Terreno baldio, Somos todos dinossauros

Transcrição

Terreno baldio, Somos todos dinossauros
Terreno baldio,
Somos todos dinossauros. Sujeitos por força do tempo constituídos de
escamas, e limos, e unhas ferozes. Pequenas pontas pontiagudas ressaem,
resvalam para o outro lado incerto, o outro lado improvável. Seria
impossível pensar a possibilidade se simplesmente não existíssemos. Não
estivéssemos aqui com este corpo grave, essas ombreiras salientes, essas
patas enormes.
Estamos aqui ruidosos distribuindo pegadas no seu coração. Estamos aqui
dinossauros, sem subtrações possíveis. Nunca poderemos ser esquartejados
na vitrine do seu supermercado, porque sempre soaremos brutais demais,
grandes demais para seus hábitos de boca pequena.
Pré-histórico sinto-me liberto o suficiente para zombar do tempo. Eu
dinossauro ando. As minhas patas soam tempo. A minha carne, enrugada
crosta vaporosa da minha resistência, agride o olho desse animal moderno.
De um só bafo derrubo-te e olho de cima. Agora aí, deitado, com a cabeça
sobre a pedra, de mais nada serias capaz a não ser se sentir pequeno, a não
ser ficar inseguro. Agora meu olho incerto aprisiona-o. Assim, inocente,
meu olho passa, pensa alguma coisa e foge, já muito longe. Posso deixar-te,
já esqueci.
Ando, outra coisa me puxou. Talvez minha própria cauda, um movimento,
um peso somente desviou a atenção. Meu ferrão pendente, minha mais
perfeita parte, cauda caída no azul sonoro alto pegando na lua. Quase meu
olho insinua, quase ... um ferrão na lua. Uma fisgada e pronto. Ei-la inteira,
fisgada. Trazida para baixo a gravidade inteira se levanta e pronta flana nos
meus pés de dinossauro.
Não fosse eu assim tão inexata, não haveria de fisgar logo a lua, e traze-la
aqui neste lugar que já nem sei ser em cima ou embaixo ? É apenas este
lugar inexato em que meu arpão de astros empurra, a matéria dura do meu
corpo dentro deste corpo lua.
Luminosa, azul, redonda, escoiceia, salta, emite sons ... queixas, barulhos
desconhecidos. Eu olho, espio, e já não sei se quem escoiceia é ela, ou
minha cauda pendente. Daqui não sei de onde parte o movimento. São
ondas, ondas apenas. Vagas ondas, lua vaga – vaza. Um líquido escorre,
cheio, sonoro. Sombra no seu corpo rachado. Daquela fenda sai tudo. Dali
sai o mar da tranquilidade, dali tudo soa ...
Minha cauda morna despenca. Agora a bola lua rola na minha cara.
Naquele terreno baldio tudo pode, até a lua pular de novo na minha frente
pronta a alçar vôo pro azul do fisgamento. Eu prostrada penso. Nessa hora
difícil tudo voa, até o pensamento. Sinto o músculo gordo, carne sem
movimento. Sinto tudo e espio a lua crescendo.
Acordo ligeira, ágil ... Nos meus músculos encarno o cavalo e subo o
terreno íngreme das minhas próprias costas. Daqui de cima posso apreciar
de novo o tempo. Lerda, dispenso a agilidade dos bichos de terra e volto de
novo a esta condição meio aérea, meio terráquea dos dinossauros. Préhistóricos amantes da lua, escondidos da gula da ciência pelo
desaparecimento da espécie, eu dinossauro vagueio, nesse terreno baldio.