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O que fazer com o legado de Klauss Vianna, o homem que deu voz ao corpo do
ator brasileiro
Alexandre Lambert
Artista cênico e visual / Ator e cenógrafo / Mestrando
Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas do Centro de Letras e Artes da UNIRIO
Resumo:
A partir de “O que é um autor”, de Michel Foucault, fiquei me perguntando: O que seria um
ator? Existem diferentes tipos de ator? Que diferenças são essas? Quais as suas razões? O que é
um ator teatral? Quais são seus verdadeiros instrumentos de trabalho? Que função é essa? Que
pulsão é essa que leva esse artista a essa relação de poder (Nietzsche) com o seu público? Que
relação é essa? Como terá acontecido o primeiro momento teatral no rito dionisíaco? Começou
aí o teatro? E o que é teatro? É uma profanação? É uma espécie de jogo? Qual a relação do
sagrado com o teatro?
O teatro é, basicamente, feito de palavras e ações. E aí, como é que fica o mito e o rito?
Talvez no teatro o ludus e o jocus tenham se mantido em equilíbrio; assim o teatro seria um
jogo diferente, “metade da operação sagrada” seria realizada, mas não por quebrar a “unidade
consubstancial entre o mito e o rito”, mas sim por diluí-la. Seria então o teatro uma diluição do
sagrado?
Na história do teatro ocidental a relação meio sagrada do ator teatral com o seu corpo,
com a sua a voz, com o tempo e com o espaço na busca da melhor expressão artística, tem uns
100 anos. No Brasil, começou na década de 60, com um artista ímpar, Klauss Vianna.
Quais os aportes de Klauss Vianna para a função do ator? Mas antes disso: O que seria
um ator? Alguém um dia criou a função do ator. Tomando o texto de Michel Foucault (1992)
O que é um autor?, imaginemos um ditirambo na velha Grécia, onde alguém, pela primeira vez,
pôs-se ao meio da roda e disse-se entusiasmado, com um deus em si, proclamando-se
momentaneamente Dionísio. Criando assim uma função profana que o afastava do centro do
sagrado e o levava para a fronteira deste. Este primeiro ator – o ator mítico – alterou o rito e
profanou o mito. De um só gesto, num mesmo único momento criou ele uma função e um dos
objetos de investigação da mesma: a personagem. Qual foi o objetivo dessa função? Em que
consistiu? Perguntas sem respostas. O resto é história do teatro.
Como vemos essa função quase trinta séculos depois? Como todo ser humano, o ator
está submetido às leis da física, mas, no momento em que começa a atuar, ao ator é permitido
jogar com o tempo e com o espaço, tal e qual uma criança quando inventa espaços e tempos
para as suas brincadeiras. Esse aspecto lúdico, essa liberdade de brincar, de “jogar”, enquanto
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trabalha, é talvez a grande diferença da função do ator em relação a outras exercidas pelos
demais homens.
Émile Benveniste (Apud AGAMBEN, 2007, p. 67) mostrou que “o jogo”, ao quebrar a
unidade do sagrado, produz o elemento lúdico, de um lado, e o jocoso, do outro:
A potência do ato sagrado reside na conjunção do
mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe
em cena. O jogo quebra essa unidade: como ludus: ou jogo
de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como
jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa
sobreviver o mito.
Fazendo uma transposição do ato sagrado para o ato teatral podemos ver que há um elo
entre eles. Assim como acontece no ato sagrado, a potência do ato teatral residiria na conjunção
do texto que narra a história com a dramaturgia que a reproduz e a põe em cena.
Diz Benveniste (Apud AGAMBEN, 2007, p. 67): “se o sagrado pode ser definido
através da unidade consubstancial entre o mito e o rito, poderíamos dizer que há jogo, quando
apenas metade da operação sagrada é realizada, traduzindo só o mito em palavras e o rito só em
ações”.
E ainda:
Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a
abolir simplesmente. Assim a ‘profanação’ do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa.
As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em
brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras
atividades que estamos acostumados a considerar sérias (BENVENISTE Apud AGAMBEN,
2007, p. 67) .
O ator, como as crianças com as suas bugigangas, transforma em “brinquedos”
metafóricos ou metonímicos os objetos cênicos que podem pertencer a outras esferas.
Sendo o teatro feito de palavras e ações, talvez nele o ludus e o jocus tenham se
mantido em equilíbrio e, nem o mito nem o rito desapareceram totalmente. Assim, o teatro
tornou-se um jogo diferente: “a metade da operação sagrada” seria realizada, mas não por
quebrar a “unidade consubstancial entre o mito e o rito”, e sim por diluí-la.
Tratar-se-ia a profanação no teatro de um processo de diluição do sagrado?
Agamben mostra como se confundiram, ao longo do tempo, os termos latinos religare,
“que é o que liga e une o humano e o divino”, com relegere, “que indica atitude de escrúpulo e
de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o ‘reler’)
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perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar, a fim de respeitar a separação entre
o sagrado e o profano”.
Conclui Agamben (2007, p. 65-66) que:
Não só não há religião sem separação, como toda
separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente
religioso. [...] O que foi separado ritualmente pode ser restituído,
mediante o rito, à esfera profana.
Parece-me que o religioso, o sagrado, afastaram-se do teatro, no exato momento em que
o nosso ator mítico profanou o ritual dando a sua carne, o seu corpo para representar o deus.
Mas tanto a preparação do ator para entrar em cena, quanto o término da apresentação exigem
um ritual com relação ao figurino, aos objetos de cena. O que é isto pode significar? As roupas e
os objetos usados no teatro são objetos “separados do uso comum”. Assim, parece-nos que o
teatro conserva em si algo de “genuinamente religioso”, no sentido acima explicitado, mesmo
que de forma diluída.
Por outro lado, Agamben diz que a profanação “desativa os dispositivos do poder e
devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado” (AGAMBEN, 2007, p. 68) . É
uma oposição à secularização que transmuta o império celeste, seu modelo sagrado e sua
hierarquia para o império terrestre, com o objetivo de um exercício de poder. São duas
operações políticas.
O teatro seria então um jogo de profanação posto em cena por atores, quando e onde
deve haver um cuidado da ordem de um cerimonial religioso. Esses artistas devem viver
pesquisando e buscando sempre uma nova dimensão do uso do tempo, do espaço, dos corpos e
das vozes. Essa visão meio “religiosa” do teatro não é nenhuma novidade. Stanislavski, em
“Para uma ética do teatro” afirma que:
O verdadeiro sacerdote tem consciência da presença do
altar durante todos os instantes em que oficia um ato religioso.
Exatamente assim é que o verdadeiro artista deve reagir no palco
durante todo o tempo que estiver no teatro. O ator que não for
capaz de ter este sentimento nunca será um artista verdadeiro
(STANISLAVSKY, 1983, p. 276).
Mas o teatro não é um templo; o ator não é um sacerdote. No teatro podemos encontrar
o mito e o rito diluídos, mas teatro não é religião. Afinal, o que é o ator de teatro? É um artista
que tem como instrumentos de sua arte, a sua voz e o seu corpo e, a sua finalidade é expressar
ideias e emoções. Assim, ele precisa trabalhar incessantemente para ter, cada vez mais, um
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maior domínio sobre seu corpo e sua voz para chegar ao como, e em qual intensidade,
expressar-se: Mais corpo na voz ou mais voz no corpo? Ou ainda, um equilíbrio entre as duas
possibilidades? Só ele, ator em cena, a cada momento da execução do seu trabalho, sentirá e
saberá a resposta.
Os atores brasileiros do passado, no entanto, não possuíam essa visão instrumental. O
trabalho corporal entre eles era, praticamente, inexistente: Segundo Prado (2003, p. 16-17), os
atores brasileiros, antes do final da década de 60, andavam de um lado para outro, de um palco
dividido em nove partes, e os seus gestos eram “convenções” usadas para as gags, para dar
ênfase ao que era falado, ou ainda para caracterizar personagens estereotipados.
Esse estilo de representação teatral começou a mudar no final da década de 40,
primeiramente, com o Teatro Brasileiro de Comédia, depois, com o Teatro de Arena e, mais
tarde, com o Grupo Oficina. Somente em 1967, na montagem de José Renato de A ópera dos
três vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill (TAVARES, 2007, p. 43-44) que o corpo do ator
brasileiro começou a ser considerado como um meio de expressão. O responsável pela
introdução dessa revolução no teatro brasileiro foi o artista e pesquisador Klauss Vianna quem,
através do treinamento da sensibilidade, ensinou ao ator brasileiro a dar voz ao seu corpo.
Longe de acreditar em métodos a serem aplicados e em certezas a serem transmitidas,
ele preferia “apresentar informações e estimular as contribuições individuais”, fazendo com que
os atores despertassem em si “o desejo permanente de investigação perante [...] a arte”, que para
ele se confundia com a vida. Ele considerava o processo criativo como “inesgotável”, pois seria
“semelhante às infinitas descobertas que a vida nos proporciona” (VIANNA, 1990, p. 9).
Estudei e trabalhei com Klauss, entre os anos 70 e 73, e tive a sorte de conviver com
ele durante mais de um ano, quando da montagem da peça Hoje é dia de Rock (71-72), de José
Vicente, no Teatro Ipanema.
Klauss Vianna nos deixou princípios ético-libertários e técnico-criativos que se aplicam
politicamente, tanto à arte, quanto à vida. Estes opõem resistência à tendência do capitalismo
que, como religião, segundo Walter Benjamin, induz à culpa, ao desespero, levando o mundo à
destruição (BENJAMIN apud AGAMBEN, 2007, p. 70).
Nesta linha – de redenção, esperança e transformação do mundo – é onde vejo o legado
que Klauss Vianna nos deixou. A arte tem o seu campo de batalha, e é nele e a partir dele que o
artista deve lutar. Mas o artista é, antes de tudo, um ser social e político, e como membro de
uma sociedade deve lutar por ela como um todo. Estamos no meio de uma grande guerra
ideológica. Ela está sendo travada diuturnamente. Estamos vivendo um momento muito sério e
perigoso para a humanidade. O capitalismo em sua fase mais agressiva e destrutiva atinge a
todos habitantes do planeta, a natureza em milhares de anos se recuperará, mas o homem pode
desaparecer. E não há desculpa nenhuma, que seja válida, para que alguém possa se eximir de
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tomar um partido nessa guerra pela vida, principalmente, quando se trata do intelectual e do
artista.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmam. São Paulo: Boitempo,
2007.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. Antonio Fernando Cascais e Eduardo
Cordeiro. Portugal: Vega Passagens, 1992.
PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2003.
STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Trad. Pontes de Paula
Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
TAVARES, Joana Ribeiro da Silva. Klauss Vianna, do coreógrafo ao diretor de
movimento. 2007. Historiografia da preparação corporal no teatro brasileiro. Tese (Doutorado)
– Faculdade de Teatro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
VIANNA, Klauss; CARVALHO, Marco Antônio de. A dança. São Paulo. Siciliano,
1990.
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Suzuki e Vassiliev: corpos da voz
Alexandre Pieroni Calado
Doutorando em Artes / Criador e pesquisador teatral
CAC- ECA / USP
Resumo:
O presente artigo insere-se no âmbito de uma investigação pessoal sobre aproximações
contemporâneas ao trabalho vocal do actor, em contextos alternativos ao norte-americano e
europeu. Ele procura identificar alguns elementos das pesquisas teatrais desenvolvidas por dois
pedagogos e encenadores contemporâneos, Tadashi Suzuki e Anatoli Vassiliev, um movimento
pertinente se se considerar a particular atenção que estes criadores têm consagrado à dimensão
vocal do jogo do actor. Começo por abordar a metodologia desenvolvida por Suzuki para o
treino de actores, a qual está alicerçada esta numa codificada disciplina corporal que visa o
apuramento do controlo físico e vocal. Em seguida atravesso o percurso de Vassiliev,
analisando o seu conceito de sistema lúdico e como este o levou a considerar de suma
importância a noção de acção verbal. Ambos homens de teatro, Suzuki e Vassiliev têm
procurado, cada um à sua maneira, resgatar um elo com as respectivas tradições teatrais e, ao
mesmo tempo que dão as suas respostas às necessidades específicas do tempo presente,
imprimem um renovado sopro à arte do teatro.
Palavras-chave: Formação de actores. Jogo vocal. Tadashi Suzuki. Anatoli Vassiliev.
Tadashi Suzuki e a palavra energizada
Tadashi Suzuki é um encenador japonês contemporâneo que desenvolveu um
treinamento psicofísico com referências nas artes performativas orientais mas marcado pela sua
leitura da contemporaneidade. Ele propõe uma estética da cena centrada no ator, o qual atua
num registro físico e vocal forte, como resposta a um mundo dominado pela tecnologia e pela
progressiva artificialidade dos modos de vida. Para o presente trabalho, fundamento-me nos
textos de Suzuki e em estudos sobre o seu trabalho já publicados, na observação do vídeo da
apresentação do espetáculo Dionísios (adaptação de As Bacantes, de Eurípides), em 1993, em
São Paulo, bem como na minha experiência com a atriz e diretora Juliana Monteiro que
frequentou a SITI Company, em Nova Iorque, com quem realizei um trabalho em 2006.
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A abordagem de Tadashi Suzuki à palavra é em parte devedora da herança musical do
teatro oriental mas afasta-se dos cânones de beleza convencionais, apontando uma estética ora
minimalista, ora expressionista. Em qualquer dos quatro Básicos e das oito Caminhadas, em
princípio, pode ser introduzido o trabalho com um texto ou uma canção, mas é na prática das
Estátuas, sentadas e de pé, que o trabalho vocal assume maior protagonismo (vide
CARRUTHERS, 2004 para uma descrição detalhada dos elementos do treinamento). Na
introdução ao treinamento que pude experienciar, após um trabalho inicial em que a expiração é
sonorizada com a consoante FFF, Juliana Monteiro utilizou como material de trabalho vocal um
fragmento da personagem MacBeth (“Tomorow and tomorow and tomorow”), da peça
homônima de William Shakespeare. Tal como no treinamento físico, a princípio, a forma de
verbalização é muito determinada: o texto é pronunciado com uma intensidade forte e o máximo
de articulação, pausas pré-determinadas, plano e sem modulações; é sugerido que se foque a
atenção no hara, admitindo que é deste centro que irradia todo o movimento e todo o som.
Vários volumes são trabalhados, alto, médio e sussurrado mas a intensidade é sempre forte,
sendo a voz considerada principalmente em termos de energia (ALLAIN, 2002, p. 113). É
talvez importante frisar que a designação «energia animal» surge em diversos textos de Suzuki,
sempre equacionada nos seguintes termos: “As a theatre artist, I am engaged in work that is
based on or rooted in animal energy. As such, I am interested in examining these changes to
Japanese daily life and particularly to the Japanese culture of the body that emerges from that
life, as daily life used to have strong connections to all the senses.” (SUZUKI, 2002a, p. 1) A
centralidade desta noção, não apenas no trabalho vocal mas em toda a estética de Suzuki está
bem patente no título do seu livro Ekkyô suru chikara [Energia que não conhece fronteiras],
simplisticamente traduzido por The Way of Acting (CARRUTHERS, 2004, p. 73).
A observação do vídeo do espetáculo Dionísios permite confirmar quanto o treinamento
está associado às opções estéticas de Tadashi Suzuki. Desde logo, a sua aplicação é evidente nos
coros, em cujos elementos se observa um grande capacidade para trabalhar em uníssono e/ou
em dissincronía ao mesmo tempo que se movimentam no espaço articuladamente. Já os atores
que desempenham os principais papéis, como o de Cádmo ou Penteu, revelam uma capacidade
de enunciar o texto com grande intensidade e velocidade mantendo um movimento lento ou
mesmo a imobilidade absoluta. Suponho que o treinamento vocal tenha outros aspectos com os
quais não tive contacto, uma vez que a atriz que desempenha Agave explora na cena final
diversos registos, utilizando mesmo ressonâncias occipitais, guturais e peitorais numa só frase.
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Anatoli Vassiliev e a ação verbal
Anatoli Vassiliev (1942-) nasceu na Rússia e é teórico do teatro, pedagogo e encenador.
A sua visão do ensino da arte do ator levaram-no a elaborar uma teorização fundada nos
«sistemas lúdicos» e que o leva a um entendimento particular da dimensão do verbo em cena.
Para explicitar o modo como Vassiliev percebe a voz e a palavra, o presente trabalho
fundamenta-se na leitura do seu livro Sept ou huit leçons de théâtre (1999), bem como na
observação de registros vídeo de espetáculos que montou entre 1979 e 2004.
Segundo Vassiliev, o século vinte foi dominado pelo realismo psicológico, que está
associado à noção europeia-cristã de confissão psicológica. Ante o que sentiu ser a crise deste
sistema, o autor foi levado a desenvolver o seu sistema fundado na tradição, que defende ser
mais antiga, do jogo e que encontrou em Platão e Molière. No sistema lúdico tudo é
determinado pelo acontecimento principal e não pelas circunstâncias dadas (acontecimento
original), o que concorre para o desaparecimento da dimensão narrativa e para uma ênfase no
aspecto conceptual da criação. Outro aspeto dos sistemas lúdicos é que entre o ator e a
personagem existe uma distância, constituindo-se estas duas categorias através do jogo, pelo
que, menos que uma personagem com a qual se identifica o ator, no sistema lúdico é mais
adequado falar de “un «concentré d’émotions» dont l’acteur ressent l’attraction, [que]
l’influence devant lui.” (VASSILIEV, 1999, p. 50) Importa ainda assinalar que nos sistemas
lúdicos o trabalho do ator é dominado não por um elo direto do sentimento à ação mas por um
elo retroativo, o que remete ao trabalho desenvolvido inicialmente por Stanislavski sobre a ação
física1. Admitindo que a ação física desencadeia ações psíquicas, se o gesto físico se inscrever
no espaço real, ele desencadeará no ator ressonâncias no que ele tem de real e produzirá
emoções reais; por outro lado, se o gesto físico se inscrever no espaço metafísico, por
retroatividade, ele une o ator ao metaespaço. A ação física é, então, sublimada e reduzida ao seu
objetivo, transformando-se num estado psicofísico que provoca ações não ilustrativas e, assim, a
ação verbal vai conquistar uma grande importância. Como refere Vassiliev: “La matière de
l’action dramatique s’en trouve radicalement transformé. Cette matière, ce que ressent, ce que
suit le public, ce qu’il peut toucher, ce n’est plus le psychisme, plus le sentiment, mais le mot
lui-même – le verbe.” (VASSILIEV, 1999, p. 187) A voz, portanto conquista o primeiro plano
no jogo do ator.
O trabalho de Vassiliev com a ação verbal norteia-se pela percepção de que a entonação
carrega consigo uma ideologia. Identificando a existência de três tipos principais de entonação
(afirmativa, exclamativa e narrativa), o autor consagrou a sua atenção sobre o primeiro destes
tipos que entende ser o característico da tragédia antiga, da comédia clássica, da mitologia e da
religião. Procurando superar os clichês da entonação teatral, o autor desenvolveu uma pesquisa
e uma pedagogia centradas nos textos de Platão e de Homero, trabalhando com o primeiro o
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aspecto da composição, da articulação de ideias, e com o segundo a sequência minimal, a
palavra: “Sur les textes de Platon, jétudie l’art de piloter le contenu. Sur Homère, je travaille
l’art de piloter la forme: le verbe lui-même.” (Vassiliev, 1999, p. 109) No trabalho com estes
materiais utiliza parâmetros como registro (intervalo onde existe o som; cada ator tem um
registro confortável), tom (variação dentro do registro; o tom acima ou abaixo; pede que todas
as palavras sejam enunciadas no mesmo tom), ataque (movimento da palavra como objeto
físico; o ator lança a palavra) e raio (a palavra pode formar um cone, difundir-se; o fechamento
do ângulo do cone tende para uma linha, um dardo). O seu trabalho leva em conta a ideia de que
a língua russa é brutal, sobretudo se o seu propósito são os temas fundamentais da outra vida e
procura uma técnica forte e violenta que está bem patente nos espetáculos Medeiamaterial
(Avignon, 2002) e Ilíada - Canto XXIII (Epidaurus, 2008).
Nota final
O presente trabalho consagrou atenção particular ao modo como Tadashi Suzuki e
Anatoli Vassiliev entendem o jogo vocal do ator. Ambos fazem um teatro não realista, o que
concorre para que as suas pesquisas se afastem da tradição teatral psicológica onde o
relaxamento é uma das principais premissas. Suzuki e Vassiliev estão comprometidos em
manter um vínculo com a tradição do repertório dramático, sem abandonarem a procura de
formas adequadas à realidade contemporânea.
Referências
ALLAIN, Paul. The Art of Stillness: The Theatre Practice of Tadashi Suzuki. London:
Methuen, 2002.
CARRUTHERS, I. ; YASUNARI, T. The Theatre of Tadashi Suzuki. Cambridge; New York:
Cambridge University Press, 2004,
STANISLAVSKI, Constantin. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial
Quetzal, 1977.
TOPORKOV, Vladimir. Las acciones fisicas como metodologia. In: JIMENEZ, Sergio (Org.).
El Evangelio de Stanislavski segun sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas e Judas Iscariote. Mexico: Grupo Editorial Gaceta, 1990. p. 289 -338.
VASSILIEV, Anatoli. Sept ou huit leçons de theater. Trad. notes Martine Néron. Paris:
P.O.L., 1999.
SUZUKI, Tadashi. Tradition and Creative Power in Theatre. Lecture Given April 30 at the
Donald Keene Center’s Soshitsu Sen, [S.l], p. 1-7, 2002a. Disponível em:
<www.columbia.edu/cu>.
SUZUKI, Tadashi. Culture is the body. In: ZARRILLI, Phillip. Acting (Re)Considered. 2 nd.
London : New York : Routledge , 2002b. p. 163-167.
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A corporeidade no barroco mineiro, pesquisas e análises
Carolina Romano de Andrade
Mestre em Artes - Universidade Estadual de Campinas / Prof.Coord. Pós Graduação Dança
Educação Faculdades Integradas de Bauru Professora de Artes Cênicas da Universidade
Sagrado Coração -USC
Resumo
A presente pesquisa baseou-se no legado de François Delsarte, para estudar analiticamente e
procurar entender a dramaticidade e expressividade do gestual humano nas pinturas barrocas de
igrejas de Ouro Preto-MG. Analisamos o forro da Igreja Nossa Senhora da Conceição, pintado
por Lourenço Petriza (1833). Para a análise proposta utilizamos as leis que regem o uso do
corpo humano, como meio de expressão, legadas por François Delsarte, a fim de compreender e
trazer para o corpo a carga emocional presente nas obras. Ademais, elaboramos uma
composição cênica que procurou sintetizar corporalmente a poesia visual que vivemos nesta
pesquisa, que examinou e agregou elementos pictóricos, pesquisa de campo e a subjetividade
artística como inspiração fundamental. Os caminhos utilizados no processo criativo deram-se
pelas relações entre a pesquisa teórica e a pesquisa artística, esta última embasada nas vivências
do campo e na pesquisa de movimento.
Palavras-chave: François Delsarte. Barroco Mineiro. Corporeidade.
A obra de arte, no contexto barroco, na maior parte dos casos, mostra-se imersa em um
ambiente diferente do que estamos habituados a apreciar obras de arte, tais como museus,
galerias, catálogos, entre outros. Ao contrário, a arte barroca apresenta-se em um ambiente
multifuncional: a igreja.
Especificamente em Ouro Preto, nos dias atuais, as igrejas observadas são espaços
reservados à arte que excedem os limites da multifuncionalidade. Ao mesmo tempo em que a
igreja é uma área de culto, é também um ambiente de visitação turística. Essa relação é
dicotômica e híbrida, como mostra a observação: “Um paroquiano entra na igreja e reza, ao
mesmo tempo em que um turista entra e tenta tirar fotos e adquirir informações daquele local.
Minutos depois, este mesmo turista ajoelha e começa a rezar” Diário de Campo 27/07/2004.
(ANDRADE, 2006, p. 06). Essa dupla função acaba por aparecer também na leitura da obra
inserida dentro deste templo religioso.
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O processo de decodificação da obra de arte e suas diferentes interpretações passa por
algumas fases e questionamentos como sugere BARBOSA (2005). O primeiro contato acontece
por meio da observação, depois o indivíduo passa pela assimilação e a identificação do seu
universo cognoscível, determinados pelo grau de consciência e informação próprio de cada
observador, o que lhe permite desempenhar (ou não) o papel de recriador da obra.
Sobretudo no espaço da igreja, a pintura proporciona um ambiente de interação e
interatividade, onde os receptores podem modificar significados, o que gera a relação obrareceptor:
[...] a representação da imagem está condicionada em função de os
receptores possuírem o domínio dos códigos (ou seja, o repertório)
necessário à interpretação da obra. Deles é requerido o conhecimento
da lei ou convenção que articula a possibilidade do diálogo entre os
mesmos e a obra [...] ” (TAVARES, 2001 p.6).
Seguindo o rigor das construções barrocas, as igrejas construídas neste período são
espaços arquitetônicos cuja função é trazer o fiel para próximo de Deus. Como defende BAZIN
(apud ÁVILA, 1997) a relação metafórica entre imagem e significados é o que preenche o
imaginário dos crentes. Essa relação não é muito clara nem para os pintores, muito menos para
os observadores; não é necessário que se entenda todos os símbolos que estão retratados nas
pinturas para apreciá-las, porque somos tomados pelo sublime, não por aquilo que vemos, e,
sim, pelo que sentimos.
Como vimos “Os homens da época barroca eram visuais. Não existe nenhum dogma,
nenhuma ideia, nenhum conceito, nenhum sentimento que eles não tenham revestido com uma
imagem, aos quais eles não deram uma figura.” (ÁVILA, 1997. p. 88) Portanto, não podemos
afastar a função retórica da pintura na igreja que tem a função de contar uma história, passar
uma informação visual para letrados e iletrados, seguindo os preceitos do discurso da
Contrarreforma. A função de ornamentar o ambiente, ostentar as riquezas pessoais ou das
irmandades, características diferentes da simples apreciação e fruição das obras de artes
contemporâneas é resgatada pela Igreja.
Na leitura da obra de arte presente na igreja, existe de fato uma informação a ser
transmitida, como vemos:
Sabeis que três razões têm presidido a instituição de imagens nas
igrejas. Em primeiro lugar, para a instrução das pessoas simples, pois
são instruídas por elas como pelos livros. Em segundo lugar, para que
o mistério da encarnação e os exemplos dos santos pudessem melhor
agir em nossa memória, estando expostos diariamente aos nossos
olhos. Em terceiro lugar, para suscitar sentimentos de devoção, que
são mais eficazmente despertados por meio de coisas vistas que de
coisas ouvidas. (BAXANDAL, 1991, p. 49)
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Desta maneira, os possíveis significados que as imagens possam vir a ocasionar, são
estabelecidos por meio das trocas entre o repertório do pintor (autor da obra) e o do receptor
(observador da obra). A imagem do teto da igreja acaba por “convidar” o espectador a participar
da exploração do espaço e das experiências sinestésicas que este proporciona. Capaz de unir em
um só ambiente a possibilidade de conviver, interpretar e interagir com a obra, a arte inserida na
igreja proporciona uma relação física entre a obra, os personagens por ela representados e a
interpretação do espectador.
Para “ler” uma obra precisamos ter “visão”, treinar a observação com paciência: percorrer
os detalhes que a obra observada nos exibe atentar para a descrição da obra a fim de salientar o
que vemos, observar pontos da construção e da concepção da obra; ao mesmo tempo, não
podemos esquecer o caráter apreciativo que a pintura e as artes em geral possuem.
Na história da arte o objeto do passado está aqui hoje. Podemos ter
experiência direta com a fonte de informação, o objeto. Portanto, é de
fundamental importância entender o objeto. A cognição em arte
emerge do envolvimento existencial e total do aluno. Não se pode
impor um corpo de informações emotivamente neutral (BARBOSA,
2005, p. 38).
Sabemos que toda essa necessidade de significar acaba por delimitar áreas e conceitos que
são insuficientes, se quisermos estudar os gestos e os desdobramentos destes em
movimentações. No entanto, não as descartamos totalmente porque nos oferecem subsídios para
chegarmos à análise de movimento, proposta por François Delsarte, como veremos adiante.
Por ser um homem de fé acentuada, François Delsarte (1811-1871), teórico do estudo do
gestual humano, enxergava o homem e seu corpo como a obra mais perfeita de Deus: “o corpo
do homem, diamante da criação, alfabeto universal da enciclopédia do mundo” (MADUREIRA,
2002, p. 9). Falar do corpo como obra de Deus é refletir a respeito de suas manifestações e
ações, a começar pela encarnação de Deus em corpo humano, representado por Jesus Cristo,
como manda a tradição cristã e posteriormente como este corpo se transforma em divino. Deste
modo, questionava a função do corpo e do movimento na relação e sua função simbólica. A
teoria delsartiana utilizada nesta pesquisa, portanto, questionou a relação simbólica dos
movimentos submetendo as emoções impressas nas pinturas dos forros de igrejas do Barroco
Mineiro a uma análise pormenorizada.
Durante o decorrer da pesquisa artístico-científica, deparamo-nos com a subjetividade da
pesquisa de campo, aliada com dificuldade de delimitação do escopo da pesquisa artística.
Escolhemos então, em um primeiro momento não “focar” e não “delimitar”, para que o caráter
de fruição pudesse ter espaço de atuação. A partir daí, passamos a investigar os acontecimentos
324
que faziam mais sentido à pesquisadora, fazendo uma revisão contínua da anotação do objeto.
”Essa constante postura interrogativa possibilita-nos questionar o que nos parece familiar e,
portanto ao que nos faz sentido, pois aos eventos que assim concebemos conseguimos atribuir
significados”. (SATO; SOUZA, 2001)
Após um tempo observando o campo, constatamos que a própria experiência permitia-nos
extrair a corporeidade, que buscávamos para a criação artística. O fato de ter que, de alguma
forma, vivenciar e posteriormente registrar, por meio de caderno de campo, os momentos
efêmeros da pesquisa permitiu-nos a possibilidade de tornar presente o passado vivido.
O processo criativo proposto nesta pesquisa veio para aproximar as vivências da
intérprete ao universo das imagens, coletadas e produzidas durante a pesquisa, fossem elas
interiores ou exteriores1. Desta maneira, não pretendíamos mostrar uma realidade estética de
Ouro Preto, tampouco imitar personagens dos tetos ou fatos ocorridos durante as investigações,
ou ainda, realizar estudos coreográficos sobre as práticas de François Delsarte. Desejávamos
fazer uma síntese, condensar os flashes de memória vividos na pesquisa de campo a um dos
fatos que mais nos chamou a atenção: a relação dos paroquianos com suas crenças, por meio do
caminho solitário que cada indivíduo percorre para encontrar e manifestar a fé. Constatamos aí
“a mola propulsora” para a concretização de nossos anseios artísticos, o termo fé tornou-se
recorrente em nosso caminho, pautando todo o processo criativo.
Na criação artística procuramos sintetizar a experiência prática a fim de estabelecer
identificações com o espectador. Ou seja, procuramos criar uma referência que caminha lado a
lado com poética e o conteúdo da obra. As artes cênicas (incluímos aí a dança) podem ser
representadas de forma a conduzir o autor e o intérprete a aproximarem-se do espectador,
através da sua poética. Esta criação, como mencionado anteriormente, não teve a preocupação
de representar uma realidade estética determinada, distanciando-nos de uma reprodução realista
e mimética. Porém se vincula à pesquisa a partir do momento que traduz uma visão dos fatos
observados, na pesquisa de campo, e sintetiza as emoções vividas em campo, durante a
pesquisa.
1
Referimo-nos às imagens interiores, neste contexto, de acordo com as ideias expressas por
James Hillman em “Psicologia Arquetípica - Um breve relato”, capítulo 2 - A Imagem e a
Alma: Base Poética da Mente (HILMAN, 1983).
325
Portanto, entendemos que a melhor maneira encontrada para entender a fé das pessoas de
Ouro Preto foi vivenciar seus rituais, deixando-nos levar pela sua devoção; esse contato com a
crença da alteridade chamou-nos a atenção para os nossos questionamentos a respeito da fé.
Percebemos, neste ínterim, que nossa fé independe de convicções religiosas; e que ela é uma fé
na ontologia, pertinente ao processo artístico desta pesquisa.
Referencias
ANDRADE, Carolina. O gestual humano e o barroco mineiro a luz dos estudos de François
Delsarte. 2006. Dissertação (mestrado) - Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas.
Campinas, 2006.
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Brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997.
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HILLMAN, J. Psicologia arquetípica: um breve relato. São Paulo: Cultrix, 1983.
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Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas.
Campinas, 2002.
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do cotidiano através da pesquisa etnográfica em psicologia. Psicol., São Paulo, 2001, v.12, n. 2.
TAVARES, Mônica. A Recepção no contexto das poéticas interativas. 2001. Tese (Doutorado) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo 2001.
326
A espetacularidade da fala como performance
Celina Nunes de Alcântara
Professora Adjunta da Tradução em Teatro UERGS/FUNDARTE / Doutoranda em Educação
na UFRGS. Membro do GETEPE-Grupo de estudos em educação, teatro e performance / Atriz
do Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator
UFRGS
Resumo
Este trabalho procura refletir sobre uma proposição de trabalho vocal que intenta uma relação
direta entre produção vocal e corporal, ou seja, corpo e voz trabalhados de forma indissociável
na construção de uma performance vocal. Para tanto, a temática foi pensada à luz das
proposições pedagógicos/vocais da autora na sua prática como atriz/docente, permeada pelo
conceito de performance, relacionado à oralidade e a fala, na perspectiva de Paul Zumthor,
Esther Langdon e Marlene Fortuna. Assim, o percurso desta reflexão foi, ao mesmo tempo, a
tentativa de levantar questões acerca de uma experiência de trabalho corpóreo/vocal que se
propõe a investigar esses dois elementos de forma interdependente, de modo que um possa
potencializar o outro, bem como tecer uma articulação com as formulações, ideias e usos
possíveis dessa abordagem.
Palavras-chaves: Corpo. Voz. Performance. Fala.
A proposição de um trabalho para a disciplina Performance da oralidade, no curso de
Especialização em Pedagogia da Arte (FACED/UFRGS), além de ter sido um espaço no qual
foi possível amplificar as pesquisas que desenvolvo como atriz e professora de teatro, dentro de
uma perspectiva do trabalho vocal e corporal, no qual, corpo e voz são trabalhados de forma
indissolúvel na produção de uma performance vocal, foi também o mote para a reflexão que se
segue.
Busco debruçar-me sobre um certo modo de trabalho vocal no teatro que intenta uma
relação direta entre produção corporal e produção vocal. Para tanto, entender a voz como a
extensão de todo um sistema corporal é chave para a constituição de um trabalho nessa
perspectiva.
Embora, no senso comum circule a ideia de que o trabalho do ator em relação à voz é o de
criar uma coerência para o que será dito em cena (texto dramático) de forma a tornar
327
compreensível e verossímil o significado do texto, o ator, no seu ato de criação, necessita fazer
algo mais complexo, que envolve tornar crível não somente o texto (literário) mas o conjunto de
ações corpóreo-vocais que são, digamos assim, o substrato que possibilita a veracidade, e a
compreensão do espetáculo como um todo. Dessa forma, o espectador poderia relacionar-se
com a obra teatral para além de uma compreensão intelectual do texto (fábula), ou seja, num
nível de percepção e relação que é próprio do jogo com a obra de arte. Uma vez que essa obra,
conforme Zumthor (1993, p.220), é ao mesmo tempo audível e visível enquanto o texto estaria
restrito ao campo do legível.
A experiência de trabalho corpóreo-vocal aqui referida é oriunda das proposições que
venho desenvolvendo junto a alunos-atores, principalmente, nos cursos de graduação de teatro,
nos quais tive e tenho a oportunidade de atuar como docente, bem como nas experimentações
que faço como atriz.
O diferencial estabelecido neste cenário – o de um curso de especialização – deu-se,
principalmente, em dois sentidos: o primeiro, em relação ao grupo de alunos, oriundos das mais
diversas experiências dentro dos mais diversos campos das artes, e não somente do campo das
Artes Cênicas, com os quais estou mais familiarizada; o segundo, pelo fato do grupo ser
constituído também por deficientes auditivos o que apontou para a necessidade de não
privilegiar a linguagem oral.
A partir desse diferencial a proposição do trabalho voltou-se muito mais para o âmbito
daquilo que denomino como performance da fala do que exatamente da oralidade. Penso que a
fala diz respeito a múltiplas formas de comunicar – de fazer compreender – algo a alguém. A
oralidade é um desses modos de estabelecer uma interlocução, entretanto, temos outras formas
de falar cuja raiz não está na voz mas no corpo como um todo. Por intermédio de ações, gestos,
gesticulações, símbolos representados corporalmente, pantomima, mímica, linguagem de sinais
é possível falar, comunicar algo, dar sentidos às palavras e a nós mesmos por intermédio delas.
Como aponta o professor Larrosa (2004, p.153) “ [...] todo o humano tem a ver com a palavra,
dá-se em palavra, está tecido de palavras [...].
Assim, a experiência com a palavra aqui mencionada buscou prescindir, em parte, da
utilização da voz e, ao mesmo tempo, pautou-se pelo conceito de fala como ato performático.
Um ato de fala se faz performático na medida em que se situa num contexto singular, construído
pelos participantes e, no qual, se estabelecem maneiras de falar e agir.
Para a antropóloga Langdon (1996) os atos de performance da fala podem ser
considerados como momentos de ruptura do fluxo ”normal” de uma comunicação, momentos
que são sinalizados para chamar a atenção dos participantes para ato. Essa sinalização indica
justamente o modo como essa ideia deve ser comunicada. Para ela, os momentos de
328
performance que irrompem o cotidiano, comunicam para quem expecta o que esperar do ato
performático. Ela cita como exemplo de um momento performático este que seria, talvez, um
dos mais conhecidos por todos nós, ou seja, alguém que assume a tarefa de divertir os outros
contando uma piada. Esse ato é introduzido por uma construção discursiva e oral que chama a
atenção de todos para o que vai ser dito: “Vocês conhecem aquela do português?” Isso provoca
uma determinada atitude dos participantes do ato, aqueles que escutam o que vai ser contado
saem do seu fluxo cotidiano e entram na expectativa da narração, esperando ser agradados com
uma surpresa engraçada ao final, enquanto o contador de piadas, por sua vez, ocupa o centro das
atenções e da sua performance depende o desfecho dessa relação. Para Langdon (1996, p.26), “o
ato performático chama a atenção de todos os participantes por meio da produção da sensação
de estranhamento do cotidiano”.
Para abordar a performance da fala e trabalhar o estranhamento necessário para a
construção do ato performático faço uso de exercícios da prática teatral que intentam relacionar
prática corporal, prática vocal e modos de falar. Esses exercícios visam, principalmente, a fazer
refletir por meio de uma prática. Eles procuram estabelecer relações entre corporeidade e
produção vocal, a partir de um trabalho que busca possibilitar: 1) a experimentação de
diferentes formas de utilizar a voz e o corpo juntos; 2) a experiência de expressar-se vocalmente
utilizando recursos corporais de forma consciente; 3) o reconhecimento e a experimentação de
outros modos de fala que não a oralizada.
A instauração e a eficácia de um trabalho com tal proposição dependem exclusivamente
do modo como as pessoas envolvidas relacionam-se com essa experiência. O trabalho só
acontece quando os envolvidos são disponíveis, permeáveis, quando permitem expor-se ao
trabalho. As proposições, os exercícios, demandam um corpopsiquismo entregue, envolvido
com o que está sendo proposto, pois, somente dessa forma é possível soltar-se na
experimentação dos exercícios e, ao mesmo tempo, manter-se atento ao que ocorre no
corpo/voz/fala, para posteriormente fazer-se uso disso nas performances individuais. Trata-se de
uma dicotomia bastante familiar a quem exerce o ofício de ator. O ator precisa trabalhar na
duplicidade de quem se entrega com veracidade àquilo que está fazendo, sem, contudo, perder
de vista o como está sendo feito.
Assim, o que importa na construção dessa base que vai possibilitar o modo performático
de abordar a fala, é entregar-se a algumas experiências corpóreo-vocais para, a partir delas,
munir-se de um tipo de conhecimento que vai subsidiar a performance. A constituição dessas
experiências pressupõe algum grau de exposição daquele que aceita experimentar o trabalho.
Exposição no sentido de abrir-se para algo que nada tem a ver com as experiências cotidianas de
voz, de corpo, de fala e, por isso, demandam esse corpo-voz numa medida de inteireza – aqui
329
denominada como performática. Os exercícios buscam propor, nas palavras de Fortuna (2000,
p.63). “um nascedouro de dentro para fora”
É importante mencionar que as bases experimentadas com o intuito de constituir um
caráter performático para experiências vocais, não buscam, nem proporcionam uma fixidez, um
controle sobre o ato performático. A ideia é a de que funcionem como iscas por intermédio das
quais cada um pode fisgar um determinado estado, uma intenção, uma intensidade. O objetivo
não é o de congelar ou fixar bases para uma performance da fala, mas o de trazer subsídios para
a construção performática possível para cada indivíduo participante do processo. Afinal, como
afirma Langdon (1996) as performances são sempre únicas e emergem da interação entre os
recursos de comunicação, ou seja, maneiras de falar, associada aos objetivos de cada
participante no contexto performático. Além disso, há no próprio ato uma negociação que
estabelece os papéis que os participantes assumem e de que forma devem atuar: quem quer
falar, de que modo, em que momento, quem principia falando, quem escuta, quem responde, são
algumas das possibilidades de lugares a assumir numa performance da fala, particularmente,
quando mediada por uma experiência teatral.
A disponibilidade para a prática dos exercícios corporais e vocais propostos é, ao mesmo
tempo, condição e diferencial para que o processo seja efetivado. Por tratar-se de um processo
pessoal e intransferível esse trabalho exige daquele que se propõe a fazê-lo a concentração de
suas energias físicas e psíquicas associadas a uma forma especial de percepção e atenção.
Os exercícios propostos visam, principalmente, à experimentação de algumas técnicas
como um meio, um caminho, uma forma de preparação que funcione como porta de entrada
para o ato de criação. Objetivam, assim, ampliar os recursos expressivos do corpo e da voz, sem
buscar limitar esses recursos ou o uso deles, ao contrário, tentando abrir-se para o ainda não
experimentado, para o desconhecido, no campo das experiências corpóreo-vocais dos
participantes do trabalho.
Essa experiência de trabalho foi constituída a partir de três grandes tópicos que pautaram
as escolhas dos exercícios:
1) Relaxamento e respiração: fundamentais para qualquer prática
corporal, esses dois elementos são basilares na construção de um trabalho que visa à
consciência e ao domínio corporal. Como afirma Fortuna (2000, p.51) “corpo
relaxado é canal desobstruído para a fruição de energia psíquica. Corpo tensionado
é canal obstruído – impedimento ao trânsito energético”.
Assim, no modo de abordar o trabalho corporal e vocal, aqui referido, esses
dois elementos foram abordados juntos, buscando a potencialização de um por meio
do outro. Ou seja, exercícios nos quais foi trabalhada a respiração como forma de
330
provocar a distensão muscular e outros que buscaram uma distensibilidade muscular
que provocasse uma maior fruição respiratória. Essa relação entre respiração e
relaxamento intenta estabelecer um relaxamento ativo, o que significa, ao mesmo
tempo, remover as tensões corporais perniciosas, instaurar o trabalho e despertar o
corpo física e mentalmente.
2) Jogos para o aquecimento: forma de nomear exercícios, jogos,
brincadeiras, cujo objetivo no processo de trabalho é o de colocar o corpo num
estado diferenciado de tonicidade e energia próprias para o exercício de ações
realizadas de maneira diferente daquelas usualmente experimentadas no cotidiano.
Assim, o conjunto de exercícios propostos busca trabalhar desde a mudança da
temperatura corporal (aquecimento) passando por diversas formas de relação do
corpo com o espaço até o estado de atenção e de disponibilidade necessário para o
acontecimento do jogo.
3) Trabalho com diferentes estilos de textos: trata-se de proposições
para abordar algumas possibilidades textuais com características bem diferenciadas.
Trabalhamos com diálogo curto, com texto descritivo, com algumas fábulas e
histórias da infância narradas por cada aluno/a. Alguns desses textos são propostos
pelos alunos, e outros por quem propõe o trabalho, porém, o fundamental é o modo
de abordar o texto a partir de estímulos proporcionados pelo trabalho. Para cada
estilo de texto são feitos alguns exercícios, objetivando a experimentação de
diferentes modos de abordagem corpóreo-vocais. Por exemplo: um diálogo, no qual
um diz as falas oralmente e o outro responde somente com reações corporais. Ter de
contar uma história somente com ações e gestos, sem texto oral ou um narra a
história oralmente e outro a representa por meio de ações e gestos. Eis alguns dos
exercícios propostos para abordar os textos.
Por fim, considero importante para fechar essa reflexão acerca das experimentações
corpóreo-vocais e modos de fala radicados no corpo, fazer um apanhado de questões que são
centrais na realização do trabalho.
O intento maior desta abordagem foi, desde o início, propor uma experiência de trabalho
corporal e vocal em que esses dois elementos estivessem inter-relacionados, interdependentes,
ou seja, um potencializando o outro. A forma é uma abordagem radicada na prática e balizada
pelos tópicos anteriormente mencionados – Relaxamento e respiração, Jogos para o
aquecimento e Trabalho com diferentes estilos de textos. Tomo – como aporte conceitual –
algumas ideias acerca do conceito de performance relacionado com a oralidade e a fala.
331
Percebo, no decorrer dos processos que tenho proposto, a necessidade da disponibilização
física e mental de cada participante para que o trabalho possa acontecer, e, ao mesmo tempo, as
necessárias adequações de uma proposição que depende das reações, das formulações de cada
um e do conjunto. A condição para que algo aconteça é o necessário respeito às diferentes
pulsações de vida, corpos, vozes e falas.
O que sempre está em jogo nesse processo não é um cultivo a uma boa oralidade ou dito
de outra forma a um falar bem, mas, antes, a tentativa de por em evidência, por intermédio do
trabalho, as potencialidades da fala de cada um e torná-las tão conscientes quanto possível para
aqueles que fazem uso delas.
Referências
FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade teatral. São Paulo: Annablume, 2000.
LANGDON, Esther Jean. Performance e preocupações pós-modernas na antropologia. In:
GABRIEL, João Gabriel; TEIXEIRA, L.C. Performáticos, Performance e Sociedade.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996.
LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
332
Voz e palavra: relações na prática cênica
Dalva Maria Alves Godoy
Doutora em Linguística / Professora no Curso de Graduação em Teatro
UDESC
Resumo
Ao refletir sobre o uso da palavra pelo ator este trabalho busca localizar as relações que se
derivam da prática cênica e a constituição da consciência, dos saberes e da cultura. Sob o foco
dos estudos etnolinguísticos o jogo dialógico entre ator e público é o elo de uma cadeia de
sentidos construído a partir do “dizer” da palavra, que apreendida pelo outro, de forma ativa e
criativa, dá prosseguimento ao ato criador e multiplica o já-dito. Esse elo, que só poderá ser
compreendido dentro dessa cadeia, constitui-se em um tema próprio que se realiza a cada
enunciado através da entonação expressiva, pois sem o valor apreciativo não há palavra. Assim,
a voz do corpo é signo – enquanto reflexo da realidade, da consciência do homem que se
constituiu por meio da linguagem – e a entonação expressiva, realidade refletida na consciência
do sujeito, configura-se no corpo da voz como instrumento de mediação que transporta as
vibrações sociais e afetivas que envolvem os participantes nesse jogo dialógico em um dado
momento histórico e social. Nesse sentido, a palavra pronunciada pelo ator não pode estar
dissociada da fonte que a gerou, dado que a consciência humana, no dizer de Bakhtin, reflete de
forma ativa a realidade e esse refletir passa pelo sujeito.
Palavras-chave: Voz. Palavra. Ator.
Penso que para estar no palco é preciso ter um motivo, é preciso querer dizer algo, fato
que nos remete a uma situação comunicativa. Ao estarem ali presentes, ator e público buscam
de alguma forma uma interação que, na maioria das vezes, utiliza como veículo a palavra, o
texto falado1 para se efetivar. Pensando nessa situação comunicativa o presente trabalho busca,
a partir dos estudos linguísticos de Bakhtin, discutir as relações dialógicas presentes na
atividade do ator como forma de constituição da consciência, dos saberes e da cultura.
Os estudos de Bakhtin trouxeram uma perspectiva inovadora para o entendimento da
linguagem e do discurso à medida que colocaram falante e ouvinte como participantes ativos do
universo dialógico que é estabelecido entre duas pessoas socialmente organizadas. Em Bakhtin
(2003) a palavra, enquanto unidade da língua, não tem autor, ela é de ninguém. A palavra em si
mesmo não tem colorido expressivo, não tem juízo de valor ou emoção, ela é um recurso
linguístico que só ganha sentido no enunciado concreto realizado por um falante. É no
enunciado pleno, no ato comunicativo, que o falante se apropria da palavra para expressar sua
valoração emocional da realidade e expressar sua posição em um dado momento histórico.
Tal apropriação, no entanto, passa necessariamente pela consciência do sujeito, a qual, na
visão de Bakhtin, é povoada de signos. A consciência para ele não é uma emanação da alma do
333
indivíduo ou um agrupamento de células no cérebro, mas é o reflexo ativo da realidade através
do sujeito. O homem diante da realidade do mundo não a reflete de forma passiva, como um
espelho, mas o faz utilizando de umas ferramentas exclusivas, que lhe são próprias, utilizandose de signos. O signo medeia a práxis humana no mundo e é construído a partir das interações
do homem com o meio social e cultural em um determinado momento histórico. A consciência
individual, portanto, reflete a configuração desses signos presentes na interação de um
determinado grupo social: a consciência não é individual e sim social (SILVESTRI; BLANCK,
1993).
Para Bakhtin, a palavra, enquanto signo, está sempre orientada pelo contexto, por isso,
uma simples palavra como, por exemplo, “desapareça” só poderá ser compreendida se for
apreendida a orientação que lhe é dada no discurso naquele determinado contexto e situação.
Dessa forma, uma palavra, ou uma frase, ganha diferentes sentidos nas diferentes circunstâncias
comunicativas, dependendo da “entonação expressiva” que lhe for atribuída pelo falante
(BAKHTIN, 2003). A entonação expressiva é considerada por ele um “traço constitutivo do
enunciado” é o meio pelo qual o falante expressa sua “relação emocionalmente valorativa” com
o “objeto da sua fala” (BAKHTIN, 2003, p. 290). Nesse sentido, nenhum enunciado é neutro, a
entonação é sensível às vibrações sociais e afetivas que envolvem o falante que vive naquele
determinado momento histórico e social e, por isso, cada enunciado está diretamente ligado à
vida em si e forma com ela uma unidade indissociável (SILVESTRE; BLANCK, 1993).
Outra concepção inovadora em Bakhtin é a das posições de ouvinte e de falante no
discurso. No processo comunicativo o falante, por um lado, constrói seu enunciado
direcionando-o a alguém e o ouvinte, em contrapartida, não ocupa uma posição passiva. O
ouvinte ao mesmo tempo que percebe e compreende o significado do que lhe é dito desempenha
também uma “ativa posição responsiva”, pois concorda, discorda, pondera, reflete, adiciona
elementos e recria em si um discurso e, independentemente da forma de resposta, o ouvinte
sempre se torna um falante. O falante, por sua vez, também espera do ouvinte essa atitude, pois
deseja que o outro concorde, discorde, tome uma posição ou realize uma ação: o falante tem
sempre um projeto discursivo para atingir o ouvinte e é como se todo enunciado se construísse
ao encontro da resposta do ouvinte (BAKHTIN, 2003).
Para Bakhtin o objeto do discurso não é original, os discursos estão sempre sendo
recriados a partir de uma perspectiva pessoal, que representa o social, e o falante não é o
primeiro a falar sobre aquele objeto, ele não é o “Adão” do discurso. Por isso, ele é considerado
também um “respondente”. Aquele objeto do discurso já foi, em algum tempo, analisado,
defendido, contestado e avaliado sob diferentes pontos de vista e, no momento de sua
realização, torna-se ponto de convergência de opiniões de outros discursos, quer seja dos
falantes/ouvintes ali presentes, quer seja daqueles presentes no campo de uma comunicação
334
cultural. Em realidade todo enunciado não está voltado apenas para o seu objeto discursivo mas
sempre responde e dialoga com os enunciados que o antecederam, pois todo enunciado está
pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados. Assim, dois enunciados, mesmo que
distantes um do outro no tempo, ao serem confrontados em relação ao seu sentido, estabelecem
entre si uma relação dialógica. Cada enunciado, mesmo quando gerado no diálogo dos séculos
anteriores não está completamente concluído, terminado, poderá sempre ser recordado e poderá
reviver no contexto do diálogo futuro (BAKHTIN, 2003).
Tomando como foco essas análises de Bakhtin voltemo-nos para a atividade teatral e
encontraremos ator e público interagindo em uma atividade discursiva em que o objeto do
discurso torna-se um elo na cadeia de enunciados. A palavra contida no texto do autor pode ser
entendida como um recurso linguístico, como uma realidade física, que só ganha sentido quando
se realiza através da voz do ator. O objeto discursivo, ainda que não seja do próprio ator, é por
ele reconstruído, interpretado, refletido e apropriado a partir de sua consciência. Os sentidos
construídos nos enunciados não são, sob a perspectiva Bakhtiniana, descolados da consciência
humana, pois não há palavra sem sentido ideológico1 ou vivencial e tampouco enunciado que
não seja produzido para ser compreendido no contexto do qual ele faz parte. A palavra ao ser
tornada viva a partir das representações interiores do ator configura-se em um reflexo da
realidade, reflexo de suas vivências e experiências relacionadas a um determinado momento
histórico, social e cultural. A construção do discurso teatral, sob essa perspectiva, reflete a
consciência social presente em cada corpo, em cada sujeito - a voz do corpo é, portanto, signo.
É no palco que a palavra transforma-se, ganha autoria e constitui-se em um enunciado
pleno, ligado, como um elo de uma cadeia, a todos os enunciados passados, presentes e futuros.
No jogo dialógico teatral o ator, enquanto falante, carrega em seu trabalho diferentes faces de
respondente: ele responde ao autor, ao contexto da história e às características de seu
personagem, à sua história de vida pessoal, ao tempo da obra, ao contexto do tempo presente, à
objetivação do tempo futuro. O ator na ação comunicativa com o público faz da palavra um
espaço criativo, cria algo que nunca existiu antes, algo absolutamente novo, não repetitivo,
revelado por meio da entonação expressiva, capaz de provocar no ouvinte uma posição
responsiva. O público, por sua vez, ao ser tocado pelo enunciado compreende e interage com
essa palavra a partir de suas representações mentais, que são também o reflexo de suas
interações sociais, de sua consciência. O público mobiliza em si uma resposta – de simpatia, de
negação, de estranhamento – tornando-se falante e dá prosseguimento ao ato criador
multiplicando o já dito. Como ouvinte e falante alternam-se e sobrepõem-se no ato discursivo, a
palavra, enquanto signo, torna-se instrumento da consciência para a qual convergem
representações de outros tantos discursos, configurando-se em veículo de formação da
335
consciência, dos saberes e da cultura. Para Bakhtin (2006, p. 36) a palavra “ [...] é o fenômeno
ideológico por excelência”.
Ao construir o enunciado o ator tem representado para si um destinatário e a partir dessa
imagem molda as palavras trabalhando com as sonoridades de sua voz para fazê-la corresponder
ao seu projeto discursivo e para fazer ecoar o que está latente no discurso do ouvinte,
objetivando dialogar com essas representações. Por sua vez o ouvinte faz reverberar a cada
palavra, uma outra, e sob o efeito do amálgama sonoro, ator e público constroem os sentidos em
uma relação dialógica. A significação de um discurso não está nem na palavra, nem na alma do
falante, nem na alma do interlocutor, ela é gerada na corrente comunicativa, como uma “faísca
elétrica” que só pode ser produzida quando há contato entre os dois polos opostos. A
significação é, portanto, “o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do
material de um determinado complexo sonoro” (BAKHTIN, 2006, p. 137), Qualquer ato
discursivo presente no palco não existe sem o valor apreciativo do ator: é ele quem dá vida às
palavras, quem avalia, constrói sua orientação e cria significados, mas, tampouco, o ato
discursivo existe sem a réplica do público, pois este não a recebe passivamente, ele continua a
recriar os significados a partir da orientação dada pelo ator. Em Bakhtin, nenhuma palavra é a
última, nada está completamente acabado e o sentido renova-se, ressuscita, a cada enunciado.
Os sentidos do enunciado são formatados pela entonação expressiva do ator, construída
a partir dos recursos vocais aplicados à interpretação. Tais recursos estão materializados sob a
forma de intensidade e altura vocal, articulação e ressonância, ritmo e entonação, pausas e
ênfases que se configuram no corpo da voz. É esse corpo que dá expressividade, valoração e
emoção ao enunciado e torna-se instrumento de mediação entre ator e público capaz de
transportar representações sociais e afetivas presentes nos sujeitos envolvidos naquele discurso
e naquele determinado momento histórico. Por isso o discurso verbal presente na ação teatral
torna-se único, porque composto das diferentes vozes que ressoam naquele contexto, cria algo
que nunca existiu, ressuscita o sentido e liga-se diretamente à vida.
Cada enunciado como um elo de uma cadeia dialoga com o enunciado remoto em que
houve sentidos esquecidos e dialoga também com os enunciados futuros onde tais sentidos
poderão ser renovados. Dessa forma o discurso teatral é um momento presente do diálogo
infinito que busca a unidade – que em Bakhtin é polifônica.
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337
Comportamento restaurado e o treinamento da improvisação
Isaque Ribeiro ; Mariana de Lima Muniz
Mestrando, EBA UFMG, Ator ; Doutora, EBA UFMG, Docente
UFMG
Palavras-chave: estudos da performance; comportamento restaurado; improvisação.
Resumo:
Este artigo propõe a identificação de características performáticas nos processo de
treinamento do ator/improvisador para construção de espetáculos de improvisação. O
levantamento destas características parte do conceito de “restauração de comportamento”,
descrito por Richard Schechner como processo chave de todo tipo de performance.
Comportamentos restaurados são comportamentos duplamente exercidos, ou seja, ações
performadas desempenhadas através da repetição e do ensaio. A metodologia de treinamento do
ator/improvisador, proposta por Keith Johnstone, baseia-se no desenvolvimento de ferramentas
de desbloqueio da imaginação e da criatividade. A maioria dos exercícios propostos para este
desbloqueio objetiva reduzir o tempo entre a recepção do estímulo e a reação do ator,
valorizando a livre-associação e as primeiras idéias. Com esta perspectiva, é possível observar,
nas ações do ator/improvisador, comportamentos duplamente exercidos. Propomos que, na
realização das ações improvisadas, evidenciam-se comportamentos restaurados, conscientes e
inconscientes, que direcionam o exercício ou a cena, evidenciando uma memória individual e
coletiva. O presente artigo propõe um olhar sobre a metodologia de treinamento da
improvisação, acercando-o à performance e analisando a ação improvisada dentro da proposta
de Schechner.
Este trabalho destina-se à análise do treinamento da improvisação, desenvolvido a partir
da metodologia proposta por Keith Johnstone, dentro da perspectiva de comportamento
restaurado de Richard Schechner. Esta aproximação tem por objetivo destacar particularidades
desse treinamento que envolvem a noção de performance de Schechner.
Nos processos de treinamento de atores para espetáculos improvisados diante do público,
uma série de exercícios é aplicada com objetivo de capacitar o atuante a desempenhar sua
função como improvisador. Sob a perspectiva das técnicas de improvisação propostas por
Johnstone, esse aprendizado tem como função primeira o desbloqueio das capacidades criativas
do ator/improvisador através do estímulo de sua espontaneidade e imaginação.
Jhonstone (1990) parte do pressuposto que o bloqueio do processo criativo é resultado de
uma educação deficiente que pode afetar a capacidade criadora e formar adultos inibidos. O
338
processo proposto por ele trabalha, entre outros pontos, com a valorização das primeiras idéias,
uma vez que não existe nenhuma palavra, gesto ou ação bons o suficiente para começar uma
obra, sendo o encadeamento destas palavras, gestos e ações que determinariam sua qualidade.
Assim, esse método parte do rompimento com a censura imposta pelo artista à suas idéias
iniciais, reprimidas, como salienta o autor, por receio que possam trazer alguma carga psicótica,
obscena ou até mesmo infantil. Johnstone (1990) parte do princípio que a supressão do primeiro
impulso aparece como um mecanismo de autodefesa do ator/improvisador, que inibe o
pensamento criador por medo do fracasso ou receio de se expor a situações socialmente
desajustadas.
Um dos primeiros objetivos propostos por Johnstone é a redução do tempo entre a
recepção do estímulo e a reação do ator em exercícios que valorizam a velocidade na execução
de diversas atividades não relacionadas, ao mesmo tempo. Observa-se que, na realização de
exercícios que tem como o objetivo o desbloqueio da imaginação a partir da aceitação das
primeiras idéias, associações ou sensações, o ator/improvisador recorre a ações, falas e
movimentos que, de certo modo, remetem às ações que apresentam algum tipo de contato com
sua vida cotidiana. Ou seja, ações que já foram previamente executadas em situações cotidianas,
e que, de certo modo, são acessadas e desempenhadas de modo diferencial atuando, no âmbito
artístico, em um contexto diferente ao de sua origem. Não queremos afirmar que, pelo fato de
possuírem pontos de contato com ações do dia-a-dia, as reações surgidas nos momentos de
exercício se tornem também cotidianas. O que procuramos é visualizar a procedência das
respostas dadas no momento de treinamento da improvisação, nas ações cotidianas do atuante.
A noção de comportamento de Richard Schechner se associa às necessidades da espécie
humana em realizar um extenso aprendizado, desde a infância, passando pela adolescência, até
alcançar um bom desempenho na vida adulta. Para Schechner (2003), o treino e esforço não são
apenas demandas do fazer artístico, mas também da vida cotidiana. De acordo com o autor
(2003, p. 42) “todo comportamento é comportamento restaurado – todo comportamento consiste
em recombinações de pedaços de comportamento previamente exercidos, (...) performance, no
sentido do comportamento restaurado, significa – nunca pela primeira, sempre pela segunda ou
enésima vez: comportamento duas vezes exercido”. O comportamento restaurado é uma
referência às ações performadas desempenhadas através da repetição e do ensaio, seja na vida
cotidiana, religiosa ou artística. Sendo assim, podemos aproximar o rearranjo desses fragmentos
de comportamento ao processo de treinamento da improvisação, sendo, este, o material que o
improvisador acessa através da velocidade de reação aos estímulos.
Sob o ponto de vista do treinamento de Jhonstone, a presença da restauração de
comportamento vem de encontro à automação presente na resposta do improvisador, uma vez
que a não-reflexão anterior à ação pode revelar aspectos muito mais evidentes da personalidade
339
individual ou coletiva daquela pessoa ou grupo. Dentro desta perspectiva, a primeira resposta é
sempre aquela sobre a qual o consciente não pôde agir de maneira preponderante. Isso não quer
dizer que se trata de uma resposta inconsciente, uma vez que, o fato de vir à tona demanda uma
atuação fundamental da consciência, o que se pretende apontar é que trata-se de uma resposta
quase instintiva, veloz e, de certa forma, autônoma.
Como observa Daiana Taylor (2002, p.18) “transmitimos acontecimentos, pensamentos e
lembranças não apenas através de nossos escritos literários e histórias documentadas, mas
também por meio de nossos atos e performances corporais”. Assim, observar a restauração de
comportamento na ação do ator/improvisador significaria propor que, na realização das ações
improvisadas, o atuante evidencia e transmite fragmentos de memória individual e/ou coletiva e
que de certo modo direcionam o exercício ou a cena. Não que o atuante carregue em si uma
noção transitiva2 da memória corporificada, ou da preservação da memória do corpo. O que
sublinhamos é que, ao rearranjar pedaços de comportamento, mesmo que de modo fragmentado,
o ator, no treinamento da improvisação, atua como agente de preservação e transmissão de
conhecimento por meio de atos corporificados e performados, gravando e transmitindo
conhecimento através do movimento físico e/ou das narrativas improvisadas. Partindo dessa
analogia, é possível localizar pontos de contato entre as características performáticas e o
processo de treinamento da improvisação.
Como Schechner (2003, p. 42) aponta o comportamento restaurado como pilar central de
todo tipo de performance, “no dia-a-dia, nas curas xamânicas, nas brincadeiras e nas artes”,
mesmo as ações, aparentemente, exercidas apenas uma única vez – como os exercícios de
treinamento para espetáculos improvisados, ou os happenings de Allan Kaprow, “são
construídas a partir de comportamentos previamente exercidos”. Sob esse viés, localiza-se na
performance do ator/improvisador características que o conectam às perspectivas performática
de Schechner e Taylor. O autor (2003) parte do princípio de que fragmentos de comportamento
podem ser recombinados em variações infinitas gerando situações diferenciadas em cada um
dos casos onde se apresenta. Como aponta Taylor (2002, p.18) “as técnicas de preservação,
transmissão e decodificação desses materiais são certamente diferentes, assim como diferem as
possibilidades de acessá-las”. As relações traçadas entre performance e improvisação, a partir
das comparações até então tecidas, abre espaço para o surgimento de funções diferenciadas para
o treinamento de Jhonstone como aquelas que e relacionam à memória individual e/ou coletiva.
2
Ou seja, a ideia de que suas ações são dotadas de capacidades restauradoras de
comportamento ou de transmissão de conhecimento.
340
A improvisação como espetáculo, surgida a partir da década de 1950 na Inglaterra, com
Jhonstone, e nos Estados Unidos, com Viola Spolin, tem uma relação histórica com a
performance, apesar de não compartilhar treinamentos, objetivos e opções estéticas. Ambas
manifestações surgem em oposição à cultura logocêntrica na tentativa de estabelecer um
encontro diferenciado entre o atuante e o espectador, traçando uma obra aberta à co-autoria no
trânsito entre estes dois pólos. A aceitação do inacabado, da obra em construção e aberta ao
acaso, e do trânsito entre vida e arte, arte e vida, encontram ressonâncias tanto na performance
como na improvisação como espetáculo, pese a diferença de suas escolhas. Poderíamos afirmar
que a improvisação como espetáculo surge do espaço que a performance conquista na cena
contemporânea através da ruptura das fronteiras daquilo que se considera teatral, sem perder
outras influências importantes como o teatro de feira, o vaudeville, a revue e outras
manifestações.
Tanto na improvisação, como na performance, o atuante é chamado a trabalhar seu
material de criação de maneira ativa, introduzindo a intuição e o acaso na restauração de
comportamentos que evidenciam um trajeto individual dentro de um contexto coletivo,
acessando uma memória que é, ao mesmo tempo, íntima e compartilhada. Segundo Brook
(1989, p. 128), “Neste sentido improvisar significa que os atores se colocarão frente ao público
preparados para produzir um diálogo e não uma demonstração.”3
A abertura ao diálogo, no aqui e agora do encontro com o público, torna-se mais relevante
do que o que se diz ou o que se preparou. A preparação passa, tanto no treinamento da
improvisação como na performance, por encontrar os caminhos sobre os quais este diálogo
poderá se estabelecer. Estar em diálogo, preparado para acessar os universos particulares de
atuantes e do público, abre o espaço para a descoberta desta memória comum, e ao mesmo
tempo íntima, que nos aproxima ou distancia. Segundo Schechner (2003, p.26) “performances
afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias”.
Na abertura para tornar evidente aqueles comportamentos que nos caracterizam como
sociedade, grupo ou tribo, faz-se necessário que a obra não seja mais importante que o momento
do encontro. Assim, a dicotomia forma/conteúdo se desfaz, pois o como e o quê são
indissociáveis, e a manifestação artística acaba por reportar-se às histórias e identidades que
marcam seu tempo.
3
Tradução dos autores.
341
Referências Bibliográficas
BROOK, Peter. Más allá del espacio vacío: escritos sobre teatro, cine y ópera 1947-1987. Alba
Editorial: Barcelona, 2001.
JHONSTONE, Keith. Impro: improvisación y el teatro. Cuatro Vientos Editorial. Santiago de
Chile, 2000.
MUNIZ, M. La improvisación como espectáculo: principales experimentos y técnicas de
aprendizaje del actor-improvisador. Tesis de Doctorado (inédita). Alcalá de Henares:
Universidad de Alcalá, 2005.
NACHMANOVITCH, S. Ser Criativo. O poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo:
Summus Editorial, 1993.
OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Ed. Vozes, 2008.
QUEIROZ, F. A. P. V. de. “PerformanceS” In: CARREIRA, A. L. A. N. [et al.], org,
Mediações Performáticas Latino Americanas, Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2003, pp. 71-80.
SCHECHNER, Richard. O que é performance. In: O Percevejo. Revista de Teatro, Crítica e
Estética. Rio de Janeiro : UNIRIO; Ano 11, nº12, 2003. pp. 25-50.
TAYLOR, Diana. Encenando a memória social: Yuyachkani. Performance, exílio, fronteiras:
errâncias territoriais e textuais. Graciela Ravetti e Márcia Arbex (Org.). Belo Horizonte:
Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/UFMG: Poslit, 2002. pp. 13-45.
342
O corpo lembrante na cena de Tadeusz Kantor
Jolanta Rekawek
professora adjunta do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual e Feira de
Santana (UEFS - Brasil), coordenadora de Núcleo de Estudos da Espetacularidade (NESP),
docente no Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade (UEFS), membro do GIPE-CIT/
UFBA
UEFS
Resumo
Tadeusz Kantor (1915 – 1990), diretor de teatro polonês, é um dos mais destacados artistas da
vanguarda do século XX, conhecido mundialmente através do Teatro da Morte onde abole o
poder da razão e instaura o poder da memória com o seu modus operandi subjetivado e
incompleto. Dentro do processo acionado pela lembrança Kantor elimina os atributos do teatro
convencional e configura o corpo lembrante que opera numa realidade precária que está ao
nosso alcance. Partindo da visão etnocenológica do corpo pretendemos contemplar o teatro de
Kantor como exemplo de uma forma espetacular não convencional que poderia contracenar com
outras práticas não ocidentais abordadas habitualmente por esta perspectiva científica.
Palavras-chave: Corpo. Memória. Tadeusz Kantor
Para alguns, foi apenas um “vendedor ambulante de novidades”, para outros, um dos
mais destacados artistas de vanguarda do século XX. Tadeusz Kantor (1915 – 1990), pintor e
diretor de teatro polonês, erguia uma arma infalível no combate com as polemicas: a própria
solidão. “Minha casa é a minha obra: os meus quadros, o meu teatro [...].” (KANTOR apud
SAPIJA, 1991). Alternando a criatividade plástica com a profunda paixão pelo teatro, Kantor
reuniu pintores, poetas, atores e fundou em 1955 o teatro Cricot 21, cujo ápice foi o Teatro da
Morte conhecido mundialmente a partir de 1975 pelos espetáculos A classe morta, Wielopole,
Wielopole, Onde estão as neves de outrora, entre outros. Neles, Kantor retomava a fascinante
tradição da arte configurando uma particular realidade ‘semiotizada’ pela morte. Não era um
protesto típico das vanguardas revoltadas contra as normas de um mundo que tinha mostrado
sua face bárbara através de duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945). Longe de ser uma
proposta cínica, o teatro de Kantor se configurava não como uma voz decadente mas sobretudo
pertinente na medida em que abordava a questão vital do relacionamento com a noção da morte.
Esse teatro contemporâneo tinha os seus antecedentes, por exemplo, no barroco italiano com a
sua adoração da morte, ou na medieval Dança da Morte. Como disse o mesmo Kantor, o Teatro
da Morte era um “jogo”.
343
O jogo com a MORTE! / JOGO com todas as suas características. /
Boas e ruins. / Honestas e próximas ao crime. / Cheio de
desenvoltura, e de uma ousada bravura, determinação e desespero. /
Onde o lado sublime se misturava com o mesquinho, / oração com o
sacrilégio, / seriedade com a palhaçada, /igreja com o circo, / burla,
deboche, riso do clown / com o choro humano, / boda, esponsais com
enterramento e túmulo.1 (KANTOR, 2004, p. 435)
Neste Teatro – Jogo com a Morte poderia parecer paradoxal o fato de abolir a ideia
convencional do teatro como jogo, ou seja, como um lugar privilegiado da representação que
Kantor condenava por ser “uma multiplicação da ficção”. A transgressão premeditada do
“código universal de procedimento teatral” (KANTOR, 2004, p.378) levou o artista a renunciar
ao corpo representante, aquele que finge estados e emoções, e configurar uma realidade na qual
opera o corpo lembrante, instaurado pelo poder absoluto da memória. O termo de corpo
lembrante, que propomos, remete, por um lado, ao conceito de brincante, presente em várias
práticas espetaculares organizadas abordadas pela etnocenologia no Brasil. E por outro lado, o
termo em questão, significa que a matéria do corpo em cena se consolida devido aos processos
de funcionamento da memória, sendo ele corpo como lugar de memória, conforme o entende
Leda Martins1. Portanto, entendemos pelo corpo lembrante, o corpo inserido numa prática
espetacular (no caso de Kantor, antiteatral) em função da memória, e mobilizado pelo fato de
“concentrar uma multidão heterogênea em torno a uma vivência em comum”. (BROOK, 1975,
p. 173)
A atitude iconoclasta de Kantor se revela, em primeiro lugar, quando o artista confia na
subjetividade da lembrança numa época na qual as neovanguardas travam fortes combates com
a realidade acreditando numa sequência prospectiva do progresso. O artista não tem medo de
dar a marcha ré e apostar num gênero, que ele determina como confissão pessoal, e que
contrapõe à história oficial, massificada. “É a história da individual vida humana e só nela se
preserva hoje A VERDADE, O SAGRADO E A MAGNITUDE”. (KANTOR apud SAPIJA,
1984)
Kantor leva tão a sério a sua aposta pela histόria da vida singular que acode à sua memória
individual. “Era de novo um menino, estava sentado num pobre banco da escola do vilarejo...”,
escreve quando lembra do impulso que deu origem ao seu espetáculo mais famoso A classe
morta (1975). O artista passeava por um povoado quando viu uma escola abandonada, se
aproximou e passou a observá-la pela janela. Kantor conta que ficou deslumbrado naquele
momento que foi quando descobriu o poder da lembrança.
344
DESCOBRI QUE É OUTRO ELEMENTO QUE CONSEGUE
DESTRUIR E CRIAR, / QUE ESTÁ NO INÍCIO DA CRIAÇÃO,
NO INÍCIO DA ARTE. / TUDO FICOU DE REPENTE CLARO,
COMO SE SE ABRISSEM NUMEROSAS PORTAS ATÉ
LONGÍQUOS E INFINITOS ESPAÇOS E PAISAGENS.
(KANTOR, 2004, p. 24-25, grifo do autor)
Em todos os espetáculos Kantor (1981) expõe os pedaços da sua vida acionadas e
recombinadas pela lembrança. A memória individual do artista é guiada pela bússola da
memória infantil que guarda apenas uma característica das pessoas, situações, tempo e lugares.
Pais de Kantor, tios, colegas da escola, flutuam convocados pela memória para participar numa
espécie de ritual no qual o artista se oferece como sacrifício. “A verdade total na arte é
apresentar unicamente a sua própria vida, desnudá-la sem vergonha, desnudar o seu próprio
destino”. (KANTOR apud SAPIJA, 1981).
Magro, baixo, enaltecido pelo chapéu preto, Kantor sempre estava no palco durante os
espetáculos oficiando como um sacerdote a cerimônia marcada pelo encontro com a morte com
gestos, mímica, inclusive gritos. Quando morreu em 1990, os desconsolados membros do Cricot
2 colocaram uma cadeira vazia no palco tentando continuar com o teatro que proclamava o
triunfo do passado. No entanto, sem o passado testemunhado pelo Kantor vivo, sem seu destino
desnudado em cena, este teatro não fazia o mínimo sentido, pois o corpo lembrante do artista
era seu elemento fundador.
Junto com a descoberta da força da lembrança que experimentou observando a escola
abandonada e incorporando-a à sua proposta da vanguarda, Kantor reparou em outro aspecto da
situação de “olhar pela janela” questionando a competência da visibilidade como uma porta de
acesso para a percepção. O artista quis “ [...] ULTRAPASSAR/ O UMBRAL DA
VISIBILIDADE, / COMO AQUELA ARBITRÁRIA E INEXORÁVEL CONDIÇÃO, /
AQUELE
“FIO”,
AQUELE
“CONDUTO”
/
QUE
COMO
ÚNICO
GARANTE
SUPOSTAMENTE O “OLHAR. (KANTOR, 2004, p. 27-28) Kantor descarta o visível, tenta
ver aquilo que está coberto e, por conseguinte, oculto debaixo do visível, tenta bisbilhotar “de
dentro” e não ver “de fora”. O método que opera no espetáculo A classe morta (1975) funda-se
justamente neste olhar “de dentro” que flagra os velhinhos mortos iludidos com a possibilidade
de viver a vida já vivida. A visibilidade não é confiável, para Kantor, e com razão, pois a
medicina questiona a pertinência da visão “pura”, desligada dos outros sentidos. O neurologista
e escritor, Oliver Sachs, entrevistado no documentário Janela da alma, descreve o quadro
denominado como síndrome de Capgras, quando a imagem se separa da emoção e leva o
paciente à contradição. As pessoas com este transtorno deixam de reconhecer os seus familiares
e passam a acreditar que aqueles são apenas as imitações dos mesmos. Reconhecem os
familiares visualmente mas não emocionalmente1. ”A memória visual e toda forma de
345
percepção devem estar inseparavelmente ligadas à emoção.” (SACHS apud JARDIM;
CARVALHO, 2001)
Por tanto, o fato de Kantor ter questionado o poder absoluto da visibilidade, é
compreensível e até desejável como um precedente do posterior debate que apontará a
necessidade da reconceitualização da visão. Anos depois a etnocenologia seguirá a
fenomenologia husserliana e também a reflexão de Maurice Merleau-Ponty, na qual o olhar do
mundo vira um instrumento metodológico, com a diferença que a etnocenologia discordará da
visão unidimensional do olhar e o estenderá a todos os sentidos. (SANTOS, 2007, p. 70-74)
“Felizmente a maioria de nós é capaz de ver com os ouvidos, de ouvir e ver com o cérebro, com
o estômago e com a alma. Creio que vemos, em parte, com os olhos, mas não exclusivamente”
afirma outro entrevistado no documentário Janela da alma, o cineasta Wim Wenders.
(WENDERS apud JARDIM, CARVALHO, 2001)
Desafiando o poder da visão Kantor vai colocar na frente dos olhos do espectador a
realidade da mais baixa categoria sem beleza acadêmica, sem utilidade e sem capa de
aparências falsa. Assim vai emergir a realidade que está ao alcance da nossa memória,
incompleta, deficiente e inerme igual a uma criança. Nesta realidade precária Kantor vai
recorrer ao conceito especialmente fascinante, para ele, que é aquele da carcaça.
É um resto, ou seja, uma coisa após uma violenta destruição. (...) É o
mesmo objeto que perdeu de uma forma absoluta a sua função e a sua
utilidade. Não tem nada mais inútil do que ele. E é mais, ele tem o
passado dele. Trágico. A sua função se acrescenta só na memória.
(KANTOR, 2004, p. 346)
O objeto pobre tem uma função sublime de provocar compaixão no olhar do espectador
que logicamente tende a acordar o seu passado. Revigorado por este olhar o objeto não e capaz,
no entanto, de recuperar a grandeza da sua utilidade como os bancos de A classe morta que não
são capazes de transportar no tempo os mortos para reviver a sua infância. Kantor, configura a
sua cena em função da precariedade que seduz o olhar daquele que a vê e está convocado a
preencher as lacunas, evocando funções vitais passadas, superando os obstáculos da deliberada
textualidade. Ninguém se livra da interpelação do corpo lembrante de Kantor que declara o
triunfo do passado, como ninguém se livra de dançar com a morte em Danse Macabre na Idade
Média. “Por que ele nos martiriza tanto? Por que outra vez mostra aquilo que era? Eu não quero
mais estes pesadelos” reclamou uma jovem acompanhante para Jan Kott, o destacado crítico de
teatro polonês, após a estreia do espetáculo Hoje é meu aniversario, em Nova York, nos anos
noventa. (KOTT, 2005, p. 42) Talvez a sua repulsa seja justificável na medida em que a moça
não suportou o risco de olhar que implica o desmascaramento do sujeito, que instaura o seu
olhar desde a sua historicidade na qual se manifesta o processo de constituição deste olhar.
(SANTOS, 2007, p. 73). Kantor impulsa esta potência do olhar, expõe o objeto pobre ao olhar
que o completa, o olhar que, desde o viés etnocenológico, auxiliado por todos os sentidos, pode
346
ser um grande parceiro da precariedade. Interpelado pelo vestígio, está seduzido pelo pathos
poético e lírico da carcaça.
Um olhar mórbido? Não, um olhar ingênuo talvez, exposto ao risco, pois Kantor não
avisa que pretende desmascará-lo com a emoção. O corpo lembrante de Kantor convoca o
corpo lembrante do espectador que esteja à sua altura na medida em que possa alcançar a
plenitude, penetrando nos campos confabulados pela lembrança, com toda a sua beleza, com
todo seu medo e toda a sua dor. O artista convida o espectador a atingir o espaço restrito a
essência singular da vida humana, dominada pela memória individual retro e prospectiva, que
assim desafia a utopia brega da vida coletiva.
A realidade da mais baixa categoria conta com a miraculosidade da imaginação que
Kantor não entende como “fantasia” mais como um “fator de conhecimento integralmente
ligado à arte” essencialmente transgressora. (KANTOR, 2004, p. 428)
Finalmente, de quem é o olhar espetacular neste Teatro-Jogo ao Encontro da Morte? Em
primeiro lugar, é de Kantor.
[...] não tem nisso nem início / nem fim / não tem uma fábula
interessante/ nem peripécias inusitadas / mas tudo é extraordinário /
porque obedece à minha vontade / aparece e acontece / é só eu
chamar / estendo o meu território / situações que nascem de repente /
sem causa / e que terminam sem resultado nenhum. (KANTOR,
2004, p. 335)
Pois é. É Kantor que codifica a cena com seu corpo lembrante. E quem a revela é o
corpo do espectador.
Referências
“BROOK sobre Shakespeare”. Dialog. Varsóvia, n. 2, 1975. p. 173.
JARDIM, João; CARVALHO, Walter. Janela da alma. [S.l.: S.n, 2001].
KANTOR, Tadeusz. Pisma. Teatr smierci. Teksty z lat 1975-1984. Ossolineum/Cricoteca:
Breclau, 2004.
KANTOR tu jest. Obchody 15 rocznicy smierci Tadeusza Kantora”. Gazeta Wyborcza,
Varsóvia, supl., 06 dez. 2005.
347
KOTT, Jan. Kadysz. Strony o Tadeuszu Kantorze. Danzig: slowo/obraz terytoria, 2005.
MARTINS, Leda. “Performances do tempo e da memória: os congados.” Revista O Percevejo,
Rio de Janeiro. ano 11, n. 12., p. 68-98, 2003.
SANTOS, Adailton. “O desmascaramento categorial do sujeito”. In: BIAO, Armindo (org.).
Artes do corpo e do espetáculo: questões da etnocenologia. Salvador: P&A Editora, 2007. p.
55- 76.
SAPIJA, Andrzej. Wielopole, Wielopole de Tadesz Kantor Polônia: Wytwórnia Filmów
Oswiatowych Lódz, 1984.
______ . Prόby, tylko prόby. Polônia: Ośrodek Teatru Cricot 2, 1991.
WAJDA, Andrzej. Umarla klasa seans Tadeusza Kantora (1976). Polônia: Telewizja Polska.
348
A poética do corpo-mágico: articulação da experiência pessoal do ator/pesquisador para
criação de uma poética corpórea
Leonel Henckes
Mestrando / ator e diretor teatral
PPGAC/UFBA
Resumo
A poética do corpo-mágico, como metáfora de uma presença consciente nos processos de
criação e expressão, conduz a um olhar sobre a corporeidade presente na cena contemporânea,
do ponto de vista de um ator em processo. O objetivo deste trabalho é realizar uma pesquisa
empírica – sistematização de treinamento e criação de um espetáculo-solo – acerca do processo
criativo do ator, tendo como matriz geradora de uma poética corpórea a articulação da
experiência pessoal do ator/pesquisador. A problemática da corporeidade – inserida nas artes
cênicas como mídia primária nos processos de criação e expressão – conduz à idéia de
dramaturgia do corpo, no teatro contemporâneo, e reivindica uma discussão teórico-prática
acerca dos processos de criação corpórea e codificação de narrativas. A hipótese levantada diz
respeito à corporeidade associada ao movimento como premissa fundamental no processo
criativo do ator. Entende-se que o movimento compreende uma dinâmica de impulsos e
variações de energia, que percorrem o corpo-mágico, em um fluxo de transformações que já tem
uma potência de sentidos capaz de encaminhar ou revelar um “texto” possível. Assim,
pressupõe-se que, por meio de uma poética corpórea criada a partir da articulação da
experiencia pessoal do ator/pesquisador, é possível acessar uma lógica teatral qualquer.
Palavras-chave: Corpo-mágico. Processo criativo. Treinamento de ator. Corporeidade.
Este trabalho é um estudo teórico-prático – sistematização de treinamento e criação de
um espetáculo-solo – acerca da noção de ator-criador, em relação à sua autonomia e a seus
procedimentos de preparação e criação, na interface atuação, encenação e dramaturgia. Aborda
o processo criativo a partir da montagem de um espetáculo-solo, tendo como norteador para
criação de matrizes geradoras a articulação da experiência pessoal deste pesquisador, sujeito e
objeto desta investigação, na condição de registros corpóreos. Em um percurso experimental,
que insere idéias congruentes com as transformações verificadas na cena contemporânea e
percepções do pesquisador, o recorte apresentado aborda o processo criativo do ator-criador,
com ênfase em sua corporeidade associada ao movimento no trabalho sobre si mesmo, e na
criação da ação física e da ação cênica.
O eixo da problemática apresentada está na noção contemporânea de ator-criador como
autor da poética cênica, em suas várias camadas de dramaturgia, e em sua autonomia na criação
da cena, estabelecido como ator, diretor e autor da própria obra.
349
O primeiro passo na realização desta investigação consistiu em retornar às fontes
orgânicas que inspiram o meu caminho na arte. Por isso, recorri aos mestres Constantin
Stanisláviski e Jerzy Grotowski, a fim de encontrar um caminho epistemológico para o trabalho
do ator-criador. Dessa forma, defino o princípio da ação física como alicerce para a criação
poética e/ou estética deste ator. A criação de matrizes geradoras, portanto, parte da corporeidade
do ator como disparador potencial e elemento constituinte básico, neste processo criativo e no
trabalho de construção de poéticas cênicas, cujos procedimentos são de natureza corpórea ou,
que têm na ação física a célula mínima para montagem do espetáculo.
Uma vez que esta proposta experimental parte da articulação da experiência pessoal deste
pesquisador na condição de registros corpóreos, foi necessário estabelecer uma noção-chave
com função de metáfora síntese dos procedimentos adotados no início do trabalho. Dessa forma,
o “corpo-mágico” como metáfora de uma presença consciente nos processos de criação e
expressão foi elencado e estabelecido como poética propositiva no experimento em questão.
Decidi utilizar esta expressão, compreendida como uma experiência, por representar a
síntese de um processo empírico vivenciado por mim ao longo do curso de Bacharelado em
Artes Cênicas e, principalmente, no Grupo de Pesquisa em Teatro “Vagabundos do Infinito” na
Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ao longo de três anos, o grupo
investigou possíveis relações entre a preparação xamânica e a preparação do ator a fim de
sistematizar uma metodologia de treinamento.
Entendo que qualquer abordagem da experiência corporal torna-se complexa uma vez que
não envolve apenas a estrutura física e material do corpo; envolve aspectos profundamente
subjetivos e simbólicos, radicados em cada microestrutura celular, na memória muscular, em
cada órgão e nas dimensões do sensível e energético. Por isso, o “corpo-mágico” é entendido
como uma experiência que adquire sentido apenas quando profundamente vivenciada no
organismo psicofísico.
A expressão “corpo-mágico” é originária das investigações realizadas pelo pesquisador
mexicano Gabriel Weisz acerca da filosofia corporal dos povos da américa pré-hispânica e sua
relação com o modo que Antonin Artaud pensava o corpo. Através de uma minuciosa
investigação, o autor foi buscar em artefatos arqueológicos e nas mitologias dos povos
mesoamericanos pré-hispânicos, elementos que permitissem observar os processos de
transformação que a experiência corporal sofreu e como isto se reflete no grande problema que
afligiu Artaud: como relacionar linguagem e corpo ou como relacionar linguagem e vida.
Desta investigação, pois, é retirada a ideia de “endocorporalidade”, a qual define “um
processo deliberado para estabelecer vínculos com as partes operativas e funcionais de um
corpo imaginário” (ARTUD, 1994, p. 34). Desta noção, o autor cria o conceito de “corpo-
350
mágico” que, teoricamente, representa o despojo de um corpo racional em favor de um corpo
alheio às convenções, ou seja, um organismo fluido às experiências perceptivas. Note-se que a
citação faz referência a um corpo imaginário, ou seja, uma camada cognitiva distinta da
experimentada no cotidiano e que faz alusão a um universo metafórico e simbólico.
É importante considerar este processo não como uma negação e substituição, mas, uma
flexibilização, desarticulação e rearticulação somática. Trata-se de colocar em movimento
energias estagnadas, estar efetivamente em ação. Ou seja, um mergulho no território das
metamorfoses, das experiências, como um fenômeno fluido de diálogo e troca. Este território
sugere um deslocamento perceptivo que vai de um estado pesado e inerte para outro de fluxo e
leveza. O ator passa a operar em uma realidade imaginária, extracotidiana, a partir de uma
atitude estética. Acerca dessa questão, Azevedo (2004), em seu livro “O papel do corpo no
corpo do ator”, sugere que:
Trata-se então de levar o ator (se acreditarmos que ele é ou pode vir a
ser um criador) a vivenciar a experiência criadora, tendo como
material seu corpo, que, no instante em que é possuído pela ambição
estética, transforma-se no outro corpo, corpo-mágico, não mais a
serviço de sua realidade pessoal, mas de outra, pura ficção
(AZEVEDO, 2004, p. 145).
Dessa forma, a corporeidade, converte-se no veículo mágico que possibilita ao ator
percorrer as diversas camadas de realidade possíveis. O “corpo-mágico”, portanto, pode ser
considerado como a metáfora de uma presença consciente onde os processos de percepção
ocorrem diretamente em reação aos estímulos sensoriais e extrassensoriais recebidos. É mágico,
por ser revelador, que faz surgir do desconhecido, do numinoso, o impulso criador.
Parafraseando Azevedo, é mágico por converter-se num objeto possível de arte, não pertence
apenas ao terreno sintomático, mas simbólico e artístico. É metáfora porque está contido e
contém presença em sua consciência de presença no diálogo com os discursos do ambiente ao
redor, por ser circunstância e criar circunstância em ação. Portanto pode ser considerado uma
experiência propositiva potencial para a criação artística. É desta relação, pois, que aparece a
possibilidade de existência de um corpo imaginário, uma endocorporalidade mágica.
O organismo psicofísico, inserido em um contexto mágico, adquire um novo sentido. O
caráter mágico deste corpo dialoga com uma realidade saturada de enigmas, hieróglifos que
podem ser decifrados, quando comparados a algum conteúdo imagético ou a elemento
simbólico. Portanto, o ator-criador passa a operar numa esfera simbólica, o que gera uma nova
escritura corporal. Estas relações conduzem à natureza essencial do animal homem como sujeito
percebedor, homem de ação e criador de realidades. Esta presença consciente, portanto, remete
351
a um organismo livre, fluido e com grande destreza física e mental. Não é mais o ator, ou seja, a
figura de um sujeito estático; mas também não se tornou outro sujeito fixo, antes, está situado
numa zona de fluxo e transição, marcada pela transgressão de um espaço-tempo profano,
habitual e cotidiano, em prol de um espaço-tempo mítico, extracotidiano.
Ao estabelecer a noção de corpo-mágico como metáfora em um processo de criação,
apresento uma possibilidade de ordem poética que tange as matrizes geradoras da experiência
pretendida nesta investigação. Em se tratando de poéticas de criação, evidencio duas
possibilidades de abordagem. Uma que é resultante de um fenômeno já realizado, como é o caso
da poética de Aristóteles que define princípios, regras e parâmetros a partir da análise das
encenações gregas clássicas. Outra, de caráter propositivo, ou seja, sugere princípios, regras e
parâmetros que podem resultar em uma criação.
O “corpo-mágico”, na medida em que incorpora um espaço de trânsito, fluxo e mutação,
define-se como uma potência criadora em si. Como metáfora de uma presença consciente, cria e
se autocria, é circunstância e cria circunstância em si mesmo, portanto, pode ser compreendido
como propositivo em sua poética que cria poética.
A perspectiva de uma corporeidade poética e propositiva leva a pensar em dramaturgia do
corpo. Esta noção no trabalho do ator abre um universo amplo de questionamentos, que
envolvem desde a criação de poéticas até reflexões acerca da noção de dramaturgia no teatro
contemporâneo. Desse modo, a problemática da corporeidade, inserida nas artes cênicas como
mídia primária nos processos de criação e expressão, jaz além da noção de montagem de uma
narrativa de signos, traduzidos no corpo e que podem ser lidos por uma audiência. Acima de
tudo, a reivindicação de uma corporeidade no teatro, passa por um processo ideológico e
artístico de transformação e ruptura de velhos paradigmas da encenação, principalmente, no que
se refere à autonomia do teatro em relação ao texto dramático.
Dessa forma, a experiência do “corpo-mágico” reaparece na discussão como uma via
possível nos processos criativos de natureza corpórea. Essa questão, no contexto do teatro
contemporâneo, permite considerar que a noção de corpo, enquanto presença consciente, ilustra
a corporeidade pós-dramática, proposta por Lehmann (2007). Para o referido autor, na lógica
estética contemporânea, a relação com a personagem é invertida em prol de um ato
presentificado – onde a dramaturgia é elaborada a partir da presença e articulação de energia do
ator. “O corpo vivo é uma complexa rede de pulsões, intensidades, pontos de energia e fluxos,
na qual processos sensórios e motores coexistem com lembranças corporais acumuladas,
codificações e choques” (LEHMANN 2007, p. 332). Desse modo, a atuação pode variar entre a
ação e a não ação, sendo o mais importante a qualidade de atenção demandada pelo ator e a
forma como este elabora uma dramaturgia através de sua presença e articulação de energia.
352
Nesse contexto, a perspectiva metodológica desta investigação parte do entendimento de
que o ator-criador, na condição de uma presença consciente, não cria ou reage a circunstâncias,
mas é a própria circunstância da ação, agindo no sentido do não drama, da não ação. Ou seja, o
oposto do agir no ponto de vida da ação habitual e cotidiana, calcada na busca de resultados e
recompensas. O ator, nesse sentido, torna-se “presença consciente” no ato vivenciado. Ele não
trabalha em função de signos, mas de forças em conflito. A ação tornada presentificação
converte-se num jogo de manipulação de energia. Dessa forma, as matrizes práticas
metodológicas que originarão as matrizes estéticas são definidas ao longo do processo, de
acordo com as descobertas vivenciadas em trabalho, confluindo para a montagem. Assim, a
intenção desta pesquisa está no ato de fazer, e não na obra acabada, sendo que a
experimentação, através da exploração e descoberta de procedimentos, vai revelando os modos
de atingir o resultado pretendido, qual seja, o espetáculo-solo. Isto possibilita uma ampla
interatividade entre o criador/pesquisador e o objeto, através de processos relacionados a
respostas sensoriais e intelectuais.
Referências
AZEVEDO, Sônia Machado. O Papel do Corpo no Corpo do Ator. São Paulo: Perspectiva,
2004.
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor: as ações físicas como eixo. São Paulo:
Perspectiva, 2002
GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume,
2005.
LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: COSAC NAIFY, 2007.
WEIS, Gabriel. Palácio Chamánico: Filosofia corporal de Artaud y distintas culturas
chamánicas. Universidad Nacional de México: Grupo Editorial Caceta. S. A., 1994
353
A comunhão do espectador como ponto ritualístico na cena
Marcelo Eduardo Rocco de Gasperi
Diretor Teatral / Professor de Artes
UFMG
Resumo
O principal objetivo do presente artigo é analisar o teatro como fonte de elemento vivo,
proposto por Artaud, na profusão de signos que transcendam as palavras, cujo significado
autêntico vem da condição humana ritualística, mágica, que arrebata e causa surpresa aos
participantes deste evento: “A linguagem das palavras devem dar lugar à linguagem dos signos”
(ARTAUD, 2004, p. 126), na profusão de signos que não pretendem repetir o mesmo gesto,
restituindo conflitos adormecidos e inaugurando revelações implícitas em cada participante da
ação. Viso a um engajamento entre o teatro artaudiano elaborado como uma linguagem própria
para reproduzir as diversas manifestações do encontro com o espectador e a sua relação com a
comunhão, dando um sentido mágico e ritmado à cena.
Palavras-chave: Teatro. Rito. Comunhão.
Objetivando investigar o lócus ritualístico do encontro artaudiano e a participação do
espectador – transeunte como um colaborador do processo de criação cênica – apresento pontos
que me motivam a participar desta comunicação.
O teatro como fonte de elemento vivo era o que almejava Artaud, em
uma profusão de signos que transcendiam as palavras, formados por
códigos universais e primitivos, anterior à linguagem escrita que
exclui o ser não letrado e erudito, mas a volta de uma linguagem
primitiva e sonora, cujo significado autêntico vinha da condição
humana ritualística, mágica, que fascina e causa espanto aos
participantes deste advento espetacular (CARRERA, 2004, p. 15).
Na ótica de Artaud, o teatro e a vida se diluem em um fato que explora o espaço físico
na medida em que este teatro visa a ativar maiores percepções no espectador:
A idéia de uma peça feita inteiramente da cena impõe a descoberta de
uma linguagem ativa, ativa e anárquica, em que sejam abandonadas as
delimitações habituais entre sentimentos e palavras” (ARTAUD,
1999, p. 40).
354
O teatro almejado por Artaud (1999) torna-se, então, um encontro espiritual,
objetivando criar uma linguagem própria para reproduzir suas diversas manifestações, as quais
nunca repetem o mesmo gesto, descartando a ideia de modelo e cópia dos modelos teatrais
tradicionais que coreografam a ação, em uma representação lógica e racional que, muitas vezes,
não agrega o misticismo, a sabedoria sinestésica e o poder de atingir o espectador pelo choque
sensorial.
Artaud (1999) acreditava que a arte teatral era a relação de expressão entre o artista e o
público, em uma configuração expressiva através da cena, colocando o estado de diálogo físico
para que ambos, criador e espectador, entrassem em atividade pelo seu caráter comunal.
Artaud (1999) desejava, portanto, o novo, a descoberta, dizendo que o teatro de sua
época estava morto também porque não sentia mais, não colocava questões que pudessem
preparar o espírito; e sua proposta original comparava o teatro à peste (peste que assolou a
Europa na Idade Média): “A peste se desenvolve com uma liberdade espiritual, e o teatro como
a peste, deve contaminar.” (ARTAUD, 1999, p.18).
O teatro que contamina os participantes provoca alterações nas formas de pensamento,
restituindo conflitos adormecidos e inaugurando revelações implícitas em cada participante da
ação; coloco como participante da ação os criadores da obra e o público que, por sua vez,
recebe-a e transforma-a em signos próprios codificados.
Este contágio não deixa o teatro elucidativo, com ideias mortas e claras, mas convida à
reflexão, em um rompimento usual de linguagem em que o pensamento assume atitudes
profundas e misteriosas, em relação ao observador, acostumado à superfície.
O convite inaugural de Artaud propunha uma febre, uma leitura acima do olho nu, que
mudava os desenhos convencionais sobre o objeto significante do teatro, em uma postura que
incitava ao vigor, à exteriorização dos sentimentos puros, não construídos a partir da identidade
social e pelos costumes ocidentalizados artificiais, inseridos na postura ditada pela elite
capitalista acostumada a ordenar formas gestuais, na emissão de contornos enquadrados de
ordem e rigor: “A linguagem das palavras deve dar lugar à linguagem dos signos” (ARTAUD,
1999, p. 126).
Artaud desejava que o teatro contaminasse como a peste para exteriorizar a verdade
necessária ao ser imaterial, melhor dizendo, ao espírito.
Tal exteriorização seria capaz de alimentar o espírito, gerando uma poesia sonora,
materializada não mais em gestos estereotipados e gastos, mas no consciente humano, na busca
355
de uma revolução dos sentidos, considerados adormecidos, por Artaud, adormecidos pelo teatro
ocidental.
Os sentidos – que descrevo – surgem a partir de experiências vivenciadas (a não apenas
vistas), na comunhão entre a obra cênica e o espectador, em uma união do espírito através da
feitura, pela ação, visando a atingir as ramificações dos sentidos despertados pela quebra do
binômio palco-plateia, transformado em comunhão entre os fazedores da ação dramática.
Com isto, Artaud não excluía a ideia da palavra na cena, mas desejava dar um caráter
ritmado a ela e não mais o sentido literal.
Muito identificado com os povos não ditados pela cultura ocidental, como os pré-colombianos,
no México1, e a cultura oriental, ele desejava dar à palavra um caráter mágico, objetivando o
texto enquanto sentido sonoro, desmembrando a ideia convencional do teatro preso à palavra
oral articulada – um vestígio do teatro decadente europeu: “Artaud desejava o teatro com dança,
gritos, sombras [...] sem subordinação ao texto”1.
Esta visão particular traça a perspectiva da encenação como um lugar mágico, que guia
o sentido espetacular em uma pulsão de vida, onde o corpo transcende o humano rumo ao
divino.
Este divino não renuncia ao texto, usa-o quando realmente há a necessidade de
verbalizar, sendo apenas mais um elemento de criação no processo da obra.
Assim, Artaud (1999) coloca o teatro como um ritual coletivizado que se dirige aos
sentidos diferenciados da lógica racional, em uma unidade de espírito e de exaltação de energia,
atraída pela convivência entre a obra e o espectador, emanando um poder de contágio
estabelecido pelo estado de euforia e transe dos participantes.
Portanto, tal mudança de finalidade no teatro, cuja ideia era vanguardista no século XX,
dava ao encontro teatral sentido concreto, não mais expositivo, pois servia a uma definição de
comunicação espacial entre o espectador e a obra.
A característica de mudança estrutural é, sem dúvida, um dos principais elementos de
aproximação entre obra e público, pois, desta maneira, a sensibilidade estética é ampliada.
Artaud (1999) acreditava que o caminho experencial do espectador no momento das
obras revela perspectivas diferenciadas sobre um ou mais objetos de arte, orientando a melhor
comunicação sinestésica, que interage no corpo físico e mental dos participantes da obra,
cultivando, ao mesmo tempo, os saberes sensitivos, intuitivos e racionais, sem a fragmentação
cartesiana.
356
O fenômeno de experimentação artística, como um processo acumulativo de encontros,
a partir do diálogo entre o indivíduo e a obra gera uma comunhão com outros seres que estão
inseridos no processo (CELANO, 1999).
Por isso, há necessidade de vivenciar processos artísticos para a construção do
desenvolvimento sensorial e o crescimento da percepção estética do espectador, pois tais
processos objetivam a consciência sensorial, a autoexpressão, o raciocínio estético, a capacidade
de tocar e ser atingido, tendo a liberdade como princípio norteador.
Para Artaud (1999), o feitio da Arte tornava-se então, um artifício privilegiado de união
entre a experimentação e a obra, pois trabalha com o discurso dialógico do sentir, agir e
ritualizar sobre o feito, possibilitando maiores conhecimentos sobre o fazer artístico.
O olhar sinestésico como ponto forte do ritual trilha, para Artaud, o caminho da
experiencial sobre vários processos coletivizados, revelando perspectivas diferenciadas sobre
um ou mais objetos de memória ou de constituição da resistência, orientando a melhor
comunicação com a educação anatômica, que interage entre o corpo físico e mental, fazendo
com que o corpo participante cultive, ao mesmo tempo, os saberes sensitivos, intuitivos e de
entrega à unidade orgânica espetacular:
A Educação dos sentidos encoraja o desenvolvimento daquilo que é
individual em cada ser humano, harmonizando simultaneamente a
individualidade assim induzida com a unidade orgânica do grupo
social a que o indivíduo pertence (READ, 1958).
Renato Cohen (1989) afirma que a arte tem a função de fazer os participantes exporem
suas ideias com verdade, em que os mesmos se revelam, através das vivências advindas das
experimentações “entre”, gerando um novo olhar sobre a prática.
A vivência coletiva ritualística propõe, então, um tênue limite entre os objetos de
criação e a participação na construção, fazendo os participantes dos processos artísticos
interagirem, sendo participantes da comunhão da ação
Assim, o significado simbólico do teatro ritualístico artaudiano é privilegiar os
processos de vivências coletivas como mediadores entre o espetáculo e o ser, por meio das
relações humanas que se estabelecem no momento da vivência da obra, na busca constante da
maturidade do sensível.
357
Referências
ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2004.
CARREIRA, André. Apocalipse 1:11: Risco Como o Meio para Explorar a Teatralidade. In:
______ . Mediações Performáticas Latino-Americanas. Belo Horizonte: Faculdade de Letras,
2004.
CELANO, Sandra. Corpo e Mente na Educação: Uma Saída de Emergência. São Paulo:
Vozes, Petrópolis, 1999.
COHEN, Renato. Work in Process: Linguagens da criação, Encenação e Recepção da Cena
Contemporânea. (Tese) Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes. São Paulo,
1994.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
COHEN, Renato. Performance Como Linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
DERRIDA, Lacques. A Escritura e a Diferença. 2. ed. São Paulo: editora Perspectiva, 1995,
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 2005.
GOMES, Carlos M. Leitura contemporânea dos procedimentos de Atuação em Artaud e
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Disponível
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<http://www.prp.unicamp.br/pibic/congressos/ixcongresso/cdrom/pdfN/427.pdf>. Acesso em:
27 maio 2009.
GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de Um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1992
LESSA, Júlia. Manual Para a Normalização de Publicações Técnico-Científicas. Belo
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NOGUEIRA, Lucila. Artaud e a Reinvenção do Teatro Europeu. Disponível em
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag52artaud.htm>. Acesso em: 23 junho 2009.
PAVIS, Patrice. O Dicionário de Teatro. São Paulo: Editora perspectiva, 2002.
READ, Herbert. A Educação pela Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1958.
WILLER, Cláudio. Antonin Artaud: Loucura e Lucidez, Tradição e Modernidade. Disponível
em: http://www.triplov.com/surreal/artaud_willer.html. Acesso em: 25 jun. 2009.
358
Perspectivas do corpo no espetáculo Shi-Zen, 7 Cuias
Natássia Duarte Garcia Leite de Oliveira; Roberta Kumasaka Matsumoto
Mestre em Arte / atriz ; Docteur en Lettres et Sciences Humaines /professora
UFG; UnB,
Palavras-chave: Artes Cênicas; LUME Teatro; Shi Zen, 7 Cuias; Corpo-em-movimento.
Resumo:
Este trabalho é um desdobramento da dissertação de mestrado Entre Lumes e Platôs:
Movimentos do Corpo-coletivo-em-criação (Vivências com o Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais da Unicamp). Sob o olhar cinematográfico do diretor japonês Tadashi Endo,
a dramaturgia-coreográfica do espetáculo Shi-Zen, 7 Cuias (2004) – LUME Teatro – se faz com
experiências no Butoh-Ma e na cultura brasileira; no sublime, no grotesco (Hugo); no serhumano que rebenta em seu nascedouro, cru, careca, nu; no ser-humano com suas vivências e
habitualidades, com pêlos arrepiados para cima, black power, híbrido em suas vestes de gentes
comuns. Os quadros que compõem o espetáculo perpassam por estados e ciclos de vida humana,
trazendo para o palco a heterogeneidade e a homogeneidade concomitantes. No presente artigo
pretender-se-á explanar sobre algumas perspectivas do corpo em Shi-Zen, 7 Cuias, buscando
explorar a composição da cena: a plasticidade, a musicalidade e a corporeidade. Aspectos estes
relacionados à imagem-tempo, à imagem-movimento (Deleuze), ao corpo-em-movimento, os
quais trazem à tona, inclusive, as singularidades e as diferenças dos sete atores do LUME.
No presente ensaio pretender-se-á dar início a uma análise mais detalhada do espetáculo
Shi-Zen, 7 Cuias (2004 - ), do LUME Teatro4. Por isso, buscou-se aqui explanar sobre algumas
perspectivas do corpo no espetáculo relacionados aqui à imagem-movimento, à imagem-tempo
(DELEUZE, 1985; 2005), ao corpo-em-movimento.
Sob o olhar cinematográfico do diretor japonês Tadashi Endo, o espetáculo Shi-Zen, 7
Cuias se faz com experiências no Butoh-Ma e na cultura brasileira. O espetáculo do LUME “[...]
o Shi-Zen que tem uma estética, impresso uma estética que vem do Tadashi muito forte [...]”
(SILMAN, 2008), traz uma dramaturgia de imagens, imagens dançadas. Imagens as quais
remetem a uma reflexão sobre características da realidade humana sugeridas por Gilles Deleuze
em outro contexto: a “exploração de tempos mortos da banalidade cotidiana [...] um tratamento
das situações-limite que as impele até as paisagens desumanizadas, espaços vazios, dos quais se
4
O Grupo de Teatro LUME, fundado por Luís Otávio Burnier em 1985, juntamente
com a UNICAMP, dedicou-se inicialmente a ampliar o seu campo de pesquisa na área
da Antropologia Teatral, termo criado inicialmente por Eugenio Barba. Desde então, o
grupo, assume também diferentes estudos interdisciplinares em Teatro investigando o
trabalho do ator. Como contribuição efetiva do grupo LUME pode-se observar os
estudos do clown, da mímesis corpórea e da dança-pessoal. Atualmente no corpo de
atores estão: Ana Cristina Colla, Carlos Roberto Simioni, Jesser de Souza, Naomi
Silman, Raquel Scotti Hirson, Renato Ferracini e Ricardo Puccetti.
359
diria terem absorvido as personagens e ações, para deles só conservar a descrição geofísica, o
inventário abstrato [...] não é apenas o espetáculo que tende a extravasar sobre o real, é o
cotidiano que sempre se organiza como espetáculo [...]” (DELEUZE, 2005, 14).
E neste movimento de potencialização do cotidiano, o trabalho dos atores no espetáculo
tem aporte no humano sublime, no humano grotesco (HUGO, 2004); no ser-humano que rebenta
em seu nascedouro, cru, careca, nu e também no ser-humano do cotidiano, com suas vivências e
habitualidades, com pêlos arrepiados para cima como um black power, híbrido, em suas vestes de
gentes comuns; no ser-humano com qualidades e intensidades distintas. Elementos da natureza
humana os quais trazem à tona, inclusive, as singularidades e as diferenças dos sete atores do
LUME que fazem o espetáculo. Todos os atores “parecem” iguais por estarem com maquiagem
branca em todo corpo e por estarem ou carecas ou com cabelos ouriçados. Mas é na
caracterização homogênea que salta a diferença das singularidades corpóreas, como comenta
Renato Ferracini:
O Shi-Zen. Todo mundo chega e fala pra gente, “interessante, uma das
coisas que mais é lindo no Shi-Zen é ver a diferença dos atores”. E aí eu
fico pensando: se todo mundo na corrida [se refere a uma cena do
espetáculo, a corrida] fosse como o Jesser, que tem o maior
adestramento físico, vamos dizer, que faz a corrida mais perfeita, talvez
a corrida fosse esteticamente, visualmente mais linda, porque todo
mundo ia correr de uma maneira de beleza física muito mais bonita.
Mas o fato do Jesser estar no centro correndo de uma forma perfeita e o
Simi, de cinquenta anos, do lado, correndo muito mais lento, porque é o
máximo do limite que ele vai; e a Cris [Ana Cristina] tá correndo de um
jeito que é o máximo, que é diferente dos outros dois; e o Ric [Ricardo]
tá correndo do jeito que ele corre... Estas diferenças fazem a expressão
do todo na verdade. Se todo mundo corre como o Jesser, talvez a força
da imagem fosse mais forte, mas a força expressiva não. Você entende?
Assumir essas diferenças e essas problemáticas de idade, de peso, de
tamanho de habilidade é uma das coisas que fazem justamente a
expressividade (Renato Ferracini, entrevista concedida em 2008).
A diferença dos atores e entre os atores é dilatada aos olhos dos que vêem. A nudez,
presente em diversos momentos do espetáculo, também permite o reconhecimento da diferença
na aparente homogeneidade. E não é uma nudez “qualquer”, mas um nu potencializando uma
reflexão do corpo como natureza-cultural. Uma questão aparentemente óbvia, mas que de alguma
maneira rompe com a dicotomia natural/cultural. Elementos de natureza e cultura se imbricam, se
mesclam e transbordam nos corpos em cena. Assim se vê na primeira cena, onde Jesser de Souza
traz consigo a potência da criação, (com licença poética) uma “primeira natureza do homem”,
homem cuja anatomia é colocada em evidência, homem cujo movimento é de rotação e
translação ao mesmo tempo, homem cujo olhar – de ritmo lento e de qualidade atenta – de
descoberta acompanha com o dedo o mundo que o cerca.
360
Natureza e cultura. Assim se vê outra cena do espetáculo, cuja marca é a presença de um
ditador ‘cômico’. A cena feita por Carlos Roberto Simioni, embora cômica, apresenta-se com
brutal violência. A presença impositiva do ditador-cômico, na verdade propõe a imposição de
alguém ‘sobre’ alguém e ainda, a imposição de si a si mesmo. Em algum momento, a figura do
ditador nos revela ‘a colonização e a descolonização de si mesmo’, inclusive por meio da
animalidade das próprias atitudes do ditador cômico: é que o ditador-cômico ridiculamente se
despe e se transforma num leão, até o momento que se percebe desmoralizado diante dos olhos
daqueles que o obedecem. Na cena do ditador-cômico se percebe, entre tantas referências que o
jogo dramático traz, que qualquer “excesso” na economia dos poderes singulares e dos signos
coletivos “cujo fim é, mais uma vez, o de permitir ao corpo desempenhar o seu papel de suporte
dos códigos e acumulador de energia. Qualquer desregramento deste equilíbrio econômico se
traduzirá por uma hipertrofia do signo, ou do corpo” (GIL, 1997, p.48).
Ao contrário de reforçar as hipertrofias do signo e do corpo, o espetáculo se faz nas
imagens de sonhos, de desejos, de nascimentos agudos de transformações cotidianas, do homem
bruto-rarefeito. Um estado de homem que vive seu corpo-cotidiano e que consegue potencializar
seu próprio cotidiano em algo espetacular. Shi-Zen, 7 Cuias perpassa por estados de vida
humana, traz a correria da contemporaneidade e a calma da contemporaneidade; traz imagens que
acordam dia-a-dia e despertam o onírico; traz as diferenças de tempos da cultura; traz a colheita e
a visão apocalíptica dos tempo.
Com uma dramaturgia não-linear, atemporal, indefinível espacialmente, a narrativa se faz
por meio de imagens dos corpos-em-movimento-com-a-luz-o-espaço-a-sonoridade... O espaço
infinito leva o espectador a ver, ou compor, qualquer espaço. Essa infinitude, ou este hiato
espacial, traz consigo perspectivas do corpo de quem “vê”, assim, quem vê projeta suas próprias
produções cenográficas de acordo com o seu olhar próprio. Cada espectador vai editar, vai piscar,
vai focar e desfocar em lugares da sua temporalidade. Desta maneira o tempo constrói o espaço e
vice-versa, concomitantemente. O espectador, então, “preenche” o espaço por meio da sua
própria imagem, ou talvez, com suas experiências de vivências temporais-espaciais.
[...] tentando tornar o mundo conhecível, o homem distribui signos
segundo os cortes que opera no real, classifica, reagrupa, define. Pode
assim identificar os seres e as coisas, estabelecendo relações precisas
entre os significantes e os significados. No entanto, visto que “o
universo significou muito antes que se começasse a saber o que ele
significava”, tudo o que o homem sabia ter um sentido, não era por isso
identificável, enquadrável nos sistemas de correspondências já
elaboradas entre os signos e as coisas. Assim se cria uma situação
paradoxal: há sentido, há significado, mas é impossível atribuir-lhe um
sentido referenciável e preciso (que torne a coisa não apenas
significante mas conhecida): do mesmo modo, no campo dos signos
(particularmente da linguagem) alguns permanecem disponíveis, sem
um ponto de fixação no significado (GIL, 1997, p.16 – aspas, grifos e
parênteses do autor).
361
Os corpos dos atores em cena convidam a certa hipnose, a um envolvimento de sentidos,
a um transe por entre não-lugares, imaginários de tempos indetermináveis. O transe permite um
corpo novo, de novo codificado que difunde sentido. “Assim se restabelece a ordem dos códigos
simbólicos: à custa de uma viagem arriscada às regiões do incodificável [...] As forças motrizes
deste universo estão de tal maneira ligadas aos indivíduos, que seria impossível falar do meio
físico ambiente, exterior do homem. O indivíduo tem laços tão intímos com o universo que se
torna comparável ao centro de um campo magnético” (GIL, 1997, p.25).
Neste sentido, o conflito dramático em Shi-Zen, 7 Cuias está na relação entre os atores,
mas também está no estranhamento do público com a cena proposta pelo coletivo de artistas. Está
no estranhamento com o próprio corpo, corpo estranhando os sentidos que não são produzidos
antes na “racionalidade” como se costuma dizer. Então, o estranhamento acontece porque a
consciência com a qual o espetáculo trabalha, é uma consciência que passa pelos sentidos,
sentidos abertos que não têm um significado a priori. Uma consciência de sentidos as quais
passam por uma racionalidade, não necessariamente referenciável e precisa, mas que processam
em compreensões sensoriais – imagem-cheiro, imagem-tato, imagem-olfato, imagem-paladar. E
podem ou não tomar formas de significados de acordo com a experiência singular do espectador.
Experiência motivada pela experiência do corpo-a-corpo com/em cena e, também experiência do
corpo-a-corpo com/em cena com os processos de subjetivação de/em vida.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Cinema: a imagem-movimento. Tradução: Stella Senra. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
_______. Cinema II: a imagem-tempo. Tradução: Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
GIL, José. Metamorfoses do corpo. Tradução: Maria Cristina Menese. Lisboa: Relógio
D’Água Editores, 1997.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução Célia Berrettini. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
Entrevistas
FERRACINI, Renato. Entrevista de Renato Ferracini, concedida para Natássia Garcia,
Campinas/SP, Brasil, março de 2008.
SILMAN, Naomi. Entrevista de Naomi Silman, concedida para Natássia Garcia, Campinas/SP,
Brasil, fevereiro de 2008.
362
ABC de João Augusto, a interpretação dos atores do teatro de cordel produzido em
Salvador, Bahia entre 1966 e 1978
Marconi de Oliveira Araponga
Mestrando
UFBA
Palavras-chave: Interpretação teatral, teatro de cordel, treinamento do ator
Resumo:
A pesquisa ABC de João Augusto, a interpretação dos atores do teatro de cordel produzido
em Salvador, Bahia entre 1966 e 1978. Por Marconi Araponga, mestrando do PPGAC/UFBA,
ator, professor, diretor e produtor de espetáculos. No período descrito no título, João Augusto
(diretor, ator e professor da Escola de Teatro da UFBA), produziu oito espetáculos adaptados de
folhetos da literatura de cordel, recorte da nossa pesquisa. Esta forma teatral até então pouco
usual em Salvador, tornou-se constante nos palcos soteropolitanos e encontra a atuação dos
atores, nosso objeto de estudo, amplamente baseada nos tipos populares nordestinos. A nossa
proposta está ancorada em entrevistas com os intérpretes mais recorrentes dos espetáculos, nas
quais se buscarão apurar o treinamento para a cena quanto ao corpo, à voz, à improvisação e ao
ritmo. Este exame sobre a arte da representação no teatro de cordel busca ir fundo nesses
aspectos e em outros que se mostrem importantes e que venham interferir no trabalho do ator,
este que é a peça mais importante da forma teatral plantada em nossa cultura cênica desde a
década de 1960 e que se mantém vigorosamente na vida cultural da capital baiana em pleno
século XXI.
O objeto da nossa pesquisa iniciada no primeiro semestre de 2009 é a interpretação dos
atores da forma teatral nomeada por João Augusto, em 1966, em Salvador, Bahia, de Teatro de
Cordel. Esta forma teatral, que foi inaugurada nos idos de 1958 pelo então diretor da Escola de
Teatro da UFBA, Martim Gonçalves, com As graças e desgraças na casa do engole cobra, do
poeta popular Manoel Camilo dos Santos, adaptado pelo piauiense Francisco Pereira da Silva
(LEÃO, 2006, p.130) somente firmou-se no cenário teatral baiano a partir de 1966, com a
direção de João Augusto.
A nossa proposta é apurar o treinamento dos intérpretes para a cena, o trabalho corporal e
vocal, analisando seu processo criativo por meio de entrevistas com os atores e atrizes mais
recorrentes dos espetáculos.
A princípio, oito espetáculos faziam parte do corpus da pesquisa: Histórias de Gil Vicente
(1966), Teatro de Cordel (1966), Cordel 2 (1972), Cordel 3 (1973), 1, 2, 3 Cordel (1974),
Felismina Engole Brasa (1977), Oxente, Gente! e João Errado (1977), Oxente Gente, Cordel!
(1978). Mas, com o estudo documental que estamos empreendendo, descobrimos que os três
363
espetáculos dos anos de 1977 e 1978, que foram feitos para a rua, são de responsabilidade do
ator e diretor Bemvindo Sequeira, o que descaracteriza o corpus que visa apenas os espetáculos
dirigidos por João Augusto, isto é, somente os espetáculos de palco. Este aspecto ainda carece
de maior aprofundamento, o que será feito em breve por meio das entrevistas.
Quanto à metodologia a ser utilizada nessas entrevistas, descobrimos que a técnica
disponível na História Oral se ajusta com perfeição aos nossos anseios. A opção metodológica
da história oral se dá por sua adequação, mas também por ser um método conhecido e
reconhecido pelas ciências humanas.
O método de investigação científica disponível na publicação Manual de História Oral de
Verena Alberti (2006) é uma oportunidade de registrar, refletir e (porque não?) pensar
futuramente em uma sistematização desse modo interpretativo dos atores. Essa sistematização é
desejada por nós desde que propusemos o projeto, mas - sempre atentos aos limites impostos (e
necessários) ao desenvolvimento da pesquisa que sinalizam para um estudo - não queremos e
não vamos nos antecipar.
Alberti nos apresenta um rápido histórico desta nova ciência que não é um ramo da
História, tanto quanto da Sociologia ou da Antropologia: é multidisciplinar por definição, e
propõe um conceito de história oral em que o destaca como
um método de pesquisa que privilegia a realização
de entrevistas com pessoas que participaram de, ou
testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo
como forma de se aproximar do objeto
trata-se
categorias
de estudar (...) instituições,
profissionais,
de estudo (...)
grupos
movimentos (...)
à
sociais,
luz
de
depoimentos de pessoas que deles participaram ou
os
5
testemunharam (ALBERTI, 2006, P.18) .
Um dos pré-requisitos para o sucesso da pesquisa é que ela esteja associada a um
projeto que contemple hipóteses, objetivos e uma orientação teórica, isto é, absolutamente
indicada para uma pesquisa de mestrado da natureza da que estamos a desenvolver.
Pretendemos iniciar a entrevista priorizando a história pessoal do entrevistado buscando
intensificar o afunilamento das questões em torno do nosso objeto de pesquisa. A multiplicação
dessas entrevistas fornecerá dados que se repetirão ou se complementarão em torno da
5
Formatação nossa com o intuito de chamar a atenção sobre a
citação.
364
interpretação dos comediantes do teatro de cordel e servirão de base “a formulação de
abstrações e generalizações”(ALBERTI, 2006, p. 23).
Antes disso, porém, se faz necessário o levantamento preliminar de todo o material
sobre o assunto implicando na busca de bibliografias, críticas e notícias de jornal e revista, notas
sobre temporadas, artigos, crônicas, eventuais imagens fotográficas ou em movimento,
programas, textos teatrais anotados ou rabiscados, estatutos, atas, correspondências, recibos,
faturas, bilhetes, tudo que possa contribuir como apoio para a investigação e como instrumento
de análise das entrevistas. Etapa que estamos tratando de cumprir no momento.
Após isso - ou ao mesmo tempo, já que não se tem o controle de quando algum dado
desconhecido possa surgir -, as etapas que se seguem dizem respeito a quem entrevistar, a
quantos e a como entrevistar, aos roteiros dessas entrevistas, a sua duração, aos recursos
materiais envolvidos, ao tratamento dado aos documentos gerados e, o mais importante, às
conclusões. Todas essas etapas serão brevemente discutidas logo em seguida, com exceção das
conclusões que obviamente só serão desenvolvidas após a realização das entrevistas.
A partir da ficha técnica desses espetáculos, optaremos entrevistar os atores que mais
vezes foram à cena. Entretanto, fugindo do aspecto quantitativo, também elegeremos outros
colaboradores a exemplo de co-diretores, adaptadores dos textos, músicos e produtores
ampliando para outros pontos de vista o aspecto da interpretação dos atores deste teatro.
O número de entrevistados pode ser bem representativo já que felizmente é grande a
quantidade de pessoas que permanecem atuantes: Bemvindo Sequeira, Harildo Deda, Haydil
Linhares, Maria Adélia, Arly Arnaud, Othon Bastos, Wilson Melo, Fernando Peltier, Normalice
de Souza, Orlanita Ribeiro, Zelito Miranda, Roberto Santana, Bráulio Tavares, Orlando Sena e
as testemunhas Mario Gadelha, Manoel Lopes Pontes, Roberto Assis, que foram escolhidos
dentre outros por terem participado como atores da montagem “de teatro de cordel”6 de 1958,
dirigida por Martim Gonçalves.
É natural que se priorize os atores na seleção dos entrevistados, mas pode acontecer que
os espectadores privilegiados que constam na listagem acima nos revelem informações a
respeito da interpretação que ninguém mais possa revelar: a visão da recepção. É importante
ressaltar que esse aspecto é acessório na pesquisa.
Estamos alerta quanto à saturação, conceito expresso na obra de Daniel Bertaux, tratado
por Alberti (2006, p.100) no qual as informações começam a se repetir ou no conteúdo, ou na
forma, tendo que buscar ainda alguns depoimentos para garantir a decisão de interromper, ou
6 Quem diz que a montagem
Graça e desgraça na casa do engole cobra
é teatro de
cordel somos nós, por encontrar nela elementos que a aproximam do trabalho de João
Augusto.
365
não, as entrevistas. Por essa razão, revela a importância em haver heterogeneidade no conjunto
selecionado para ser entrevistado.
Há dois tipos de entrevista previstos no Manual de História Oral, as entrevistas
temáticas e as entrevistas de histórias de vida. A primeira visa à participação do entrevistado no
tema. A outra tem o indivíduo, sua trajetória desde a infância, como centro de interesse. É
sugerido o uso deste segundo tipo como estratégia para promover uma maior abertura do
entrevistado e, progressiva e sutilmente, ir conduzindo-o para o tema central.
Quanto à condução das entrevistas, é importante que em primeiro lugar seja conquistada
uma relação informal e sincera “que permita a cumplicidade entre entrevistado e
entrevistadores, à medida que ambos se engajem na reconstrução, na reflexão e na interpretação
do passado” (ALBERTI, p. 102).
É recomendado pelo autor que se problematize algumas opiniões como forma de
promover novas reflexões em torno de assuntos que julguemos estarem cristalizados para o
entrevistado. Sempre de maneira curta, simples e direta. Uma importante nota é a delicadeza
com que essa problematização deve ser levada. O entrevistado não deve se sentir como que
provado em suas concepções, como se tivesse que se defender de uma contraprova. Ao
contrário, o entrevistado deve ser estimulado de diferentes maneiras, por exemplo:
apresentando-lhe fotografias, matérias jornalísticas, tudo que o remeta aos fatos e que possa
desenterrar alguma particularidade. Essa atitude amplia as possibilidades de comparação entre
depoimentos.
Em relação ao local da entrevista deve-se prezar por um ambiente confortável, bem
iluminado, livre de interferências sonoras ou de pessoas estranhas. Quanto à estrutura é muito
importante a existência de uma mesa que possa acomodar o gravador, as anotações do
entrevistador e documentos que possam contribuir com o encontro.
A duração da entrevista está diretamente ligada à disponibilidade do entrevistado. O
Manual de História Oral sugere o tempo máximo de duas horas, mas caso a entrevista esteja
correndo bem e esteja confortável, pode-se ampliar esse tempo.
A necessidade de um equipamento de gravação em vídeo se justifica por conta da
efemeridade do objeto de estudo, a interpretação teatral. Como as entrevistas mais importantes
serão feitas com atores, e há relatos de pesquisadores que ao entrevistarem alguns deles foram
surpreendidos com a recitação de parte dos textos de um dos espetáculos, a gravação
audiovisual pode contribuir para registrar esse momento. Caso isso ocorra teremos um exemplo
vivo, gravado em audiovisual, no do nosso objeto.
Outra facilidade relacionada com a gravação em vídeo é a transcrição. Enquanto a de
áudio ‘prende’ o entrevistador aos aspectos visuais quando precisa relatar um gesto ou
expressão, ou reforçar verbalmente o nome, uma cor ou um tamanho medido através de um
366
gesto, a gravação audiovisual dá conta disso e possibilita o entrevistador se relacionar com mais
liberdade com o entrevistado.
Mas, independentemente da mídia escolhida para a gravação do depoimento, há
aspectos técnicos que não podem ser esquecidos, a exemplo do cabeçalho que deve antecipar
qualquer entrevista. Ele deve conter a cidade, a data, o número de ordem da entrevista com o
entrevistado (se é a primeira ou a segunda...), o nome do entrevistado, quais entrevistadores
estão presentes, o local onde está sendo realizada a entrevista (casa do entrevistado, em seu
escritório, um estúdio, por exemplo) e que essa entrevista acontece dentro do projeto de
pesquisa para o mestrado em artes cênicas do PPGAC-UFBA, entre outros dados que possam
ser relevantes.
Há também o chamado caderno de campo que guarda as impressões e idéias que devem
ser visitadas após a entrevista relatando o que aconteceu, as reações do entrevistado e sobre
como suas expectativas foram alcançadas em relação à mesma. O caderno de campo serve
também para articular as idéias, novos pensamentos e perguntas, e detectar áreas a serem
aprofundadas, e questões não resolvidas. Em suma, trata-se também de um exercício de
reflexão. Um gravador digital também pode ser uma ferramenta bastante útil para a execução
destas tarefas e na composição dissertativa das conclusões.
Finalmente, podemos dizer que o encontro com a técnica de entrevistas da história oral
contribuiu decisivamente para encaminhamento de nossa pesquisa, garantindo mais segurança
no momento, quando este chegar, de tecer conclusões e traçar novos objetivos no estudo do
Teatro de Cordel.
Referências:
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro. Ed. FGV. 2006.
LEÃO. Raimundo Mattos de. Abertura para outra cena: o moderno teatro da Bahia. Salvador.
FGM. EDUFBA: 2006.
367
Stanislavski e Gorki:
um Teatro de Improvisação
Patrícia de Borba (Pita Belli)
Mestre / Professora de Improvisação e Prática de Montagem
Universidade Regional de Blumenau – FURB
Resumo
Este artigo busca identificar como a Improvisação Teatral foi pensada por Stanislavski e Gorki,
quando da intenção de criar um “Teatro de Improvisação”, e de que maneira ela foi inserida nos
treinamentos para o ator – propostos pelos mesmos.
Palavras-chave: Teatro russo.Treinamento.Improvisação.
Após o declínio da Commedia dell’arte o teatro praticado até finais do século XIX
permitia que os atores tivessem um aprendizado nas próprias companhias e em contato direto
com o público, sem que essa vivência, no entanto, se constituísse num treinamento mais
sistematizado. Stanislavski, que fundou, em 1898, juntamente com Nemirovitch-Dantchenko,
o Teatro de Arte de Moscou, ao constatar essa realidade, percebeu a necessidade de estruturar
um método de atuação. Iniciou seus estudos e experimentos voltados para o que começou a
aplicar com seus atores e que ficou conhecido como o método de Stanislavski. Através da
Improvisação propôs uma técnica que poderia permitir ao ator fazer associações entre sua
“memória emotiva” e o papel que iria representar. Tendo sido o primeiro a estabelecer
claramente uma metodologia para o treinamento, propunha que o ator, através de um
conhecimento de si próprio fosse capaz de reconhecer e fixar uma série de materiais que
seriam utilizados para a mais justa representação dos personagens. E essa pesquisa seria
embasada na Improvisação, através da qual poderiam emergir tais materiais. Stanislavski
considerava que os atores que haviam sido treinados na Improvisação usavam facilmente sua
imaginação em prol do espetáculo. E, além disso, enquanto faziam uso da Improvisação,
aprendiam as leis criadoras da natureza orgânica e os métodos da psicotécnica, isto é, o
controle sobre o subconsciente através da consciência e da vontade (STANISLAVSKI, 1988,
p. 127-128).
A Improvisação do ator sobre determinada situação dramática foi assunto de largas
discussões que Stanislavski e Gorki teriam empreendido em torno da criação de um “Teatro de
Improvisação”. Em uma carta, datada de 1912, estão claramente lançadas as bases de uma
proposta que, para Gorki, inicialmente, visava à renovação do repertório do Teatro de Arte de
368
Moscou, com a possibilidade de criação de novos textos que promovessem uma maior
aproximação da arte com plateias mais populares. Alguns trechos dessa carta podem ser
encontrados na revista Máscara, edição de 1996-1997.
Na carta citada, Gorki iniciou o assunto fazendo algumas considerações sobre o que
entendia como o comportamento geral dos artistas diante da obra de arte. Considerava que,
apesar que todas as pessoas serem capazes de elaborar impressões pessoais sobre o mundo, na
hora em que se apresentava a necessidade de representação acabavam por recorrer a formas
pré-estabelecidas, utilizando visões e formas distantes de si mesmas. Propunha, portanto, que
se levasse os atores a uma busca de sua própria expressão, de sua atitude subjetiva sobre a
vida, para em seguida materializar essa atitude em formas e palavras pessoais. O que Gorki
desejava é que a partir da proposta de uma situação dramática concreta, os atores,
improvisando, pudessem fazer surgir os personagens e o desdobramento de uma obra
dramatúrgica que por fim alcançaria a forma literária. Dessa maneira, os atores seriam também
criadores. As indicações de Gorki estavam diretamente associadas ao fato de que pretendia, a
partir de uma situação dramática dada, com a construção individual que cada ator desse a seu
personagem e, consequentemente, ao desenrolar dos acontecimentos, renovar os textos a serem
representados pelo Teatro de Arte de Moscou.
Essa ideia, segundo Zajava, teria encantado Stanislavski e foram tomadas medidas
para sua efetivação, com a participação de Gorki (ZAJAVA, 1996-1997, p. 31). Mas o projeto,
depois de alguns ensaios de Improvisação, acabou por ser abandonado. Provavelmente em
função da necessidade de outros ensaios com vistas aos espetáculos com textos conhecidos.
Mas, embora o projeto não tenha sido levado a cabo, a ideia da Improvisação sobre certa
situação dada serviu para introduzir a Improvisação como elemento vital nas teorias de
Stanislavski sobre o treinamento do ator. Além disso, estimulou a criação do primeiro Estúdio,
no qual permaneceu por muito tempo o vestígio dessa ideia de Improvisação, em que o ponto
de partida para a criação poderia ser um esboço, um enredo e determinadas personagens.
Na ocasião em que Stanislavski e Gorki tentaram aplicar as bases da Improvisação
para a composição de um espetáculo, era seu aluno Evgueni Vakhtangov, que tendo tomado a
sério as lições dos mestres mais tarde tentou aplicar os mesmo princípios com seus alunos no
Estúdio Dramático Estudantil, onde ensinava. Vakhtangov tinha sido discípulo de Sulerjitski,
diretor do primeiro Estúdio do Teatro de Arte de Moscou, ferrenho discípulo de Stanislavski e
que já tinha também realizado experimentos no âmbito da Improvisação. Há notícias de que
Sulerjitski, em certa ocasião, se retirou para o campo com seus alunos, que passaram todo o
tempo “metidos” em seus personagens (ZAJAVA, 1996-1997, p. 30). As ideias de
Vakhtangov correspondiam às propostas de Stanislavski e Gorki. Também pretendeu que a
Improvisação a partir de uma situação dada servisse como base para a criação de novos textos
dramáticos. Teria dito a seus alunos que um dia já não se escreveriam obras. Acreditava que o
369
ator pudesse estar de tal forma preparado que, antes de entrar em cena, bastaria lhe relatar o
papel que executaria, com algumas informações sobre seu passado e suas relações, e que isso
bastaria para que efetivasse seu personagem no palco, pois os sentimentos, as emoções, as
palavras, lhe ocorreriam espontaneamente. Para ele esta seria a verdadeira Commedia
dell’arte, menos convencional e sem o apoio de um autor, de um roteiro.
Todos esses experimentos contribuíram significativamente para a evolução das
propostas de treinamento de Stanislavski – evoluções estas, como bem nos lembra Zajava, de
caráter pedagógico e não, necessariamente, de ordem estética (1996 - 1997, p. 33). E o legado
dessa pedagogia teve tamanho alcance que pode ser detectado em praticamente todas as
escolas de ensino do teatro, ou mesmo nos grupos amadores, junto aos quais são aplicados
largamente os exercícios de Improvisação. Ainda que, muitas vezes, isso se dê sem a devida
consideração, isto é, sem que se perceba na sua utilização um papel mais significativo do que
o de simplesmente desinibir o aluno ou de dar “asas” à sua imaginação.
Outro ator, diretor e mestre que contribuiu significativamente para a progressividade
do método de Stanislavski foi Mikhail Tchekhov. Depois de estar vinculado ao Teatro de Arte
de Moscou por 16 anos, tendo trabalhado com Sulerjitski, com o próprio Stanislavski e com
Vakhtangov, e onde, finalmente, assumiu a direção do Segundo Teatro de Arte de Moscou,
começou a desenvolver seu próprio método de treinamento. Especificamente com relação à
improvisação, dedicou o terceiro capítulo de seu livro, que chamou de Improvisação e
conjunto.
Com exercícios formulados a partir de um tema simples, do qual os atores deveriam
conhecer o início e o fim, para que se habituassem às regras, Tchekhov organizou
improvisações para a fase preparatória dos atores, que tanto deveriam ser realizadas
individualmente, num primeiro momento, como coletivamente, numa segunda fase. Dessa
maneira, ao desenvolver sua capacidade de improvisar, o ator poderia desfrutar de “uma
sensação de liberdade”. Acreditava que “...a real e verdadeira liberdade na Improvisação deve
basear-se sempre na necessidade; caso contrário, não tardará a degenerar em arbitrariedade ou
indecisão” (TCHEKHOV, 1996, p.45).
O que se percebe é que Tchekhov detectava a Improvisação nas menores instâncias da
representação teatral, e para que o ator efetivamente pudesse fazer uso dela em dadas
circunstâncias, deveria receber um treinamento para tal. Mas havia outra motivação para que
fizesse uso de exercícios improvisacionais: o aspecto coletivo do teatro. Considerava também
que o “ [...] ator deve desenvolver em seu íntimo uma sensibilidade para os impulsos criativos
dos outros” (TCHEKHOV, 1996, p. 48). Para tanto, antes de dar início à Improvisação em
grupo, recomendava exercícios que denominou de “sentimento de ensemble” (conjunto), onde
os atores deveriam desenvolver sua capacidade de comunicação com o outro, harmonia com o
colega de palco, antes de adentrar na criação teatral propriamente dita. São exercícios com
370
vistas a conquistar a sensibilidade em relação ao conjunto, sem deixar de lado o
reconhecimento das individualidades.
Ao final do capítulo Improvisação e conjunto, Tchekhov ainda faz duas advertências
aos atores. Uma se refere ao uso de seu espírito improvisador, que não deve ceder lugar à
“lógica”, mas sim fazer uso de sentimentos, emoções, desejos e impulsos sinceros. E outra
ainda é que, concomitante aos exercícios de grupo, o ator deve continuar exercitando-se
individualmente, pois um não exclui o outro, mas pelo contrário, são complementares. As
recomendações de Tchekhov com relação ao trabalho de grupo, onde os atores devem
exercitar sua comunicação com o conjunto, parecem não ter mais muita relevância nos grupos
de teatro atuais, onde se vê ênfase cada vez maior nos treinamentos individuais, talvez mesmo
em detrimento do jogo de relações entre atores e personagens.
O fato é que, de modo geral, todos os homens do teatro realizado no século XX se
valeram, de uma maneira ou de outra, da Improvisação. Fosse na preparação dos atores, fosse
na dos espetáculos. No entanto, as formulações mais importantes sobre a Improvisação e sua
utilização como forma de treinamento para o ator parecem ter perdido força no teatro
contemporâneo, para dar lugar a uma busca mais voltada para a corporeidade. A ideia da
instrumentação para um “corpo em cena” abriu caminhos para os treinamentos individuais,
propiciou o alargamento dos limites corporais e as descobertas pessoais em busca da ação
dramática. Disso resulta que a Improvisação passou a ser utilizada, explicitamente, apenas
como forma de estímulo à criação de espetáculos, em um determinado momento do processo
criativo.
Para além disso, parece bastante óbvio concluir que os atores se valem, sim, da
Improvisação em seu treinamento particular ou quando pesquisam algum material para a
criação de partituras que posteriormente poderão ser utilizadas (ou não) em um espetáculo.
Contudo, a questão do jogo improvisacional como forma de busca das relações com o outro
em cena e com a própria cena, assim como propunha Mikhail Tchekhov e seus antecessores,
com regras próprias bem definidas e que também faria parte da tão comentada instrumentação
do ator, parece ter desaparecido da pauta dos treinamentos.
Referências
STANISLAVSKI, C. Manual do ator. Trad.: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
TCHEKHOV, M. Para o ator. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ZAJAVA, B. Gorki-Stanislavski-Vajtangov: un experimento de improvisación. Máscara :
cuaderno iberoamericano de reflexión sobre escenologia, México, n. 21-22, p. 30-34, enero
1996-1997.
371
Letramento corporal do ator:
método GDS e Orissi.
Priscilla Duarte
Atriz / Bacharel em Artes Cênicas / Teatro Diadokai / MG
Universidade do Rio de Janeiro UNIRIO
O corpo é linguagem: esta é uma ideia recorrente do método GDS, que propõe uma leitura do
comportamento e da morfologia do homem em seu cotidiano. Do ponto de vista fisiológico,
para um gesto harmonioso e coordenado, é necessário o livre diálogo entre as tensões
musculares. A manutenção desta liberdade depende da ação preferencial da tríade dinâmica de
três cadeias musculares, que garantem a transmissão da energia, trazendo ritmo e alternância de
curvas para a verticalidade do homem, em pé, e impulsionando o corpo à abertura e ao
fechamento, através da rotação das articulações.
Palavras-chave: Corpo. Gesto. Linguagem corporal. Cotidiano. Extracotidiano. Ator.
Em Orissi, o corpo da atriz/dançarina indiana é linguagem. Sua sofisticada escrita de gestos
codificados nos serve de base para o estudo da ação da tríade dinâmica em uma linguagem
corporal extracotidiana.
Letramento é a condição de quem se apropria da língua, cultivando e exercendo com
competência a prática da leitura e da escrita.
A presente comunicação é uma reflexão sobre o letramento do ator no cultivo e na prática
da linguagem corporal, através da apropriação da leitura (método GDS) e da escrita (teatrodança Orissi) e sobre as fronteiras que separam o gesto cotidiano e o extracotidiano, sem
negligenciar as matrizes culturais/corporais orientais e ocidentais.
O método GDS de cadeias musculares e articulares, que tem como sigla as iniciais do nome
de sua criadora, a fisioterapeuta belga Godelieve Denys Struyf, propõe uma chave de leitura do
comportamento e da morfologia do ser humano. Tal modo de observação, inicialmente aplicado
à fisioterapia, revelou-se útil também em outros domínios do estudo do corpo e do movimento.
Struyf, que iniciou suas pesquisas na década de 60 do séc. XX, concebe o gesto humano como
uma manifestação impregnada de psiquismo que tem influência direta sobre a forma do corpo.
A análise da biotipologia desenvolvida por Struyf revela uma resultante entre o “vivido”, a
personalidade fundamental do indivíduo, e as pulsões primordiais da espécie humana.
Struyf definiu seis atitudes posturais, determinadas pela ação preferencial de certos
encadeamentos musculares. Para designar cada uma dessas atitudes, são usadas abreviações de
acordo com a localização dos músculos no corpo: AM (anteromediana), PM (posteromediana),
PA (posteroanterior), AP (anteroposterior), AL (anterolateral) e PL (posterolateral). As seis
372
atitudes estão organizadas em dois eixos: vertical e horizontal. No eixo vertical estão as atitudes
AM, PA e PM, as três estruturas profundas da personalidade humana, a “triunidade do ser”. No
eixo horizontal estão as atitudes PL, AP e AL, compondo a chamada “tríade dinâmica do agir”.
A boa fisiologia prevê a livre circulação do tônus por todos os encadeamentos; para um gesto
harmonioso e coordenado, é necessário um livre diálogo entre as tensões musculares. Quando
um encadeamento muscular é solicitado em excesso e aumenta seu tônus, prevalecendo sobre os
demais, a circulação das tensões é interrompida e cria-se uma cadeia de tensão muscular que
aprisiona o corpo em uma única atitude ou tipologia. A comunicação através do corpo fica
comprometida. Os músculos da tríade dinâmica são os principais responsáveis pela manutenção
da transmissão das tensões que garantem a alternância rítmica de curvas para a verticalidade do
homem em pé e impulsionam o corpo à abertura e ao fechamento, através da rotação das
articulações. O bom funcionamento da tríade dinâmica é portanto fundamental aos atores e a
outros profissionais que têm o corpo como principal veículo expressivo.
Uma das ideias recorrentes no método GDS é a de que “o corpo é linguagem”.
Considerando a linguagem como um instrumento de comunicação, do ponto de vista
“psicocorporal”, esta se dá em dois níveis: no interior do corpo e com o exterior. “Se meus
tornozelos ignoram meus joelhos, se meus quadris não protegem minhas vértebras lombares e
solicitam excessivamente as articulações sacroilíacas, se minha primeira junta cervical não
funciona harmoniosamente com a bacia, se minha mão direita não se coordena facilmente com o
pé esquerdo, etc., meu corpo está efetivamente em dificuldade, dificuldade de comunicação”
(STRUYF, 1995, p. 13). A tipologia de cada indivíduo caracteriza seu modo de comunicação e
é um amálgama da “tipologia basal” (características e potencialidades genéticas) com
acréscimos e subtrações relativos à “tipologia adquirida” (experiência vivida).
No teatro, o corpo encontra a dimensão artística da comunicação: o corpo do ator é
linguagem. Esta identificação conceitual com o método GDS influenciou nossa reflexão sobre o
corpo do ator, seu aspecto comportamental e suas características estruturais, mecânicas e
funcionais. A singularidade de seu ofício exige do ator uma compreensão do próprio corpo em
dois níveis: na vida cotidiana e na situação extracotidiana, de representação. Mauss define
como técnicas corporais “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade, e de maneira
tradicional sabem servir-se de seus corpos” (MAUSS, 1974, p. 211). Barba estabelece uma
relação de oposição entre técnicas cotidianas – “tendem à comunicação”- e técnicas
extracotidianas do corpo – “tendem à informação, literalmente a colocar o corpo in-forma e não
respeitam suas condições habituais de utilização” (BARBA, 1985, p. 6 e 7). Pensamos que a
linguagem corporal extracotidiana difere daquela cotidiana em seus objetivos e na forma, mas
não por oposição: são antes, complementares. O arcabouço humano, segundo os princípios
GDS, conta com a importante contribuição das técnicas corporais cotidianas – ações que
373
modelam a forma dos ossos, do corpo e, consequentemente, dos gestos, segundo diferentes
matrizes socioculturais. Como é possível construir uma linguagem corporal do ator, um
comportamento artificial para a cena, desconsiderando-se-lhe as singularidades que modelaram
seu corpo, segundo, dentre outros fatores, suas origens socioculturais?
Segundo Barba, à exceção talvez do balé clássico e da mímica, “o ator ocidental
contemporâneo não possui um repertório orgânico de conselhos sobre os quais apoiar-se e a
partir dos quais possa orientar-se. Falta-lhe regras de ação que, sem restringir sua liberdade
artística, ajudem-no em seu trabalho” (BARBA, 1985, p. 4). A busca por uma “elaboração das
bases materiais de sua arte” impulsionou diversos atores e grupos ocidentais a praticar técnicas
de atuação provenientes do teatro oriental. A antropologia teatral de Barba reflete este impulso,
através de conceitos como “princípios que retornam” e “conselhos úteis”. Pode ser útil ao ator
ocidental estudar uma técnica corporal de uma cultura tão distante da sua? Pensamos que esta
contaminação transcultural deve incluir a perspectiva das técnicas corporais e sua matriz
sociocultural de origem, para que se possa compreender os limites, transponíveis ou não,
existentes na aquisição de uma “linguagem estrangeira do corpo”. A tríade dinâmica é
solicitada à ação de forma diversa, de acordo com as técnicas corporais de cada povo, que por
sua vez são determinadas, segundo Mauss, por fatores fisiológicos, psicológicos e sociológicos:
“uma certa forma dos tendões, e mesmo dos ossos, não é outra coisa senão a decorrência de uma
certa forma de se comportar e de se dispor.” (MAUSS, 1974, p. 220)
A tradição clássica indiana nos oferece um exemplo extremamente representativo da ação
da tríade dinâmica: o teatro-dança, clássico, estilo Orissi, originário da região de Orissa
(nordeste da Índia) é um dos mais antigos, dentre os cerca de 20 estilos, reconhecidos
atualmente. Sua origem ritualística remete às sacerdotisas (maharis) dos templos dedicados ao
deus Jaganath, no séc. X dC. Em sua forma atual, é executado normalmente por uma
atriz/dançarina solista. Em Orissi a ação da tríade dinâmica é explicitada de forma exemplar:
suas formas sinuosas, as caminhadas entrecruzadas, o vigor rítmico do batimento dos pés no
chão, os movimentos do corpo em torção, expansão e retração no espaço, a precisão dos gestos
das mãos e das poses estáticas. O teatro-dança Orissi, assim como os outros estilos de teatrodança clássicos indianos, ao longo de uma secular transmissão da tradição, constituíram uma
verdadeira “gramática” de movimentos estruturados, precisos e codificados, construindo assim
uma linguagem do corpo extremamente sofisticada.
Para avançarmos em nossa reflexão a respeito da linguagem corporal, tomaremos
emprestado um termo da linguística. Letramento é a condição de quem se apropria da língua,
cultivando e exercendo com competência a prática da leitura e da escrita. A pessoa letrada está
muito além da pessoa alfabetizada. Não se trata apenas de ser capaz de ler e escrever, de
reproduzir e decodificar os códigos da escrita. O conceito de letramento diz respeito a uma
374
imersão no universo da língua, tanto do ponto de vista de sua apreciação quanto da elaboração
em seu uso. A analogia com a linguagem corporal nos parece fecunda: o letramento corporal
seria então o cultivo da linguagem do corpo, um dos possíveis caminhos das técnicas cotidianas
em direção às técnicas extracotidianas do corpo. Consideramos que o processo de letramento
corporal seja necessário ao desenvolvimento das possibilidades expressivas do ator, tanto
oriental quanto ocidental. No entanto, este processo torna-se mais complexo quando o
letramento compreende a aquisição de uma “linguagem estrangeira do corpo”, como por
exemplo, no caso do ator ocidental que se dedica à prática do teatro-dança indiano.
Consideramos que, até certo ponto, esta escolha pode alargar as possibilidades técnicas e
expressivas do ator, desde que não sejam ignorados os limites da capacidade de adaptação
estrutural do aparelho locomotor humano. A manutenção da boa fisiologia da tríade dinâmica
pode ser a chave que permite esta grande adaptabilidade. No entanto, do ponto de vista
biomecânico, se o funcionamento do corpo for forçado para além dos seus limites,
negligenciando as características de sua tipologia, o ator pode comprometer os limites
expressivos que pretendia alargar.
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376
Para que estudar o Kathakali no Brasil?
Ricardo Gomes
Doutor em história, teoria e técnica do teatro e do espetáculo / Diretor Teatral
UFOP
Resumo
Beber na fonte da tradição oriental não significa desenraizar-se, mas pode ser um modo para
pensar sobre as próprias raízes. Se esta afirmação é verdadeira para a Europa – que foi buscar no
Oriente inspiração para colocar em questão seus cânones artísticos – o é ainda mais para o
Brasil, onde as raízes da tradição teatral de matriz europeia são muito menos profundas.
Palavras-chave: Trabalho do Ator, Teatro Oriental, Transculturalidade.
A complexidade rítmica e a união entre música, dança e dramaticidade são pontos em
comum entre formas de arte “exóticas” como o teatro-dança indiano Kathakali e as
manifestações performáticas da cultura popular brasileira, das quais não podemos prescindir ao
pesquisar sobre a teatralidade em nosso país, sob pena de reproduzir uma visão eurocêntrica.
Se existem muitos pontos de contato, há porém uma diferença fundamental: enquanto
grande parte do saber de nossa cultura popular não é codificado por regras explícitas, o teatrodança tradicional indiano segue processos formais de aprendizado lapidados durante séculos,
que podem servir para orientar a codificação de nossos comportamentos cênicos.
Partindo destes pressupostos, esta comunicação é um estudo sobre a possibilidade e a
pertinência da utilização da cultura cênica indiana como referência para desenvolver técnicas de
atuação para o ator brasileiro, dentro de uma perspectiva transcultural.
No século passado assistimos no Ocidente ao questionamento da hegemonia do texto no
fenômeno teatral. Os reformadores das artes cênicas ocidentais passaram a perseguir a ideia de
uma “arte total”, onde todos os elementos do fenômeno espetacular estivessem em harmonia.
Desde os primeiros contatos diretos do público ocidental com as formas espetaculares da Ásia,
no final do século XIX, o teatro-dança tradicional asiático contribuiu para esta modificação no
modo de pensar as artes cênicas no Ocidente, colocando em questão os cânones artísticos
estabelecidos. Em particular, a arte do ator oriental tornou-se um ponto de referência, pois nas
artes cênicas tradicionais asiáticas é o ator – e não o texto – o fulcro do espetáculo. Afirmou-se
como o ideal de uma arte livre de qualquer condicionamento pessoal do intérprete, toda fundada
em uma meticulosa técnica do corpo, capaz de representar fisicamente não só as paixões, mas as
emoções mais refinadas, conjugando na sua performance palavra, ação e musicalidade.
377
Nossa pesquisa precedente nos levou à conclusão de que é possível estabelecer bases
técnicas para o trabalho do ator, dentro de uma perspectiva transcultural que nos permita
incorporar às técnicas ocidentais as tradições cênicas asiáticas, na certeza de que a riqueza de
seu patrimônio artístico e técnico é não apenas útil, mas indispensável, e que é possível superar
as barreiras culturais que nos impedem de incorporá-las às nossas noções teatrais de base,
realizando um encontro entre culturas diversas, onde uma cultura pode ser “contaminada” por
outra sem perder suas características essenciais. No momento atual, iniciamos a empresa de
criar o Núcleo de Pesquisas sobre a Arte do Ator entre Oriente e Ocidente na Universidade
Federal de Ouro Preto, visando ao desenvolvimento de técnicas de atuação para o ator
brasileiro, dentro de uma perspectiva transcultural.
Partindo de exercícios oriundos, seja da formação do ator no teatro-dança tradicional
indiano, que do treinamento do ator ocidental (tendo como principais referências Stanislavski,
Grotowski e Barba), pretende-se identificar princípios norteadores que permitam ao ator o
controle da sua energia física e vocal através da organização do diálogo rítmico entre as diversas
partes de seu corpo. Este trabalho de preparação no campo da pré-expressividade tem a intenção
– de acordo com a definição de Jacobson da linguagem poética como aquela que elabora
conscientemente as suas características formais – de esboçar um estilo poético de atuação,
experimentando esta linguagem cênica na representação de temas ligados à cultura brasileira e
explorando as possibilidades de elaboração do trabalho vocal aplicado à língua portuguesa.
Beber na fonte da tradição oriental não significa obrigatoriamente desenraizar-se, mas
pode ser um modo para pensar sobre as próprias raízes. Se esta afirmação é verdadeira para as
artes cênicas europeias, o é ainda mais para o Brasil, onde as raízes da tradição teatral ocidental
de matriz europeia são muito menos profundas.
Apesar da sensação de estranhamento que pode causar em um primeiro momento a visão
de formas de arte “exóticas” como o Kathakali, encontraremos nelas muitos pontos em comum
com nossa tradição. A complexidade rítmica, a utilização da dança como forma de narração ou
de caracterização das personagens ou a união indissociável entre música, dança e dramaticidade
são características que encontramos nestas manifestações asiáticas e também nas danças
dramáticas afro-ameríndias brasileiras, das quais não podemos prescindir ao pesquisar sobre a
teatralidade em nosso país, sob pena de reproduzir uma visão eurocêntrica.1
Não podemos, por outro lado, negligenciar as possíveis conexões entre as civilizações
brasileira e a indiana, tão distantes geograficamente e culturalmente mas, especialmente em
relação ao estado do Kerala de onde é originário o Kathakali, ligadas historicamente pela
colonização portuguesa e pela semelhança climática.1
Se existem muitos pontos de contato, há porém uma diferença fundamental: na Ásia,
apesar da rígida hierarquia social que caracteriza grande parte de suas sociedades tradicionais,
existe uma maior continuidade entre o popular e o erudito. Uma arte altamente sofisticada como
378
o Kathakali é parte integrante das festas populares nos templos do Kerala (estado indiano de
onde esta arte é originária), pois esta arte...
[...] é como um vasto e profundo oceano. Alguns vêm para a performance
com as mãos em forma de concha, sendo capazes de levar apenas aquilo
que não lhes escapa por entre os dedos. Outros vêm com um pequeno
copo, e podem beber com ele. Outros, ainda, vêm com um grande
caldeirão e podem levar muito mais. (ZARILLI 2000, p. 1).
Enquanto a transmissão da tradição na cultura popular brasileira não segue um percurso
formal de aprendizado e o seu saber não é codificado por regras e princípios claramente
expressos e determinados, o teatro-dança tradicional indiano segue preceitos precisos e
processos formais de aprendizado lapidados durante séculos. Esta diferença é o foco do nosso
interesse, pois estes princípios de atuação, que podemos encontrar em tratados antigos como o
Natyasastra,1 assim como na prática atual, se devidamente “traduzidos” a partir de uma leitura
capaz de discernir o particular do universal, podem servir para orientar a codificação de nossos
comportamentos cênicos.
Utilizando a cultura cênica indiana como referência para pensar o ator brasileiro estamos
em sintonia com o movimento de redescoberta da teatralidade no teatro ocidental e ao mesmo
tempo podemos encará-la a partir de um ponto de vista privilegiado em relação ao ator europeu.
Procurando compreender os princípios que regem a linguagem do teatro-dança tradicional
oriental e seu processo de aprendizagem, podemos encontrar subsídios para a elaboração de
técnicas de atuação que se identifiquem com o ator brasileiro, criando uma estratégia de diálogo
entre o popular e o erudito e ampliando nossa noção de teatralidade.
O conceito de Performance, que inclui as diversas dimensões da teatralidade humana,
dentro de uma visão transcultural e transdisciplinar, é fundamento metodológico necessário a
esta pesquisa, pois nos permite libertar a noção de teatro da limitada perspectiva daquilo que
Artaud definiu como “teatro dialogado”1 – que ainda prevalece em boa parte dos estudos
acadêmicos sobre o argumento – e estudar transversalmente o fenômeno teatral.
Particularmente importante é a noção de “comportamento restaurado”, definido por
Schechner como “fragmentos de comportamento” que podem ser “rearranjados e reconstruídos”
e que são “independentes do sistema casual (social, psicológico, tecnológico) que trouxe-os à
existência” (SHECHNER, 1991, p. 205). Uma vez que o comportamento restaurado é a
principal característica de todas as formas de performance e implica a noção de préexpressividade, este conceito revela-se uma eficaz chave de leitura para as questões suscitadas
nesta pesquisa.
379
Referências
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London:
Routledge, 2000.
380
A noção de organicidade no percurso investigativo de Jerzy Grotowski
Tatiana Motta Lima
Doutora em Teatro, professora e atriz
Departamento de Interpretação, UNIRIO
Resumo
Nesta comunicação discutirei a noção de organicidade na investigação artística de Jerzy
Grotowski. Em primeiro lugar, me deterei na gênese dessa noção e nas transformações
que ela operou nas noções de ator e de espectador em sua obra. Embora tenha se
tornado, ao longo do tempo, uma noção central na obra de Grotowski, a organicidade
não esteve presente desde o início de seu trabalho, ela foi 'descoberta'. E, nesse sentido,
examinando-a, vamos poder seguir parte do processo de investigação do próprio
Grotowski. O termo relacionava-se tanto a aspectos artesanais da arte do ator, aspectos
expressos em um amplo espectro de sintomas indicadores da presença do orgânico no
corpo e na voz dos atores/atuantes, quanto a aspectos metafísicos, onde a noção de
organicidade e uma certa definição de 'verdade' se irmanavam. Talvez a organicidade
seja a noção que melhor se adequou à formulação de Flaszen de que a terminologia de
Grotowski foi construída em um vaivém entre o artesanato e a metafísica.
Aproximando-me dessa noção, será necessário lidar com esses dois aspectos e com a
contínua circularidade entre eles na investigação de Grotowski. Por fim, a noção de
organicidade traz em seu bojo, necessariamente, uma noção de corpo ou de
corporeidade que me interessará, também, explorar.
Palavras-chave: Grotowski. Organicidade. Corpo. Ator. Espectador.
Meu objetivo nesta comunicação é tratar da noção de organicidade em Grotowski.
Acredito que essa noção possa ser um instrumento de auxílio na investigação/leitura de
certas práticas performativas, de certos processos experienciados pelos performers tanto
em experiências ditas artísticas quanto nas ritualísticas.
A organicidade, embora não estivesse presente desde o início nas investigações de
Grotowski, foi, quando 'descoberta' no trabalho de Ryszard Cieślak no espetáculo “O
Príncipe constante”, um certo divisor de águas daquelas investigações. A partir de sua
'descoberta', Grotowski começou a se interessar por um conjunto de questões do qual
nunca mais se afastou.
A organicidade não foi, portanto, uma noção circunscrita à experiência de “O
Príncipe constante”, ou à experiência teatral de Grotowski, ela era utilizada como uma
certa chave de investigação, uma nova lente a partir da qual Grotowski passou a
enxergar e a investigar o trabalho do performer.
381
A maior dificuldade para que se possa entender a importância da 'descoberta' da
organicidade está justamente na compreensão da própria noção. A pergunta que precisa
ser colocada é: a que Grotowski se referia quando falava em organicidade?
O mais interessante desse termo, a meu ver, é a sua capacidade de, localizando-se
no terreno do artesanato, ou seja, podendo ser percebido/reconhecido no corpo do doer
em ação, indicar o caminho para uma outra subjetividade, para uma outra forma de
percepção do 'eu'. Esse termo se adequou perfeitamente à formulação de Flaszen de que
a terminologia de Grotowski se construiu entre o artesanato e a metafísica.
Grotowski em vários de seus textos descreveu o que chamava de sintomas de
organicidade ou sintomas de vida. O termo sintoma é importante. Ele se opõe tanto a
procedimentos – ou seja, descrição de maneiras, de meios, para alcançar a organicidade
– quanto a signo – termo referido, no vocabulário de Grotowski, a um conceito expresso
através do corpo/voz dos atores. Os sintomas de organicidade – e sintoma, aqui, parece
ser utilizado da mesma forma que na clínica médica ou psicanalítica – falavam de um
conjunto de indícios, sinais, mensagens que apareciam no organismo do ator ou do doer
quando este estava vivenciando um processo orgânico. Assim, descobrir os sintomas
era reconhecer o modo que a vida tinha de se estruturar.
Grotowski, ao falar de um ou mais desses sintomas, em seus textos, fazia questão
de afirmar que eles não deviam ser abordados – utilizados – como chaves para o
processo orgânico. O problema que afligia Grotowski não é difícil de entender.
Tratando-se sintomas como procedimentos, eles passariam a ser indícios, não mais da
consciência orgânica, mas, da manipulação do mental. E se o mental tentasse controlar
os processos orgânicos, nesse exato momento, e pour cause, esses sintomas deixariam
de indicar a presença da organicidade, e passariam a ser realizados enquanto truques.
Acredito que perceber, analisar e mesmo inventariar esses sintomas foi importante
para Grotowski quando, a certa altura do Teatro das Fontes, ele voltou novamente a
buscar – depois de uma fase de negação da técnica – técnicas, procedimentos e/ou
exercícios. Talvez justamente o inventário desses sintomas, colhidos na sua experiência
com seus atores e os participantes tanto do parateatro quanto da primeira fase do Teatro
das Fontes, tenha permitido a Grotowski escolher/selecionar, posteriormente, as
técnicas de que necessitava.
O que se buscava a partir de então era liberar o processo orgânico: encontrar
situações, ações, exercícios que desobstruíssem, que destruíssem as causas que
impediam o acesso a esses processos; causas necessariamente diferentes para cada
indivíduo. Assim, os instrumentos – cantos, movimentos, técnicas corporais –
encontradas em outras culturas – Grotowski pesquisou, por exemplo, o vudu haitiano –
podiam 'servir' à sua própria investigação se ele localizasse nesses instrumentos a
382
presença da organicidade. Isso não significava esquecer as especificidades de cada
cultura, mas travar um diálogo ativo com técnicas e modos de fazer que pertenciam a
outros contextos culturais. Dialogar ativamente com essas técnicas não era tarefa fácil.
Algumas delas, Grotowski o percebia claramente, necessitavam de uma formação que
se dava desde a tenra infância. Outras poderiam ser desestabilizadoras para uma mente
ocidental, fazendo-a, talvez, naufragar em conteúdos inconscientes. Outras, porém,
podiam ser trabalhadas tanto por ele mesmo quanto por seus companheiros de
investigação. O yanvalou, por exemplo, uma dança/passo do vudu haitiano foi uma
dessas técnicas orgânicas selecionadas, e é utilizada até hoje no trabalho do Workcenter
of Jerzy Grotowski and Thomas Richards. Conhecendo os sintomas, Grotowski sabia o
que procurar. Essas técnicas eram instrumentos que, potencialmente, podiam liberar o
que Grotowski chamou no final dos anos 1960 de corpo-vida. Não eram técnicas de
controle ou adestramento do organismo.
Cito – sem pretensão exaustiva – alguns sintomas de organicidade que
aparecem nos textos de Grotowski:
o corpo funciona/responde a partir do centro e não das extremidades;
o corpo funciona em ‘fluxo’ e não em ‘bits’ (em pequenos cortes);
o corpo aparece como um ‘fluxo de impulsos vivos’;
o organismo está em contato com o ambiente, em encontro com outro; há
permanentemente um vis-a-vis;
o corpo está totalmente envolvido em sua ação;
a coluna vertebral está ativa, viva: “movimentar a coluna vertebral – como uma
espécie de serpente – é uma das adaptações da vida” (GROTOWSKI, 2007, [1969], p.
142);
o início da ‘reação autêntica’, reação orgânica está na cruz, no cóccix. “A coluna
vertebral é o centro da expressão. O impulso, entretanto, origina-se dos quadris. Cada
impulso vivo começa nessa região, mesmo se está invisível para o exterior
(GROTOWSKI apud KUMIEGA, 1985, p. 119).
As associações contribuem para (ou revelam um) fazer orgânico. Grotowksi
dizia, por exemplo, que por meio de um trabalho com associações, os ressonadores
trabalhavam de maneira orgânica, não automaticamente.
A natureza cíclica da vida aparece nas contrações e distensões do corpo – que
“não podem ser definidas, nem sempre dirigidas” (GROTOWSKI, 2007i [1969], p.
168).
O corpo está em constante ‘ajuste’, em ‘adaptação’, em ‘compensação vital.
“As
palavras nascem das reações do corpo. Das reações do corpo, nasce a voz, da
voz, a palavra” (GROTOWSKI, 2007k, [1970], p. 204).
383
No final dos anos 1990, como professor do Collège de France, grande
parte do esforço de Grotowski foi exatamente a caracterização – e distinção – de duas
linhas de trabalho dentro das artes performativas: a linha orgânica e a linha artificial.
Essas linhas foram analisadas tanto dentro das práticas rituais quanto das teatrais.
Grotowski (2007) caracterizou o seu próprio trabalho como tendo sido realizado dentro
da linha orgânica, o que demonstra tanto a importância do tema, quanto sua
permanência nas investigações do artista.
O que nasceu em “O Príncipe constante”, no campo do trabalho ‘atoral’,
acabou caracterizando-se, para Grotowski (2007), como um campo de investigação
próprio, não necessariamente ligado ao teatro, embora nele também pudesse ser
encontrado. Quando caracterizou as linhas orgânica e artificial, colocando-as também
dentro do universo da performidade dos rituais, ele demonstrou que não estava
referindo-se apenas a escolhas artísticas e/ou estéticas. Assim, linha artificial não podia
mais ser confundida com formalismo ou com um trabalho baseado na composição, e
nem mesmo com disciplina ou estrutura, já que não faria sentido aplicar, dessa maneira,
esses conceitos às práticas rituais.
A
linha
artificial
caracterizava-se,
para
Grotowski
(2007),
por
processos/práticas – fossem artísticos ou rituais – que ao contrário de liberar as
energias vitais, optavam por contê-las ou controlá-las ou mesmo tendiam a buscar a
paralisação dessas energias. Quando ele se referiu, por exemplo, ao hatha yoga e a seu
objetivo de ralentar respiração, ejaculação e pensamento, falava justamente dessa
contenção das energias vitais. Para Grotowski, podia se extinguir, nesse caminho
artificial, a 'comunhão' e a 'existência em relação ao outro homem', fatores
determinantes para a organicidade (GROTOWSKI, 2007, [1970], p. 200).
Na organicidade, não operava um desapegar-se em relação ao corpo, em relação
ao outro, em relação ao mundo. Ao contrário, o organismo era em-comum, participante
da anima mundi.
Assim, quando Grotowski contrapôs organicidade e artificialidade, ele não estava
se referindo ao seu antigo binômio estrutura/espontaneidade, como muitos ainda
preferem interpretar. Ele afirmava haver estrutura e vida – embora de maneira bastante
diferente – nas duas linhas de investigação. Quando dizia ter optado pela linha
orgânica, Grotowski afirmava que havia optado por trabalhar sobre ou a partir do que
chamou dos motores do homem, sobre as forças vitais, sobre e a partir da aceitação do
encarnado. Grotowski dizia que trabalhar nesse território tinha a ver com não querer
“separar-se das contradições”, ou “deter ou aniquilar uma parte da nossa natureza”
(GROTOWSKI, 1970, [1968], p. 229).
384
De fato, quando Grotowski falava em organicidade, falava principalmente de um
fluxo de impulsos/intenções psicofísicas que não é interrompido por um mental
controlador ou manipulador. Grotowski utilizou algumas metáforas para falar desse
fluxo: um cavalo que pode cavalgar tranquilamente e no qual o cavalheiro percebe o
fluxo da cavalgada ajustando-a delicadamente quando necessário, ou ainda de uma
bicicleta na qual não se colocou um bastão de madeira na roda (os possíveis 'bastões'
sendo vistos como bloqueios psicofísicos ao fluxo orgânico).
O corpo visto através da lente da organicidade ou da consciência orgânica
ganhava em positividade. A 'descoberta' da organicidade trouxe a percepção de que, em
um certo grau de plenitude da ação, aquilo que é considerado mais instintivo e o que é
mais consciente não existem como forças separadas: o ato era fruto da consciência
orgânica. Assim, um doer subserviente às forças instintivas, não era, necessariamente,
um doer submerso no caos. Naquela subserviência à organicidade, havia liberdade,
libertação da desconfiança no corpo, no outro, e na Natureza.
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