colaboração intelectual - Conselho da Justiça Federal

Transcrição

colaboração intelectual - Conselho da Justiça Federal
COLABORAÇÃO INTELECTUAL
ANITA GARIBALDI
Norberto Ungaretti
RESUMO
Relata, resumidamente, a biografia da brasileira Ana Maria de Jesus Ribeiro,
historicamente conhecida como Anita Garibaldi. Natural de Laguna, em Santa
Catarina, Anita foi a esposa e companheira de batalhas do italiano Giuseppe
Garibaldi, que no Brasil lutou junto às tropas farroupilhas pela causa republicana,
tendo também se engajado em lutas libertárias no Uruguai e na Itália. Ao seu lado,
Anita deu demonstrações de grande heroísmo e bravura.
ABSTRACT
The text reports, in a summary, the biography of the Brazilian Ana Maria de Jesus
Ribeiro, historically known as Anita Garibaldi. She was born in Laguna, in Santa
Catarina state, Anita was the wife and comrade of battles of the Italian Giuseppe
Garibaldi. In Brazil, he fought within the southern troops – know as tropas
farroupilhas – for the republican cause, he had also joint the libertarian fights in
Uruguay and in Italy. By his side, Anita gave demonstrations of great heroism and
bravura.
Laguna, por onde passava, no sul do Brasil, a linha demarcada pelo Tratado de
Tordesilhas a dividir entre Portugal e Espanha as terras descobertas e por
descobrir, teve papel de fundamental importância na conquista do continente de
São Pedro do Rio Grande do Sul, pelo que raízes rio-grandenses são em boa
parte raízes lagunenses. A certa altura, quase mesmo a póvoa vicentista chegou a
esvaziar-se, tão intensa era a emigração lagunense para os campos do sul, a
serviço del Rey ou em busca das novas oportunidades que se abriam,
promissoras, no até então inexplorado "continente". Era porém, acima de tudo,
uma missão de conquista, a consolidar naquelas terras o domínio português. Por
isso, a velha cidade pode hoje orgulhosamente ostentar em seu brasão, concebido
e composto pelo historiador Afonso Taunay, esta legenda gloriosa: Ad meridan
Brasilian duxi. Na verdade, Laguna levou o Brasil para o sul.
Essa identificação histórica e até mesmo afetiva entre Laguna e o Rio Grande do
Sul em boa parte explica a simpatia com que os lagunenses receberam a notícia
da rebelião que empolgou os gaúchos, em 1835, levando-os à proclamação da
República Piratini. Tal simpatia só fez aumentar, à medida que iam chegando as
notícias e a propaganda dos ideais farroupilhas, não obstante a atenção que ao
assunto dedicou o Presidente da Província de Santa Catarina, por meio de
providências de variada natureza, inclusive alertando o povo para os riscos da
adesão aos ideais separatistas (e separatistas porque republicanos, mas
aspirando à união nacional sob novo regime) que inspiravam o movimento sulista.
Chegados à Laguna e festivamente recebidos pela população, os revolucionários
ali proclamaram, com gente da terra, em 29 de julho de 1839, a República
Catarinense, também chamada Juliana, de efêmera duração, porém. A 15 de
novembro daquele mesmo ano de 1839 (coincidentemente exatos cinqüenta anos
antes que vingasse no Brasil o sonho republicano), feriu-se a batalha naval em
que foram definitivamente derrotadas, na Laguna, as forças rebeldes.
Esse fato, aliás (e manda a verdade histórica que se diga), foi recebido com
sentimento de alívio pela população lagunense, dado que o entusiasmo das
primeiras semanas cedeu lugar à frustração e mesmo à revolta, pois as tropas
irregulares estacionadas na vila, ociosas, sem poder ir à frente nem enfrentar a
reação legalista, que tardava, acabaram por cometer tropelias e crimes que
enlutaram Laguna e se estenderam a localidades adjacentes.
Naquele mesmo tempo e espaço, entretanto, surgiria, à margem do episódio
militar e político, uma história de amor e heroísmo que projetou, da vida obscura
na sua vila para a consagração em duas pátrias, uma singular figura de mulher.
Ana Maria de Jesus Ribeiro, no verdor dos seus dezoito anos, longe estava de
supor que a onda vinda do sul era a mesma que a arrastaria para aventuras
jamais sonhadas e para a glória que não ambicionou nem perseguiu.
Ainda muito jovem, analfabeta, provavelmente não lhe faria diferença, nem
ocupava suas preocupações, viver sob regime republicano ou monárquico,
embora provavelmente participasse do entusiasmo que, na euforia de ser a vila
elevada à cidade capital da República Catarinense, tomou conta da maior parte da
população lagunense.
A paixão que despertou em Giuseppe Garibaldi e a que se entregou sem
resistência, antes com o encantamento de quem parecia haver esperado desde
sempre aquele amor vindo de tão longe, foi que acordou em Anita as
insuspeitadas energias da mulher determinada e guerreira, capaz do heroísmo
que a imortalizou.
Bem o percebeu, sem demora, o futuro herói da unificação italiana. Ainda antes do
embate final com as forças legalistas, Anita acompanhou Garibaldi no combate de
Imbituba, travado a 4 de novembro de 1839. Em suas Memórias, ele diria,
referindo-se àquele episódio, que constituíra o batismo de fogo da sua jovem
companheira: Durante aquela luta, provei a mais viva e cruel emoção de minha
vida. Enquanto Anita, sobre a proa do barco, com o sabre na mão, encorajava
nossos marinheiros, uma bala de canhão arremessou ao chão outros dois. Dei um
salto para junto dela, pensando encontrar um cadáver; ao invés, ela se levantou
rapidamente, sã e salva, enquanto os dois homens caídos com ela estavam
mortos. Dei-lhe ordem para descer ao interior do barco. "Sim, desço", me
respondeu, "mas para trazer fora os covardes que ali se esconderam"1.
Na batalha naval de Laguna, que pôs fim à República Catarinense, e que custou
aos dois lados dezenas de mortos e feridos, Anita deu outras demonstrações de
bravura. A bordo do "Rio Pardo", acompanhava os preparativos para enfrentar o
inimigo que se aproximava. Como Garibaldi subira à costa para observar o
movimento das embarcações inimigas, Anita, conta seu mais autorizado biógrafo,
W. L. Rau, (...) sem hesitação o substituiu no comando e disparou, ela mesma, o
primeiro tiro de canhão em direção ao adversário, animando com seu destemor a
tripulação, momentaneamente acéfala e deprimida2.
Encerrado o episódio lagunense do movimento farroupilha, desarticulada e
vencida a República Catarinense, retiraram-se os rebeldes para o Rio Grande,
dirigindo-se primeiro ao planalto serrano catarinense. Com eles, ou melhor, com
Giuseppe Garibaldi, Ana Maria de Jesus Ribeiro, que jamais retornaria à sua terra
e à sua gente.
A primeira batalha que se seguiu à derrota sofrida em Laguna travou-se em
Lages. Nela, Anita não tomou parte direta, mas, à falta de médico e sendo a única
presença feminina no cenário da luta, (...) foi o anjo que a todos os feridos acudia,
como enfermeira meiga e carinhosa3.
Dias depois, os rebeldes alcançam Lages, onde não só entraram sem qualquer
resistência, como foram recebidos festivamente, pois entre os lageanos, tal qual
sucedera entre os lagunenses, os ideais republicanos que defendiam desfrutavam
de entusiástica simpatia.
Os pais de Anita tinham morado em Lages. Ali lhes nasceram alguns filhos. O
cenário, pois, do ponto de vista afetivo, era familiar a Anita. Ela e Garibaldi
instalaram-se numa casinha, bem modesta, é verdade, mas em todo caso uma
casa que até então não haviam tido para si. Na noite de Natal daquele ano de
1839, participando da Missa do Galo na igreja de Nossa Senhora dos Prazeres,
talvez tivessem desejado ser como aquela gente simples, de vida tranqüila,
endereço e domicílio certos, ocupação estável, paz para criar os filhos, paz para
viver. Sabiam, entretanto, não ser aquele o seu presente nem o seu futuro.
Giuseppe Garibaldi era o destemeroso aventureiro, cavaleiro andante de ideais
libertários, que a posteridade consagraria como herói da sua pátria. Anita, a
mulher que aceitou o desafio de acompanhá-lo e que parecia haver sido escolhida
pelo destino para dividir com ele as incertezas, os riscos, os perigos, as agruras
dos longos e difíceis caminhos.
Poucos dias durou, de fato, aquela sensação de calma e segurança que quase os
fizera felizes, na sua casinha de Lages.
Logo as tropas rebeldes puseram-se em movimento, ao encontro das forças
legalistas que rondavam a região e antecipando-se, assim, ao inevitável confronto.
Travou-se, então, terrível combate. Estava-se em Curitibanos, no planalto
catarinense. Surpreendida pelo inimigo, Anita reage de sabre em punho. Matamlhe, entretanto, a montaria, e furam-lhe o chapéu a bala, arrancando-lhe uma
mecha de cabelos. Caída ao chão, é feita prisioneira, mas o chefe adversário, que
mal podia esconder a admiração por aquela mulher solitária e brava, vestida de
homem entre homens e lutando melhor que quase todos, permitiu-lhe procurar
Garibaldi dentre os mortos, cujos corpos, vários já em decomposição,
encontravam-se ainda insepultos. Anita cumpre, em ânsias, aquele roteiro sinistro,
compensada, afinal, pela certeza de que seu amado Giuseppe escapara ao saldo
trágico do combate de Marombas, com o qual terminaria a ação bélica dos
farroupilhas em terras de Santa Catarina.
Anita vivia um momento decisivo. Longe de Garibaldi, com quem perdera
contacto, e trazendo já no ventre o primeiro fruto do seu amor, só lhe restava fugir,
para reencontrar-se com a vida.
Certa noite, abandonou a clareira em que eram mantidos os prisioneiros e
embrenhou-se na floresta, pois andar pela estrada seria expor-se ao
reconhecimento e à captura. Foi uma fuga épica, não pelo ato de fugir em si
mesmo, talvez até, quem sabe, favorecido pela deliberada invigilância de algum
dos guardas, mas em razão dos perigos que haveriam de ser enfrentados: a
própria mata, cerrada e selvagem, os animais, a fome, o cansaço, a tudo
acrescendo o desconforto da gravidez. Chegando às margens do rio Canoas,
consegue furtar o cavalo de um miliciano descuidado e com ele atravessa a água
rasa que a conduz ao outro lado, de onde prossegue a fuga. Mais dois dias de
viagem, e chega a Lages, indo ter à mesma casa simples onde vivera alguns dias
e na qual, agora, esperou em vão encontrar Garibaldi. No dia seguinte, porém, os
dois se reuniram, com grande emoção dele e admiração e surpresa dos seus
homens, que mal podiam compreender como aquela pequena mulher pudera,
sozinha, percorrer tão longos e difíceis caminhos. A uma pergunta de Teixeira
Nunes, bravo e leal republicano, que lhe indagava como conseguira chegar até ali,
Anita respondeu, quase simplória: Vim vindo, coronel...
De Lages, partem para o Rio Grande. Ana Maria de Jesus Ribeiro deixava para
sempre a terra barriga-verde, em que nascera. Teria a intuição do seu destino, a
percepção da aventura que apenas começava e culminaria com a consumação
dos seus dias em solo estrangeiro e distante?
Em território gaúcho, caminham os farrapos desde Vacaria até Viamão, perto de
Porto Alegre, localidade entre cujos povoadores estavam muitos dos lagunenses
que se lançaram à conquista do Rio Grande no séc. XVIII. Ali esteve Anita em paz,
por algum tempo. Da batalha de Taquari, que se seguiu, e na qual morreram cerca
de 470 combatentes, de um e outro lados, Anita não participou porque não o
permitiu o comandante supremo dos revoltosos, o general Bento Gonçalves, que
por isso incorreu na antipatia da companheira de Garibaldi. Não poderia ter agido
de outra forma, entretanto, o chefe farroupilha. Anita estava em adiantada
gravidez.
Àquela batalha, por haver demonstrado o equilíbrio de forças das facções nela
empenhadas, seguiram-se conversações de paz, que acabaram frustradas, mas
permitiram alguma tranqüilidade aos republicanos. Foi providencial a trégua, pois
por esse tempo, havendo Garibaldi conseguido acomodações na casa de uma
certa família Costa, já na localidade de Mostardas, Anita deu à luz seu
primogênito, a quem chamaram Menotti. Era o dia 16 de setembro de 1840.
Garibaldi dirigiu-se então a Viamão, a fazer compras de coisas necessárias à
mulher e ao filho, bem como participar o nascimento a seu amigo e patrício Luigi
Rossetti.
Enquanto estava ausente, o vilarejo foi assaltado por um esquadrão legalista.
Prender Anita e a criança seria subjugar Garibaldi. Assim pensou, com lógica, o
valente capitão Pedro de Abreu, futuro Barão de Jacuí. Só que não conhecia a
capacidade de decisão e resistência da jovem lagunense, nem poderia supor que
ela tivesse condições físicas capazes de, sobretudo na situação em que se
achava, sustentar qualquer reação ao imprevisto assalto.
Mas Anita, avisada a tempo, fez o que a qualquer um pareceria impossível.
Tomando nos braços o filho com apenas doze dias de nascido, e afrontando todas
as regras de prudência que exigiam longo e cheio de cuidados o repouso das
parturientes, mergulhou nas sombras da noite, sozinha com seu tesouro. Foi nesta
atitude de fuga, vivendo um momento heróico da sua recente maternidade,
dividindo-se entre o governo do animal que a todo galope a transportava e a
proteção ao frágil Menotti, que a imortalizaram os italianos no belo monumento
erguido em sua memória no centro de Roma e onde hoje repousam seus restos
mortais.
Dois meses mais tarde, resolve Bento Gonçalves que se retirem os revoltosos
para a serra, ao norte, dividindo-se eles em dois grandes grupos, um dos quais
seguiria pelo litoral e o outro pelo interior. A este, sob o comando de Davi
Canabarro, integrou-se Garibaldi.
Foi uma tragédia aquele percurso. A começar pelo fato de que não havia
caminhos, apenas rumos, que assim mesmo de vez em quando ficavam perdidos
naquela região inóspita, sob chuvas intensas, que faziam transbordar os cursos
d’água, impedindo a passagem das tropas. Os homens, bem assim as mulheres e
crianças que os acompanhavam, molhados, cansados, famintos, iam muitos deles
sucumbindo às privações e à doença. Os próprios guias se perderam, e foi esta a
causa principal das desgraças que se abateram sobre aquela gente, de repente
convertida como que em prisioneira do labirinto da Serra das Antas, com suas
escarpas rochosas, suas curvas abruptas, suas alturas que se levantavam súbitas
e desafiadoras. Muita gente morreu ao longo da sinistra travessia. Era uma
carnificina mais horrível do que a de uma sanguinolenta batalha, escreveria
Garibaldi em suas Memórias. A tudo resistiu outra vez Anita, inexcedível na luta
para salvar o filho de três meses, que quase morre enrelegado.
Terminada a marcha, depois de nove dias e nove noites de acerbo sofrimento,
amadureceu no espírito de Garibaldi a resolução de deixar o Brasil.
As perspectivas de vitória da causa farroupilha estavam cada vez mais distintas. A
República Catarinense fôra derrotada e nenhuma esperança restava de que
pudesse ser restabelecida. No Rio Grande, a causa não avançava. Luigi Rossetti,
o amigo e conselheiro, estava morto. E havia sobretudo o fato novo: Anita e o
pequeno Menotti, a quem julgava já haver exposto demais aos riscos e privações
daquela vida desassossegada e aventureira.
Assim, em fins de abril de 1841, depois de comunicar a Bento Gonçalves sua
intenção de partir, Garibaldi iniciou viagem para o Uruguai. Levou 900 bois,
recebidos como indenização pelos serviços prestados à causa farroupilha.
Cinqüenta dias depois, chegavam os Garibaldi a seu destino. Nenhum dos
animais sobreviveu à longa e penosa jornada. Cerca de quatrocentos tinham
morrido somente na travessia do Rio Negro.
Em Montevidéu, embora instalado em casa de um carbonário que generosamente
o acolhera, Garibaldi tratava de organizar a nova vida. Passou a lecionar num
colégio matemática, caligrafia e história. Além disso, começou a trabalhar também
como corretor de cargas marítimas. Graças a esse período de estabilidade,
tiveram os Garibaldi sua primeira casa de morada, hoje transformada em museu.
A vida de Anita em Montevidéu foi marcada por acontecimentos de grande
importância no plano pessoal, sendo o principal deles o casamento, realizado a 26
de março de 1842, na Igreja de São Bernardino, com a presença da mãe dela,
Maria Antonia de Jesus, que de Laguna se lançara a rever a filha e conhecer o
neto. No Uruguai também nasceram os outros três filhos do casal, a saber: Rosita,
que morreu criança, Terezita e o caçula Riciotti.
Garibaldi pôs-se a serviço das lutas pela independência do Uruguai, contestada
pelo general Oribe, com o apoio do ditador argentino, Rosas. Ligou-se, assim, ao
general Frutuoso Rivera. Liderou a Legião Italiana, que se envolveu em intensa
atividade bélica. Não cabe aqui detalhar tais atividades, nem as que lhe correram
paralelas, com a decisiva participação de Garibaldi, até porque foi um tempo em
que Anita esteve inteiramente absorvida pelas lides domésticas, a cuidar dos filhos
e do lar que comandava durante as longas e freqüentes ausências do marido.
Depois de seis anos e meio de permanência no Uruguai, foram para a Itália,
primeiro ela e os filhos, mais tarde Garibaldi, que se sentiu chamado à defesa da
causa da unificação italiana.
Garibaldi já era uma figura conhecida e admirada na Itália, onde ademais tinha
chegado a notícia de suas andanças e seus feitos de guerreiro libertário na
América Latina. Amigos e correligionários seus tinham difundido a idéia de que
poderia ser ele o comandante vitorioso das lutas contra a opressão do invasor
estrangeiro.
A chegada de Anita, que os italianos igualmente admiravam, conhecendo-lhe os
atos de bravura, valeu-lhe entusiástica recepção em Gênova, onde desembarcou,
a 2 de março de 1848, sendo recebida por cerca de três mil pessoas. Tendo
aprendido o idioma italiano, na convivência com Garibaldi e seus amigos, Anita fez
um discurso dirigido ao povo. Pelos registros da imprensa genovesa, pode-se
verificar que sua fala foi concisa e precisa, plenamente adequada àquele
momento, revelando-se uma mulher inteligente e segura de si, muito diferente da
jovem inexperiente e de uma simplicidade quase rude, que deixara Laguna há
cerca de dez anos. Nesse aspecto, foi a longa estadia no Uruguai que a
transformou. Ali viveu em permanente contacto com pessoas de bom nível cultural
e social, fossem essas das relações de Garibaldi, fossem da sociedade uruguaia e
dos círculos oficiais, pois Anita fez-se grande amiga da esposa do presidente
Frutuoso Rivera.
A 21 de junho daquele ano de 1848, Garibaldi chegava à Itália. Vinha
acompanhado por 86 legionários (membros da Legião Italiana, que ele liderara no
Uruguai). Desembarcou em Nizza, onde recebeu várias homenagens, inclusive um
banquete a que compareceu o intendente do Condado. Muitas outras reuniões se
seguiram, com Garibaldi sempre pregando a unificação italiana. Por onde passava
ia ganhando adeptos, reunindo, assim, um exército particular, com o que tomava a
dianteira dos acontecimentos. Era um grupo de voluntários, sem organização e
sem maior preparo, mas dispostos a tudo pela causa que os empolgava.
O batismo de fogo de Garibaldi nesta sua nova cruzada deu-se na batalha de
Luino, da qual Anita participou. Foi pesada, entretanto, a derrota sofrida, fazendo
com que Garibaldi fugisse, disfarçado, para a Suíça, de onde voltou pouco depois.
Chamado pelos sicilianos para auxiliá-los na sua sublevação contra a coroa de
Nápoles, para lá dirigiu Garibaldi a sua legião. Ele e Anita cavalgavam à frente, e
depois de saudados por onde passavam, entraram triunfalmente em Ravena, à
noite, formando-se um longo préstito à luz de tochas.
Os acontecimentos se sucediam velozmente. Em Roma, proclamara-se a
República. Para lá dirigiu-se Anita, ao encontro de Garibaldi e animada a participar
das lutas que pressentia seriam muitas e intensas até se consolidar a nova
situação. Garibaldi fora eleito deputado constituinte. Feito general pelo governo
republicano, preparou-se para lutar contra os franceses, que atacaram Roma
atendendo a um apelo do Papa Pio IX. A auxiliar os franceses, vieram tropas
austríacas, espanholas, napolitanas e do Vaticano. Anita, que havia deixado
Roma, ao saber do agravamento da situação, voltou para junto de seu marido,
apesar de estar grávida de cinco meses. A luta a atraía, sobretudo porque nela
estava o homem a quem entregara sua vida.
Foi uma viagem difícil e acidentada, desde Nizza, onde residia a família Garibaldi.
Depois de cavalgar sozinha, sob o rigor do verão, durante três dias, fugindo à
implacável vigilância de franceses e austríacos, Anita conseguiu romper o cerco
de Roma e colocar-se ao lado do marido. Era o final de junho de 1849.
Mas Anita já estava doente. Daí para a frente, freqüentemente indisposta e fraca,
atribuía à gravidez tais sintomas. Já era, porém, o impaludismo a que sucumbiria.
Roma capitulou e os chefes republicanos concordaram num armistício, mas não
Garibaldi, que conclamou o povo a continuar a luta fora de Roma. A retirada de
Roma, sob o comando dele, enfrentando a resistência dos exércitos inimigos
(franceses, espanhóis e austríacos), foi um episódio glorioso e que ficou célebre
pelas ousadias e pelos requintes estratégicos que permitiram seu êxito, nas mais
adversas circunstâncias.
Sofreram, entretanto, os legionários, intensa perseguição, agravada pelo fato de
que se anunciou estar condenado à morte quem acolhesse ou de qualquer modo
auxiliasse Garibaldi e sua gente.
Ainda uma vez, entretanto, apesar do cansaço e da doença, Anita demonstraria a
sua coragem e o seu heroísmo. Ao aproximar-se de San Marino, onde Garibaldi
tentava obter asilo político, a retaguarda das suas tropas, enquanto descansava,
foi atacada por homens do exército austríaco. Os legionários se dispersaram em
fuga. Anita, que seguia pouco mais adiante, vendo o que se passava, concitou-os
energicamente à resistência. Usou de um chicote e com ele tentava deter os
fugitivos. Acabou só, porém, mas disparando sua arma e assim repelindo o
pequeno grupo inimigo, que avançava. Bem mais adiante, Garibaldi assistiu à
cena e veio com seus homens em socorro da mulher, travando-se, então, uma
rápida batalha, homem a homem, saindo Anita ilesa e Garibaldi com um leve
ferimento no peito. O historiador Adilcio Cadorin observa, a propósito do episódio:
Anita saiu ilesa do pequeno confronto, mas sua oportuna e corajosa resistência
impediu um massacre que os tedescos iriam fazer na retaguarda da coluna
garibaldina em retirada4.
A fuga prosseguia, e prosseguia também o enfraquecimento de Anita, que,
entretanto, recusava-se a abandonar Garibaldi, reagindo com energia às tentativas
deste de deixá-la entregue aos cuidados de famílias contactadas para isso ao
longo do caminho.
A 2 de agosto, Anita ditou sua última carta. Era dirigida à irmã, da qual se
despedia, consciente do estado grave em que se achava.
Depois de incríveis dificuldades, vencidas no mar e em terra, chega Garibaldi a
Ravena, onde, invocando princípios de humanidade, encontra asilo numa casa
cujos moradores rendem-se à gravidade da situação, apesar das ameaças que
posam sobre quem quer que auxiliasse Garibaldi e os legionários.
Ali, às 19h45 do dia 4 de agosto de 1849, ante o olhar angustiado do inconsolável
Garibaldi, Anita cerrava os olhos "para a vida presente", como se dizia nos antigos
registros de óbito.
Tinha 28 anos apenas. Fugia-lhe a vida quando esta apenas começava, mas ela
ingressava na História, aureolada de heroísmo, heroísmo por amor e pelo ideal
libertário a que se entregou com todas as forças do seu coração.
NOTAS
1 COLLOR, 1938. p. 221.
2 RAU, 1975. p. 134.
3 BOITEUX, 1985. p. 249.
4 CADORIN, 1999. p. 223.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOITEUX, Henrique. A República Catharinense: notas para a sua história.
Rio de Janeiro: Xerox, 1985. 324 p. (Biblioteca Reprográfica Xerox; 23).
CADORIN, Adilcio. Anita – a guerreira das Repúblicas. 1 ed. S.l.: s.e., 1999.
COLLOR, Lindolfo. Garibaldi e a guerra dos farrapos. Rio de Janeiro: s.e.,
1938.
RAU, Wolfgang Ludwig. Anita Garibaldi – o perfil de uma heroína brasileira.
S.l.: ed. do autor, 1975.
*Norberto Ungaretti é Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do
Estado de Santa Catarina, Professor do Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal de Santa Catarina e da Escola Superior da Magistratura de
Santa Catarina, e Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e
da Academia Catarinense de Letras.

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