segunda parte (a ser apresentada no próximo número da Lindonéia),
estabelece a diferença entre “programação” e “projeto” definindo a primeira
enveredaremos pelas ideias de pensadores como Herbert Marcuse, Jacques
como uma “pré-ordenação calculada”, rígida, cujos padrões preestabelecidos
Rancière e Félix Guattari, buscando associá-las ao contexto das práticas
impedem os indivíduos de qualquer possibilidade de escolha e decisão
colaborativas.
– que estariam vinculadas aos interesses do poder instituído – enquanto,
em contraposição, o projeto é visto como “um processo integrado numa
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concepção do desenvolvimento da sociedade como devir histórico”, estando
ligado à criatividade, ao atendimento das necessidades humanas, à história
projeto se realiza. Como disse Hegel: “Sujeita-se a matéria exterior a
coletiva e individual das pessoas. Não é por acaso, portanto, que um dos
transformações, e ela é,de súbito, iluminada pelo clarão da individualidade.
conceitos que regem as práticas contemporâneas é o de “arte como projeto”.
Deus entra no templo”. 8
Nas palavras de Mazzucchelli:
Algumas características comuns a esse tipo de prática são a
ênfase na relação entre artista e público (arte orientada para o
social), o engajamento imediato do artista com uma audiência
determinada (arte como evento), a formação de coletivos
artísticos e o uso de métodos não tradicionalmente artísticos
como um meio de resistência política. (...) “Projeto”, no contexto
da arte contemporânea, parece implicar que a prática a que
se refere aproxima-se ao menos de uma das características
mencionadas acima, ao mesmo tempo em que se distancia
da noção de objeto de arte autônomo e acrescenta um dado
temporal ao trabalho artístico.7
Próxima pergunta: Como opera o artista contemporâneo que
se dedica às chamadas “práticas site-specific”? Resposta: Primeiramente
ele procede à escolha do site ou lhe é determinado um pelo curador
responsável; ou seja, a situação a ser trabalhada é colocada em linhas gerais.
No momento seguinte, o artista passa à “escuta” e mapeamento do lugar
ou situação escolhida – é a hora de investigar e pensar nas contingências
e singularidades pertinentes à posição em questão. São, então,
identificados pontos passíveis de serem problematizados e enfocados,
que serão, provavelmente, trabalhados– é quando o artista busca aspectos
significativos que lhe interessem pessoalmente e que sejam de possível
relevância pública para a situação eleita, no contexto do mapa construído. É,
Continuando o raciocínio, perguntamos: Como opera um arquiteto?
então, idealizada e realizada a intervenção. Pode ser considerado, ainda, um
Resposta possível: De um ponto de vista simplificado e convencional, ele
momento pós-intervenção, em que aconteça a documentação do projeto
parte de um programa (é verdade) ao qual tem que atender para satisfazer às
e uma elaboração crítica sobre seu método, seus impactos, suas fissuras e
necessidades básicas de ordem prática de seu cliente; realiza levantamentos
ruídos, onde a realização de uma abordagem retrospectiva e prospectiva
físico-arquitetônicos – que envolvem o reconhecimento da área em que a
venha favorecer e alimentar novos projetos. Assim como na prática do
obra será implantada; realiza entrevistas com seu cliente para se inteirar de
arquiteto, também aqui o primeiro momento pode ser determinado por
seus gostos e hábitos, desenvolve estudos de viabilização e execução da obra
um programa (curatorial, de residência artística ou de cunho pessoal) mas,
– de acordo com as possibilidades físicas do terreno, com as possibilidades
a partir daí, a prática se desenvolve por via de um processo que passa a
financeiras de seu cliente e com a legislação vigente, para, então, desenvolver
caracterizar a ação artística como “projeto”.
o projeto propriamente dito. Neste momento, se ele se atém ao programa
solicitado e às informações e condições levantadas, o “projeto” não acontece
operacionais se emparelham: programa/projeto; cliente/público ou curador;
enquanto tal. Mas, se, considerando tudo isso, é definido um partido
levantamento/mapeamento; entrevista/escuta; análise de gostos e hábitos/
arquitetônico autêntico e a matéria é trabalhada enquanto essência, visando
análise de contingências e singularidades; obra/intervenção. Encarando,
a criação de um espaço estético pleno (no sentido de espaço sensível), o
então, site-specific como metodologia de projeto, como método de trabalho,
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Como é possível observar, alguns elementos de ambos os processos
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como maneira de pensar e agir, temos uma aproximação da prática
a “expor” obras. Sua ação vai muito além. Ele espalha cultura. Cultiva. E o que
artística em relação aos procedimentos típicos da prática da arquitetura.
significa cultivar senão dar condições para o nascimento e desenvolvimento
E, entendendo que a prática da arquitetura não se limita à execução de
da vida? E o que significa viver senão pensar sobre o que se é, o que se faz,
ambientes construídos, mas, antes, traduz-se em formas de pensamento
aonde se vive, com quem se vive, ser e fazer as coisas acontecerem?
engajadas em explorar a potência do real, com vistas a garantir a condição
de virtualidade que permitirá a atualização do espaço enquanto evento,
propõem a ocupação temporária de lotes vagos no espaço urbano,
temos uma aproximação da prática da arquitetura em direção ao modo de
estimulando sua livre utilização como espaço público, de acordo com os
concepção das práticas artísticas.
interesses da comunidade do entorno (Projeto Lotes Vagos: ação coletiva
Na definição de Kiki Mazzucchelli para “projeto” no contexto da arte
de ocupação urbana experimental, por Louise Ganz e Breno Silva); que ao
contemporânea – apresentada acima – encontramos os pontos de amarração
sair em viagem de férias com sua família seguem parando em pequenas
de uma outra discussão que nos interessa desenvolver, qual seja a que se dá
cidades do interior para desenvolver, com seus moradores, a produção e
em torno da diferenciação entre “fazer arte” e “viver a arte”. Quando ela diz
projeção em espaços públicos de imagens desenhadas pelas pessoas das
que “[a prática] se distancia da noção de um objeto de arte autônomo” e que
comunidades sobre filmes fotográficos queimados (Projeto Cinema Parado,
se trata de uma “arte orientada para o social” e de “arte como evento”, torna-
por Jarbas Lopes); que se mudam para a periferia para criar um núcleo
se quase possível enxergar a estrada que deixa para trás a ideia de “fazer arte”
de capacitação comunitária e criação coletiva que desenvolve projetos
em direção a um novo paradigma, que seria a ideia de “viver a arte”. Já dizia
artísticos (Projeto JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube, por Mônica Nador);
Hélio Oiticica: “Não quero mais separar minha experiência da vida real” . 9
que propõem a criação de uma comunidade autossustentável construída
a partir da contribuição de vários designers, arquitetos e artistas, com obras
Trata-se de assumir uma nova atitude diante da vida e da própria arte.
O que estariam fazendo, por exemplo, artistas e arquitetos que
E de pensar a arte como um exercício que envolve o coletivo.
que permitem que se possa comer, beber e viver delas (Projeto The Land, por
As palavras de Oiticica, sua convivência com a comunidade do
Rirkrit Tiravanija e Kamin Lerdchaiprasert); que criam um tapete de boas-
Morro da Mangueira, seu Programa Ambiental 10 (que embora se denomine
vindas com os nomes de todos os passantes que cruzam uma ponte que une
“programa”, considera todas as colaborações, participações e singularidades
dois países (Projeto Hospitalidad, no InSite_05, por Felipe Barbosa e Rosana
possíveis, o que faz dele um “projeto” no sentido mais amplo do termo) são
Ricalde); que percorrem as ruas da cidade com um grupo de crianças para
exemplos irrefutáveis de que o artista via a “arte como parte do mundo; como
que elas percebam seu cotidiano com outros olhos, sejam estimuladas em
um evento no espaço social e cultural” 11 da vida e, mais do que isso, a arte
sua curiosidade e construam seus próprios inventos (Projeto Vá e retorne
como a própria vida.
nécessaire, em A Quietude da Terra, por Marepe); que se dispõem a trabalhar
Como ele, muitos outros artistas contemporâneos vêm atuando no
durante sete anos com uma comunidade indiana no redesenho de bombas
sentido de promover uma maior integração da arte na dinâmica existencial da
d’água e na criação de espaços de interação social (Projeto Nalpar, por Navjot
vida cotidiana. O artista que se propõe e se dispõe a “viver a arte” não se limita
Altaf ); que propõem a comunidades das periferias a revitalização de suas
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casas a partir de seus sonhos e desejos, num processo colaborativo (Projeto
HABITA VIDA, por Rachel Falcão – nossa contribuição nessa história)?
Os exemplos são infindáveis, mas diante desta pequena lista já é
possível perceber o fundamento do conceito “artista-etc.” desenvolvido por
Ricardo Basbaum, indicando aquele artista que atua e se insere em outras
áreas; aquele que leva um “tempero” para essas outras áreas sem deixar de
levar em consideração o que é específico delas e, que, portanto, não caberia
a ele realizar. Aliás, esse trânsito dos artistas pelos mais diferentes universos
de atuação está intimamente relacionado às propostas de ações coletivas e
colaborativas – não apenas envolvendo artistas e participantes, mas também
artistas e profissionais de diversas áreas.
Voltando mais uma vez a Argan, ele diz que o que produz a arte
(...) é a necessidade, para quem vive e opera no espaço, de
representar para si, de uma forma autêntica ou distorcida, a
situação espacial em que opera. 12
Isso vem de encontro às práticas que mencionamos, sobretudo se
entendermos “representação” como ação significativa. E ainda nos deixa um
alerta, que nos leva a considerar seriamente a disposição e disponibilidade
das práticas contemporâneas, que giram em torno de ideias de uma estética
de convivência e compartilhamento:
O mundo de amanhã poderia não ser mais um mundo de
projetistas, mas um mundo de programados. 13
O que, por sua vez, se reforça nas palavras de Nicolas Bourriaud,
inspirado pelas ideias de Félix Guattari:
É preciso aprender a “captar, enriquecer e reinventar” a
subjetividade, sob pena de vê-la se transformar numa
aparelhagem coletiva rígida a serviço exclusivo do poder. 14
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caderno de imagens # 0
André Hauck. s/título, 2008 | Lais Myrrha. Uma biblioteca para Dibutade I, 2006 | Ariel Ferreira. | Alexis Azevedo.
Memorial das sombras, 2006 | João Castilho. Fissura II, 2009| Adriano Gomide. Moços à procura de beleza IV,
2007 | Ines Linke. Park fiction palminsel ,s/d | Fabíola Tasca. Cartografia da Demarcação da Terra que Produz
Diamantes, 2002 (registro do itinerário percorrido em 20 de julho de 2002, em Diamantina, MG/Brasil) |
José Roberto Schneedorf. s/título, 2007 | Marco Antonio Mota. Em que idioma, 2008 | Lucas Dupin. Autoretrato, 2007 | Melissa Rocha. Monalisa na esquina e Monalisa na esquina em ação, 2008 | Alan Fontes. da
série A Casa, 2005 | Tales Bedeschi. Das revoada (Diamantina/MG), 2008 | Samir Lucas. Batman, 2006 | Juliana
Mafra. Bandeirinhas, 2009 | Hélio Nunes. Theatrum Picturatum, 2009, acontecimento cogumelo sobre “Hélio
Nunes, (Para que serve a pintura?), (Para que serve a pintura?), para plantar feijões que não nascem e Para
tapar um buraco na mesa onde tomo café da manhã e leio os jornais do dia com uma imagem temática, 2008
| Nilcéa Moraleida. Michel, Robert e Gerhard, 2008 | André Hauck (p.55)| Lais Myrrha (p.56) | Ariel Ferreira
(p.57) | Alexis Azevedo (p.58) | João Castilho (p.59) | Adriano Gomide (p.60) | Ines Link (p.61) | Fabíola Tasca
(p.62) | José Roberto Schneedorf (p.63) | Marco Antonio Mota (p.64) | Lucas Dupin (p.65) | Melissa Rocha
(p.66) | Alan Fontes (p.67) | Tales Bedeschi (p.68) | Samir Lucas (p.69) | Juliana Mafra (p.70) | Hélio Nunes
(p.71) | Nilcéa Moraleida (p.72)
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