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Livro II – A Estrela dos Mortos
Ilustrações:
Licínio Souza
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Prólogo
Há milhões de anos, seis deuses irmãos criaram o mundo. Preencheram-no com suas energias e suas maiores virtudes e, conforme haviam
consentido, cada um controlaria uma parte da criação, isolados. Ao
se materializarem naquele lugar, eles assumiram identidades mais
adequadas ao novo ambiente e, em seguida, deram vida a seres diversos, baseando-se na forma que escolheram.
Terra foi o primeiro a encarnar na criação. Lá, o deus moldou um
enorme deserto e se embrenhou no solo, ajustando seu corpo ao de um
inseto vigoroso de carapaças rígidas e fortes. Seu poder gerou animais
que habitaram as areias, além de plantas exóticas e inúmeras florestas
nos arredores do domínio árido. Ar voou para perto das encostas do
oeste e lá fundou um gigante ninho para que seus filhos crescessem.
Dotado de penas e grandes asas, o deus dominou os céus e povoou seu
recanto com aves belas.
O fundo do oceano foi a escolha de Água. Escamas, guelras e tentáculos brotaram na deusa. Suas crias a seguiram para as profundezas
mais escuras e se multiplicaram, habitando as águas. Fogo, por sua vez,
viajou para o alto das montanhas mais quentes e tomou a forma de
um feroz réptil alado, com bocarra, longa cauda e um perigoso hálito
fervente. Seu poder trouxe ao mundo seres rasteiros que se espalharam
pelas terras escaldantes.
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Luz ergueu seus domínios sobre as terras do norte, onde o sol brilhava incessantemente. Sua forma era bela, a pele brilhava como o
cristal e os olhos emanavam cores encantadoras. Por aquelas terras,
mamíferos corriam e se alimentavam da relva. Por fim, Treva buscou
o lugar mais sombrio para se instalar. Encontrou, no extremo sul, um
grande abismo onde seus filhos macabros nasceram. Longe da luz e
do calor, a deusa era pálida, quase translúcida. Através da pele via-se
parte dos órgãos funcionando. Sua cria tinha as mesmas características:
anfíbios e vermes de forma decadente.
Após alguns milênios, os deuses também deram vida a seres inteligentes, e cada um dos domínios se tornou lar de uma civilização
independente. Tais povos eram formados por criaturas semelhantes e
devotas a cada um dos deuses que as criaram.
Os seis senhores do mundo governaram seus recintos, sem interferir
nos domínios dos irmãos. No entanto, mesmo que não tivessem a intenção de expandir seus territórios, suas energias eram grandiosas demais
para se limitarem a pequenos lotes de terra. Aos poucos, o poder dos
deuses se espalhou, mesclando as diferentes forças, o que trouxe consequências. A maior e mais importante delas foi o aparecimento de uma
nova raça inteligente, banhada pelas seis energias, filha de todos os deuses ao mesmo tempo. Não demorou até que essa prole ficasse mais forte
e decidisse dominar as demais. Durante séculos, os deuses assistiram aos
seus filhos lutarem em uma guerra violenta que resultou na extinção de
muitas raças. Sobrou apenas a última, aquela cuja estrutura era mais dinâmica, mais adaptável às diferenças do mundo: a raça humana.
Sem mais contar com seus seguidores fiéis, os deuses voltaram a
atenção para os homens. Queriam dominá-los como faziam com seus
primeiros filhos. Esses seres, porém, eram diferentes dos anteriores.
A força dos deuses não surtia o mesmo efeito sobre eles. Os humanos
precisavam ser seduzidos, doutrinados. Assim, os senhores do mundo
mudaram suas estratégias para conquistar a nova raça.
Todos conseguiram fiéis, mas dois deles foram muito mais efetivos
nessa aproximação. O primeiro recebeu dos humanos o nome de Phelgor,
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o Pai do Sol, o Senhor do Dia. A segunda fora batizada de Shazp, a
Mãe da Escuridão, a Lua que Míngua. E, entre eles, a maior batalha
se iniciou no berço da civilização humana. De um lado, os homens
que cultuavam as Trevas, poderosos dominadores das energias negras,
modeladores da morte, manipuladores da discórdia e do pânico. Do
outro, os seguidores da Luz, os que se guiavam pelo sol, purificavam os
malditos e orientavam a cura.
A guerra foi longa, sangrenta, e Shazp acabou derrotada, sendo
banida do Reino Central, de volta ao abismo. Seus seguidores foram
condenados à guilhotina, sem nenhuma piedade. Phelgor pensou ter
livrado a raça humana de sua maior inimiga, mas ele não imaginava
que o isolamento nas sombras falharia em enfraquecer a Senhora da
Escuridão, assim como a morte não era suficiente àqueles que foram
devotos a ela. O deus deveria saber que o Equilíbrio daria à Shazp uma
chance de ressurgir. Afinal, no mundo, tudo acontece em ciclos, e um
novo ciclo, ainda mais cruel e violento, não demoraria a surgir.
Mitologia Antiga
Acervo da Biblioteca de Nuanto
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por Tlavi Hur
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Capítulo 1
Após dias de viagem pelos territórios de Sonatri, finalmente alcan-
çamos Cimérium, a Cidade Morta. A paisagem daqui é danificada,
esculpida por profundas minas de carvão, minérios de ferro e pedras
preciosas; possui uma vegetação ínfima, já que o solo fora contaminado por anos de despejo negligente dos resíduos das mineradoras. Os
mineiros vivem em precários alojamentos instalados nos arredores dos
pontos de extração. Tudo é governado por um Regente que deve obediência ao Parlamento do Reino Central, sediado na Cidade Dourada,
onde vivo.
Contudo, não faz parte de minha jurisdição tratar assuntos como
esses. Fui enviada até aqui para averiguar a causa de mortes suspeitas
que assolam os trabalhadores das minas. Uma possível epidemia dizimou mais de cinquenta por cento da população em questão de dias.
Por consequência, a produção de minérios despencou, afetando
diretamente as atividades econômicas derivadas da mineração. O Parlamento ficou preocupado.
Há algumas semanas, uma primeira expedição chegou a Cimérium
com o objetivo de resgatar os sobreviventes, avaliá-los e isolar a cidade.
Deviam evitar que a moléstia se espalhasse pelos vilarejos vizinhos.
Para isso, instalaram cercas nas fronteiras, lacrando a entrada principal
com um grande portão de aço. Minha missão agora é outra. Devo
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reabrir a cidade e desvendar a origem do problema, tentando, se possível, saná-lo. Tive autorização de trazer alguns de meus soldados.
Muitos parlamentares acham que se trata de uma contaminação,
talvez causada pelo solo e lençóis freáticos poluídos. Nesse caso, nada
mais propício do que enviar a Mestra da Cura para resolver o problema. E de fato seria fácil, se o motivo das mortes fosse uma doença, mas,
desde que cheguei ao alto portão de aço enegrecido, essa hipótese caiu
por terra.
— Mestra Tlavi — Sebastian suplica minha atenção. Seus cabelos
negros e compridos voam com a força do vento das planícies de Sonatri.
Os olhos acinzentados estão semifechados; demonstram aflição. — Já
sinto os traços da devastação neste ponto.
— Também posso sentir — replico.
Sebastian, conhecido como a Luz Sagrada, é um dos paladinos mais
sensíveis às artes das Trevas. A presença dessa energia o deixa desconfortável e, assim como eu, ele percebe a força negra que emana do
interior dos portões, esbarrando nas cercas ao tentar sair. No entanto, o
pior de tudo é o cheiro, o odor podre da morte que posso sentir daqui.
Cimérium beira a catástrofe.
— Vejo corpos por todos os lados — Faleena alerta com a voz triste.
Sua visão, aprimorada pelo excepcional controle da Luz, lhe permite
enxergar através de objetos sólidos e ainda a distâncias colossais, o que
faz dela uma atiradora habilidosa.
— Estamos diante do pior — digo e saco minha maça dourada. —
Preparem-se. Vamos entrar.
Os paladinos são especialistas em combater as artes das trevas. Fomos treinados para identificar e aniquilar fontes contaminadas por
energias malignas e, para o infortúnio da cidade, essa é a situação que
averiguo aqui.
Faleena abaixa a viseira e retira o arco dourado das costas. Com
a arma pronta, ela dá cobertura à nossa entrada. Conosco ainda estão
Christia e Seraph, guerreiros robustos, equipados com armaduras mais
pesadas. São eles que usam a força para mover as abas emperradas
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do portão, dando-me passagem para seguir à frente. Enquanto me
desloco pela via de recepção da cidade, sou escoltada pela equipe de
cavaleiros da luz.
O rastro da morte se espalha por todos os cantos. As pobres criaturas que viviam aqui não tiveram a menor chance de salvação. Andamos
em meio a carcaças putrefatas e malcheirosas, corpos escalpados pela
decomposição. Estou certa de que não existe nada vivo na cidade.
Nem o forte fedor é capaz de tirar o foco dos paladinos. Essa é uma
qualidade exemplar em todas as nossas missões. A fidelidade aos objetivos é inquestionável. Não permitimos que nada nos desvie a atenção
até que a tarefa esteja cumprida.
Após alguns minutos de caminhada, chegamos à praça matriz.
— A energia vem daquela direção. — Sebastian, de olhos fechados, aponta para uma capela destruída e de portas escancaradas. Apenas concordo.
Mais corpos de barriga estufada estão pelo caminho. Passo por cima
deles até alcançar a entrada. A energia negra é realmente forte no local.
— Protejam-se antes de entrar — ordeno.
As armaduras douradas são próprias para defender os paladinos
de energias estranhas e ataques das trevas. Além do metal escolhido
para sua forja, as peças são aprimoradas com encantos específicos que
aumentam a resistência. Agora, porém, elas sozinhas não serão suficientes para nos manter seguros.
Todos evocam uma aura luminosa que serve de escudo contra radiações agressivas. Nossa técnica também auxilia a iluminar o caminho
escuro do interior da igreja.
A primeira hipótese na minha cabeça é que algum manipulador
desenvolveu uma peste por meio das energias e simplesmente a deixou se espalhar pela cidade. Um acidente, talvez. Se isso for verdade,
devo encontrar o epicentro e destruí-lo. Tudo indica que ele esteja
aqui dentro.
Christia, Espada Divina, segue na frente. Ele usa sua arma para irradiar um raio de luz ainda mais poderoso que nossas auras, dando
total visibilidade. Dentro da capela, mais uma dúzia de corpos em um
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estado avançado de putrefação. Alguns estão caídos pelo chão, outros
sentados nos bancos de madeira. Nosso caminho segue até que a luz
emitida pelo paladino se ofusque envolta em raios negros oriundos de
um pequeno orbe de vidro escuro, posto sobre o pedestal de madeira à
nossa frente, no altar da igreja.
Ao me aproximar, sinto a força do objeto penetrando minha barreira protetora. Tenho certeza de que este é o epicentro, mas não se
trata de uma técnica comum. A energia é muito mais poderosa do que
deveria. Ao meu redor, todos fraquejam perante o poder imenso. Notoriamente, a proteção deles não é tão firme quanto a minha.
— Precisamos fazer esse objeto parar o quanto antes — afirma
Sebastian e logo se apoia nos joelhos, intoxicado pela força venenosa.
— Não nos resta opção senão destroçá-lo — informa Seraph levantando seu machado dourado. O paladino corre na direção do objeto
armando um golpe certeiro e, mesmo que eu queira impedi-lo de concretizar essa loucura, não há tempo de pará-lo.
Sua arma acerta o orbe, fazendo-o se espatifar em milhares de cacos
de vidro. Toda a força que o objeto concentrava é liberada de uma só
vez. A energia negra toma o corpo de Seraph, adentrando sua proteção
de ouro, até infectá-lo a ponto de secar sua pele e sugar sua vida. A explosão que segue lança o corpo desidratado e os pedaços de armadura
na parede, liberando o restante da energia pela sala.
Tenho tempo de aumentar a potência de minha aura, mas sinto
como se meu corpo fosse ser esmagado pela torrente sombria que me
envolve. As ondas brilham em uma cor anil, quase negra, e se espalham
pelo ambiente, afetando todos os paladinos. Assim que a energia finalmente se dissipa, alivio minha proteção e corro para ajudar os outros.
Encontro Christia, Faleena e Sebastian se retorcendo no chão, vítimas
da crise convulsiva, quase uma overdose devida ao excesso de energia
das trevas que absorveram. Com minha cura, consigo aliviar seus corpos antes que seja tarde demais. Por Seraph, não posso fazer nada.
Avalio o ambiente e percebo que a energia negra desapareceu por
completo. Cimérium, por fim, está livre da praga — o que finaliza o
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meu trabalho aqui. No entanto, uma questão não se aquieta em minha
mente: quem teria o poder para instaurar tamanha ameaça?
A viagem foi cansativa, mas finalmente estamos de volta. Nuanto,
a Cidade Dourada, um marco para a civilização. Lugar onde os primeiros homens aprenderam a controlar as energias e, a partir disso,
espalharam seus domínios pelos seis cantos do mundo. Erguido na
planície central de Sonatri, o berço da nossa raça ostenta construções
suntuosas, herdadas de uma época abastada. Toda a arquitetura antiga fora mantida e preservada como patrimônio. Os edifícios não são
altos e modernos como os arranha-céus de Mabra, nem encantados e
vigorosos como as famosas torres de Tênus, mas tudo em Nuanto é
imponente, poderoso; exala beleza.
Além da importância histórica, a Cidade Dourada tem relevância
política no mundo todo por ser o lugar onde fica a sede do Parlamento de Sonatri. Parte dele é eleita pelos cidadãos e tem o dever de
defender os interesses de suas cidades, vilas e lugarejos. Outros possuem assentos devido à influência que exercem em diversos setores
da sociedade: são grandes comerciantes, sábios filósofos, professores consagrados, controladores poderosos, entre outros. Esse grupo
governa Nuanto, escolhe os regentes dos grandes centros urbanos e
comanda a Ordem dos Paladinos. Reúnem-se constantemente sob o
teto da lustrosa Basílica de Phelgor, o nosso deus da Luz. Eu, como
general paladina, também detenho um lugar no Parlamento e é para
lá que me dirijo agora.
— Excelência! — falo alto, ao escancarar as portas do auditório,
marcadas com o símbolo do Sol.
— Mestra paladina? — diz o orador com surpresa em suas palavras.
Todos que estão na assembleia se viram e me acompanham com
os olhos enquanto desço as escadas entre as poltronas de veludo, até
alcançar a tribuna.
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— Peço desculpas pela intromissão, Vossa Excelência. Trago notícias sobre Cimérium.
O homem à minha frente, Zarius, é um grande político de Nuanto.
Está no Parlamento há décadas, sempre reeleito. Ele comumente lidera discussões difíceis e, como o mais antigo dos parlamentares, pode
tomar decisões extraordinárias, desempatando votações ou vetando
temas que julgue não serem importantes.
— Que bom que voltou em segurança, paladina. Por favor, tome o
seu lugar — fala ao indicar minha cadeira na primeira fila do auditório.
— Trataremos dessa pauta outro dia.
Os mais de duzentos parlamentares me encaram, talvez pensando
na deselegância que tive ao interromper as discussões. Não costumo
vir à frente para me pronunciar, prefiro não me expor. Geralmente fico
sentada, sem falar muito. Apenas voto quando me é solicitado.
— Como dizia — Zarius continua após ajeitar sua toga —, a questão
das taxas impostas sobre as rotas de comércio é delicada...
Ele volta ao assunto que falava como se eu não estivesse presente.
De acordo com o que me foi ordenado, eu deveria seguir ao meu lugar
e assistir à assembleia. Entretanto, esta é uma situação atípica, séria
demais para ser tratada outro dia. Todos nesta sala precisam ouvir o
que tenho a dizer.
— Desculpe, Excelência — interrompo-o novamente. — As informações que trago são urgentes.
Zarius se vira para mim e comenta baixo, não o bastante para evitar
que a maioria dos parlamentares também ouça:
— Mestra Tlavi, já faz parte deste grupo há um tempo considerável.
Ainda não aprendeu as regras?
O murmúrio no auditório deixa clara a posição humilhante em que
estou. As palavras de Zarius são precisas, afiadas. Ele não tece apenas
uma crítica ao meu comportamento. Sua intenção é me desafiar. Afinal, existe certo incômodo quanto a minha presença no Parlamento.
Não é nada explícito, mas não sou ingênua. Alguns fatores dificultam
minha aceitação.
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Primeiro, eu represento a força militar que protege Nuanto. Os paladinos e os políticos sempre tiveram formas diferentes de resolver os
mais diversos assuntos. E comparada com a de Ioseth, meu mestre e
outro paladino integrante do Parlamento, minha paciência é inexistente quanto a politicagens.
O segundo fator é a minha origem. Nasci na aldeia de Nairatis, a
maior vila dentro de uma zona não urbana. Meu povo não se mistura com as pessoas das cidades, vive em harmonia com a natureza.
Mesmo tendo deixado aquele lugar ainda menina, isso não apaga
meus traços: a pele amorenada, os olhos cor de mel e o nariz arguto. Sou estrangeira aqui, e isso faz com que alguns queiram me ver
pelas costas.
Por fim, minha idade. Aposto que metade desta sala se pergunta
como uma nairatiana com menos de trinta anos pode ser general de
um dos exércitos mais bem treinados do mundo e ainda se intrometer
nas decisões do Parlamento. Contudo, não é a pergunta que me incomoda. É a resposta. Para muitos, ela é simples: porque sou uma Estrela.
É um pensamento comum. Ignoram os anos de treinamento duro e de
estudos que tive. Recebi um presente ao nascer, mas ele é só uma parte.
Todo o resto é suor, dedicação. Não admito ser tratada com desprezo,
nem mesmo por Zarius.
— Conheço bem as regras, Excelência. E, como responsável pela
segurança do reino e ainda Estrela da Cura, digo que todos nesta sala
irão me ouvir.
Minha voz é firme. Os olhos do político se entrefecham, o silêncio
toma todo o salão. Zarius se afasta e dá espaço para que eu assuma o
centro da tribuna. Não demoro a falar:
— Caros parlamentares, acabo de retornar de minha missão em
Cimérium. A epidemia foi sanada.
Eles aplaudem a boa notícia. Zarius me olha com desdém e fala:
— Que bom que cumpriu sua obrigação, nobre paladina. Agora que
já conseguiu reconhecimento, por favor, assuma o seu lugar para que a
assembleia continue.
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Ignoro o veneno do político. Não estou aqui em busca de congratulações. Minhas descobertas em Cimérium levantam suspeitas graves.
Ainda tenho muito a dizer.
— O que aconteceu lá foi um atentado — falo em alto e bom tom.
A interjeição no auditório exprime a surpresa dos presentes. Minha
frase desperta alvoroço.
— Esta é uma acusação séria! — um dos parlamentares da frente
grita ao se levantar.
— Eu sei da gravidade do que digo — reforço. — A fonte da doença
não fora natural. Alguém implantou trevas na cidade. Os moradores
foram assassinados.
— Isso é um absurdo — Zarius toma a frente. — Quais provas
você tem?
— Perdi um dos meus homens para aquela energia, Excelência.
Nenhuma doença seria capaz de matar um paladino, principalmente
sob a tutela da mestra suprema da cura. Cimérium foi vítima de um
ritual macabro.
Sonatri vive em paz há décadas. O Parlamento se gaba por ter
conseguido extinguir todos os conflitos por aqui. A hipótese de que
Cimérium fora assolada por uma praga é triste, mas não fere a fama do
reino, livre de guerras e grandes crimes. A notícia que trago justifica a
agitação extrema no auditório.
— Veja o que fez — Zarius acusa ao meu ouvido. — Vai colocar o
reino em pânico.
— Peço permissão para iniciar uma procura mais robusta no norte
de Sonatri. Levarei o dobro de homens para acharmos o culpado. Ele
deve ser punido de forma exemplar.
— Algo nessas proporções está fora de cogitação — outro parlamentar se aproxima de nós. — Só levará o desespero aos vilarejos.
— Prefere deixar o assassino solto? — pergunto indignada. — Quem
sabe ele não mata mais algumas centenas.
— Ainda não temos certeza de nada — ele argumenta. — Seria imprudente avançar com tropas sem sabermos toda a verdade.
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— Não podemos esperar — digo com a voz elevada.
— Este não é o fórum para discutirmos isso, paladina — Zarius pontua áspero. — Falarei com os parlamentares. A pauta será revista para
incluirmos Cimérium amanhã. Aconselho que descanse agora. Sei que
teve dias difíceis.
Ele está certo. Vim direto à Basílica após dias de viagem, nem me despi da armadura. Aceito a sugestão de Zarius e, diante de sua promessa de
rever este tópico no dia seguinte, saio do salão mais tranquila. Atrás de
mim ouço a repercussão da notícia. Alguns me acusam de louca, outros
se perguntam se realmente a paz em Sonatri acabou, mas eu não tenho
dúvidas. Um inimigo poderoso colocou as mãos no reino.
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