Desejo do analista e a intervenção analítica

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Desejo do analista e a intervenção analítica
Desejo do analista e a intervenção analítica
“A função do escrito não constitui
então o catálogo, mas a via mesma da estrada de
ferro. E o objeto (a) , tal como o escrevo, ele é o
trilho por onde chega ao mais-gozar o de que se
habita, mesmo se abriga a demanda a
interpretar.” 1
Daniela Goulart Pestana
O ensaio que segue procura examinar se a operacionalização da cura pode dizer da
posição do analista, ou seja, o que está em jogo é se o desejo do analista tem relação com a
interpretação a ele vinculada. E, como o desejo opera na direção da cura.
A argumentação que o texto procura sustentar, ao longo da discussão, é que o lugar
do analista instaura uma determinada posição que lhe permite conduzir a cura orientando
os vetores: desejo do analista e ao mesmo tempo, fornecendo uma direção para o
tratamento.
Freud, em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise 1912 e, Sobre o
início do tratamento 1913, traz elementos importantes à procura de uma definição sobre
quais seriam as condições necessárias para a análise do adulto neurótico.
O analista dedica-se a criar as condições, para que um determinado sujeito possa
realizar a sua análise.
Segundo ele, a posição do analista é a de sustentar a lógica do inconsciente, a forma
como o analista instaura o discurso analítico, é a questão a perseguir. Afirma contundente
que a posição do analista é que faz vigorar o discurso do inconsciente. Portanto, como
abrir a via do inconsciente é o que está em pauta.
Ao analisar suas recomendações, percebemos que a ênfase recai sobre manter a
atenção uniformemente suspensa, isso significa suspender o que é da consciência, fazendo
vigorar a memória inconsciente. O analista implicado aí, conduz a interpretação analítica a
uma tradução. Nos diz que é possível traduzir esse texto para uma outra lógica, a lógica do
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LACAN, J. O Seminário, livro 11 - os quatro conceitos fundamentais da psicanálise - , p. 265.
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inconsciente. Fazer vigorar essa outra cena só é possível com a suspensão das certezas,
verdades, que a lógica da consciência teima fazer calar.
Segundo Eduardo Vidal:
“O inconsciente constitui um saber, só que é um saber insabido pelo sujeito, do
qual, ele é obrigatoriamente responsável. Freud não desresponsabiliza o sujeito habitado
pelo inconsciente, podendo enunciar assim sua posição: “não sabes porque ages, pois
desconheces teu desejo e, no entanto, és responsável por isso que não sabes”.2
Em nossa prática clinica, estamos constantemente nos defrontando com esse limite
tênue entre reeducação, ou possibilidade de operar pelo eixo simbólico. Trabalhar nesse
entre dois, é o grande desafio, cujo desejo do analista é vetor.
Freud nos adverte de que o analista deve manter-se no deciframento do
inconsciente, pois o gozo só se subtrai na repetição significante. O gozo não se subtrai com
a reeducação. Fazer vigorar a lógica do inconsciente é acionar um trabalho, que nomeia de
Durcharbeitung.
Se, é a posição do analista que faz vigorar a lógica do inconsciente, possibilitando
a emergência do sujeito, como se manter nessa via, sem cair na reeducação ou embrenharse pela vertente imaginária, que constitui um dos grandes equívocos dos analistas, tirando
da rota do inconsciente. Portanto, o fio condutor do trabalho é pensar o lugar-função do
analista, tentando localizar a justa unidade de medida ética que orienta o ato analítico.
A questão é: como o analista intervém? Lacan referindo-se a peça de Guillaume
Apollinaire, “As mamas de Tirésias”, sinaliza que é preciso que o analista tenha mamas.
Isto não quer dizer que lhes dê de mamar diretamente, nem que adivinhe o futuro dos
pacientes. Cabe ao analista a tarefa de conduzir ao caminho do desejo, de modo responsável
e ético, que “não se recuse a depor se, no tocante ao que acontece na análise, for chamado
a comparecer perante um tribunal de justiça para responder por seu sujeito.”3
Tirésias considerado o mais célebre dos adivinhos das histórias míticas, foi ele que
revelou o parricídio e o incesto do Édipo.
No Seminário 11, Lacan diz:
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3
VIDAL. E. “ O inconsciente de Freud a Lacan.”, p 42. In Revista Letra Freudiana – Desejo do Analista.
Iidem, O Seminário , livro 10 – “ A angustia”, p.157.
2
“O analista, não basta que ele suporte a função de Tirésias. É preciso ainda, como
diz Apollinaire, que ele tenha mamas.Quero dizer que a operação e a manobra da
transferência devem ser regradas de maneira que se mantenha a distância entre o ponto
desde onde o sujeito se vê amável , - e esse outro ponto em que o sujeito se vê causado
como falta por a, e onde a vem arrolhar a hiância que constitui a divisão inaugural do
sujeito.” 4
Lacan sustenta que a mola fundamental da operação analítica é a manutenção da
distância entre o Ideal e o objeto a. Quando o desejo do analista realiza essa operação, não
encarna o Ideal que o sujeito convoca para ser suporte de a. Desse modo, o lugar do analista
ao desempenhar a sua função é um lugar drenado, esvaziado pelo gozo. Cabe ao analista,
deixar aberta a hiância do desejo do Outro, operando com a perda, estará operando com o
desejo do Outro em causa.
O giro que se espera é fazer a interpretação analítica visar o a, ou seja, o vazio,
resto não simbolizável..
Analisando o texto de Paul Claudel em Oeuvres em Prose5: “A morte de Judas” e
“O ponto de vista de Poncio Pilatos”, constatamos que em ambos os textos, é questão
central, a interrogação a respeito da verdade. Ao extrair do texto a vertente que nos
interessa, para pensar a posição do analista, verificamos que na direção da cura, trata-se
de não lavar as mãos, sinalizando querer saber do Isso, e também não cabe dizer o que é
da ordem da verdade. Não lavar as mãos e, também, não dar de mamar é o que se encontra
em causa na busca de interlocução. O que é a verdade?
A verdade em Lacan é não toda, parte do eixo simbólico e se inscreve no sujeito
dividido. Não cabe ao analista decidir se é falso ou verdadeiro. A verdade tem a ver com a
impossibilidade e o real, enquanto impossível de atingi-lo.
Para Lacan o discurso constitui apenas um artefato, a verdade não pode ser dita
toda, porque não há verdade sem esquecimento. É por isso que a interpretação do analista
deve ser ambígua e enigmática, porque não existem verdades. O que há são semi-verdades.
No sintoma, o sujeito encontra-se preso à cadeia, paralisado. Uma análise levada a
termo, deve fazer aparecer o sujeito, ao final da operação analítica, quando se esgota a
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5
Ibidem, O Seminário , livro 11 – “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, p. 255.
VIDAL, E. Seminário – O tempo da experiência – notas aula.
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produção de saber em análise. Do sujeito esvaziado o que fica é um resto “que podemos
chamar de verdade” – verdade da divisão do sujeito do qual emerge a causa de seu desejo,
suportada pelo que resta do saber – em função de verdade.
Portanto, a construção do saber, enquanto uma necessidade de estrutura, porta
fragmentos de verdade e tem a função de estabelecer um texto onde há algo impossível a
ser dito. Trata-se do analista criar bem aí, onde há algo que não se pode dizer, um
significante S1, uma saída, uma escapadela da reta, um atalho, por meio de um significante
que foge à cadeia significante já determinada. Sendo a semântica a ordem da oportunidade,
é a escansão do discurso que vai fazer a verdade aparecer.
Lacan, já no Seminário 1 comenta sobre os três registros:
“Sentimo-nos sempre horrivelmente atravancados porque distinguimos mal
imaginário, simbólico e real”.6
“Atravancados” é o significante utilizado por Lacan para falar desse mau encontro
com o desejo do Outro e com o real do sexo. O sexual está fundado nesta impossibilidade
interna. Imaginário, simbólico e real enodados, implica em uma amarração dos registros,
arranjo que possibilita um certo equilíbrio entre os três termos. Cabe ao analista sustentar
um discurso marcado pela impossibilidade, cujo núcleo é o real. O discurso é do real,
perpassado pelo simbólico. Fazer desse real o guia, é a nossa lição de casa.
Segundo Eduardo Vidal:
“O fato de Freud ter enunciado que governar, educar e curar são três tarefas
impossíveis, força o analista a ter que fazer, no seu ato, a prova do real que o impossível lhe
impõe. Sem essa prova, o impossível é uma etiqueta que funciona como álibi para a
impotência. A prova do real se faz em função do passo que o ato analítico, sem reclamar
nenhum privilégio, avança.”7
Como fazer desse impossível, algo que possa se escrever? Não se trata de fazer do
impossível à impotência, trata-se de uma ultrapassagem, é somente por uma forçagem que
isso se dá. Segundo Lacan, é a confiança no real que faz o analista operar sob uma outra
lógica, podemos dizer que é do real que o analista tira sua confiança, para que algo desse
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LACAN, J. O Seminário, livro 1 “os escritos técnicos de Freud”, p. 104.
VIDAL, E. “O dito do inconsciente e os discursos”, p. 15. In: Revista Letra Freudiana – A psicanálise e os
discursos.
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impossível se escreva. A confiança no real visa a promover o efeito de sujeito, tendo como
sustentação o discurso da impossibilidade.
Sendo assim, o lugar do analista é o de trabalhar nessa tensão¸ entendida como uma
justa unidade de medida ética, por onde há sustentação ao trabalho, entre real e fantasma, o
analista, por uma forçagem, é convocado ao trabalho, função que opera pontualmente.
Portanto, a condição de paciência, relacionada a uma posição de fé no inconsciente
é o que livra o sujeito de sua miséria neurótica. Como o analista vai se posicionar como
suporte dessa travessia com o Real no comando, é o que está na pauta do dia.
Referências Bibliográficas
APOLLINAIRE, G. “As Mamas de Tirésias”, poema.
FREUD, S. “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (1912).
Obras completas vol. XXII. Rio de Janeiro. Imago Ed.
FREUD, S. “Sobre o início do tratamento”, (1913). Obras Completas, vol.XXIII
Rio de Janeiro. Imago Ed.
HANNS, Luiz Alberto. ”Dicionário Comentado do Alemão de Freud.”
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.
LACAN, J. O Seminário , livro 1 – os escritos técnicos de Freud.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
________ O Seminário , livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.
________ O Seminário, livro 10 – a angústia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2005.
_________ O Seminário - o ato psicanalítico, seminário inédito.
________ O Seminário, livro 16 - De um Outro ao outro. Rio de Janeiro.
Jorge Zahar Editor, 2008.
Revista Escola Letra Freudiana - Desejo do analista. Ano XXII , n. 30/31, 2003.
Revista Escola Letra Freudiana – A psicanálise e os discursos. Ano XXIII, n. 34/35 , 2004.
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VIDAL, Eduardo – Seminário, 2008 - O tempo da experiência - (notas caderno, aula).
Texto Paul Claudel, Oeuvres em prose: “A morte de Judas” e “O ponto de vista de Poncio
Pilatos”. Bibliothèque de la Plêiade.
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