Luigi Bogliolo - Faculdade de Medicina da UFMG

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Luigi Bogliolo - Faculdade de Medicina da UFMG
LUIGI BOGLIOLO
Luiz Otávio Savassi Rocha
Professor da Faculdade de Medicina da UFMG
De origem italiana — mas brasileiro por adoção —, Luigi Bogliolo nasceu em
18/4/1908, na ilha da Sardenha, em Sassari (40° 44’N, 8° 33’E), principal cidade da
província do mesmo nome, e morreu em Belo Horizonte em 6/9/1981. Primogênito
de Enrico Bogliolo, ferroviário, e Maria Ruju, graduou-se em Medicina pela
Universidade de Sassari em 1930, sendo considerado o melhor aluno da turma.
Durante o curso médico, foi monitor da Cadeira de Anatomia e Histologia (19241927) e da Cadeira de Anatomia Patológica (1927-1930), sob a orientação do Prof.
Enrico Emilio Franco, discípulo da Escola de Morgagni, que se tornou seu grande
amigo e permanente inspirador. No biênio 1930-1932, foi assistente voluntário do
Instituto de Anatomia e Histologia Patológica da Universidade de Sassari, dirigido
por Franco. No final de 1932, transferiu-se, juntamente com o mestre, para a Real
Universidade Adriática Benito Mussolini, sediada em Bari, tornando-se assistente
efetivo, por concurso, da Cátedra de Anatomia Patológica. Em dezembro de 1936,
mais uma vez seguindo os passos de Franco, transferiu-se para a Universidade de
Pisa, na qualidade de Primeiro Assistente de Anatomia e Vice-Diretor do Instituto de
Anatomia e Histologia Patológica. Ali, Bogliolo e Franco ligaram-se, afetiva e
profissionalmente, ao regente da Cadeira de Patologia Geral, Prof. Cesare Sacerdotti,
discípulo de Camillo Golgi (Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1906) e de
Giulio Bizzozero (o descobridor das plaquetas que, por sua vez, foi discípulo de
Rudolf Virchow, o "pai da Patologia Celular"). Numa demonstração do prestígio de
que desfrutavam no meio universitário pisano, os três amigos – Bogliolo, Franco e
Sacerdotti – eram cognominados "I tre sofi", ou seja, "Os três sábios" (Fig 1 ).
Figura 1 - Da esquerda para a direita: Enrico E. Franco,
Cesare Sacerdotti e Luigi Bogliolo – "I tre sofi".Pisa, março de 1938.
Em Pisa, Bogliolo obteve o título de Livre-Docente, mediante concurso realizado em
1938, e, nesse mesmo ano, casou-se com Geula Bennoun, estudante de Medicina de
origem judaica, natural de Jaffa, cidade gêmea de Tel Aviv. Em janeiro de 1939,
colhido pelas leis raciais — embora nascido na Itália, era também judeu —, Franco
foi obrigado a exilar-se em Jerusalém. Em março do mesmo ano, Bogliolo foi
demitido da Universidade de Pisa por sua posição antifascista agravada por sua
íntima relação com o Prof. Franco e com Geula Bennoun, sendo forçado a abandonar
o país natal. Depois de passar alguns meses na Bélgica, rumou, acompanhado da
esposa, para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em 5/1/1940.
As publicações de Bogliolo, durante sua vida acadêmica na Itália, versam sobre
temas variados da Anatomia Humana, Anatomia Patológica, Medicina Legal e
Patologia Experimental, destacando-se as referentes às leishmanioses (nove trabalhos
publicados entre 1934 e 1937) e, em especial, as relacionadas com a produção
experimental , por meio de injeções de Thorotrast , de tumores malignos (sarcoma
fusocelular fasciculado e sarcoma pleomórfico) no Mus musculus, var. alba (1a nota,
1937) e no Mus norvegicus (2a nota, 1938). (Fig 2)
Figura 2
Sarcoma fusocelular fasciculado produzido experimentalmente
por Luigi Bogliolo mediante injeção de Thorotrast no Mus musculus var. alba.
Notam-se glóbulos e grânulos de dióxido de tório (em negro) no parênquima tumoral.
Foto extraída de: Bogliolo, L. Produzione col thorotrast di un sarcoma fusocellulare
fascicolato nel mus musculus var. alba. Pathologica 29:372, 1937.
O Thorotrast (contraste radiológico à base de dióxido de tório radioativo, cuja meiavida biológica, na espécie humana, é de 200-400 anos) foi introduzido, para uso
clínico, em 1928, prestando-se, inicialmente, à realização de pielografias por via
retrógrada e hepatolienografias por via endovenosa. Como era de se esperar, quase
todo o dióxido de tório injetado era retido no organismo, sendo que 70% depositavase no fígado, 20% no baço e o restante no sistema reticuloendotelial da medula óssea
e nos linfonodos periportais. A partir de 1931, o Thorotrast passou a ser utilizado pelo
neurocirurgião português Egas Moniz para a visibilização dos vasos intracranianos
(angiografia cerebral), em substituição ao contraste iodado que utilizara até então
com o mesmo objetivo. Apesar da qualidade das radiografias obtidas, a injeção
extravascular acidental do contraste na virilha, na fossa cubital e no pescoço
costumava provocar graves reações textrinas – os chamados thorotrastomas:em
resposta à radiação alfa emitida desenvolvia-se intensa reação fibrótica, com
formação de massas endurecidas que determinavam limitação funcional das áreas
acometidas e comprimiam as estruturas adjacentes. Porém, a conseqüência mais
grave decorrente do uso indiscriminado do Thorotrast – perfeitamente previsível a
partir dos trabalhos experimentais de Bogliolo – foi o aparecimento tardio, constatado
a partir de 1947, de neoplasias malignas (em especial colangiocarcinomas e
hemangioendoteliossarcomas hepáticos) em centenas de pacientes que receberam, às
vezes mais de 40 anos antes, o contraste radiológico com finalidade diagnóstica.
Mesmo assim, o Thorotrast continuou sendo utilizado até meados da década de 50 em
instituições de grande prestígio, como o Massachusetts General Hospital (de Boston),
a Lahey Clinic (também de Boston) e o University of Michigan Hospital (de Ann
Arbor), de modo a configurar uma das passagens mais constrangedoras da nem
sempre gloriosa História da Medicina.
No Rio de Janeiro, Bogliolo tornou-se, a partir de janeiro de 1941, Chefe do Serviço
de Anatomia Patológica da Quinta Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de
Medicina da Universidade do Brasil, dirigida pelo Prof. Heitor Annes Dias, até a
morte deste, ocorrida em 1943. Durante o período em que trabalhou naquela
Faculdade, Bogliolo foi um grande incentivador das Sessões Anatomoclínicas, as
quais, além de seu extraordinário valor pedagógico, funcionavam, na medida em que
punham a descoberto o diagnóstico correto, como um verdadeiro "controle de
qualidade" do serviço médico prestado ao paciente. As autópsias dos casos
apresentados eram realizadas pelo próprio Bogliolo, de modo que, uma vez discutido
o quadro clínico e formuladas as hipóteses diagnósticas, cabia-lhe apresentar o laudo
anatomopatológico
e, mais que isso, fazer
a grande
síntese (epícrise),
correlacionando, com grande propriedade, os achados post-mortem com aqueles
observados durante a vida.
Em 1944, Bogliolo transferiu-se para Belo Horizonte, atendendo a um convite de seu
compatriota Alfredo Balena, diretor da Faculdade de Medicina da UMG (hoje
Faculdade de Medicina da UFMG ), para reger a Cadeira de Anatomia e Fisiologia
Patológica. Na capital mineira, nasceriam três de seus quatro filhos (Ada, Rina e
Anna Rosa), visto que o primogênito (Alexandre) nascera no Rio de Janeiro. Pelo
fato de ser estrangeiro, foi obrigado, a despeito de sua titulação, a "revalidar" o
diploma, submetendo-se, no período compreendido entre 1953 e 1957, a provas
(práticas, escritas e orais) de todas as disciplinas dos três últimos anos do curso
médico. Por conseguinte, apenas em 1958, obteve o título de Doutor em Medicina,
defendendo a tese Subsídio para o estudo anátomo-patológico da forma aguda
toxêmica da esquistossomose mansônica. Em 1959, após brilhante concurso, logrou
atingir a Cátedra, "il fine ultimo", a ser perseguido obstinadamente — "non si volta
chi a stella è fiso" —, como costumava dizer-lhe Franco, falecido em 1950, em
Jerusalém.
Em 1972, Bogliolo publicou, pela Editora Guanabara Koogan S.A., a primeira edição
do livro Patologia, com a participação de seus assistentes e de professores de notório
saber espalhados pelo país adotivo e pelo país natal; atualmente, o livro encontra-se
na 5a edição (1994). Em 1978, publicou, também pela Editora Guanabara Koogan, o
livro Patologia Geral Básica (Agressão. Defesa. Adaptação.Doença.).
Trabalhando na Faculdade de Medicina da UFMG até 1978, ano de sua aposentadoria
compulsória, Bogliolo criou uma Escola de Anatomia Patológica que se imporia, por
seu alto nível, no cenário científico do país adotivo. Seus primeiros assistentes foram
Paulo Roberto Ferreira Borges (1944-1946), João Henriques de Freitas Filho (19461949), Nello de Moura Rangel (1948-1953), Edmundo Chapadeiro (1950-1954) e
Iracema Baccarini. Contemplado com uma bolsa de estudos nos EUA, Paulo Roberto
Ferreira Borges é o único a não figurar na foto aqui reproduzida, datada de 1949 (Fig.
3).
Luigi Bogliolo e seus primeiros assistentes e colaboradores na Faculdade de Medicina da UMG.
Sentados, da esquerda para a direita, aparecem: Iracema Baccarini (assistente voluntária); Luigi Bogliolo;
Nello de Moura Rangel (assistente); João Henriques de Freitas Filho (assistente). De pé, da esquerda para a direita,
aparecem: Maria Martins Gonçalves de Souza (secretária); doutorando Edmundo Chapadeiro (futuro assistente);
Neuza Fontoura Dutra (técnica de laboratório); Helvécio Borges (acadêmico de Medicina);
Júlia Saud (técnica de laboratório); Joaquim de Paula Sucupira (técnico de laboratório);
Santos Soares (auxiliar de autópsias). Foto batida por Igino Bonfioli, em 1949.
Posteriormente, ou seja, a partir de 1952, vieram Washington Luiz Tafuri, Pedro
Raso, Celso Pedro Tafuri, Pérsio Godoy, Alberto Nicolau Raick, José Geraldo
Albernaz, Guilherme Cabral Filho, Abadio Marques Neder, Isauro Epiphaneo Pereira,
Jaeder Teixeira de Siqueira, Evilázio Teubner Ferreira, Waldemar Ladosky, Aluísio
Molinar, Neide Garcia de Lima, Ayrton Garcia Leão, Romeu Cardoso Guimarães,
Luiz Otávio Savassi Rocha, José Eymard Homem Pittella, Alfredo José Afonso
Barbosa, Eduardo Alves Bambirra e Geraldo Brasileiro Filho, além de Edison Reis
Lopes, Fausto Edmundo Lima Pereira, Hipólito de Oliveira Almeida e Ademir Rocha
(os quatro últimos discípulos de Edmundo Chapadeiro).
As contribuições da Escola de Luigi Bogliolo, reconhecidas internacionalmente,
versam sobre temas os mais variados no âmbito da Patologia e disciplinas afins,
destacando-se aquelas ligadas às chamadas doenças tropicais, particularmente a
esquistossomose mansônica, a doença de Chagas, a blastomicose sul-americana e as
leishmanioses. Merecem especial atenção as contribuições do próprio Bogliolo para o
conhecimento
da
patologia
das
diferentes
formas
anatomoclínicas
da
esquistossomose mansônica, na medida em que lhe foi possível, após muitos anos de
estudo:
— caracterizar, de modo preciso, o quadro anatômico do fígado na forma
hepatesplênica, notadamente na chamada "fibrose de Symmers", a qual, no entender
de alguns, deveria ser denominada "fibrose de Symmers-Bogliolo";
— deixar claros os conceitos de fibrose e cirrose, aplicáveis às hepatopatias
fibrosantes — que compreendeu como ninguém —, de modo a permitir a separação
do quadro anatômico do fígado na esquistossomose mansônica hepatesplênica e na
leishmaniose visceral daquele observado nas cirroses hepáticas;
— descrever, de forma pioneira, as alterações do hepatograma nos portadores da
forma hepatesplênica da esquistossomose submetidos à esplenoportografia, alterações
essas caracterizadas pela presença, ao lado da imagem mais nítida e mais densa dos
ramos portais dicotômicos, de uma outra sombra, menos densa e de contornos
imprecisos, correspondendo à rede vascular neoformada ao redor dos ramos
dicotômicos ("sinal de Bogliolo");
— descrever, de forma minuciosa, o quadro anatômico da forma aguda toxêmica da
esquistossomose mansônica, razão de ser de sua tese de doutoramento;
— descrever, pela primeira vez, o quadro anatômico do fígado na fase pré-postural da
helmintíase, ao estudar punções-biópsia hepáticas realizadas cerca de três semanas
após o banho infectante.
Não se pode deixar de mencionar, também, a descoberta devida a Washington Luiz
Tafuri, discípulo direto de Bogliolo, enquanto trabalhava com o Prof. Herman Hager,
no Instituto Max Planck (Munique), dos chamados grânulos elementares de
neurossecreção das fibras nervosas amielínicas intraganglionares do plexo mientérico
de Auerbach (nota prévia publicada no periódico Naturwissenschaften 46:333,
1959). Tal descoberta representou um marco histórico, capaz de deflagrar um semnúmero de pesquisas correlatas, uma vez que , até então, os grânulos elementares de
neurossecreção eram considerados, pelos estudiosos em geral e por Bargmann e
Palay em particular, específicos e exclusivos do trato hipotálamo-hipofisário, onde
foram descritos por Scharrer, Gaupp e pelo próprio Bargmann.
A pós-graduação, tão valorizada ultimamente, já era, de certa forma, realizada por
Bogliolo desde a década de 50; tratava-se, evidentemente, de uma pós-graduação lato
sensu, sem regulamentação ou reconhecimento por parte das autoridades constituídas,
uma espécie de "pós-graduação em espírito". Foi tão-somente em 1972 que a
Coordenação de Ensino e Pesquisa da UFMG aprovou a criação do Curso de PósGraduação em Patologia (Mestrado e Doutorado), com três áreas de concentração:
Patologia Geral, Patologia Especial Médica e Patologia Especial Odontológica. O
curso foi reconhecido como "centro de excelência"(pelo CNPq) em 1973 e
credenciado pelo Conselho Federal de Educação em 1978, por meio do parecer nº
7225/78. O Colegiado do Curso foi composto pelo próprio Bogliolo (coordenador) e
pelos Profs. Washington Luiz Tafuri, Pedro Raso, Roberto Junqueira de Alvarenga
(do Instituto de Ciências Biológicas), José Moreira dos Santos (da Faculdade de
Odontologia) e Hélio de Senna Figueiredo (também da Faculdade de Odontologia).
Bogliolo foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Patologistas, ocupando
praticamente todos os cargos, incluída a presidência (biênio 1960-1962). Sua
presença marcante, sua verve, seu espírito crítico e seu estilo inconfundível faziam-se
sentir nos congressos promovidos pela referida Sociedade. Foi também membro da
Academia Mineira de Medicina, ocupando a cadeira no 46, tendo como patrono seu
amigo e colaborador José Aroeira Neves, discípulo de Ezequiel Dias.
Embora extremamente severo e exigente, a ponto de despertar indisfarçável temor
naqueles que com ele conviviam, Bogliolo deixou uma marca indelével em seus
alunos e colaboradores. Afinal, uma de suas grandes paixões – senão a maior – era
investir na formação do jovem ávido de conhecimento, estimulando-o a exercitar o
raciocínio, a desenvolver a consciência crítica e a "aprender a aprender", como fica
evidente nos versos de um poema de sua autoria, redigido a lápis, em 1981, às
vésperas de sua morte, por meio do qual ele faz uma reconstituição sumária de sua
vida — uma espécie de "balanço": "Pulsare ò fatto avidi cervelli di giovani e con le
dita che sentivano, e con amore, con amore ò dato forma ad alcuni"("Fiz pulsar
ávidos cérebros de jovens e com os dedos que sentiam, e com amor, com amor dei
forma a alguns").
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Savassi-Rocha, L O . Vida e Obra de Luigi Bogliolo. Belo Horizonte: Editora Gráfica
da Fundação Cultural de Belo Horizonte, 1992.
Autor: Luiz Otávio Savassi Rocha
Professor da Faculdade de Medicina da UFMG

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