A repetição e seus destinos na obra de Freud
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A repetição e seus destinos na obra de Freud
Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica A repetição e seus destinos na obra de Freud Diego Frichs Antonello 2011 2 UFRJ A repetição e seus destinos na obra de Freud Diego Frichs Antonello Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Orientadora: Regina Herzog Rio de Janeiro Fevereiro/2011 3 A repetição e seus destinos na obra de Freud Diego Frichs Antonello Orientadora: Regina Herzog Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Aprovada por: ____________________________________ Profa. Dra. Regina Herzog ____________________________________ Prof. Dr. Ricardo Salztrager ____________________________________ Profa. Dra. Maria Isabel de Andrade Fortes Rio de Janeiro Fevereiro/2011 4 Antonello, Diego Frichs A repetição e seus destinos na obra de Freud. Diego Frichs Antonello. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2011 120 f.; 29,7 cm Orientadora: Regina Herzog Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2011. Referências Bibliográficas: f. 116-120. 1. Compulsão à repetição. 2. Trauma. 3. Dor. 4. Psicanálise. 5. Dissertação (Mestrado). I. Herzog, Regina. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título 5 Dedicatória À Patrícia Paraboni e Marilú. 6 Agradecimentos A Regina Herzog pelo acolhimento, gentileza, paciência e aposta neste trabalho. Contar com sua orientação foi fundamental para a realização desta dissertação. À professora Isabel Fortes e ao professor Joel Birman pelas valiosas contribuições no exame de qualificação. À CAPES pelo financiamento desta pesquisa. Aos professores das disciplinas cursadas durante o mestrado, pelas enriquecedoras contribuições. Aos companheiros de equipe de pesquisa e do NEPECC. Aos demais amigos que foram muito importantes durante esse período, em especial Maiquel, Camila, Marcos e Raquel. À Marilú pelo incentivo, apoio e amizade fundamentais para chegar até aqui. À minha esposa, Patrícia Paraboni, pelo amor e apoio recebidos. 7 Resumo A repetição e seus destinos na obra de Freud Diego Frichs Antonello Orientadora: Regina Herzog Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. O objetivo da presente dissertação é realizar um mapeamento do conceito de repetição na obra freudiana. Buscaremos mostrar como a repetição atravessa o pensamento freudiano correlacionando-a com os conceitos fundamentais da psicanálise. Iniciamos com o Projeto de 1895, articulando a repetição com a vivência de dor e a vivência de satisfação, mostrando, no primeiro caso, indícios de uma repetição dolorosa fora do princípio de prazer e, no segundo o fundamento do psiquismo da primeira tópica balizado pelo princípio de prazer. No segundo capítulo veremos como a repetição ganha o estatuto de conceito em 1914, onde é revelada pela transferência como o retorno do recalcado. Frente a complicações teóricas e novos indícios clínicos, Freud vai problematizar a ideia do princípio de prazer como exclusivo no funcionamento do psiquismo, passando a conferir uma importância capital à compulsão à repetição em 1920. A partir daí, vários temas presentes no Projeto de 1895 são retomados, dando um lugar de destaque à questão da dor e do trauma, conforme será indicado no último capítulo. Palavras-chaves: Repetição – Dimensão Representacional – Dor – Trauma – Psicanálise. Rio de Janeiro Fevereiro/2011 8 Abstract Repetition and its destinies in Freud's work Diego Frichs Antonello Tutor: Regina Herzog Abstract of the Dissertation presented to the Post-graduation Programme of Psychoanalytic Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as a part of the requisite for obtaining the Master's Degree in Psychoanalytic Theory. The objective of this dissertation is to achieve a mapping of the concept of repetition in Freud‟s work. We try to demonstrate how repetition crosses the Freudian thinking, relating it to the fundamental concepts of psychoanalysis. We begin with the “Project for a scientific psychology” (1895), articulating repetition with the experience of pain and the experience of satisfaction, showing, in the first case, hints of a painful repetition beyond the pleasure principle, and in the second case, the psyche‟s ground in the first topic, marked by the pleasure principle. In the second chapter we‟ll see how repetition gains the status of concept in 1914, where it is revealed by the transference as the return of the repressed. Facing theoretical difficulties and new clinical hints, Freud will discuss the idea of the pleasure principle as being exclusive in psychical functioning, and giving crucial importance to repetition compulsion in 1920. Since then many themes from 1895 “Project” were studied again, emphasizing the issue of pain and trauma, as we will show in the last chapter. Keywords: Repetition – Representation – Pain – Trauma – Psychoanalysis. Rio de Janeiro February/2011 9 Sumário Introdução.............................................................................................................10 Capítulo I – O Projeto de 1895 e a repetição...............................................15 I.1 – O estatuto do Projeto de 1895 na obra freudiana............................................16 I.2 – O aparato neuronal: concebido para dominar as excitações............................20 I.3 – A repetição e a facilitação................................................................................23 I.4 – O problema da repetição da dor.......................................................................30 I.5 – O tempo da repetição.......................................................................................35 I.6 – A vivência original de satisfação e o abandono da vivência de dor.................41 Capítulo II – O retorno do recalcado – repetição do sexual.....................45 II.1 – A transferência e a resistência........................................................................46 II.2 – A repetição do sexual e presentificação do desprazer....................................52 II.3 – O caso Dora – uma lição clínica.....................................................................56 II.4 – A repetição e a rememoração.........................................................................60 II.5 – A pulsão e a repetição.....................................................................................64 II.6 – A passagem ao ato e os limites do princípio de prazer...................................69 Capítulo III – Os limites da representação.....................................................76 III.1 – A repetição do desprazer................................................................................77 III.2 – Redefinindo o trauma.....................................................................................79 III.3 – O eu em ruínas................................................................................................86 III.4 – A compulsão à repetição.................................................................................89 III.5 – O limite da representação................................................................................93 III.6 – Como proceder frente ao irrepresentável........................................................99 Considerações finais.............................................................................................107 Referências Bibliográficas...................................................................................116 Introdução A presente dissertação é um estudo acerca da repetição na obra de Freud. O objetivo é realizar um mapeamento do conceito de repetição, buscando apontar seu desdobramento, impasses e relevância no desenvolvimento da elaboração teórico-clínica freudiana. Desde o início dos seus escritos Freud procura estabelecer um diálogo entre as observações clínicas com a teoria, ou melhor, a teoria aos poucos vai sendo tecida a partir das descobertas e confirmações das hipóteses levantadas através do tratamento dos casos de neurose. Desta maneira, estudar a repetição na obra de Freud é tentar compreender o movimento que este conceito suscitou, por meio da clínica, no pensamento freudiano. Através dos exemplos clínicos que percorrem vários momentos de sua obra, notamos a presença maciça da repetição, tornando-se uma peça fundamental no direcionamento, na construção e articulação dos demais conceitos psicanalíticos. A questão da repetição pode ser articulada com uma gama de figuras e conceitos, tais como: vivência de dor, inconsciente, pulsão, representação, transferência, resistência, dentre outros. No presente trabalho estes serão abordados na medida em que possam balizar o nosso entendimento acerca da repetição. Assim, o eixo de leituras está concentrado, principalmente em textos como: Projeto para uma psicologia cientifica (FREUD, 1895[1950]/1996), os artigos sobre técnica (Id., 1912-14/1996), os artigos metapsicológicos (Id., 1914-1915/1996) e o Além do princípio de prazer (Id., 1920/2006). Junto a isso buscamos suporte em comentadores da obra de Freud que se dedicam ao mesmo tema. Destacaremos três momentos distintos em relação ao aparecimento da repetição. No primeiro, o Projeto de 1895 um texto apócrifo, negado pelo seu autor, mas que traz uma importante contribuição a respeito da repetição. A vivência de dor nos dá alguns indícios de um processo repetitivo desprazeroso que continua a ocorrer até que o eu possa dominar toda a energia que rompeu o escudo protetor do aparato neuronal. Para tanto a cada nova repetição a energia indomada (processo primário), isto é, que não foi imediatamente mediada pelo eu, tem uma parcela dominada pelos contra-investimentos egóicos. Essa repetição ocorre até que a energia livre seja subsumida ao processo secundário, mesmo que tais repetições sejam dolorosas. A vivência da dor traz um problema de difícil solução para Freud – porque o aparato neuronal, que procura ficar longe de tensões, repete uma vivência de dor? Freud, neste 11 período, não consegue resolver o impasse. A dor, além disso, traz uma ameaça de regressão ao aparato neuronal, uma vez que a passagem de grandes quantidades pelos neurônios psi () destroem as barreiras de contato, característica que os diferenciam dos neurônios phi (). Frente a essas dificuldades, dentre outras, Freud abandona o Projeto de 1895. Abandono que dará à questão da repetição da vivência dolorosa uma longa incubação até ser novamente evocada em 1920 no artigo que marca a virada tópica – Além do princípio de Prazer, no qual temas referentes ao Projeto de 1895 são retomados. A publicação da Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1996) marca o abandono da vivência de dor em prol da vivência de satisfação como fundamento de um aparato psíquico regido pelo princípio de prazer. A partir deste texto Freud postula o princípio de prazer com fundamento do psiquismo. Com esse princípio como regulador do funcionamento das atividades psíquicas há uma fuga do estímulo e as representações desprazerosas têm de antemão seu acesso barrado à consciência. De forma que não mais é mencionado um funcionamento repetitivo que surge como consequência da vivência de dor. Nesta perspectiva, na concepção de aparato psíquico de 1900 não há lugar para um tipo de funcionamento primário que conduz a reativação de experiências desprazerosas. Sobre esse assunto Caropreso e Simanke (2006) afirmam que os processos primários, a partir de 1900, possuem a capacidade de inibir a ocupação destas representações. A partir daí Freud irá priorizar o conceito de defesa do eu contra desejos inconscientes motivados pelas pulsões sexuais, onde o conceito de recalque, formação de compromisso, retorno do recalcado ganham destaque no que diz respeito à repetição. Em um segundo momento, abordaremos a repetição articulada com conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, recalque, transferência e pulsão. O caso Dora nos permite destacar a presença de uma repetição proveniente de desejos edípicos há muito recalcados, repetição que ocorre via transferência na qual o analista é identificado com uma outra pessoa da vida do analisando. Por meio da transferência é possível observar, no período de 1900 até 1920, a repetição maciça do sexual, observada na clínica como o retorno do recalcado. Buscamos, assim, destacar a articulação entre repetição e transferência, que seguirá toda reflexão freudiana sobre a técnica no curso das análises. O retorno do recalcado marcará justamente à volta daquilo que não é possível recordar, retornando sob efeito da dimensão amorosa que faz parte do jogo transferencial. O analista é tomado como objeto 12 da fantasia do paciente, fornecendo, deste modo, condições ideais para que a repetição dos conteúdos recalcados ocorra em uma mise en scène. Finalmente, no artigo “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914/1996) a repetição ganha um estatuto de conceito. Freud é forçado a reconhecer a repetição incorporada à relação transferencial como um modo do paciente recordar, não em palavras, mas em atos. No lugar de construir uma narrativa verbal o paciente inicia uma dramatização/atuação com o analista, envolvendo o desejo sexual que teve a descarga barrada pelo eu. Nesse sentido um eficiente manejo transferencial é a solução freudiana para impedir a repetição e possibilitar preencher as lacunas da memória provocadas pelo processo de recalcamento. A partir de 1915 inicia-se uma predominância do pulsional sobre o campo do representacional, como decorrentes dos impasses teórico-clínicos com relação à dominância do princípio de prazer no psiquismo. No âmago desta problemática a repetição começa a mostrar a insuficiência do método interpretativo, explicitado por casos clínicos difíceis, nos quais nota-se a presença de uma forma de repetição diferente do retorno do recalcado. A constatação de uma repetição que excede o acting-out, mostrando-se muito mais como uma espécie de explosão energética sem mediação egóica, a qual o paciente não consegue fazer associações que visem trazer à tona conteúdos representacionais reprimidos, balançam a hegemonia de uma teoria de aparato psíquico sustentado pelo princípio de prazer. Em um terceiro momento da presente dissertação mostraremos como a postulação da segunda tópica marca essa dificuldade, caracterizada por uma falha em dominar o excesso pulsional. A repetição retorna à pena de Freud com grande força a partir de 1920, agora sob a forma de uma compulsão à repetição, diferindo conceitualmente da repetição apresentada em 1914. Contudo, para ser mais preciso, cabe lembrar que ela já se encontra presente em 1919 no artigo “O Estranho”, no qual há uma expansão do conceito de repetição e a prefiguração de um algo que escapa a dominância do princípio de prazer, e que será desenvolvido em 1920. Pressionado pelo conceito de narcisismo (que colocou em cheque o dualismo pulsional da primeira tópica), o excesso pulsional, a repetição (que apontava para uma descarga sem simbolização) e o aparecimento de casos mais graves de neuroses provenientes da primeira grande guerra, Freud inicia uma reformulação tópica. Tal medida coloca um fim na dominância estrita do princípio de prazer enquanto regulador do 13 funcionamento do aparato psíquico. Temos na figura da compulsão a repetição a presença do fator energético que não pôde ser assimilado pelo aparato devido ao seu excesso; nesta perspectiva a compulsão à repetição é colocada em ação como medida defensiva para que o excesso pulsional seja de alguma forma contido e tal energia possa ser dominada. No artigo Além do princípio de prazer (1920/1996) Freud retoma vários conceitos do Projeto de 1895. Após longos 25 anos, a repetição dolorosa é retomada sob a forma de uma compulsão à repetição, em outro nível conceitual, que denota um funcionamento do aparato psíquico além do princípio de prazer. A energia livre (indomada) tal como no Projeto de 1895, não tem mais a possibilidade de inibir em sua origem processos desprazerosos. Para tanto, conforme veremos neste capítulo, há uma redefinição da teoria do trauma, que retoma alguns aspectos da teoria da sedução. A compulsão à repetição coloca em evidência a presença de uma energia que não pode ser dominada e, por isso, é irrepresentável; em outros termos, incapaz de ser simbolizada pelo sujeito. Simbolizar significa que a energia pulsional foi amarrada em representações, mas para isso é preciso que o eu, reservatório libidinal, tenha energia quiescente para fazer frente à energia que o invade. Toda vez que ocorre uma falha em dominar o excesso pulsional inicia-se um processo repetitivo, que não envolve qualquer possibilidade de prazer. Esse processo é denominado por Freud de compulsão à repetição. A repetição funcionou como um motor para as reflexões de Freud, devido aos questionamentos que suscitou, percorrendo sua obra, mesmo que de forma silenciosa, nos momentos mais marcantes da formulação do arcabouço teórico da psicanálise. A compulsão à repetição evidenciará quão sensível é o lugar do sujeito, constituído narcisicamente, diante dessa força que o obriga a repetir contra sua vontade; é precisamente por essa obrigação que o sujeito reencontra a impotência dos primeiros anos de vida. Para discutir a questão da impotência a qual o trauma lança o sujeito, impossibilitado de agir ante o impacto do excesso pulsional, buscamos auxílio em Walter Benjamin e comentadores de sua obra. A este respeito Benjamin refere uma narrativa fragmentária, muito diferente da narrativa tradicional, no que tange aos sobreviventes dos acontecimentos traumáticos. Segundo Seligmann-Silva (2008), nesta narrativa fragmentária encontramos o desejo de renascer, que consiste em um trabalho de religamento ao mundo, a que podemos remeter a manifestação da pulsão de vida. Mesmo assim, a narrativa proposta por 14 Benjamin denota a dificuldade de encontrar na linguagem uma forma de traduzir o excesso vivido, como se as palavras ficassem aquém da realidade experienciada; é aí que a imaginação é chamada em auxílio do simbólico, “o trauma encontra na imaginação um meio para sua narração” (Id., Ibid., p. 70). Tendo em vista estas questões evocamos a figura do narrador caracterizado por Walter Benjamim como sucateiro, o qual em meio às sucatas recolhe os cacos, fragmentos para formar um todo organizado. Deste modo remetemos a Freud (1937/1996), em uma alusão muito próxima do narrador sucateiro, na qual afirma que a tarefa do analista, frente à dificuldade do paciente em traduzir o traumático em palavras, se aproxima de arqueólogo escavando fragmentos do passado, ou seja: é preciso construir aquilo que não pode encontrar expressão pelas vias normais de narração. Capítulo I – A repetição e o Projeto de 1895 Neste capítulo temos como objetivo destacar que a ideia de um excesso que escapa ao princípio de prazer já se encontrava presente na vivência de dor do Projeto de 1895. Neste texto pré-psicanalítico a dor aparece como uma falha dos dispositivos de proteção do aparato neuronal e aponta para um processo que mesmo envolvendo o desprazer continua se repetindo, de acordo com a indicação de Caropreso & Simanke (2006). Dessa forma propomos mostrar como a repetição, mais especificamente a repetição da experiência dolorosa, já faz uma importante questão para temas que serão tratados somente 25 anos mais tarde no artigo “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920/2006). Para tanto vamos começar por situar o lugar que o Projeto ocupa no arcabouço teórico da psicanálise, uma vez que esse texto foi desconsiderado por Freud, sendo publicado apenas nos anos 50, mais de uma década após sua morte. Veremos que enquanto a vivência de dor nos coloca na trilha da compulsão à repetição, a vivência de satisfação nos coloca na pista de um processo repetitivo que envolve a busca de prazer. Entendemos que essas duas vivências se configuram como fatores de grande relevância para a questão da repetição, tema dessa dissertação. Nesta perspectiva o resíduo da vivência de satisfação é chamado estado desiderativo e visa reproduzir uma identidade perceptiva, ou seja, repetir a vivência de satisfação original, que envolveu um decréscimo da excitação e foi sentido como prazer. É a vivência de satisfação que ganha relevo a partir de 1900 com a publicação da „Interpretação dos sonhos‟, neste artigo Freud retoma o exemplo descrito no Projeto: o choro do bebê, causado pela fome, é apaziguado pelo cuidador; e quando volta a ter fome o aparato procura repetir a experiência primária de satisfação, na qual obteve prazer através da descarga das excitações. Freud se serve da vivência de satisfação para fundamentar a tese de que todo sonho é uma realização de desejo. A partir disso a vivência de dor é desconsiderada e relegada ao limbo, sendo retomada em 1920 no artigo „Além do Princípio de Prazer‟ ao tratar da compulsão à repetição. Entretanto repetição da vivência de dor trouxe um problema de difícil resolução no Projeto, obrigando Freud a efetuar um “malabarismo” teórico para explicar como o aparato neuronal dará conta do montante de excitação envolvendo esse 16 processo; além disso esta vivência estaria no cerne dos pesadelos que não está bem diferenciado dos sonhos de angústia na „Interpretação dos Sonhos‟ (Id., 1900/1996). I.1. O estatuto do Projeto de 1895 na obra freudiana. O „Projeto para uma psicologia científica‟ (Id., 1895[1950]/1996, op. cit.) é uma tentativa de trazer para o plano científico o que se apresentava na clínica pré-psicanalítica em seu início vienense, especialmente nos estudos realizados sobre a histeria. Nesta perturbação psíquica os sintomas se manifestavam, principalmente, sob a forma de ideias excessivamente intensas “nas quais (...) a característica quantitativa emerge com mais clareza do que seria normal” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 347). A época que antecede a escrita do Projeto favoreceu a Alemanha como lugar propício para pesquisas psicológicas. Neste país, recém unificado em 1870, a ciência incluía inúmeras áreas de conhecimento desde fonética até arqueologia, entre outras, permitindo aos pesquisadores alemães aplicar seus estudos utilizando-se dos saberes de vários campos na pesquisa da vida mental. Segundo Schultz & Schultz (1981) o início do século XIX foi seguido de uma onda de reformas educacionais nas universidades alemãs. Surgia um novo tipo de instituição, bastante diferente da clássica universidade européia, tendo como propósito principal a liberdade acadêmica e a pesquisa. “Os alunos podiam escolher os cursos e não tinham um currículo rígido como estorvo. Essa liberdade também se estendia à consideração de novas ciências como a psicologia” (Id., Ibid., p. 60-61). No centro dessa efervescência cultural encontrava-se Freud, que utilizou conceitos de várias áreas tais como a medicina, biologia, fisiologia e física para redigir o manuscrito de 1895. Nesse esboço Freud nos apresenta um aparato neuronal fantástico, que ultrapassa a finalidade de promover uma psicologia como ciência natural propósito que estampa os primeiros parágrafos do texto. Tendo em vista essa finalidade a posição adotada por Freud no Projeto é a marca do Zeitgeist corrente na metade do século XIX, ou seja, um embate “entre as ciências do espírito ou morais (Geistwissenschaften), que visam compreender, e as ciências naturais (Naturwissenschaften) que procuram explicar” (GABBI Jr., 2003, p. 19). Freud busca apresentar empiricamente o funcionamento da mente humana de acordo com uma descrição baseada, principalmente, na física e fisiologia de sua época. Embora suas elaborações transcendam o modelo neurológico corrente e nem sempre fique restrito ao 17 modelo científico, esse ir além da “psicologia como uma ciência natural” faz com que o Projeto traga uma importante contribuição metapsicológica e contenha alguns germens de conceitos que serão retomados e desenvolvidos posteriormente. Freud foi influenciado por diversos autores, dentre eles cabe citar Gustav Theodor Fechner, que propunha uma relação quantitativa entre mente e corpo. Esse autor procurou solucionar a questão do vínculo mente/corpo através da analogia quantitativa entre uma sensação mental e um estímulo material. Freud também trabalhou no laboratório de pesquisas neurológicas de Theodor Meynert, seu professor de neuro-anatomia na Universidade de Viena. A esse propósito Garcia-Roza (1991) indica que Meynert se encontrava ligado a tradição cientificista e positivista que remonta, através de Fechner, a Herbart. Este último buscava uma abordagem matemática da psicologia, defendendo a ideia de uma psicologia baseada na experiência científica de caráter quantitativo. “Esta última característica será retomada por Fechner e transformada por Freud, na proposta inicial do Projeto de 1895” (Id., Ibid., p. 74). Em meados de 1886, Freud viajou à Paris para exercer a função de neuro-patologista na Salpêtrière sob o comando de Jean-Martin Charcot, um dos mais renomados clínicos franceses que alcançou sucesso no terreno da psiquiatria na segunda metade do século XIX. Foi durante esse estágio, impulsionado pelas descobertas de Charcot, que Freud descobre a histeria. Tal doença impunha aos psiquiatras uma grande dificuldade para circunscrever suas causas anatomo-patológicas. Por esse motivo Land (1993) considera que a histeria contrariava um dos principais paradigmas da época: a causalidade. Os sintomas histéricos contrariavam o método anatomo-clínico, pois não havia relação entre a entidade nosológica e uma lesão corpórea visível. Assim a histeria foi tachada como uma simulação, ficando fora do mundo científico e da nosologia psiquiátrica durante boa parte do século XIX. Nosso objetivo, com essa exposição é o de ressaltar que Freud cresceu em um ambiente fisiológico, marcado pelo modelo da causalidade. Esse modelo vigorava no meio científico desde o século XVIII, se expressando pela ideia de que toda lesão era a garantia empírica que confirmava a existência de uma entidade nosológica, se havia um sintoma a causa remetia a algum mau funcionamento de um tecido ou órgão do corpo. Dentro desse quadro a histeria deixava muito a desejar. Charcot trouxe a histeria para o interior da nosologia psiquiátrica, mas isso não significa uma ruptura com a tradição vigente; o que ele fez foi encontrar um ponto de 18 fixação exterior (no corpo do histérico), que pudesse assegurar a análise dos sintomas, garantindo a inauguração “da entidade nosológica histérica (...). Este ponto de fixação espacial foi encontrado na categoria renovada do psíquico, tomado como uma função do cérebro” (Id., ibid., p. 15). Com isso Charcot remaneja a localização da área de lesão e concebe uma nova organização espacial. Assim apoiado na técnica hipnótica, a qual era eficaz em recriar e suspender os sintomas histéricos, Charcot consegue estabelecer um acesso ao lugar entendido como psíquico. Notemos que a idéia de lesão é mantida, pois se tornava claro que era a nível das representações, em um sistema nervoso fisiologicamente alterado, que se devia procurar o fenômeno; a originalidade de Charcot foi encontrar um “lugar” para o psíquico alcançado através do método hipnótico mantendo-se, portanto, dentro do padrão científico corrente. Conforme relata Gay (1989) foram os avanços realizados nas pesquisas de Charcot acerca da histeria tanto em homens (o que já era uma grande novidade) como em mulheres e o resgate da hipnose, frequentemente usada pelos charlatães, transformando-a num tratamento para as doenças mentais, que a classificaram como uma verdadeira enfermidade. Tudo isso impressionou o jovem Freud de tal modo que o afastou do microscópio e da neuropatologia, nas seis semanas em que trabalhou no laboratório patológico do mestre francês. Desta maneira podemos compreender melhor a frase que abre o texto do Manuscrito: “prover uma psicologia que seja uma ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, (...) tornando-os livres de contradição” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 347). Essa frase carrega a influência do cientificismo da época e contém uma herança das vivências na Salpêtrière e das pesquisas como neuropatologista. Neste sentido pesa sobre o Projeto, tanto a expectativa de Freud em estabelecer um lugar na anatomia cerebral para o psíquico, como uma ruptura com a ordem causal-anatômica, conseguindo visualizar, dentro do saber contemporâneo vigente, o psíquico “como uma espécie de materialidade, que podia possuir a mesma dignidade de avalista da verdade que a dimensão orgânica” (LAND, 1993, op. cit., p. 17). Desta forma o psíquico seria concebido como uma espécie de “tecido nervoso”, acessível ao pesquisador através do método hipnótico, técnica da pressão na testa, interpretação dos sonhos – técnicas que atribuíssem certa positividade ao seu acesso e pudessem produzir material clínico para conferir legitimidade a esse empreendimento. 19 Foi durante os meses de setembro e meados de outubro de 1895 que o texto do Projeto ganhou forma, embora grande parte dele tivesse sido redigido durante a viagem de trem de Berlim à Viena, após Freud visitar seu amigo Wilhelm Fliess. Nesse período Freud, tomado de uma febril criatividade, coloca no papel sua “Psicologia para Neurólogos”; a troca de correspondência com Fliess atesta, inicialmente, a euforia de uma grande descoberta. No entanto, em novembro toda euforia desaparece, dando lugar à frustração e muitas dúvidas sobre as ideias propostas no texto: “ele se sentia como deve se sentir um explorador que apostou tudo o que tinha numa promissora trilha que, ao final, não leva a lugar nenhum” (GAY, 1989, op. cit., p. 87). Frente a isso o Projeto é relegado ao esquecimento por seu autor e, só veio ao conhecimento do público em 1950, 55 anos após sua redação. Nesse meio tempo todo edifício teórico da psicanálise havia sido construído sem levá-lo em conta. O Projeto permaneceu conhecido apenas por Fliess e muito depois por Marie Bonaparte, ou seja, esse texto foi excluído do conhecimento até dos discípulos mais chegados de Freud. O manuscrito tornou-se parte integrante das obras psicológicas de Freud publicadas graças aos esforços de Marie Bonaparte, princesa da Grécia e Dinamarca. Na verdade o manuscrito passou por uma pequena aventura antes de chegar às mãos de sua salvadora. Toda correspondência trocada entre Freud e Fliess foi vendida pela esposa de Fliess ao livreiro Reinhold Stahl. Informada que as cartas estavam com o livreiro, Marie Bonaparte as compra deparando-se com esse texto inédito. Freud ao saber que sua ex-paciente estava de posse do Projeto tenta reavê-lo de toda forma, mas ele permanece seguro nas mãos da princesa que havia passado apuros em manter o manuscrito a salvo da Gestapo, a qual já tinha queimado, em praça pública, os livros de Freud e de muitos outros autores. O dia 10 de maio de 1933 marcou o auge da perseguição dos nazistas aos intelectuais, principalmente aos escritores. Pilhas e pilhas de livros arderam nas praças de várias cidades alemãs. Os nazistas colocavam em ação a chamada “limpeza da literatura”. Freud, Albert Einstein e Thomas Mann foram alguns dos intelectuais perseguidos que tiveram seus escritos queimados pelo terceiro reich, por serem considerados ofensivos aos padrões impostos pelo regime nazista. De acordo com Garcia-Roza (1991, op. cit.), o fato de Freud abandonar o Projeto de 1895 concede a este texto um estatuto peculiar em relação ao restante da obra. Neste apócrifo existem vários elementos conceituais importantes, que serão retomados, aos poucos, conforme o avanço da trama conceitual de Freud: ideias como a de “tela protetora 20 (proteção anti-estímulo), ou ainda da noção de ligação (Bindung)” (Id., Ibid., p. 70) e a questão da vivência de dor, que nos coloca frente a um problema da repetição da dor. Todos serão retomados após 25 anos, tendo a compulsão à repetição como peça chave que leva Freud a reorganizar sua teoria e apresentar: o conceito de pulsão de morte. Sem contar ainda, um breve esboço de sua teoria dos sonhos, uma genealogia do eu, o caso Emma que exemplifica o „a posteriori‟ e a primeira teoria do trauma, entre outros importantes conceitos. De forma que nos parece pertinente usar o Projeto como uma fonte de pesquisa e traçar paralelos com outros textos que nos são caros para tratar da repetição na obra de Freud. I.2. O aparato neuronal: concebido para dominar as excitações No Projeto de 1895 Freud postula um princípio fundamental e originário de toda atividade nervosa: o princípio de inércia, segundo o qual a tendência do aparato neuronal é libertar-se de toda excitação que lhe chega; “Um sistema nervoso primário se vale dessa quantidade adquirida, para descarregá-la nos mecanismos musculares (...) desse modo fica livre de estímulos. Essa descarga representa a função primária do sistema” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 348). A esta função soma-se outra, a função secundária, na qual o aparato procura conservar as vias de descarga que lhe permitem afastar-se das fontes de excitação. Haveria então, além da tentativa de livrar-se de toda excitação, uma fuga do estímulo. Contudo esta fuga não é efetiva com relação às excitações endógenas das quais o organismo não pode atuar de forma evasiva como o faz com os estímulos externos. Tais excitações têm por características serem constantes e imperativas; se confirmando como os motivos das grandes necessidades: fome, respiração e sexualidade. Estas necessidades são satisfeitas por meio de uma ação específica e para realizá-la é preciso um refinamento no processo de descarga. Nessa perspectiva os estímulos endógenos imporiam ao aparato neuronal a substituição do princípio de inércia pela tendência a manter a quantidade neuronal constante, em um nível mínimo necessário para a ação específica ser realizada. A estrutura do sistema neuronal elaborada por Freud teria como finalidade manter afastada a quantidade, enquanto sua função principal seria descarregá-la quando o nível constante da energia do aparato fosse alterado, buscando voltar sempre a um ponto de equilíbrio. Em 21 outros termos é preciso manter a quantidade em um mínimo aceitável e constante, livre de oscilações, evitando o acúmulo energético e o consequente desprazer. Cabe ressaltar que no Projeto (Id., Ibid.) Freud utilizou “estimulações endógenas” (p. 348), como termo precursor do conceito de pulsão, para designar uma fonte de estimulação interna e constante, que impulsiona o aparato a organizar-se de forma a lidar melhor com a excitação produzida; o que já aponta para um futuro aparato psíquico gerado com a função de dominar uma força que ameaça invadi-lo. O aparato neuronal do Projeto de 1895 é pensado como um lugar onde se dará um destino para a energia que lhe chega, seja interna ou externa. Para isso Freud constrói uma complexa rede neuronal na tentativa de elucidar como essa energia é trabalhada e escoada para fora do aparato. Nessa empreitada Freud esbarra em algumas dificuldades, sobretudo a repetição da vivência dolorosa que será destacada no decorrer do texto. A seguir Freud (Ibid.) descreve os neurônios como aptos para receber excitações por meio dos dendritos que são descarregadas através de um cilindro axial. Nestes termos o neurônio pode estar “catexizado, cheio de determinada Qn (quantidade), ao passo que, em outras circunstâncias, ele pode estar vazio” (Id., Ibid., p. 350). Esta passagem corrobora a ideia de que o aparato foi pensado com a finalidade de dominar as excitações, ideia que irá se manter na obra de Freud, uma vez que o aspecto quantitativo é expressado na concepção de investimento (catexia) dos neurônios. Estes devem se haver com as quantidades que lhe chegam, levando sempre em conta a tendência à constância. Não devemos reduzir o aparato neuronal como um simples condutor de energia: é a capacidade de armazenar essa energia que o dota da função de memória e o distingue de um funcionamento visando apenas à descarga. Em outros termos, a capacidade de armazenar informações o torna mais complexo e, é dessa capacidade que podemos começar a tecer nossa discussão sobre a repetição. O próximo passo, então, é distinguir os sistemas de neurônios do Projeto em permeáveis, chamados de phi (), os quais não retêm qualquer quantidade; e os neurônios impermeáveis, chamados psi (), que por sua vez retêm e são modificados com a passagem de certa quantidade. Com isso é destacada uma dimensão automática do funcionamento do aparato e do próprio humano, uma vez que a consciência não exerce influência direta sobre os dois sistemas neuronais onde ocorre grande parte dos processos psíquicos; a consciência será incluída dentro de um terceiro sistema chamado ômega (ω), conforme veremos adiante. 22 A independência dos outros sistemas em relação à consciência marca a originalidade do pensamento freudiano, frente à tradição cartesiana onde o eu e a consciência possuem um lugar central (Pilão, 2009). A grande novidade do aparato neuronal no Projeto de 1895 se refere a processos que fogem ao alcance do eu, “Freud alarga a dimensão psíquica (...) ao apresentar o funcionamento mental marcado por um desconhecimento daquele de cuja mente falamos (...) anunciando a radicalidade do que está por vir com o advento (...) do inconsciente” (Id., Ibid., p. 18). Apesar das diferenças conceituais, Descartes propôs um interessante modelo de memória baseado também na fisiologia e, na qual a percepção desempenha uma função fundamental. Para Descartes, explica Donatelli (2003), os objetos ao excitarem o corpo, com intensidade variável, deixam vestígios na superfície do cérebro, que são comparados às dobras feitas quando se amassa um papel; isso significa que são traçadas figuras na superfície cerebral que condizem aos respectivos objetos. Há um complexo esquema envolvendo a fisiologia e a física da época, que explica como essas imagens são conduzidas e reproduzidas dentro do sistema nervoso. Bem como também presente nesta concepção cartesiana a idéia de vasos comunicantes. Para o que diz respeito aos nossos propósitos queremos chamar atenção para esse modelo de memória pensado como vestígios traçados no cérebro (há uma clara referência a uma impressão quantitativa na formação dos traços) que conservam uma relação com os objetos percebidos de tal modo que eles podem ser evocados novamente, por meio de uma nova percepção ou sem a presença dos objetos. Neste ponto Descartes, na carta a Mesland de 1644, vai além e apresenta uma memória intelectual: há vestígios (traços) deixados „no pensamento‟ que podem ser evocados e modificados independente das coisas materiais: “as quimeras” (DESCARTES, 1641/1996, p. 280), por exemplo, são ficções criadas pelo espírito através da imaginação (fantasia). Uma visão bastante diversa da memória material, que não se reduz a uma abordagem mecanicista, na qual os traços na superfície do cérebro dependem sempre do fator externo. Essa explanação visa apenas mostrar que Freud pode ter usado modelos já existentes para desenvolver alguns dos conceitos do Projeto de 1895. Voltemos ao aparato neuronal. Os neurônios que podem ser ocupados, os psi (), levam Freud a supor que no ponto de contato entre eles existam resistências, as barreiras de contato. Essas barreiras são modificadas quando atravessadas por certa quantidade. Tal hipótese possibilita introduzir a noção de memória no Projeto, posto que para Freud 23 (1895[1950]/1996, op. cit.), era essencial que uma teoria psicológica fornecesse uma explicação para a memória. I.3. Repetição e facilitação As barreiras de contato são descritas no Manuscrito conforme o “grau de facilitação. Pode-se, então dizer: a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios ” (Id., ibid., p. 352). Notemos que o grau de resistência existente nas barreiras de contato não são idênticos, pois se fossem não haveria necessidade de caminhos preferenciais a serem seguidos, conforme a exigência da função secundária e da própria memória. “Por isso, pode-se dizer de maneira ainda mais correta que a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios ” (loc. cit.), ou seja, a existência da memória se deve à capacidade do neurônio ser modificado pela passagem da excitação. É pela magnitude da impressão que a memória é, então, constituída, deixando um traço ou uma marca atrás de si nos neurônios psi (). Derrida (1995) ressalta que para pensar as barreiras de contato é preciso supor uma certa violência da quantidade que passa por tais barreiras. O sistema de neurônios psi () – devido a sua principal característica: a impermeabilidade – oporia resistência à passagem da excitação. Mas devido à magnitude da corrente excitativa, sendo mais forte que a oposição oferecida pelas barreiras de contato, a excitação forçaria passagem e deixaria impressões nestas barreiras “oferecendo uma possibilidade de se representar à memória” (Id., Ibid., p. 185). Assim Freud, ao dispor o aparato neuronal estratificado, composto por diferentes sistemas de neurônios (permeáveis e impermeáveis), abre caminho para explicar o funcionamento da memória. A memória é definida como a capacidade de um neurônio psi (), ou um conjunto de neurônios, ser permanentemente modificado pela passagem da quantidade. É pela força, ou melhor, pela violência dessa quantidade, que se constituirá uma memória. Esta configuração denota a presença de certo excesso para efetuar os traços que formarão a memória. Nesta perspectiva a construção enquanto traços ou marcas se diferenciarão de acordo com a magnitude da impressão envolvida em cada caso. A memória neuronal tem como finalidade dispor e indicar caminhos facilitados nos quais a quantidade pode escoar de uma forma rápida pela malha neuronal, uma vez que 24 toda quantidade que ultrapasse o limite da constância é sentida como desprazer. O fato de poder escolher caminhos mais eficientes para chegar à descarga se deve às informações guardadas nos neurônios psi (), garantindo assim a realização da ação especifica, pelo cumprimento da exigência da função primária e secundária do aparato neuronal. Levando em conta esses aspectos observamos que alguns caminhos serão escolhidos em detrimento de outros, o que faz pensar que a repetição tem um lugar fundamental para a manutenção do equilíbrio de forças dentro do aparato neuronal. Justamente porque os caminhos mais facilitados na trama neuronal ao serem repetidos criam um sistema de diferenças buscando, assim, cumprir a exigência principal imposta ao organismo como um todo: ficar livre das quantidades. A repetição de caminhos facilitados determina, portanto, que a condução da quantidade nos neurônios psi () é seletiva. Além disso, Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) chama atenção para a atração que os neurônios facilitados exercem entre si, caracterizada por uma lei atuante entre esses neurônios chamada de „associação por simultaneidade‟. Segundo essa lei a quantidade passaria mais facilmente de neurônio investido para outro também investido, do que para um neurônio que não sofresse qualquer investimento. Essa norma determina a escolha de caminhos no sistema de neurônios psi () e confirma a hipótese de que a repetição tem um papel fundamental para garantir a manutenção do montante quantitativo em níveis constantes. As barreiras de contanto se caracterizam pela capacidade de reter, podendo receber mais informações advindas das impressões calcadas sobre sua superfície. Como reter informações sem perder o frescor? Se o acúmulo de impressões fosse consciente logo ficaria saturado e não poderia receber novas excitações, o que levou Freud a pensar que memória e consciência são incompatíveis. Certamente esta não é uma questão simples de ser respondida: No artigo: Uma nota sobre „Bloco Mágico‟ (1925[1924]/1996) Freud propõe considerar que a consciência desaparece quando o investimento é retirado dela e os traços duráveis se inscrevem no inconsciente. Contudo se no lugar de escrever normalmente, no celulóide transparente da superfície do bloco mágico, o estilete é apoiado com demasiada força ocorre ou união prolongada entre as duas camadas, folha de celulóide transparente e o papel encerado fino1, 1 Cabe lembrar que a disposição das camadas descritas no artigo Sobre o Bloco Mágico (1925[1924]/1996) é a seguinte: Primeiro há uma folha transparente onde é feita a escrita com o estilete; segundo um papel encerado e por último a prancha de resina. 25 ou uma ruptura em ambos. Como consequência deste excesso de força aplicado sob o bloco, ele não funciona como deveria. A camada celulóide atua como um escudo protetor para o papel encerado; nessa metáfora podemos observar que se o escudo é rompido há um prejuízo nas camadas subsequentes, ou seja, sem filtragem da quantidade a função de escrita, do traço, é perdida, dando lugar a impressões mais fortes: as marcas. Cabe fazer uma distinção entre estas duas figuras: traço e marca. Para isso nos servimos das indicações referidas por Knobloch (1998). Distinguir esses dois conceitos, segundo a autora, é fazer referência à memória, pois as representações que serão “constitutivas do inconsciente não são senão traços mnemônicos investidos e protegidos pelo recalcamento” (p. 85), justamente porque os traços estariam sujeitos a um “rearranjo”, usando o termo de Freud da Carta 52 (1896/1996), na medida em que novas circunstâncias fossem agregadas à memória. Com isso fica destacada a importante tese de Freud de que a memória se desdobra em vários tempos, ou seja, ela pode sofrer retranscrições ou rearranjos dos traços que a compõem. Com relação a diferença entre traço e marca deve-se considerar que para se transformar em um traço ou uma marca é necessário antes de tudo que uma impressão tenha força suficiente para causar alguma sensação no psiquismo; a impressão é “anterior à inscrição e posterior à sensação” (GARCIA-ROZA, 1995, p. 53). O traço é impressão que será presentificada pela lembrança, ou seja, implica uma inscrição na cadeia de representantes, sendo capaz de associar-se a outros traços. Quanto à marca, trata-se de um tipo de impressão que não participa da cadeia de representação, não podendo ser evocada como uma lembrança, “mas como fator energético. Não se trata, portanto, de representação, mas de expressão de pura intensidade” (KNOBLOCH, 1998, op. cit., p. 89), que será apresentada, e não representada, no aparato sob a forma de uma repetição desprazerosa a qual o eu não consegue fazer frente por ultrapassar a sua capacidade de contenção. Esta tese encontrará eco nas elaborações teóricas da virada de 1920 no artigo Além do princípio de prazer, mais especificamente com relação à compulsão à repetição das neuroses traumáticas. A Carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.) amplia a noção de memória presente no Projeto de 1895 inserindo um complexo sistema de retranscrições. Neste novo esquema a memória está sujeita a reordenamentos segundo novas articulações: os acontecimentos psíquicos ficam gravados na memória através dos traços mnêmicos, podendo ser reativados por efeito de um novo investimento. “O traço começa a tornar-se escritura” (p. 192) nos 26 avisa Derrida (1995, op. cit.) sobre a nova concepção da memória da Carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.). Estas considerações demonstram uma metamorfose que avança sobre as formulações realizadas no Projeto de 1895 e estão a meio caminho do capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1996), onde é operada a “passagem do modelo isomórfico para um modelo abstrato de aparelho psíquico” (GARCIA-ROZA, 1998, op. cit., p. 203), capítulo no qual a metamorfose será completada. Na carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.) Freud nos apresenta a noção de inscrição e, um novo e mais refinado esquema gráfico: os neurônios onde se originam as percepções (Wahrnehmungen), a consciência se liga a estes neurônios, mas não retém nenhum traço mnêmico do que aconteceu. Ao passo que nos signos de percepção (Wahrnehmungszeichen) do sistema psi () acontecem as primeiras inscrições destas percepções, inacessíveis à consciência e orientadas pelas associações por simultaneidade, onde ocorre o primeiro registro mnêmico. No próximo registro, o inconsciente ou inconsciência (Unbewusstsein), ocorre a segunda transcrição ordenada não mais pelas associações por simultaneidade, mas provavelmente por associações de causalidade; também inacessíveis à consciência. O registro seguinte chama-se pré-consciência (Vorbewusstsein), no final ocorre a terceira retranscrição ligada a imagens verbais (representação-palavra) e correspondendo ao nosso eu, o que torna o acesso ao consciente possível de acordo com certas regras. Notemos que há uma sucessão de transcrições realizadas em diferentes registros; cada transcrição ordena o material psíquico de acordo com uma nova lógica, de forma que a cada nova transcrição a anterior é inibida e apartada da quantidade vigente. Caso ocorra uma falha na tradução isso significa que algo precisou ser recalcado; ou seja, o recalque caracteriza-se por uma recusa em efetuar a tradução, pois se fosse completada geraria desprazer. Nestes casos o processo de tradução teria início, mas seria interrompido devido à emissão de desprazer. Concepção que nos indica uma forma de defesa do aparato psíquico contra o desprazer. A partir do material apresentado na Carta 52 (Id., 1896/1996 op. cit.) o aparato psíquico passa a ser concebido em diferentes camadas pelas quais o material mnêmico o atravessa. Esta disposição denota o contraste entre os signos de percepção, por um lado e, os registros da inconsciência e da pré-consciência, por outro. Tal diferença implicará que teremos: (1) as marcas não ligadas às representações, ou seja, elas não sofreram processos de reordenamento, mantendo-se praticamente da mesma forma de quando foram 27 constituídas e, (2) traços que sofreram retranscrições podem advir à consciência, desde que não despertem desprazer, já que fazem parte da cadeia de representações-palavras (Saltztrager, 2006). Freud concentra esse novo esquema em torno de noções como signo, inscrição e transcrição, que “estão muito mais próximas da linguagem e da escrita do que dos neurônios da formulação anterior” (GARCIA-ROZA, 1998, op. cit., p. 200). Neste contexto Derrida (1995 op. cit.) pontua que o “conteúdo do aparelho psíquico será representado por uma máquina de escrita” (p. 183). A partir da carta 52 (FREUD, 1896/1996 op. cit.), o que irá se apresentar como conteúdo do aparelho psíquico são os signos, que serão inscritos e retranscritos, o que indica os diferentes períodos da vida nos quais o material é acessado, sendo que cada novo acesso implica uma nova transcrição. Por intermédio destas observações destacamos no aparato psíquico a presença de um sistema de repetições ordenado pela diferença. O recordado, então, não coincide com o acontecimento em si, mas é um produto de várias retranscrições. A Carta 52 (Id., ibid.) traz, ainda, uma importante questão sobre a repetição ao tratar das marcas psíquicas. As marcas caracterizam-se por não sofrer nenhuma tradução. Diferente do recalcamento que é uma „falha na tradução‟ as marcas são „falhas (falta) de tradução‟, persistindo inalteradas no aparato psíquico; nestes casos a excitação é manejada segundo as “leis psicológicas vigentes no período anterior e consoante as vias abertas nessa época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os „fueros‟, estamos em presença de sobrevivências” (Id., Ibid., p. 283). Os „fueros‟ constituem um termo tomado de empréstimo de uma antiga lei espanhola aplicada em províncias conquistadas ou vilarejos que não possuíam senhorios; tal lei buscava regular a vida local, mantendo os costumes e tradições destes sítios e, estabelecendo um conjunto de normas jurídicas, para garantir privilégios perpétuos à coroa sobre esta região (BARRERO GARCÍA, 1985). De acordo com Salztrager (2006, op. cit.) os „fueros‟ são impressões psíquicas desregradas que não estão articuladas em uma trama de facilitações e, portanto, não sofrem todo procedimento descrito na Carta 52 (FREUD, 1896/1996, op. cit.), subsistindo como marcas psíquicas. Tal como os “fueros” da lei espanhola, recolhiam os costumes da cada localidade onde eram aplicados e mantinham-se, „strictu sensu’, fora da política feudal vigente, as marcas mantêm-se fora dos sistemas de representações e das regras aplicadas à estas, subsistindo no aparato psíquico segundo outra determinação. Daí, a impossibilidade de mudanças de cenários ou personagens em seus conteúdos, característica dos sonhos das neuroses traumáticas. “A ausência de 28 ligações diretas com a representação-palavra do registro da pré-consciência também explicaria o fato de elas consistirem em algo que não pode ser expresso pela fala” (SALZTRAGER, 2006, op. cit., p. 93), o que nos remete a pensar que os “fueros” funcionam de acordo com o mecanismo de compulsão à repetição. Voltemos à atenção para a primeira definição da memória, do Projeto de 1895, que destaca as repetições de vias através das quais são eleitos os caminhos preferenciais, visando o melhor escoamento da excitação. Sabemos que a facilitação depende da magnitude da quantidade que passa pelo neurônio e do número de vezes que esse processo acontece. Essas trilhas preferenciais são vias de descarga que interrompem a circulação da excitação no interior do aparato neuronal e, por isso, são repetidas quando há aumento de excitação. Segundo Santos (2006) essas repetições irão criar um sistema de diferenças, fundamental para orientar as vias facilitadoras do escoamento da quantidade que chega ao aparato: essa é a função da memória - repetir. De acordo com Garcia-Roza (1991, op. cit.) as facilitações formam caminhos privilegiados entrecruzando-se em uma complexa rede, de tal forma que a repetição exata do mesmo caminho seja difícil de acontecer: a memória não é, pois, “a reprodução mecânica e idêntica de um traço concebido como algo imutável, mas uma memória constituída pela diferença de caminhos eles mesmos móveis” (Id., Ibid., p. 100). Assim podemos afirmar que o traço como memória neuronal não poderia ser acessado de uma maneira „pura‟, o traço não é entendido na concepção do Projeto de 1895 como algo sempre idêntico, mas como diferença; neste contexto podemos entender o sentido da afirmação de Freud de que a memória é representada pelas diferenças nas facilitações dos neurônios psi (). Por estas razões, Derrida (1995, op. cit.) pontua que a memória tal como descrita no Projeto de 1895 é marcada pela diferença, e na configuração apresentada por Freud neste texto a repetição já existe como possibilidade originária, uma vez que os caminhos mais facilitados são repetidos para o escoamento da energia. A resistência oferecida pelos neurônios psi () contra as quantidades só é possível se as barreiras de contato aguentarem as invasões ou “se repetir originariamente” (Id., Ibid., p. 187). Isso porque não há outro meio de conter a efração do para-excitação a não ser repetindo a vivência dolorosa, até que o aparato neuronal ganhe domínio sobre a energia indomada; para isso se faz necessário diluí-la em parcelas que serão escoadas através da trama neuronal, a cada repetição uma nova parcela da quantidade é dominada. A vida já está ameaçada pela irrupção das 29 quantidades desde a sua concepção; frente a isso é preciso criar uma rede de facilitações para garantir a sobrevivência, ou seja, saber como escoar a quantidade de forma eficiente. Contudo criar facilitações implica necessariamente a dor: “não há facilitação sem um começo de dor” (loc. cit.), o que nos conduz a questão da relação entre dor e repetição. O aparato neuronal pressionado pelas urgências da vida é obrigado a arranjar meios de manter reservas de quantidade com a finalidade de realizar a descarga via ação específica, eis aí a mola pulsional “verdadeiro motor do progresso” (FREUD, 1915/2006, p. 147) do sistema nervoso; para tanto precisou complexificar-se em uma trama ou rede neuronal e evoluir suas células matrizes, os neurônios, de permeáveis para impermeáveis. Desse modo o aparato neuronal foi constituindo-se de forma a evitar grandes acúmulos energéticos. Para tal intento conta com as barreiras de contato e os caminhos facilitados, mas no final das contas o aparato, mesmo em sua complexidade, serve à função primária. Garcia-Roza (1998, op. cit.) explica que a memória e a repetição, não são secundárias em relação à descarga que é a função primordial tanto do aparato neuronal, como de todo o organismo, “ou, dito de outra maneira, não há primeiro a descarga (que seria “natural”) e depois a repetição, entendida esta última como uma espécie de memória natural” (Id., Ibid., p. 206). A memória é constituída pela diferença, contida na possibilidade dos vários trilhamentos existentes entre os neurônios psi (), nisto implica que repetição e diferença já existem como possibilidade desde o começo. Derrida (1995 op. cit.) vê nessa construção do aparato nervoso a condição para afirmar que a vida, afinal, é a morte e, a “repetição e o para além do princípio de prazer são originários e congenitais àquilo mesmo que transgridem” (Id., Ibid., p. 188), a saber: que as facilitações, assim como todo aparato, servem a função primária. Tal fato “impede-nos já de ficar surpreendidos com o Além do princípio de prazer” (loc. cit.). As barreiras de contato não são acrescentadas à vida para mantê-las, pois no fundo visam seguir a inércia, as exigências da vida fazem o aparato tomar um caminho mais amplo, mas que no fim se dirige ao propósito de toda vida: a morte, como será abordado no “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920, op. cit.). Freud pensou o aparelho neuronal de maneira que as grandes quantidades externas estivessem afastadas de phi () e, mais ainda, de psi (), devido ao escudo protetor dos órgãos dos sentidos que filtram a quantidade provinda do exterior, e pela conexão indireta de psi () com o mundo externo. Contudo há um fenômeno que corresponde à falha destes 30 dispositivos de proteção, uma vez que tais dispositivos têm um limite de eficiência: trata-se da dor. I.4. O problema da repetição da dor A dor consiste em grandes quantidades de excitação veiculada pelos neurônios phi () fazendo irrupção – sem a mediação do escudo protetor – nos neurônios psi () que a recebe como se fosse atingido por uma grande descarga elétrica, tal a magnitude de sua força. Esta energia invasora desestabiliza a organização do aparato, deixando facilitações permanentes atrás de si em psi (). “A dor aciona tanto o sistema phi () como o psi (), não há nenhum obstáculo à sua condução, e ela é o mais imperativo de todos os processos. Os neurônios psi () parecem, pois, permeáveis a ela” (Id., 1895[1950]/1996, op. cit., p.359). Na primeira parte do Projeto de 1895 o capítulo 6 é dedicado a questão da dor e o capítulo 12, à vivência de dor; entre esses dois capítulos Freud introduz o sistema neuronal responsável pela percepção-consciência: sistema ômega (ω). Tal sistema tem como função fornecer signos de qualidade à psi (); além da qualidade, exibe algo muito diferente: as sensações de prazer e desprazer. O desprazer é identificado por um aumento da quantidade de excitação em psi (), já o prazer é identificado com a descarga da excitação. No caso da dor produz-se, em primeiro lugar, um aumento considerável da excitação em psi (), sentido como desprazer; em segundo, uma inclinação para a descarga e, em terceiro, uma facilitação entre os caminhos de eliminação e a representação do objeto hostil que provocou a dor. A partir destes investimentos energéticos Freud procura, utilizando-se dos exemplos ocorridos na vivência de dor e de satisfação, não medir a quantidade, mas exemplificar e entender como ocorre a descarga da excitação, e os efeitos que a passagem da quantidade provoca no aparato (HERZOG, 2001). A respeito disso Freud no Rascunho E (Junho de 1894/1996) afirma que a angústia surge por transformação da tensão sexual acumulada; esse acúmulo se deve ao fato da descarga não ter sido realizada, e o represamento deste excesso tem como consequência a neurose de angústia; nesse sentido Freud considerou fundamental entender como o aparato neuronal é capaz de transmitir e transformar a 31 energia que circula pelos neurônios, ou seja, compreender economicamente as forças que atuam no aparato nervoso. Neste ponto são introduzidas duas idéias que visam responder aos modos de condução da energia no aparato e que serão retomadas na virada de 1920: o processo primário e secundário. O processo primário é regido pelo princípio de inércia e diz respeito à forma de condução da energia que tende a descarga pela via mais facilitada sem sofrer inibição ou processamento; já no processo secundário há um retardamento da energia, ela sofre uma mediação por parte do eu para que o aparelho não invista, automaticamente, de forma muito intensa na representação-lembrança do objeto hostil, no caso da vivência de dor; e de desejo, no caso da vivência de satisfação. De acordo com a indicação de Caropreso & Simanke (2006, op. cit.) notamos que seguir o caminho mais facilitado é um fator mecânico dos processos nervosos, pois as facilitações são pontos de menor resistência à condução da energia, conforme a exigência da função primária. Desse modo a energia do processo primário, que tem a característica de livre mobilidade, poderia conduzir à reativação de representações que mesmo em sua origem, produziram desprazer, o que ocorreria, sobretudo nos processos derivados da vivência de dor. Para evitá-la é necessária a ligação, a partir do eu, dessa quantidade que irrompe em estado livre. Configura-se, aí, a função do eu: mediar a energia livre que irrompe no aparato neuronal, em outras palavras: evitar que certos caminhos sejam tomados. Para que isso ocorra é necessária a realização de um trabalho sobre as excitações, ou seja, é preciso uma dominação prévia destas energias, esse domínio permite que elas sejam inscritas como representações. Caso esse domínio não ocorra, as excitações persistem como “fueros” ou marcas, que remetem para algo que escapa ao domínio do eu, logo, estão fora do campo das representações, e não podem ser atualizadas pela lembrança. Isso significa que há experiências não-inscritas, mas impressas, que ultrapassam a capacidade do aparato de dominá-las, permanecendo como pura intensidade e aparecendo sob uma repetição compulsiva do evento doloroso. Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) afirma: “se a imagem recordativa do objeto hostil for de alguma forma ocupada de novo, por exemplo por uma nova percepção” (p. 372), surge um estado que não é dor (dor sempre pressupõe a irrupção de uma quantidade proveniente do exterior), mas guarda semelhança com ela: o desprazer; e, junto a isso, uma defesa contra essa sensação. De acordo com Aubert (1996) dor não é desprazer, mesmo 32 partilhando com o afeto sua característica quantitativa. A repetição da experiência que envolveu a dor representa ao nível das lembranças um desprazer emanando internamente, resultante da ação dos neurônios secretores que após receber uma excitação “engendram no interior do corpo alguma coisa que age como um estímulo sobre as vias endógenas de condução resultando em psi ()” (Id., Ibid., p. 101)2. A dor passa a ser vista como o protótipo do afeto: uma descarga interna secretória que aumentando o nível em psi () conduzem a uma determinada ação para a descarga. “Portanto, resta apenas supor que, por meio da ocupação de recordações, seja liberado desprazer desde o interior do corpo” (FREUD, 1895[1950/1996, op. cit., p. 372). Como não há uma excitação externa que pudesse explicar o aumento do nível energético em psi () Freud aposta em uma solução química: os neurônios secretores. Tais neurônios, uma vez estimulados, provocariam a liberação de quantidade, endógena, portanto, aumentando o nível de psi (). Os neurônios secretores são ativados pelo reinvestimento da imagem do objeto hostil devido à facilitação criada na vivência de dor. Dessa forma o desprazer tem origem dupla na vivência de dor: externa, causada pelo objeto hostil, e interna, provocada pelos neurônios secretores. A associação entre os neurônios secretores e a recordação do objeto hostil consiste no caminho de eliminação da vivência de dor, de modo que o desprazer é liberado no afeto. Nesse sentido Pontalis (2005) afirma que Freud em 1895, opõe vivência da dor e vivência de satisfação. Assim, o par de opostos criados não é, “como seria de se esperar prazer-desprazer [Lust – Unlust], mas de um lado prazer-desprazer (...), e, por outro dor” (Id., Ibid., p.267). Esse autor, com relação a estas configurações, percebe um dualismo antagônico, entre essas duas vivências, tão fundamental quanto os futuros dualismos pulsionais que marcarão a obra de Freud. Essa visão é baseada no fato de que as vivências de prazer e dor são vivências corporais, que se inscrevem no corpo do indivíduo, provocando prazer, no caso da vivência de satisfação, e dor, na vivência de dor. A dor se caracteriza essencialmente por um fenômeno de ruptura das barreiras de contato, seguido por uma descarga no interior do corpo: “A dor é violação; ela supõe a existência de limites: limites do corpo, limites do eu; ela produz uma descarga interna, que poderíamos chamar de efeito de implosão” (Id., Ibid., p. 268). 2 Tradução nossa. 33 A dor tal como apresentada no Projeto de 1895 é diferente, portanto, do desprazer. Dor é ruptura das barreiras de contato; trata-se, então, de dor física visto a ocorrência de ruptura em tecidos nervosos, uma violação caracterizada pelo rompimento das resistências erigidas nos neurônios psi (). Se esse montante chegou a psi () é porque foi forte o bastante para romper o escudo que protegia o aparato contra a invasão de grandes quantidades. Assim a dor coloca o exterior em contato direto com o interior, ocorre uma transparência no lugar onde deveria haver uma resistência: isso caracteriza o trauma. A dor produz essa qualidade especial, o afeto, cujo protótipo são os estados de angústia: esse estado inclui o desprazer e a tendência à descarga que correspondeu à vivência de dor. O afeto provoca no aparelho neuronal uma resposta automática: a defesa primária, que será repetida toda vez que surgir desprazer motivado pela reativação da experiência de dor, ou seja, as facilitações que conduzem ao desprazer deixam de ser percorridas. Para isso surge o eu: uma rede de neurônios bem facilitados entre si e constantemente investidos, que regula a passagem da quantidade no aparato. O eu de 1895 é uma organização neuronal, que interfere na passagem da quantidade ocorrida de determinada forma, ou seja, acompanhada de dor ou satisfação. As primeiras ligações são denominadas sínteses passivas, elas colocam um limite ao livre escoamento da energia; em um segundo momento transforma-se em síntese ativas que atingirão excitações que já foram acompanhadas de “prazer ou dor e que se tornam elementos de uma repetição. O eu é o responsável pela repetição de experiências anteriores (experiências de satisfação) ou pela inibição da descarga” (GARCIA-ROZA, 1991, op. cit., p. 151); o eu também procura livrar-se dos investimentos pelo método da satisfação e, para tanto, conta com o auxílio dos neurônios ômega (ω): esses neurônios fornecem a indicação de realidade, ou não, do objeto. Esta indicação se constitui como um fator determinante para os investimentos mediados pelo eu. A diferenciação entre a percepção e a lembrança, indicadas pelos neurônios ômega (ω), permitirá um critério para o eu inibir, ou não, determinados investimentos. A “aquisição biológica” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 425) ensinará, então, a não iniciar a descarga antes da chegada da indicação da realidade e tendo essa finalidade em vista, não levar o investimento das lembranças além de certa quantidade, evitando, assim a alucinação, e o consequente desprazer. A quantidade retida no eu pode ser empregada em investimentos laterais, com a finalidade de modificar o curso dos processos associativos e impedir aqueles que resultam 34 em desprazer. O investimento lateral é uma inibição do livre escoamento da energia, alterando seu curso por meio de uma rede de neurônios bem facilitados e visando a descarga de uma maneira eficiente para o organismo. Através dos investimentos laterais o eu consegue inibir a alucinação, a descarga motora e a ocupação da representação hostil, evitando o aumento da excitação. “Tudo que chamo de aquisição biológica do sistema nervoso é, na minha opinião, representado por uma ameaça de desprazer dessa espécie cujo efeito consiste no fato de não serem investidos os neurônios que levam a liberação de desprazer” (Id., Ibid., p. 426). Isto constitui a defesa primária, ou seja, os caminhos que conduzem ao desprazer devem ser evitados. Devido a dificuldade em explicar como a defesa primária pode ser representada mecanicamente, Freud lança mão do mecanismo da atenção, que irá regular os deslocamentos dos investimentos realizados pelo eu. Há, portanto, uma segunda regra biológica, a da atenção: essa regra enuncia que o eu tem uma tendência a ocupar redes neuronais onde ocorrem os processos originados na recepção de estímulos externos, ou seja, as percepções. O eu “quase sempre tem investimentos intencionais ou de desejo, cuja presença durante a investigação influencia a passagem da associação, produzindo um falso conhecimento das percepções” (Id., Ibid., p.429). De acordo com Freud, mesmo depois de percepções desprazerosas tornarem-se imagens mnêmicas, é constatado que suas repetições continuam a despertar afeto, “até que, com o correr do tempo, percam essa capacidade” (Id., Ibid., p. 436). O domínio pelo eu dos processos primários resultantes de uma vivência de dor é muito mais difícil de ser alcançado, ao que parece isso se deve ao fato das facilitações estabelecidas durante a vivência de dor ocorrerem em função da magnitude das quantidades. Só com repetidas tentativas seria possível subjugá-los, enquanto isso tais lembranças permanecem - seguindo a expressão usada por Freud - “indomadas”: Quando uma passagem de pensamento esbarra nesse tipo de imagem mnemônica indomada, geram-se indicações de qualidade correspondente – muitas vezes de caráter sensorial – como uma sensação de desprazer e uma tendência a descarga cuja combinação caracteriza determinado afeto, interrompendose assim a passagem do pensamento (loc. cit.). Nessa passagem Freud observa que o pensamento pode conduzir ao desprazer se esbarrar com uma recordação “indomada”, ou seja, recordações que não foram submetidas ao processo secundário, não sofreram uma regulação realizada pelo eu. Essas lembranças indomadas mantêm sua capacidade energética sendo capazes de despertar afetos e 35 desprazer. Para que essas recordações possam ser dominadas o eu precisa ligá-las e, para isso, é preciso um repetido investimento até que a facilitação para o desprazer seja contrabalançada. Inicialmente o eu não tem força suficiente para impedir sua repetição, ou seja, o eu não pode de uma única vez limitar o livre escoamento das excitações. A condição para efetuar uma ligação é o estabelecimento de novas facilitações com um sistema já investido formando assim um todo: ligar, em outras palavras, significa a inclusão de novos neurônios no eu. É evidente que algo acontece no curso das repetições desprazerosas que aos poucos provoca a inibição de tais lembranças. Tal domínio do eu é mais demorado nos casos de lembranças capazes de gerar afetos, pois traços de experiência de dor foram investidos com quantidade proveniente de phi () excessivamente intensa, sendo propícia para a liberação de desprazer. Contudo isso ocorre gradualmente: justamente devido às grandes quantidades presentes na vivência de dor. Tais representações deverão receber do eu uma ligação especialmente considerável e repetida para poder evitar essa facilitação para o desprazer. De acordo com o que foi considerado: Encontra-se admitido, portanto, no Projeto, a hipótese de que há processos primários no aparelho que fazem retornar representações que, mesmo em sua origem, foram desprazerosas. Dito de outro modo, há nesse texto, claramente formulado, a idéia de um processo repetitivo que continua ocorrendo enquanto as representações ainda não foram ligadas (CAROPRESO & SIMANKE, 2006, op. cit., p.213). Portanto, a repetição, no caso da vivência de dor, ocorre porque a capacidade de ligação, realizada pelo eu, foi insuficiente para enfrentar o montante da excitação proveniente do exterior. Entendemos que a capacidade de ligação do eu é proporcional à quantidade de energia quiescente no sistema psi (); caso essa capacidade seja ultrapassada o aparato é levado a dar uma resposta automática e defensiva frente ao excesso que o invade: a repetição. I.5. O tempo da repetição A vivência da dor ainda levanta outra questão relevante para o tema da repetição: a temporalidade. O afeto proveniente da reativação da lembrança do objeto hostil conduz a uma experiência de desprazer, diferente, portanto da experiência de dor original. Pesquisando sobre a histeria Freud constata que essa experiência é constituída em dois momentos ou tempos diferentes. Esses dois tempos “se sobrepõem na produção do trauma 36 não sendo percebidos como distintos. O sintoma realiza essa condensação temporal de algo que se repetiu” (SANTOS, 2002, op. cit., p. 31). Na segunda parte do Projeto de 1895 ao tratar do “Próton Pseudos” na histeria Freud descreve um caso clínico, intitulado caso Emma, que se desenrola em duas cenas: A cena I, caracterizada como o segundo tempo e desencadeador do trauma, na qual Emma encontrava-se com 12 anos e, ao entrar desacompanhada em uma loja repara que dois vendedores estavam rindo, frente a essa situação Emma foge tomada por um crescente desprazer. No primeiro tempo designado por Freud como cena II, Emma, com oito anos de idade, encontra-se sozinha em uma loja de doces, então o confeiteiro toca seus órgãos genitais por cima de seu vestido e sorri. A cena I provoca uma fobia que a impede de entrar sozinha em lojas, tendo sido relatada na análise como o evento responsável pelo sintoma. Durante o tratamento analítico a cena II, mais antiga que a cena I, vai ser trazida à luz: o riso dos vendedores da cena I evocou o riso do confeiteiro da cena II, bem como o fato de também na cena I Emma se encontrar sozinha tal como na cena II. Com essa lembrança veio outra, a do abuso que agora, na puberdade, ganhava significado sexual, se transformando em afeto de angústia, devido ao temor de que os vendedores pudessem repetir o abuso. As duas vivências foram condensadas em uma só. Notamos aqui uma espécie de ação retardada, Freud acreditava que o ataque em si não havia despertado nenhum afeto, contudo a cena havia sido inscrita como uma representação-lembrança, que incluía o registro do abuso marcado por uma irritação genital. Quando Emma, quatro anos depois, entra em uma loja, as circunstâncias relativamente parecidas ligaram-se associativamente às representações-lembranças da primeira cena (do abuso), acionando agora a liberação afetiva devido à sua maturidade sexual. Essa vinheta clínica serve perfeitamente para Freud explicar o a posteriori e a teoria da sedução, chave para entender a histeria neste período pré-psicanalítico, ou seja, a experiência sexual pode ocorrer num período pré-sexual, e neste tempo não pode ser compreendida. O a posteiori constitui a mola explicativa para a primeira teoria do trauma, fornecendo o motivo das forças recalcadoras serem tão poderosas em um tempo tão afastado da primeira cena. A lembrança da cena do abuso só é transformada em traumática a posteriori. Dessa forma temos um ponto importante a respeito da natureza do trauma na 37 teoria freudiana, neste período: todo sintoma, qualquer que seja ele, provém de uma experiência sexual factual. A emblemática frase do artigo Comunicação Preliminar (FREUD & BREUER, 1893/1996) já afirmava que: “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” (p.43). Desdobrando a frase podemos extrair algumas considerações importantes sobre esse tema. Nesse período Freud estava às voltas com a teoria da sedução, com a qual procurava solucionar o mistério dos sintomas apresentados na histeria. Tal teoria baseava-se na concepção de que o indivíduo sofria uma irritação real nos órgãos genitais durante a infância, o abuso ficava gravado na memória como um corpo estranho ao sujeito, e não como um evento traumático devido à imaturidade sexual da criança. Cabe lembrar que nesta época Freud ainda não dispunha do conceito de sexualidade infantil, logo o desejo sexual era restrito ao adulto. Somente após o advento da puberdade tais lembranças adquirem um valor de trauma, ou seja, não são as próprias experiências que agem traumaticamente, mas sua reminiscência. Reviver como recordações, após a maturidade sexual, o abuso experienciado passivamente conferia o valor de trauma à histeria. As lembranças vividas como experiência na infância ganham outra significação: pela retranscrição na memória, elas adquirem um valor traumático. Barrois (1998) acentua que o ponto comum das teorias histero-traumáticas e da sedução reside inicialmente na passividade da vítima, ou seja, temos aí uma força externa caracterizada pelo abuso de um adulto desejante e perverso que é despejada sobre uma criança frágil, não desejante e, sexualmente imatura. Com essas observações podemos referenciar um modelo de temporalidade que toca a questão da repetição. Knobloch (1998, op. cit) chama atenção para uma temporalidade que não a do acontecimento, pois é preciso o ganho de sentido sexual através da puberdade, ou seja, é no a posteriori que o efeito traumático irá ser produzido e não na experiência original, vivida na infância. Assim uma cena do passado é compreendida no presente, constituindo-se assim, uma confusão temporal, é como se este passado não pudesse passar. O abuso, a cena que dará origem ao trauma, é um corpo estranho, sem significação traumática constituindo-se como um “tempo aberto”, usando a expressão de Barrois (1998, op. cit.), sendo suscetível de oferecer um ponto de chamada ao trauma na idade adulta. Em outras palavras, ele permanece apto a eclodir diante de uma circunstância que toque a rede de associações da qual faz parte, desde que se tenha atingido a puberdade. Desta forma o “tempo aberto” encaixa-se no tempo histórico e, ao mesmo tempo, rompe o curso deste, 38 inserindo-se em uma confusão temporal marcada pela presentificação do passado e pela repetição. O valor patogênico reside na lembrança do abuso sexual e não na experiência; o trauma é póstumo e, isso se deve a capacidade de retranscrição dos traços mnêmicos. Na puberdade, o segundo tempo do trauma, as barreiras morais, conforme esclarecem Carvalho & Ribeiro (2006), foram erigidas de tal maneira que as lembranças ao serem despertadas sofrerão uma repulsa do eu e serão recalcadas. Temos, então, a vinculação entre trauma, repetição e memória; pois a sintomatologia apresentada na histeria só pode se manifestar a partir das lembranças do abuso ressignificado após a maturação sexual, ressignificação desencadeada pela repetição de uma circunstância que evoque a recordação do abuso. O fator econômico tem um peso importante nesta formulação, pois diante da recordação que validará o trauma notamos a incapacidade do sujeito em efetuar uma “atitude compensatória na medida da agressão” (BARROIS, 1998, op. cit., p. 208,)3; significa que a energia quiescente do eu é pequena em relação à energia proveniente do trauma. Como vimos acima, essa idéia encontrará eco nas formulações sobre o trauma a partir de 1920. Em meados de 1897 Freud vai descartar essa explicação, abandonando a teoria da sedução. Passando a considerar que estes abusos sofridos na infância e contados por seus pacientes não correspondiam necessariamente à realidade. Freud vai considerar que se trata, na maioria dos casos, de situações fantasiadas. Desta forma Lejarraga (1996) pontua que a fantasia ganha um lugar de maior destaque na produção das neuroses, ou seja, a realidade factual cede lugar a um fator interno. A “realidade objetiva da cena traumática é substituída pela realidade psíquica dos desejos e fantasias inconscientes” (Id., Ibid., p. 21). A partir da nova relação estabelecida entre fantasia e trauma, o fator interno, no sentido de uma realidade interna, ganha mais relevo que a realidade objetiva, lugar por excelência da cena de sedução. Vemos assim o peso dado à questão da fantasia que acaba deslocando a importância da realidade, limitando por um lado a concepção de que o trauma provém do exterior, e, por outro, abrindo novas possibilidades para explicar a neurose a partir do conflito entre os desejos inconscientes e a consciência moral. Esta reformulação não significa que a realidade externa e a fantasmática sejam desconexas, pelo contrário, há uma implicação de uma sobre a outra. Entendemos, assim como Uchitel (2001), que o trauma caracterizado por uma violência externa não age sobre 3 Tradução nossa. 39 nós sem nos causar implicações fantasmáticas. De forma que a apreensão da realidade externa não é ausentada de fantasia; nem a fantasia abstrai-se totalmente da realidade externa para constituir-se, existindo implicações de uma sobre a outra. Esse deslocamento, do externo para o interno, levará consequentemente a um novo modelo explicativo de neurose: a sexualidade recalcada, referida não somente ao orgânico, mas ao campo das fantasias e desejos e, o conflito moral advindo desses desejos sexuais que não podem aflorar à consciência passarão a explicar a sintomatologia neurótica. A respeito disso Carvalho & Ribeiro (2006 op. cit.,) clarificam que tal concepção de trauma que se constitui no momento em que antigas impressões são ressignificadas, não é outra coisa senão a construção de uma fantasia. Na teoria da sedução, o “fundamento da fantasia é o fato real do atentado sexual, enquanto que na teorização subsequente seu fundamento será a sexualidade infantil e seu substrato pulsional” (Id., Ibid., p. 6). Contudo vale determo-nos na descrição do aparato neuronal feito no Projeto de 1895 que pode comportar o registro do abuso sexual, a partir da idéia de um corpo estranho que se encontre presente. São registros mantidos fora dos investimentos do eu, portanto, indomados, uma vez que não foram submetidos ao processo secundário. E por se tratar de lembranças que envolvem a sexualidade são carregadas de uma intensidade especial. Na terceira parte do Projeto (1895[1950]/1996, op. cit.), Freud ressalta que o rememorar envolve um processo de pensamento regressivo, “retrocedendo, possivelmente até uma percepção” (Id., Ibid., p. 435), sendo que o pensamento pode “levar ao desprazer” (loc. cit.) se nesse curso regressivo esbarrar em lembranças ainda indomadas. São justamente essas lembranças, de ordem sexual, que se tornarão patogênicas ou traumáticas a posteriori. Para essas ocasiões o aparato conta com uma defesa especial: a defesa patológica ou recalcamento. Na carta 52 (1896/1996 op. cit.), Freud indica que a defesa patológica ocorre contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi traduzido. Nos casos de ordem sexual há um crescente desprazer porque as magnitudes das excitações causadas pelo abuso aumentam ou ganham mais força com o tempo, devido ao desenvolvimento sexual do indivíduo. Nesta lógica um evento sexual anterior (na infância) atua sobre a fase seguinte (da maturação sexual) como se fosse atual; o fato que determina o recalcamento, portanto, “é a natureza sexual do evento e sua ocorrência numa fase anterior” (Id., Ibid., p. 284). 40 No rascunho K (1896/1996) Freud é taxativo quanto a essas ideias, apontando que basta a puberdade se colocar entre a vivência factual do abuso e sua repetição na lembrança, para que o trauma seja desencadeado. E conclui: “para que a pessoa esteja livre da neurose, a precondição necessária é que antes da puberdade não tenha ocorrido nenhuma estimulação sexual de maior significação” (Id., Ibid., p. 268). O recalcamento será um meio de evitar que as lembranças carregadas de afeto produzam desprazer, retirando seu investimento e deslocando-o para outras representações que tenham uma ligação fortuita com o evento de ordem sexual. Toda vez que algo relacionado ao trauma for evocado, a lembrança fortuita irá aparecer no lugar da experiência sexual traumática. Contudo a defesa patológica não anula o poder patogênico da lembrança traumática, apenas a enfraquece deslocando sua energia. “Porém, só se pode fugir de uma representação para outra, nisso consiste a formação do sintoma” (SANTOS, 2006, op. cit., p. 36). Por esse motivo Freud conclui que toda compulsão corresponde a um recalcamento, e como neste processo há deslocamento da energia de uma representação para outra, toda emergência na consciência da representação traumática corresponde a uma amnésia, uma lacuna na memória. O „a posteriori‟ implica a repetição; a esse respeito Gondar (1995) salienta não ser preciso ocorrer uma reprodução exata para haver enlace entre duas representações. Basta que existam traços comuns a ambas; porém é necessário que essa repetição insira um novo elemento, capaz de conferir à primeira recordação um sentido que não lhe havia sido dado. Uma experiência fortuita vivida após a puberdade desencadearia a produção sintomática; o trauma, portanto não é produzido no passado, mas através do enlace entre duas representações dadas em tempos diferentes. Através destes processos que envolvem a representação-lembrança, sobretudo na experiência de dor, “a psicanálise pode suspeitar da existência de uma força que enquanto silenciosa, foge à detecção, mas cuja potência pode ser inferida a partir dos efeitos que produz” (Id., ibid., p.83). Os estímulos endógenos, originados nas “células do corpo” e criadores das grandes necessidades (os precursores do que será chamado de pulsão) têm por característica organizar-se em torno de um objeto utilizado para obter satisfação por meio da descarga da excitação. Como essas estimulações não cessam sua atividade, uma vez realizada a descarga o processo recomeça, denotando um processo repetitivo que está no cerne do conceito de pulsão. 41 A dor, dentro da perspectiva apresentada no Projeto de 1895, aparece como uma falha dos dispositivos de proteção do aparato e aponta para um processo que mesmo envolvendo o desprazer continua se repetindo, trata-se de um mecanismo que se encontra fora do princípio do prazer e aponta para a compulsão à repetição (Caropreso & Simanke, op. cit., 2006). Somente em 1920, no texto “Além do princípio de prazer”, a questão da dor é retomada por Freud, numa concepção muito próxima do Projeto, mas certamente em outro nível de elaboração conceitual. Ela se caracteriza por uma ruptura no escudo protetor contra estímulos, que protege o aparato das excitações. Diante da ruptura do para-excitação o aparato é inundado por um excesso pulsional, que coloca de lado o funcionamento do princípio do prazer, para realizar uma tarefa mais fundamental: dominar a excitação excessiva. Quando ocorre uma falha na tarefa de dominar a excitação, inicia-se um processo repetitivo, que não envolve qualquer possibilidade de prazer, denominado: compulsão à repetição. I.6. Vivência original de satisfação e o abandono da vivência de dor Apesar da importância das questões em torno da vivência de dor é a vivência de satisfação que ganha destaque crescente após o engavetamento do Projeto de 1895. Dessa vivência resulta um resto: estado desiderativo. Na Interpretação dos Sonhos (1900/1996 op. cit.) esse mesmo resíduo será denominado desejo; Freud se serve, neste texto de 1900, do mesmo exemplo apresentado no Manuscrito de 1895: o choro (de fome) do bebê é aplacado pelo cuidador, ou seja, o aparato procura repetir a experiência primária de satisfação, na qual obteve prazer através da descarga das excitações. Contudo Freud abandona a possibilidade de estabelecer uma base anatômica para o aparato psíquico antes dividido em sistemas neuronais. Há uma importante articulação que se mantém entre a repetição e os estados desiderativos: o objetivo do desejo é reproduzir uma identidade perceptiva, ou seja, “repetir a vivência de satisfação, que envolveu um decréscimo da excitação e foi sentido como prazer” (FREUD, 1900/1996, op. cit., p. 624). Nesse sentido Prata (1992) ressalta que o reafloramento desiderativo pode ser entendido como algo da ordem de uma repetição, a qual se manifesta como uma força que impele o sujeito à determinada direção. 42 Dentro deste quadro “a repetição é, portanto, originária do desejo e está nos fundamentos da concepção do inconsciente” (Id., Ibid., p. 8) e do próprio conceito de pulsão. Dentro dessa perspectiva a repetição consiste numa busca constante em reencontrar o objeto perdido da experiência de satisfação original; contudo o objeto encontrado nunca coincide totalmente com o objeto da satisfação primeira. Freud indica com clareza essa posição ao explicar “o reconhecer e o pensar reprodutivo” na primeira parte do Projeto de 1895, e a retoma, dentro de outro contexto conceitual, em 1905 nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ao afirmar que o encontro com o objeto “é, na verdade, um reencontro” (p. 210), portanto repetição de um prazer já experienciado. Distintamente da vivência de satisfação, a vivência de dor não aparece na Interpretação dos Sonhos (1900/1996 op. cit.). Essa omissão faz com que os polos desprazer-prazer e dor, deem lugar a dois novos polos que serão centrais na primeira tópica: o prazer de um lado, e o desprazer, de outro. Desaparece, como consequência, a ideia de um processo primário que possa levar o aparelho psíquico a reativar representações desprazerosas, provenientes da experiência de dor, produzindo afeto e defesa, que seria dominado aos poucos com reiteradas repetições visando ligar a quantidade excessiva que ocuparam as representações hostis. Aubert (1996, op. cit.) vê na recusa de Freud em tratar o pesadelo em sua teoria sobre a interpretação dos sonhos, um claro sinal do descartamento da questão da vivência de dor. Os sonhos desprazerosos e de punição não são mais referidos à dor, mas são explicados a partir do princípio de desprazer-prazer que tem como fundamento a vivência de satisfação. Dessa forma, o que é operado nesse tipo de sonhos é um “desejo do sonhador de ser punido por uma moção de desejo recalcada e proibida” (FREUD, 1900/1966, op. cit., p. 587). Freud (Ibid.) se volta para a questão do conflito entre consciente e inconsciente, e para a oposição prazer – desprazer. Somente após a eclosão da primeira guerra mundial (19141918) e diante de alguns problemas conceituais – os pesadelos dos sobreviventes dos campos de batalha – são retomados sob o ponto de vista da vivência de dor em 1920. Na verdade Freud (1900/1996, op., cit.) chega a supor que sobre o aparato primitivo incide um estímulo perceptivo que funciona como a fonte de uma excitação dolorosa. Sobrevêm, com isso, manifestações motoras desordenadas, até que uma delas faça com que o aparato se retraia da percepção e, ao mesmo tempo, da dor. Quando a percepção reaparece o movimento é repetido. “Neste caso, não resta nenhuma inclinação a recatexizar a percepção da fonte de dor, alucinatoriamente ou de qualquer outra maneira” (Id., Ibid., p. 43 626). Neste ponto Freud interrompe a exposição e afirma que pelo contrário, haverá no aparelho primitivo uma inclinação a abandonar imediatamente a imagem aflitiva, justamente pela razão dela provocar desprazer. A evitação de qualquer coisa que foi aflitiva é “feita sem esforço e com regularidade pelo processo psíquico” (loc. cit.); isso fornecerá o protótipo e o primeiro exemplo de recalcamento. Nada é falado sobre esse funcionamento primário, acionado por quantidades excessivas provenientes da vivência de dor, que insiste em repetir-se enquanto a energia não é ligada como vimos no Projeto de 1895. Nas palavras de Freud (1900/1996, op. cit.): essa evitação da lembrança de qualquer coisa que um dia foi aflitiva se dá (...) em conseqüência do princípio de desprazer, portanto, o primeiro sistema- psi () é totalmente incapaz de introduzir qualquer coisa desagradável no contexto de seus pensamentos. Ele não pode fazer nada senão desejar (Id., Ibid., p. 627). Haveria, portanto, no aparelho, desde sua origem uma inclinação a abandonar imediatamente as representações aflitivas. O sistema consciente só pode investir uma representação se estiver apto a inibir o possível desenvolvimento do desprazer que dela provir. “A inibição do desprazer, contudo, não precisa ser completa: o início dele tem de ser permitido, já que é isso que informa ao segundo sistema a natureza da lembrança em questão e sua possível inadequação ao fim visado pelo processo de pensamento” (Loc. cit). A partir de 1900 o conceito de processo primário tal como apresentado no Projeto de 1895 e as consequências relativas à vivência de dor são excluídos. Freud não dá maiores explicações de como uma energia em estado livre pode evitar, e mesmo inibir representações desprazerosas. Evitar, inibir, mediar são funções do processo secundário, alcançada a duras penas pelo eu devido à invasão de grandes intensidades, característica dos processos que envolvem a dor. É complicado pensar como isso seria alcançado por esta outra forma, tendo em vista que o funcionamento do aparato tal como descrito no Projeto de 1895 não parece ter-se modificado na Interpretação dos Sonhos (1900/1996, op. cit..), em relação ao processo primário - energia livre, e o secundário – energia ligada. De 1900 até 1920, Freud vai considerar a experiência de satisfação como originária da estruturação do aparato psíquico. Assim a primeira tópica vai ser pensada a partir do desejo, mais especificamente sobre o desejo sexual recalcado, conforme lembra Herzog (2001, op. cit.). Disposição que irá conferir especificidade ao conceito de inconsciente como objeto de investigação e à pulsão como um conceito fundamental. Vimos que a experiência primária de satisfação é a base da formulação freudiana sobre o desejo. Como consequência disso qualquer acúmulo de excitação colocará o 44 aparato em ação para repetí-la. A corrente que se inicia no desprazer e tem o prazer como finalidade é o que Freud chamará de desejo; é sobre a descrição realizada a partir da vivência de satisfação que serão criadas “facilitações que servem de roteiro, para aquilo que mais tarde será chamado de pulsões sexuais” (MALDONADO, 2005, p. 22). Serão esses circuitos instalados a partir das primeiras experiências de prazer, que darão lugar aos chamados circuitos pulsionais. Com esses argumentos podemos concluir que a dor aponta para um processo repetitivo envolvendo o desprazer e nos dá indícios que levam em direção à compulsão à repetição; não como um conceito estabelecido, mas um impasse trazido pelas consequências do processo doloroso o qual envolve uma energia livre que o eu não consegue subjugar facilmente. Por outro lado a experiência de satisfação remete a outro tipo de repetição, que está no cerne do processo de recalque. É sobre esses desdobramentos, articulando a repetição com os conceitos de transferência, recalcamento e resistência que começam a ser desenvolvidos a partir de questões colocadas pela clínica, que nos deteremos no próximo capítulo. Capítulo II – O retorno do recalcado - a repetição do sexual Ao longo deste segundo capítulo será abordada a questão da repetição do sexual, manifestada na clínica como o retorno do reprimido. A partir da publicação de Recordar, repetir e elaborar (FREUD, 1914/1996) a repetição começa a ganhar lugar como conceito, passando de um indício clínico pouco referido nos textos freudianos, para um lugar central na teoria. Trata-se de um fenômeno desvendado pela clínica, embora não se resuma a ela, já que acontece no cotidiano de cada um. Foi o amor de transferência que “atropelou” Freud, em um caso de histeria – o caso Dora (Id., 1905[1901]/1996), revelando uma espécie de repetição onde o analista é substituído por uma outra figura da vida da paciente. Como a etiologia da neurose é sexual, essa repetição só pode se referir ao retorno de uma representação sexual reprimida; a novidade é que essa repetição escapava da esfera verbal sendo atuada através da relação transferencial. A ideia de que a repetição é concebida como repetição do sexual decorre das considerações sobre a vivência de satisfação primária, que funda o princípio de prazer no aparato psíquico. Baseado nisso Freud irá construir uma teoria e uma prática clínica com intuito de solucionar os casos de neurose de transferência, que apontam um conflito entre instâncias psíquicas. Tal conflito se refere a um desejo sexual, de caráter edípico, que tem seu acesso barrado à consciência por causar desprazer ao eu, devido às barreiras morais internalizadas pelo sujeito. Nessa perspectiva o sintoma se caracteriza por uma formação de compromisso entre essas instâncias, compromisso que se constitui pela expressão do desejo sexual dos neuróticos impedido de ser descarregado via consciência. Tais sintomas serão repetidos em ato por meio da transferência com o analista. Tendo em vista estes aspectos vamos nos debruçar, neste capítulo, sobre os textos da primeira tópica (principalmente os artigos sobre técnica) (FREUD, 1912-14/1996) e da metapsicologia (Id., 1914-1915/1996) a fim de evidenciar a presença de uma repetição do sexual, observada na clínica através do acting out. No artigo “Pulsões e seus destinos” (Id., 1915/1996), esse quadro vai se complexificar na medida em que Freud começa a dar mais atenção à perspectiva do excesso pulsional; e tendo ainda que dar conta dos modos de defesa em relação ao impacto deste excesso. Somado a isso, Freud se depara com casos clínicos em que não se conseguia avançar com o método clássico da regra fundamental, revelando uma compulsão que excedia a questão do retorno do reprimido. Nesses casos se observava que os pacientes se expressavam através de uma passagem ao ato que não tinha 46 ligação com as representações barradas à consciência, mas eram a manifestação de uma pura descarga, apontando um limite para o dispositivo clínico centrado na figura da interpretação. Dessa forma o espectro de uma compulsão à repetição, que parece não levar o princípio de prazer em conta, começa a interrogar e, quiçá abalar o arcabouço teórico da psicanálise fundado sobre a vivência de satisfação que baliza o aparelho psíquico no princípio de prazer. Como consequência, Freud vai propor uma outra configuração para o aparelho psíquico – a segunda tópica. Nesta o tema da vivência de dor, abandonado junto com Projeto de 1895, reaparece com nova roupagem teórica. Nossa proposta no presente momento será de acompanhar o texto freudiano visando mostrar como a repetição ganha sentido em um movimento que parte da clínica para a teoria, para compreendermos os motivos, a partir do conceito de repetição, que levaram à reformulação tópica. II.1. Transferência e resistência Freud declara no artigo “Psicoterapia da Histeria” (1895/1996) que todo sintoma histérico desaparece quando o terapeuta consegue trazer à luz a lembrança do trauma que havia desencadeado essa afecção e, com isso, despertar o afeto que o acompanha. Para esse procedimento ocorrer com êxito, o paciente, auxiliado pelo terapeuta, deveria traduzir o acontecimento traumático em palavras. Nisso consistia a „talking cure‟ ou „chimneysweeping‟4 apropriadamente descrita por Anna O., que teve o caso clínico examinado por Breuer nos “Estudos sobre a histeria”(FREUD & BREUER 1893-95/1996, op. cit.). A finalidade era provocar a catarse, ou seja, a descarga dos afetos patogênicos; para isso era preciso reviver, evocando as lembranças, o momento traumático. Catarse é uma palavra de origem grega que designa um processo envolvendo a purgação das paixões produzidas no espectador enquanto assistia à representação de uma tragédia (ROUDINESCO & PLON, 1997). Freud apropriou-se dessa ideia, no intuito de unir a representação recalcada ao afeto correspondente que não podia ser descarregado. Essa união, promovida pela ajuda do analista, provocava uma vivência afetiva (descarga emocional) que possibilitava a cura, nisto consistia o objetivo da terapia em seus primeiros passos. 4 Respectivamente: cura pela fala e limpeza de chaminé (FREUD & BREUER, 1893-95/1996, p. 65). 47 Contudo, para lograr sucesso nessa empreitada, era necessário superar a resistência do paciente em recordar. As lembranças traumáticas foram recalcadas por causar muito desprazer para o eu; este para se defender exerce uma força de repulsão contra a representação-lembrança aflitiva. Cabe lembrar que a etiologia da neurose, neste período, era baseada em um trauma sexual factual. A representação ligada ao evento traumático é de natureza aflitiva, uma vez que desperta “afetos de vergonha, autocensura e dor psíquica” (FREUD, 1895/1996, op. cit., p. 283). Frente a isso surge a idéia de defesa: a representação traumática é forçada para fora da consciência e da memória, e a toda tentativa de retorno há uma força repulsiva partindo do eu, que originariamente impeliu essa mesma representação para fora de seu domínio e agora se opõe ao seu retorno; essa força representa a resistência em recordar. Para contornar tal dificuldade Freud (Ibid.) desenvolve algumas técnicas como a „pressão na testa‟ e a „associação-livre‟, que funcionam como um truque para desviar a atenção do eu, ansioso por se defender. Para Freud o que aciona a defesa é o rompimento da homeostase do aparato. Um excesso, proveniente de uma representação sexual recalcada, coloca em movimento o processo defensivo, que entra em ação na tentativa de restaurar o equilíbrio, ou seja, manter o nível de excitação o mais baixo possível e constante. Assim, a defesa é fundamental para evitar o desprazer. A partir disso notamos que uma representação recalcada está na base da estrutura neurótica, fato que irá privilegiar o conceito de defesa. Segundo Birman (1991), pensar a neurose como “defesa contra um sofrimento mental é um ponto de partida que conduz à ruptura com o método catártico, inicialmente através do abandono dos procedimentos hipnóticos” (Id., Ibid., p. 171). Contudo a frequente repetição do retorno do reprimido, observada na clínica, ressalta um fracasso do processo defensivo e coloca em cheque a organização de um aparato psíquico baseado em uma tendência à constância. A dificuldade de hipnotizar alguns pacientes e a completa impossibilidade da hipnose em outros, foram alguns dos sinais que levaram Freud à descoberta da resistência, passando a se constituir como o grande obstáculo a ser vencido na busca pela cura. O eu busca defender-se pelo recalcamento das representações desprazerosas, ou seja, torna a representação incômoda fraca (e, com isso, sufoca o afeto correspondente), deslocando a sua soma de excitação para outras representações que tenham uma ligação fortuita com o evento traumático. A despeito disso tanto os traços de memória como o afeto que fazem 48 referência a essa representação continuam a exercer sua influência no psiquismo, uma vez que a formação do sintoma consiste na substituição de uma representação por outra. Configura-se, a partir disso, uma formação de compromisso entre o conteúdo reprimido e o eu, a qual traduz ao mesmo tempo o desejo proibido e também o disfarça sob uma ideia (ou várias) sem relação aparente com tal desejo. Sobre essa questão Mezan (2006) esclarece: se o desejo reprimido receber um investimento aumentando a intensidade das representações pré-conscientes ligadas a ele e tentar forçar passagem pela censura do pré-consciente haverá um contra-investimento de representações opostas a esse desejo. O resultado dessa tensão de forças é a formação de um compromisso entre esses grupos de representações, surgindo daí o sintoma neurótico, o que nos leva a concluir que a análise não é um simples processo de desenterrar representações, como se elas se mantivessem intactas desde sua concepção. Pelo contrário, a partir da Carta 52 (FREUD, 1896/1996, op. cit.) é apresentada a possibilidade de retranscrições dos traços mnêmicos que irão compor tais representações. Essa capacidade de transformação torna o reencontro do afeto com sua respectiva representação mais complicada do que aparenta ser. Diante das dificuldades clínicas, especialmente aquelas decorrentes do fator afetivo em seus atendimentos, Freud (1893-95/1996, op. cit.) passou a considerar que o conteúdo de um desejo reprimido surgia na consciência do paciente sem ser acompanhado da lembrança capaz de situá-lo no passado. O desejo, aparentemente deslocado no tempo, aparecia atrelado à pessoa do terapeuta, sendo este atrelamento designado como uma “falsa ligação”. Este é o primeiro passo para Freud (Ibid.) se deparar com a repetição via transferência, vale acompanhar a descrição: O desejo assim presente foi então (...) ligado a minha pessoa, na qual o paciente estava legitimamente interessado; e como resultado dessa mésalliance – que descrevo como uma falsa ligação – provocouse o mesmo afeto que forçara a paciente muito tempo antes, a repudiar esse desejo proibido. Desde que descobriu isso, tenho podido, todas as vezes que sou pessoalmente envolvido de modo semelhante, presumir que a transferência e uma falsa ligação tornam a acontecer. Curiosamente a paciente volta a ser enganada todas as vezes que isso se repete (Id., Ibid., p. 314). Dessa forma o fator afetivo criou uma dificuldade que deveria ser contornada pelo processo terapêutico, por isso Freud considerou a transferência como mais uma manifestação da resistência; uma falsa ligação que desviava a atenção do analista, atuando no sentido contrário da rememoração, era mais um obstáculo que dificultava as representações recalcadas tornarem-se conscientes, atrapalhando assim o processo analítico. 49 Sobre essa questão Birman (1991, op. cit.) afirma, que o afeto e não o discurso irá revelar uma verdade que o sujeito deveria enunciar através das palavras, mas não pode. O afeto se refere a uma representação ausente, dado que o recalcamento deslocou sua energia para outra representação, conferindo o caráter enigmático do sintoma neurótico, pois no lugar onde deveria haver uma lembrança há uma lacuna. É necessário, para tanto, decifrar qual o motivo desencadeante do esquecimento do paciente; ou seja, é preciso reconstituir a trajetória que levou o sujeito à neurose, entender como a cena manifesta, contada como queixa, encobre a cena original. Nesse sentido Freud (1900/1996, op. cit.) vai configurar a clínica psicanalítica em torno da interpretação, justamente porque é preciso traduzir o material inconsciente, recalcado, para o consciente. A interpretação, por sua vez, era fundada na existência de um enigma; evidenciado clinicamente através das lacunas da memória, para preenchê-las era preciso superar as resistências encontradas no caminho e, assim, chegar às representações barradas solucionando o mistério em torno dos sintomas neuróticos. Para esse procedimento contava-se com a regra da associação-livre, cujo objetivo era desviar a resistência oferecida pelo eu do paciente. Freud acreditava que havia ligações entre as representações, formando cadeias que operam como fios lógicos e conduzem, finalmente, a pontos nodais ou núcleos patogênicos. O recalque é então entendido, conforme ressalta Safouan (1988), no sentido de desviar-se de uma realidade que se tornou intolerável; trata-se de uma forma de negar a própria realidade e substituí-la por uma fantasia. “Os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável – seja no todo ou em parte” (FREUD, 1911/1996, p. 237); neste contexto o eu se utiliza do recalcamento para afastar da consciência eventos que possam despertar desprazer. O objetivo do recalcamento, usado pelo eu como uma forma de defesa, é exorcizar o desprazer que determinada representação trará para si; contudo a repetição, sob a forma do retorno do recalcado, indicará uma falha do processo de recalcar e por isso trará o espectro do desprazer consigo. Parece estranho que um aparelho psíquico organizado para gerenciar e manter-se afastado de grandes quantidades barre uma descarga, contudo é preciso ter presente que se ela fosse realizada causaria mais desprazer do que prazer ao eu. Assim algumas destas formações conservavam seu poder quantitativo, retornando à vida do indivíduo sob a forma de sintomas. Tais formações precisam ser mantidas fora da consciência por não serem compatíveis com as barreiras morais internalizadas pelo sujeito; disto provocar-se-á 50 um conflito, onde os sintomas representam as aspirações sexuais do neurótico impedidas de se concretizarem na realidade. É o preço a pagar pela vida em sociedade, como salienta Freud (1930[1929]) anos depois: “O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (p. 119), de modo que nem todos os desejos podem ser realizados efetivamente. Esse conflito se deve ao fato de Freud (1900/1996, op. cit.) considerar a „vivência de satisfação‟ como originária da estruturação do aparato psíquico. Como consequência a primeira tópica é organizada em torno do desejo sexual recalcado, sendo o objetivo do desejo repetir a vivência original de satisfação, que envolveu um decréscimo da excitação e foi sentido como prazer. Apresentar a vivência de satisfação como fundamento do psiquismo significa um deslocamento da conceitualização do trauma externo – característico da vivência de dor e, principalmente, da teoria da sedução – para uma visão de trauma centrada em um conflito interno motivado pela pulsão sexual. Devido ao desamparo do recém-nascido, característico da espécie humana, e a mediação efetuada pelo cuidador o acento da satisfação da necessidade (fome) é deslocado para a realização de um desejo, constituindo-se assim o fundamento do psiquismo tal como apresentado na primeira tópica. Objetiva-se assim o restabelecer da situação de satisfação obtida por essa mediação. Para Cosentino (1993) o grito de fome do bebê se transforma de uma tentativa desesperada de descarga motora em fonte de comunicação. As expressões do bebê são desprovidas de uma intenção específica, devido a sua imaturidade motora de origem neurológica; entretanto são traduzidas como um sinal de alerta para o cuidador. O desamparo do bebê se constituirá a “fonte primordial de todos os motivos morais” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit., p. 370); isto é, a incapacidade de realizar a ação específica do bebê é sustentada inicialmente por uma tentativa de descarga reflexa que ultrapassa a dimensão motora inscrevendo-se no registro da comunicação, da demanda na qual um outro desejante ao respondê-la insere o bebê na ordem simbólica, marca da condição humana. O bebê, inicialmente, não se distingue do restante do mundo, ele aprende gradativamente a diferenciar-se do mundo externo reagindo a vários estímulos. É devido aos primeiros cuidados que as características do outro se inscrevem no bebê como impressões em partes do seu corpo constituindo assim os primeiros elementos de uma identidade subjetiva (DAVID-MÉNARD, 2000). É a partir da diferenciação: eu – mundo 51 externo, que se dá o primeiro passo para a introdução do princípio de realidade que deverá dominar o desenvolvimento futuro. Dos cuidados que garantem a sobrevivência do bebê temos uma união entre a satisfação da necessidade (a fome, por exemplo) e a realização do desejo. A imagem perceptiva do objeto que proporcionou a satisfação se associa à excitação interna proveniente da necessidade, surgindo daí o protótipo alucinatório, mediante o qual o impulso psíquico procura restabelecer uma identidade perceptiva com o objeto gratificante original. Esse impulso é denominado desejo e, reencontrar esse objeto corresponde à satisfação. Entretanto, o objeto original se constituirá como objeto perdido, fato que detona uma eterna busca para reencontrá-lo. Nesse ponto desejo e repetição se aproximam, pois durante a vida se buscara satisfazer o desejo, que não cessa de brotar, através dos mais variados objetos que possam substituir o objeto original. Este é o sentido apontado por Freud no capítulo VII da Interpretação dos sonhos (1900/1996, op. cit.) ao afirmar que o inconsciente não faz senão desejar. A consequência de um aparato psíquico baseado na vivência de satisfação é que ele não pode fazer outra coisa senão buscar repeti-la, isso se expressa em sua “fome” insaciável (o termo parece apropriado já que a exemplo dado por Freud é baseado na fome do bebê) por reencontrar o objeto que um dia o satisfez. O motor que motiva essa busca são os estímulos pulsionais. Nesta mesma perspectiva David-Ménard (2000, op. cit.) considera que o material repetido em análise é uma “repetição concentrada das experiências de prazer que constituem cada um de nós” (Id., Ibid., p. 19)5; tais experiências permanecem em espera desde a infância em uma tentativa de repetir o movimento que resultou na descarga do acúmulo de estímulos pulsionais. Deste modo, o paciente se comporta de maneira infantil para com seu analista, revelando fragmentos de lembranças de suas primeiras experiências de prazer. Neste sentido, os fragmentos obedecem a leis que regem o processo primário de forma que podem aderir aos restos diurnos e formar uma fantasia de desejo a ser representada nos sonhos ou, formar um compromisso com as forças recalcantes e advir como sintoma. Tendo em vista esses fatores o tratamento não visa uma restauração da verdade no sentido histórico, como uma investigação policial, mas a verdade do desejo do sujeito; em outras palavras, na análise se busca de que modo singular o indivíduo confere sentido a determinadas representações. O psiquismo fundado sobre a vivência de satisfação que 5 Tradução nossa. 52 insere o indivíduo no plano simbólico “tornará viável um tratamento semântico do desejo” (HASKY, 2008, p. 25). É a partir do amarramento do desejo ao universo simbólico que a interpretação do sintoma, assim como dos sonhos, será possível. Para tanto, Freud acreditava que a neurose teria uma lógica interna (fios lógicos): os sintomas aparentemente incoerentes, não haviam sido constituídos ao acaso; essa suposta lógica confirmava a finalidade do processo de análise: levantar o recalcado e com isso chegar até a representação que desencadeou a neurose, preenchendo as lacunas da memória. II.2. A repetição do sexual e a presentificação do desprazer O que se designa como a singularidade do sujeito, apontada pela psicanálise, se dá através da combinação entre „disposição inata‟ (filogênese) e toda sorte de influências que cada pessoa sofre nos primeiros anos de vida; dessa união de fatores o indivíduo consegue um meio particular de conduzir-se na vida erótica: “isto é, nas precondições para enamorar-se (...), nas pulsões que se satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo” (FREUD, 1912/1996, p. 111). Tais fatores irão compor o que se chama de clichês estereotípicos, que são repetidos no curso da vida. Em outros termos, não são repetições que ocorrem apenas no espaço analítico, mas em nossas escolhas amorosas e nas demais ações de nossa vida, dependendo, é claro, das circunstâncias externas nas quais se esteja envolvido e da natureza dos objetos acessíveis. É na esfera da representação que se consuma inicialmente a escolha do objeto: o impulso sexual da criança é dirigido para os pais, seus objetos mais próximos e de quem depende. No posterior repúdio das fantasias provenientes deste tempo, de natureza claramente incestuosa, “consuma-se umas das realizações psíquicas mais significativas, porém mais dolorosas (...): o desligamento da autoridade dos pais” (FREUD, 1905, op. cit., p. 214); contudo isso não significa que essas fantasias perdem a força. As barreiras morais impostas pela exigência civilizatória não permitem outra saída para a realização de tais desejos senão pela fantasia. É no espaço imaginário que as fantasias edipianas voltam a emergir. Por esses motivos o analisando se aferra nessas fixações em que a satisfação lhe foi negada pela realidade, caracterizando modos de sofrimento e colocando o analista no lugar desses objetos que eterniza imageticamente. Como vimos o primeiro objeto sexual da criança é o seio materno; durante o período inicial do desenvolvimento a alimentação não está separada da satisfação sexual 53 proveniente da supressão da fome. Com a emergência da sexualidade oral, nascida da satisfação proporcionada pelo mamar, passa-se ao auto-erotismo, no qual o objeto sexual se encontra no próprio corpo ou parte dele (pé, mão, dedo ou que o alcançar a boca). A organização narcísica surge após certa integração das pulsões parciais e da constituição egóica; essa organização irá diferenciar-se da etapa oral pela unificação das pulsões parciais e do auto-erotismo pela totalidade do objeto. A partir do que foi exposto até aqui podemos notar que há uma substituição do modelo do trauma factual na etiologia das neuroses pelo modelo da pulsão. Assim a partir do artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1996, op. cit.) iniciase uma complexificação da teoria pulsional sendo dado relevo ao fator traumático. Complementando essa idéia Carvalho & Ribeiro (2006) destacam que o modelo freudiano das neuroses, baseado no complexo de Édipo e no recalcamento, é um modelo do trauma que se relaciona diretamente com o pulsional, “por um lado a pulsão contém o traumático em sua própria constituição e, por outro, qualquer situação traumática é necessariamente habitada pela pulsão” (Id., Ibid., p. 3). Conforme veremos a pulsão tem uma característica excessiva desde o início. Ela é uma força que pressiona o indivíduo na direção da descarga, que nem sempre é possível de ser realizada, gerando um conflito entre desejo inconsciente que procura realizar-se e o eu que pode opor-se a esta realização. Queremos marcar, com isso, que a necessidade de descarga deriva diretamente do acúmulo dos estímulos pulsionais. Estamos falando de uma noção de aparelho psíquico essencialmente econômica, pois é o destino dado a essa quantidade que irá se configurar como traumático ou não. É importante lembrar que o desencadeamento da neurose acontecia por uma introversão: parte da libido que podia ser direcionada para objetos da realidade é diminuída; outra parte inconsciente foi, consequentemente, aumentada e alimenta ou se interrompe nas fantasias. É essa libido retirada dos objetos que retorna para o eu, podendo agora reviver as fantasias infantis (Edípicas) do sujeito e passando a serem repetidas como „clichês estereotípicos‟. Tendo em vista esse movimento da libido, em direção aos objetos e de recolhimento ao eu, Freud observou, durante os tratamentos, um investimento libidinal dirigido para o analista; dessa maneira o analista é inserido em uma série psíquica previamente formada pelo paciente. A análise busca rastreá-la e torná-la acessível à consciência com o intuito de dar um destino, diferente do recalcamento, à libido que foi investida nestes clichês. Contudo, as 54 mesmas forças que fizeram a libido regredir se erguerão como resistências ao trabalho analítico, o que leva Freud (1915[1914]/1996) a afirmar que toda interferência na continuação do tratamento é uma expressão da resistência. Freud (Ibid.) observou nos pacientes um frequente sinal de transferência amorosa, que se expressava por uma exagerada docilidade: aceitação das explicações analíticas, uma notável compreensão do que é interpretado, entre outras manifestações; toda essa atitude em relação ao analista se deve ao investimento libidinal do paciente. A irrupção dessa apaixonada ajuda, normalmente, seguida de uma exigência de amor, visava mudar o curso do tratamento; isso era na verdade, em grande parte, trabalho da resistência. O paciente, totalmente absorvido em seu amor, procura desviar-se do tratamento usando o amor sexual como uma forma de resistir a rememorar, essa condição justifica “ainda mais enfaticamente o funcionamento da repressão” (Id. Ibid., p. 180). Freud (Ibid.) trata do amor de transferência, nos artigos sobre técnica, devido ao perigo que ela representa para o analista. Essa preocupação é ilustrada com a história do pastor chamado à casa de um vendedor de seguros ateu, que se encontra à beira da morte, com o intuito convertê-lo. Após um longo tempo fechado no quarto do moribundo o pastor sai do mesmo com um seguro. Da mesma forma Breuer foi seduzido por Anna O. anos antes. Por isso Freud alerta o médico sobre a necessidade de manter a transferência dentro de limites estreitos, caso contrário, pode-se acabar sendo surpreendido pelo amor de transferência. É a manutenção destes limites que poderá tornar a transferência uma aliada do analista. Como lembra Mannonni (1991): “o amor de transferência é amor. Só que inoportunamente” (p. 91), talvez não tão inoportuno já que nos servimos tanto da transferência na clínica, mas ele pode se tornar incômodo se o manejo transferencial não for observado. O amor de transferência denuncia a proximidade que se está do material recalcado. Denuncia, portanto, o desprazer que envolve admitir desejos alimentados pela pulsão sexual. Freud se volta para a questão da „adesividade‟ ou „fixabilidade‟ das impressões da vida sexual infantil para explicar porque algumas pessoas se tornarão neuróticas ou perversas. Em alguns indivíduos as manifestações sexuais prematuras não conseguem fixar-se de maneira tão profunda, enquanto em outras produzem “uma repetição compulsiva e podem prescrever por toda a vida os caminhos da pulsão sexual” (FREUD, 1905/1996, op. cit., p. 228). Ele acredita que essa „adesividade‟ se deva, em grande parte, à educação excessivamente moralista da Europa do século XVIII. 55 Segundo Foucault (1988) a sexualidade se apresenta como questão a partir do século XVII, quando tem início uma época de repressão – nas sociedades burguesas – do discurso de tudo que tocasse no campo do sexual; nesse período falar de sexo se torna uma tarefa muito mais difícil. Tinha-se o intuito de banir o sexual das coisas ditas e “controlar sua livre circulação no discurso (...) extinguir as palavras que o tornam presente de maneira demasiado sensível” (Id., Ibid., p. 21), como se com tais medidas fosse possível dominar as paixões no plano real. Molière (1672/2008) demonstra essa questão magistralmente em “As eruditas” na passagem em que a matrona Filomena sugere uma revisão no “sacrossanto campo da filologia” (Id., Ibid., p. 80) a fim de extirpar todos os vocábulos sujos, imorais e pornográficos; Palavras tais como nauseabunda, deveriam ser substituídas por “nauseanádega, nauseatraseiro” (Id., Ibid., p. 81). Segunda ela o dicionário está cheio de palavras com duplo sentido e claramente com más intenções, que tem como intuito fazer “ruborizar as damas, ofender o pudor e, insultar o recato feminino” (loc. cit.). Atento a essa idéia Freud (1930[1929]/1996, op. cit.) nos diz que a sujeira, seja ela de qualquer espécie, é incompatível com a civilização e não se surpreende do sabão ser padrão real do mundo civilizado. Houve um cerceamento da sexualidade, o que não significa que tudo que tange ao sexo tivesse sido banido da sociedade; pelo contrário, continuava-se falando muito dele, mas de outra maneira, detectada por Freud nos mais variados tipos de sintomas apresentados nos quadros neuróticos. Essa restrição ao sexual deveu-se, de acordo com Foucault (1988, op. cit.), ao advento da “população” como um problema econômico e político para as cidades, uma vez que não se tratava mais de resolver demandas de um ou outro indivíduo, mas de um conjunto deles, tais como: taxa de natalidade, emprego, educação, saúde, alimentação, entre outros tantos. Frente a isso era preciso um discurso orientador sobre a questão da sexualidade que se fizesse presente nos locais frequentados por todos: trabalho, escolas, igreja, universidades, praças, etc. Existiu uma normatização desses espaços criando-se uma série de regulamentos visando evitá-la. Tais regras são uma “maneira prolixa” (Id., Ibid., p. 30) de falar sobre sexo, de forma que seria inexato falar de um silenciamento sobre a sexualidade. O fato de a justiça se ocupar com os chamados crimes de perversão sexual, assim como a medicina, mais especificamente, a psiquiatria conceder um lugar dentro do quadro científico para tais perversos, demonstra que se encontrava em vigor um conjunto de regras e controles sociais que atingiram e moldaram a sexualidade das pessoas (população) de 56 forma definitiva. Portanto a sexualidade não foi exilada, mas centralizada a ponto de se precisar normatizá-la; era preciso conter as moções pulsionais de cada um, caso contrário a vida em conjunto não seria possível “se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária de cada indivíduo, o que equivale a dizer que o homem mais forte decidiria a respeito dos outros no sentido de seu próprio interesse e impulsos primitivos” (FREUD, 1930[1929]/1996, op. cit,. p. 101). Frente a essa normatização a sexualidade passa a ser “objeto não somente de uma intolerância coletiva, mas de uma ação judiciária, de uma intervenção médica, de um atento exame clínico e de toda uma elaboração teórica” (FOUCAULT, 1988, op. cit., p. 33), é nesse ponto que a psicanálise apropria-se dela como estudo. Voltemos à questão da adesividade ou fixação da libido, como explicativa da neurose; a partir da fixação libidinal nos objetos edípicos do período infantil são criados clichês em conformidade com os tipos narcísicos (o que se é, o que se foi, o que se gostaria de ser e a pessoa que outrora fez parte de nosso próprio si-mesmo) e anaclítico (mulher que nutre ou o homem protetor) de escolha amorosa. Nesta perspectiva entendemos que a repetição sobre a qual Freud se refere na primeira tópica é a repetição do sexual. A transferência traz à tona o que se acha oculto na vida erótica do sujeito e quanto mais próximo do material recalcado maior será a força repulsiva empreendida pelo eu para afastar a lembrança da representação desprazeroza. II.3. O caso Dora – uma lição clínica No final do ano de 1900, Freud (1905[1901]/1996) inicia o atendimento de uma jovem chamada Dora. Neste atendimento o fracasso terapêutico culminou com o abandono da paciente no terceiro mês de terapia, trazendo uma contribuição importante para a questão da transferência negativa e da repetição. Com Dora, Freud se depara com a transferência de forma inesperada, uma vez que ultrapassa as resistências as quais o terapeuta deve contornar. Dora atua, vingando-se em Freud como desejaria vingar-se de outra pessoa de sua vida amorosa (Herr K). O fracasso do atendimento de Dora proporciona uma importante lição: a análise passa, necessariamente, pela transferência; constituindo-se como central neste processo. Freud é surpreendido pela transferência na qual Dora atuou uma parte essencial de suas lembranças em vez de reproduzí-las em palavras: “o que não é enunciado pelo discurso da 57 consciência (...) se apresenta de forma deslocada no registro da transferência” (BIRMAN, 1995, p. 32). A transferência mostra que o trabalho analítico não se faz independente das forças libidinais, ou melhor, há um investimento libidinal na figura do analista que é colocado no lugar de outra pessoa da vida do analisando. Esse movimento da libido denota que a produtividade sintomática da neurose durante o tratamento não cessa, mas se exerce na criação de um gênero especial de formações, a maioria de caráter inconsciente, onde o analista aparece na transferência como um sintoma neo-produzido. Funcionando como um polo atrator de representações ligadas ao sintoma, conforme esclarece Cosentino (1993, op. cit.). Freud nomeia esse processo de „neurose de transferência‟6; mas afinal o que é uma transferência? Nas palavras do próprio Freud (1905[1901]/1996, op. cit.): São reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertarse e tornar-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. (...)não como algo do passado, mas como vínculo atual com a pessoa do médico (p. 111). Partindo desta citação podemos observar que na transferência não está em jogo a recordação, mas a revivência das „moções e fantasias‟, ou seja, é ao desejo sexual recalcado que Freud está se referindo. É o que leva Freud a afirmar que os fenômenos patológicos repetidos através da transferência são “a atividade sexual do doente” (Id., ibid., p.110). O sintoma significa a realização de uma fantasia alimentada pelas pulsões sexuais. Na transferência são reeditados conteúdos através do vínculo libidinal projetado sobre o analista; esse é o modelo do acting out: a atuação supõe um conteúdo psíquico que se põe em cena, nela há uma mensagem, portanto, dirigida para um outro; seja o analista ou qualquer pessoa da vida do paciente com quem ele estabeleça algum laço libidinal. Esse material é reproduzido “não como lembrança, mas como ação” (FREUD, 1914/1996, op. cit., p. 165). Nesta mensagem encontramos a expectativa, da parte de quem executa a ação, de ser reconhecido como sujeito desejante, mesmo que essa ação e o desejo sejam inconscientes. Aqui se encaixa o „ato de vingança‟ de Dora que escapou à percepção de Freud. Nessa perspectiva a repetição, via transferência, é da ordem da ação, no mesmo sentido do ataque histérico e, em ambos há um claro endereçamento para o outro. A este respeito remetemos à Carta 52 (Id., 1896/1996, op. cit.) na qual Freud afirma que o ataque histérico não é uma descarga, mas uma ação, e como tal irá conservar a característica de toda ação: um modo de reproduzir o prazer anterior (no caso da experiência primária de 6 No artigo Recordar, repetir e elaborar (1914/1996). 58 satisfação). O endereçamento que a repetição traz consigo tem “como alvo outra pessoa – mas, na sua maior parte, uma outra pessoa pré-histórica, inesquecível, que nunca é igualada” (Id., Ibid., p. 287), posteriormente. Cremos que Freud está se referindo ao modelo na vivência de satisfação. A ação histérica encerra a narrativa de si que “se produzia a partir de um corpo libidinizado, em última instância, de um corpo atravessado pela linguagem” (HERZOG, 2011, p. 1). O ataque histérico aparece como a atuação de uma fantasia, que durante o tratamento causa um curto-circuito na palavra. Para melhor exemplificar vamos retomar o exemplo de Elisabeth Von R. (FREUD & BREUER, 1893-95/1996, op. cit.) que tinha uma paralisia na perna direita, esse sintoma se manifestava no lugar de uma narrativa das cenas eróticas fantasiadas. A esse respeito David-Ménard (2000, op. cit.) afirma que o ato na histeria pode ser definido por um investimento imaginário no corpo. Freud (1915/2006, op. cit.) já havia chamado a atenção para a erogeneidade do corpo como um todo: a capacidade de substituir o registro anátomo-fisiológico pelo imaginário. De forma que qualquer parte do corpo pode ser investida pela pulsão sexual. Nesse sentido a perna paralisada de Elisabeth é transformada no lugar sobre o qual o prazer sexual é negado, justamente porque essa descarga (o gozo) equivale à realização de algo que foi repudiado. Há, para tanto, uma fusão “do corpo do sujeito com o real do objeto desejado. Visto que este investimento duplo, representativo e motor, existe em toda percepção” (DAVID-MÉNARD, 2000, op. cit., p. 99). Conforme o exemplo do caso de Elisabeth Von R. citado acima, podemos observar que a histérica apresenta o seu desejo como se ele estivesse concretamente na presença do analista. O sintoma conversivo presentifica o objeto do desejo, em uma linguagem imagético-corporal fantástica, no lugar de uma narrativa encarregada de representar o objeto do seu desejo, a histérica „fala ou narra‟ seu desejo através do corpo. A partir daí, conforme assinala Herzog (2011), podemos discernir uma linguagem verbal de uma linguagem sensível. É importante ressaltar que essas formas de linguagem não se opõem – embora a Darstellung esteja voltada mais para a questão da figurabilidade, mantém com a Vorstellung uma relação de derivação. A histérica tenta “advir, por um pensamento plástico e figurativo, a presença do objeto de seu desejo e um gozo no qual nada haverá a ser representado, isto é, reconhecido como ausente” (DAVID-MÉNARD, 2000, op. cit., p.102). Há uma relação com a imagem, mais propriamente com a figurabilidade – no mesmo sentido como os pensamentos dos 59 sonhos sofrem uma transformação que os torna capazes de serem representados em imagens (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001). Dessa forma o sintoma histérico se apresenta como uma metáfora da fusão entre o desejo e o objeto do desejo cristalizado em um sintoma corporal. O sintoma corporal é a cristalização do desejo “como se, de repente, as palavras cobrissem a coisa, um pedaço de corpo, cuja alteridade em relação às palavras que o designam não aparecesse mais” (DAVID-MÉNARD, 2000, op. cit., p. 105). Esses sintomas se repetem com a esperança de realizar o gozo que lhe escapou na relação edipiana. Os ataques histéricos são fantasias traduzidas para a esfera motora, “projetadas sobre a motilidade e representadas por meio de mímica” (FREUD, 1909[1908]/1996). Tais fantasias são inconscientes, contudo são da mesma natureza das fantasias que compõem os sonhos. O sonho pode, então, substituir um ataque e explicá-lo, já que ambos compartilham a mesma fantasia. Tal fantasia sofre distorções idênticas as que tornam o sonho praticamente ininteligível, assim o ataque parece tão sem sentido quanto os sonhos. É justamente por esse fator comum que o ataque pode ser submetido à mesma interpretação realizada com os sonhos. Dentro desta perspectiva Freud(1914/1996, op. cit.) nos alerta ser preciso lutar para manter na esfera psíquica todos os impulsos que o paciente gostaria de dirigir para a esfera motora. A análise deve se beneficiar do material recalcado que se apresenta pela atuação. É neste contexto que a transferência passa a ser apresentada como inevitável no curso do tratamento substituindo algo que deveria ser rememorado: “o paciente não diz que recorda que costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez disso, comporta-se dessa maneira para com o médico” (Id., Ibid., p.165). A repetição aparece articulada à clínica e vinculada ao conceito de transferência, e toca na questão da temporalidade, uma vez que passa a ser vista como reveladora de um passado que se repete sob peso do afeto (GODFRIND, 1994). O paciente revive toda uma série de experiências, mas não como referidas ao passado e sim ao presente, relacionando-as à pessoa do analista. O não escutar, ou não perceber, a encenação de Dora trouxe um problema tanto clínico, quanto teórico para Freud. É nesse obstáculo colocado pela repetição, que Freud vê a transferência como uma possível aliada, desde que o analista realize duas tarefas: “conseguir detectá-la em seu surgimento e ser capaz de traduzi-la para o paciente” (HASKY, 2008, op. cit., p.32). Duas tarefas fundamentais, pois a cena transferencial está, por um lado, em oposição ao trabalho de análise, que é fornecer material para ser 60 interpretado, o que denota a transferência como uma forma de resistência; e por outro, como fonte de cura cabendo ao analista saber manejá-la; é nessa habilidade que reside “o principal instrumento para transformar a repetição num motivo para recordar” (FREUD, 1914/1996, op. cit., p. 169). Portanto, as proposições apresentadas até aqui corroboram a idéia que a repetição via transferência é a repetição do sexual. O recalcado que retorna é uma manifestação das moções sexuais barradas por gerarem uma tensão entre o consciente e o inconsciente, é por isso que Freud (1905/1996, op. cit.) afirma que “os sintomas são a atividade sexual dos neuróticos” (p. 155), ou seja, os sintomas neuróticos são baseados nas exigências das pulsões sexuais e do protesto do eu em relação a elas. Inicialmente pontuamos que a psicanálise foi fundada na arte da interpretação, passando a uma análise e combate das resistências e “desembocando, finalmente, na questão da repetição. Essa se tornou a matéria-prima, por excelência do ato de psicanalisar” (BIRMAN, 1995, op. cit., p. 36). A repetição serve à análise mediante um manejo eficaz da transferência, é essa „mise en scène‟ que permite trazer à tona o material reprimido, abrindo a possibilidade de um novo confronto entre o eu e a libido, mas desta vez mediado pelo analista. Assim, “trazendo a libido de volta da fantasia para a realidade, a transferência fortalece a pulsão sexual, permitindo-lhes vencer as inibições que a condenavam à prisão perpétua do infantilismo e imaturidade” (FREUD, 1912, op. cit., p.243). II.4. A Repetição e a Rememoração Em “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914/1996, op. cit.) é, finalmente, destacada a presença no psiquismo de uma repetição, apontada como retorno do recalcado, indicando, consequentemente, a volta de situações que não envolvem prazer para o eu. Antes de prosseguir, cabe marcar uma precisão quanto ao conceito de recalque: a satisfação pulsional é sempre prazerosa, porque significa uma baixa da tensão energética no aparato (descarga); contudo ela pode ser incompatível com outras exigências, daí se faz necessário submeter o representante pulsional ao recalque (barrando sua descarga), pois acabaria por gerar prazer em um lugar e desprazer em outro. Nessa lógica a condição para que ocorra o recalcamento é que “a força que causa o desprazer se torne mais poderosa do 61 que aquela que produz, a partir da satisfação pulsional, o prazer” (Id., 1915/2006, op. cit., p. 178). Assim durante o curso das análises são repetidas situações aflitivas, como lembra Mezan (2006): o paciente repete um rol de desgraças, desde a situação edipiana que sucumbe aos duros golpes da realidade, inaugurando a perda de amor exclusiva dos pais com o nascimento de um irmão, até as exigências da educação e da autoridade disciplinadora. Freud (1914/1996, op. cit.) alega nesta linha de pensamento, que se repete protótipos infantis, e “tudo que já avançou a partir das fontes do reprimido para sua personalidade manifesta – suas inibições, atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter” (p. 165). Tendo em vista essa questão M‟Uzan (1984) ressalta que o sujeito repete escolhas infelizes, que sem dúvida escapam à sua vontade. “Transfere com teimosia seu passado, talvez com a obscura esperança de permitir a seus conflitos internos encontrar o melhor desfecho possível” (Id., Ibid., p.133)7. Não que esse desfecho aponte para uma positividade, mas no sentido da realização do desejo que na maioria das vezes é incompatível com o eu. O neurótico, portanto, repete traços infantis concernentes à rivalidade com o pai que detém os direitos sexuais sobre a mãe; é na fase do complexo de Édipo que a criança sofre por não dispor de meios reais para realizar suas fantasias. Todos esses desejos incestuosos são recalcados posteriormente, mas ameaçam retornar no momento em que o indivíduo está apto sexualmente. Nesse sentido a repetição das fantasias edípicas é um fantasma do passado que atormenta o indivíduo no presente. Assim, sob ameaça do retorno do recalcado, se esconde uma verdade duplamente incômoda: “porque redobram a estrutura inicial do Édipo, e este, por sua vez, repete o ato do assassínio primitivo” (ClémentBackés, 1971, p. 223). Freud (1909[1908]/1996) criou a expressão „romance familiar‟ para designar fantasias fundamentadas no complexo de Édipo. Constatou a presença destas fantasias, tecidas como uma espécie de romance mítico, especialmente nos neuróticos. Dentro dessa discussão se encaixa o mito freudiano da gênese da humanidade que traz uma contribuição importante à questão da repetição e esclarecimentos acerca do Complexo de Édipo. Segundo esse mito (Id., 1912[1912-13]/1996) o pai da horda primeva era um déspota absoluto, possuía todas as mulheres do bando e, não hesitava em matar ou expulsar os 7 Tradução nossa. 62 filhos, considerados rivais. Porém, os filhos, um dia, uniram-se e mataram o pai devorando-o em seguida. Incorporar ou devorar o pai se deve ao fato dele ser objeto tanto de ódio, devido às restrições e castigos impostos, quanto de amor (e ideal) pela sua onipotência. Devido a essa ambivalência de sentimentos surge o remorso, como consequência da passagem ao ato (assassinato). O remorso leva os irmãos a se suportarem mutuamente, unindo-se em um clã, regido pelas prescrições da lei totêmica, que tem a finalidade de impedir a repetição de um ato agressivo semelhante ao que foi dirigido ao pai. Do perigo representado pela passagem ao ato inicia-se um cerceamento dos impulsos pulsionais para que a vida em conjunto seja garantida. De acordo com Clément-Backés (1971, op. cit.), depois da narração freudiana sobre a origem da vida em grupo não há como deixar de usar uma linguagem mítica sobre as origens do indivíduo: “Freud introduz uma ruptura na continuidade temporal e na clássica lógica histórica do antes e do depois; na origem havia o „já‟(ato). E a repetição é originária. É neste ponto que devemos efetuar a passagem desse esquema coletivo à aplicação individual” (Id., Ibid., p. 222). Sobre isso no artigo Psicologia das massas e a análise do ego, Freud (1921/1996) afirma que o homem primitivo sobrevive potencialmente em cada indivíduo, as prescrições totêmicas são a garantia da não-repetição da passagem ao ato original, porque a “horda primeva pode mais uma vez surgir de qualquer reunião fortuita” (Id., Ibid., p. 134); disso podemos extrair que a “psicologia individual (...) deve ser tão antiga quanto a psicologia de grupo” (loc. cit.). Partindo dessas indicações notamos que Freud une o destino individual à repetição de um destino coletivo anterior. A neurose repete um ato praticado coletivamente, mas repete-o imaginariamente em cada indivíduo. Representando um conflito fundamental na sociedade ocidental civilizada, o mito de Édipo encontra-se no seio da experiência analítica, pois é através da rivalidade, marcada pela ambivalência com o pai que o sujeito é ligado a um valor simbólico essencial: a lei. Esta imagem do pai, como representante da lei, incide sobre a figura do analista. Quando o analista é tomado como objeto de amor ou ódio, na neurose de transferência, passa a ser inserido na atualização de clichês, indicando uma forma do retorno do recalcado. Desta forma a transferência pode ser compreendida como um fragmento de repetição. Donnet (1982) destaca que esta fórmula resume a relação circular que define a transferência como um fragmento de repetição, circunscrito à pessoa do médico, e a repetição como uma transferência massiva onde a “temporalidade (do passado 63 sobre o presente) se soma ao risco de um esfacelamento de limites entre dentro e fora da sessão, vindo a redobrar a exteriorização na sessão do espaço psíquico do analisante” (Id., Ibid., p. 962)8. É na arte de interpretar e no manejo do material repetido que consiste a manutenção destes limites. Ao analista, cabe a tarefa de empenhar-se em conduzir para o âmbito da recordação aquilo que se esforça para emergir no campo da repetição. Com a finalidade de levantar o material recalcado é necessário que se force ao máximo a recordação e permita, ao paciente, o mínimo de repetição. A repetição é definida como contrária ao saber, ela é da ordem do „acting out‟; encontrando-se no lugar da palavra e, por isso “evoca a imagem de uma forma de resistência oposta à progressão da análise” (GODFRIND, 1994, op. cit., p. 501). O paciente, na verdade, repete sob as condições da resistência: é ela que determina a sequência do material que deve ser repetido. A questão da resistência traz um problema, pois quem resiste é o eu, mas essa resistência parece ser inconsciente; problema que será respondido apenas em 1923 no artigo O Ego e o Id. Entretanto, essa passagem coloca, definitivamente, rememoração e repetição em lados opostos, sendo que o trabalho analítico deve tentar transformar o que é repetido em um motivo para recordar, (...) é no manejo da transferência que encontramos o principal meio de barrar a repetição e transformála numa razão para lembrar. Tomamos essa compulsão anódina, ou mesmo útil, limitando seus direitos, não permitindo que ela subsista num domínio circunscrito. Facultamos seu acesso à transferência, essa espécie de arena onde lhe será permitido manifestar-se com liberdade quase completa, e onde lhe pediremos que nos revele tudo o que se dissimula de patogênico no psiquismo do sujeito (FREUD , 1914/1996, op. cit., p. 169). Freud começa a notar a função terapêutica da transferência e como o analista poderá servir-se dela como o principal instrumento de cura no processo analítico. A análise deve se beneficiar do material recalcado, “criando uma região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para outra é efetuada” (Id., ibid., p. 170). A neurose de transferência é essa „região intermediária‟ onde a batalha é travada contra as forças da resistência. O que parece prejudicial na repetição é o fato do paciente ignorar todas as possíveis relações entre os fragmentos repetidos; todavia essa é a especificidade de toda repetição. Esses fragmentos estão isolados (recalcados) da história de vida do indivíduo porque são motivo de desprazer para o eu, por isso o paciente não consegue dar um conteúdo semântico adequado ou uma localização espacial dentro de sua história particular. O analista, partindo do que surgiu como material na análise, através do manejo 8 Tradução nossa. 64 transferencial, reúne vários desses fragmentos em um todo organizado, construindo um trabalho interpretativo e, com isso, possibilitando a rememoração. Nesse sentido Prata (1992, op. cit.) observa que a elaboração não trabalha necessariamente em oposição à repetição. A elaboração seria uma repetição modificada pelo trabalho interpretativo, ou seja, uma perlaboração. Perlaborar é um processo, vivido em análise, pelo qual o paciente supera as resistências promovidas durante esse processo e consegue integrar certos elementos recalcados, livrando-se do mecanismo da repetição. O que parece ser o grande desafio do trabalho analítico é promover essa articulação, pois a repetição está, por um lado, ligada às resistências do tratamento e, por outro lado, é a via que permite acesso ao material inconsciente. O caso Dora (FREUD, 1901[1905]/1996, op. cit.), sem dúvidas, aponta o impacto que a repetição causou na clínica psicanalítica. Contudo só no artigo “Recordar, repetir e elaborar” (Id., 1914/1996, op. cit.) Freud desenvolve esse tema e reconhece que rememorar em atos não é igual a rememorar em palavras. A propósito disso, Assoun (1994) argumenta que o tratamento confronta justamente esse poder da repetição, no sentido de contrariar e „demonizar‟ o processo de rememoração. Nestes termos, quanto mais o paciente repete, menos ele pode recordar. Frente a estas observações uma pergunta se coloca: como o analista irá contrapor a rememoração de palavras à de atos? Segundo Freud através do manejo transferencial seria possível empregar “algo que o paciente deseja descarregar em atos seja utilizado através do trabalho do recordar” (FREUD, 1914/1996, op. cit., p. 166). Contudo a discussão vai além, porque há certos fenômenos que não parecem ligados a uma memória representacional. Tais fenômenos indicam um limite do processo analítico centrado na interpretação de sintomas, uma vez que os sintomas se configuram como a expressão de representações pulsionais barradas de efetuar a descarga via a consciência. Somado a isso a presença de uma resistência inconsciente no eu começa a colocar problemas na concepção de aparelho psíquico proposta por Freud. Vale lembrar que o recalque é o fundamento no qual está assentado toda argumentação teórica freudiana sobre as psiconeuroses na primeira tópica. A indicação de algo que esteja fora desse contexto amplia a visão de um aparato psíquico funcionando de acordo com o princípio de prazer. II.5. A Pulsão e a repetição 65 Esse problema começa a ser discutido no artigo O Inconsciente (Id., 1915/1996) a respeito da representação-coisa e representação-palavra; a passagem do material inconsciente para o consciente implica que a representação-palavra seja acrescida à representação-coisa. A representação mental de um objeto passa a corresponder a conjugação dessas duas formas de representações, ou seja, “as representações de objeto tentam referir-se àquilo que se torna objeto para a consciência” (ARNÃO, 2008, p. 198). Ao tratar dessa questão estamos entrando no campo da pulsão. Toda a pulsão é representada pelo chamado representante – representação, eles são seus agentes representantes e não a própria pulsão. Creio ser necessário, neste ponto, uma maior precisão acerca da terminologia utilizada por Freud a esse respeito. Para isso nos apoiamos em Hanns (1999) que fez um rigoroso estudo sobre a teoria pulsional, a partir da língua alemã, na obra freudiana. Freud ao discutir sobre pulsão e sua circulação na esfera psíquica como representação, explica Hanns (Ibid.), se refere a três tipos de representações: 1º – Refere-se ao verbo „Darstellen‟, que significa: “dar uma forma captável e mostrar” (Id., Ibid., p. 79). Tem a conotação de produzir uma imagem para dar sentido a algo, o que envolve a possibilidade de uma condensação de várias idéias em uma imagem, como na representação pela figurabilidade. 2º – Refere-se a „Vertretung‟, tendo o sentido de estar no lugar de outrem, como se fosse delegado a representar alguém ou alguma coisa. 3º – Refere-se a „Vorstellung‟, significando reativar internamente uma imagem já disponível, a pulsão aparece na psique sob a forma de “representação – Vorstellung (idéia, imagem) de sensações (...); É na forma de „Bild‟ (imagem) que a pulsão emana da fisiologia pulsional. A pulsão provoca uma excitação cortical que é percebida como fenômeno psíquico de imagem e afeto” (Id., Ibid., p. 82). Portanto, a pulsão é representada por meio de “representações internas, reproduções mentais, são imagens guardadas na memória que reproduzem objetos ou ações as quais a pulsão se liga” (Id., ibid., p. 83). Tais representações formam uma malha, como a rede neuronal do Projeto de 1895, por exemplo, de ideias e imagens que podem se relacionar. Esse conjunto de ideias e imagens formam a memória, que dispõe de informações sobre os afetos (desprazer /prazer) produzidos por cada estímulo vivenciado. É essa trama de representações que compõe o aparelho psíquico, “matriz através da qual o sujeito decodifica os estímulos internos e externos que lhe chega” (Id., ibid., p. 84). 66 O aparelho psíquico é regido por dois tipos diferentes de processos: primário e secundário. Imagens e afetos fazem parte do primeiro e, as palavras do segundo. No processo primário a fonte pulsional, somática, envia estímulos que se manifestam no sujeito e coincidem com vivências afetivas (prazer e desprazer) associando-se a certas imagens fugidias; lembremos como exemplo, da vivência de satisfação, nela o bebê associa a sensação de satisfação à imagem do seio. Portanto, no processo primário o estímulo pulsional se liga a um esboço de imagem que é qualificada afetivamente (do seio que aplacou a fome). Esse esboço de imagem será ativado quando um novo estímulo surgir, contudo, ela não coincidirá com a primeira (porque os ângulos referentes à visão do seio não serão iguais), disto formar-se-á uma cadeia de representações que se conectam à imagem do objeto gratificante, formando a representação – coisa. O processo primário se caracteriza por uma disposição imediata a sair do estado de desprazer, proveniente do acúmulo de excitações pulsionais, para isso tende a uma descarga através de ações motoras e responde ao princípio de prazer. No geral essas ações tendem a falhar na tarefa de obter a satisfação pulsional, dado que é preciso uma complexificação da ação para satisfazê-las. Entretanto o processo primário procura descarregar a excitação baseado em algumas experiências, contando para isso com uma rede de imagens difusas e sensações afetivas usadas para o organismo não sucumbir à invasão pulsional. É a partir do processo secundário que as pulsões assumem formas mais estáveis no campo da representação, sendo fixadas a uma imagem específica (correspondendo à ideia de um objeto externo), e podendo advir em palavras. O processo secundário permitirá, devido a capacidade de ligação, certo acúmulo energético. Nele há uma maior complexidade nos fatores que regem os estímulos pulsionais, principalmente a aptidão de reter e ligar a energia destes estímulos e direcioná-los para uma ação específica. Tal habilidade possibilitará ultrapassar as relações entre imagens fugidias e afetos do processo primário, para realizar operações envolvendo o pensamento, simbolização, imaginação, atenção, memória entre outras; com a finalidade de melhor conduzir as ações no mundo e efetuar a descarga de uma maneira mais eficiente, levando em conta as especificidades do meio em que se vive. Nesse ponto a realidade tem um papel importante nas atividades do processo secundário, já no primário ela não é levada em conta, deseja-se apenas a satisfação a qualquer custo (HANNS, Id.). 67 Ligar o estímulo pulsional a uma representação permite que um objeto visado como veículo de satisfação possa ser identificado no mundo externo e, também possa ser mentalmente fantasiado (imaginação) caso o objeto se torne impossível de atingir. Isto denota uma maior flexibilidade e tolerância em relação ao acúmulo de estímulos pulsionais, que pressionam (Drang) na direção da descarga. “Deste modo, as imagens/representações (Vorstellungen) que ficam estocadas na psique são representantes (Vertreter) tanto das pulsões e dos afetos a ela associados, como também estas imagens são representantes (Vertreter) dos objetos externos” (Id., Ibid., p. 97). Quando o recalque rejeita uma representação ele recusa a tradução da representação em palavras, “pois essas palavras devem continuar associadas ao objeto. É a representação não revestida de palavras ou o ato psíquico que não esteja sobreinvestido que permanecerá como material recalcado no Ics” (FREUD, 1915/2006, p. 49). Dessa forma Freud procura mostrar como a repetição vai sendo circunscrita, mediante o trabalho analítico, no plano da simbolização; ou seja, é preciso trazer para a esfera verbal o que o paciente insiste em apresentar em atos, nisso consiste manejar o material disposto em análise. Essas pontuações parecem iluminar, segundo Assoun (1994, op. cit.), esse momento dramático onde o analista, tomado na torrente da repetição extrai sua energia do cenário montado pelo paciente, em vez de deixar represar novamente o que é atuado, pois “ter-seia trazido o reprimido à consciência, apenas para reprimi-lo mais uma vez” (FREUD, 1915/2006, op. cit., p. 181). O analista deixa-se levar por esse fluxo, agora contido e direcionado na arena transferencial para chegar até o conteúdo recalcado e possibilitar um trabalho de perlaboração do paciente. Contudo a resistência acabará por revelar a ambivalência de sentimentos relativos ao mesmo objeto, traduzidos através da transferência positiva e negativa, tornando o processo analítico tortuoso. Somado a essa dificuldade, temos as análises prolongadas que não se resolviam, casos nos quais uma resistência feroz paralisava o processo. Havia também casos nos quais a repetição de um mesmo destino trágico se impunha e interrompia o tratamento. Essas dificuldades levam Freud a abandonar sua confiança excessiva no recordar, “se uma pessoa se lembra de um fato através da memória, ele geralmente está dissociado para evitar a repetição de sua natureza traumática” (GREEN, 2007, p.134). Essa formulação aponta, conforme ressalta Birman (2009), um limite ao método interpretativo, justamente porque a repetição nesses casos difíceis se mostra muito mais como da ordem de uma compulsão, excedendo a questão do retorno do recalcado. Portanto, 68 seria como uma espécie de compulsão à repetição “que os limites do inconsciente e do deciframento seriam então evidenciados, pelas impossibilidades reais que foram encontradas para a rememoração na experiência psicanalítica” (Id., Ibid., p. 122-23). Mesmo diante dessas adversidades Freud (1914/1996, op. cit.) procura, ainda, salvaguardar a teoria centrada no modelo da circulação das representações no aparelho psíquico. Entretanto, como nomeia Assoun (1994, op. cit.), frente a esse “furor repetitandi” (p. 350), perigo mortal para a rememoração, o pensamento freudiano volta-se, cada vez mais, para a questão que envolve a intensidade pulsional. A idéia de uma força pulsional como „Drang‟ (pressão), significa que a pulsão é pensada e equiparada a uma tensão. O acúmulo do estímulo pulsional produz essa „Drang‟, cuja tendência é causar incômodo e desprazer. Produzindo um estado de tensão que pressiona no sentido da descarga, é sob esta forma de pressão que a pulsão toma uma forma psíquica. A partir do artigo “Pulsões e seus destinos” (1915/2006, op. cit.), Freud começa a complexificar a idéia de conflito psíquico entendido como embate entre instâncias psíquicas, priorizando o próprio advento do aparato psíquico. A principal característica da pulsão é ser uma força constante, uma „Konstant Kraft‟. Isso exige um incessante investimento para que se domine seu impacto sobre o psiquismo. Para tanto é necessário empreender um esforço defensivo contra essa força, é o que Freud (Ibid.) nos indica: “abordemos os destinos das pulsões relacionando-os com as forças motivacionais que se contrapõem ao avanço das pulsões, o que nos permite tratar tais destinos como se fossem modos de defesa contra as pulsões” (p. 152). Essa força constante impõe ao indivíduo que seja dado destinos para apaziguá-la. Portanto, o artigo “Pulsões e seus destinos” (Id., Ibid.) encerra uma passagem teórica fundamental do discurso freudiano, que o levará inevitavelmente a reorganizar a primeira teoria das pulsões em uma segunda tópica. Essa revisão foi devida, principalmente, a razões de ordem clínica, motivadas pelo fenômeno da repetição. O fato de na segunda tópica o polo pulsional estar presente no registro do Id corrobora essa visão (assim como o eu será uma parte modificada do Id) totalmente diferente da primeira teoria das pulsões, a qual se centrava no modelo da circulação das representações e das intensidades estarem na exterioridade do aparato psíquico (Birman, 1999, op. cit.). Levando em conta esse novo aspecto relacionado à pulsão que se apresenta no horizonte de 1915, notamos uma tendência do pulsional à repetição. Essa tendência aponta para uma obediência do eu ao circuito pulsional que em algumas ocasiões, como nas 69 compulsões, parece não levar em conta o princípio de prazer. A repetição relacionada às marcas psíquicas já apontava um tipo de repetição que não inclui a possibilidade de um resgate da narrativa verbal, o que indica outra via de funcionamento do aparelho psíquico fora do princípio de prazer. O traumático deixa de ser um privilégio de algo vindo do exterior, local das grandes quantidades, e passa a incluir um perigo interior, também, referido ao excesso pulsional. Para que o aparelho psíquico possa se defender de algo interno esse excesso ganhará características de exterioridade, projetando-os sobre os objetos, como no jogo do Fort-Da (FREUD, 1920/2006, op. cit) e nos rituais compulsivos característicos da neurose obsessiva, conforme vamos desenvolver no próximo tópico. II.6. Passagem ao ato e os limites do princípio de prazer A neurose obsessiva (Zwangsneurose) chama atenção por acarretar uma imperiosa compulsão. Assoun (1994, op. cit.) levanta o problema central da noção de compulsão – Zwang (coação irresistível, necessidade, obrigação constrangimento, compulsão). Essa palavra na língua alemã significa violência, tanto corporal quanto psíquica, caracterizando ainda uma necessidade ou o exercício de uma pressão sobre algo ou alguém. Essa característica confere ao termo um caráter avassalador que se impõe à vontade do sujeito e que ele não têm forças para evitar: “isto implica enfim – para não sair do campo semântico usual do termo – a idéia de um impulso poderoso, o que liga a noção de pulsão” (Id., Ibid., p. 337). Como vimos a pulsão é caracterizada como uma força constante, insistente e imperiosa. Freud (1907/1996), no artigo “Atos obsessivos e práticas religiosas”, ao estudar os rituais obsessivos, observa que o neurótico obsessivo necessita cumprir o ato ritual, pois qualquer tentativa de se desviar desta compulsão acarreta uma crise de angústia insuportável. Queremos marcar aqui o caráter imperativo, no sentido de uma obrigação em realizar determinados rituais sob a pena de ser punido com uma crise de angústia. Os rituais surgem para o obsessivo sob a forma de uma compulsão funcionando como “um ato de defesa ou de segurança, uma medida protetora” (Id., Ibid., p. 114). A partir disso Freud (Ibid.) ressalta que o obsessivo sofre de compulsões e proibições (nos rituais há uma tendência em seguir determinadas coordenadas em detrimento de outras) e se comporta como estando dominado por um sentimento de culpa, do qual nada sabe. Tal sentimento de culpa origina-se de antigos eventos edípicos, uma vez que neste tipo de neurose “há 70 sempre a repressão de uma moção pulsional (um componente da pulsão sexual) presente na constituição do sujeito e que pode expressar-se durante algum tempo em sua infância, sucumbindo posteriormente à repressão” (loc. cit.). Nesse sentido Assoun (1994, op. cit.) afirma que estamos no cerne da Zwang em ato: “uma defesa contra a tentação (de um perigo passado ligado a uma satisfação ilícita) e uma medida de proteção contra o risco futuro de uma punição ou de uma desgraça” (p. 342) 9. A representação pulsional reprimida é sentida pelo obsessivo como uma tentação, decorrendo daí a ansiedade em adquirir controle sobre o futuro. O recalque na neurose obsessiva só tem êxito parcial, pois através dos rituais interminavelmente atualizados notamos a constante pressão do pulsional. A compulsão obsessiva é produzida como defesa contra o perigo de castração, mais especificamente contra um pai castrador, que em algum momento simbolizou um perigo real para o sujeito; esse temor é o resultado dos desejos referentes ao tempo edípico. Eliade (1969) em seu ensaio sobre as concepções fundamentais das sociedades arcaicas realiza um estudo aprofundado sobre os mitos do eterno retorno, e traz um exemplo que nos pode ser útil no entendimento dos rituais obsessivos. No antigo Oriente, o povo da Babilônia realizava anualmente, com a máxima seriedade, rituais sagrados em homenagem às divindades agrárias, eles acreditavam que a destruição de uma colheita, o saque das plantações, ou qualquer calamidade que se abatesse sobre a comunidade decorria de alguma falha no ritual (seja uma falha comunitária ou de apenas um indivíduo). Como nos rituais obsessivos toda falha em sua realização era punida com severos sortilégios. Os rituais comportam também, segundo Eliade (Ibid.), uma conotação de culpabilidade, expressa por uma falha (a mínima que seja), que precisa ser expiada repetidamente através de rituais para apaziguar a fúria de uma divindade. Fato que demonstra uma necessidade do homem (não só do primitivo, mas o neurótico obsessivo se encaixa aqui) em se libertar de uma lembrança (edípica no caso das neuroses) de uma falta, que precisa ser repetidamente expiada e mantida controlada através dos rituais. Nessa acepção Freud (1914/1996, op. cit.) afirma que o paciente age de maneira agressiva com o analista no lugar de lembrar-se de desejos infantis referidos ao Édipo. Tal fato remete a uma culpabilidade primitiva referente ao desejo ambivalente de tomar o lugar do pai, detentor dos direitos sexuais sobre a mãe e ser punido por esse desejo. O „Agierem‟ é uma teatralização, uma representação, destes conflitos diante do analista. Para isso o 9 Tradução nossa. 71 paciente cria uma narrativa onde encena o seu desejo; o „Agierem‟, conforme pontua Assoun (1985), possibilitará, mediante o auxílio do analista, o „Abreagierem‟. Essa encenação agida contém um gérmen de histericização da relação analítica, descrito por Freud como o amor de transferência. É por meio do manejo dessa cena que se abre ao analista a possibilidade de solucionar os conflitos em jogo. Particularmente na neurose obsessiva o pensamento pode se constituir como um substituto do ato, pensar sobre algo equivale à ação real, para isso é preciso uma série de rituais de expiação e evitação. Por esse motivo, explica Ferraz (2005), se o pensamento pode ser tomado como substituto do ato, o obsessivo é o tipo de paciente que não atua, ou atua muito pouco. “Ele vive à margem do ato, dominado pelo processo do pensamento. Seu ato seria, então, um ato psíquico, estruturalmente diferente do acting-out” (Id., Ibid., p. 94). Tocamos neste ponto para evidenciar que a passagem ao ato pressupõe uma insuficiência do processo de pensar, o que vemos nos casos envolvendo uma passagem ao ato é um agir no qual predomina um caráter impulsivo. No caso de um neurótico obsessivo há um compromisso entre o desejo e a censura, característica das neuroses de transferência, de forma que o ato obsessivo só acontece mediante uma conciliação, onde o sintoma que deveria afastar do eu o desejo proibido é a própria realização disfarçada deste desejo. Em verdade o ato obsessivo é produzido como uma defesa devido à ambivalência de sentimentos referentes ao pai. Por isso a atuação se manifesta no tratamento por uma repetição que ocupa o lugar da lembrança. Com essas considerações queremos destacar a presença de uma passagem ao ato, que difere do „acting out’. O „acting out‟ se refere a uma atuação que substitui a narração, e para isso há uma encenação na qual o terapeuta se acha inserido devido ao vínculo transferencial. Entretanto, a passagem ao ato parece não conter qualquer ligação com a situação transferencial, sendo caracterizada como uma pura descarga sem representação. Neste sentido a passagem ao ato coloca um obstáculo para o dispositivo clínico uma vez que a técnica analítica se movimenta dentro da linguagem, é pela palavra que chegamos à representação barrada, e neste caso o próprio poder das palavras é colocado em questão. Baseado nisso o assassinato do pai da horda primeva pode ser visto como uma passagem ao ato, na qual o desejo se transforma em ato sem mediação do eu, não há um compromisso entre instâncias, mas uma pura descarga. As neuroses de transferência se caracterizam, sobretudo, por uma inibição da ação: devido ao papel preponderante da fantasia, “o pensamento constitui um substituto completo do ato” (FREUD, 1913[1912- 72 13]/1996, op. cit., p. 162). Contudo para os irmãos da horda primeva, expulsos pelo pai opressor, passar ao ato constituía um substituto do pensamento, o que leva Freud a usar uma frase de Goethe para afirmar que “no princípio foi o ato” (Loc. cit.), foi a descarga e não o verbo. Vislumbra-se aí a presença de uma força que escapa ao domínio do psiquismo. O sujeito não pode furtar-se do acúmulo de excitação, ele é forçado, então, a expulsar a quantidade para o exterior, sobre algum objeto, a fim de evitar, com isso, a angústia implacável. Somos “escravos da quantidade”, como afirma M‟Uzan (1984, op. cit.). Dado a inesgotável produção de estímulos pulsionais, somos obrigados a dar um destino para esta quantidade, caso contrário ela se transforma em nosso inferno particular. Isso denota um certo assujeitamento frente às forças pulsionais. Nas passagens ao ato o sujeito é impelido a transformar o desejo em ato como se estivesse dominado pelas forças em jogo, quando se passa ao ato “a descarga é total, é um retorno ao grau zero de excitação, em nenhum momento o princípio de prazer interveio” (Id., Ibid., p. 134)10. M‟Uzan (Ibid.) usa como exemplo, para ilustrar a presença de uma compulsão à repetição nas passagens ao ato, o caso de um assassino sádico, no qual uma pressão incontrolável se exercia sobre ele fazendo-o cometer vários crimes. Após ser preso é questionado pelo júri sobre os motivos que o levaram a cometer atos tão brutais, ele grita suplicante: “Eu não podia agir de outra forma” (Id., Ibid., p. 129)11. O excesso de excitação flagrado nas passagens ao ato conduz não à neurose, onde um conflito se apresenta como um enigma marcado pelas lacunas da memória. A passagem ao ato remete a uma carência de sentido e, portanto, não há representação, o que se nota é um curto-circuito da representação e, por conseguinte, um limite ao método interpretativo proposto por Freud. Ferenczi (1931/1997) nos traz um pouco mais de luz sobre essa questão. Para avançar em problemas clínicos conhecidos como os „casos difíceis‟, precisou modificar a técnica proposta na clínica freudiana tradicional, associando sua proposta da técnica ativa à de relaxamento e neocatarse. Este autor achava inadmissível contentar-se com fórmulas como: “a resistência do paciente é insuperável, ou o narcisismo não permite aprofundar mais este caso, ou a resignação fatalista em face do chamado estancamento de um caso” (Id., Ibid., p. 71). 10 11 Tradução nossa. Tradução nossa. 73 Durante o tratamento de uma paciente histérica cuja análise encontrava-se estancada, Ferenczi (1919/1997) estranhou o repetido comentário “sensações por baixo” (p. 2) sempre evocado durante as fantasias amorosas nas quais ele era o objeto de interesse. Então notou o modo como ela se deitava no divã, conservando as pernas cruzadas, esta posição possibilitava à paciente uma disfarçada atitude masturbatória, atitude a qual a paciente negou veementemente após ser informada. Utilizando a técnica ativa o psicanalista conseguiu coibir essa passagem ao ato, caracterizada como “sintomas histéricos corporais” (Id., 1930/1997, p.62). Tais sintomas na verdade escondiam “símbolos mnêmicos corporais” (Loc. cit.), no sentido de impressões corporais não inscritas como representações psíquicas, assim a paciente quando indagada sobre tal ato suspirava em vão por lembranças. Temos aqui algo que não pode ser evocado por meio de lembranças, no qual o método da associação livre mostrava-se falho. Foi devido à perspicácia de Ferenczi (Ibid.) ao notar a passagem ao ato da paciente que lhe permitia voltar o olhar para algo que não possuía representação. A paciente ao encontrar a via do ato obstruída para repetir a descarga, passou a sofrer de uma agitação física e psíquica quase intolerável. Ferenczi (Ibid.) não lhe permitia ficar na mesma posição por muito tempo, fazendo-a mudar de lugar a todo o momento. Foi aí que suas fantasias emergiram, na verdade fragmentos desconexos de lembranças há muito tempo enterradas que se agruparam em torno de certos eventos da infância, relacionados ao Édipo e, forneceram assim as circunstâncias traumáticas. Foi com a nova regra analítica, a técnica ativa, que ele pode observar esses fragmentos traumáticos, do passado, não simbolizados. Nesse caso onde foi notada uma ausência da capacidade de simbolização, poderia tratar-se de uma defesa mais radical: a clivagem. A clivagem diz respeito a uma parte da personalidade apartada por efeito de um choque, que sobrevive em segredo e se esforça por manifestar-se, dado que conserva sua força quantitativa. A dificuldade em usar a regra fundamental em determinados casos fez com que Ferenczi (1931/1997, op. cit.) ousasse novas modalidades de intervenções clínicas, com a finalidade de efetivar avanços terapêuticos. Acreditava que precisava fornecer meios através dos quais o paciente pudesse “desenvolver mais amplamente a sua tendência à repetição, tendência que luta por manifestar-se” (Id., Ibid., p. 72). A partir disso entendemos uma compulsão à repetição de forma diferente da repetição do recalcado, “o que se desenrola aí diante de nossos olhos é a reprodução da agonia psíquica e física que 74 acarreta uma dor incompreensível e insuportável” (Id., Ibid., p. 79). O paciente age a dor, em um sentido diferente do „acting out‟ porque há uma impossibilidade de representação, age algo que não faz e nunca fez parte de uma cadeia de representações, mas que se refere a um excesso pulsional, que não pode ser mediado pelo eu, subsistindo como um „corpo estranho‟ no aparato psíquico. Khan (1971[1977]) torna a diferença entre esses dois tipos de repetição (acting out e passagem ao ato) mais clara explicando: no acting out o reprimido é sempre perceptível através da sua ausência, assinalada pelas lacunas da memória e um contra-investimento egóico que se opõe ao reprimido, caracterizando um conflito entre instâncias psíquicas. No caso da passagem ao ato há uma dissociação, e nesse sentido o que foi clivado do eu devido ao seu caráter excessivo e traumático, não possui essa evidência clínica (lacunas na memória); nestes casos a pessoa não pode estabelecer contato de uma parte com a outra, havendo uma parte que se encontra incomunicável. “É nessa medida que elas não transmitem nenhum sentido a ser interpretado, mas solicitam sentido, impõem ao analista uma atividade de fazer sentido” (FIGUEIREDO, 2003, p. 21), porque é dentro do campo da palavra que a “coisa” ganha significado. A questão da clivagem na obra de Freud é uma construção tardia, tendo lugar como consequência da postulação do segundo dualismo pulsional e a nova configuração do trauma. Muito embora ele tenha se referido a dissociação nos Estudos sobre a histeria (FREUD & BREUER, 1893-4[1895]/1996, op. cit.), acabou por deixá-la de lado ao se preocupar com o conflito interno, a sexualidade infantil e os mecanismos de defesa. No artigo “A divisão do ego no processo de defesa” (1940[1938]/1996) Freud fica impressionado com o fato do eu dos pacientes em análise comportar-se de maneira notável em situações específicas de pressão, principalmente em situações que possam produzir “um tremendo efeito de susto”(Id., Ibid., p. 294). Difere, portanto, da neurose, porque no conflito neurótico o paciente sabe da existência dos dois lados em jogo, “o não saber do paciente (...) seria, de fato, um não querer saber – um não querer que poderia, em maior ou menor medida, ser consciente” (FREUD & BREUER, 1893-4[1895]/1996, op. cit., p. 284). Nas dissociações há antagonismo, duas atitudes psíquicas contrárias coexistindo, mas a pessoa fica envolvida e comprometida com cada aspecto, sem conflito. O antagonismo resulta da incompatibilidade acarretada pela fruição de cada um desses aspectos. Além do mais, os estados conflitivos são atuados, ao passo que os estados dissociativos são encenados na vida. A encenação exige uma testemunha que a experimente e informe. A atuação procura cúmplices para descarga e satisfação (KAHN, 1971[1977], op. cit. p. 302). 75 Discordamos de um ponto na citação acima. Cremos, por tudo que foi exposto até aqui, que os „estados conflitivos‟ das neuroses de transferência, são encenados, justamente porque a encenação envolve alguém que reconheça esse lugar de desejo do qual o paciente fala. Lugar que a vivência de satisfação consagrou ao outro como aquele que reconhece o desejo. Já a dissociação, é da ordem da passagem ao ato: busca a descarga sem a mediação do excesso pulsional, experimentado como traumático, que não pode ser representado devido à falta de preparo do eu para dominar um grande afluxo de excitação, ou a uma passividade frente a este excesso, devido ao fator surpresa. Assim o sujeito reproduz compulsivamente em atos e sonhos elementos que escapam ao processo de simbolização, por isso não há como rememorá-los. Essa questão retornará em Freud no artigo O estranho (1919/1996), texto no qual o autor se debruça sobre o que é assustador no sentido de que algo há muito conhecido, mas que deveria ter permanecido oculto, foi de alguma forma trazido à luz. Freud começa a sinalizar um outro tipo de repetição que opera no sujeito e que não passa pelo crivo do recalque. Nesse texto Freud faz menção a “outro trabalho”12, no qual irá abertamente reconhecer “a predominância de uma compulsão à repetição, procedente das moções pulsionais e provavelmente inerente a natureza das pulsões e poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer” (Id., Ibid., p.256). 12 Referindo-se ao Além do Princípio do Prazer de 1920, que ainda não havia sido publicado, mas estava concluído. Capítulo III - Os limites da representação Toda a primeira tópica freudiana foi construída levando em conta o modelo da representação; a representação designa a expressão psíquica das pulsões. Para que isso ocorra há um processamento da energia pulsional, que passa de livremente móvel (processo primário) para dominada, em repouso (processo secundário). Assim, Freud (1914/1996, op. cit.) vai conceber o aparato psíquico “como sendo acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos” (p. 92). No “Projeto para uma psicologia científica” (1895/1996, op. cit.) Freud utilizou o termo “mola pulsional” (p. 348), termo precursor do conceito de pulsão, para designar uma fonte de estimulação interna, constante, o que, segundo Garcia-Roza (1999, op. cit.), já indica uma concepção de aparato psíquico gerado com a função de dominar essa força que ameaça invadi-lo. Essa força pode afluir do exterior, já que o sujeito desde o início da vida experimenta, também, o pulsional através do outro: “O aparato psíquico (...) se constitui frente a um outro aparato psíquico, sendo cada um deles um aparato de linguagem” (Id., Ibid., p. 253). Quando o aparato psíquico captura o excesso pulsional ele o transforma, o processa, inserindo-o no universo simbólico por meio de representantes. Este modelo apresentado por Freud vai sustentar no âmbito da clínica uma dinâmica ou uma tópica que é colocada em destaque no artigo “Recordar, repetir e elaborar” (1914/1996, op. cit.), através de uma repetição, indicada como retorno do recalcado. São, em verdade, clichês infantis repetidos em ato na relação transferencial. Todavia neste mesmo artigo Freud vai destacar, em certos casos, a presença de repetições que não se enquadram no modelo do “acting out” e começam a mostrar um limite ao método interpretativo. Tais repetições levam Freud a se deparar com um processo muito mais compulsivo do que da ordem do retorno do recalcado. Estes aspectos remetem para um limite teórico-clínico com respeito ao princípio de prazer centrado no modelo da representação. É diante deste limite que Freud busca reinventar a psicanálise a partir de 1920. No artigo “Além do princípio de prazer” (1920/2006 op. cit.), Freud volta à atenção para a neurose traumática e, consequentemente, retoma a questão da dor, bem como outros temas do Projeto de 1895, passando a indagar-se sobre este limite citado acima, a partir da repetição. As neuroses traumáticas se caracterizam por uma ruptura no escudo protetor do 77 para-excitação, escudo que protege o aparato psíquico das excitações externas. Diante da ruptura do para-excitação o aparato é inundado por um excesso pulsional, que coloca de lado o funcionamento do princípio de prazer, para realizar uma tarefa mais fundamental: a de dominar a excitação. Toda vez que ocorre uma falha nesta tarefa fundamental inicia-se um processo repetitivo, que não envolve qualquer possibilidade de prazer. Freud vai denominar esse processo de compulsão à repetição, peça chave para repensar alguns impasses de ordem clínica em sua teoria, e apresentar sua hipótese mais desconcertante: a pulsão de morte. Frente ao irrepresentável que se figura a partir da virada de 1920, buscamos algumas respostas sobre de que maneira o aparelho psíquico responde a essa nova ordem e, de como proceder frente a esse novo modelo trazido à luz pela compulsão à repetição. Para essa empreitada buscamos amparo em Walter Benjamim e comentadores de sua obra que se detêm na questão dos sobreviventes de grandes catástrofes e no silêncio que os persegue após as experiências traumáticas. Sobretudo buscamos vislumbrar uma saída para permitir ao que não pôde ser falado, encontrar alguma forma de expressão. Nesse sentido Walter Benjamim nos alerta para um outro modo de narração: a narrativa de ruínas, de cacos, que se distingue da narração tradicional que marcaram uma época. III.1. A repetição do desprazer Como vimos no capítulo anterior, ao abordar o retorno do recalcado, a repetição é um dos modos pelos quais o inconsciente trabalha seus conteúdos, ou seja, um dos seus modos de funcionamento. Entretanto, em 1920, veremos que há outro modo de funcionamento do aparato psíquico, mais primitivo, que funciona de acordo com a compulsão à repetição. Sendo inconsciente, a repetição funciona segundo as leis que regem os processos deste sistema: o processo primário. O predomínio do prazer como princípio determina esse modo de funcionamento primário do aparato mental. Essa forma de trabalho sofre uma modificação pelo eu, devido às exigências da realidade, designada: processo secundário. Tal processo obedece ao princípio de realidade, que permite responder as exigências, tanto internas como externas, de forma específica e precisa; dessa maneira, admite a manutenção das quantidades do aparato em nível constante e, com isso a conservação e o equilíbrio do mesmo. 78 O princípio de realidade é uma modificação necessária do princípio de prazer; caso as necessidades de autopreservação, por exemplo, fossem regidas exclusivamente pelo último e não sofressem uma mediação tornar-se-iam perigosas para a manutenção da vida em sociedade e ofereceriam um risco ao próprio indivíduo. A meta de alcançar o prazer não é, contudo, colocada de lado, mas adiada em sua imediata aquisição em vista de uma obtenção mais efetiva do prazer, fazendo-se para isso necessário traçar caminhos mais longos. Renunciar à satisfação imediata dos estímulos pulsionais é o preço a pagar pela maior segurança que a vida em civilização oferece, conforme assegura Freud (1930[1929]/1996, op. cit.). Ainda conforme apontado no capítulo anterior, a força que coloca o aparato psíquico em movimento é a pulsão; a pulsão se caracteriza por ter: “uma fonte (somática), uma finalidade (satisfação), um objeto (aquilo através do qual se obtém a satisfação) e um fator motor (Drang)” (Monzani, 1989, p. 185); No inconsciente essa Drang pressiona continuamente no sentido de realizar sua finalidade, a saber: a descarga, e com isso alcançar a satisfação obedecendo ao princípio de prazer. Por esse motivo podemos dizer que a repetição tem, desde sempre, uma característica semelhante ao pulsional – a insistência. A característica de insistência da pulsão se deve a Drang, ou melhor, a uma força constante (Konstant Kraft). A fim de dominar a energia pulsional é exigido um incessante contra-investimento do eu. Fato que leva Freud (1915/2006, op. cit.) a ressaltar a pulsão como um excesso em relação ao qual o aparato precisa se defender empreendendo destinos para descarregá-lo sobre objetos, para evitar que se configure um trauma. Nesse mesmo artigo Freud afirma que a pulsão é concebida como “uma medida da exigência de trabalho imposta ao psiquismo” (p. 148); trabalho fundamental de dominar e ligar as intensidades que perturbam a homeostase do organismo. Ligar é inscrever em representações, é através desta inscrição que a regulação das excitações pulsionais se realizaria. A ligação condiciona e precede à entrada do princípio de prazer; o fracasso em promover a ligação provocaria “uma perturbação análoga a uma neurose traumática” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 158). Quando ocorre uma falha em dominar a excitação inicia-se um processo repetitivo, anterior ao estabelecimento do princípio de prazer. Esse processo será denominado compulsão à repetição, problematização que vai levar à necessidade de reformular o dualismo pulsional e, consequentemente, à formulação da segunda tópica. No artigo “O 79 Estranho” (1919/1996 op. cit.) Freud já traz alguns sinais de uma reformulação tópica ao apontar para um estado muito primitivo no qual o eu ainda não se encontra diferenciado do mundo externo, a compulsão à repetição poderia estar relacionada a esse estado no qual funciona o aparato anterior à estruturação e diferenciação do eu do que lhe é externo. A repetição funciona como uma espécie de marcador, pelo qual se tenta estabelecer um limite de reconhecimento frente a algo estranho, que evoca a sensação de desamparo (passividade diante do excesso pulsional). A reformulação do dualismo pulsional ocorre no artigo “Além do princípio de prazer” (1920/2006, op. cit.) no qual Freud admite que há “na psique uma forte tendência ao princípio de prazer, mas que certas outras forças se opõem a essa tendência, de modo que o resultado final nem sempre corresponderá à tendência ao prazer” (Id., Ibid., p. 137). Nesta passagem o princípio de prazer passa a ser tratado como uma „tendência‟, denotando que algo escapa de seu domínio e ameaça a sua suposta soberania. III.2. Redefinindo o trauma Para explicar o funcionamento de algo fora desta tendência ao prazer, Freud se utiliza do exemplo do trauma, que ressurge em outro modelo teórico, seguindo os indícios da neurose traumática, bastante comuns no período do final da primeira guerra (1914-18). Tais neuroses consistiam na fixação da vivência traumática e a repetição da mesma experiência sob a forma de sonhos. Essas repetições envolvendo situações extremamente penosas são revividas alucinatoriamente através dos sonhos e, parecem pouco compreensíveis sob a luz do princípio de prazer. Os sonhos das neuroses traumáticas forçam Freud a reconhecer, pela primeira vez, uma exceção a regra de que todo sonho é uma realização de desejo, na medida em que tais sonhos evidenciam uma compulsão repetitiva de uma vivência dolorosa, não abarcando uma possibilidade de prazer para o sujeito. Primo Levi (1990), em seu livro “Os afogados e os sobreviventes” questiona, justamente, essa compulsão a repetir que ocorre nos sonhos: “Curiosamente, esse pensamento (“mesmo se contarmos, não nos acreditarão”) brotava repetidamente, sob a forma de um sonho noturno, do desespero dos prisioneiros” (p. 1). Essa observação expressa, para além da narrativa, o temor em relação à recusa dos outros de escutar o que os sobreviventes dos acontecimentos traumáticos viveram nos campos de concentração, 80 essa recusa fecharia a possibilidade de se sair deste processo repetitivo, que condena o sobrevivente à repetição mortífera do trauma. Neste sentido vemos como o outro, ao escutar o sobrevivente pode dar suporte à narração da dor. O fato do outro não permanecer indiferente torna possível a retomada reflexiva do passado, possibilitando a transmissão do testemunho; conferindo, assim, um sentido, tanto histórico quanto temporal, à experiência traumática (Gagnebin, 2006). Em contrapartida, podemos dizer que a compulsão à repetição via sonhos é uma forma, ainda que precária, de narrativa; bastante diversa da narrativa tradicional, visto que o trauma cortou do sujeito o acesso ao simbólico. Contudo essa repetição da cena traumática, que provocou tanta dor, funciona como um esforço para conter a experiência de horror que devido à violência de seu excesso se tornou impossível de narrar pelas vias tradicionais. Para explicitar como ocorre esse impacto traumático sobre o aparato psíquico seguimos os passos de Freud (1920/2006, op. cit.) que buscou elementos na biologia, especialmente através de A. Weismann, descrevendo a história de uma vesícula indiferenciada que é estimulada por fora e por dentro. Ele se serve deste exemplo para mostrar a genealogia do aparato e neste ponto se aproxima dos temas tratados no Projeto de 1895, propondo uma estrutura cuja função principal se refere à defesa frente às estimulações oriundas do exterior. Laplanche (1993) afirma que o modelo da vesícula tomada emprestado da biologia por Freud, pode ser compreendido em três níveis: 1) modelo de um corpo caracterizado por uma “Gestalt que define o interior, em relação ao exterior, um certo nível energético” (p. 208); 2) um aparato psíquico; 3) O eu. Tendo em vista esses modelos, a vesícula conta com um escudo protetor evitando que a ação de estímulos incida diretamente sobre seu interior – “a função do escudo protetor é quase mais importante do que a recepção do estímulo” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 152). A neurose traumática, ou melhor, a ruptura que ocorre no escudo protetor coloca o aparato em perigo, pois a energia que aflui pela ruptura viola o equilíbrio homeostático do aparato psíquico. Contudo, tal como no Projeto de 1895, não há proteção contra as excitações endógenas. Dentro desta perspectiva entendemos as pulsões como um excesso do qual o aparato precisa se defender. Até aqui, tudo se passa de forma semelhante à vivência da dor tal como descrita em 1895: o trauma atinge o aparato como um raio, provocando uma espécie de curto circuito no mesmo. No Projeto de 1895 o domínio pelo eu sobre o montante de energia resultante de uma vivência de dor é muito mais difícil de ser 81 alcançado do que em relação às experiências envolvendo satisfação. Só com repetidas tentativas seria possível subjugar o montante de excitação nos casos em que a dor está envolvida; enquanto essa energia não é dominada pelo eu, permanece – seguindo a expressão usada por Freud (1895[1950]1996 op. cit.) – “indomada” (p. 436). Desta forma depois de 25 anos, começa a ser retomada, em uma tentativa de elucidar e indicar um processo que anteceda o princípio de prazer, uma experiência que em sua origem causa desprazer e mesmo assim continua a se repetir. Visando a questão da defesa contra as grandes quantidades provenientes do exterior o escudo serve para proteger e manter uma diferença de nível, entre o externo e o interno. Temos, então, um escudo funcionando como uma espécie de barreira fiscal localizada na fronteira de dois países, no caso do aparato psíquico essa barreira limita a entrada de energia exterior, estrangeira e estranha ao aparato, para o interior. Portanto, o escudo protetor não só tem uma importante significação econômica, mas é vital para a sobrevivência do aparato psíquico. A finalidade de tal escudo é evitar que grandes montantes quantitativos afluam para o interior sem alguma moderação e, com isso desestabilizem o nível constante da quantidade no interior do organismo. O que se apresenta, assim, é uma concepção de aparato psíquico baseado na homeostase, expliquemos melhor: há uma necessidade em manter a energia no aparato constante, para que isso seja possível há um incessante empenho do eu em restaurar e, caso ela seja alterada, manter esse nível de constância energética. Esse empenho do eu nada mais é do que dominar a energia pulsional que não cessa de brotar do interior do organismo e, que também, pode afluir do exterior se formos tomados como objeto por um terceiro. Para isso o escudo quebra a energia proveniente do exterior em parcelas que poderão ser dominadas mais facilmente pelo contra-investimento do eu. Caso o escudo protetor seja rompido, em uma pequena extensão, entra no aparato um montante de energia que é sentido como dor, mas que é diferente do desprazer. Já vimos quando tratamos dos temas do Projeto de 1895 que dor e desprazer são conceitos diferentes no pensamento de Freud daquele período. Temos, entretanto um ponto em comum entre a dor e o desprazer: ambos estão relacionados com os movimentos da quantidade, ou seja, se referem à economia psíquica. Mas a semelhança para por aí; segundo Laplanche (1993 op. cit.) o desprazer está sempre vinculado a noção de prazer, já a dor não possui um correspondente e, ademais, é preciso que exista um corpo delimitado para haver dor. Desta maneira a segunda tópica será estabelecida precisamente sob a 82 ameaça de esfacelamento do eu, conceituado como uma projeção sob uma superfície – um eu corporal (FREUD 1923/1996). A dor corresponde, tal como no Projeto de 1895, à invasão de grandes quantidades não dominadas de energia que romperam o escudo de proteção e assim ameaçam a integridade egóica. Como no Projeto de 1895 a dor é resultado de uma efração do para-excitação, isso significa que a dor é uma ruptura do escudo protetor em uma área limitada, rompimento que levará a um aumento brutal de tensão no interior do aparato. É importante observar que Freud (1920/2006 op. cit.) caracteriza a neurose traumática como uma ruptura limitada, como rompimento de uma pequena parte do escudo, é nessa brecha aberta na defesa que a energia externa afluirá para o interior. A dor proveniente dessa ruptura constituir-se-á como uma fonte emissora de excitação, motivo pelo qual Freud (1915/2006) chamou a dor de pseudo-pulsão. Isto porque a dor passa a se comportar como uma fonte interna e, sendo assim torna-se impossível empreender uma fuga. Essa pseudo-pulsão desorganiza o aparato e o faz mobilizar energia de outras áreas para tentar parar esse afluxo; o contrainvestimento tem como finalidade imobilizar a energia que invade o aparato – à dominação da energia em estado livre Freud chama de ligação. O trauma é definido como uma ruptura no escudo protetor, e com isso “o princípio de prazer é, logo no início, colocado fora de ação” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 154). Assim o problema principal do aparato psíquico é capturar a energia livre invasora, a partir disso Freud nos indica um modo de funcionamento do aparato fora do princípio de prazer, se servindo para isso, da tese de Breuer (FREUD & BREUER, 1895/1996, op. cit.) que admite duas formas distintas de energia nos sistemas psíquicos: cargas de investimentos que “fluem livremente e que pressionam para a descarga e cargas de investimento em repouso” (FREUD, 1920/2006, op., cit., p. 155). Portanto o trauma ressurge em um outro modelo teórico, como ressaltam Ribeiro & Carvalho (2006, op. cit.): “Tal como na teoria da sedução, situa-se no momento mesmo da vivência” (p. 9). Contudo, o trauma é definido como proveniente de experiências muito assustadoras e, em tais experiências não encontramos qualquer referência imediata à sexualidade. Assim a etiologia sexual das neuroses de transferência e a teoria da libido não encontram uma aplicação direta nesses casos. Freud buscará aproximar as neuroses traumáticas (cujo paradigma é a neurose de guerra, que se caracteriza por traumas ocorridos no momento da experiência, portanto sem referência a um conflito psíquico ou à sexualidade) das neuroses de transferência, em uma tentativa de estender às primeiras a 83 teoria da libido. Para buscar elucidar essa aproximação no artigo “A psicanálise e as neuroses de guerra” de 1919 é iniciada a investigação “das relações que sem dúvida existem entre o medo, angústia e a libido narcísica” (p. 225), que será plenamente desenvolvida em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926[1925]/1996). Dois fatores são determinantes para surgir uma neurose traumática: o susto e a ausência de ferimento grave. Freud (1920/2006 op. cit.) distingue três termos – susto (Schreck), medo (Furcht) e angústia (Angst) – diferenciação que trará luz à questão da nova disposição do trauma. Angústia designa uma expectativa para o perigo e a preparação para algum tipo de impacto mesmo que o esperado figure desconhecido, denotando que não há uma relação direta com o objeto. O medo, por sua vez, pressupõe um objeto definido o qual se teme. O susto designa um estado no qual se adentra em uma situação de risco que não era esperada, de forma que o sujeito é tomado pela surpresa do evento. O fator surpresa presente no susto implica a falta de contra-investimento para suportar o impacto traumático; assim há uma inundação de energia no aparato enquanto o princípio de prazer é colocado fora de ação. Um ferimento grave diminui as chances de se contrair uma neurose traumática, pois implica um recolhimento narcísico da libido; a libido sai de posições ocupadas previamente e é realocada novamente no eu. Neste caso há uma certa paralisia ou diminuição do resto das atividades psíquicas, todos os outros sistemas psíquicos se empobrecem, pois enviam reforços energéticos para conter a dor. O susto se caracteriza pela ausência de angústia, isso significa que não há uma expectativa de perigo; a angústia já é um sinal do hiperinvestimento dos sistemas receptivos, que significa aumento da energia ligada, como tropas militares esperando um ataque iminente. Frente à ausência de preparo ocorre a invasão energética que origina o trauma. Nestes casos a repetição se configura como uma forma de obter controle da situação, e também, preparar o indivíduo para o trauma, dotando-o da capacidade de desenvolver angústia e desta forma prevenindo-o contra o fator surpresa (HERZOG, 1994, op. cit.). O trauma ocorre justamente porque não houve a angústia – sinal. Ao que parece ocorreu uma falha no mecanismo da atenção, a qual tem por função regular os deslocamentos dos investimentos do eu, tal como discutido no Projeto de 1895 e em Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico (1911/2006 op. cit.), principalmente. Se o mecanismo de atenção falhar tais investimentos encontrar-se-ão ausentes no momento do trauma. Nessa perspectiva os sonhos das neuroses traumáticas 84 repetem a mesma cena em um esforço para o desenvolvimento retroativo da angústia, sem ela o eu é pego de surpresa por uma vivência excessiva que facilmente rompe suas proteções desencadeando a compulsão à repetição. Ligar a energia em representações constitui a possibilidade de empreender um destino a essa energia diferente da compulsão à repetição – seja sublimá-la, investi-la em algum objeto, recalcar ou transformá-la em seu contrário (FREUD, 1915/2006, op. cit.). Frente à impossibilidade de proceder tais destinos o evento traumático é apartado da consciência, é clivado do eu. No entanto, clivar não subtrai do trauma sua força. O trauma se faz perceber através da compulsão à repetição, que é, por assim dizer, um sinal ou a expressão de uma energia não dominada no interior do aparato. Freud (Ibid.) nota um fenômeno análogo à compulsão à repetição das neuroses traumáticas nas brincadeiras infantis, nas quais a repetição de um intenso sofrimento é reproduzida. Observa o neto em um estranho jogo, incansavelmente repetido durante a ausência da mãe, no qual atirava objetos para um canto do berço e os apanhava novamente, pronunciando um sonoro o-o-o-ó, nos arremessos, e acompanhado de grande satisfação quando os encontrava. Ao conversar com sua filha sobre a brincadeira, depreendeu que não era uma simples interjeição, mas tratava-se da palavra alemã Fort (lá). Uma observação posterior confirmou a dedução, a criança jogava um carretel de madeira amarrado com um cordão que era arremessado sobre a borda do berço, saindo, deste modo, do seu campo de visão e, ao mesmo tempo, um sonoro o-o-o-ó era emitido. Então puxava o cordão fazendo com que a parte escondida retornasse e o saudava com um alegre da (ali). Freud supôs que a angústia sentida por seu neto se devia a um transbordamento, ocasionado pela privação do objeto de satisfação, no caso: a mãe. A saída da mãe do campo de visão do bebê é interpretada por ele como uma perda; é essa privação que acarreta um acúmulo libidinal – libido que seria investida no objeto – e não achando o meio de descarga usual (mãe) se apresenta sob a forma de angústia para a criança. Quando a criança encontra no jogo do Fort-Da um meio de descarregar esse acúmulo, Freud (Ibid.) alega que a brincadeira remete a uma aquisição cultural como consequência da renúncia da satisfação pulsional; ou seja, permitir a saída da mãe, deixá-la ir, agora não mais passivamente, mas como agente; já que o contrário, vivido de forma passiva, certamente, causava desprazer. O jogo compensa esse afastamento através da atuação, onde se passa de passivo para agente da ação, determinando o momento do afastamento e do retorno, evitando a surpresa 85 do abandono. Seguramente esse exemplo evidencia-se como uma forma de domínio do desprazer, onde o controle da situação e do objeto são fatores que evitariam a experiência traumática. Essas observações sobre o jogo infantil nos trazem uma importante questão – o prazer do bebê em se tornar o agente que determina a cena e domina a ação do objeto, remete à onipotência narcísica. O susto, no caso do Fort-Da proporcionado pelas saídas da mãe do campo de visão do bebê, coloca em xeque justamente a onipotência narcísica do sujeito. Dominar a energia livre significa, a partir disso, restaurar a onipotência narcísica – a integridade egóica. Freud (1917/2006), ao tratar do luto já aponta a dor como uma reação normal à perda do objeto; a acumulação energética proveniente da perda objetal provoca as mesmas condições econômicas, ou seja, os mesmos movimentos energéticos de contrainvestimento que buscam conter a efração em um corpo lesado. Podemos notar que em ambos os casos temos um acúmulo energético, o qual não pode ser mais ligado devido ao desaparecimento do objeto, que se traduz como dor. A dor funciona, então, como um sinal de alarme da presença de uma energia não contida (estrangeira) circulando pelo aparato; sinal que dispara o contra-investimento de contenção, procedimento defensivo que esvazia o eu. Devido à perda do objeto inicia-se um lento processo de reinvestimento para transformar a passividade proveniente desta falta sofrida em atividade, com o intuito de nos tornarmos senhores da situação (controlar as idas e vindas do objeto). A necessidade de passar da posição passiva para a ativa significa que o sujeito ainda está sob o domínio do excesso pulsional. Tudo se passa de forma análoga aos sonhos traumáticos, onde há uma espécie de agenciamento – o sonhador é o autor da cena agora, embora nada seja modificado e o sujeito acorde tomado pelo mesmo terror da vivência real; trata-se, aqui, do mecanismo de transformação em seu contrário (redirecionamento da pulsão da atividade para a passividade). Dentro dessa série que envolve situações desprazerosas repetidas, encontram-se as neuroses de destino, nas quais o sujeito é acometido pela repetição de eventos que terminam sempre com o mesmo fim trágico, em uma inescapável trama do destino que parece não oferecer qualquer outra saída. Esse eterno retorno do mesmo surpreende os casos em que o sujeito parece experimentar passivamente a mesma experiência, como se fossem “perseguidas por um destino maligno, isto é, de haver algo demoníaco em suas vidas” (Id., Ibid., p. 147). Tais pessoas, que parecem ser castigadas por forças invisíveis, na 86 verdade, são inconscientemente levadas para tal desfecho, movidas por experiências traumáticas, em uma compulsão à repetição trágica, por assim dizer. O que corrobora a ideia da compulsão à repetição ser um dispositivo, que visa sinalizar ao eu um perigo eminente e, assim torná-lo apto a dominar o montante energético que se aproxima; para isso a compulsão à repetição recoloca o sujeito na mesma situação para que ele possa dar um outro desfecho a experiência vivida como traumática. Algo parecido se passa durante as análises, nas quais os pacientes repetem experiências dolorosas, provenientes do complexo de Édipo. A repetição, agora, aparece sob uma forma compulsiva de origem inconsciente que leva o sujeito a reviver repetidamente essas experiências precoces da sexualidade infantil. Durante a análise os pacientes repetem via ato todas essas situações aflitivas, relacionadas aos tempos edípicos. Tais situações apontam traços mnêmicos provenientes de antigas experiências edípicas, que não foram ligadas, portanto ainda estão inaptas ao processo secundário; por isso, reaparecem sob a forma de uma compulsão à repetição. Todas essas situações apresentadas colocaram à prova a onipotência narcísica do sujeito. III.3. O eu em ruínas A finalidade do eu, portanto, é inibir o livre trânsito das energias no interior do aparato psíquico. Foi através do abandono do processo primário como método de descarga direta e o consequente armazenamento de energia para realizar as ações específicas, necessárias para sobreviver, que foram traçados caminhos originários para efetivar a descarga; ou seja, destinos pré-fixados para essa finalidade, como Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) já havia afirmado ao tratar das facilitações nas barreiras de contato. É devido a esse armazenamento de energia, que serve como fonte de contrainvestimento, que vigora no eu o princípio de prazer modificado pela realidade; por esse motivo o eu é o mediador entre as exigências pulsionais e as da realidade. No artigo o Eu e o Isso (1923/1996, op. cit.) Freud pontua que o “o eu é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície” (p. 39). Devido a influência do mundo externo uma parte do Id, uma das mais antigas “localidades psíquicas” (FREUD, 1940[1938]/1996, op. cit., p. 158), sofre um desenvolvimento diferencial. Do que era “uma camada cortical, equipada com órgãos para receber estímulos e com disposições para agir como escudo 87 protetor contra estímulos, surgiu uma organização especial que desde então atua como intermediária entre o Id e o mundo externo” (Id., Ibid., p. 158): trata-se do eu. O eu é uma organização narcísica e, por esse motivo procura, sobretudo, assegurar sua auto-proteção; para isso aprende a armazenar experiências sobre os acontecimentos externos por meio da memória. Busca, também, evitar estímulos de grande envergadura realizando modificações, através da ação, no mundo em vista de seu próprio benefício. Quanto às exigências pulsionais provenientes do Id, ou de outro sujeito, o eu procura obter controle sobre elas moderando-as, adiando ou modificando as formas de como essas exigências devem ser satisfeitas; ou suprimindo-as, caso ameace sua integridade, utilizando-se tanto do mecanismo de recalque quanto de clivagem. Dentro desta perspectiva, devemos entender que eu se esforça para obter prazer, evitando e fugindo de tudo que lhe possa figurar um aumento de tensão e, consequentemente, causar desprazer. Da mesma forma que o corpo biológico ao sofrer um ferimento (como em um corte, por exemplo) no qual pequenas partes do tecido epitelial são perdidas, a dor corresponde para o eu a um sinal da perda de suas partes. De certa forma o eu do Projeto de 1895 já trazia essa questão sob o signo de uma conceitualização neurológica: a dor correspondia à perda de neurônios nucleares, pois estes tinham suas barreiras de contato destruídas com a passagem das grandes quantidades características da vivência de dor. Deste modo, a dor remete a um perigo regressivo para o eu, pois a dor “derruba por completo a resistência das barreiras de contato e ali estabelecem uma via de comunicação como as que existem em ()” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit.). As barreiras de contato são justamente a característica evolutiva que diferencia os neurônios psi () dos neurônios phi (), possibilitando assim uma tarefa fundamental – a memória de informações em vista de efetuar a descarga energética por trajetos mais curtos. Essa preocupação em relação à ameaça de regressão parece voltar no Ego e o Id (1923/1996, op. cit.) na medida em que Freud afirma que “a psicanálise é o instrumento que capacita o ego a conseguir uma progressiva conquista do Id” (p. 68). Ademais a condição para efetuar novas ligações, no Projeto de 1895, apontava para o estabelecimento de novas facilitações formando um todo: ligar é incluir novos neurônios no eu. O Id, sede das “paixões indomadas” (FREUD, 1923/1996, op. cit.), é voltado apenas para a obtenção de prazer, o ego, por sua vez, é regido por “considerações de segurança” (FREUD, 1940[1938]/1996, op. cit., p. 213) que levam em conta o princípio de prazer modificado pelo princípio de realidade. O eu, a partir de 1923, é pressionado de três lados 88 para cumprir exigências: dos estímulos pulsionais do Id, da severidade em realizar ou não suas ações pelo onisciente supereu e dos estímulos oriundos do mundo externo; daí entende-se toda preocupação com a segurança que o eu precisa ter. O eu é atacado em duas frentes ao mesmo tempo: a externa e a interna; para ser efetivo no processo de defesa o eu adota a mesma estratégia defensiva contra ambas. No caso dos estímulos externos já sabemos que há o escudo protetor, mas e contra as moções pulsionais? Para isso há uma tendência no eu de tratar as excitações internas, como se não agissem a partir do interior, mas do exterior. Só assim o eu pode utilizar contra a pulsão o escudo protetor, essa é a origem da projeção que desempenha um importante papel na determinação dos processos patológicos. Tomamos como exemplo o mecanismo de fobia desenvolvido pelo Pequeno Hanns (1909/1996), no qual ele projeta as fantasias sexuais relacionadas ao seu pai e o perigo de castração por tais desejos. Hanns atribui a um animal, o cavalo, o desprazer proveniente dos estímulos pulsionais, nesse caso bastava evitar estar na presença de cavalos para impedir o desprazer, havendo assim uma possibilidade de defesa. É um processo engenhoso, mas resolverá, apenas, temporariamente o problema. As pulsões mesmo partindo do interior do aparato, são exteriores ao eu e, portanto, são consideradas estrangeiras enquanto não sofrerem uma tradução (ligação – processo secundário). A energia pulsional não traduzida, somada ao fator surpresa (susto), provocam uma quebra na transmissão e na temporalidade da mensagem que envolve a experiência do trauma. Assim repetição significa que o eu fracassou em ligar a energia pulsional, ou traduzi-la em representantes. O eu é, então, sufocado por mensagens as quais não pode decodificar; frente a isso uma defesa arcaica é acionada – a compulsão à repetição. Muito embora seja o eu que repete, ele se vê obrigado a repetir aquilo que não lhe pertence, que lhe é estranho e não foi codificado conforme os processos que fazem parte do eu – processo secundário. A compulsão à repetição busca o desenvolvimento da angústia-sinal que faltou ao indivíduo no momento do trauma, como vimos. Entretanto a compulsão à repetição não é da ordem da simbolização, no sentido de efetuar a tradução da energia livre em ligada, precisamente porque aquilo que não pode ser traduzido – a energia não ligada/pura – só faz repetir de uma forma imperativa. De posse destas observações podemos afirmar que a compulsão à repetição aponta para algo mais primitivo, anterior a instauração do princípio de prazer. É assim que Freud, por meio do fenômeno da compulsão à repetição, 89 mecanismo que faz retornar sobre o próprio eu as forças que por pouco não o levaram à destruição, postula a existência de uma pulsão de morte. III.4. A compulsão à repetição O eu é concebido narcisicamente como uma totalidade. A possibilidade de efração do invólucro que o define como algo coeso representada por um perigo interno, mas sentido como real é projetado ao exterior como angústia de castração. A fim de sustentar essa unidade, o eu se empenha em manter-se constantemente investido de certo potencial energético. É a manutenção desse investimento que pode contrabalancear as tentativas de rupturas provenientes de seu exterior, essa preocupação do eu com sua segurança enquanto integridade remete a uma ameaça de desestruturação pelas forças pulsionais. Os exemplos apresentados por Freud (1920/2006, op. cit.) – sonhos das neuroses traumáticas, as neuroses de transferência, neuroses de destino e brincadeira infantil – apontam para a presença de uma compulsão à repetição. Em todos podemos notar a reprodução de uma experiência dolorosa, o que dificulta concebê-los como submetidos ao princípio de prazer. Por um lado, os sonhos das neuroses traumáticas se repetem em um esforço para que o eu esteja agora apto a dominar o excessivo e inesperado afluxo de excitações, buscando, então, preservar a vida; por outro lado notamos a presença de uma força que coage na direção da evacuação total da tensão, demonstrando que o fim último não é o de restaurar a vida, mas o retorno à inércia total. Na verdade, trata-se da ação das pulsões. As pulsões não trabalham em prol da manutenção do equilíbrio psíquico ou do organismo. A pulsão (Trieb) é uma força que coloca o sujeito em movimento e, tem por característica a pressão (Drang) - um impulso avassalador - enquanto a compulsão (Zwang) designa algo imposto ou forçado, que é o resultado de um “conflito pulsional que se instala e submete o sujeito a um cerceamento, impondo-lhe uma direção. O Trieb impulsiona e Zwang força e faz sofrer” (HANNS, 1996, p.108). Desta forma a compulsão à repetição (Wiederholungszwang)13 tem um grau altamente pulsional ao se apresentar como uma compulsão (Zwang), ressaltando uma característica fundamental da pulsão: a insistência. 13 Wiederholen – ir buscar novamente; repetir. Zwang – compulsão, forçado, obrigação, pressão. No artigo Além do princípio do prazer a expressão wiederholungszwang e a palavra zwang são usadas quase como sinônimos de Drang e Trieb. Segundo Hanns (1996, op., cit.), Freud procura ressaltar o caráter avassalador ao qual o sujeito sucumbe, condenado a realizar a pulsão para além de sua vontade. 90 O antigo lugar ocupado pelo trauma sexual factual cede espaço para a pulsão, mais especificamente a pulsão de morte. O primeiro modelo do trauma caracterizava-se pela falta de preparo do sujeito frente ao ataque sexual, que não o compreendia devido à tenra idade. A experiência traumática, então, ficava no sujeito como um “corpo estranho” (FREUD, 1895[1950]/1996, op. cit.), estranho ao eu, incapaz de traduzir tal evento. Em termos energéticos significa que a energia pulsional deste encontro não pode ser ligada pelo eu, o que de fato acontece com os eventos edípicos. O trauma ocorria „a posteriori‟, somente após o advento da puberdade, que provocava a lembrança da experiência sofrida. Em 1920 o segundo modelo do trauma segue esse padrão do despreparo do sujeito, mas agora, ante o excesso pulsional. A pulsão, nessa perspectiva, se faz perceber através de traumas, traduzidos por uma tensão que desequilibra a constância energética vigente no eu: “uma pulsão seria, portanto, uma força impelente [Drang] interna ao organismo vivo que visa a restabelecer um estado anterior que o ser vivo precisou abandonar devido à influência de forças perturbadoras externas” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 160). De acordo com Laplanche (1988), o primeiro trauma, a que Freud se refere, é o nascimento da vida e, não do indivíduo humano – “a primeira pulsão aparecendo no momento em que surge essa vida que é a elevação da tensão em relação ao estado inorgânico nada mais é do que a pulsão de morte” (p. 124). Essa primeira pulsão tem sua gênese de uma maneira semelhante como à formação da consciência, descrita no “Além do princípio de prazer” (1920/2006, op. cit.). A consciência teve sua origem de uma parte, mais externa, que morre para proteger a parte interna, garantindo a vida; com a pulsão ocorre algo parecido, mas de forma inversa. A semelhança entre ambas é a importância do fator defensivo contra a tensão, implicada na mudança do inerte para a vida. Assim, devido às perturbações externas, cria-se a consciência e, junto a isso, uma tendência a retornar a um estado anterior – a pulsão de morte. Foi a presença da compulsão à repetição nas análises e neuroses traumáticas que colocou Freud no caminho da pulsão de morte. A partir daí foi possível estabelecer que o objetivo da natureza conservadora das pulsões é alcançar um estado inicial, que todo ser vivo foi obrigado a abandonar, e ao qual deseja retornar, “todo ser vivo morre, ou seja, retorna ao estado inorgânico devido a razões internas, então podemos dizer que o objetivo de toda vida é a morte” (Id., Ibid., p. 161). A tendência da pulsão de morte é o retorno, à inércia, visando anular a vida e voltar ao inorgânico e não a constância tão prezada pelo eu. 91 Freud, assim, estabelece o vínculo entre pulsão e repetição, e aproxima ambas da radicalidade da noção de inércia, o que vai ser confirmado através da postulação de um masoquismo primário. Apresentada, a partir de 1920, como princípio de Nirvana, Freud retoma do Projeto de 1895 um princípio econômico fundamental para o funcionamento do aparato neuronal: o princípio de inércia. O „princípio de Nirvana‟ (FREUD, 1924/1996) pertence ao domínio da pulsão de morte que, no sujeito, sofre uma transformação pela ação libidinal, tornando-se princípio de prazer e este, por sua vez pela influência do mundo externo em princípio de realidade. Freud (1920/2006, op. cit.) assimila a pulsão de auto-conservação às pulsões sexuais ou de vida, embora hesite em um primeiro momento e chega a colocar a pulsão de autoconservação do lado da pulsão de morte. Contudo as pulsões de vida também são conservadoras, uma vez que repetem os caminhos necessários à preservação da vida, buscando a fusão com outro organismo para originar uma nova vida. O que vemos, portanto, em ambas as pulsões deste novo dualismo de 1920 é uma tendência conservadora de retornar, repetir caminhos já traçados: esse grupo de pulsões (vida) é tão conservador quanto as outras pulsões (morte), pois visam à volta a estados arcaicos da substância viva; mas, de outro ponto de vista, elas são ainda mais conservadoras, já que se mostram particularmente resistentes às forças externas. Além disso, também são conservadoras em um sentido bem amplo, na medida em que preservam a vida por períodos mais longos (Id., Ibid., p. 163). Junto ao dualismo da nova tópica, há um outro importante: a polaridade revelada pelos investimentos objetais – amor (ternura) e o ódio (agressão). É a partir do eu que os objetos são investidos, o masoquismo ou o redirecionamento da pulsão contra o próprio eu seria um retorno a uma fase anterior desse intricamento pulsional dirigido para os objetos. Foi o sadismo (FREUD, 1915/2006, op. cit.) direcionado aos objetos que permitiu comprovar que tanto o amor como a destruição podem recair sobre o mesmo objeto e, também podem voltar-se para o eu. Freud (1924/1996, op. cit.) desenvolve esta questão em “O problema econômico do masoquismo” apontando o eu como primeiro objeto da pulsão de morte. Essa questão nos interessa, especialmente, porque o masoquismo apresenta-se como um fenômeno no qual o princípio de prazer não está em ação. “Se o sofrimento e o desprazer podem não ser simplesmente advertências, mas, em realidade, objetivos, o princípio de prazer é paralisado – é como se o vigia de nossa vida mental fosse colocado fora de ação por uma droga” (p. 117). 92 O eu somente poderá se formar enquanto unidade se a pulsão de morte for ligada, caso contrário nunca chegaria a existir. Freud postula, assim, um masoquismo primário, estado no qual a pulsão de morte é dirigida para o próprio sujeito, mas ligada pela libido em um intricamento pulsional. Este intricamento deve ser pensado inicialmente a partir do laço libidinal entre mãe e filho, pois é a mãe quem se encarrega de ligar a pulsão de morte pela libido investida na criança, já que a criança não pode fazer isso por si mesma. Originase daí, a partir do outro, um núcleo masoquista primário/originário no eu, que assegura ao eu a possibilidade de receber e guardar determinada quantidade de energia. A possibilidade de tolerar certa excitação assegurada pelo masoquismo primário permite o desenvolvimento da vida psíquica. Esse núcleo masoquista permite um eu em estado ligado (constantemente investido) e como reservatório libidinal. Se não fosse um masoquismo original qualquer tensão seria sentida como insuportável pelo eu. De certa forma, encontra aqui seu eco, a dor apontada por Derrida (1995, op. cit.) como necessariamente presente na formação dos traços mnêmicos nas barreiras de contato no Projeto de 1895, a capacidade de suportar uma certa tensão possibilita reter determinada quantidade energética necessária para a manutenção da vida. São as excitações despertadas pela mãe no corpo do bebê que possibilitam a construção do corpo pulsional e de uma imagem corporal unificada com a qual o bebê vem a se identificar, fundando um eu. Aubert (1996, op. cit.) propõe que uma experiência de dor seria paradigmática do narcisismo e da constituição da ideia de corpo próprio. A dor permite a ligação de certas representações, garantidas por percepções externas às sensações e afetos (internos). Tal ligação funcionaria como experiência de unificação na vida do aparelho psíquico, a partir da qual ele vem aceder a uma auto-percepção de sua organização. Assim sendo, para a autora, a dor seria uma forma depurada do sentimento de ser, já que possibilita a emergência da consciência de um eu-corporal. A perda do seio (na mesma perspectiva da saída de cena da mãe no Fort-Da) é que permite o eu-realidade nascer, garantindo para o sujeito uma distinção em relação ao objeto. Já o narcisismo é a potencialização imaginária do eu-prazer, é o ideal autosuficiente, regido pelo princípio de prazer. A perda do objeto original vai funcionar como prova de uma realidade externa. A carência de satisfação, proveniente da ausência do objeto, obriga, aos poucos, o “sistema fechado” no qual o bebê se encontra, a reconhecer a presença de uma alteridade/exterioridade. A dor presente em toda experiência de perda objetal será marcada pela repetição, pois o objetivo da prova de realidade é reencontrar o 93 objeto original de satisfação perdido. Frente a esse desamparo pelo qual toda perda objetal lança o sujeito, se apresenta a noção de trauma. Nesse sentido Barrois (1998, op. cit.) afirma que o trauma se faz acompanhar da sombra do desamparo, explicitado através do silêncio que segue os sobreviventes de experiências limites, silêncio apontado por Ferenczi na forma do irrepresentável e, sobretudo, por Freud com a introdução do conceito de pulsão de morte em 1920. De forma que o trauma, revelado cruamente pela compulsão à repetição toca os limites do analisável. A compulsão à repetição revela mais claramente a pulsão de morte, destacando a presença no eu de uma energia diferente da libido. Nesse caso o princípio de prazer seria uma tendência, como destacamos no início do capítulo, a serviço de uma função mais ampla e primitiva – fazer com que o aparato psíquico fique livre de toda energia. Assim sendo a compulsão a repetição coloca um limite à rememoração e ao método interpretativo centrado na idéia de representação. Somos sujeitos interpretativos devido à capacidade egóica de promover a ligação da energia pulsional em representações, permitindo que uma trama de traduções sucessivas possam se constituir. A compulsão à repetição levanta uma outra face do aparato psíquico fora do campo representacional, ainda que em alguns casos possa contribuir para sua instauração. Nas análises foram notadas situações nas quais os pacientes agem a dor, esclarece Knobloch (1998, op. cit.) “não por formação de compromisso, mas por uma impossibilidade de representação, por um excesso pulsional em que o trabalho do pensamento não poderá acontecer” (p. 81). III.5. O limite da representação Segundo Garcia-Roza (2004), a formulação do conceito de pulsão remete a um espaço do campo psicanalítico que está além da ordem, compreendendo duas grandes regiões: 1) abrangendo o que Freud instituiu como aparato psíquico, abarcando o inconsciente e o pré-consciente/consciente; 2) outra região para além do princípio do prazer, lugar próprio das pulsões. O primeiro lugar/espaço é o campo das representações, onde já houve a dominação prévia das forças pulsionais; esse espaço se caracteriza por uma certa ordem definida pelo princípio de prazer. A pulsão, por sua vez, ocupa o lugar do caos, situando-se “além da ordem e da lei, além do inconsciente (...), além do princípio de prazer e do princípio de realidade, além da linguagem: é o lugar do acaso” (p. 127). 94 A linguagem possibilita uma narrativa, que serve para ordenar os acontecimentos vividos, ou fantasiados, em uma sucessão histórica e temporal, permitindo assim dar um sentido e configurar um destino para o excesso pulsional. Através da simbolização o representante pulsional deve encontrar uma expressão diferente da compulsão à repetição. Toda a linguagem implica uma transmissão de símbolos passíveis de serem interpretados, é por ela que vislumbramos a pulsão sob forma do desejo. Contudo para chegar aos processos de simbolização é preciso primeiro mediar essa energia, caso o eu não consiga efetuar essa ordenação, temos aí algo caótico, estranho ao eu, conhecido como o irrepresentável – energia pura. O irrepresentável, segundo Miller (1992) “se acha ancorado/cristalizado no corpo e parece repetir de maneira compulsiva o fracasso da realização alucinatória do desejo” (p. 57-58)14. O irrepresentável seria, então, aquilo que não se pode decifrar de maneira adequada para colocar em palavras, de forma que esse excesso encontra uma outra forma de manifestação, como vimos nos exemplos acima. Seriam “tanto ligados à fantasias libidinais arcaicas, contemporâneos da aquisição do „sim‟ e do „não‟, quanto seriam clivados, enquistados antes que recalcados” (Id., Ibid., p. 58)15, retornando sob a forma da compulsão à repetição. Frente ao excesso experienciado e o inundamento do aparato pelo montante de energia, o eu, pego de surpresa, não tem poder para refrear o impacto desta experiência. Como não existe um meio de impedir que o aparato psíquico seja alvo constante das excitações, o problema central para a sobrevivência do sujeito é a defesa e a dominação dessa energia. Ligar a energia está diretamente relacionado com a pulsão, pois é através da ligação que a energia pulsional pode assumir formas organizadas e ser representado psiquicamente. Ligar consiste, em outras palavras, amarrar a energia pulsional a certos conteúdos; significa um freio, uma contenção desta energia, que após dominada pode ser ligada a representações. O que Freud apresenta em 1920 é uma forma de narrativa proveniente dos sobreviventes das grandes catástrofes, em especial a primeira grande guerra, que foge por completo da forma de narração tradicional encontrada nos casos clássicos das neuroses de transferência. Walter Benjamim (1933[1994]) espantou-se com a mudez dos soldados da primeira guerra mundial, perguntando por que eles “tinham voltado silenciosos dos campos de 14 15 Tradução nossa. Tradução nossa. 95 batalha. Mais pobres em experiências comunicantes e não mais ricos” (Id., Ibid., p. 115). Normalmente as experiências vividas pelo homem são aprendidas e adicionadas a sua bagagem cultural como um novo conhecimento sobre determinada questão. Porém durante a guerra nunca houve experiências tão traumáticas, de excesso e limite; o ser humano foi colocado além do limite suportável, ao caos, fome, medo, desamparo; sobrevivendo ao terror caótico das trincheiras e a “explosões destruidoras, em meio a isso, estava o frágil e minúsculo corpo humano” (Loc. cit.). Para lançar luz sobre esse questionamento Benjamim (Ibid.) cita uma parábola na qual um pai, dono de um vinhedo, conta aos filhos que havia um tesouro enterrado nas vinhas. De posse desta informação os filhos escavam todo o terreno das vinhas e nada encontram. Contudo com a chegada da estação da brotação os vinhedos produzem mais que qualquer outro na região. A partir disso os filhos compreendem que o pai não havia escondido nenhum tesouro, mas legou uma experiência preciosa: “sua riqueza lhes advém dessa experiência” (GAGNEBIN, 2006, op. cit., p. 50). Walter Benjamin mostra através desta parábola o estatuto da experiência que passa de geração em geração. Na modernidade esta experiência se perde, acarretando com isso a perda das formas tradicionais de narrativas. O trauma tal como exemplificado no terror caótico das trincheiras impossibilita a narração tradicional. Não havendo uma possibilidade de responder por essa via a saída se dá pela compulsão à repetição. “O fim da narração tradicional (...) esboça como que a idéia de uma outra narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre cacos” (Id., Ibid., p.53). A experiência se inscreve em uma temporalidade comum a várias gerações, como um tesouro, retomado dentro de uma tradição compartilhada através da palavra transmitida a cada nova geração. Essa experiência carrega o conhecimento que se aplica à prática comum. O pai moribundo no limiar da morte aproxima o mundo vivo e familiar deste outro mundo desconhecido e estranho que de certa forma é comum a todos através do compartilhamento da experiência. A este respeito, Herzog (2011) salienta que não se trata de lamentar a perda da experiência, mas “de fazer a experiência da perda, podendo assim inventar outro modo de expressão a partir dos fragmentos (Darstellung)” (p. 10). A Darstellung irá configurar como um lugar diferente do registro representacional, como um lugar de passagem, da ordem do sensível. Benjamin (1933/1994, op. cit.), nota algumas consequências a respeito do esfacelamento da narrativa após o término da primeira guerra e a volta dos soldados do 96 front. Há uma mudança no comportamento burguês, procurando compensar o silêncio opressivo que acomete os sobreviventes. Nota-se aí uma perda gradual do sentido da coletividade, um imperativo de interiorização, que se faz notar em um segundo momento no âmbito espacial. A arquitetura começa a valorizar o interior, a casa principalmente se transforma em um refúgio contra o hostil e perigoso mundo externo. Aqui podemos notar uma correlação com o eu fragilizado que projeta para o exterior a angústia de morte que o assola, o sujeito busca proteger-se através da segurança das sólidas paredes da casa própria. Da mesma forma quando a criança se vê em apuros busca refúgio nos braços dos pais, o adulto procura proteção no interior de sua morada, na qual se tem uma ilusão de segurança e controle. Frente à despersonalização provocada pelo trauma, Walter Benjamin, citado por Gagnebin (2006, op. cit.), observa uma crescente preocupação das pessoas em deixar sua marca nos objetos que lhe pertencem, como sinal de sua posse e de sua própria existência. Iniciais são bordadas em lenços, roupas, caixas, estojos, etc. O veludo ganha grande destaque nesse período, nele o proprietário deixa facilmente seu rastro ao tocá-lo. Vemos aí uma necessidade de confirmar a existência, seja através dos rastros da mão calcada no veludo ou pela letra inicial do nome próprio nos objetos; é sobretudo nestes casos que Benjamin percebe uma nova forma de narrativa, uma mediação simbólica. A fim de exemplificar o que vimos até aqui sobre a compulsão à repetição e como se dá essa outra forma de narrativa, mencionaremos o caso de Tito de Alencar, descrito por seu psiquiatra Jean-Claude Rolland (1986). Tito era brasileiro, padre dominicano, estudou filosofia na USP (Universidade de São Paulo) e era ligado aos comunistas - opositores do regime militar vigente no Brasil a partir do golpe de estado de 1964. Tito foi preso em 1969 pela polícia brasileira, foi cruelmente torturado durante trinta dias sob as ordens do delegado/comissário Fleury, nos porões do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) – órgão criado durante a presença militar no governo brasileiro com o intuito de controlar e reprimir os movimentos que eram contra o regime no poder. A liberdade chegou a Tito e outros graças à possibilidade de troca desses prisioneiros pelo embaixador da Suíça, sequestrado pelos insurgentes, em 1970. Tito de Alencar é imediatamente expulso do Brasil, junto com os demais prisioneiros. Inicialmente após a soltura permaneceu um curto período no Chile, mas sob o perigo de ser preso (pois os militares chilenos também haviam tomado o poder em um golpe de estado) foge para a Itália, onde não encontra apoio da Igreja católica. Finalmente, é acolhido pela ordem 97 dominicana na França. É a partir daí que Rolland (Ibid.) conhece Tito, ou melhor, o que sobrou dele após a experiência carcerária. Rolland (Ibid.) descreve que encontrou um homem quebrado, um farrapo humano, uma sombra do homem idealista que fora outrora. Durante sua estada no presídio Tiradentes, em São Paulo o qual abrigava presos políticos durante a ditadura militar, Tito redige de forma febril e bastante literal todo processo de tortura sofrido. Esses escritos correram o mundo e tornaram-se o símbolo do movimento pelos direitos humanos e da luta pelo fim da tortura no Brasil. Tito continua a redigir essas experiências durante a estada na França, mas de forma menos acentuada. Tais escritos parecem ser uma maneira de “reconstituir uma verdade interior, é certo que neste ponto bem preciso a tortura tinha sido a razão para isso” (Id., Ibid., p. 224)16. A forma febril e a frieza da narrativa da experiência de tortura se caracterizam por uma descarga sem mediação; compulsão à repetição onde Tito revivia freneticamente o traumático, em uma tentativa desesperada de conter a dor desta experiência avassaladora. Benjamin (1994, op. cit.) aponta que nos 10 anos subsequentes ao término da primeira guerra mundial (1914-1918), centenas de livros contendo histórias dos sobreviventes inundaram o mercado literário. Nestes livros se encontravam relatos pessoais de experiências que não eram transmissíveis de boca em boca, eram narrativas das vivências devastadoras nas trincheiras e nos campos de batalha. Narrativas idênticas aos relatos de Tito sobre sua experiência carcerária. No período o qual Tito foi acolhido pelos confrades dominicanos tem início um drama, que leva-nos a perceber a quão destrutiva a tortura foi, envolvendo manifestações alucinatórias, fugas do mosteiro e, uma série de acontecimentos sem explicação aparente. Certa vez Tito havia ficado parado sob chuva torrencial, embaixo de uma árvore, localizada bem em frente ao mosteiro; foi aí que um padre muito próximo de Tito descobre a razão desses acontecimentos – o comissário Fleury aparecia alucinatoriamente para Tito – e dava ordens, tais como: não entrar no mosteiro, ficar sob a chuva, não dormir, entre outras. Várias vezes os dominicanos encontravam Tito em posições diversas, ou suplicando, ou como se escondendo de alguém. Essas cenas dramáticas sempre repetidas por Tito aos poucos foram compreendidas por Rolland (1986, op. cit.): tratava-se de uma repetição “Integral, literal da situação de tortura” (p. 224)17. 16 17 Tradução nossa. Tradução nossa. 98 Segundo Rolland (Ibid.) havia uma dimensão intencionalmente teatral nestas cenas reproduzidas por Tito: cenas que repetiam compulsivamente todo aviltamento sofrido nas sessões de tortura, toda “espécie de sevícias que o tinham submetido durante sua tortura, muito melhor e muito mais precisamente que ele podia escrever. Nós tocamos aqui no limite da linguagem, que não pode compreender aquilo que escapa à consciência” (Id., Ibid., p. 225)18. As cenas dramatizadas traziam uma dimensão mais profunda, tais cenas podiam transmitir tudo àquilo que havia sido trocado inconscientemente entre torturado e torturador. No entanto esse sentido não é compreendido pelo torturado devido ao excesso a que é exposto na tortura. Mesmo escrevendo de forma literal a experiência sofrida nos porões do DOPS, a linguagem parece impotente para dar vazão ao afluxo de excitação presente nesses casos traumáticos, porque não há palavra que possa representar a força do trauma. Não há palavra que possa equivaler à dimensão do que foi vivido. No caso de Tito de Alencar essa dramatização se deve à forma sistemática e cruel empregada pelo carrasco durante a tortura. Nos relatos de Tito sempre há menção a várias pessoas que estavam presentes durante as sessões de tortura como expectadores, ele notava a presença de vários olhos observando-o enquanto era espancado, eletrocutado, sofria sevícias e humilhações. Esse voyeurismo a que foi exposto parece ter relação com a dramatização de seus estados delirantes, havia um exibicionismo compulsivamente encenado nestes estados, caracterizando uma repetição da própria experiência de tortura sob o olhar de terceiros, da qual ele nunca se libertou. A compulsão à repetição observada em Tito foi a última barreira defensiva de um eu entrando em colapso, sendo esmagado pela pressão das forças pulsionais sem ter qualquer meio para dominá-las. Amarrado nu ao pau-de-arara durante trinta dias, por até 12 horas seguidas Tito foi torturado. Por fim, seu suicídio na França prova o poder destrutivo do trauma vivido sob a forma da tortura. Há toda uma explanação feita pelo próprio Tito, em seus escritos, sobre a tortura sofrida e retomada por Rolland para demonstrar que os torturadores tinham um propósito bem definido ao fazê-lo passar por essa via-crucis; entretanto tal detalhamento foge aos propósitos deste trabalho. Buscamos apenas exemplificar a presença da compulsão à repetição nessas situações traumáticas. No caso de Tito a tortura o faz identificar-se permanentemente a um corpo que foi sistematicamente ligado à dor. “Deposto em seguida de sua fala de sujeito, na medida onde a empresa sexual a qual vai tomar o carrasco faz a 18 Tradução nossa. 99 vítima se identificar a um corpo erógeno que apenas fala de excitação e de compulsão à repetição” (Id., Ibid., p. 232,)19. Por meio desse trágico exemplo vemos que o trauma é entendido como algo da ordem do excesso, excesso que rompe os limites que definem o próprio sujeito. O rompimento destes limites refere-se à invasão do eu por montantes energéticos que o desafiam a dominá-los. A compulsão à repetição evidencia justamente a presença deste excesso não ligado, que retira do sujeito a possibilidade de escoá-lo via simbolização. Dessas observações destacamos um limite ao modelo da interpretação proposto por Freud durante a primeira tópica. Portanto um novo modelo tópico aparece no horizonte, assim como um novo modelo de temporalidade daí advém, uma vez que será preciso construir uma memória para que este excesso encontre vazão. A compulsão à repetição das neuroses traumáticas evidencia que não há rememoração, não existe um caminho para ser reconstituído com a finalidade de chegar até a lembrança recalcada, porque sequer houve representação e, consequentemente não há o que recalcar. Tito, portanto, age a dor; seja por meio de seus escritos, seja nos estados delirantes. O eu de Tito foi sufocado, dia a dia, por quantidades de mensagens – sonoras e corporais, as quais não conseguia filtrar ou codificar; sob a presença mortífera deste excesso uma defesa é acionada para evitar a morte do eu – a compulsão à repetição. Frente a estas observações uma pergunta se faz necessária: como barrar a compulsão à repetição? Como trabalhar com algo que não foi representado? Parafraseando Freud, uma nova ação psíquica deve ser acrescentada à compulsão à repetição para que finalmente o excesso seja ligado e o sujeito possa escapar do efeito devastador da pulsão de morte. Essa nova ação psíquica seria proporcionada pelo outro que funcionaria como um eu auxiliar, possibilitando ligar a pulsão de morte. III.6. Como proceder frente ao irrepresentável? Freud (1933[1932]/1996) nas „Novas conferências introdutórias sobre psicanálise‟ define o trauma como uma experiência que traz à mente, em um período muito curto de tempo, uma excitação grande demais para ser absorvida. Como consequência, conforme ressalta Seligmann-Silva (2000), o que vem à tona, nos sobreviventes de grandes catástrofes, são fragmentos, “ou cacos de uma memória esmagada pela força das 19 Tradução nossa. 100 ocorrências que nunca chegam a se cristalizar em compreensão ou lembranças” (p. 10); o que figura uma outra forma do aparato operar fora do princípio de prazer, característica dos casos de neurose traumáticas. O autor supracitado está fazendo referência à narrativa de cacos proposta por Walter Benjamin (1994, op. cit.). Havíamos apontado no início do capítulo, através do exemplo do sonho de Primo Levi (1990, op. cit.), a necessidade da narração do trauma como confirmação de uma vivência que dificultou sua apreensão. Os outros, como testemunhas, fazem o papel de um anteparo, suportando e, reflexivamente ajudando o sobrevivente a dar um sentido à experiência traumática. Da mesma forma, segundo Gagnebin (2006, op. cit.), alguns soldados, tocados pelas condições subumanas dos campos de concentração, com um simples olhar, ou uma troca de palavras davam ao prisioneiro um suporte, retirando-os da indiferença e trazendo, assim, um mínimo de humanização ao ambiente cáustico destes campos. Frente ao trauma a perspectiva de futuro vai se apagando diante de uma necessidade bem mais urgente: a sobrevivência. A consequência de uma vivência traumática é a destruição da capacidade de discernir entre o real e o irreal, ocorrendo uma fragmentação no eu. Tal ferida implica “uma impressão repentina, muito forte, de não ter escapado à morte, mas tê-la atravessado” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.94). O trauma é uma ferida aberta no eu por um acontecimento violento que o impede de ser elaborado simbolicamente configurando as marcas psíquicas. São estas marcas que despertam uma ânsia violenta de narrar; entendemos essa narração como uma tentativa de contenção do traumático, um jorro de palavras as quais na medida em que são “transpostas para os outros, permite que o sobrevivente inicie um trabalho de religamento ao mundo, de reconstrução” (Id., Ibid., p. 66). A esse respeito já vimos no capítulo I que a leitura da carta 52 (FREUD, 1896/1996) permite fazer uma distinção entre traço e marcas psíquicas. Tendo em vista essa questão Herzog (2011) afirma que a concepção de aparelho psíquico fica “ampliada sendo que a produção de representação (Vorstellung) não é sua única alternativa; em outros termos produzir uma narrativa encadeada não é a única saída” (p. 9), de forma que o aparato psíquico comporta outra forma de expressão. Contudo é preciso ter presente que essa capacidade de escape pela via narrativa parece ter um limite. Seligmann-Silva (Ibid.) baseado em Primo Levi (1990 op. cit.), afirma que nos campos de concentração da segunda grande guerra, aqueles que puderam 101 testemunhar posteriormente os acontecimentos somente o conseguiram porque mantiveram uma certa distância, por várias razões, dos eventos do campo. “A história do Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão” (LEVI apud SELIGMANN-SILVA, 2008, op. cit., p. 68). Assim como Perseu vislumbrou a Medusa pelo reflexo de seu escudo conseguindo evitar seu olhar mortal, aquele que encara, por assim dizer, o trauma é petrificado/paralisado, por uma necessidade urgente: conter a energia que rompeu o paraexcitação. Kafka (1998) em uma novela chamada: “Na colônia penal” descreve uma máquina hedionda que serve de punição aos apenados. Nesta obra podemos extrair algumas informações que nos ajudam a compreender melhor como o traumático se configura enquanto marca psíquica. Essa máquina escreve na carne do condenado a palavra que corresponde ao seu crime, fazendo-o sentir de forma literal o peso e a especificidade da sentença que recebeu. No decorrer do texto um observador, convidado a assistir a execução, pergunta ao operador da máquina se o condenado conhece a própria sentença, o operador responde negativamente, e faz uma breve explicação: “Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne” (Id., Ibid., p. 36). O observador, espantado com a resposta, pergunta se o prisioneiro teve julgamento ou alguma possibilidade de defesa, ambas as perguntas são respondidas negativamente, com um complemento surpreendente do operador da máquina: “a culpa é sempre indubitável” (Id., Ibid., p. 38). O crime cometido pelo prisioneiro, que é um soldado da colônia penal, foi faltar com o seu dever, dormindo na hora do plantão, e faltar com o respeito a um superior que o repreendeu por dormir em horário de trabalho. Através dessa série de perguntas feitas pelo observador podemos destacar os aspectos que aproximam esta situação do traumático. A surpresa do prisioneiro em ser condenado à morte, sem julgamento para poder defender-se; o desamparo a que é acometido por essa revelação e a impotência a que é submetido ao ser amarrado nu à máquina enquanto a sentença é cumprida. Tal como ocorre nos acontecimentos traumáticos nos quais figura uma impossibilidade de defesa, o sujeito é surpreendido por algo que não esperava, impossibilitando uma reação adequada. Na ficção kafkiana o suplício dura 12 horas até a máquina transpassar o corpo do condenado. Durante a descrição do processo de escrita, é explicado ao observador, que 102 após 6 horas é retirado da boca do condenado um pedaço de feltro, colocado desde o início do processo, porque agora ele não tem mais forças para gritar – “como o condenado fica tranquilo na sexta hora” (Id., Ibid., p. 44). O entendimento o iluminou, pois ele começa a decifrar o que a máquina está escrevendo em seu corpo, não com os olhos, mas através da dor. Temos aí um corpo que fala pela dor, marcado em seus limites pela dor. Nesse sentido a dor, como uma pseudo-pulsão, eterniza a ferida; a dor é aquilo que não nos permite esquecer, é através da sua força destrutiva agindo sobre o eu que encontramos a presença da pulsão de morte. A dor repetida em atos, característica dos processos traumáticos, esclarece Birman (2005, op. cit.), denota uma experiência na qual a subjetividade se fecha narcisicamente em uma espécie de solipsismo. Neste fechamento podemos notar, por um lado, a expressão da pulsão de morte que pela via da repetição mortifica o sujeito, coagindo-o a eternizar a sua dor; e por outro, uma tentativa de ligação, característica das pulsões de vida. As duas pulsões aparecem sempre imbricadas “temos que supô-las associadas, desde o início” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 67). Em 1937 Freud aproxima-se das teses de Empédocles de Agrigento quando afirma que “Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem” (p. 262-263). Esse fechamento em uma espécie de mônada narcísica é uma forma de defesa frente a uma exposição ao pulsional, que fere o eu de forma brutal. Para Roussillon (1999) o sujeito se retira, para sobreviver, da experiência traumática, cortando-a (clivando) de sua subjetividade. “De um lado, a experiência foi vivida e, portanto, ela deixou traços mnésicos de sua experiência e ao mesmo tempo, de outro lado, ela não foi vivida e apropriada como tal na medida onde, como o diz Winnicott, ela não foi colocada na presença do eu” (p. 20), o que suporia sua representação. O fato de o eu clivar a experiência traumática não faz com que ela desapareça, as marcas deixadas no psiquismo conservam sua força quantitativa e, irão reproduzir-se pela via da compulsão à repetição, nesse sentido, estão em um modo de funcionamento além do princípio de prazer. Assim a compulsão a repetição remete a um empobrecimento dos processos de simbolização; caracterizada por uma “forma perturbada da ação, na qual o sujeito não consegue mais regular os seus impulsos, que se descarregam como atos rudes e que voltam até mesmo contra sua própria autoconservação do corpo” (BIRMAN, 2003, p. 27). 103 A passagem ao ato, uma característica dos transtornos alimentares, por exemplo, é compulsão à repetição. São descargas momentâneas, irruptivas, que não sofrem mediação, tomam o sujeito e o coagem em determinada direção; uma vez feita a descarga, após certo tempo, o processo precisa ser repetido, já que o ato extingue apenas temporariamente sua força. Essa ação denota uma violência sobre o próprio sujeito, e também sobre o outro em casos de delinqüência, por exemplo; contudo queremos marcar que a compulsão à repetição se caracteriza “como uma descarga psicossomática com nulo poder de simbolização” (loc. cit.). É a ausência de uma simbolização que alimenta a repetição como defesa. “É certo que a vida se protege pela repetição” (DERRIDA, 1995, op. cit., p. 188), a repetição é um dispositivo defensivo para lidar com o excesso de excitação que irrompe sobre o aparato. Isso causa uma repetida presentificação da vivência dolorosa, remetendo a um passado que não passa; sustentados por manifestações corporais implicadas na ordem da compulsão à repetição e “da ação desagregadora da pulsão de morte no interior do eu. Tratar-se-ia de uma memória ligada ao registro da sensibilidade, memória ligada ao corpo” (MALDONADO E CARDOSO, 2009, op. cit., p. 53). Seguindo esta idéia Godfrind (1994, op. cit.) afirma que a repetição é uma ruptura em relação ao funcionamento simbólico e portador de sentido, sendo assim enigmática para o analista que busca informações dentro do registro simbólico. Na busca de semelhanças entre o passado e o presente Proust (1913/2003), no livro I da trilogia “Em busca do tempo perdido”, nos proporciona através de suas percepções a presentificação do passado. Evocando memórias que são despertadas mediante certas sensações: “Sua memória, a memória de suas costelas, dos joelhos, dos ombros, lhe apresentava sucessivamente vários quartos onde havia dormido (....) meu corpo recordava cada quarto, o tipo de cama, o local das portas” (Id., Ibid., p. 12). Embora Proust se esforce para encontrar uma memória quase integral do ambiente que o cerca, o interessante é uma memória que só pode ser evocada pelo sensível, uma memória corporal que é posteriormente construída, ou melhor, definida, com ajuda da imaginação. Nessa concepção de uma memória do sensível, Birman (1999, op. cit.) pontua que o afeto se inscreve no registro da consciência, o que leva a indagar-nos de que consciência se trata. É a consciência-percepção (assim como Freud concebeu em 1900 na „Interpretação dos sonhos‟): “a porta de entrada da força pulsional no organismo e é ainda por ela que se realiza seu retorno a partir do outro” (Id., Ibid., p. 69). Assim o pulsional exigirá uma 104 medida do sujeito para dominar sua força; caso esse trabalho não se realize o sujeito estaria condenado a repetir o impacto traumático dessa afetação e “seria precipitado impiedosamente ao masoquismo mortífero (...) assim se o sujeito não passar pela mediação do outro, ele estará condenado ao trauma mortífero e a uma hemorragia contínua das forças pulsionais” (loc. cit.), que tomará a via da descarga através da compulsão à repetição. É, pois, o outro que possibilita essa ligação ao simbólico e rompe o fechamento traumático. Nesta perspectiva Felman (2000) entende que testemunhar é realizar um ato de fala, o testemunho, diferente da narração tradicional, “volta-se para aquilo que, na história, é ação que excede qualquer significado substancializado, para o que, no acontecer, é impacto que explode dinamicamente qualquer reificação conceitual e delimitação constativa” (Id., Ibid., p. 18). O testemunho é pessoal, traz consigo o pesado fardo daquele que o profere e, portanto, é único, não é intercambiável “é um fardo solitário” (Id., Ibid., p. 15), não há como testemunhar pela testemunha. O testemunho é notadamente paradoxal, pois se caracteriza como um rompimento do isolamento da experiência traumática, para falar intercedendo pelos outros e para os outros. Portanto ele torna-se o veículo de uma ocorrência, da própria realidade traumática, conferindo um lugar na história do sujeito de algo que estava para “além dele mesmo” (Id., Ibid., p. 16). A narrativa, composta de fragmentos, na concepção de Walter Benjamin (1994, op. cit.), consiste em um trabalho de religamento ao mundo. Narrar o trauma, nas palavras de Seligmann-Silva (2008 op. cit.), tem o sentido primário do desejo de renascer, a que podemos remeter a manifestação da pulsão de vida. Contudo o narrador irá se deparar com a dificuldade extrema de encontrar na linguagem uma forma de traduzir o excesso vivido; uma vez que as palavras sempre ficarão aquém da realidade experienciada, faltaria realidade às palavras. É aí que a “imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua narração” (Id., Ibid., p. 70). O termo buraco negro parece bastante adequado para caracterizar o empuxo que o trauma realiza no sujeito; devido à dor produzida constantemente o trauma é pura presentificação, puxando para si toda força produzida para contra-investir até drená-la por completo, levando, assim, o sujeito à morte. Tendo em vista estas questões evocamos a figura do narrador caracterizado por Walter Benjamim (1986) como sucateiro; conforme ressalta Gagnebin (2006, op. cit.), esta figura tão comum nas caóticas grandes cidades, recolhe os cacos, fragmentos, em meio aos detritos. Uma alusão à nova forma de narrativa que foge ao convencional, pois a narrativa 105 do traumático é constituída por essas ruínas, “uma transmissão entre cacos e migalhas” (Id., Ibid., p. 53). Cremos que o analista deve estar atento justamente a esses fragmentos que brotam via ato; e são movidos, certamente pela força destrutiva da pulsão de morte, mas também encerram um clamor da vida em não se deixar perder nestas partes desconexas. Deste modo remetemos a uma alusão muito próxima do narrador sucateiro: Freud em „Construções em análise‟ (1937/1996, op. cit.) afirma que a tarefa do analista se aproxima de arqueólogo escavando fragmentos do passado, ou seja: é preciso “completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo” (p. 276). A construção seria a via que ajudaria a descartar a repetição. Dentro desta acepção a construção, mediada pelo outro funcionando como um eu auxiliar, emerge como uma forma de ordenar o caos, possibilitando unir elementos dispersos. O analista como o sucateiro juntaria esses cacos dispersos e daria uma forma a essa massa desorganizada. A possibilidade de organizar os elementos caóticos provenientes do traumático em uma organização temporal e histórica – permitiria enfim, um arranjo diferente do trauma. Duparc (2008) considera que a construção está do lado da interpretação e, aponta alguns perigos nesta empreitada, tal como a sugestão baseada na sedução da autoridade do analista. O analista pode negligenciar o papel do analisando e sustentar sua autoridade sugestiva, na qual o analisando corre o perigo de alienação. São ameaças que devemos levar em conta, não somente nas construções relacionadas ao traumático, mas no próprio trabalho de interpretação das neuroses de transferência. Entendemos a construção como uma retomada dos elementos perceptivos desorganizados, tal como a figura da mãe que ajuda o bebê a organizar as pulsões parciais inicialmente em um todo. Dessa forma a construção é preparatória à interpretação, na medida em que o analista como um eu auxiliar, empresta forças ao eu quase esvaziado do analisando para ligar a energia disruptiva. Longe de ser uma tarefa fácil “a mente do escavador está lidando com objetos destruídos, dos quais grandes e importantes partes certamente se perderam, pela violência mecânica, pelo fogo ou pelo saque” (FREUD, 1937[1940], op. cit., p. 277). Freud (Ibid.) lembra que para o analista, a construção constitui apenas um trabalho preliminar. O analista ao completar um fragmento comunica ao paciente para que a partir desse material construído se possa agir sobre ele. Dessa forma se constrói um novo fragmento a partir do novo material e assim por diante. A simbolização gera uma 106 temporalização do traumático encriptado. É por esta via que há uma possibilidade de sair do campo da sobrevivência para voltar à vida. No entanto, conforme indica SeligmannSilva (2008, op. cit.), trabalhar com sobreviventes de acontecimentos traumáticos “nos ensina a sermos menos ambiciosos ou idealistas em nossos objetivos terapêuticos. Para o sobrevivente sempre restará este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter morado como que do outro lado do campo simbólico” (Id., Ibid., p. 69). Considerações finais Tivemos como principal objetivo nesta dissertação realizar um mapeamento do conceito de repetição na obra freudiana. Para essa empreitada partimos do Projeto de 1895, texto no qual a repetição aparece colocando questões importantes para o desenvolvimento teórico-clínico da psicanálise. Detemo-nos particularmente na vivência de dor, que nos permitiu destacar a presença da repetição de uma vivência dolorosa que o eu não consegue refrear devido às quantidades excessivamente intensas envolvidas neste processo; fato que traz impasses ao modelo de aparato neuronal criado para dominar excitações e, também não se adequa às exigências do princípio de prazer. É importante lembrar que o Projeto de 1895 ocupa um lugar singular entre os outros textos produzidos por Freud, uma vez que foi abandonado e, anos depois ao ser descoberto, Freud tentou por todos os meios destruí-lo. Entretanto, encontramos neste manuscrito renegado germens de elementos conceituais importantes, que aos poucos serão retomados e desenvolvidos de acordo com o avanço das pesquisas teórico-clínicas freudianas. Dentre desses elementos destacamos a vivência de dor, o para-excitação, vivência de satisfação, princípio de inércia, energia livre e ligada, entre outros. Ao propor uma “psicologia científica” Freud (1895[1950]/1996, op. cit.) dispôs os neurônios, matrizes que compõem o sistema nervoso, em três sistemas distintos (phi (), psi () e ômega (ω)). A principal diferença entre os sistemas é a capacidade de reter ou não a excitação que passa por eles: tal disposição o sistema psi () de ser a sede da memória, na medida em que os neurônios deste sistema são os únicos capazes de guardar informações da passagem da quantidade. A energia ao passar pelas barreiras de contato existentes nesse sistema neuronal encontra uma resistência que somente é transposta quando a energia da corrente é superior a da barreira. Dessa forma é deixado um traço mnêmico referente à passagem da energia nesta barreira, possibilitando formar uma memória e, permitindo ao aparato nervoso empreender o caminho mais eficiente para escoar a energia que por ele circula. Escoar a energia de forma eficaz é fundamental porque o sistema nervoso, proposto por Freud (FREUD, 1895[1950]/1996), opera de acordo com duas funções básicas: (1) seguindo o modelo do arco-reflexo – descarga energética total; (2) pela fuga do estímulo: função primária e secundária, respectivamente. A função primária corresponde de maneira mais ampla à finalidade de todo o organismo – princípio de inércia (livrar-se de toda 108 excitação); A esse propósito tal formulação, segundo Derrida (1995, op. cit.), impede de nos surpreendermos com o artigo escrito 25 anos depois: Além do princípio de prazer (FREUD, 1920/2006, op. cit.), no qual Freud declara que as exigências da vida obrigam o aparato a seguir um caminho mais amplo, mas no final das contas segue o propósito de toda a vida – a morte (nível zero de excitação no aparato). A função secundária, por sua vez, responde ao princípio de constância – funcionamento do aparato em um nível mínimo de energia, essencial para realizar a ação específica a fim de satisfazer os estímulos endógenos. O sistema psi (), também, é a sede do eu (psi () núcleo) caracterizado por um núcleo de neurônios permanentemente investidos (fato que implica certa tolerância à tensão), isso os capacita de transformar a energia em estado livre (processo primário) em energia ligada (processo secundário); fundamental para sobrevivência do aparato neuronal. A vivência de dor se aproxima da noção trauma (referente ao Além do princípio de prazer (FREUD, 1920/2006, op. cit.)) precisamente pela insuficiência egóica em gerir um nível muito grande de excitação que o invade. Há outro ponto que toca a questão da repetição, a energia exerce violência nos pontos de resistência entre os neurônios (as barreiras de contato) e, os sinais dessa violência são os traços após sua passagem. Portanto, a formação desses traços implica a dor, conforme aponta Derrida (1995, op. cit.), assim como o eu deve possuir uma tolerância à dor para permanecer constantemente investido de energia, problema que será resolvido apenas em 1924 com a formulação do masoquismo primário. Os traços mnêmicos capacitam à rede neuronal de poder escoar a excitação pelos caminhos mais facilitados, que serão os mais repetidos. Vemos aqui o cumprimento à exigência de manter a energia sempre que possível em um nível constante, mas na verdade também cumpre, em um sentido mais amplo a função primária/princípio da inércia. Uma vez que há sempre energia afluindo para o aparato temos sempre novos caminhos sendo traçados, o que implica uma certa seletividade e capacidade de rearranjo dos caminhos a serem seguidos. A carta 52 (FREUD, 1896/1996, op. cit.) nos possibilita distinguir dois tipos de impressões que são realizadas nos neurônios responsáveis pela memória – os traços e as marcas, distinção que será importante para diferenciar uma repetição como o retorno do recalcado e uma compulsão à repetição que se encontra além do processo de recalque. A dor, apresentada no Projeto de 1895, tem a capacidade de derrubar por completo às barreiras de contato nos neurônios psi (), deixando atrás de si facilitações permanentes. A 109 ocorrência da dor nos permite diferenciar os traços mnêmicos (formados por uma pequena quantidade energética) de algo mais grave, uma vez que a intensidade da vivência de dor tem a capacidade de tornar os neurônios psi () permeáveis (como os neurônios do sistema phi ()) a sua passagem, denotando um perigo regressivo para o aparato. Diferente dos traços a presença da dor forma marcas psíquicas. Na Carta 52 (Id., Ibid.) Freud nos apresenta os “fueros”, como regiões nas quais vigoram leis de um período anterior, de forma que as leis vigentes no aparato não são levadas em conta por essas formações. A partir dessa observação podemos referenciar as marcas psíquicas, criadas a partir da vivência de dor, situando-se fora do campo representacional, pois não sofrem os mesmos processos de retranscrições e rearranjos, citados na Carta 52 (Id., Ibid.), como ocorre no caso dos traços mnêmicos. A vivência de dor nos leva a pensar que as marcas, tais como os fueros, se caracterizam por uma impossibilidade de mudança, o sujeito fica como paralizado diante de um evento que se caracteriza por uma grande descarga energética a qual o eu não pode refrear. Conforme as indicações de Caropreso e Simanke (2006), a partir disso há um processo repetitivo que continua ocorrendo enquanto as representações provenientes da vivência de dor não forem ligadas. Essa repetição ocorre porque a capacidade de ligação do eu foi ultrapassada em muito pela energia invasora. O que leva o aparato a realizar um modo de resposta muito semelhante à compulsão à repetição, conforme Freud nos apresenta em 1920. A função do eu é mediar a energia livre que irrompe no aparato, evitando que certos caminhos (experiências dolorosas) sejam percorridos. Portanto, o eu interfere na circulação da quantidade, e procura livrar-se dessa quantidade pelo método da satisfação, buscando, para isso, no exterior o objeto que lhe trouxe alguma satisfação (o exemplo dado por Freud é a mãe/cuidador que alimenta o bebê cumprindo a ação especifica que este ainda é incapaz de realizar, devido à imaturidade física e neurológica). Entretanto, Freud se depara com um impasse: o domínio pelo eu dos processos primários resultantes de uma vivência de dor são muito mais difíceis de serem alcançados, devido à quantidade excessivamente intensa proveniente de phi (), o que leva o aparato a uma repetição da vivência dolorosa sem que o eu consiga prontamente refreá-la. Frente a uma série de impasses Freud abandona a configuração neurológica do Projeto de 1895 e se detém na vivência de satisfação como fundadora de um aparato psíquico regido pelo princípio de prazer (FREUD, 1900/1996, op. cit.). Pensar o aparato 110 psíquico nessas condições permite manter uma estreita articulação com a repetição, uma vez que o objetivo do desejo (estados desiderativos cujo paradigma é a fome do bebê) é reproduzir uma identidade perceptiva que envolveu um declínio da excitação e foi sentido como prazer. A repetição, nesta acepção, consiste em uma busca constante em reencontrar o objeto que foi perdido na experiência original de satisfação. A vivência de dor não aparece na Interpretação dos Sonhos (Id., Ibid.), consequentemente desaparece também a ideia de um processo primário que possa levar o aparato a reativar vivências desprazerosas, pois agora, em uma configuração de aparato psíquico governado pelo princípio de prazer, tais vivências serão originalmente evitadas. O princípio de prazer impõe ao aparato uma inclinação a barrar qualquer representação aflitiva ou fugir, se possível, de toda experiência que possa implicar uma elevação da tensão energética, porque todo aumento da excitação implica necessariamente o desprazer. A partir daí Freud se volta para a questão da defesa contra as representações que possam causar desprazer ao eu. Para tais representações o eu se utiliza do mecanismo de recalque forçando-as para fora da consciência. Após o abandono da primeira teoria do trauma (1897), Freud se detém nas fantasias inconscientes relacionadas ao período edípico. As fantasias referentes ao período edípico são posteriormente recalcadas devido à incompatibilidade com as aspirações morais introjetadas pelo eu através da educação. Embora recalcar não impede que as representações sejam rearranjadas, como vimos na Carta 52 (FREUD, op. cit.) de modo a aparecerem sob uma formação de compromisso que lhes dá acesso à consciência sob a forma de sintomas, é aí que repetição entra em cena através do retorno do recalcado. O fracasso clínico no caso Dora destaca a repetição das fantasias referentes ao complexo de Édipo, ou seja, é a repetição do sexual que Freud se refere. O desejo sexual da criança é inicialmente dirigido aos seus pais, seus objetos mais próximos; isso ocorre porque os pais/cuidadores são os primeiros reguladores da excitação pulsional e, portanto, o primeiro objeto de satisfação da criança. Nesta configuração o sujeito se fixa libidinalmente na vivência edípica de satisfação, alimentando pela fantasia a satisfação que lhe é negada pela realidade. São essas aspirações edípicas que reaparecem via transferência. O caso Dora forneceu à Freud uma importante lição clínica – tudo que não pode ser enunciado pela fala irá se apresentar de outro modo, até então inesperado, ou seja, se apresenta em ato no registro da transferência. Assim Freud desenvolve o modelo do acting 111 out, o qual supõe um conteúdo psíquico recalcado que é repetido em uma encenação com o analista, reproduzindo não através de lembranças, mas como ato. A repetição via ato é a repetição do sexual, é a manifestação das moções sexuais barradas pelo eu por gerarem tensão entre o sistema consciente e inconsciente. Temos aí uma temporalidade, do passado sobre o presente, que se apresenta (encena) como uma repetição massiva de conteúdos sexuais recalcados. O analista busca rastrear e tornar acessível à consciência o que é repetido em ato pelo analisando, com o intuito de conferir um destino diferente do recalque à libido fixada nestas cenas primitivas. O trabalho analítico, entretanto, não é fácil, pois a mesmas forças libidinais que regrediram alimentando essas fixações se erguerão como resistências ao trabalho de análise. A partir disso para vencer a resistência do paciente em recordar, Freud procura se servir da transferência, tomando-a como uma aliada no processo terapêutico. O manejo transferencial ganha destaque como a principal ferramenta que o analista poderá utilizar para barrar a repetição e conduzir para o âmbito da recordação tudo o que emerge via ato. Em outras palavras é preciso traduzir em palavras aquilo que o paciente procura obstinadamente repetir pelo ato. Entretanto casos clínicos onde a repetição de um mesmo destino trágico se impunha, casos que eram interrompidos ou não avançavam devido a uma resistência feroz, mostram uma repetição muito mais como uma compulsão, excedendo a repetição explicada pelo retorno do recalcado. Nesse sentido voltamos o olhar para as diferenças estabelecidas no primeiro capítulo entre traços mnêmicos e marcas psíquicas, os primeiros estão dentro da concepção de recalque no qual as representações desprazerosas têm seu acesso barrado à consciência e, também, podem ser rearranjadas de modo a aparecer como sintomas. No segundo caso, tudo se passa de forma diferente, os fueros (FREUD, 1896/1996, op. cit.), como mostramos, são “localidades” psíquicas, que não levam em conta a lei vigente do aparato psíquico – o princípio de prazer; estão, portanto, à margem de suas atribuições. Isso traz uma severa consequência para a formulação teórico-clínica de Freud. Tal como a repetição em ato de Dora passou despercebida de Freud, casos em que a repetição não era condizente com o retorno do recalcado também podem ter passado despercebidos. Em uma nota de rodapé acrescentada em 1924 no caso clínico da Sra. Emmy von N. (FREUD & BREUER, 1893-95/1996, op. cit.) Freud reconhece, que os inúmeros abandonos ao tratamento da Sra. Emmy ocorriam sempre que ela obtinha uma melhora, era um “caso autêntico de compulsão à repetição” (Id., Ibid., p. 133). Percebe-se 112 aí um imperativo que obriga o sujeito a repetir determina situação. Entretanto, Freud ainda não dispunha de um aparato teórico que respondesse a esse fenômeno. Notamos a partir daí uma passagem ao ato na qual o sujeito não apresenta seu desejo por meio de uma mise em scène com o analista. Pelo contrário, nas passagens ao ato o desejo é transformado diretamente em ato sem qualquer mediação, o que denota um assujeitamento frente às forças pulsionais que impõem uma direção a qual o sujeito se vê impotente de contrariar. Nesta perspectiva temos uma descarga sem a medição egóica, não há representação, mas um imperativo energético que impele a descarga; o que denota algo que está fora, ou que não passa pelo campo representacional e parece forte o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer. Estas descargas trazem um limite à conceituação freudiana fundada sobre o princípio de prazer porque elas repetem situações dolorosas para o sujeito, situações as quais ele gostaria de resistir, mas não consegue fazer frente ao imperativo das forças em jogo. A eclosão da primeira grande guerra mundial (1914-1918) e o consequente aparecimento de vários casos de neuroses traumáticas envolvendo os sobreviventes deste conflito, somado a impasses teóricos (narcisismo, resistência inconsciente do eu, repetição excedendo o recalque), levam Freud a rever e reestruturar a primeira tópica. Em 1919, no artigo O Estranho, Freud já dá alguns índicos de um outro tipo de repetição que nada tem a ver com o recalque, remetendo pela primeira a idéia de uma compulsão à repetição, proveniente das moções pulsionais poderosa o bastante para sobrepujar o princípio de prazer. A partir de 1920, com o artigo Além de princípio de prazer, Freud inicia uma reformulação tópica. O trauma começa a ser redefinido, partindo agora da ideia de que há na psique uma forte tendência ao princípio de prazer, mas que há outras forças que se opõem a esta tendência, uma vez que ela nem sempre será levada em conta. Os sonhos das neuroses traumáticos chamam a atenção de Freud para uma espécie de compulsão à repetição que toda noite recoloca o sobrevivente de um evento traumático alucinatoriamente ante a situação que desencadeou o trauma. Essa observação leva Freud a entender os sonhos destas neuroses fora da fórmula proposta em 1900 – de que todo sonho é uma realização de desejo. Para explicar como a neurose traumática ocorre, Freud toma emprestado da biologia a ideia de uma vesícula viva; com isso vários temas referentes ao Projeto de 1895 são retomados. A vivência de dor ressurge, em outro nível de elaboração conceitual, mas os 113 termos são basicamente os mesmos do Projeto de 1895 – o aparato é atingido por uma grande quantidade de excitação que rompe o escudo protetor e o invade. Frente a essa energia estrangeira o eu pego de surpresa não tem forças para realizar um contra-ataque à altura; o que ocorre, então é uma repetição da vivência dolorosa – agora sob o nome de compulsão à repetição. O esquema energético do aparato psíquico, baseado em uma homeostase (constância) é quebrado pelo evento traumático, a energia livre invade o aparato, frente a isso o princípio de prazer é colocado de lado para que uma tarefa mais importante seja realizada – ligar a excitação. Enquanto a ligação não ocorre um mecanismo defensivo é acionado: a compulsão à repetição. Nesse sentido configura-se uma nova disposição da angústia – o susto representa a falta de preparo do eu frente ao impacto de uma vivência, ou seja, não há uma prontidão energética (contra-investimento) para assegurar a integridade egóica – não houve um sinal (angústia-sinal) para a mobilização de contra-investimentos. A partir dessa nova configuração a ligação da energia é uma tarefa fundamental para a sobrevivência do aparato (como também era para no Projeto de 1895), caso ela não seja efetivada, impossibilita o princípio de prazer de ser ativado e, também, a manutenção da energia em um nível constante. Na impossibilidade de proceder um destino como o recalque, pois o princípio de prazer ainda não foi acionado, o evento traumático é clivado do eu. O aparecimento da compulsão à repetição é um indicativo que o eu falhou em sua tarefa de ligar a energia pulsional em representantes. A postulação da compulsão à repetição coloca Freud no caminho da pulsão de morte reformulando o dualismo pulsional. Em 1924 ao postular o masoquismo primário, Freud o coloca como o estado no qual a pulsão de morte é dirigida para o próprio sujeito, mas através da um enlaçamento libidinal, ou seja, ligada pela libido. Tal intricamento é possibilitado justamente a partir do laço libidinal entre mãe e filho. Daí tem origem um núcleo masoquista no eu que possibilita reter e receber certa quantidade de energia ligada, sem esse núcleo qualquer acúmulo energético seria insuportável para o eu. Nesses apontamentos reencontramos a indicação de Derrida (1995, op. cit.) acerca da presença e de uma tolerância à dor nas formações dos traços pela passagem da quantidade nas barreias de contato do Projeto de 1895. Foi o trauma que revelou a compulsão à repetição e expôs os limites do método interpretativo, revelando uma outra face do aparato psíquico fora do campo representacional e do princípio de prazer. Assim o sujeito repete em ato elementos que 114 escapam ao campo da simbolização, de forma que nos deparamos com algo que não possui representação, que não pode ser decifrado de maneira a ser colocado em palavras; justamente porque não houve capacidade do eu para ligar essa energia, só após a dominação a excitação pode assumir formas organizadas, dentre elas a de ser representada psiquicamente. O caso de Tito de Alencar expõe a repetição compulsiva da dor em que o traumático lança o sujeito. Neste caso temos um eu sufocado por quantidades de mensagens excessivas as quais não pode traduzir; a única forma de tentar dar um contorno ao traumático foram às passagens ao ato via escrita e os episódios alucinatórios que o recolocavam na situação de tortura. A gravidade deste caso clínico nos coloca a pergunta – como podemos proceder clinicamente em tais situações? Cremos que uma nova ação psíquica deve ser acrescentada à compulsão à repetição para ligar a energia indomada – essa nova ação seria realizada pelo outro que funcionaria como um eu auxiliar, ligando a pulsão de morte, tal qual o cuidador o fez nos tempos de infância. Walter Benjamin (1994, op. cit.) aponta uma narrativa de fragmentos nestes casos envolvendo sobrevivente de grandes catástrofes, uma narrativa que foge a forma tradicional uma vez que a compulsão à repetição remete a um empobrecimento dos processos de simbolização. É aí nestes fragmentos que brotam em ato no sobrevivente que Seligmann-Silva (2008 op.cit.) enxerga um sentido primário de renascimento, embora o narrador encontre uma dificuldade extrema de colocar em palavras toda a dor vivida, a imaginação é chamada em auxílio ao simbólico como meio de construir uma narrativa que possa refrear a ação destrutiva da pulsão de morte. Tendo em vista estas observações remetemos a Freud (1937/1966, op. cit.) que vê na construção desses fragmentos, no sentido de uma retomada dos elementos não simbolizados, uma forma preparatória para o sujeito dar um contorno a vivência traumática. Para isso o analista precisa funcionar como um eu auxiliar emprestando forças que podem ajudar na tarefa primordial de ligação da energia disruptiva que desencadeou a compulsão à repetição. Podemos afirmar após essas considerações que a repetição sempre funcionou como um motor para as reflexões de Freud, trazendo impasses tanto para a teoria quanto para a clínica, impasses que foram fundamentais para o avanço da psicanálise. As questões desenvolvidas em nossa pesquisa certamente não esgotam o campo de reflexões acerca da repetição; entendemos que as investigações sobre a memória, a dimensão do 115 irrepresentável, a questão da temporalidade, temas das reflexões de Walter Benjamin podem contribuir para a compreensão da complexidade do que cerca a repetição dos acontecimentos traumáticos. Na presente dissertação deixamos apontada a importância destas ideias que pretendemos explorar em nossas futuras investigações. 116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARNÃO, Magdalena. “A distinção entre representação de palavra e representação de coisa na obra freudiana: mudanças teóricas e desdobramentos filosóficos”. In: Ágora, Rio de Janeiro, 2008. 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