Artigo Completo

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ANTINOMIA E OUTROS PROBLEMAS DA LEI: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
ANTINOMY AND OTHER PROBLEMS OF LAW: SOME CONSIDERATIONS
Willian Flügge Carvalho1
RESUMO
A vida em grupo, as relações em sociedade e a formação dos Estados, revelaram-se fatores
forçosos à criação de regras que interagissem com a conduta humana e a regulasse. Tornandose elemento vital à maneira com que o homem ia se desenvolvendo socialmente, como
reconheceu Thomas Hobbes, Jonh Locke e Jean-Jacques Rousseau, os problemas em torno
das regras não tardaram a eclodir. Especialmente a partir do século XIX, os processos à
resolução de entraves legais começaram a demarcar com maior claridade a história mundial.
Juristas como Hans Kelsen e Norberto Bobbio construíram estudos sobre o ordenamento
jurídico, a lei, suas características enquanto instrumento regulador da conduta humana,
métodos para dirimir os empecilhos que a envolvem e entre outros. Contemporaneamente, os
estudos relacionados aos problemas legais são incessantes. Novas concepções surgem com
frequência. Nesse prisma, o presente trabalho tem por objetivo o estudo e a análise de alguns
empecilhos que acometem a lei, dando primazia ao conflito normativo. Através da revisão
bibliográfica e pesquisas na literatura jurídica correlata, descrevo pontos relevantes à
compreensão do tema, salientando que o presente não pretende exaurir a problemática, mas
fazer considerações importantes, como o próprio título evidencia.
Palavras-chave: Hierarquia. Lacunas. Integração. Leis. Conflito.
ABSTRACT
Group life, relationships in society and the formation of states, proved forcible factors to the
creation of rules that interact with and regulate human conduct. Becoming vital to the way the
man was going to develop socially, as recognized by Thomas Hobbes, John Locke and JeanJacques Rousseau, the problems surrounding the rules did not take long to hatch. Especially
from the nineteenth century, the processes for resolving legal barriers began to demarcate
more clearly the world's history. Jurists as Hans Kelsen and Norberto Bobbio built on the
legal studies, law, its characteristics as a means of regulating human conduct, methods to
resolve the obstacles that surround and others. Contemporaneously, the studies related to legal
problems is endless. New concepts often arise. In this light, this paper aims to study and
analysis of some obstacles that affect the law, giving primacy to normative conflict. Through
literature review and related research in the legal literature, describe issues relevant to the
understanding of the issue, stressing that this is not intended to exhaust the issue, but doing
important considerations, as the title shows.
key-words: Hierarchy. Gaps. Integration. Laws. Conflict.
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Graduando em Direito pela FAJ. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
O contexto histórico-humano nos revela a necessidade do homem em instituir políticas
para regular o modo de vida em conjunto. Demonstra a lei como elemento fulcral para a
instituição e base das sociedades.
Nos últimos séculos, a complexificação da forma de vida humana, assinalada pela
interdependência econômica entre as nações, recentemente intitulada de globalização, exigiu a
elaboração de métodos cada vez mais eficazes para nortear as interações sociais. Nesse
patamar, a lei tornou-se objeto fundamental para dirigir as relações humanas em escala global.
Dia a dia tem ganhado maior importância e espaço no mundo; fato facilmente vislumbrado
pelos inexauríveis estudos e pesquisas erigidos desde remotas eras por juristas,
contratualistas, legisladores, filósofos e muitos outros.
Entrementes, é necessário evidenciar que no mundo contemporâneo, ainda que a lei e
os processos para sua criação tenham se tornado mais eficientes em vários seguimentos,
igualmente adensaram-se problemas.
No Brasil, as lacunas da lei e o conflito entre normas integram uma realidade difícil,
causadora de grandes entraves no âmbito jurídico. O exegeta, os teóricos e muitos dos que
lidam diariamente com a norma, comumente deparam-se com empecilhos para sua aplicação e
estudo. Os magistrados, por modelo, não raramente recorrem à analogia, aos princípios gerais
do direito para desvencilhar problemas, ineficiências legais. Os doutrinadores, por sua vez,
entram em dissensão, apontando opiniões, métodos e modos para entender e resolver os
problemas da lei. Já a jurisprudência, é refratária e contraditória.
Desta feita, tendo em vista a relevância da lei para o mundo, e, no caso em tela, para o
âmbito nacional, este trabalho tem como objetivo abordar, de maneira sumária, algumas
considerações sobre a antinomia e outros problemas da lei, cingindo pontos meritórios à
compreensão dos problemas e das análises em xeque.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
A lei à sociedade e a contribuição de alguns autores contratualistas para o Poder
Legislativo
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O Direito foi edificado gradativamente desde os primórdios da humanidade. Sua
construção sempre foi realizada pelo homem, por isso, o Direito é um tipo de cultura, uma
produção cultural, no qual reflete as exigências do meio que o criou. Diante disso, registros
históricos remontam a priscas eras e divulgam relatos sobre os primeiros povos a atuarem na
formação do direito.
Segundo Castro (2005, p. 07), foram os povos “sem escrita ou ágrafos (a = negação +
grafos = escrita), [...] homens da caverna de 3.000 a.C. ou índios brasileiros até a chegada de
Cabral [...]”, responsáveis por iniciar o processo da instituição de regras. Castro (2005)
enfatiza que esses povos não possuíam a capacidade da escrita, por isso, as regras eram
transmitidas oralmente de pessoa para pessoa, eram baseadas em costumes.
Com a invenção de sinais, desenhados em algum tipo de superfície plana, vislumbrouse a letárgica criação de regras escritas que melhorariam o entendimento e dariam mais
segurança a idéia do que seria justo. Essas primitivas “leis” possuíam a finalidade de resolver
os conflitos existentes derivados das relações humanas, distinguindo o legal do ilegal, dando
ao correto, o “direito”, e ao incorreto, alguma forma de penalidade. Sobre a questão, Castro
(2005, p. 11) afirma que a “mais grandiosa invenção [...] da Mesopotâmia foi passar para uma
superfície símbolos que expressavam idéias; a isso chamados de escrita. O tipo de escrita que
inventaram foi a cuneiforme.”
De acordo com Carvalho (2003), esse período histórico marcado pela inexistência da
constituição do Estado sob bases legais, é tratado por alguns autores contratualistas clássicos:
Thomas Hobbes (1588 – 1679), em seu Leviatã (1651); Jonh Locke (1689 – 1704), no
Segundo Tratado Sobre Governo (1983); e por Rousseau (1712 – 1778), em Do Contrato
Social (1978), como época em que vigorava o Estado da Natureza sob leis da Natureza. Para
esses autores, era imprescindível um tipo de poder que regulamentasse pela edição de leis as
relações humanas, fosse de maneira centralizada, nas mãos da monarquia, como defendeu
Hobbes, ou por intermédio de uma Assembléia, como advogou Locke e Rousseau. Nota-se
que apesar das diferenças no pensamento, os três autores entenderam que “[...] o Poder
Legislativo é o poder mais importante entre todos os poderes do Estado” (CARVALHO,
2003, p. 266), levando em conta sua função primordial que “[...] estava em legislar, isto é,
fazer as leis que seriam colocadas para a sociedade” (CARVALHO, 2003, p. 267).
De fato, a história nos faz conhecer que a necessidade de combater injustiças e regular
as interações sociais realmente existiu. Um sistema de codificação normativa como o
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“Legislativo sempre esteve presente na história dos homens e sempre foi visto como uma
alternativa para combater uma possível tendência arbitrária dos soberanos que detinham de
fato o poder de coerção” (CARVALHO, 2003, p. 267). Apesar de não serem os únicos, o
pensamento de Locke, Hobbes e Rousseau “foi extremamente importante para as gerações
futuras de autores políticos, não só para a questão do Poder Legislativo, mas para tantos
outros temas” (CARVALHO, 2003, p. 267).
Em outro ponto, é importante destacar que face a importância do período histórico
para a construção da lei e do direito, atualmente a doutrina majoritária classifica tal período
como uma das fontes do direito. José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva distingue-as em:
1) Fontes históricas: fontes que indicam a gênese das modernas instituições
jurídicas, ou seja, “a época, o local, as razões que determinaram e sua formação”
[...]; 2) Fontes materiais: são os fatos sociais que dão origem à norma jurídica,
investigando-se, outrossim, a eficácia da norma, vale dizer, se a regra posta de fato
regula os casos por ela identificados, ou se não passa de abstração, sem qualquer
concretude; e, 3) Fontes formais: estas são a fonte imediata da norma jurídica, de
onde vem a concepção do Direito posto [...] “são as formas pelas quais as normas
jurídicas se exteriorizam, tornam-se conhecidas”; tais fontes são a lei, o costume e
etc (SILVA, 2010, p. 39).
Desse modo, a lei, em virtude do relevante papel social que ocupou durante o
transcorrer dos séculos, hoje é elemento encontrado nas bases da maciça porcentagem dos
Estados do mundo; instituída por um processo complexo, e normalmente expressa em um
diploma formal.
O ordenamento jurídico: alguns pontos importantes
A existência de um ordenamento jurídico pressupõe a necessidade conjunta de normas
fundamentais, princípios e regras inter-relacionados, não conflitantes e que, além de tudo,
sirvam para determinar a conduta humana em sociedade, revelando-nos logo que “não há um
ordenamento jurídico composto de uma única norma [...]” (BOBBIO, 1999, p. 32). Sua
origem é encontrada no poder originário, do qual também se extrai sua unicidade (BOBBIO,
1999, p. 41). Assim, apesar de complexo, isto é, formado por inúmeras leis, o ordenamento
jurídico repousa em unidade.
Bobbio (1999) apresenta a norma fundamental como vértice basilar à unidade do
ordenamento jurídico. Explica que “[...] a norma fundamental é o termo unificador das
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normas que compõem um ordenamento jurídico” (BOBBIO, 1999, p. 49), sem ela, as outras
“[...] constituiriam um amontoado, não um ordenamento” (BOBBIO, 1999, p. 49). O
estudioso elucida ainda que devido “à presença, num ordenamento jurídico, de normas
superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárquica.” (BOBBIO, 1999, p. 49).
Antes de Bobbio (1999), um dos primeiros juristas a estudar o posicionamento de
normas dentro do ordenamento jurídico foi Hans Kelsen, o qual desenvolve o trabalho de
classificação das normas, quanto à superioridade e à inferioridade. Em seu livro Teoria Pura
do Direito (Reine Rechtslehre), Kelsen constrói a ideia de que existe uma hierarquia entre as
leis, o que se constitui em um sistema piramidal. O estudioso leciona:
As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma
fundamental não são – como o mostra a recondução á norma fundamental
anteriormente descrita – um complexo de normas válidas colocadas umas ao lado
das outras, mas uma construção escalonada de normas supra e infra ordenadas umas
às outras (KELSEN, 2000, p. 224).
Corroborando a temática, Norberto Bobbio em sua Teoria do Ordenamento Jurídico
ratifica as opiniões quanto à hierarquia entre normas elaborada por Kelsen. Com maior ênfase
e clareza, explica a construção escalonada do ordenamento jurídico assim:
[...] as normas de um ordenamento jurídico não estão todas no mesmo plano. Há
normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores.
Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chegando a
uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a
qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é denominada
fundamental (BOBBIO, 1999, p. 49).
Vê-se, portanto, que o modelo piramidal instituído por Kelsen se exprime em uma
hierarquia normativa, que se fundamenta em posicionar leis superiores e leis inferiores.
Assim, as primeiras, posicionadas no topo da pirâmide, são normas fundamentais, isto é, um
diploma de normas supremas, que hodiernamente é a própria Constituição, mostrando sua
importância e supremacia em relação às demais leis complementares, ordinárias, delegadas e
entre outras, nos termos do artigo 59 da Carta Magna em vigor. Destarte: “Uma norma que
representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como
norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior”
(KELSEN, 2000, p. 215).
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Normalmente, leis superiores ligam-se a criação do Estado, a divisão de competências
dos entes que o formam, aos direitos e garantias fundamentais de seus cidadãos, aos tratados
internacionais sobre direitos humanos e etc. Por isso, todas as normas jurídicas escalonadas de
maneira inferior na pirâmide normativa devem respeitar rigorosamente as diretrizes e
princípios estabelecidos pela (s) norma (s) superior (es), sob pena de serem inválidas, ou, em
outros termos, inconstitucionais. Nessa perspectiva, Oguisso e Schmidt (1999, p. 178)
afirmam que a “Constituição é a lei suprema, estabelecida pelo povo em virtude de sua
soberania para servir de base à sua organização política, dispor sobre os modos de criação de
outras leis e estabelecer direitos e deveres de seus membros.”
Em outro diapasão, Kelsen, face à existência da norma fundamental pressuposta
conferindo validade ao ordenamento jurídico, sua unidade e a relação interligada das normas
que o incorpora, passa à problemática de classificar o ordenamento jurídico como um sistema.
Para o jurista, o ordenamento jurídico é um sistema de caráter estático e dinâmico.
Define o sistema estático assim:
As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos
indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força
do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo
conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento,
como o particular ao geral. [...] Um sistema de normas cujo fundamento de validade
e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma
fundamental é um sistema estático de normas (KELSEN, 2000, p. 218).
Por essas palavras pouco acessíveis, o jurista diz sinteticamente que no sistema
estático, as normas se relacionam por seu conteúdo, o qual se direciona à regular a conduta
humana. Neste, a validade e o conteúdo das normas dependem da observância à norma
fundamental pressuposta, a qual estabelece regra geral.
No que tange ser dinâmico, o jurista austríaco perfilha:
[...] é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por
conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a
uma autoridade legisladora ou - o que significa o mesmo - uma regra que determina
como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado
sobre esta norma fundamental (KELSEN, 2000, p. 219).
Aqui, a norma fundamental pressuposta somente dispõe sobre a maneira com que as
normas devem ser criadas e aplicadas no sistema, através de uma autoridade legisladora.
Nesse, as normas não se relacionam pelo conteúdo, mas por métodos de produção e aplicação.
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Assim, o sistema dinâmico “tem por objeto o processo jurídico em que o Direito é produzido
e aplicado, o Direito no seu movimento” (KELSEN, 2000, p. 79). Ademais, sublinha-se que
Kelsen reconheceu que o “sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica tem
essencialmente um caráter dinâmico” (KELSEN, 2000, p. 273).
Implica mencionar que a norma fundamental pressuposta (Grundnorm) tratada por
Kelsen é um tipo mais elevado de norma, a última de todas. É maior que a Constituição em
seu sentido jurídico-positivo. Não é instituída por autoridade, não está inserida em um
diploma. É norma propulsora à criação do Direito positivo. Também, é hipotética, para a qual
não se supõe fundamento. Observa-se:
Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta
por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais
elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o
fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma,
pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental
(Grundnorm). [...] a norma fundamental é a instauração do fato fundamental da
criação jurídica e pode, nestes termos, ser designada como constituição no sentido
lógico-jurídico, para a distinguir da Constituição em sentido jurídico-positivo. Ela é
o ponto de partida de um processo: do processo da criação do Direito positivo. Ela
própria não é uma norma posta, posta pelo costume ou pelo ato de um órgão
jurídico, não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta, na medida em que
a instância constituinte é considerada como a mais elevada autoridade e por isso não
pode ser havida como recebendo o poder constituinte através de uma outra norma,
posta por uma autoridade superior (KELSEN, 2000, p. 217-222).
Por tudo, conclui-se que ordenamento jurídico é um emaranhado de leis que se
relacionam num sentido de dependência, para se validarem e organizarem. O funcionamento
regular desse universo de normas depende de sua unicidade, o que é estabelecido pela lei
maior. Frente à gigantesca quantidade de leis que o compõe, se torna complexo, e, por isso, as
normas e princípios nele integrantes encontram-se distribuídas em diferentes patamares, o que
se nomeia de hierarquia. Com efeito, embora seja uno, é caracterizado pela relação
hierárquica entre as normas, o que permiti definir a relevância e o campo de aplicação de cada
lei, pelo que são “válidas porque se apóiam em outras que lhe são hierarquicamente
superiores” (OGUISSO; SCHMIDT, 1999, p. 178). Assim, é preciso entender que “[...] o
direito deve ser definido e estudado como um grande sistema em que tudo se harmoniza no
conjunto” (LENZA, 2009, p. 1).
As lacunas da lei e alguns mecanismos de integração
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Em linha de princípio, merece elucidar que os estudiosos do direito travam grande
celeuma quanto à existência ou não de lacunas no ordenamento jurídico. Especialmente a
corrente positivista, integrada por Hans Kelsen, sustenta a teoria da plenitude hermética, pela
qual “[...] todo sistema é uno, completo, independente e coerente” (SILVA, 2005, p. 249).
Pela via do pensamento kelseniano, “as lacunas são vistas [...] como uma ficção, a
possibilitar a compatibilização dos pressupostos lógico-operacionais do direito com os
postulados éticos de quem tem competência para o aplicar” (KELSEN, 1976 apud SILVA,
2005, p. 247).
Segundo Bobbio (1999, p. 119-120), a tese de que o ordenamento jurídico é completo
foi um dogma dominante, saliente do positivismo e originário da tradição românica medieval.
Por essa teoria, enfoca, o ordenamento jurídico deve fornecer ao juiz, em cada caso, uma
solução, sem recorrer à eqüidade.
Entretanto, estudos atuais têm acareado tais concepções por meio de sólidos
argumentos. Há nomes como Miguel Reale e Maria Helena Diniz a defender a incompletude
do ordenamento jurídico, sua dinamicidade e seu caráter aberto.
Miguel Reale, por anexim, aponta que o Direito deve ser subsumido por um ângulo
tridimensional, pois:
Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito, não é só fato como rezam os
marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não
é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o
Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural
tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor
(REALE, 1994, p. 118).
Vede pela explanação de Reale que o Direito é formado por um processo complexo,
envolvendo vários fatores: normativo, fático e axiológico. Sob essa ótica, o ordenamento
jurídico se caracteriza num sistema dinâmico, pois está em "relação de importação e
exportação de informação com os outros sistemas (fático e valorativo), sendo ele mesmo parte
do sistema jurídico" (DINIZ, 1987, p. 15).
Quanto em ser aberto, Couto e Silva dizem que:
A concepção de sistema aberto permite que se componham valores opostos,
vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura
jurídica, de modo a chegar-se a uma solução que atenda a diversidade de interesses
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resultantes de determinada situação. [...] Somente o sistema aberto pode abranger
todas as situações [...] (COUTO; SILVA, 1997, p. 43).
Desse modo, o sistema aberto é flexível. Permite ser integrado por outras fontes,
normativas ou não – neste segundo caso, pela apreciação interpretativa do exegeta, por
exemplo. Também, zela pela consonância entre princípios e normas e, além de tudo, considera
as diferenças sociais e culturais como fontes à construção jurídica.
Dessarte, contemporaneamente o ordenamento jurídico é entendido como dinâmico e
incompleto, ante sua mutabilidade e impossibilidade de regular todos os problemas sociais, e
aberto, pois pode ser adequado, integrado.
Pois bem. Como restou demonstrado, é impossível ao ordenamento jurídico, por mais
complexo e estruturado que seja, regular e prever de maneira precisa e sem omissões todas as
modificações que ocorrem constantemente no meio social. Logo, se eventualmente ocorrer
um fato e a lei não for capaz de abarcar e solucionar o problema acontecido, será lacunosa.
Maria Helena Diniz aduz que em “síntese, lacuna é a incompletude do sistema
jurídico, que não consegue prever regras – na lei ou no costume – para todos os fatos sociais”
(2002, apud SILVA, 2010, p. 67). Classifica as lacunas em:
1) normativa, quando se tiver ausência de norma sobre determinado caso; 2)
ontológica, se houver norma, mas ela não corresponder aos fatos sociais [...]; 3)
axiológica, no caso de ausência de norma justa, ou seja, quando há um preceito
normativo, mas, se for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta (DINIZ,
2002, apud, SILVA, 2010, p. 68).
Para aclarar a questão, mister se torna apontar caso de lacuna legal que atualmente tem
ganhado holofotes em todo território nacional.
Com o advento da Lei n° 12.015 de 2009, que trata dos Crimes Contra a Dignidade
Sexual, em seu Capítulo I, intitulado Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual, art. 213 (que
ocupa-se do estupro), parágrafo 1° (uma qualificadora), está regulado: “Se a conduta resulta
lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou maior de 14
(catorze) anos. Pena de reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos” (BRASIL, 2009).
O texto citado prevê a qualificação do ato apenas se a vítima for menor de 18 anos ou
maior de 14. Por desdita, o legislador deixou de contemplar a possibilidade de a vítima sofrer
estupro no dia do seu aniversário, isto é, com a idade de 14 anos exatos. Desse modo, a
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inobservância por parte do legislador em descrever a lei gerou uma lacuna, visto ser a norma
inaplicável ao eventual estupro de pessoa com 14 anos de idade.
Por analogia, o estupro praticado contra pessoa de 14 anos exatos será punido com a
pena descrita no caput do artigo 213, que é de reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Considerando tais fatos, é proeminente relatar que o legislador reconheceu através de
disposições legais à existência de lacunas em normas integrantes do sistema jurídico
brasileiro. Algumas leis determinam que caso ocorra situação onde a lei expressa seja incapaz
de solucionar o problema, ao juiz compete utilizar outros mecanismos de preenchimento, de
integração da lei. Nesse sentido, confira-se:
Lei n° 4.657/42 – Lei de introdução às normas do direito brasileiro. Art. 4. Quando a
lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito. (BRASIL, 1942)
Lei n° 5.869/73 - Código de Processo Civil. Art. 126. O juiz não se exime de
sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da
lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos
costumes e aos princípios gerais de direito (BRASIL, 1973).
Além dessas previsões, temos ainda a equidade. Dispõe o artigo 127 do Código de
Processo Civil dispõe: “O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei” (BRASIL,
1973).
Atualmente, vale dizer, a jurisprudência tem aplicado largamente o princípio da
equidade em alguns casos, adequando a norma à situação, como na fixação de honorários
advocatícios. Veja-se:
FASE DE EXECUÇÃO FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA EQUIDADE O princípio da equidade tem por
finalidade flexibilizar a aplicação da norma para que os honorários remunerem de
forma justa o trabalho do profissional, afim de que não sejam ínfimos nem
exorbitantes. Logo, não há qualquer limitação aos percentuais mínimo e máximo
sobre o montante executado (TJ-SP, AI 299784220118260000 SP, Rel. José
Malerbi, j. 23/05/2011).
Noutro ponto, é relevante averiguar que Código Tributário Nacional, através do artigo
108, enuncia que “na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a
legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os
princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a
eqüidade” (BRASIL, 1966).
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Percebe-se que o legislador tributário estabeleceu ordem de importância à utilização
dos critérios de integração legal, iniciando-se com a analogia e findando-se com a equidade.
Assim, pelos preceitos legais supramencionados, o legislador infraconstitucional
ratificou a princípio constitucional esculpindo pelo art. 5°, inciso XXXV da Constituição, o
qual contempla a inafastabilidade ou indeclinabilidade da jurisdição, onde o juiz jamais
poderá se eximir de prover a tutela jurisdicional ao jurisdicionado.
Portanto, ainda que a legislação pátria se expanda intensamente, no afã de regular
tudo, nem sempre será capaz de cingir por completo todas as situações, deixando falhas e/ou
se conflitando.
Antinomia e os critérios clássicos de Norberto Bobbio
É imperioso mencionar que as lacunas da lei, por si só, não geram incompatibilidade
entre normas, mas produzem apenas omissões, por isso, não constituem a antinomia.
Outrossim, a antinomia verdadeira, conhecida como real ou de 2° grau, não surge de uma má
interpretação doutrinária ou literária da lei, nem de lacunas ou pelo grande número de leis que
existem em nosso ordenamento jurídico, ela aparece quando leis jurídicas (ou critérios)
vigentes se conflitam.
Como ocorre a antinomia então? O que é antinomia?
A palavra antinomia, de acordo com o dicionário, é derivada de antônimo, que
significa oposta à de outra. É exatamente isso. Antinomia no campo jurídico é verificada
quando leis e alguns princípios clássicos/doutrinários colidem.
Maria Helena Diniz entende que antinomia é:
[...] o conflito entre duas normas, dois princípios, ou de uma norma e um princípio
geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular. É a presença de duas
normas conflitantes, sem que se possa saber qual delas deve ser aplicada ao caso
singular” (DINIZ, 2003, p. 471).
Para haver antinomia, Diniz (1998, p. 22-23) advoga ser necessário: a) presença de leis
jurídicas, que estejam em vigência; b) que emanem de autoridade competente num mesmo
ordenamento jurídico; c) que tenham comandos opostos; e, d) que o sujeito destinatário das
normas fique de modo insustentável.
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Existem, de acordo com estudiosos do assunto, três espécies de antinomia, quais
sejam: a) antinomia real ou de 2° grau; b) antinomia de 1° grau; e, c) antinomia aparente
(ainda que muitos doutrinadores não considerem esta última como forma de antinomia, visto
não contemplar os elementos para caracterizar antinomia).
A antinomia de 1° grau é verificada quando há conflito entre normas. É notavelmente
considerada como de fácil solução em relação à antinomia de 2° grau, haja vista os critérios
clássicos estarem aptos a solucioná-la. Diferentemente, antinomia aparente (ou falsa
antinomia), ocorre quando duas regras, a priori, se conflitam, todavia, analisando
minuciosamente o caso, percebe-se que as leis disciplinam situações diferentes. A contenda
neste caso não enseja verdadeira inconsistência ao ordenamento jurídico. Já a antinomia real
ou de 2° grau, é classificada como insolúvel. Aqui, os critérios clássicos de resolução
antinômica são ineficazes, pois as normas neste caso se conflitam, e os critérios também.
Levando em conta as espécies de antinomia existentes, a doutrina clássica indica
alguns critérios a serem utilizados para solucioná-las.
O jusfilósofo Norberto Bobbio (1999) aponta três critérios à solução de normas
conflitantes, os quais são utilizados pela maioria dos estudiosos e juristas ainda hoje.
Compreendem: a) cronológico (lex posterior derogat priori), pelo qual norma posterior
revoga norma anterior; b) hierárquico (lex superior derogat inferiori), norma superior revoga
a inferior; e, da especialidade (lex specialis derogat generali), norma especial revoga a norma
geral.
É válido citar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (redação dada
pela Lei n° 12.376/10) traz expressamente o critério cronológico, elencado em seu art. 2°, §
1°. Determina:
Art. 2°. § 1° - A lei posterior revoga a lei anterior quando expressamente o declare,
quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que
tratava a lei anterior (BRASIL, 1942).
É necessário registrar que os critérios inframencionados somente serão utilizados
quando a querela amalgamar normas, já que, ao menos em tese, existe a possibilidade de
ocorrer conflito entre princípios constitucionais. Referindo-se ao assunto, Paulo Bonavides
(1996, p. 253-254) explica que se há conflito principio lógico, a solução deve ser encontrada
através de outros meios, como por critério valorativo, e entre outros.
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Antinomia real (2° grau)
Tendo em vista a relevância e complexidade da avença entre normas e critérios, tornase necessário enfatizar a questão.
Bobbio (1999), em significativa passagem, elucida a função dos três critérios clássicos
para a resolução de antinomias. Por outro lado, expõe que se dois ou mais critérios se
contendem diante da peculiaridade do caso, têm-se uma insuficiência de critérios, e,
consequentemente, uma antinomia real, estando os critérios inaptos para solucionarem o
conflito normativo existente. Detalhadamente, o autor explica:
O critério cronológico serve quando duas normas incompatíveis são sucessivas; o
critério hierárquico serve quando duas normas incompatíveis estão em um nível
diverso; o critério de especialidade serve no choque de uma norma geral com uma
norma especial. Mas pode ocorrer antinomia entre duas normas contemporâneas, ou
do mesmo nível, ou ainda, ambas gerais. Entende-se nesse caso, os três critérios não
ajudam mais. Tais antinomias não são solucionáveis com nenhum dos três critérios;
não com o cronológico, por que as normas de um código são estabelecidas ao
mesmo tempo; não com o hierárquico, porque são todas leis ordinárias; não com o
da especialidade, porque este resolve somente antinomias total-parcial. (BOBBIO,
1999, p. 97-98).
Em outro exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre dissensão de normas
dentro de um mesmo diploma legal. Ainda que no caso o Pretório tenha entendido não se
tratar de antinomia real, explicitou de maneira clara como ocorre, salientando estarem inócuos
os critérios hierárquico e cronológico, diante de normas conflitantes, criadas em idêntico
período e localizadas em um único diploma.
Habeas corpus. Crime de quadrilha ou bando. Interpretação dos artigos 8º e 10 da
Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. - Quando há choque entre dois dispositivos de
uma mesma lei, a antinomia não pode ser resolvida pelos critérios da hierarquia ou
da sucessividade no tempo, porque esses critérios pressupõem a existência de duas
leis diversas, uma hierarquicamente superior à outra, ou esta posterior à primeira.
Nesse caso, que é o de mais difícil solução, o que é preciso verificar é se a antinomia
entre os dois textos da mesma hierarquia e vigentes ao mesmo tempo é uma
antinomia aparente, e, portanto, solúvel, ou se é um antinomia real, e,
conseqüentemente, insolúvel. (STF, HC 68793 / RJ, Min. Sepúlvera Pertence, j.
10/03/1992).
Frente à grandiosidade do problema, Bobbio (1999) questiona a existência de um
quarto critério. O quarto critério é apontado pelo jurista como aquele retirado da forma da
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norma. Contudo, o próprio estudioso não o aceita, dizendo ser injusto e não mais utilizado por
juristas modernos.
Desse modo, resta indagar: como solucionar antinomias de 2° grau? Verdadeiramente,
não existe à antinomia real uma tabela de equações que se chega a um resultado concreto. O
que existe são formas de integração legal, utilizando-se mecanismos alternativos para uma
possível solução, como os já explicitados: analogia, equidade, e etc.
Ferraz Júnior descreve alguns meios aptos a serem utilizados à solução antinômica
real:
O reconhecimento desta lacuna não exclui a possibilidade de uma solução
efetiva, quer por meios ab-rogatórios (edita-se nova norma que opta por uma das
normas antinômicas), quer por meio de interpretação equitativa, recurso ao
costume, à doutrina, a princípios gerais do direito, entre outros. (FERRAZ
JUNIOR, 1994, p. 42).
De outra maneira, Norberto Bobbio apresenta o seguinte raciocínio:
[...] no caso de um conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a
solução do conflito é confiada a liberdade do intérprete, poderíamos quase falar em
um autêntico poder discricionário do interprete, ao qual cabe resolver o conflito
segundo a oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas pelos
juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando a aplicar uma só
regra. (BOBBIO, 1999, p. 100).
A divergência da Doutrina
O conflito antinômico não se limita às normas, mas se estende ao ponto de vista e
opinião de doutrinadores que estudam o assunto.
Não existe um consenso entre a maior parte dos escritos jurídicos quanto à resolução
de antinomias. Não há um entendimento estável, cada pesquisador, utilizando maneiras
interpretativas diferentes, apontam caminhos para a solução da contenda, seja de primeiro ou
segundo grau. Assim, temos uma montanha de opiniões distintas em nossos livros jurídicos, o
que não é raro em outras questões polêmicas como essa.
Como modelo, pode-se demonstrar claramente o dissentimento doutrinário em relação
à vigência do Decreto-Lei n° 3.200/41, arts. 1° a 3°, e a vedação estabelecida pelo art. 1.521,
IV, do Código Civil em vigor.
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Observa-se as palavras de Maria Berenice Dias:
É proibido o casamento de parentes até o terceiro grau (CC, 1.521 IV), por exemplo,
entre tio e sobrinha. No entanto, o DL. 3.200/41 suaviza a vedação, tornando
possível a sua realização mediante autorização judicial. Como o decreto não foi
revogado, modo expresso, a tendência é reconhecer que não há incompatibilidade
com o CC, persistindo a possibilidade do casamento com a chamada chancela
judicial. O fato é que a matéria referente aos impedimentos matrimoniais foi
regulada inteiramente pela nova lei, que veda expressamente o casamento de
colaterais até 3° grau. De qualquer modo, para conceder a autorização, é de todo
descabido exigir a realização de exames médicos para comprovar compatibilidades
genéticas para procriar. Aliás, este casamento tem até um nome: avuncular. (DIAS,
2010, p, 159).
Agora, analisar-se-á sobre o mesmo assunto o que redige Maria Helena Diniz:
[...] o impedimento entre colaterais de 3° grau, isto é, entre tios e sobrinhas, não é
mais invencível, ante os termos do arts. 1° a 3° do Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de
Abril de 1941, norma especial, que dispõe sobre a organização e disposição da
família, e, por isso, recepcionada pelo novo Código Civil, apesar de anterior a ele.
Conforme o art. 2° do Decreto-Lei, os parentes de 3° grau poderão casar-se se dois
médicos que os examinarem atestarem–lhes a sanidade, afirmando não ser
inconveniente, sob o ponto de vista da saúde de qualquer deles e da prole, a
realização do casamento. Esse certificado pré-nupcial equivale a dispensa. Vigora,
portanto, o impedimento do art. 1.521, IV apenas se houver conclusão médica
desfavorável (Dec.-Lei n. 3.200, art. 2°, §§ 4° e 7°). (DINIZ, 2010, p. 72).
No caso vertente, com o advento da Lei n° 10.406/2002 – Código Civil, por meio do
artigo 1.521, IV, houve disposição expressa no sentido de proibir o casamento de colaterais de
terceiro grau. Ante a nova regra, houve intensa celeuma entre pesquisadores do assunto. A
divergência ocorre pela existência do Decreto-Lei n. 3.200/41, lei especial, o qual autoriza o
casamento entre colaterais de 3° grau, desde que haja exames médicos atestando condições de
conveniência e biológicas à realização do matrimônio.
Como se vê pelos trechos doutrinários pinçados, as opiniões são distintas. A primeira
descrição diz basicamente que por ser lei mais nova, o Código Civil cingiu a matéria de
impedimentos matrimoniais inteiramente, o que, para todos os fins, vai ao encontro da regra
do art. 2°, §1° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, estando o Decreto-Lei n°
3.200/41 em conflito com as novas diretrizes do CC. Em contrapartida, Diniz explica que o
Decreto-Lei foi recepcionado pelo CC. Ainda, traz à baila que a vedação estabelecida pelo art.
1.521, IV não confronta com a permissão ao casamento de colaterais de 3° grau, já que a
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proibição somente deve ser aplicada caso os resultados dos exames médicos sejam
desfavoráveis.
A contradição entre as normas trata-se de antinomia de real, na qual os critérios
cronológico (CC lei posterior ao Decreto-Lei 3.200/41) e especial (Decreto-Lei norma
especial, enquanto CC é norma geral) conflitam-se.
Acerca da divergência, o entendimento atual inclina-se no sentido de reconhecer a
vigência do Decreto-Lei 3.200/42, assim como sua interpretação concomitante à regra
proibitiva do casamento entre colaterais de 3°grau, contemplada pelo Código Civil.
O Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal manifestou-se sobre a
questão através do enunciado 98, dispondo que: “98 – Art. 1.521, IV, do novo Código Civil: o
inc. IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve ser interpretado à luz do Decreto-Lei n.
3.200/41 no que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de 3º grau” (CFJ,
2002, p. 14).
Ademais, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei n° 6.960/02, de autoria do
Deputado Ricardo Fiuza, que acrescentará parágrafo único ao art. 1.521 do Código Civil, com
o intuito de evitar as divergências corriqueiras sobre a questão. O parágrafo único terá os
seguintes termos: “Poderá o juiz, excepcionalmente, autorizar o casamento dos colaterais de
terceiro grau, quando apresentado laudo médico que assegure inexistir risco à saúde dos filhos
que venham a ser concebidos”. (CÃMARA DOS DEPUTADOS, 2002, p. 19).
Assim, pelo exposto, percebe-se que a problemática antinômica assola vários
seguimentos do âmbito jurídico, desde a própria lei, à doutrina mais conceituada.
CONCLUSÃO
O direito enquanto ciência, criado pelo homem e desenvolvido durante séculos, está
sujeito a problemas. As lacunas da lei e a antinomia, como se vislumbrou, são amostras de
empecilhos que assolam dia a dia o âmbito jurídico pátrio, traduzindo-se em dificuldades à
aplicação da lei, no estudo da lei, e em divergências doutrinárias.
Pôde-se enxergar que as tentativas em normatizar as interações sociais encontram-se
registradas em épocas muito pretéritas. Em semelhante sentido, restou nítido que com o
transcorrer das décadas a preocupação do homem em criar mecanismos instituidores de leis,
como o Poder Legislativo, se intensificou, resultando em várias conquistas e estudos sobre a
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importância da lei para a sociedade, como as obras e pensamentos dos autores contratualistas
clássicos apontados.
Noutra senda, viu-se como demasiado relevantes para o contexto social e estudo da lei,
os trabalhos de Hans Kelsen, mormente acerca do sistema piramidal, da superioridade e
inferioridade das leis, bem como do ordenamento jurídico e suas características. Notou-se
também a importância das teses de Norberto Bobbio à resolução do conflito normativo pela
teoria dos critérios cronológico, hierárquico e especial. Ainda, avistou-se novas concepções
como as de Maria Helena Diniz e Miguel Reale a respeito do ordenamento jurídico, os quais
caracterizam-no em dinâmico, aberto e incompleto, além de entendê-lo por um ângulo
tridimensional.
Mais adiante, observou-se que apesar de complexo, residem lacunas nas normas que
compõe a ordem jurídica brasileira, como se exemplificou pela lei 12.015/10.
Frente
às
lacunas
existentes,
apresentou-se
disposições
infraconstitucionais
estabelecidas à integração da lei pelo juiz, como a analogia, os princípios gerais do direito, a
equidade e outros.
Com maior enfoque, contemplou-se o conflito de leis, o qual é denominado pela
doutrina como antinomia, considerando sua complexidade em relação aos demais entraves.
Ante sua exposição, atinou-se que os estudos relacionados ao tema não são recentes, bem
como aludiu-se a existência de divergências entre pesquisadores em relação aos métodos de
resolução desse conflito, especialmente para a antinomia real.
Destarte, uma das conclusões que se extrai do presente é que como estudiosos do
direito e/ou operadores, devemos estar cientes de que a lei é instrumento imprescindível à
vida do homem moderno, de que os estudos de outrora permitiram sua criação, difusão e até
compreensão, mas a voga consiste em aperfeiçoá-los, instituir outros modelos e métodos
diante dos problemas da lei, da inconstância do modo de vida social; fatores que requerem dia
a dia novas soluções, imediatas.
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