A Boceta de Pandora

Transcrição

A Boceta de Pandora
panasqueira.net
A Boceta de Pandora
Enviado por Constantino Braz Figueiredo
30-Ago-2008
O que eram esses tempos!... O que foram os tempos inóspitos da nossa infância…! E o que teriam sido os tempos
dos infantes que nos precederam?...
Fora um período difícil para toda a gente, vivesse, trabalhasse ou tivesse a profissão que tivesse. Estava-se em plena
Guerra Mundial; tinha acabado a Guerra de Espanha. Paradoxalmente, só depois das guerras é que foram os dias piores
para os nossos pais, já que, enquanto na Europa, Ásia e África se combatia pelo domínio dos Povos, em Cebola
ganhava-se dinheiro como nunca, nalguns casos mesmo muito dinheiro! Se a década de trinta tinha sido a das lutas
pelos horários e por melhores condições de vida, a dos quarenta fora a década do “kilo”. De todo o lado,
das potências em conflito, havia apelo às matérias extractivas de que o nosso subsolo era fértil, e a directoria das
minas deu liberdade para exploração própria, e a esmo, do rico mineral, contanto que lhe fosse “vendido”
pela tabela por ela fixada. Era dinheiro fácil, aparentemente fácil, porque além de não passar de ilusão ardilosa,
também fora onde os mineiros mais arruinaram a sua saúde, pois trabalhavam sem quaisquer condições de ventilação,
sem descanso, mal alimentados e sem higiene. Mesmo assim fizeram, modificaram e pintaram as suas casas; fizeram
mais filhos, e beberam, beberam… Nunca houve tantas tascas por metro quadrado e por pessoa! Um dia, a guerra
acabou, o “kilo” acabou, e eles, tristes, com as ferramentas que haviam adquirido no Fundão, volveram,
sem emprego, para junto das suas aflitas mulheres e da prole que teria de ser alimentada, vestida e educada.
Aos poucos, as minas iam adquirindo o seu ritmo normal, e os mineiros da nossa Terra iam sendo integrados na
exploração. Crê-se que foi a partir daí que o Couto Mineiro terá atingido o seu apogeu; em 1950 dizia-se que eram cinco
mil as pessoas que trabalhavam para a Companhia, dentro e fora da mina.
Entretanto, durante o lapso de tempo que mediou entre o “kilo” e a sua nova admissão nos quadros da
empresa, recorreu-se ao famigerado saltipilha e foge (ou será assalta, pilha e foge, expressão que terá redundado em
saltipilha por força da declinação semântica através de via popular, já que a construção literária assim nos obriga a
pensar?) e aí então eram “admitidos” todos: homens, mulheres e adolescentes. Na qualidade de crianças,
podíamos, de longe, assistir ao deprimente espectáculo da GNR atrás dos mineiros por aquelas serras da Abeceira
(Avesseira) e do Vale de Ermida, assim como nas ribeiras do Vale de Muro, Vale d’Água até Porcim. Fazia-se
pela vida deitando a mão a todos os recursos possíveis. Era assim; assim tinha de ser.
O que eram esses tempos! O que foram esses tempos…
Aos homens com mais de dezoito anos era concedido o exclusivo de serem admitidos para trabalhar dentro da mina e a
prerrogativa de encherem os pulmões da venenosa sílica que, insidiosa e insinuante os tomava até os aniquilar, dandolhes uma sedutora esperança de vida até aos cinquenta e poucos, sem que antes passassem por degradante
sofrimento, durante os últimos cinco-dez-anos, de sentirem o seu pobre aparelho respiratório em acelerada e irreversível
decomposição, tossindo e expectorando sangue e outras esquisitas matérias segregadas pelas entranhas dos seus
arruinados pulmões.
O que eram os tempos, o que foram esse tempos!
Às mulheres fora dada a veleidade de fazerem todo o trabalho caseiro, das hortas e courelas, de cuidar dos seu homens,
de parir, criar e educar os filhos e aguentar sem desfalecimento todo aquele desabar de vida quando a saúde faltava e
o dinheiro não chegava. Depois, já quando os seus homens não podiam, devido a doença ou morte, lançavam-se, elas
mesmas, heróicas, sublimes, a qualquer esforçado trabalho que lhes desse sustento para a família. E então era vê-las,
orgulhosas pelo êxito, e mais por terem conseguido sem qualquer auxílio das entidades instituídas – as
chamadas forças vivas – tampouco das estruturas sociais, que, dessas, não se tinha conhecimento local,
concelhio ou nacional. Cada um por si. Ou seja, cada uma por si mesma!
Têm razão as mulheres, as mães da nossa Terra e de todas as terras do chamado Couto Mineiro… e as daqueles
que, vindos de longe, pernoitavam nos barracões da Panasqueira e Barroca Grande e só iam a casa uma vez por
semana, onde chegavam extenuados pela árdua semana de trabalho e pelo cansaço de, a pé, por montes e vales, por
veredas e atalhos chegavam ao Paul, Silvares, Erada, Casegas, Sobral, Dornelas, Covanca e muitos outros burgos
circunvizinhos. Têm razão as mulheres “mineiras”. Nunca serão reconhecidos os seus sacrifícios, as suas
canseiras e angústias.
Se fosse possível contar a experiência de cada um, ou cada um contar a sua própria experiência, honestamente, sem
rodeios, e sem eufemismos que tudo subvertem e que de tão adocicados só nauseiam… se houvesse relatos justos,
verídicos, a História da nossa Terra seria real e séria. Deixemos a pesquisa para os estudiosos sociólogos e antropólogos
da nossa praça, e confiemos…
O que foram esses tempos…
http://panasqueira.net
Produzido em Joomla!
Criado em: 2 October, 2016, 06:13
panasqueira.net
E dos filhos? Alguém se lembra deles? Garotos …Bah! È preciso é que vão à escola, à doutrina, que
“apanhem” e, logo que possam, que vão trabalhar, pois a vida custa a todos! Começavam por carrear mato
para estrume do porco ou das cabras e a lenha que fazia falta para cozinhar e aquecer no rigoroso Inverno; logo aos
nove ou dez anos iam com as mães para a ribeira, e enterrados na água até às coxas apanhavam terra que era suposto
“pintar” para as garimpeiras mães lavarem em bacia adequada, à espera que lá no fundo surgissem
minúsculos grãos de minério. Depois, logo aos doze treze anos empregavam-nos nas minas, na correia, alfobre de
mineiros. Bom…a correia! A correia não deveria contentar-se com um parágrafo, nem com um livro! A correia fora
degradante para os garotos de Cebola, sobretudo para os órfãos. A correia era um barracão baixo e comprido com
paredes exclusivamente de chapa de alumínio e coberto com placas de lusalite, com intervalos em cima e em baixo para
arejar. Imagine-se então o que era estar ali no verão durante oito horas! A correia, afinal, consistia em duas passadeiras
transportando cascalho, uma em frente da outra com as torvas no meio; o cascalho passava e o “filão”,
seixos e minérios, era escolhido e deitado para as torvas. Ah! Havia meia hora para almoço. Ainda falam da
“frigideira” do Tarrafal… Haviam de ver o que foi a “frigideira”, vulgo correia...e o
trabalho em si, com as mãos engandanhadas pelo frio sempre dentro do cascalho húmido mesmo no Inverno rigoroso.
Depois eram os castigos. Pediam para ir à sanita…e o vigilante espetava dois dedos na sua direcção e marcava a
hora: dois minutos; a água que bebiam era trazida por um caneco de madeira em que faziam um furo na parte inferior
tapado com um espeto que se tirava para aparar com inclinação do corpo para o lado e um caricato esgar bocal. Podia
ser fresca na origem, mas ali ficava “choca” (inerte e morna). Depois eram as incontornáveis chicotadas
com que todo o dia eram mimoseados por vigilantes, capatazes e capatazes-gerais. Trabalhavam que nem escravos, e
o chicote, manuseado por aqueles pobres de espírito que mandavam e vigiavam zurziam-lhes os corpos imberbes e
indefesos sem dó nem piedade. O maior exercício intelectual daquelas mentes patológicas, sádicas e perversas consistia
em encontrar maneira de um sobrepujar o outro na arte de bem azorragar. Havia “menino” que cortava
uma mangueira de regar em seis ou oito tiras, deixando dez centímetros para punho. Eram tempos…Ainda bem
que ainda não havia por cá originários de África, porque se houvesse e vissem como era a escravatura branca, logo
debandavam a sete remos a refugiarem-se no colo de Gungunhana, porque esses ainda tinham os seus sobas para os
protegerem. Ao invés, aqui, neste país ocidental dito civilizado, não havia uma voz (uma só!) que viesse a terreiro
denunciar tais atropelos a todas as leis internacionais humanitárias. Nem sindicatos, nem autoridades oficiais e muito
menos ainda os lídimos senhores da ética, da metafísica, que esses, por tradição, apenas se dão bem com as classes
dirigentes, dominantes e possidentes.
…esses tempos…
E as nossas infantas? Tudo o que foi dito acerca das mães e mulheres tem merecida aplicação nas raparigas da Terra de
que tanto gostavam, apenas com a diferença de que trabalhando de igual modo, ou mais, o faziam com redobrada
alegria. Compreensível…irreverência juvenil!…Cantavam, dançavam divertiam-se, namoravam. Eram airosas,
esbeltas e brejeiras, sem serem boçais… maliciosamente encantadoras essas meninas!... A elas se deve em muito
a edificação da nova igreja. De facto, foram elas quem mais trabalhou, graciosamente, na ajuda diária aos artífices
contratados; eram escaladas, por grupos e por zonas de habitação.
Eram, além do mais, abnegadas, estóicas como toda a gente da Terra, embora esse estado nada tivesse a ver com o
estoicismo de Zenão, de Cícero, já que esses eram conscientemente passivos, consciente e filosoficamente doutrinados
para sofrerem, enquanto os de Cebola eram estóicos sim, mas estóicos activos, heróicos, mas por necessidade compulsiva.
…ainda esses tempos…
Todavia, não se infira daqui que só Cebola e povos limítrofes da Minas sofreram. Salvo raras excepções, para a regra ser
regra e continuar axiomática, havia dificuldades em todo o lado, em todo o Globo. Em Lisboa, a capital do Império,
havia milhares de pessoas a viver em barracas, mal alimentadas e com precária ou quase inexistente assistência
social; em Lisboa havia milhares de casas urbanas, já com água potável é certo, mas sem casa de banho e –
pior! – sem um ribeiro ou uma presa por perto onde pudessem lavar o dianteiro sequer o traseiro! E a vida nas
grandes urbes do mundo não diferia muito – Roma, Paris, Berlim, Londres, Buenos Aires, Tóquio…a China a
Cochinchina sofriam do mesmo mal. E isto cotejando apenas as nossas aldeias com as grandes cidades do mundo
evoluído. E como seria a vida nas aldeias desses países? Como seria nos arrabaldes e periferias de Moscovo, Berlim,
Paris, Manchester…nas favelas, no sertão, nas pampas?... Tudo é relativo e tudo tem de ser relativizado e
enquadrado no espaço e no tempo e no conhecimento evolutivo das gerações. As pessoas não eram insensíveis ou
indiferentes às agruras da vida, mas haveria melhor? Aqui sofria-se pelo trabalho das minas, a silicose, a morte; aqueles,
lá longe, sofriam com as guerras e suas sequelas, as epidemias, a morte… Qual a diferença?
Postas assim em evidência tantas canseiras e ralações desta gente poder-se-ia pensar a priori que outra coisa não se
faria do que carpir mágoas. Puro engano! O povo era entusiasta, alegre e participativo. A juventude, pujante e criativa,
como aliás se depreende pelas fotos que vão chegando ao tópico “Antigas” deste formidável e útil Site. A
década de cinquenta foi um manancial de actividades lúdicas e associativas, culturais, desportivas e religiosas. Como
bem revelam tanto essas fotos como os relatos ou simples comentários de “viver” ou de ouvir contar,
“A Nossa Gente” era bastante versátil e eclética. Não havia…inventava-se! Havia cinema, teatro e
(imagine-se!) até uma gala de fado com artistas de Lisboa, donde ainda nos recorda uma quadra da desgarrada com
http://panasqueira.net
Produzido em Joomla!
Criado em: 2 October, 2016, 06:13
panasqueira.net
que esse evento encerrou:
Bou-te dizer, meu venzinho
O que se escreve com “v”
É bocê, beneno e binho,
Binho, beneno e bocê
Estes espectáculos tinham lugar num barracão que havia na rua do corredouro construído para esse fim, e que morreu
porque o Clube da Panasqueira passou a enviar, aos sábados, um autocarro sem custos acrescidos ao bilhete de
entrada no cinema. Era bom! Quanto ao teatro passou a ser no nosso Clube, e fora bastante…Alguém hoje
acreditaria, se não houvesse testemunhos disso, que chegou a haver cinco grupos cénicos e que todos representaram e
que todos tiveram um hino?
Havia uma Filarmónica constituída por muitos membros que abrilhantava as festas de Cebola e todas as festas dos
arredores e até no Distrito de Coimbra. Também o grupo de futebol, O Estrela da Serra, do qual hino ainda nos lembra
o último verso (”na vida ele há-de ser a nossa boa estrela”), semeava o “pânico” por todas
as terras onde passava. Que o digam os de Silvares, do Fundão, Tinalhas, Panasqueira, Barroca Grande, etc. Para o
meio, era uma “máquina infernal” de fazer golos. Só à Panasqueira que tinha uma boa equipa – diziase –, em dois jogos o Estrela marcou 18 golos; 11 na portela, 7 na Panasqueira! Os manos Vítor e Xico destruíam
qualquer muralha defensiva ainda que fosse construída com aço e betão! Nunca se empatou nem se perdeu qualquer
jogo! Havia ainda em Cebola o Clube, as festas e seus mordomos, além das instituições Junta de Freguesia, Regedoria e
Paróquia, sem esquecer o ti Zé retratista que, sebento e envolto em mistério apareceu nos anos trinta, sebento e
misterioso viveu sozinho no seu tugúrio e reinou com o seu monopólio na década de quarenta até que morreu, sebento
e em misterio tal como tinha chegado. Com o surgimento dos kodak’s , o reinado da fotografia passou a ser dum
senhor do Terreiro. Depressa essas máquinas proliferaram e o negócio foi-se…Ainda tardariam as polaróides, as
digitais, as web cam’s… as transmissões directas … lá se chegará em breve… Havia cantores,
compositores, poetas e artistas; tímidos e espontâneos; gagos e repentistas; pedagogos e demagogos, mas doutores e
políticos, não. Está a falar-se já da década de cinquenta… e um relógio de pulso custava quinhentos escudos
… quase o ordenado mensal de um mineiro!
…depois desses tempos, outros tempos…
Tal como na mitologia grega, em que todo o mal da humanidade terá tido origem na boceta que Pandora abriu por
curiosidade, o mal, aqui, ao que parece, terá sido a abertura da mina. Trazia algum bem: o dinheiro, coisa nova, já que
antigamente as transacções seria feitas com géneros. Tomara-se-lhe o gosto e jamais se pôde viver sem ele; era uma
ilusão: trabalhava-se para comer e mal se vegetava. A ilusão penetrou e a saúde esfumou-se. Mas a década de
cinquenta estava a declinar. Os anos de juventude dos irreverentes “filhos” do kilo estavam a terminar
dando lugar a homens mais conscientes, fortes e viris. Já tinham ido à tropa, uns, outros preparavam-se para ir. E no
alvor da década de sessenta, já com outros conhecimentos, adquiridos nas minas pelo contacto, pela comunicação com
pessoas de outros lugares, pela troca de ideias, sabia-se que os países que mais sofreram com os conflitos mundiais
estavam a transformar-se em economias florescentes, carentes de mão-de-obra para a reconstrução das suas estruturas
abaladas ou destruídas pela Guerra. Da França, Alemanha, Suiça…até do Canadá chegavam rumores dessa
necessidade. Concomitantemente, das colónias chegavam ventos anunciando novos conflitos, de lutas pela emancipação.
Era tempo de pensar…Tinha chegado a hora das grandes decisões. Pandora, talvez envergonhada do mal que
causara, abriu a boceta mais um pouco…mais ainda…arrancou a tampa!… e viu, assombrada, que lá
bem no fundo havia algo bem mais poderoso que todas as desgraças e calamidades que afligiam a humanidade, um
Bem que o Mal não pode vencer, uma coisa chamada Esperança! Zeus, afinal, não se esquecera dos simples
mortais… Também a mina, soltou a esperança que encheu os ávidos corações dos homens de Cebola. E foi nessa
hora que do seu peito, agitado pela emoção de sentirem a oportunidade de dar verdadeiro sentido às suas vidas, de terem,
enfim, almejado um ensejo para melhor cuidar do seu futuro e do devir dos seus filhos, saiu um clamor fremente e
incontido, um grito uníssono: Basta!...
…a diáspora começara…
Constantino Braz Figueiredo
Um talO DE CEBOLA
http://panasqueira.net
Produzido em Joomla!
Criado em: 2 October, 2016, 06:13