Shivoham
Transcrição
Shivoham
Sri Ramagita (Palavras Introdutórias) A Ramagita faz parte do Puranas. Compilada por Veda Vyasa ensina o Dharma na perspectiva do Vedanta. Rama, avatara, uma encarnação de Vishnu, se manifesta com o propósito de reeducar a humanidade, relembrando o Dharma. Por sua vez, o Ramayana é esse ensinamento na forma do mito, na forma do símbolo. Portanto, o Ramagita é a moldura do Ramayana, ne medida em que sua análise profunda revela a visão yogika. As diferentes personagens do Ramayana simbolizam qualidades ou defeitos que facilitam ou obstaculizam o caminho para a liberdade e a plenitude. Rama é o ser individual, jivatma, que está desesperadamente buscando o Ser Ilimitado, Paramatman, representado por Sita, a princesa cativa. A princesa foi sequestrada pelo demônio Ravana, que representa a ignorância, o egoísmo e o apego. As dez cabeças do demônio simbolizam os cinco órgãos de ação e os cinco sentidos que controlam a existência do homem escravo de seus próprios condicionamentos. Na batalha de resgate, que representa a busca pelo autoconhecimento, Rama corta as cabeças do demônio, arremessando a arma de Brahma diretamente no seu coração. Portanto, no final do épico, o príncipe guerreiro vence o demônio e resgata sua amada, estabelecendo-se em união com a Alma Universal, que é, em última análise, a meta do Yoga, o que se dá por meio da “derrota” do ego, ou seja, de cultivar a não-identificação com seus conteúdos, desejos, aversões e vontades. Neste sentido, a Ramagita é um diálogo entre Rama e seu irmão Laksman. Esse diálogo entre os dois irmãos é narrado pelo deus Shiva para sua esposa Parvati, que manifesta o desejo de conhecer a glória de Rama. Laksman, então, pergunta a Rama sobre como é possível atravessar o oceano de ignorância. A instrução de Rama à Laksman é a Ramagita, que passaremos a contemplar a partir de hoje suas estrofes, em postagens aleatórias, mas sequenciais. Este ensinamento, cuja essência é que o ser individual é idêntico ao Ser Ilimitado (Brahman = Ataman), deve ser compreendido e aceito se quisermos uma vida tranquila, apesar das dificuldades inerentes a qualquer existência humana. Essa não-dualidade existe e é um fato, apesar da distinção sujeito-objeto. A distinção sujeito-objeto não contradiz a nãodualidade. Este é o ensinamento do Veda. Está ao longo do Rg Veda e, especialmente, no fim dele, condensado nas Upanishads. Essa visão, contudo, não está apenas nos Vedas mas igualmente em todos os Puranas. Os Puranas são antigos registros de mitos, histórias, dinastias reais e cosmologia. O Vedanta está presente nestes textos, que são prenhes de ensinamentos. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, palavras introdutórias, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Ramagita (Quinta estrofe e Comentário) Quinta estrofe: Então, Laksman disse: Ó Senhor! Entrego-me a teus pés de lótus, que os yogis contemplam, e que podem libertá-los das correntes do tempo. Por favor, ensine-me o mais rápido método pelo qual posso atravessar confortavelmente a vastidão do oceano da ignorância. Comentário: Uma das fontes para o crescimento espiritual é o questionamento, o qual deriva do desejo de conhecer. Laksman procura Rama como professor, para superar o oceano infindável, símbolo da vida condicionada e da ignorância existencial. Laksman quer atravessar esse oceano, para chegar na outra margem, no estado em que a ignorância desaparece, e somente o Conhecimento resplandece. Mas este Conhecimento está além dos cinco meios de conhecimento que usamos para nos relacionar com o mundo. Então, como fazer? Rama ensinará! (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, quinta estrofe e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Ramagita (Sexta estrofe e Comentário) Sexta estrofe: Então, havendo escutado tudo o que Laksman disse, Rama, que destrói todo o sofrimento daqueles que nele confiam, entregou a ele o Conhecimento que dispersa as trevas da ignorância. Comentário: Após ter ouvido por completo o pedido de Laksman, Rama aceita instruí-lo. As palavras das escrituras sagradas afastam as trevas da ignorância para permitir conhecer aquilo que precisa ser conhecido. Assim, Rama aguarda que Laksman faça as perguntas. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, sexta estrofe e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Ramagita (Sétima estrofe e Comentário) Sétima estrofe: Rama disse: Em primeiro lugar, depois de termos feitos as ações mandatórias à nossa posição social associada à cada etapa de vida e, portanto, termos obtido uma mente purificada, devemos abandonar todo o apego e aversão aos frutos dos nossos karmas passados. Dotados das qualificações necessárias, devemos nos dedicar totalmente à busca do autoconhecimento, para alcançar o Conhecimento do Ser. Comentário: A essência e o próprio método do ensinamento estão resumidos nesta estrofe. Aqui, Rama ensina para Laksman o que deve ser feito para se obter o Conhecimento. Rama ensina para Laksman e, através dele, para todos nós. A pessoa dominada por causas que produzem situações confortáveis e desconfortáveis e que geram sofrimento torna-se um sobrevivente, não um contribuinte para o bem-estar do mundo, por isso essas causas precisam ser neutralizadas. A mente, portanto, precisa ser purificada para estar apta a receber o conhecimento. As funções ou vocações, atividades e responsabilidades inerentes a cada fase da vida devem ser respeitadas. Cada uma delas tem seu papel, logo, cada um deve retribuir sem delongas à sociedade aquilo que lhe é dado ou ensinado. Assim, nos tornamos contribuidores, trabalhando pelo bem comum e pela felicidade de todos na sociedade. Depois dessa realização secular, depois de havermos realizado nossas obrigações kármicas podemos nos tornar um renunciante, depois de termos cumprido todos os nossos deveres mundanos, estamos prontos para renunciar aos próprios desejos, podemos nos centrar no auto estudo e na prática espiritual em busca do Conhecimento. Assim, o praticante obtém a liberdade e a imortalidade, através de uma vida inteligente, sendo sempre um contribuidor para a sociedade e um buscador do Conhecimento, que lhe permite, que lhe permitirá atravessar o oceano de dor e sofrimento. Essa realização espiritual pode ser conquistada aqui, agora e ao longo do processo de amadurecimento. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, sétima estrofe e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Ramagita (Oitava estrofe e Comentário) Oitava estrofe: Rama continua: A ação é considerada a causa do corpo físico manifestado. Aquele que for demasiado apegado ao corpo realiza ações desejáveis e não desejáveis, que, por sua vez, produzem amor e ódio, tristeza e alegria, sofrimento e prazer, enfim, os pares de opostos. Essa sucessão de manifestações dá lugar a um novo corpo que, novamente, realiza novas ações. Assim, incessantemente, sucedem-se os nascimentos e mortes. Comentário: O karma é o primeiro e maior assunto dos Vedas, seguido da reflexão e do conhecimento. Nesta estrofe, Rama destaca a ação. Karma significa ação, e é um termo que se refere ao princípio da casualidade. O resultado dos karmas tem dois aspectos: o visível e o não visível. Os frutos das ações em conformidade com o bem universal, em conformidade com o Dharma, serão agradáveis, enquanto que os frutos das ações que devem ser evitadas serão desconfortáveis. O agente das ações é o responsável tanto pelos resultados positivos como pelos negativos. Esses méritos e deméritos são registrados, digamos, numa “contabilidade kármica”. Alguns deles frutificam nesta vida e outros não. Existem rituais compensatórios e ações meritórias como a caridade, que se potencializa até a compaixão, que podem neutralizar os frutos indesejáveis das ações inadequadas pregressas e realizadas contrariamente ao Dharma. Ou, na forma exponenciada, podem gerar um crédito de bem-aventurança esgotável. É o caso dos seres divinos e semidivinos, entendidos na visão hindu como desfrutadores, que apenas vivem esgotando os méritos das ações adequadas realizadas em vidas anteriores frente ao bem universal. Porém, um nascimento humano envolve necessariamente alguma combinação de méritos e deméritos. Ou seja, não existe nascimento feito apenas pelo fruto de méritos. Isso significa que em cada momento da vida, por boa e favorável que seja desde a perspectiva do homem em vigília, está envolvido certo grau de mérito e certo grau de demérito, os quais estão permanentemente imbricados. Assim, os humanos enfrentam situações agradáveis e desagradáveis, produto da combinação única de méritos e deméritos. A capacidade de escolher, fazer, fazer diferente, ou deixar de fazer é dada, para cada homem, por meio do livre arbítrio. Essa liberdade de fazer, de escolher, esse livre arbítrio, é que torna único o ser humano. Ou seja, os deuses não têm essa capacidade de escolha. Os animais tampouco têm essa escolha. Os humanos assumem diferentes corpos de acordo com seus próprios karmas. E, a cada vez que ganhamos um corpo, nos é dada mais uma vez uma chance de ganharmos a liberação do ciclo infindável de nascimentos e mortes. Podemos, portanto, conquistar a liberdade e a imortalidade. Essa oportunidade especial está explícita nos ensinamentos de Rama, oferecidos ao longo de sua canção. Para tanto, devemos cultivar a auto-aceitação e buscar, diligente e incessantemente, o autoconhecimento. Para conquistarmos a liberação, o meio de conhecimento é o Conhecimento de si mesmo. O karma nos prepara e nos dá a chance e as condições para que esse processo tenha espaço e tempo, tomando, claro, o Dharma como referência. O autoconhecimento liberta. A ignorância condiciona, escraviza: dominado pela ignorância existencial, entendemos e aceitamos que não somos aquele que queremos ser, e que devemos nos tornar diferentes, para, quem sabe, um dia, sermos felizes. Esta é a maior crença que nos limita, e que assume diversas formas de acordo com o karma de cada um. Mas, já somos ilimitados, não estamos separados da totalidade. Apenas não nos damos conta disso. O Conhecimento nos liberta do sentimento de limitação, que nos faz sentir condicionados e incompletos. Não podemos, sobretudo, não devemos renunciar àquilo que é nosso, àquilo que já somos. A auto-aceitação é essencial, para podermos olhar para nós mesmos como pessoas plenas. Essa é a solução para qualquer problema humano. Nós não precisamos renunciar para sermos livres. Nós não precisamos nos transformar em algo diferente daquele que somos. A purificação do psiquismo é essencial para se obter liberdade e imortalidade. E a meditação é a ferramenta mais nobre, um dos meios de que falam os Vedas, o Vedanta e o Yoga, para neutralizar e queimar sementes karmáticas. Para que um novo nascimento tenha espaço e tempo, é preciso que os karmas estejam maduros. Uma vez que eles tiverem sido exauridos, a liberação acontece. Os frutos, agradáveis e desagradáveis, das ações serão experimentados por cada um de nós, na medida em que nós nos identificamos com o papel do fazedor, do agente das ações. A auto-imagem, que nasce da ignorância, está vinculada ao fato de nós acharmos que somos o fazedor, o agente das ações, ou aquele que desfruta dos seus frutos, dos seus resultados. Portanto, em função das ações que fazemos desde o nosso livre arbítrio, construímos a nossa “contabilidade kármica”, por meio da qual iremos ganhar, futuramente, diferentes corpos como resultado ou síntese dos méritos e deméritos. Ou seja, vamos encarnando sucessivamente em vários corpos, movendonos, aparentemente em círculos, aparentemente sem sair do lugar, como uma pessoa andando numa bicicleta estacionária. Esta existência, chamada de samsara, é representada pelos sucessivos nascimentos, vidas e mortes. Ir para além do tempo, é resgatar a condição primordial da realidade absoluta, da consciência plena e da bem-aventurança eterna. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, oitava estrofe e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Ramagita (Nona estrofe e Comentário) Nona estrofe: Rama avança: A raiz do samsara é a ignorância. Naturalmente, sua destruição é o único remédio indicado nas escrituras e no ensinamento. Apenas o conhecimento é eficiente para destruir essa ignorância. Os karmas não podem destruir essa ignorância, pois são produtos dela própria. Portanto, os karmas não são opostas à ignorância. Comentário: O conhecimento se opõe à ignorância. A ignorância não se opõe ao karma. A causa principal do sofrimento é a ignorância. A distração é um dos frutos da ignorância. Ela é removida através do Conhecimento, da mesma forma como a luz remove as trevas. A distração produzida pela ignorância é causa do nascimento e do sofrimento. Essa distração deriva do resultado da equação mérito-demérito que, por sua vez, é o resultado dos desejos, os quais surgem da necessidade de sermos diferentes do que somos; desejos esses alimentados e nutridos pela ignorância existencial. O círculo vicioso está posto e assentado. Então, devemos aceitar que a ignorância precisa ser removida. Quando a destruição da ignorância acontece, como resultado do autoconhecimento, somente brilha a luz do Conhecimento. O Dharma passa a guiar todo aquele que conhece a si mesmo como já sendo livre de toda limitação. O círculo virtuoso passa a estar posto e assentado. Se nós não somos de fato o ilimitado, o que ou quem somos? Somos o Ser, mas pensar que o Ser é o agente das ações constitui uma falsa ideia. O ego é o agente das ações, o qual pode atuar em consonância com a perdição, mantenedora da ignorância, ou na trilha do Conhecimento, que oportuniza a liberação do samsara. O karma nasce da identificação com o papel do agente das ações. A chave, portanto, para o portal que leva desde o aqui e o agora para além do tempo é a não-identificação com os pares e relacionamentos associados e com as coisas e as posses decorrentes. Por sua vez, a não-identificação nos credencia, enquanto buscadores da Verdade, para o Conhecimento. Não podemos, muito menos devemos, então, realizar mais ações na esperança de que elas nos livrem da ignorância. O único fator capaz de remover a ignorância, na trilha virtuosa, é o Conhecimento. Se não houver Conhecimento envolvido e impregnado nas ações, elas, por si mesmas, não podem produzir a liberdade e a imortalidade. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, nona estrofe e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Décima estrofe: Rama avança: As ações rituais não podem pôr fim à ignorância nem reduzir o apego aos frutos das ações. Assim, desses novos karmas surgem indesejáveis resultados, associados à perspectiva dos apegos, em razão dos quais o samsara se torna inevitável. Comentário: Enquanto a ignorância não for eliminada, os desejos vão continuar instigando o sujeito. Os desejos não deixam a pessoa em paz, que fará de tudo para realizá-los. Então, como os desejos nascem da ignorância, e se sustentam nela, não podem ser eliminados sem antes eliminarmos a sua causa. E isso não poderá ser feito com ações, nem mesmo com ações rituais. Portanto, como os desejos se perpetuam em si mesmos, somente quando eliminamos a ignorância é que a força deles se extingue. Até lá, os karmas continuarão se sucedendo, alimentando o ciclo do samsara. Desta forma, é necessário aprofundar a busca pelo autoconhecimento, visando, paulatinamente, eliminar dúvidas obstrutoras e aprofundar a certeza libertadora. O conhecimento se opõe à ignorância, neutralizando a força dos desejos, os quais surgem dos pensamentos, que, por sua vez, reproduzem os karmas que, enfim, fustigam o indivíduo com novos desejos. Trata-se de uma espécie de cadeia de valor viciosa, que deve ser combatida e superada. Aquele que é capaz de discernir, percebendo os vícios contidos nos desejos, refugia-se no conhecimento, evitando a identificação com os papéis e os scripts correlatos com que atua em vigília e nos sonhos. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, décima estrofe e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Décima primeira; décima segunda; décima terceira; e décima quarta estrofes: Rama apresenta à Laksman as objeções à lógica da décima estrofe: As pessoas de lógica errática afirmam que assim como os Vedas declaram que o conhecimento é o meio para se alcançar o mais elevado objetivo, com maior ênfase, eles prescrevem igualmente os karmas rituais. Ou seja, afirmam que as ações prescritas são compulsórias para os sujeitos. Portanto, afirmam que estes karmas podem ser complementares ao caminho do conhecimento. As pessoas de lógica errática dizem que as escrituras sagradas advertem ainda sobre o fato de que, considerando o caráter mandatório de certas ações rituais, sua omissão irá trazer frutos demeritórios. Desta forma, dizem que o buscador da Verdade deve realizar ações rituais que foram prescritos para ele. Enfim, argumentam que, em caso do indivíduo insistir no entendimento de que o caminho do Conhecimento é independente e eficiente para alcançar a liberdade por si só, e, por conseguinte, pode prescindir totalmente dos karmas rituais, da mesma forma que os rituais védicos dependem de muitos acessórios externos, como a presença das circunstâncias, do sacerdote oficiante, das oferendas, o caminho do Conhecimento torna-se capaz de outorgar libertação apenas com a ajuda dessas ações rituais, prescritos pelas afirmações védicas. Rama, então, esclarece: Saiba Laksman que, no fundo, isso é falso, considerando uma contradição óbvia: as ações feitas aumentam a identificação com o corpo, enquanto que o conhecimento se realiza mediante a eliminação da identificação com o ego e, consequentemente, com o corpo. Comentário: O sujeito esgota os karmas eliminando a conexão com os desejos dos quais eles nascem. Os karmas não se esgotam por si sós. Os desejos não se esgotam sozinhos. Enquanto permanecer a ignorância sempre vão surgir novos e novos desejos para serem satisfeitos. É um processo que nunca tem fim. Essa é a natureza do ciclo infindável de mortes e renascimentos. Portanto, a reprodução desse processo é o próprio esforço dos condicionamentos, uma vez que, repetindo desejos e ações para realiza-los, não aprendemos nada, mas somente reforçamos a identificação com eles. Assim, a única alternativa que nos permitiria sair desse ciclo é mudarmos a perspectiva que temos de nós mesmos nesse esquema de coisas. E essa perspectiva pode ser alterada quando interrompemos a conexão, a identificação com o fazedor, permitindo que o Conhecimento opere, realizando o seu papel. Ou seja, devemos deixar de acreditar que a felicidade vai surgir da realização de novas ações. Nessa outra perspectiva, o conhecimento resolve afastar a ideia de que somos apenas ego ou fazedor/desfrutador. Portanto, ou agimos desde o Conhecimento, livre que somos, ou agimos desde o ego, presos e escravizados pela identificação com todos e com tudo. Para mantermos a mente desperta devemos entender e aceitar que entre a liberdade e o Conhecimento existe uma conexão intrínseca, isto é, a liberdade é a consequência do conhecimento. Ou seja, por meio do Conhecimento, advém a liberdade. São como duas caras de uma mesma moeda. A conexão entre estes dois elementos tem como consequência a eliminação da ignorância. Conhecimento e liberdade formam parte, portanto, do mesmo e único processo, que consiste em desintegrar a ignorância. Este processo é, como assegura Rama, independente de quaisquer outros fatores. A essência do Vedanta é esta: você já é livre; nós já somos livres! (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, décima primeira; décima segunda; décima terceira; e décima quarta estrofes e comentário, sínteseadaptada de Sarvananda Deva). Luz! Décima quinta e décima sexta estrofes: Rama avança: A focalização do Ser, conseguido por meio da contemplação com o coração purificado, é chamada Conhecimento. Os karmas surgem das suas variadas causas, enquanto o Conhecimento aniquila completamente esses fundadores dos karmas. Portanto, que aqueles de coração puro aprendam a abandonar a ânsia pelo fruto de todos os karmas, pois sendo as ações contrárias ao Conhecimento, sua combinação com ele não é possível. O buscador da Verdade deve se engajar na contemplação do Ser, apaziguando a atividade dos sentidos e da mente. Que possamos abandonar os karmas que não nos conduzem à Liberdade. Comentário: Cada um de nós é o observador, o fazedor, o pensador, o escutador, o questionador, o desfrutador, o sofredor das ações e seus frutos. A dor e sofrimento apontam para os diferentes papéis e scripts que cada um de nós representa. Mas quem é esse que representa esses papéis executando seus scripts? Quem é aquele que, apesar de atuar nas infindáveis existências, não muda, não se altera com e em nenhuma manifestação. Esse que não muda, que não altera é o que cada um de nós já somos, é o Ser, ilimitado e sem carências. O Conhecimento se obtém por meio de um olhar especial, nascido das escrituras sagradas. Esse olhar especial é chamado de “terceiro olho”, veículo da visão divina. É a perspectiva alternativa à visão secular, mundana. Para se conquistar esse Conhecimento, portanto, é preciso mudarmos a perspectiva, modificar o olhar que habitualmente usamos para ler e interpretar a nós mesmos, a existência e as situações que vivemos. A meditação é um dos recursos auxiliares. Ouvir o ensinamento e ponderar sobre eles são igualmente elementos prévios e necessários. Sendo assim, a meditação integrada ao Conhecimento pode tornar a Liberdade possível. A concentração mais elevada, finalmente, é aquela que desintegra a ignorância. O ego está restringido ao corpomente. O Ser não está restringido a nada nem é limitado por nada. Cada um de nós deve entende e aceitar que o que não é nosso corpomente, em Verdade, é Ser. O Ser é auto-objetificado. Aquilo que nosso corpomente não consegue objetivar é o não-Ser. Todavia, isso não significa que o não-Ser seja maior que o Ser. Em Verdade, tudo o que nós possamos perceber como não-Ser, é Ser. Portanto, não devemos ficar negando absolutamente nada, muito menos tudo, o tempo todo, simplesmente porque não percebemos o Ser. Nós só conseguiremos objetificar os objetos usando certos meios de conhecimento, como os sentidos, por exemplo. Então, aquilo que nós objetificamos é evidente para cada um de nós, mesmo que essa objetificação seja sobre a ausência de alguma coisa. Por outro lado, podemos afirmar: nós existimos, nós somos! Qual é o meio de conhecimento que nos permite fazer essa afirmação? Não é a mente, nem mesmo sendo esta líder, que comanda todos os sentidos, ou qualquer outro processo que ela o elabore, como a inferência, por exemplo. O que permite a afirmação é a presença do Ser. É o fato de que o Ser é autoevidente, revelador de si mesmo, que revela a si mesmo. Ele não pode nem precisa ser objetificado. É insondável. Contudo, coletivamente, nós Somos quando tudo se torna evidente para nós. Individualmente, eu Sou, portanto, tudo se torna evidente para mim. Eu Sou autoevidente. O Ser é auto-evidente. Atman é idêntico à Brahman! O Ser é aquele para quem tudo é evidente. Depois de reconhecer a mim mesmo, eu penso, percebo, conheço, etc. Concluindo, então, eu não “penso, logo existo” como afirmou Voltaire, mas “existo, logo penso”. Aquela é uma verdade secular. Esta é a Verdade divina. A mente pensa porque o Ser existe. O Ser, brilhando com luz própria, ilumina todos os objetos. A Consciência, então, é auto-revelada. Nem tempo nem espaço poderiam existir sem a Consciência, que é, no mesmo compasso, Realidade e Bem-aventurança. Você É, portanto, ilimitado. Eu Sou, portanto, ilimitado. Nós Somos, portanto, ilimitados. Apenas não nos damos disso, mergulhados que estamos na ignorância. Para superar a ignorância, precisamos nos reconhecer como Consciência, Realidade e Bem-aventurança por meio do Conhecimento. Precisamos realizar uma investigação cuidadosa sobre o Ser, o que abrange escutar, questionar e, finalmente, meditar sobre o ensinamento, nascido das escrituras sagradas, num processo contínuo e diligente, até a conquista da Liberdade e da Imortalidade. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, décima quinta e décima sexta estrofes e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Décima sétima estrofe: Rama avança, explicando compassivamente a Laksman: Enquanto a pessoa se identificar com o seu corpo, resultado do jogo de maya [poder da Realidade, Consciência e Bem-aventurança para criar o mundo dos nomes e formas], ela deverá realizar os karmas sagrados prescritos nos Vedas. Depois disso, com a ajuda das afirmações e negações do Sruti [tat tvam asi (você é Isso); neti neti (nem isto; nem aquilo)], a pessoa deve aprender a transcender a identificação com o próprio corpo, reconhecendo a si mesma como o Ser e, então, abandonar o apego aos frutos dessas ações rituais. Comentário: Nesse verso Rama explica para nós que as afirmações feitas nos versos anteriores acerca da ritualística védica frente à Liberdade e à Imortalidade são apenas aparentemente contraditórias. Considerando que essa contradição pode ser traumática para o buscador da Verdade, destruindo sua confiança no entendimento, então Rama refina sua explicação. O que Rama quis dizer é que enquanto persistir a noção de que “eu sou este corpo”, o buscador da Verdade deve realizar ações rituais, não porque elas promovam o Conhecimento, mas porque elas são úteis para alinhar e harmonizar o buscador da Verdade com o Dharma, por meio de ações caridosas e compassivas, que devem ser executadas tendo em mente o bem comum. E isso vale, claro, para todos nós. Somente dessa maneira, os livramos do egoísmo e da identificação com os desejos. Portanto, enquanto estivermos vivos, e até a conquista do Conhecimento, você, eu, todos nós precisamos realizar ações rituais, como o ritual do fogo, por exemplo, até a superação da ignorância. Ou seja, o Veda reconhece aquele que realiza as ações, e se dirige a ele recomendando as ações adequadas e desaconselhando as inadequadas, apontando para a possibilidade de viver uma vida no Dharma. E isso vale para todos, até a identificação com o Ser, até a conquista da identidade Brahman = Atman. Atendendo essa recomendação do Veda, evitamos as ações contra o Dharma e nos centramos nas ações a favor do Dharma. Observe que dessas ações adequadas algumas são obrigatórias e outras opcionais. O importante é que o aspirante ao Conhecimento, que está comprometido com a busca da Verdade, deve cultivar uma atitude adequada em relação ao Ser, em relação à Isvara, que é Brahman associado ao poder de maya. Essa atitude convergente ao Conhecimento é o resultado de uma espiritualidade que lhe permita gerar e manter uma estrutura interna adequada, firme, para que haja espaço para levar o Conhecimento para si mesmo, em todos os aspectos do cotidiano. Somente uma mudança de atitude faz com que as ações centradas no ego mudem e passem a apontar para o Ser. Portanto, não executo o que as escrituras sagradas me dizem porque tenho medo de desobedecer o mandamento, mas porque penso, reflito a respeito e chego à conclusão de que a orientação é verdadeira e faz sentido, apontando para o Conhecimento. Independentemente das ações adequadas e obrigatórias que eu fizer, elas devem estar centradas e dedicadas ao Ser, à Isvara. Um dedicado buscador da Verdade, um diligente aspirante do Conhecimento deve oferecer os frutos das suas ações à Isvara, cultivando permanentemente atitudes com esse fito. Essa postura dhármica, essa atitude vertida para o bem comum se chama karmayoga. Para tanto, como pano de fundo desse processo de liberação do ciclo de morte e renascimento, o buscador do autoconhecimento deve estar atento ao que é real e ao que é irreal. O processo de busca do Conhecimento representa transitarmos do irreal para o real. Mithya é um termo usado para designar algo que, para existir depende da existência de outra coisa. Mithya designa algo que tem consciência experiencial, algo que podemos experimentar no mundo material. Mas, todos os objetos para existirem dependem de Isvara, dependem da Consciência Ilimitada, que está em todos os lugares e em todas as coisas, em tudo e em todos. O Ilimitado está dentro, fora, na frente, atrás, por cima, por baixo e através de cada objeto, de cada pessoa, de cada molécula, de cada átomo, de cada partícula e do próprio universo, da própria manifestação, pois Ele é maior do que o maior e ao mesmo tempo menor do que o menor. Tudo o que está aqui no universo em que nos movemos deve ser aceito como mithya. Nós não precisamos nem podemos descartar o mundo como sendo ilusório, nem como não-existente, mas tampouco podemos considerá-lo como existente, independentemente de Isvara, o Ser. Sem Brahmavidya, sem Conhecimento, não podemos apreciar isto. Então, viver sem Conhecimento é irreal. Portanto, viver com Conhecimento é real. Todo o conhecimento, todo o poder, pertencem à mesma Consciência Ilimitada. Essa Consciência é dotada dessa força ilimitada, que se chama maya, que é, em verdade, mithyam. Mithyam designa tanto o falso quanto o dependente. Em verdade, designa tudo o que depende de mais alguma coisa para existir. Satya, por outro lado, é aquilo que não depende de mais nada para existir, para ser. Assim, mithyam depende de satya, isto é, mithyam é sathyam, mas sathyam não é mithyam. Sem Brahmavidya, sem Conhecimento, não podemos apreciar isto. Então, viver sem Conhecimento é irreal. Portanto, viver com Conhecimento é real. Por conta de algumas situações peculiares, da combinação de alguns fatores, por momentos, acontece um estado de consciência chamado ananda, que é quando nós nos separamos por um momento do ego e da mente. Percebemos a nós mesmos como alguém pleno, completo em si mesmo, que não quer, que não deseja ser diferente, tornar-se diferente do que É, do que Somos. Quando isso acontece, você, eu e todos que experimentam esses momentos não precisamos procurar pela totalidade em algum lugar especial. Somos essa totalidade. Essa totalidade está em todos os lugares, em todas as situações, aqui e agora, a cada momento. Quando estamos conscientes disso, estamos em ananda. Conhecer, perceber, captar e manter-se ciente e desperto da própria natureza é a capacidade de se manter em estado de Yoga, de união com o Ser, com Isvara. Isto é a Consciência Ilimitada. Aquilo é Consciência Ilimitada. Você, eu, todos nós precisamos nos perceber a nós mesmos como a Consciência Ilimitada. Como Isvara. Não há nada além do Conhecimento. Não há nada aquém do Conhecimento. A única coisa que existe é o Conhecimento. Portanto, com o Conhecimento superamos a ignorância e, por via de consequência, superamos igualmente os desejos, que se alimentam e se nutrem com e da própria ignorância. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, décima oitava estrofe e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Décima oitava estrofe: Rama continua o ensinamento: Quando o Conhecimento do Ser, brilhante e direto, que destrói as diferenças entre jiva (alma individual) e Paramatma (alma universal), surge no coração do indivíduo, somente então maya, causa do samsara da pessoa desaparece instantaneamente, juntos com seus efeitos, os erros conceituais. Ou seja, quando o Conhecimento remove as ideias equivocadas sobre Isvara e atman, é compreendida a identidade entre Brahman e atman. Comentário: A Verdade é uma só. Não existem duas “Verdades”. Não há dois pontos de vista diferentes em relação a satyam e mithya. Quando você, eu e todos nós entendermos que não somos as infinitas formas de potes, mas que somos argila em formas de potes, estaremos iluminados. Simples assim! Essa forma de instrução é chamada mahavakya upadesa, a grande afirmação “você é a Consciência Ilimitada”, tat tvam’asi. A Consciência Ilimitada é a verdade de Isvara e, portanto, a Verdade do universo. Isvara não tem localização, pois é tudo em todos os lugares e em todos os tempos. Tudo o que é; tudo o que existe. Jiva (alma individual) sim, tem localização no tempo e no espaço. O pote é argila, mas a argila não é o pote. As formas surgem e desaparecem, a essência permanece. Satyam é a realidade, é você, cada ser vivo. Percebendo a si mesmo como Isvara, você remove todas as equivocações. O sujeito, numa primeira instância, reclama da sua condição existencial, do seu, vazio existencial. Num segundo momento, escuta e questiona o ensinamento. Finalmente, ao compreender a Verdade, deixa de se lamuriar. Ele passa a ver a si mesmo como sua natureza essencial. Aí, ao invés de viver se queixando, aprecia as vantagens de existir, de sua existência, e vive uma vida feliz, passa a ser/ter alegria. Ao ficar tranquilo e em paz afirma: Eu sou o Ilimitado. So‘Ham. Neti, Neti. Hamsah. Neti, Neti. Shivoham. Os conflitos existenciais são resolvidos. Maya, com toda a miríade de diferenças, é aparentemente real para aquele que não tem Brahmavidya, para aquele que não conquistou o Conhecimento, para aquele que não superou a ignorância, para aquele que não dominou os desejos. Portanto, o liberto em vida (jivanmukta) domina os desejos, supera a ignorância, conquista o Conhecimento; com Brahmavidya percebe o real (atman) como efetivamente real (Brahman). (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, décima nona e vigésima estrofes e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz! Décima nona e vigésima estrofes: Rama continua o ensinamento: Uma vez que maya [a ignorância] é totalmente destruída por meio do processo exposto no Sruti (“aquilo que foi ouvido”), como pode ela (maya) permanecer capaz de gerar novas equivocações? Sendo o Ser absoluto Conhecimento, puro e não-dual, a ignorância, consequentemente, não mais surge. Se maya, uma vez destruída, não surge novamente, como poderia a ideai “eu sou o fazedor desta ação” aparecer novamente na pessoa realizada? Portanto, o conhecimento é independente e pode prescindir de tudo o mais. Ele, sozinho, é capaz de outorgar a libertação. Comentário: É preciso desenvolver a responsabilidade para ser livre. É preciso abrir espaço para o conhecimento, de maneira a eliminar a ignorância das nossas vidas. Quando você, eu, todos nós nos expomos ao Conhecimento, “ouvindo aquilo que foi ouvido”, vamos obtendo a clareza do discernimento, então, a ignorância vai sendo eliminada, até brilhar apenas a consciência do atman não-dual. Uma vez que a consciência de atman brilha, a ignorância é definitivamente eliminada. Junto com ela, desaparecem todas as formas de condicionamento e identificação com os desejos, aversões e condicionamentos. Isso não significa que eliminamos o ego, mas que nós adquirimos um ego iluminado. Quando os erros e equivocações são removidos, o sofrimento que sentíamos desaparece junto com eles. Ou seja, o efeito está contido na causa. Se a causa some, o efeito igualmente desaparece. Isso acontece porque, desde o não-dualismo, o efeito é a causa, mas a causa não é o efeito. Moksha (Liberação) não é algo que fica longe, distante, inalcançável. Atman não é o ilimitado que nunca se alcança. Ou nós conhecemos a nós mesmos como atman aqui e agora, ou ainda não o conhecemos. O Vedanta somente expõe os meios do conhecimento para Moksha. Mas, depois de conhecermos a nós mesmos como Consciência Ilimitada, a ignorância sobre nós, por conta da força dos condicionamentos, voltar a encobrir o conhecimento, então, em verdade, se isso acontece, é porque o conhecimento não está suficientemente estabelecido em nós. O Conhecimento é o meio para se atingir a perfeição, a realização. O Conhecimento é a reconciliação dos conflitos e aparentes contradições. Quando o Yoga, quando a União for realizada, estaremos livres e imortais. Em verdade, já somos livres e imortais, apenas não nos damos conta disso, por força da ignorância que impera, impondo o samsara. Somente o Conhecimento realiza a Libertação. (de Swami Dayananda por Pedro Kupfer. Sri Ramagita. Bombinhas: Yogabindu, 2009, décima nona e vigésima estrofes e comentário, síntese-adaptada de Sarvananda Deva). Luz!