Cadernos Nietzsche 29

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Cadernos Nietzsche 29
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São Paulo – 2011
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1413-7755
ISSNISSN
1313-7755
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cadernos
Nietzsche
no 29 – São Paulo – 2011
ISSN 1313-7755
Editor/Publisher
GEN – Grupo de Estudos Nietzsche
Editor Responsável/Editor-in-Chief
Ivo da Silva Júnior (Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, Brasil)
Editora Adjunta/Associated Editor
Scarlett Marton (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil)
Conselho Editorial/Editorial Advisors
Antonio Marques (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), Diego Sánchez Meca (Universidade
de Madri – UNED, Espanha), Ernildo Stein (Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Brasil), Germán Meléndez (Universidade Nacional da Colômbia, Colômbia),
Giuliano Campioni (Universidade de Pisa, Itália), José Jara (Universiade de Valparaiso, Chile),
Luis Enrique de Santiago Guervós (Universidade de Málaga, Espanha, Mónica B. Cragnolini
(Universidade de Buenos Aires, Argentina), Patrick Wotling (Universidade de Reims, França),
Paulo Eduardo Arantes (Universidade de São Paulo, Brasil), Rubens Rodrigues Torres Filho
(Universidade de São Paulo, Brasil).
Comissão Editorial/Associate Editors
André Luís Mota Itaparica (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cruz das Almas,
Bahia, Brasil), André Fávero (Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil,
discente), Clademir Luís Araldi (Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil), Eduardo
Nasser (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, discente), João Evangelista Tude
de Mero (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, discente) Luís de Xavier Rubira
(Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil), Márcia Oliveira de Rezende (Universidade
de São Paulo, São Paulo, Brasil, discente) Márcio José Silveira Lima (Universidade Federal
da Bahia, Barreira, Bahia, Brasil), Vânia Dutra de Azeredo (Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, Campinas, Brasil), Wilson Frezzatti Júnior (Universidade do Oeste do Paraná,
Toledo, Paraná, Brasil).
Revisor/Reviser
Vinicius de Andrade
Endereço para correspondência/Editorial Offices
Cadernos Nietzsche
[email protected]
www.cadernosnietzsche.unifesp.br
Cadernos Nietzsche é uma publicação do
Cadernos Nietzsche is a publication of the
Composição do miolo/Grafic design & productions: Paula Casarini
Foto da capa/Front cover: C.D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818
1.000 exemplares/1.000 copies
Fundados em 1996 por Scarlett Marton, os Cadernos Nietzsche
são lançados desde então regularmente nos meses de maio e setembro. E a partir da edição de 2010, a revista passou a receber também
versão eletrônica (www.cadernosnietzsche.unifesp.br).
Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, os Cadernos
Nietzsche contam difundir trabalhos de especialistas estrangeiros e
brasileiros, dos mais experientes a doutorandos ou mestrandos.
Espaço aberto para o confronto de interpretações, os Cadernos
Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as
ideias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos
que se consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de
sua obra, estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns
temas com os de outros autores, textos que se detêm na análise de
problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos
que se empenham em avaliar enquanto um todo a atualidade do
pensamento nietzschiano.
Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os
Cadernos Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.
Founded in 1996 by Scarlett Marton, Cadernos Nietzsche
(www.cadernosnietzsche.unifesp.br) is published twice yearly –
every May and September. Its purpose is to provide a much needed
forum in a professional Brazilian context for contemporary readings
of Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to
publishing translations of contemporary European and American
scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’s philosophy.
Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche/Study Group
Nietzsche, Cadernos Nietzsche aims at the highest analytical level
of interpretation. It has a current circulation of about 1.000 copies
and is actively engaged in expanding its base, especially to university libraries. And it has been sent free of charge to the Brasilian
departments of philosophy, foreigner libraries and research instituts,
in order to promote the discussion on philosophical subjects and
particularly on Nietzsche’s thought.
Sumário
Editorial
9
Dossiê “Nietzsche e o naturalismo”
A psicologia moral minimalista
de Nietzsche 15
Bernard Williams
O naturalismo de Nietzsche 35
Richard Schacht
O naturalismo de Nietzsche
reconsiderado
77
Brian Leiter
Nietzsche e Hume: naturalismo
e explicação 127
Peter Kail
Aspectos transcendentais, compromissos
ontológicos e elementos naturalistas no
pensamento de Nietzsche
163
Béatrice Han-Pile
Do idealismo transcendental ao
naturalismo: um salto ontológico
no tempo a partir de uma
fenomenologia da representação William Mattioli
221
Naturalismo descritivo e ficção
normativa: a questão dos valores
sob a perspectiva do espírito livre
nietzschiano 271
Oscar Augusto Rocha Santos
Ciência como continuação da arte
em Humano, demasiado humano
293
Alice Medrado
“A almejada assimilação do
materialismo”: Nietzsche e o
debate naturalista na filosofia alemã
da segunda metade do século XIX 309
Rogério Lopes
*
As abordagens de Nietzsche acerca
da epistemologia e da ética kantianas 353
Tom Bailey
História e memória como crença no
futuro: esquecimento e superação do
niilismo em Nietzsche
395
Danilo Augusto Santos Melo
Nietzsche e Sartre:
bárbaros da modernidade
411
Marcelo S. Norberto
Instrução para os autores
431
Convenção para a citação
das obras de Nietzsche
435
Contents
Editorial
Dossier “Nietzsche and naturalism”
9
Nietzsche’s minimalist moral
psychology 15
Bernard Williams
Nietzsche’s naturalism
35
Richard Schacht
Nietzsche’s naturalism reconsidered
77
Brian Leiter
Nietzsche and Hume : naturalism and
explanation127
Peter Kail
Transcendental aspects, ontological
commitments and naturalistic elements
in Nietzsche’s thought
163
Béatrice Han-Pile
From transcendental idealism
to naturalism: an ontological leap
into time based in a phenomenology
of representation William Mattioli
221
Descriptive naturalism and normative
fiction: the question of values under
Nietzschean free spirit´s perspective 271
Oscar Augusto Rocha Santos
Science as a continuation of art
in Human, All Too Human
293
Alice Medrado
“The desired assimilation of
materialism”: Nietzsche and the
naturalist debate in the German
philosophy of the second half
of 19th century
309
Rogério Lopes
*
Nietzsche’s Engagements with
Kantian Epistemology and Ethics
353
Tom Bailey
History and memory as belief in the
future: forgetfulness and overcoming
of nihilism in Nietzsche
395
Danilo Augusto Santos Melo
Nietzsche and Sartre: the barbarians
of modernity
411
Marcelo S. Norberto
Notes for contributors
439
Convention for citation
of Nietzsche’s Works
443
Editorial
Os Cadernos Nietzsche 29 não teriam sido possível sem a colaboração
de Rogério Lopes. Da concepção à revisão técnica, passando pelo
contato com muitos dos autores e editoras que cederam os direitos autorais para este volume dos Cadernos Nietzsche, seu trabalho – imenso –
foi fundamental. Fica aqui então registrado o nosso agradecimento
– e certamente o do público brasileiro interessado pelo pensamento de
Nietzsche – por este volume.
Ivo da S ilva Júnior
Editor-responsável
*
Os Cadernos Nietzsche 29 trazem um dossiê sobre “Nietzsche e
o naturalismo”. Visa assim a contribuir com a discussão de um rol de
questões em torno de leituras da filosofia nietzschiana ainda pouco
debatidas no Brasil.
Se não há dúvidas sobre a importância do naturalismo na constituição da filosofia de Nietzsche, muitas são as questões sobre a maneira pela qual o pensamento naturalista impactou o nietzschiano. Neste
número 29 da revista, tem-se por intenção confrontar interpretações de
importantes comentadores de Nietzsche, da Nietzsche-Forschung internacional e da brasileira, sobre este tema.
Este número dos Cadernos Nietzsche traz como primeiro artigo
um texto clássico de Bernard Williams, sobre a definição de uma psicologia moral “naturalista”. Segue-se a ele um texto inédito de Richard
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9
Schacht, em que o autor, ao investigar o sentido do naturalismo no pensamento de Nietzsche, afasta qualquer traço cientificista do naturalismo
nietzschiano. O trabalho seguinte, de Brian Leiter, estabelece um diálogo com outros textos com a mesma temática, reafirmando suas posições
sobre o naturalismo metodológico em Nietzsche. O texto de Peter Kail,
por sua vez, discute o estatuto da explicação em Nietzsche e Hume,
reafirmando contra a leitura cética que em ambos os autores o que está
em jogo são explicações causais. Béatrice Han-Pile traz um trabalho
que procura mostrar que Nietzsche ultrapassa posições naturalistas tout
court e transcendentalistas para criar um naturalismo transcendental.
Este dossiê prossegue com as contribuições da pesquisa brasileira para
este debate sobre Nietzsche e naturalismo, que ocorrem sobretudo entre os integrantes do Grupo Nietzsche da UFMG, coordenado pelo Prof.
Rogério Lopes. O primeiro artigo é de William Mattioli, em que o autor
procura mostrar haver uma ontologia em Nietzsche a partir de uma reinterpretação da noção de tempo na obra nietzschiana. O trabalho de Oscar
Augusto Rocha Santos, na sequência, discute a aproximação entre um
naturalismo descritivo e a ficção normativa. Alice Medrado, por sua vez,
analisa o papel da arte e da ciência em Humano, demasiado humano.
Este dossiê termina com um artigo de Rogério Lopes, que apresenta a
maneira pela qual Nietzsche pensa a relação entre filosofia e ciências
empíricas, em termos de uma concepção naturalista liberal, a partir do
debate naturalista na filosofia alemã hodierna a Nietzsche.
Dois textos programados para este número não puderam ser publicados por falta de acordo – não evidentemente com os autores – mas com
as editoras que os publicaram inicialmente. Um deles, de Maudemarie
Clark e David Dudrick, discutiria a presença de dois tipos de naturalismo
presentes em Para além de bem e mal, sendo que um deles Nietzsche
aceitaria e outro em que criticaria. O outro, de Christopher Janaway debateria diretamente com Brian Leiter, criticando o “naturalismo metodológico” que este encontraria em Nietzsche.
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Os Cadernos Nietzsche 29 esperam assim possibilitar que este dossiê sobre “Nietzsche e o naturalismo” abra novas perspectivas de pesquisa entre nós a partir desse tema que, como já dissemos, ainda não está
muito presente nas leituras brasileiras.
Para este número, muitos foram os que trabalharam para a sua produção. Há que ressaltar o trabalho de tradução de Alice Parrela Medrado
e de Daniel Filipe Carvalho dos textos de Maudemarie Clark e David
Dudrick e de Christopher Janaway, respectivamente, que, como dissemos
acima, não puderam ser publicados neste número. A todos que colaboraram, de uma forma ou de outra, o nosso agradecimento.
Ivo da S ilva J únior
Editor-responsável
Rogério Lopes
Colaborador dos
Cadernos Nietzsche 29
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Dossiê “Nietzsche e o naturalismo”
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
A psicologia moral
minimalista de
Nietzsche*
Bernard Williams**
Resumo: Neste artigo, Bernard Williams aponta as dificuldades de
definição do que seria uma psicologia moral “naturalista”. Segundo o
autor, as tentativas de Nietzsche no sentido de deflacionar o vocabulário
moral usado na explicação de fenômenos psicológicos morais com o
auxílio de informações provenientes da observação de domínios não
morais da experiência humana podem ser mais bem entendidas como um
tipo de “realismo”. Williams, então, aplica esta chave de leitura ao exame
nietzschiano do problema da “vontade”, ao qual se liga uma concepção
peculiar das condições para a atribuição de responsabilidade e censura.
Palavras-chave: psicologia moral – realismo – vontade - censura
* Este artigo apareceu pela primeira vez em European Journal of Philosophy (1, 1: p.414, abril de 1993), tendo sido reeditado na coletânea organizada por Richard Schacht
Nietzsche, Genealogy, Morality: Essays on Nietzsche’s Genealogy of Morals (Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1994, p. 237-247), assim como na
coletânea de artigos do próprio autor (Making Sense of Humanity and Other Philosophical Papers, Cambridge: Cambridge University Press, 1995) e, mais recentemente,
numa coletânea de textos do autor editada por Myles Burnyeat (The Sense of the Past.
Essays in the History of Philosophy. Princenton: Princenton University Press, 2006:
pp. 299-310). Os direitos para essa tradução brasileira foram adquiridos de John
Wiley and Sons Ltda. Tradução de Alice Parrela Medrado.
** Foi Professor Catedrático de Filosofia Moral em Oxford, Oxford, Inglaterra (1929-2003).
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Williams, B.
Nietzsche, Wittgenstein e a extração de teorias
Nietzsche não é uma fonte de teorias filosóficas. De certa forma
a questão é óbvia, mas pode ser menos óbvia sua profundidade.
A este respeito, há um contraste com Wittgenstein. Wittgenstein
disse repetidamente, e não apenas em sua obra tardia, que ele não
devia ser lido como se estivesse propondo uma teoria filosófica,
porque não podia haver algo como uma teoria filosófica. Mas sua
obra estava menos preparada que a de Nietzsche para manter essa
posição postumamente. Há mais de uma razão para isto1. Wittgenstein pensava que sua obra demandava não apenas o fim da teoria
filosófica, mas o fim da filosofia – algo associado, para ele, com o
fim de suas próprias demandas por fazer filosofia. Essa associação, do fim da teoria filosófica com o fim da filosofia, não nega a
ideia de que se houver filosofia, ela há de tomar a forma da teoria;
na verdade, ela reforça prontamente essa ideia. Além disso, os tópicos sobre os quais Wittgenstein queria que não houvesse mais
filosofia – os tópicos, para ele, próprios à filosofia – eram tópicos
tradicionais da filosofia acadêmica. Não surpreende que aqueles
que dão continuidade ao trabalho teórico sobre esses tópicos ainda
procurem por elementos na própria obra de Wittgenstein a partir
dos quais esse trabalho pode ser desenvolvido.
Muitos que assim procedem carecem de uma adequada ironia
em relação ao que eles fazem com os textos de Wittgenstein, mas
sua atitude não é uma traição em nenhum sentido relevante: é menos traição, na verdade, que a atitude daqueles que pensam que
Wittgenstein de fato conduziu a teoria filosófica sobre aqueles tópicos a um fim, e que mantêm por sua vez uma atividade acadêmica
que consiste em reiterar essa mesma coisa. Dentre os que pensam
1 Mesmo se não levamos em conta o fato de que apenas uma obra de Nietzsche (A
Vontade de Potência) não é uma obra de Nietzsche, enquanto as obras tardias de
Wittgenstein, se consideradas como livros completos, são suas de forma muito incerta.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
que ainda há espaço para uma teoria filosófica sobre aqueles tópicos, e que pensam que Wittgenstein contribuiu para tanto, alguém
deve a Wittgenstein uma explicação de por que ele deixou de ver
as coisas desse modo. Mas tal explicação poderia ser dada, e nós
poderíamos vir a entender que, se Wittgenstein não podia mais enxergar a edificação de uma disciplina intelectual, sua cegueira não
era aquela de Sansão, mas antes aquela de Édipo em Colona, cujo
desaparecimento deixou para trás águas curativas.
Os textos póstumos de Wittgenstein, apesar de não serem
destinados a expressar ou encorajar a teoria, na verdade não colocam obstáculos à sua extração. Com Nietzsche, ao contrário, a
resistência a dar prosseguimento à filosofia por meios ordinários é
arquitetada no texto, que dispõe de armadilhas não só contra a reconstituição de teorias a partir dele como, em muitos casos, contra
qualquer exegese sistemática que o assimile à teoria. Sua escrita
o faz em parte por sua escolha de temas, em parte por seu estilo e
pelas atitudes que expressa. Esses aspectos do texto nietzschiano
oferecem resistência contra uma mera exegese de Nietzsche, ou
contra a incorporação de Nietzsche à história da filosofia enquanto
fonte de teorias. Alguns pensam que esses aspectos depõem contra
a incorporação de Nietzsche à filosofia tomada como um empreendimento acadêmico de modo geral, mas se com isso se pretende
sugerir que Nietzsche não tem importância para a filosofia, isso
deve estar errado. Ao insistir na importância de Nietzsche para a
filosofia, eu me refiro a algo de que não podemos nos esquivar através de uma definição de “filosofia”. Em particular, algo de que não
podemos nos esquivar apelando para algum contraste entre filosofia “analítica” e “continental”. Essa classificação sempre envolveu
um amálgama um tanto bizarro entre o metodológico e o topográfico, como se alguém classificasse carros entre os que têm direção
dianteira e aqueles que são feitos no Japão; mas além deste e outros
absurdos da distinção, há a questão mais imediata de que nenhuma
classificação desse tipo pode evitar as persistentes continuidades
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Williams, B.
entre a obra de Nietzsche e a atividade que qualquer um chama de
filosofia. Ao menos em filosofia moral, ignorar tais continuidades
não é simplesmente adotar um estilo, mas furtar-se a um problema.
Eu concordo com uma observação feita por Michel Foucault em
uma entrevista tardia, de que não há um único nietzscheanismo, e
de que a questão correta a ser colocada é “a que uso sério Nietzsche pode servir?”. Um uso sério é ajudar-nos com problemas que se
impõem a qualquer filosofia séria (à filosofia moral em particular),
que não se furte às suas questões mais básicas. Nietzsche não terá
serventia se o tomarmos por alguém que nos impõe algum método.
Eu já disse que acho seus textos firmemente protegidos contra exegese por extração de teoria; mas disso não se segue, e é importante
que não se siga, que quando tentamos nos servir dele para um uso
sério nossa filosofia não deva conter teoria. A razão disso é que as
persistentes continuidades entre as questões dele e a nossa atividade movem-se em ambas as direções. Algumas das inquietações que o ocupam poderão ser mais bem enfrentadas – quer dizer,
enfrentadas de um modo que nos coloque em condições melhores
para extrair algo delas – através de estilos de pensamento bem diversos e, eventualmente, através de alguma teoria de procedência
distinta; certamente não por meio de encantamentos teóricos ou
mesmo antiteóricos supostamente retomados do próprio Nietzsche.
Naturalismo e realismo em psicologia moral
Há certo grau de consenso de que precisamos de uma psicologia moral “naturalista”, e o que se tem em mente com isso é que
nossa visão das capacidades morais deve ser compatível com nossa
compreensão do ser humano enquanto parte da natureza, ou até
quem sabe no espírito dessa mesma compreensão. Uma exigência
expressa em tais termos provavelmente é aceita pela maioria dos
filósofos, com exceção de alguns anciens combattants das guerras
do livre arbítrio. O problema, e sem dúvida também a condição de
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
possibilidade desse feliz e amplo consenso, contudo, é que ninguém
sabe o que ele envolve. Formulações de posição tendem a excluir
coisas demais ou de menos. A posição exclui coisas demais se ela
tenta, redutivamente, ignorar cultura e convenção; isso é equivocado mesmo em bases científicas, no sentido de que viver sob a cultura é uma parte básica da etologia dessa espécie2. Ela exclui coisas
de menos se inclui muitas coisas que têm sido parte da autoimagem
da moralidade, como certas concepções da cognição moral; uma teoria pouco contribuirá para a causa do naturalismo, nesse sentido, se
aceitar enquanto característica básica da natureza humana a capacidade de intuir a estrutura da realidade moral. É tentador dizer que
uma psicologia moral naturalista explica capacidades morais nos
termos de estruturas psicológicas que não são distintamente morais.
Mas tanta coisa depende do que aqui contaria como explicação, e
do que faz com que um elemento psicológico seja distintamente moral, que permanece sistematicamente obscuro se a fórmula deve ser
tomada como uma fórmula insipidamente conciliadora, como ferozmente reducionista ou como algo entre uma coisa e outra.
A dificuldade é sistemática. Se uma psicologia moral “naturalista” tem que caracterizar a atividade moral em um vocabulário
que possa ser igualmente aplicado a todo o resto da natureza, então
ela está comprometida com um reducionismo fisicalista que conduz
claramente a um beco sem saída. Se o caso é descrever a atividade
moral em termos que podem ser aplicados a outros domínios, mas
não a todos os domínios, não temos muita ideia de quais termos
devem ser esses, ou quão “especial” admite-se que seja a atividade
moral, em consonância com o naturalismo. Se estamos autorizados
a descrever a atividade moral em quaisquer termos que pareçam
suscitados por ela, então o naturalismo não exclui coisa alguma,
e voltamos ao começo. O problema é que o próprio termo “naturalismo” invoca uma abordagem verticalizada, na qual se supõe que
2 Eu discuto esse ponto mais pormenorizadamente em “Making sense of Humanity”.
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Williams, B.
sabemos de antemão quais termos são necessários para descrever
qualquer fenômeno “natural”, e somos convidados a aplicar tais
termos à atividade moral. Mas nós não sabemos quais termos são
esses, a menos que eles sejam (inutilmente) os termos da física, e
isso leva à dificuldade.
Em relação a esse impasse podemos encontrar em Nietzsche
tanto uma atitude geral quanto algumas sugestões particulares que
podem ser de grande ajuda3. Eu direi algo adiante sobre o que considero que sejam algumas de suas sugestões. A atitude geral tem dois
aspectos relevantes que devem ser considerados conjuntamente.
Em primeiro lugar, à questão “em que medida nossas explicações
da atividade distintamente moral deveriam acrescentar algo às nossas explicações de outras atividades humanas”, a resposta seria:
“na menor medida possível”, e quanto mais uma certa compreensão
moral dos seres humanos parece recorrer a elementos que servem
especialmente aos propósitos da moralidade – certas concepções da
vontade, por exemplo – tanto mais razão temos para nos perguntar
se não haveria uma explicação mais esclarecedora que se apoie apenas em concepções que já usamos alhures, de um modo ou de outro.
Essa exigência de minimalismo na psicologia moral não é, contudo,
apenas uma aplicação de um desejo occamista por economia, e
esse é o segundo aspecto da atitude geral nietzschiana. Sem alguma
orientação sobre os materiais que deveríamos usar ao propor nossas explanações econômicas, tal atitude simplesmente recairá nas
dificuldades que já encontramos. A abordagem de Nietzsche consiste em identificar um excesso de conteúdo moral na psicologia,
apelando primeiro àquilo que um intérprete experiente, honesto,
sutil, não otimista, pode entender do comportamento humano em
3 Ficará óbvio que na presente discussão o interesse por Nietzsche está situado muito
mais em seus esforços mais “céticos”, do que (por exemplo) em suas ideias de autossuperação. Isso não significa negar que elas também possam ter seus usos. Em todo
caso, não há esperança de obter algo de suas aspirações redentoras sem contrapô-las
às suas explicações da moralidade convencional.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
outras áreas [não morais]. Tal intérprete pode ser dito – usando uma
expressão descaradamente avaliativa – “realista”, e nós podemos
dizer que aquilo a que essa abordagem nos conduz é a uma psicologia moral realista, ao invés de naturalista. O que está em questão
não é a aplicação de um programa científico predefinido, mas antes
uma interpretação informada de algumas experiências e atividades
humanas em relação com outras.
Pode-se, de fato, dizer que tal abordagem envolve, na expressão bem conhecida de Paul Ricoeur, uma “hermenêutica da suspeita”. Enquanto tal, ela não pode compelir demonstrativamente,
e não tenta fazê-lo. Ela convida a uma perspectiva, e em alguma
medida a uma tradição (marcada por figuras como Tucídides, por
exemplo, ou Stendhal, ou os psicólogos da moral britânicos descritos por Nietzsche como “velhos sapos”) em que aquilo que parece
demandar mais material moral faz sentido em termos daquilo que
demanda menos material moral. Contudo, o empreendimento pode
funcionar apenas na medida em que a suspeita que ele implica não
seja uma suspeita de tudo. É típico daqueles que escrevem sobre
Nietzsche que eles prestem mais atenção às suas afirmações, ou ao
que aparentemente são suas afirmações, de que todas as crenças
sobre a relação dos seres humanos com a realidade estão abertas
a suspeita, de que tudo é, por exemplo, uma interpretação. O que
quer que precise ser dito a esse nível [de generalidade], é igualmente importante [notar] que quando ele diz que não há fenômenos
morais, apenas interpretações morais (cf. JGB/BM 108, KSA 5.92),
uma observação específica sobre a moralidade está sendo feita. Isto
não quer dizer que devamos simplesmente esquecer, mesmo neste
contexto, as afirmações mais abrangentes. Precisamos obter uma
compreensão mais aprofundada sobre onde esses pontos de suspeita particular devem ser encontrados, e pode ser útil construir
por meio das afirmações mais gerais um caminho que nos permita
apreender as afirmações mais circunscritas. Isso é ainda mais verdadeiro quando se tem em mente que “afirmação”, se estamos falando de Nietzsche, raramente é a palavra certa. Ela é não apenas
cadernos Nietzche 29, 2011
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Williams, B.
muito fraca para algumas das coisas que ele diz e muito forte para
outras; nós podemos também com alguma utilidade nos lembrar (ou
talvez fingir) que mesmo quando ele soa insistente ou agudamente
expositivo, ele não está necessariamente nos dizendo algo, mas nos
incitando a perguntar algo.
No restante deste artigo, tentarei organizar algumas das sugestões de Nietzsche sobre um suposto fenômeno psicológico, o
da vontade. Eu deixarei de lado muitas coisas interessantes que
Nietzsche diz sobre esse conceito, em particular sobre sua história. Meu objetivo é ilustrar, através de um tratamento esquemático
desse exemplo central, a forma pela qual um método da suspeita –
a busca, pode-se quase dizer, por um culpado – pode nos ajudar a
alcançar uma psicologia moral reduzida e mais realista.
As ilusões do Eu
Falando seriamente, há boas razões para que toda dogmatização filosófica, porquanto solenes e definitivos tenham sido seus ares, tenha
sido, contudo, não mais que uma nobre infantilidade e tirania. E talvez o tempo se aproxime em que será reiteradamente compreendido
quão pouco bastava para fornecer a pedra de toque de edificações de
filósofos tão sublimes e incondicionais quanto aquelas que os dogmáticos têm construído até agora; qualquer velha superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, na forma da
superstição do sujeito e do ego, até hoje não deixa de causar danos),
talvez algum jogo de palavras, uma sedução da gramática, uma audaciosa generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, muito
humanos, demasiado humanos (JGB/BM, Prefácio, KSA 5.11-13)4.
4 A menção a Lichtenberg feita abaixo se encontra na seção 17 de Para além de bem e mal.
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cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
A observação geral que Nietzsche faz aqui (uma observação
compartilhada por Wittgenstein e também por J. L. Austin sobre a
extraordinária precariedade das teorias filosóficas) dirige-se a uma
ideia particular, de que o ego ou o sujeito é algum tipo de ficção.
Mais à frente no mesmo livro, Nietzsche segue Lichtenberg ao criticar o cogito enquanto produto de hábitos gramaticais. Em outra
obra, ele faz uma observação semelhante, mais especificamente
sobre a ação. Ele cita um cético: “Não sei o que faço. Não sei o
que devo fazer.” Você está certo, mas tenha certeza disto: você está
sendo feito [du wirst getan], a todo momento. A humanidade, em
todos os tempos, tomou erradamente a voz passiva por voz ativa: é
seu constante erro gramatical” (M/A 127, KSA 3.117)5.
Muitas ideias poderiam ser extraídas deste compósito, algumas delas pouco convidativas; por exemplo, que nós na verdade
nunca fazemos algo, que não há eventos que possam ser chamados de ações. De forma mais interessante, pode-se interpretar que
Nietzsche diz que a ação é uma categoria de interpretação útil, mas
paroquial ou dispensável; isso me parece não menos implausível,
mas alguns o aceitaram.6 Se as pessoas realizam ações, então elas
as realizam porque pensam ou percebem certas coisas, e isso é suficiente, ademais, para nos livrarmos de um epifenomenalismo tosco
5 NIETZSCHE, F. Daybreak. Trad. R. J. Hollingdale. Cambridge: Cambridge University
Press, 1982, 120 (KSA 3.115). A passagem sobre o nascer do sol, mencionada abaixo,
é também de Aurora 124 (KSA 3.1160).
6 Por exemplo, Frithjof Bergmann, “Nietzsche´s critique of morality”. Bergmann inclui
“agência individual” (junto a itens como individualidade, liberdade e culpa) na lista
de conceitos supostamente peculiares à nossa moralidade; ele acredita (equivocadamente, eu penso) estar seguindo Clifford Geertz na afirmação de que esse conceito
não era conhecido na Bali tradicional. Erros semelhantes foram cometidos em relação
à perspectiva da Grécia homérica: ver abaixo nota 10. A ideia de que a ação, em
nossa compreensão comum, é uma concepção dispensável e na verdade equivocada
é compartilhada por um tipo muito diferente de filosofia, o materialismo eliminativo;
neste caso por razões cientificistas.
cadernos Nietzche 29, 2011
23
Williams, B.
que pode ser encontrado em algumas das declarações de Nietzsche
– possivelmente na sua sugestão de que toda ação é semelhante a
querer que o sol nasça quando o sol está prestes a nascer.
As dúvidas de Nietzsche sobre a ação são entendidas com
maior proveito, eu sugiro, enquanto dúvidas referentes a uma interpretação substancialmente moral da ação, em termos de vontade, e
não à ideia mesma de alguém fazer algo. A crença na vontade envolve, para ele, duas ideias em particular: que a vontade parece ser
algo simples quando não é; e que o que parece ser simples também
parece ser um tipo peculiar e imperativo de causa. “Os filósofos
estão acostumados a falar da vontade como se fosse a coisa melhor
conhecida no mundo (...). Mas (...) querer me parece acima de tudo
algo complicado, algo que constitui uma unidade somente enquanto
palavra – e é precisamente nesta palavra que se esconde o preconceito popular que sobrepujou a cautela sempre inadequada dos
filósofos” (JGB/BM 19, KSA 5.31-2)( a seção inteira é relevante).
Ele prossegue explicando que o que se chama “querer” é um
complexo de sensações, pensamentos, e um afeto de comando. Ele
aponta as consequências de sermos ao mesmo tempo a parte que
comanda e a que obedece, e de nossa “desconsideração dessa dualidade”. “Uma vez que, na grande maioria dos casos só houve um
exercício da vontade quando se podia esperar o efeito do comando
– isto é, obediência; isto é, a ação – a aparência traduziu-se em
sensação, como se houvesse uma necessidade de efeito. Em suma,
aquele que quer acredita com razoável grau de certeza que vontade e ação sejam, de alguma forma, a mesma coisa; ele atribui
o sucesso, a execução do querer, à vontade ela mesma, e por isso
goza de um aumento da sensação de poder que acompanha todo
sucesso” (JGB/BM 19, KSA 5.31-2).
Qual é exatamente a ilusão que Nietzsche alega ter exposto
aqui? Não é a ideia de que uma certa experiência seja causa suficiente de uma ação. Ele de fato pensa que as experiências envolvidas no “querer” não revelam, e podem ocultar o complexo
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cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
cambiante de forças psicológicas e fisiológicas que jazem por detrás de qualquer ação, os constantes, desconhecidos movimentos
desejantes que fazem de nós, como ele diz, uma espécie de pólipo
(M/A 119, KSA 3.111-4). Mas não é que a experiência se coloque
como a causa. Antes, a experiência parece revelar um tipo diferente de causa, e sugere que a causa não se encontra em qualquer
evento ou situação – seja uma experiência minha ou não – mas em
algo a que me refiro como “Eu”. Tal causa parece se relacionar com
o resultado apenas no modo de prescrição, através de um imperativo; e uma vez que isso não está em relação com qualquer conjunto
causal de eventos, essa causa pode ser vista como produzindo seu
resultado ex nihilo.
É claro que qualquer teoria sensata da ação que conceda que
de fato haja ação, e que pensamentos não são meramente epifenomenais em relação à ação, terá que conceder que minha consciência de agir não é o mesmo que uma consciência de que um estado
meu causa um certo resultado. Isso se segue meramente da observação de que a consciência de primeira pessoa que se tem quando
envolvido em uma ação não pode, ao mesmo tempo, ser uma consciência de terceira pessoa acerca desse envolvimento ele mesmo.
Mas a consciência de primeira pessoa que um agente necessariamente tem não precisa por si mesma conduzir ao tipo de imagem que
Nietzsche ataca; a ação não envolve, necessariamente, essa compreensão de si mesma7. Essa imagem é uma imagem peculiar, particularmente associada com uma noção como a do “querer”, e quando ela
7 Tal aspecto é claramente exemplificado pelo tratamento conferido por alguns estudiosos à concepção homérica de ação; não tendo encontrado em Homero essa imagem
da ação, eles pensaram que os gregos arcaicos não tinham qualquer ideia de ação, ou
que tinham uma ideia imperfeita, por faltar a ela o conceito de vontade. Eu discuto
este e outros equívocos conceituais relacionados em Shame and Necessity: ver, em
particular, o capítulo 2.
cadernos Nietzche 29, 2011
25
Williams, B.
está presente, não se trata somente de uma teoria filosófica da ação,
mas ele pode acompanhar muitos de nossos pensamentos e reações
morais. Então, de onde ela vem e que função ela cumpre?
Parte da explicação do próprio Nietzsche deve ser encontrada
no curso de uma de suas passagens mais famosas:
Pois, do mesmo modo que a mente popular separa o corisco do clarão, e
toma o último por uma ação, pela operação de um sujeito chamado corisco, assim também a moralidade popular separa a força das expressões da
força, como se houvesse um substrato neutro por trás do homem forte, que
seria livre para expressar ou não sua força. Mas tal substrato não existe; não
há “ser” por trás de fazer, efetivar, vir-a-ser; o “agente” é meramente uma
ficção adicionada à ação – a ação é tudo. A mente popular de fato duplica
a ação, na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação:
põe o mesmo evento primeiro como causa e então uma segunda vez como
seu efeito (GM/GM I 13, KSA 5.278-81)8.
Há duas ideias úteis nessa descrição. Uma é que a imagem
que está sendo criticada envolve um tipo de duplicação. O sujeito
ou Eu que é a causa é ingenuamente apresentado como a causa
de uma ação. Se meu Eu-agente produz apenas um conjunto de
eventos, pode parecer que isso não seja suficiente para o meu envolvimento na ação: eu devo ser no máximo o “piloto no navio” a
que Descartes se refere. A duplicação da ação também se segue
da ideia de que o modo de causação é o do comando. Obediência
ao comando consiste numa ação; mas o próprio comandar já é uma
ação. O Eu pode agir (em um momento em vez de outro, agora ao
invés de antes) somente ao fazer algo – fazer aquilo que ele faz, ou
seja, querer; mas por mais de uma razão o que ele traz à tona dessa
8 NIETZSCHE, F. The Genealogy of Morals. Trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale.
Nova York, 1967 (GM/GM I 13, KSA 5.278-81).
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
forma parece ser, por si mesmo, uma ação. Ao transformar a ação
em algo que introduz um agente-causa, a descrição tem uma forte
tendência a produzir duas ações.
O segundo pensamento útil a ser retomado de Nietzsche é que
essa descrição de tal modo peculiar tem de ter um propósito, e que
esse propósito é um propósito moral.
O objeto da censura
O propósito da descrição pode ser interpretado a partir do modo
como ela associa duas ideias, que contribuem para sua incoerência
e a compõem conjuntamente. Uma ideia é de que há uma unidade
especial metafísica, uma ação real, diferente de tudo o mais que
possa ser individuado dentre os processos do mundo. A outra ideia
é de que isso se encontra numa relação imediata – algo como ser
um efeito ex nihilo – com algo de tipo bem diferente, mas também
único – uma pessoa, ou Eu, ou agente. Existe uma ideia que necessita de itens que se encontrem justamente numa tal relação: trata-se de certa concepção purificada da censura.
A censura precisa de uma ocasião – uma ação – e um objeto – a
pessoa que realizou a ação, e que vai da ação ao encontro da censura. Essa é sua natureza; alguém poderia dizer, sua forma conceitual. No mundo real, a censura não precisa dessas coisas na forma
pura e isolada sugerida pela descrição da vontade. Os gregos homéricos censuravam as pessoas por fazerem coisas, e o que quer
que entrasse exatamente nessa prática homérica da censura, não
era tudo isso. Por outro lado, aquela concepção da ocasião e do objeto será exigida por uma concepção muito purificada de censura,
uma concepção que aparentemente é exigida pela justiça moral. É
importante [notar] que a simples ideia de justa compensação não coloca essa exigência, nem toda e qualquer ideia de responsabilidade.
Se A foi lesado pela ação descuidada de B, B pode ser considerado responsável pela perda e razoavelmente obrigado a compensar
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Williams, B.
A, apesar de a perda de A não fazer parte daquilo que B quis.
Uma concentração muito pontual na vontade de B, assim como a
concepção inteiramente seletiva da censura que a acompanha, não
são exigências postas automaticamente pela responsabilidade ou pelas demandas por compensação próprias da justiça, mas por algo
mais específico.
Não é difícil encontrar uma explicação para a exigência mais
específica. Ela repousa na aparente exigência da justiça de que o
agente deveria ser censurado única e exclusivamente por aquilo
que estaria em seu poder. Aquilo que o agente causou (e pelo quê,
na ordem usual das coisas, ele pode ser instado a fornecer compensação) pode muito bem ser uma questão de sorte, mas aquilo
pelo que ele pode ser estritamente (no dizer dessas concepções,
“moralmente”) censurado não pode ser uma questão de sorte, e
deve depender de sua vontade num sentido estrito e isolável. É
dito de forma apropriada que aquilo que depende de sua vontade
é o que está estritamente em seu poder: é em relação com aquilo
que ele quer que o agente tem ele mesmo o sentimento de poder
na ação, sentimento ao qual Nietzsche se refere. Enquanto agentes,
e também enquanto censores no âmbito da justiça, nós temos um
interesse nessa imagem.
As necessidades, exigências, e sugestões do sistema da moralidade bastam para explicar a peculiar psicologia da vontade. Mas
há algo mais que precisa ser dito sobre as bases desse sistema ele
mesmo. É célebre a sugestão do próprio Nietzsche de que uma fonte
específica desse sistema deveria ser encontrada no sentimento de
ressentimento – um sentimento que tem ele mesmo uma origem histórica, embora Nietzsche não a localize de forma muito precisa. Eu
não irei abordar o aspecto histórico, mas penso que vale a pena propor uma breve especulação sobre a fenomenologia dessa concepção
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
seletiva da censura, que está para a “genealogia” de Nietzsche numa
relação próxima o bastante para que possa, quem sabe, contar como
uma versão dela9.
Se há uma vítima que se queixa de um dano, há um agente
que deve ser censurado e um ato desse agente que causou o dano.
A raiva da vítima transita do dano ao ato, [e do ato] ao agente; e
a compensação ou recompensa por parte do agente será um reconhecimento tanto do dano quanto do fato de que ele foi a causa do
dano. Suponhamos que o agente causa um dano à vítima, e o faz intencional e voluntariamente; onde “intencionalmente e voluntariamente” não deve invocar os mecanismos especiais da vontade, mas
significa tão somente que o agente sabia o que estava fazendo, quis
fazê-lo, e estava num estado mental normal quando o fez. Suponhamos que o agente não está disposto a oferecer compensação ou reparação, e que a vítima não tem poder para arrancar tal coisa dele.
Ao recusar reparação, o agente recusa-se a reconhecer a vítima ou
o dano que esta sofreu; é uma demonstração particularmente vívida
da impotência da vítima.
9 Uma genealogia nietzschiana combina de forma peculiar história, fenomenologia,
psicologia “realista” e interpretação conceitual de um modo tal que a filosofia analítica considera perturbadora. As histórias históricas, além disso, variam de forma
notável de um contexto para outro. Alguns dos procedimentos de Nietzsche devem
ser vistos especificamente à luz da Fenomenologia de Hegel, e de seu recorrente
assombro de que pudesse ter havido algo como o Cristianismo. Alguns [procedimentos de Nietzsche] são certamente menos úteis que outros. Mas a ideia básica de que
precisamos que tais elementos funcionem juntos é correta. Nós precisamos entender
quais partes de nosso esquema conceitual são culturalmente localizados, e em que
grau eles o são. Nós entendemos isso melhor quando entendemos um esquema humano concreto que difere do nosso em certos aspectos. Um meio muito importante para
situar tal esquema é procurá-lo na história, em particular na história de nosso próprio
esquema. Para entender esse outro esquema, e para entender por quê deveria haver
essa diferença entre outros povos e nós mesmos, precisamos entendê-lo como um
esquema humano; isto é, entender as diferenças em termos das similaridades, o que
exige o recurso à interpretação psicológica. Para dizê-lo de forma muito esquemática,
uma genealogia nietzschiana pode ser vista hoje como tendo como ponto de partida
Davidson acrescido de história.
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Williams, B.
Essas circunstâncias podem ocasionar, na vítima ou em alguém que a represente, uma fantasia muito especial de prevenção
retrospectiva. Enquanto vítima, tenho a fantasia de introduzir no
agente um reconhecimento de mim que tomaria o lugar do próprio ato que me prejudicou. Eu quero pensar que ele poderia ter
me reconhecido, que ele poderia ter sido impedido de me prejudicar. Mas a ideia não pode ser a de que eu, por uma via empírica
qualquer, poderia tê-lo impedido: aquela ideia representa apenas
um lamento de que não tenha sido isso o que de fato aconteceu e,
nessas circunstâncias, um lembrete da humilhação. A ideia tem
que ser, antes, de que eu, agora, possa mudar o agente, para que
ele passe do não reconhecimento ao reconhecimento de mim. Essa
mudança mágica, fantasiada, não envolve realmente nenhuma mudança e, portanto, não tem relação alguma com aquilo que poderia
de fato ter mudado as coisas, se é que algo o poderia. Ela requer
tão somente a ideia do agente no momento da ação, da ação que me
prejudicou, e da recusa dessa ação, tudo isso isolado da rede de
circunstâncias na qual sua ação estava efetivamente inserida. Ela
envolve precisamente a imagem da vontade que já foi exposta.
Muita coisa pode brotar a partir desse sentimento básico. Ele
serve de alicerce para o constructo da punição na sua forma mais
pura e mais simples, e é muito significativo como a linguagem da
retribuição emprega com naturalidade noções teleológicas de conversão, educação, ou melhoria (“ensinar-lhe uma lição”, “mostrar
a ele”) enquanto insiste, ao mesmo tempo, que sua visada é inteiramente retrospectiva e que, na medida em que é puramente retributiva, não busca uma verdadeira reforma10. Mas o constructo é
pelo menos igualmente operante quando não está em jogo nenhuma
10 Um exemplo particularmente esclarecedor é a discussão de Robert Nozick sobre
punição retributiva in Philosophical Explanations (Oxford: Oxford University Press,
1984, p. 363 e segs.). Sua tentativa heróica de expressar o que a pura retribuição
tenta alcançar (em oposição ao que, de fato, ela faz) revela, ao que me parece, que
não há espaço lógico para que a pura retribuição tenha sucesso.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
punição real, mas apenas concepções exclusivamente morais de
culpa e censura, e neste caso o constructo envolve uma abstração a
mais; ele introduz não apenas a ideia da retribuição por causação
retrospectiva, como a ideia própria à moralidade de uma lei que se
impõe embora sem sanções, de um julgamento que não comporta
nenhum poder além do julgamento ele mesmo.
Conclusão
Este é, naturalmente, apenas um esboço de uma possível descrição extraída (de forma bastante direta) de material nietzschiano.
Seu aspecto mais importante para o presente propósito é sua estrutura. Nós começamos com um suposto fenômeno psicológico, o
querer, associado com a concepção do Eu na ação. O fenômeno parece reconhecível na experiência, e parece também ter uma certa
autoridade. Sua descrição já comporta dificuldades e obscuridades,
mas propostas de simplesmente eliminá-lo da explicação ou ignorá-lo parecem ter ignorado com freqüência algo importante acerca da
ação, ou mesmo omitir a sua essência. Ter em mente que imagens
distintas da ação têm sido sustentadas em diferentes culturas e que
a noção mesma de ação não é algo transparente pode nos ajudar
a ver que a integridade da ação, a genuína presença do agente na
mesma, pode ser preservada sem esta imagem [peculiar] da vontade
– que ela só pode, na verdade, ser preservada sem esta imagem.
O processo pelo qual nós podemos vir a enxergar isso pode ser complexo e doloroso o bastante para nos fazer sentir que não apenas
aprendemos uma verdade, mas que fomos aliviados de um fardo.
Uma vez que a imagem não é nem coerente nem universal, mas
mesmo assim tem essa autoridade, nós precisamos nos perguntar
de onde ela vem e que função ela cumpre. A imagem não está por
si mesma inequivocamente ligada à moralidade, oferecendo antes
uma imagem da ação voluntária em geral; mas há um fenômeno
moral, uma certa concepção da censura, à qual ela se ajusta de
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Williams, B.
forma imediata. Esta concepção tampouco é universal, sendo antes parte de um complexo particular de ideias éticas, com outros
traços peculiares e afins. O ajuste entre a concepção psicológica
particular e as exigências da moralidade nos permite ver que essa
peça de psicologia é ela mesma uma concepção moral, que, além
disso, compartilha aspectos notavelmente duvidosos dessa moralidade particular. Cumpre acrescentar ainda que nós podemos estar
aptos a fornecer algumas concepções psicológicas alternativas que
nos ajudem a entender as motivações dessa forma particular do
ético. Essas concepções, tais como apresentadas por Nietzsche sob
o nome de ressentimento, decerto conduzem totalmente para fora
do [domínio do] ético, em direção às categorias de ódio e de poder;
e o quanto essas categorias são explicativas não pode ser uma questão que cabe apenas à filosofia decidir. Outras explicações podem
ser necessárias, e pode ser que elas se revelem mais fundamentalmente ligadas a noções de justiça, por exemplo. Mas ao contrapor
essas explicações umas às outras, e ao diagnosticar a psicologia da
vontade como uma exigência do próprio sistema da moralidade, nós
estaremos seguindo uma rota inequivocamente nietzschiana em direção à naturalização da psicologia moral.
Abstract: In this paper Bernard Williams points out the theoretical
difficulties involved in any attempt to define what would be a “naturalistic”
moral psychology. According to Williams´s reading, Nietzsche´s attempts
to develop a minimalistic moral psychology in his explanation of moral
phenomena by introducing in his analysis both non-moral vocabulary and
information obtained from non-moral domains of human experiences would
be more understandable if they were described as a kind of “realism”.
Williams applied this hermeneutical hypothesis to the nietzschean
analysis of the “willing” phenomenon, which is connected with a very
peculiar view of the conditions for assigning responsibility and blame.
Keywords: moral psychology – naturalism – realism – willing - blame
32
cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
referências bibliográficas
1. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke.Kritische
Studienausgabe. Organizada por Giorgio Colli e
Mazzino Montinari. München, Berlin/New York:
Walter de Gruyter, 1980, 15 v.
2. __________. Beyond Good and Evil. Trad. Walter
Kaufmann. New York, 1966.
3. __________. Daybreak. Trad. R. J. Hollingdale.
Cambridge: Cambridge University Press. 1982.
4. __________. The Genealogy of Morals. Trad. Walter
Kaufmann e R. J. Hollingdale. Nova York, 1967.
5. NOZICK, Robert. Philosophical explanation. Oxford:
Oxford University Press, 1984.
Artigo recebido em 10/04/2011.
Artigo aceito para publicação em 05/05/2011.
cadernos Nietzche 29, 2011
33
O naturalismo de Nietzsche
O naturalismo
de Nietzsche*
Richard Schacht**
Resumo: Partindo da discussão de algumas versões recentes da relação
entre Nietzsche e o naturalismo filosófico e científico, o artigo consiste em
uma apresentação daqueles traços do pensamento nietzschiano que mais
plausivelmente podem ser tomados como naturalistas. Admitida a rejeição, pelo filósofo, da existência de qualquer realidade mais verdadeira do
que a que constitui o mundo da nossa experiência, avança-se no sentido
de considerar a emergência das sensibilidades e o desenvolvimento das
formas de vida como aspectos centrais do naturalismo de Nietzsche —
portanto, reconhecidamente incompatível com qualquer modo de pensamento cientificista.
Palavras-chave: ciências da natureza – formas de vida – história – naturalismo - sensibilidade
Nietzsche parece estar sempre na necessidade de ser resgatado
da assimilação a modos de pensamento que estão em desacordo
significativo com o seu próprio modo de pensar. Mas o elenco de
personagens muda a cada 15 ou 20 anos. Uma vez foi preciso resgatá-lo do alinhamento com o nazismo. Depois da associação com o
existencialismo. Em seguida da identificação com o pós-estruturalismo. Recentemente entrou em voga uma nova e problemática assimilação, a algo que é tão distinto dos desenvolvimentos anteriores
quanto estes mesmos eram distintos entre si. Para muitos de nós,
* Tradução de Olímpio Pimenta. Revisão da tradução de Rogério Lopes. Agradecemos
ao Prof. Richard Schacht por ter aceito o convite para publicar neste número especial
dos Cadernos Nietzsche e por ter nos enviado um artigo inédito (Nota do colaborador).
** Professor Emérito da Universidade de Illinois, Urbana-Champaign, Estados Unidos.
E-mail: [email protected]
cadernos Nietzche 29, 2011
35
Schacht, R.
que tanto nos empenhamos para que Nietzsche fosse levado a sério
nos círculos da filosofia analítica como algo mais do que um mero
proto-pós-estruturalista, não é pouco irônico que hoje, ao menos
em alguns círculos, ele comece a ser levado a sério por ser seriamente mal entendido na direção contrária, e interpretado de forma
cientificista sob a bandeira do “naturalismo”.
O problema, tal como o vejo, não é com esta bandeira (que,
segundo meu entendimento, é de fato bastante apropriada quando
adequadamente compreendida), mas, antes, com a orientação sobre
como ela deve ser tomada no caso de Nietzsche. Assim, considero
que ele precisa mais uma vez ser resgatado — da mais recente
de uma longa série de tratamentos duvidosos de tipo procustiano.
Ao me ocupar do tema, espero defender de modo convincente que
seu tipo de naturalismo deve ser entendido de modo diverso — e
que, assim entendido, ele é um “bebê” promissor, que não deveria
ser jogado fora com a água do banho cientificista na qual ele vem
sendo imerso.
I
Há tempos que considero que Nietzsche foi um pensador “naturalista” em termos filosóficos, que dispôs de uma agenda filosófica
significativa que se torna mais compreensível se entendida nestes
termos1. Essa é uma caracterização com a qual muitos vieram a
concordar — ao menos na parte da comunidade filosófica em que
predomina uma mentalidade analítica. Mas existem muitos tipos de
1 Esta foi a tese básica e o tema unificador de meu Nietzsche (London: Routledge &
Kegan Paul; publicado na coleção “Argumentos dos filósofos” por Ted Honderich
em 1983). Ver também meu Making sense of Nietzsche [Interpretando Nietzsche]
(Urbana & Chicago: University of Illinois Press, 1995), capítulo 10, “How to
Naturalize Cheerfully: Nietzsche’s “Frohlische Wissenschaft” [Como naturalizar sem
perder o bom humor: A gaia ciência de Nietzsche].
36
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
coisas chamadas “naturalismo” na literatura filosófica; e seria um
erro supor que qualquer uma delas em particular é aquela esposada por Nietzsche, ou à qual ele tenderia — especialmente porque
existem alguns tipos de naturalismo acerca dos quais ele é bastante
desdenhoso, e até contundentemente crítico. Por exemplo, há o
tipo “mecanicista” que ele chama de uma “das mais estúpidas [der
dümmsten]” maneiras de apreciar e interpretar a música (mas não
só a música) no livro V da segunda edição de A gaia ciência (FW/
GC 373, KSA 3.626)2, assim como o tipo que ele atribui (em Para
além de bem e mal) aos “Naturalisten” cuja inépcia [Ungeschick] é
tal que “mal tocam a alma e a perdem” (JGB/BM 12, KSA 5.27).
Assim precisamos considerar que tipo de naturalismo é o seu.
Em várias ocasiões, o próprio Nietzsche faz um uso positivo
da linguagem do “naturalismo” para caracterizar seus esforços e
projetos filosóficos. Assim, por exemplo, no início do livro III da
primeira edição de A gaia ciência ele escreve: “Quando poderemos começar a nos naturalizar, nós humanos [uns Menschen ... zu
vernatürlischen] em termos de uma natureza pura, novamente descoberta, novamente redimida! — isto é, “natureza” reconcebida de
uma maneira inteiramente desdivinizada [ganz entgöttlicht], purificada de todos os traços da ideia de Deus (FW/GC 109, KSA 3.469).
E em Para além de bem e mal ele proclama de modo similar a
“tarefa” de “traduzir o homem de volta na natureza” [den Menschen
... zurückübersetzen in die Natur], atentando para que “daqui em
diante o homem se coloque face ao homem como hoje, endurecido
[hart geworden] no treino [Zucht, aprendizado, literalmente ‘cultivo’] da Wissenschaft, ele se coloca face à outra natureza [der anderen Natur]” – particularmente no sentido de ser “surdo ao canto de
2 Geralmente sigo as traduções da obra em inglês feitas por Kaufmann ou Hollingdale
(preferindo Kaufmann quando tiverem sido feitas versões pelos dois), mas eu as modifico sempre onde julgo preferíveis diferentes variantes para o alemão de Nietzsche.
cadernos Nietzche 29, 2011
37
Schacht, R.
sereia dos velhos e metafísicos apanhadores de pássaros que têm
soprado para ele já há muito ‘você é mais, você é superior, é de uma
origem diferente’[anderer Herkunft]!” (JGB/BM 230, KSA 5.169).
Para Nietzsche, nós Menschen chegamos a nos diferenciar significativamente do resto da natureza em torno de nós; mas isto, ele
insiste, é devido a outra coisa que a uma “origem diferente”, no
sentido de originariamente distinta. Não obstante os muitos comentários críticos de Nietzsche à Wissenschaft, considero sua atitude
geral para com as Wissenschaften e o modo como estas se relacionam com seu tipo de filosofia como algo em geral positivo, desde
que elas não ultrapassem seus limites nem sejam superestimadas.
(Esses termos alemães são comumente traduzidos por “ciência” e
“as ciências”; mas já que tanto para Nietzsche quanto no uso corrente do século XIX tais termos abrangem disciplinas como história e linguística [Sprachwissenschaft], eles são melhor interpretados
quando tomados em sentido mais amplo, o que ocorre quando
Nietzsche usa tais termos para significar algo como “investigação
cognitiva” e “disciplinas cognitivas” de várias espécies, dedicadas
à obtenção de uma variedade de formas de conhecimento).
Nietzsche está longe de ser hostil ou desdenhoso em relação
às ciências da natureza [Naturwissenschaften], isto sem mencionar as Wissenschaften em geral. Com efeito, da primeira seção de
Humano, demasiado humano (1878) em diante Nietzsche passa a
atribuir grande importância à sofisticação científico-natural (bem
como à histórica, à cultural, à lingüística e à psicológica) do pensamento filosófico, e também à consideração filosófica do que pode ser
aprendido sobre nós mesmos e o nosso mundo pela via da investigação científico-natural. Para enfatizar o ponto, recorro a uma palavra
antiga, mas ainda útil da língua inglesa com o intuito de caracterizar
seu pensamento filosófico em geral — e seu naturalismo em particular —; ele é, entre outras coisas, scientian [instruído]. Vale dizer:
entre outras coisas, seu pensamento pretende ser cientificamente
informado e sofisticado, e ele confere importância a este propósito.
38
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
Naturalismos que vão mais longe — por privilegiar o pensamento científico-natural, por supor que tudo que diz respeito à
realidade humana deve ser explicado e entendido nos termos definidos pelo mesmo tipo de causas deterministas encontradas em
teorias e explicações científico-naturais em geral; por considerar
tal pensamento não questionável no que concerne ao status de seus
tipos de conhecimento, metodologicamente paradigmático, capaz
de abarcar tudo em seu escopo e conclusivo em sua autoridade —
podem ser chamados “cientificistas”. Do modo como o leio, o tipo
de naturalismo de Nietzsche não é, de modo algum, desse gênero.
De fato, eu diria que ele não só se abstém claramente de semelhante
“cientificismo”, como se coloca em oposição resoluta a ele. Ou seja:
ele tem objeções consideráveis ao pensamento científico — e especialmente ao pensamento científico-natural — tão logo se pretenda
que este nos fornece não só conhecimento digno de consideração
sobre muitas coisas, mas a versão completa em relação a tudo, inclusive à realidade e ao mundo humano em toda sua profusão.O
naturalismo de Nietzsche é um tipo de naturalismo que respeita as
Wissenschaften e se vale delas — incluindo sem sombra de dúvida
as ciências da natureza —, mas que não se identifica com elas, não
deposita nelas todas as suas esperanças, e nem tampouco extrai delas todas as suas inspirações. Este tipo de naturalismo está determinado a levar em conta a investigação científica e o que pode ser
aprendido e entendido através dela. Mas de forma alguma postula,
ou tampouco supõe que não possa haver algo mais sobre a realidade humana e sobre o mundo no qual nos encontramos, com tudo
o mais que isso abarca, exceto aquilo que as ciências da natureza
são capazes de oferecer e dizer.
cadernos Nietzche 29, 2011
39
Schacht, R.
II
Alguns intérpretes de Nietzsche em anos recentes tomaram-no
não apenas como um naturalista filosófico do gênero amplamente
“scientian” [instruído], mas como um naturalista cientificista. Brian
Leiter é um caso típico. Em termos básicos, estou de acordo com
a afirmação de Leiter, no início de seu Nietzsche on morality, segundo a qual Nietzsche pertence “à companhia de naturalistas
como Hume e Freud — isto é, grosso modo ele está entre os filósofos da natureza humana”3. Mas então começam meus problemas
com sua restituição do naturalismo de Nietzsche.
Leiter estrutura sua discussão de Nietzsche a partir da “distinção entre duas doutrinas naturalistas básicas: metodológica (ou
M-naturalismo) e substantiva (ou S-naturalismo)”. Ele caracteriza
a “doutrina metodológica” como a convicção de que “a pesquisa
filosófica deve ser contínua em relação à pesquisa nas ciências”4
— isto é, “contínua em relação às ciências tanto em virtude de sua
dependência dos resultados efetivos do método científico em diferentes domínios quanto em virtude do emprego e da imitação de
modos especificamente científicos de ver e explicar as coisas”5.
Com esta última frase Leiter quer dizer: ver tudo o que acontece no mundo — incluída a vida humana — como fenômenos com
“causas deterministas” semelhantes às que figuram em teorias e
explicações científicas. “O principal da atividade filosófica [de
Nietzsche]”, ele sustenta, foi “dedicado a variações no projeto naturalista” e à “explicação naturalista” de diversos fenômenos humanos “que é contínua tanto em relação aos resultados quanto aos
métodos das ciências”6. Leiter considera que isso torna Nietzsche
3
4
5
6
LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, p. 2-3.
Ibidem, p. 3.
Ibidem, p. 5. Grifos acrescentados.
Ibidem, p. 11.
40
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
um “naturalista metodológico” no sentido precisado. Ele considera ainda que Nietzsche é o que chama de “M-naturalista especulativo” assim como Hume, que (diz Leiter) “constrói uma teoria
especulativa da natureza humana... modelada sobre o paradigma
científico mais influente na época”7. De acordo com Leiter, isto
é exatamente o que Nietzsche também fez — e é assim que seu
naturalismo deve ser entendido.
Em uma revisão recente de sua posição, intitulada “Nietzsche’s
naturalism reconsidered” [“O naturalismo de Nietzsche reconsiderado”], Leiter refere-se ao que ele chama “a convicção ‘ontológica’ de que as únicas coisas que existem são naturais” como
“a parte principal do naturalismo substantivo de Nietzsche”8. Ele
situa o “naturalismo especulativo” de Nietzsche não apenas entre
as “teorias especulativas da natureza humana” que “são informadas pelas ciências”, mas também entre aquelas comprometidas
com “uma visão científica de como as coisas funcionam”9. Ele
admite que às vezes Nietzsche se afasta desse “projeto naturalista” de “explicação” natural em moldes científicos e avança o
que chama, um tanto pejorativamente, de “tarefa independente...
daquele que ‘cria’ valores”10. Entretanto, quando se trata de
“como as coisa funcionam” e do que ocorre na vida humana (juntamente com tudo o mais), a visão global de Nietzsche (segundo
Leiter) é uma “visão científica”.
Eu diria que isso é um exemplo paradigmático da interpretação cientificista do naturalismo de Nietzsche. Eu de minha parte
concebo o seu naturalismo de um modo bastante diferente: como
algo que não apenas se coloca, mas inclusive pretende se colocar
7 Ibidem, p. 4.
8 Idem, Nietzsche’s
naturalism reconsidered. In: JAMES, K.;
RICHARDSON, J. (orgs.). Oxford Handbook of Nietzsche. Oxford: Oxford
University Press, 2009, p. 5. (no prelo).
9 Ibidem, p. 3. Grifos acrescentados.
10 Ibidem, p. 11.
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Schacht, R.
exatamente como uma alternativa — e até mesmo como um antídoto — a esse tipo de naturalismo (cientificista). Em minha leitura,
Nietzsche não endossa nenhuma das “duas doutrinas naturalistas”
de Leiter — a que concerne ao “que existe” e aquela relativa a
“como as coisas funcionam” e devem ser explicadas. Nietzsche
decerto supõe que tudo no mundo (a realidade humana incluída)
começou como algo meramente “natural”. Sem dúvida ele defende
que a interpretação filosófica de tudo o que diz respeito à realidade
humana (junto com tudo o mais) precisa ser “informada pelas ciências” que sejam pertinentes. E ele supõe ser o caso que tudo a respeito da realidade humana — e tudo o que entra na experiência e
na vida humanas — veio a ser como é por meio de um processo cujo
caráter é inteiramente mundano. Mas tais convicções, enquanto
traços de seu naturalismo, não mostram nem implicam que ele seja
um naturalista cientificista. E as variantes e “doutrinas” do naturalismo que Leiter identifica são leitos de Procusto nos quais o seu
naturalismo não se ajusta. Parece-me que não fazemos nenhuma
justiça ou favor a ele e a seu tipo de naturalismo se o esticamos ou
acomodamos para caber naqueles moldes. Poupado de tais modificações procusteanas, é melhor que ele seja acrescentado à lista de
naturalismos possíveis, na condição de alternativa significativa e
promissora em relação a outros.
III
Christopher Janaway ofereceu recentemente em seu livro
Beyond Selflessness [Além do altruísmo] uma caracterização do que
ele chama de “naturalismo nietzscheano em sentido amplo” que
considero muito mais acertada. Ele escreve:
[Nietzsche] se opõe à metafísica transcendente, seja ela a de
42
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
Platão, do cristianismo ou de Schopenhauer. Ele rejeita as noções
de alma imaterial, de uma vontade que comanda de modo absolutamente livre, ou do puro intelecto transparente a si mesmo, e
em lugar disso enfatiza o corpo, discute a natureza animal dos seres humanos, e procura explicar inúmeros fenômenos recorrendo a
impulsos, instintos e afetos que localiza em nossa existência física
corpórea. Seres humanos devem ser “traduzidos de volta na natureza”, uma vez que, de outro modo, nós falsificamos sua história, sua
psicologia e a natureza de seu valor...11
Em seu ensaio recente, Leiter qualifica essa caracterização
de forma depreciativa de um “naturalismo de lista de lavanderia”,
supondo criticá-la com eloquência ao perguntar: “Por que é este
justamente um conjunto de convicções que um filósofo naturalista
deveria sustentar?”12. Mas Janaway não está fazendo semelhante
reivindicação. Ele está antes caracterizando “o naturalismo de
Nietzsche”, o que precisa ser feito com cuidado antes que aquela
questão possa ser considerada de forma relevante. Seu entendimento disso é bastante similar ao meu, até onde é dado ver. Com
razão, Janaway observa e enfatiza que os métodos de Nietzsche são
freqüentemente “descontínuos em relação àqueles da investigação
científica empírica”, ao invés de baseados ou modelados nela13;
que “fatos explicativos sobre mim, mesmo que de alguma maneira se localizem em minha psico-fisiologia, são essencialmente
configurados pela cultura”14; e que: “Se as explicações causais
de Nietzsche sobre nossos valores morais são naturalistas, elas
o são num sentido que inclui no ‘natural’ não só a constituição
psico-fisiológica do indivíduo cujos valores estão por explicar,
11
12
13
14
JANAWAY, C. Beyond Selflessness. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 34.
LEITER, B., Ibidem, p. 2.
JANAWAY, C., Ibidem, p. 39. Grifo acrescentado.
Ibidem, p. 47.
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43
Schacht, R.
mas também muitos fenômenos culturais complexos”15. Aqui
Janaway está mirando na direção certa; mas parece-me que precisamos avançar adiante nessa direção a fim de expor a coloração
completa do naturalismo de Nietzsche.
Leiter, em seu ensaio recente, concede a Janaway que “o
naturalista Nietzsche está interessado em cultura”; ele insiste,
porém, que “isto não deveria nos levar a perder de vista o papel que causas psico-fisiológicas desempenham na explicação da
moralidade que está sendo oferecida por ele”16. Com isso ele segue sustentando que “Causação e explicação causal são centrais
no naturalismo de Nietzsche”17, o que envolve, basicamente, “a
oferta de teorias” que “são fundamentalmente modeladas na ciência, no sentido de que buscam revelar os determinantes causais
desses fenômenos, que sejam típicos de diversos fatos fisiológicos
e psicológicos sobre as pessoas”18 .
Eu julgo que isso é uma má caracterização (ou má interpretação) do fato de que a explicação processual é central no naturalismo de Nietzsche. Explicação processual não é o mesmo que
explicação causal. Creio que precisamos nos afastar do paradigma
científico-natural causal-determinista esposado por Leiter mais
ainda do que Janaway o faz ao propor sua alternativa à posição
de Leiter, apresentada em termos liberais (e nomeadamente não
cientificistas), quando afirma, por exemplo, que “Nietzsche pode
ser lido como um naturalista na medida em que busca explicações que referem causas de um modo que não entra em conflito
com a ciência”19. Seria melhor, segundo me parece, abandonar toda
referência a “causas” em qualquer afirmação com esse nível de
15
16
17
18
19
Ibidem, p. 52-53.
LEITER, B., Ibidem, p. 20.
Ibidem, p. 21.
Ibidem, p. 17.
JANAWAY, C., Ibidem, p. 52. Grifo acrescentado.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
generalidade; pois embora Nietzsche recorra ocasionalmente a uma
linguagem causal, quando se expressa de forma mais precisa ele
tem sérias reservas ao conceito de “causa e efeito”, chegando a
evitá-lo em muitos contextos.
Eu retificaria e expandiria a afirmação de Janaway dizendo
(de modo um pouco mais detalhado): “Nietzsche pode ser lido como
naturalista na medida em que busca explicações e interpretações
sobre todas as coisas humanas que não entrem em conflito com
a ciência, que sejam cientificamente informadas onde couber, e
não façam referência a nada além das transformações e processos
inteiramente mundanos em nossa animalidade humana original e
fundamental”. (Com “mundano” pretendo simplesmente captar o
espírito de temas de Nietzsche tais como “o caráter deste mundo”
e as origens modestas de tudo o que é humano).
Parece-me que uma consideração abrangente sobre o modo de
pensamento “desdivinizado” e pós-metafísico que anima, do início
ao fim, suas discussões sobre a vida e o mundo — e sobre a realidade humana em particular – nos fornece um guia mais apropriado
para entender o significado do naturalismo de Nietzsche. É deste
modo que tento proceder, e é o que espero fazer a seguir.
IV
Antes de entrarmos nos pormenores, alguns comentários preliminares são oportunos. A interpretação de Nietzsche é um negócio
notoriamente complicado. Em várias passagens ele diz coisas que
são difíceis de compatibilizar com basicamente qualquer interpretação de seu pensamento que atribua a ele posições definitivas
de algum tipo. Ao tentar decidir o que fazer com elas e que peso
lhes conferir, e ao considerar quais linhas interpretativas devem
ser favorecidas e quais desfavorecidas, acredito que um peso considerável deve ser dado às suas preocupações recorrentes e que
cadernos Nietzche 29, 2011
45
Schacht, R.
sejam evidenciadas em uma vasta gama de seus escritos, ainda
que de vez em quando ele diga coisas que possam soar — ou até
mesmo ser, se tomadas literalmente — estranhas em relação a essas preocupações.
Vale também lembrar, nessa aproximação mais geral, que
Nietzsche foi um amante da vivacidade da linguagem, da retórica
poderosa, da ironia bem colocada e das figuras do discurso dotadas
de graça. Além disso, ele foi um polemista feroz e arrojado, que
teve em sua obra publicada — sem mencionar seus cadernos de
notas — no mínimo tantos momentos pouco cautelosos, para não
dizer violentos, quantos foram os cuidadosos e bem medidos. Mais
ainda, ele faz com freqüência extensas generalizações que não se
incomoda em qualificar e nem se esforça em explicar, enquanto
as testa ou emprega para efeito de provocação. Ele foi um pensador declaradamente experimental, cuja experimentação filosófica
não se restringiu aos seus cadernos (nos quais virtualmente tudo
o que escreveu deveria ser considerado antes um experimento do
que um compromisso). Por todas essas razões, deve-se proceder
com cuidado ao considerar o que fazer com qualquer passagem de
seus escritos, publicada ou não, e é mais aconselhável que ele seja
lido de forma compreensiva ao invés de seletiva. E deve-se sempre
considerar o escritor juntamente com suas preocupações antes de
antecipar qualquer conclusão sobre seu sentido e resultado.
E mais: como Nietzsche faz ver nitidamente em seu Prólogo
a Para além de bem e mal, e repetidas vezes alhures, dogmatismo
e alarde doutrinário são anátemas para ele. Em épocas desconstrucionistas era um erro comum supor que ele nunca queria dizer
o que parecia estar dizendo e fazendo ao avançar determinadas proposições, teorias ou interpretações. A proposição e a crítica de estimativas e interpretações é moeda corrente em seus escritos, assim
como o uso de frases e imagens surpreendentes no curso desta atividade propositiva e crítica. Entretanto, há também um mal-entendido em interpretá-lo como se ele estivesse promulgando doutrinas
46
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
com as quais teria um compromisso dogmático. Em Assim falava
Zaratustra e em outras ocasiões encontramos declarações que ele
descreve com a palavra “Lehre”; e esta é uma palavra que pode e
costuma ser traduzida por “doutrina”. Em Assim falava Zaratustra,
contudo, as “Lehren” que ele põe na boca de Zaratustra são indubitavelmente melhor compreendidas como “ensinamentos” (outro
significado do termo), exortações e imagens poderosas.
Também em outros de seus escritos, os pronunciamentos de
Nietzsche assumem em algumas circunstâncias essa característica
de “meu ensinamento”. Em outras circunstâncias ele faz asserções de um modo direto, pouco nuançado e enfático, o que pode
nos levar a interpretá-las como se estivessem sendo enunciadas
em um espírito doutrinário. Parece-me, contudo, que mesmo então elas não devem ser entendidas como “doutrinas” estabelecidas com as quais ele está incondicionalmente comprometido, mas
como teorias, interpretações, estimativas ou simples pontos de vista
que vão sendo desenvolvidos, sujeitos às advertências inerentes
à sua recusa generalizada do dogmatismo e à sua adesão à ideia
de que toda investigação cognitivo-interpretativa, mesmo em seus
melhores momentos, permanece indefinidamente experimental e
provisória. Elas devem ser levadas a sério (pelo menos quando se
trata de interpretá-lo) — mas nem sempre da mesma forma, ou tão
diretamente como tendemos a supor que muitos filósofos desejam e
deveriam ser levados a sério.
V
O tipo de naturalismo de Nietzsche, assim como seu tipo de
filosofia, toma como seu ponto de partida o que ele resume na expressão “a morte de Deus” — isto é, o fim da plausibilidade, não
só da ideia judaico-cristã de Deus, mas também de qualquer modalidade religiosa, metafísica ou moralmente imaginada de realidade
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Schacht, R.
“superior” ou “mais verdadeira” que seja subjacente ou transcendente ao mundo no qual nos encontramos e vivemos nossas vidas.
Este tipo de naturalismo procede segundo a suposição de que a modalidade de mundo em que consiste “este mundo” — “o mundo da
vida, da natureza e da história [die Welt des Lebens, der Natur und
der Geschichte]” (FW/GC 344, KSA 3.577) — é a única modalidade de mundo e realidade que há, sem que qualquer configuração
particular deles seja essencial ou fundamental. Este tipo de naturalismo procede ainda em conformidade com o que chamarei “diretriz” geral, no sentido de que tudo que ocorre e vem a ser neste
mundo é a efetivação de processos ocorridos em seu interior, que
são inteiramente devedores de sua dinâmica interna e das contingências geradas por estes processos e que vêm à luz de baixo para
cima (por assim dizer), através da elaboração ou transformação,
relacionalmente-precipitada, daquilo que já estava acontecendo ou
já tinha chegado a ser.
Sugiro que este seja o naturalismo de Nietzsche em sua forma
mais condensada. Ele não é mais do que isto em termos de qualquer espécie de “doutrina” ou conjunto de “doutrinas”; e mesmo
sua “diretriz” é apenas isso — uma diretriz. Sua adesão a ele, inequívoca sem ser dogmática, é baseada em sua crescente confiança
(testada em combate) de que será capaz de enfrentar todos os desafios e lidar de forma defensável com todos os contraexemplos que
lhe forem dirigidos (como no caso dos ideais ascéticos, dos valores
morais e das ideias religiosas) — embora siga aberto a eles. No
segundo Prefácio, acrescentado por Nietzsche em 1886 a O nascimento da tragédia (1872), ele comenta a respeito de si mesmo
que embora seu “olho” de intérprete tenha se tornado durante este
intervalo de tempo “mais velho e cem vezes mais exigente” do que
era antes, ele “não se tornou alheio à tarefa que seu audacioso livro ventilou pela primeira vez: ver a ciência sob a Optik do artista,
mas arte sob a da vida” — ao que acrescenta, duas seções adiante,
48
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O naturalismo de Nietzsche
“a questão mais grave de todas”: nomeadamente, “Qual é, visto sob
a Optik da vida, o significado da moralidade?” (GT/NT, Tentativa de
autocrítica 2 e 4, KSA 1.14 e 17).
Essas “questões” não são “doutrinas” — assim como tampouco
o é a convicção de que vale a pena explorá-las. Pode-se considerar
a proposição e a exploração de tais questões como o projeto básico
do naturalismo de Nietzsche em geral. Ao fazê-lo, é claro que ele
não tinha em mente (ao contrário do que entende Leiter) proceder
“em relação ao pensamento causal científico-natural de uma maneira contínua, ou por ele modelada”, nem quando as questões foram “ventiladas” pela primeira vez em 1872, nem quando escreveu
aquelas linhas em 1886.
Para Nietzsche, a filosofia envolve experimentar e propor relatos de vários gêneros — alguns “genealógicos” ou processuais,
outros interpretativos ou aptos a atribuir sentido. Ocasionalmente
— mas de modo algum sempre, ou sequer em sua maior parte —
eles são moldados nos termos da explicação das ciências naturais;
ainda mais improvável seria dizer que estes relatos se baseiam explicitamente no apelo ao resultado de pesquisas do tipo das que são
realizadas pelas disciplinas das ciências naturais. Com freqüência,
tais relatos são propostos e desenvolvidos de forma meramente imaginativa ou hipotética, a fim de ajudar a evidenciar a plausibilidade
da diretriz segundo a qual se pode dar sentido a todas as coisas humanas em termos de seu desenvolvimento processual neste mundo,
ainda que dessa maneira eles resultem problemáticos.
Em Para além de bem e mal, ao discutir o modo de pensar
que ele chama “sensualismo [Sensualismus]”, Nietzsche o defende
“no mínimo como uma hipótese regulativa, senão como um princípio heurístico” (JGB/BM 15, KSA 5.29). Tal linguagem (deixando
inteiramente de lado a questão sobre o que ele entende aqui por
“Sensualismus”) pode ser empregada com proveito no presente contexto. Sugiro que, para Nietzsche, naturalismo (interpretado como
acabei de esboçar) é ao mesmo tempo uma “hipótese regulativa”
cadernos Nietzche 29, 2011
49
Schacht, R.
(em termos substantivos) e um “princípio heurístico” (em termos
metodológicos). Enquanto “hipótese regulativa”, trata-se da hipótese de que essa diretriz funcionará bem (em termos de plausibilidade, viabilidade e significatividade contínuas) se nos atemos a
seus limites na medida em que a investigação filosófica, a reflexão
e os procedimentos interpretativos seguem o seu rumo. Enquanto
uma “heurística”, trata-se do pensamento de que aproximar-se das
coisas desse modo será proveitoso para a investigação interpretativa e reinterpretativa.
O naturalismo de Nietzsche, tal como ele se apresenta em seus
diversos escritos, não está de forma alguma comprometido com a
convicção de que tudo o que acontece na vida humana, assim como
no desenvolvimento e desdobramento da realidade e da experiência
humanas, pode ser adequadamente explicado e totalmente compreendido em termos de conceitos e processos científico-naturais ou
científica e naturalmente modelados — sendo a “causalidade” o
primeiro e principal elemento da experiência humana a escapar à
explicação científica. De fato, ele admite que a sofisticação do pensamento causal característico das ciências naturais e a confiança
que elas tendem a depositar neste tipo de pensamento constituem
simultaneamente sua força e sua limitação na parceria que se estabelece entre elas e a filosofia com vistas ao tratamento de tais
temas [relativos à realidade humana]. Sob este aspecto, ele parece
compartilhar ao menos algo da profunda dúvida mencionada em
seus comentários relativos a Kant em sua discussão sobre “O velho
problema: ‘O que é alemão?’” no livro V de A gaia ciência: “Como
alemães, duvidamos com Kant da validade última do conhecimento
científico-natural e de tudo o que se deixa conhecer causalmente
[ Allem, was sich causaliter erkennen lasst]”. Pois o que é “cognoscível [Erkennbare]” desse modo, prossegue ele, “parece-nos ser de
menor valor”. (Isto é: de menor valor do que aquilo que não “se
deixa conhecer causalmente”, e assim de forma científico-natural,
porque é mais do que meramente natural. Essa é uma ideia que
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
ele endossa claramente, mas à qual ele confere um sentido novo e
muito diferente, um sentido “ligado a este mundo”, em termos da
transformação do natural que lhe confere sentido) (FW/GC 357,
KSA 3.597-602).
Nietzsche não duvida nem por um instante que os processos
pelos quais a realidade humana veio a ser como é, e que as várias
espécies de coisas que entram na vida humana são engendradas
e perpassadas por necessidades, influências, atrações, injunções,
reações, interações e relações de poder de toda sorte. Ele certamente duvida (e até zomba) da ideia de que o pensamento causal
em moldes científicos e naturais é capaz de fazer inteira justiça a
todas elas, ou mesmo de ser adequado a um grande número delas
— não obstante o contraste entre a “ciência” e o modo patológico
de interpretação que ele associa ao cristianismo sacerdotal em O
anticristo20, contraste que favorece a “ciência”, concebida como “o
saudável conceito de causa e efeito” (AC/AC 49, KSA 6.228).
“Traduzir o homem de volta na natureza”, levando em conta o
que ele chama de “o terrível [schreckliche] texto básico do homo natura [homem em estado natural]”, de um modo que “se tornou duro
no cultivo da ciência [hart geworden in der Zucht der Wissenschaft]”,
não significa para Nietzsche tratar a realidade humana como se
agora ela não fosse em nada diferente do que era quando nossa
espécie apareceu pela primeira vez, nem tampouco lidar com ela
em moldes puramente científico-naturais. De preferência, ser “endurecido na Zucht da Wissenschaft” para ele é questão de ter sido
20 Este título é comumente traduzido em inglês por The Antichrist [O anticristo].
Entretanto, como indica seu subtítulo (Fluch auf dem Christenthum [Curse
upon Christianity / Maldição sobre o Cristianismo]), este título seria mais
bem traduzido — de acordo com o uso comum da palavra alemã “Christ”
para designar “cristão” ao invés de “o Cristo” — por The Anti-Christian [O
anticristão].
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Schacht, R.
suficientemente disciplinado e formado no trato com o pensamento
científico a ponto de se tornar “redlich” — isto é, não apenas “honesto” (como é habitualmente traduzida esta palavra favorita de
Nietzsche), mas intelectualmente consciencioso, mentalmente
forte, não sentimental e em guarda contra o querer crer (wishful
thinking) — em nossa reinterpretação desdivinizada tanto da realidade humana quanto do mundo em que nos encontramos. E o que
mais interessa a Nietzsche não é simplesmente o que esse “texto
básico” foi originalmente e o que dele permanece, mas igualmente
o potencial transformativo de que ele já deu provas, assim como as
suas transformações futuras ainda possíveis.
VI
O ponto que acabamos de estabelecer é importante, desde que
devidamente explicitado. O naturalismo de Nietzsche sustenta a
possibilidade e a realidade de episódios qualitativamente transformadores na vida humana, ocorrendo no transcurso de eventos
inteiramente humanos e mundanos — episódios que resultam na
emergência de formas de vida (Lebensformen, “formas de vida” humanas) que se desenvolvem (e às vezes entram em mutação) de
forma historicamente diversificada e que são social e linguisticamente configuradas. Nietzsche identifica e discute muitos fenômenos dessa natureza, de diferentes tipos e sujeitos à contingência
histórica, que costumam variar significativamente em relação aos
seus e a outros precedentes e contemporâneos, variações de natureza tanto histórica quanto biológico-evolucionária e que demandam, além disso, um tipo de compreensão distinto daquele
fornecido pela consideração de seu embasamento fisiológico. (A
expressão Lebensform, mais comumente associada a Wittgenstein,
é também usada por Nietzsche em certas ocasiões, e é bastante
adequada ao presente contexto).
52
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
O naturalismo de Nietzsche é sensível e atento às várias espécies de Lebensformen (e aos tipos de experiência, atividade e objetivação a elas associados) que vieram a se tornar parte da realidade
humana, envolvendo a tentativa de compreendê-las de um modo que
faça jus à riqueza e à diversidade por elas atingida, bem como às
suas origens bem humanas (e muitas vezes demasiado humanas).
Aquelas que ele menciona e discute incluem variados fenômenos
sociais, culturais, políticos, religiosos, artísticos, científicos e até filosóficos. Todas elas (juntamente com “o tipo Mensch” em geral) devem ser ao mesmo tempo “traduzidas de volta na natureza” em sua
constituição e origem básicas, mas também compreendidas em seu
caráter de fenômeno humano — como um tipo de “natureza transfigurada” (conforme o modo de falar de Nietzsche), revelando algumas das coisas que nossa natureza, no princípio puramente natural,
tinha de ter em si para ter sido engendrada e vindo a ser como é.
Em certo sentido, o naturalismo de Nietzsche é talvez minimalista, comprometido com pouco mais do que a diretriz mencionada acima. Ainda assim é um naturalismo robusto, no sentido de
ter olhos para a parafernália completa de nosso mundo e realidade
humanos — bem diferente do naturalismo seco, descolorido e austeramente cientificista atribuído a Nietzsche por Leiter, segundo o
qual “as únicas coisas que existem são naturais”, e tudo na e da
realidade humana deve ser entendido em termos de “uma imagem
científica de como as coisas funcionam”. O naturalismo próprio de
Nietzsche é muito mais abrangente do que isso, tanto substantivamente (em termos de como está apto a falar do que existe e acontece no mundo da realidade humana) quanto metodologicamente
(em seus modos de abordá-la e lidar com ela).
O mundo da realidade humana segundo Nietzsche — “o
mundo que nos concerne”, como ele por vezes o chama — contém
entidades como palavras, linguagens, livros, pianos, óperas, sinfonias, peças, pinturas, esculturas, cidades, estados, universidades,
exércitos, profissões, jogos, leis, moralidades e Wissenschaften.
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Todas essas são coisas cuja existência está — para Nietzsche —
acima de disputa. Embora haja um sentido em que elas são “naturais” (isto é, não têm origem supramundana), existe outro sentido
em que elas, de modo algum, são apenas isso (isto é, compreensíveis nos termos do tipo de processos que bastam para explicar o
que entra em conta e acontece no resto da natureza). As partes e
pedaços da realidade “natural” que nelas figuram podem de alguma
maneira ser aquilo de que elas “são feitas”; mas o que elas são é
uma história muito diferente — ou melhor, uma extensa variedade
de histórias diferentes.
A fim de que se lhes compreenda, os meios segundo os quais
tais coisas devem ser abordadas, referidas e interpretadas precisam
estar adequadamente sintonizados com essas histórias diferentes
— como Nietzsche tenta estar ao lidar com elas. Um naturalista
seco poderia objetar: “Mas, falando de forma rigorosa e filosófica,
coisas desse tipo não existem realmente enquanto tais; o que é realmente real, e realmente existe, são os elementos de que são feitas e
os processos e relações causais nas quais aparecem”. Da parte do
naturalismo nietzschiano, a réplica apropriada a esta objeção seria
primeiro rir, e depois observar que esse modo de pensar representa
a metafísica do “mundo verdadeiro” mais uma vez, e por essa razão
figura entre os alvos dogmáticos visados pelo Prólogo de Para além
de bem e mal.
Embora os tipos de coisas mencionadas há pouco não sejam
“coisas em si”, e sejam o que são apenas no contexto da vida humana, elas tampouco são “meras aparências”, às quais se poderia
contrapor “coisas em si” geradas pela fantasia, mas de um gênero
que poderia ser imaginado como possuindo um modo de “ser verdadeiro” do qual aquelas, enquanto meras aparências, careceriam.
Elas existem — como realidades que vieram a ser em nossas vidas e
em nosso mundo, no interior do qual foram engendradas. A geração
de tais coisas, que envolve a transformação humanamente criativa
dos recursos naturais de nossos corpos e ambiente, é fundamental
54
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
para o desenvolvimento e consubstanciação do que é mais que animal na realidade humana. Fazer justiça a elas e à diferença que
seus efeitos acarretam na caracterização a ser obtida daquela realidade é desafio e tarefa central do naturalismo de Nietzsche.
VII
Isso tem implicações consideráveis em relação à maneira na
qual aquela tarefa deve ser realizada — como Nietzsche torna vividamente claro em FW/GC 373, KSA 3.624-626, usando o exemplo
da música para obter um efeito poderoso. Sua alegação aqui é que
uma “interpretação do mundo” em moldes puramente científico-naturais — e especialmente uma “interpretação do Mensch” exclusivamente desse tipo, sem acréscimo — não seria melhor que
uma espécie de interpretação e apreciação estritamente “científicas” do “que é efetivamente música em uma peça musical”, algo
que ele ridiculariza. Semelhante naturalismo seria para ele “uma
grosseria e ingenuidade”, e de fato (como ele coloca) seria “uma
das mais estúpidas [dümmsten]” interpretações. O que há de “estúpido” e “ingênuo” nesse tipo de naturalismo é que, mesmo que
um grande volume de conhecimento pudesse ser obtido por seu
intermédio, limitar-se a esse tipo de interpretação seria tomar o que
ele designa como “justamente o aspecto mais superficial e externo
da existência” pela totalidade da existência. E isso seria um grande
equívoco no caso de todo tipo de coisa que é constituída de sentido,
ainda que ela seja igualmente baseada na natureza e materializada
de um modo ou de outro.
Nesta passagem o que Nietzsche tem em mente é especificamente o pensamento científico de tipo materialista “mecanicista”;
mas o escopo de sua observação abrange o pensamento científico-natural em geral, sempre que este envolva a realidade e o mundo
humanos: um tal pensamento é intrinsecamente cego ao sentido.
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55
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Ele está sintonizado com os aspectos observáveis das coisas, e
estes excluem qualquer sentido que possa ser constitutivo delas;
daí que um mundo concebido de acordo com essa forma de pensamento seria “essencialmente destituído de sentido [essentiell
sinnlose]”. Uma interpretação desse tipo ignoraria completamente
todas as camadas e texturas de sentido que contribuem tão decisivamente para que o que existe e o que acontece em nosso mundo e
em nossas vidas sejam a realidade que são.
Isso pode não ter tanta importância no caso dos tipos de fenômenos aos quais várias ciências naturais se ajustam. Importa bastante, porém, se tais modos de pensamento são mobilizados para
tratar de assuntos que definitivamente não podem ser compreendidos com acerto sem levar em conta os tipos de significado que
lhes dão sentido e fazem deles o que são — dos quais a música é o
exemplo específico de Nietzsche aqui, embora um sem número de
experiências e realidades humanas possa ser considerado analogamente. Assim, usando uma linguagem que enfatiza o ângulo epistêmico (mais do que meramente valorativo) em jogo, ele escreve:
“O que alguém teria compreendido, entendido ou conhecido dela [von
ihr begriffen, verstanden, erkannt]? Nada, realmente nada do que
nela é propriamente música” (FW/GC 373, KSA 3.626; grifo acrescentado). Isto é, nada do que faz com que ela seja o que ela é, como
o tipo de coisa formada a partir daquilo de que é feita. Todavia,
são precisamente estes tipos de realidade e estes tipos de diferença
que Nietzsche considera que nós filósofos devemos ser capazes de
perceber — e de discernir com atenção, na condição de agentes a
serviço do desenvolvimento de um naturalismo mais sofisticado.
Vale insistir que o caso da música é especial sob muitos aspectos; e é indubitavelmente verdadeiro que há muito mais acerca
da realidade humana que pode ser iluminado pela investigação
científica de forma importante e proveitosa — de maneiras significativas para a própria apreensão e interpretação filosófica nietzschiana — do que questões do tipo “o que é ‘música’ na música”.
56
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
Assim como é igualmente certo que mesmo em relação a algo como
a música há muita coisa que pode ser descoberta e aprendida mediante uma abordagem que não se limita a uma íntima familiaridade
e a uma sensibilidade cultivada, fatores que Nietzsche considera
necessários para a sua compreensão, mas que se serve igualmente
de uma ampla variedade de disposições e perspectivas que podem
ser direcionadas para os múltiplos aspectos da música como fenômeno e parte da realidade humana — algumas físico-científicas,
fisiológicas, neurológicas e psicológicas, outras antropológicas, culturais, históricas, biográficas, sociológicas e mesmo tecnológicas.
Isto serve para evidenciar e ilustrar um ponto importante sobre que tipo de naturalismo é o de Nietzsche. Ele próprio o indica numa passagem bastante conhecida da Terceira Dissertação
da Genealogia da moral. Ali ele anota, acerca da necessidade da
“Zucht [cultivo, treinamento] e da preparação do intelecto para sua
futura objetividade”, que “quanto mais olhos, olhos diferentes, pudermos usar para observar uma mesma coisa [diselbe Sache], mais
completo será nosso conceito dessa Sache, nossa ‘objetividade’”.
E ele considera isso desejável não só para os propósitos da autoexpressão e da criação, mas principalmente porque “desse modo
se saberá como tornar a diversidade [Verschiedenheit, variedade]
de perspectivas e interpretações afetivas aproveitáveis para o conhecimento [fur die Erkenntniss]” (GM/GM III 12, KSA 5.364-365,
segundo grifo acrescentado). Entendo os diferentes olhares sobre
as coisas que acabei de mencionar como exemplos paradigmáticos
de “mais olhos, diferentes olhos” sobre os quais ele fala aqui. E
entendo que ele considera o tipo de mentalidade que ele associa
ao pensamento científico-natural como um daqueles (ou ainda um
conjunto daqueles) olhares, que é certamente necessário — mas
que de modo algum é o único.
Essa passagem notável tem grande relevância para a questão
da “metodologia” naturalista de Nietzsche. Com efeito, ela pode ser
vista como seu melhor pronunciamento isolado sobre esta questão.
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Schacht, R.
De uma maneira interessante, ela pode ser associada com uma
reflexão anterior, presente na primeira edição de Genealogia da
moral, na qual ele discute tanto a genealogia do “pensamento wissenschaftlich” quanto alguns modos nos quais este pensamento
exige complementação. Ele começa observando que “Tantas coisas
têm que se unir para que surja o pensamento wissenschaftlich”.
Então ele acrescenta que “enquanto elas ainda estavam separadas”,
acontecia com frequência que o “seu efeito era o de um veneno”;
mas “ao serem integradas no interior do pensamento wissenschaftlich, elas regulam umas às outras” e são capazes de trabalhar em
conjunto para produzir, de acordo com as possibilidades humanas,
um tipo de resultado muito diferente (em termos cognitivos e não
apenas letais). É particularmente interessante, em relação ao ponto
em questão, sua conclusão de que “mesmo agora parece distante
o tempo em que as energias artísticas [kunsterischen Kräfte] e a
sabedoria prática de vida irão se juntar ao pensamento wissenschaftlich para formar um sistema orgânico superior [höheres organischer
System]” ou um modo de proceder no qual eles se complementem
e suplementem uns aos outros. (FW/GC 113, KSA 3.474) Isso se
parece bastante com uma receita prévia para o tipo de pensamento
que caracterizaria a “filosofia do futuro” de Nietzsche.
Para citar um exemplo a mais: na pouco usual, e por isso
mesmo surpreendente “Nota [Anmerkung]” no final da Primeira
Dissertação de Genealogia da moral, Nietzsche oferece o que
entendo ser um excelente exemplo do tipo de coisa que ele está
discutindo na seção 12 da Terceira Dissertação de Genealogia da
moral (acima). Como no próprio livro, o tópico desse comentário
conclusivo são os “conceitos morais” dos quais ele pretende tratar
— mantendo seu compromisso com uma reinterpretação (naturalista) de todas as coisas humanas — em termos de sua “história”
processual. (MA I / HH I 2, KSA 2.24-25) Ele começa sugerindo
que essa é uma matéria que “demanda a atenção de filólogos e historiadores, bem como a dos filósofos profissionais”. Ele observa na
58
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
sequência que “é igualmente necessário atrair o interesse de fisiólogos e médicos [Mediziner]” para a empreitada, por ele defendida,
de reavaliação “do valor dos valores existentes até então”, uma vez
que “a questão: qual é o valor desta ou daquela tábua de valores,
desta ou daquela ‘moral’? deve ser posta a partir das mais diversas
perspectivas [unter die verschiedensten Perspektiven]” (GM/GM I
17, KSA 5.289).
O papel inicial dos filósofos, diz Nietzsche, e mais especificamente dos “filósofos profissionais” (dos quais ele geralmente tem
muito pouco de positivo a dizer), “após transformarem as relações
entre filosofia, fisiologia e medicina, originalmente tão reservadas
e cheias de desconfiança, em um intercâmbio amistoso e frutífero”,
seria o de atuar como “defensores e mediadores” nas relações entre
essas “diversas perspectivas” e aquilo que pode ser entendido por
meio dessas distintas abordagens e modos de pensar. Aqueles que o
fizerem, valendo-se presumivelmente da perspicácia alcançada por
este meio, poderiam prosseguir rumo a uma reinterpretação e uma
revisão mais abrangentes dos valores e da moral em questão, dando
seguimento por fim ao que ele chama “a futura tarefa dos filósofos”,
para a qual “doravante todas as Wissenschaften devem preparar o
caminho”: ou seja, enfrentar “o problema do valor” e da “hierarquia
dos valores”. Dificilmente se poderia exigir uma indicação melhor
sobre o caráter e a ampla agenda do naturalismo nietzscheano.
VIII
Portanto, o tipo de naturalismo que encontramos em
Nietzsche está visceralmente envolvido não só com questões sobre
explicações e origens, mas também com questões acerca dos processos — e mais especificamente com a identificação e a compreensão
dos aspectos qualitativos pelos quais a realidade humana tornou-se
algo significativamente diferente do tipo de evento simplesmente
cadernos Nietzche 29, 2011
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Schacht, R.
biológico que ele supõe que ela tenha sido em seu começo.
Seu interesse na “Ent-tierung” ou “des-animalização” do “tipo
Mensch” é tão forte e relevante quanto sua ênfase em nossa natureza fundamentalmente animal [tierische] e seu interesse pelos
âmbitos em que ela continua a governar e dar forma à vida humana.
Além disso, o naturalismo de Nietzsche é historicamente (tanto
quanto biologicamente) processual; e sua concepção da realidade
que nós humanos atingimos é tão social e cultural quanto é biológica, fisiológica e psicológica. Ele está atento tanto à realidade
emergente, que não pode prescindir daquelas primeiras dimensões,
e aos processos que trazem consequências significativas naqueles
níveis, quanto aos traços e disposições do segundo tipo, e às questões sobre sua diferença e mutabilidade. De fato, o foco principal
de sua visada incide sobre o surgimento e o desenvolvimento de vários tipos de fenômenos humanos que têm não somente pressupostos fisiológicos e biológicos e dimensões psicológicas, mas também
um caráter histórico, processos em que eventos sociais e culturais,
circunstancialmente contingentes, podem ter desempenhado um
papel crucial (sobre o qual ele se delicia em especular).
Assim, por exemplo, o título que Nietzsche dá à terceira parte
de Para além de bem e mal é eloquente e revelador no que tange a
isso: “Zur Naturgeschichte der Moral [Para uma história natural da
moral]”. Ele trata da questão de quais podem ter sido as origens e
a estória processual dos variados fenômenos morais — supondo-se que eles sejam fenômenos históricos que podem ser entendidos
em termos inteiramente naturais (isto é, em termos psicológica e
socioculturalmente mundanos). Ser capaz de acompanhar o sentido
processual de tais fenômenos é importante para ele, em parte para
fortalecer a própria defesa do naturalismo, ao mostrar que ele é suficiente para uma apropriação das formas mais sublimes de nossa
espiritualidade. Isso contribui de modo decisivo também para o entendimento daquilo com que devemos trabalhar e de que precisamos
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O naturalismo de Nietzsche
tratar ao nos ocuparmos com um ulterior “engrandecimento da
vida”, nos dirigindo à decisiva questão nietzschiana a respeito “do
que pode ainda ser feito do homem” (JGB/BM 203, KSA 5.127).
Resumindo: Nietzsche tira muito proveito de considerações e
conjecturas fisiológicas e psicológicas, buscando confrontar a duradoura tendência dos filósofos a se esquecerem da relevância delas no que se refere às coisas que eles estimam ser as mais elevadas
e que dizem respeito a nós mesmos. Mas ele também está bastante
convencido de que os fenômenos culturais humanos, embora enraizados fisiologicamente, constituem Lebensformen historicamente
desenvolvidas, que diferem qualitativamente dos fenômenos biológicos e fisiológicos associados à sua geração e percurso formativo.
Eles refletem expressões diversamente articuladas e elaboradas
de aspectos da realidade humana realizados desigualmente, bem
como variações nas possibilidades humanas em diferentes circunstâncias históricas e sociais.
O procedimento típico de Nietzsche (e a “metodologia” de seu
naturalismo tal como ele é) envolve, portanto, o aporte e o emprego
de uma multiplicidade de diferentes perspectivas, “ópticas” e
mentalidades, como assinalamos acima, postas a serviço da iniciativa de expandir e aprofundar nossa compreensão de nós mesmos
e das possibilidades humanas que chegaram a se realizar e a se
expressar em coisas tão distintas como traços e tipos psicológicos,
culturas e subculturas, sociedades e instituições, arte e literatura,
morais e valores, assim como formas de pensar e conhecer.
IX
Esses traços do naturalismo de Nietzsche já foram antecipados, com uma intenção claramente programática, em Humano,
demasiado humano. Na terceira e última parte da esclarecedora
seção final, O andarilho e sua sombra (1880), ele escreve: “Muitas
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Schacht, R.
correntes foram lançadas sobre o homem, a fim de que ele não
mais se comporte como um animal”. (WS/AS 350, KSA 2.702)
E bem no início da primeira parte (1878) ele estabelece diversos
pontos cruciais. Começa proclamando que a “ciência da natureza
[Naturwissenchaft]” é o “mais novo de todos os métodos filosóficos”, com a qual o tipo de filosofia que ele próprio advoga (em
contraste com a “filosofia metafísica”) precisa se aliar, e da qual
ela “não pode mais ser separada” (MA I/HH I 1, KSA 2.23). Mas
então, por uma razão importante, que será apresentada e desenvolvida na seção seguinte, ele se adianta, chamando seu novo tipo de
filosofia de “filosofia histórica”. Ele afirma que os filósofos devem
admitir e levar a sério algo que eles há muito relutam em reconhecer: “que o homem veio a ser [geworden ist], assim como a “capacidade cognitiva [Erkenntnisvermogen] que empregamos em todas
as formas de investigação cognitiva”. Com efeito, ele afirma que
“Tudo veio a ser: não existem fatos eternos, assim como não existem
verdades absolutas. Por conseguinte, o que é exigido de agora em
diante é o filosofar histórico [historische Philosophieren], e com ele
a virtude da modéstia” (MA I/HH I 2, KSA 2.25).
Já neste momento, mas também em momentos posteriores de
sua obra, o “filosofar histórico” é para Nietzsche um modo de filosofar ciente de que “tudo veio a ser”, atento às características
“histórico-processuais” do que quer que seja com que ele estiver
às voltas, e em particular com a realidade humana (“der Mensch”,
foco central dessa seção). Assim, embora ele insista na relevância
e na importância da “Naturwissenschaft” em seu empreendimento,
é o filosofar “histórico” (ao invés do “naturwissenschaftlische”) que
é por ele reivindicado. O “devir” ou o desenvolvimento processual
das coisas é considerado crucial para sua abordagem e compreensão adequadas; e pelo uso que faz do termo “historische” Nietzsche
indica que, embora os tipos de processo de que se ocupam as ciências da natureza devam ser doravante levados em conta pelos filósofos, estes não são os únicos processos a demandar consideração
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O naturalismo de Nietzsche
de sua parte. No que concerne a todas as coisas humanas, os tipos
de processo aos quais devemos estar especialmente atentos são de
ordem histórica. E isso significa que devemos nos valer não apenas
do “mais novo de todos os métodos filosóficos” — isto é, aquele
da pesquisa científico-natural — mas também de outros métodos
requeridos para compreender tais processos.
É isso que Nietzsche passou a maior parte de seu tempo investigando, nas inúmeras reflexões que constituem o restante de
Humano, demasiado humano, bem como nos dois outros volumes
aforísticos da série do “espírito livre” que a ele se seguiram (Aurora
e A gaia ciência). E é isso que ele continuou a fazer até o fim, nos livros que se seguem a Assim falava Zaratustra. Às vezes ele se serve
da linguagem causal ao fazê-lo; mas poucos dentre os processos
que ele discute se prestam à análise e à interpretação causais. As
interpretações e explanações propostas por ele decerto envolvem a
ideia de influência em várias acepções; contudo, basta refletir um
instante sobre os tipos de fenômeno e processo com os quais ele
se ocupa para que fique evidente que a causação em moldes científico-naturais é inadequada à maior parte daquilo que ele julgou
mais significativo e digno de atenção. Aí se incluem muitos fenômenos sociais e culturais que são estruturados ou têm consequências em termos normativos, e isso faz uma diferença considerável
quando são internalizados na vida humana. De fato, semelhante
modelo de causação não é apropriado para a compreensão dos
fenômenos humanos crucialmente importantes implicados nessa
mesma internalização.
Em suma: embora Leiter tenha bastante razão ao afirmar que o
“projeto naturalista” de Nietzsche ocupa boa parte de sua atividade
filosófica21, tal “projeto” envolve muito mais do que “explicar a moral [no singular!] em termos naturalistas respeitáveis”, o que Leiter
defende ser sua meta principal — ainda que ele de fato envolva a
21 LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, p. 11.
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tentativa de dar sentido à moralidade (ocidental moderna) – mas
como uma dentre outras formas de moralidade e como um dentre muitos outros fenômenos humanos – em termos naturalistas. E
ainda assim, mais uma vez, a concepção do que seja para Nietzsche
“termos naturalistas respeitáveis” é consideravelmente mais ampla
do que sugere o relato cientificista de Leiter. Seu “projeto naturalista” poderia ser caracterizado de forma mais apropriada como
uma reinterpretação da realidade humana, em toda a sua complexidade, com base no que ele considerava ser naturalisticamente
respeitável — e, em consonância com isso, como uma reinterpretação do que ele supunha ser a moralidade ocidental atual, uma
subespécie de outros tipos de moralidade, assim como de um vasto
espectro de outros fenômenos e processos (predominantemente sociais, culturais e psicológicos) presentes na configuração da vida
humana em suas inúmeras articulações ao longo do curso dos acontecimentos humanos.
X
De uma maneira que traz implicações significativas para o entendimento do naturalismo de Nietzsche, convém que eu desenvolva
este ponto valendo-me da noção de “sensibilidades [Sensibilitäten]”,
associando-a às culturas humanas e às formações culturais, das
quais alguns exemplos figuram com destaque em seus escritos. Seu
naturalismo deve ser concebido de forma a levar em conta sua preocupação em fazer justiça e dar sentido a esse fenômeno humano
de crucial importância, que para ele é central na vida humana e na
caracterização da realidade humana a que pertencemos.
Nietzsche parece não ter descoberto a palavra “Sensibilität” —
ou sua utilidade para seus propósitos não ocorreu a ele — até bem
tarde. Entretanto, ele a emprega de um modo bastante significativo
em seu livro tardio O caso Wagner, ao fazer o elogio a Carmen,
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O naturalismo de Nietzsche
a ópera de Bizet. Nietzsche escreve que “uma sensibilidade diferente [eine andere Sensibilität]” da de Wagner encontra expressão
nessa peça — uma sensibilidade que de fato não havia encontrado
expressão em toda música clássica europeia até então. Ele se refere
a ela caracterizando-a como “esta sensibilidade mais meridional,
morena, queimada [de sol] [dieser südlicheren, bräuneren, verbrannteren Sensibilität]” (WA/CW 2, KSA 6.15).
Outros exemplos deste tipo de fenômeno há muito chamavam
a atenção de Nietzsche. Efetivamente, as sensibilidades figuram
de modo significativo em seu entendimento de como a conduta
humana veio a se distinguir do “típico comportamento animal” —
e também como a vida humana chega a ser configurada de forma
diferente, não apenas em sociedades e culturas diferentes, mas inclusive no próprio interior destas. Assim, por exemplo, elas constituem boa parte daquilo de que ele se acerca ao falar dos vários
“tipos” humanos, bem como de “povos e pátrias”. Um exemplo
notável disso pode ser encontrado no Crepúsculo dos ídolos (1888)
quando, após observar “Como é completamente ingênuo dizer: ‘o
homem deveria ser assim e assado’”, ele acrescenta: “A realidade
nos mostra uma riqueza de tipos encantadora, a abundância numa
profusão de lances e mudanças de forma” (GD/CI Moral como contranatureza 6, KSA 6.86).
O interesse de Nietzsche pelo fenômeno da sensibilidade —
e por suas condições de possibilidade, sua variabilidade e sua importância na vida humana — apareceu pela primeira vez, e de um
modo impressionante, em O nascimento da tragédia. Neste momento
ele está interessado pela história do “nascimento” ou surgimento e
desenvolvimento da “tragédia”, não só como gênero literário, mas
também (e, para ele, principalmente) como fenômeno cultural e espiritual humano — e pela sensibilidade “trágica” a eles associada,
uma sensibilidade que foi a um só tempo expressa e cultivada pelo
gênero e pela cultura trágica. Ele também está interessado em O
nascimento da tragédia (e nas obras posteriores) nos diferentes
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Schacht, R.
fenômenos e sensibilidades culturais que deram origem a esta sensibilidade trágica, e que ele chama pelos nomes das divindades a
eles associadas — “apolíneo” e “dionisíaco” — assim como está interessado no fenômeno e na sensibilidade que ele associa a Sócrates
e que resultaram na morte da tragédia, preparando o caminho para
o aparecimento subsequente daqueles fenômenos e sensibilidades
ligados por um lado à ciência, e por outro ao cristianismo (ao menos
implicitamente). Este interesse permanece e se torna mais consciente de si mesmo nos escritos seguintes, e é central para o projeto
mesmo de Assim falava Zaratustra — cujo cerne é o cultivo de
uma nova sensibilidade que afirma a vida (que é tanto pós-niilista
quanto pós-cristã); o mesmo interesse se torna ainda mais pronunciado na análise e na crítica das diversas patologias culturais nas
polêmicas dos dois últimos anos de sua vida produtiva.
O projeto naturalista de Nietzsche envolve o reconhecimento e
o exame de tais sensibilidades e de formas correlatas de experiência e atividade, assim como a tentativa de mostrar de que modo elas
podem de forma plausível e convincente ser tomadas como nada
mais nada menos do que fenômenos psicológicos, socioculturais e
históricos que surgiram e se desenvolveram sob formas que podem
ser esclarecidas em termos inteiramente mundanos. Elas podem
ser relacionadas processualmente a certas capacidades e disposições humanas (tal como se pretende que a arte e a sensibilidade
apolínea e dionisíaca tenham se desenvolvido a partir dos fenômenos humanos do sonho e da embriaguez), ou umas às outras (tal
como se pretende que a tragédia e a sensibilidade a ela vinculada
tenham “nascido do espírito da música”, por intermédio da combinação entre o dionisíaco e o apolíneo). Elas podem também ter
emergido e tomado forma sob o impacto de determinadas injunções
e dinâmicas sociais, e coisas semelhantes (que por sua vez incidiram sobre sensibilidades e disposições prévias).
Nos relatos que propõe acerca dos muitos casos de que trata
(por exemplo, na Genealogia da moral e em outras oportunidades),
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
Nietzsche demonstra uma notável imaginação. Por mais problemáticos que sejam na maioria das vezes, estes relatos contribuem
pelo menos para produzir a sensação de que a diretriz do projeto
é plausível — o que pode muito bem ter sido o objetivo básico de
Nietzsche ao propô-los. Eles não precisam ser acertados para colaborar com uma defesa efetiva daqueles fins.
XI
Sensibilidades são configurações complexas de disposições,
atitudes, crenças, valorações e tendências interpretativas. Elas são
alimentadas (por assim dizer) por fontes afetivas e podem ser, em
alguma medida, governadas por algum traço humano herdado, mas
variável; mas elas também estão fortemente inscritas na cultura,
refletindo elementos das formações culturais a que se foi exposto
e que foram internalizados. Sensibilidades são tipicamente conectadas a Lebensformen e às formações a estas associadas (como
práticas, tradições, instituições, artefatos, símbolos, formas de arte
e textos), de cujas sensibilidades elas são a internalização, e nas
quais estão ancoradas — sendo delas ainda expressão e elaboração,
uma conformando e sustentando a outra. Esta relação dinâmica é
um dos sinais distintivos — e também parte da própria construção
— da humanidade em que nos constituímos. Suas contingências
e mutabilidade infinita servem também para tornar possível que
a realidade humana floresça na profusão criativa “da profusão de
lances e mudanças de forma”, doando e enriquecendo a si mesma
com valores e sentidos surgidos historicamente — ainda que todos
esses fenômenos eles mesmos sejam produtos da transformação de
habilidades e traços humanos meramente naturais.
Para Nietzsche, são sempre nossos afetos que expressam a si
mesmos em qualquer coisa que façamos; mas eles o fazem através de
nossas sensibilidades, que não apenas os conformam, mas também
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Schacht, R.
os transformam quanto a seu modo de expressão. Tais transformações podem ser particularmente dramáticas quando outros aspectos de nosso repertório psicológico humano vêm à baila — dentre
os quais têm importância particular nossas capacidades para o que
ele chama “internalização”, “redirecionamento” e “sublimação” de
nossos impulsos e disposições básicos. Sensibilidades existem no
meio dinâmico e altamente diferenciado das linguagens humanas,
e deste modo poderia ser útil pensa-las como envolvendo distintos
“jogos de linguagem”, no interior dos quais seus conceitos, normas
e valores característicos estão ancorados. Porque muito de seu conteúdo e configuração têm ainda caráter histórico, elas estão sujeitas
à contingência de todas as coisas históricas. Além do mais, seres
humanos não são apenas passiva e uniformemente programados
pelas formações culturais que emprestam a eles seu roteiro básico
— ao invés disso, eles reagem ativamente e de modo não idêntico
mesmo quando as internalizam. Por todas essas razões, sensibilidades são resistentes à análise em moldes científico-naturais.
Para Nietzsche, os seres humanos não estão meramente aptos
a ingressar em formas de vida mais amplas ou mais estreitas, historicamente desenvolvidas, sempre nuançadas culturalmente e no
mais das vezes também contextualizadas socialmente, e de adquirir delas suas respectivas sensibilidades e mentalidades — assim
como não estão meramente aptos a aprender, utilizar e adquirir
uma linguagem e as sensibilidades que lhe são características.
Eles (nós) temos que proceder assim, por termos perdido a capacidade de viver de outro modo, exatamente na medida em que essas aptidões foram adquiridas. É parte do preço que teve que ser
pago para que pudéssemos adquiri-las. Isto é, ao mesmo tempo,
nossa força exclusiva como espécie e nossa grande vulnerabilidade — razão pela qual Nietzsche constantemente caracteriza o
homem por meio de frases como: “o animal sob maior risco”, “o
animal não fixado”, “o animal mais desnaturado” e “o animal que
se extraviou de seus velhos instintos de forma mais perigosa” —
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
mas também “o animal mais interessante”, através de cuja transformação “o aspecto da terra foi fundamentalmente alterado”
(GM/GM II 16, KSA 5.321-324).
Nietzsche se delicia em explorar as várias sensibilidades e
mentalidades por ele constatadas, muitas das quais se relacionam
de maneira significativa com assuntos que ele persegue através do
espectro de seus interesses filosóficos. Suas investigações destas
sensibilidades em sua especificidade histórica (e ocasionalmente
biográfica) são o grão para o moinho de seu robusto naturalismo.
Sua atenção aos fenômenos ligados à sensibilidade, de que estas
investigações são exemplo, constitui parte importante de tal naturalismo — assim como sua preocupação em mostrar que estas
sensibilidades podem ser esclarecidas nos limites da moldura de
sua diretriz: ancoradas em — ou surgindo a partir de — aspectos
de nossa natureza humano-animal, por meio de processos históricos de natureza social e cultural; e cultivadas por formas da vida
humana que lhes são correlatas.
XII
Nietzsche parece inclinado a pensar que foi desse modo e através desses meios que a espécie deslocou-se da animalidade para a
realidade humana. Lebensformen e sensibilidades converteram-se
em parte da realidade humana tanto quanto o uso das formas de
linguagem ricas e complexas que ambas demandam e modificam
continuamente. Além disso, ele parece pensar ainda que, exatamente como elas foram o modo e os meios para todo “engrandecimento da vida” já ocorrido, versões delas serão necessárias para
desempenhar o mesmo tipo de papel no porvir — e, pela mesma
razão, assim como elas foram decisivas em processos desfavoráveis
ao florescimento e engrandecimento do homem, isso continuará a
ser possível também no futuro.
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Schacht, R.
Nietzsche considera que as sensibilidades adquiridas por seres humanos individuais sejam modificáveis ao longo do curso de
suas vidas — para melhor (como ele acredita que tenha sido no
seu próprio caso) e para pior (como ele considera ter acontecido
no caso de Pascal, por exemplo). Contudo, é sugerido que a regra
humana geral é que os seres humanos tendem a viver suas vidas e
a se comportar de uma maneira que reflete sensibilidades que eles
vieram a adquirir por meio de uma combinação entre natureza (isto
é, hereditariedade) e modos específicos de criação, sob certas circunstâncias sociais. Para Nietzsche, isto é o que deve ser esperado
— e apenas raramente é de se lamentar. Para ele, os seres humanos
também podem — e isso talvez ocorra com maior frequência — ter
identidades em que sensibilidades singulares plenas sejam suficientemente dominantes neles a ponto de ser apropriado caracterizá-los conforme tais sensibilidades — como ele faz amiúde.
Porém, Nietzsche considera ainda que é humanamente possível que um ser humano único desenvolva uma multiplicidade de
sensibilidades (mais ou menos como ao tornar-se poliglota), sendo
capaz de transitar de uma a outra em contextos apropriados, ou
mesmo de jogar umas contra as outras, ou ainda de combinar várias
delas de uma só vez quando isso se mostra vantajoso, esclarecedor
ou criativo. Esta é uma aptidão que ele considera de particular
importância e valia para um filósofo; mas é também requerida de
qualquer um que viva em uns tantos “mundos” social e culturalmente diferentes, cada qual demandando que se disponha e maneje a sensibilidade e a mentalidade mais convenientes de acordo
com suas diferenças.
Ampliando e extrapolando o alcance dessa ideia, Nietzsche
prevê possibilidades humanas ligadas à sua ideia de uma humanidade “mais elevada”, indicada e antecipada aqui e ali, e que consiste
de seres humanos que atingiram autonomia, criatividade e domínio
de si em uma escala suficiente para autorizá-los a moldar sensibilidades distintivas próprias, além e acima daquelas encontradas ou
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
adquiridas previamente por eles, conferindo “estilo” próprio a seu
“caráter” e tornando-se “artistas de suas próprias existências”. Seu
naturalismo deve ainda ser concebido de modo a vir ao encontro
dessas possibilidades, articulando as alegações que ele faz a respeito da diferenciação entre elas e a regra humana geral. Quer me
parecer que, ao conceber e falar delas, mais ainda que nos casos de
uma humanidade e de uma sensibilidade mais comuns (ou patológicas), as modalidades de pensamento científico e investigação em
moldes explanatórios científico-naturais estarão aptas a desempenhar um papel apenas secundário — e me parece igualmente que
essa é a percepção do próprio Nietzsche a respeito do assunto.
É exatamente um tal papel — secundário, e não principal —
que Nietzsche prevê para esta modalidade de investigação em uma
passagem importante de A gaia ciência, na qual ele a acolhe e celebra, ao mesmo tempo em que, gentilmente, a coloca em seu devido
lugar no contexto desta tarefa [de configuração da própria sensibilidade NR]. Ela exibe o charmoso título “Hoch die Physic! [Viva a
física!]”. A respeito da “mais elevada humanidade” à qual gostaria
que aspirássemos junto com ele, lê-se: “Nós, contudo, queremos
nos tornar quem somos”. Para ele, isto envolve alcançarmos tanto
a autonomia dos “indivíduo[s] soberano[s]” de GM/GM II 2, KSA
5.293, quanto a criatividade dos “homem[ns] futuro[s]” da GM/GM
II 24, KSA 5.336, como mostra sua explicação na linha seguinte:
“os novos, os únicos, os incomparáveis, os legisladores de si mesmos, os criadores de si mesmos”. De pronto, ele então prossegue:
E para este fim devemos nos tornar os melhores aprendizes e descobridores de tudo o que seja conforme leis [Gesetzlichen] e necessário no mundo: devemos ser físicos [Physiker, cientistas da natureza]
para sermos capazes de ser, nesse sentido, criadores [Schopfer sein zu
konnen]. E assim: viva a física! [Hoch die Physik]. E sobretudo [hoher noch, ainda por cima] o que a ela nos compele: nossa Redlichkeit
[integridade intelectual]! (FW/GC 335, KSA 3.563-564).
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Schacht, R.
O conhecimento de “tudo o que é conforme leis e necessário no
mundo” não será suficiente para capacitar alguém a viver a vida de
forma autônoma e criativa, e decerto não bastará para determinar o
que alguém que agisse assim realmente faria ou criaria. Nietzsche
sem dúvida pensa que isso pode ser e será de grande ajuda; mas
não será sequer suficiente para capacitar alguém a compreender
autonomia e criatividade como possibilidades humanas — o que
para Nietzsche consiste no desafio e na tarefa supremas de seu
tipo de filosofia, de sua reinterpretação da realidade humana, de
seu naturalismo. Pode ser desejável, e mesmo necessário; mas não
será suficiente para seu tipo de filósofo, nem para seu tipo de naturalismo. Estes exigem um conjunto mais pleno de olhos e estratégias de reconhecimento e interpretação, sintonizados de modo mais
abrangente com tudo o que a realidade humana se tornou — e veio
a ser capaz de se tornar.
XIII
Em conclusão: sustento que, para Nietzsche, nenhum naturalismo é digno de ser levado a sério se ignora ou é inepto ao tratar a
dimensão e o caráter da realidade humana que discuti em termos de
“sensibilidades” e daquilo que elas possibilitam. Não resta dúvida
de que esta é pelo menos em parte a razão pela qual ele é tão zombeteiro a respeito de algumas versões do naturalismo. O naturalismo
a que ele visa e para o qual conclama, que tenta inaugurar e que supõe que será abraçado e desenvolvido pelos “novos filósofos”, pelos
quais ele nutre esperanças, este naturalismo não pode, portanto, ser
aquele dos naturalistas toscamente cientificistas, de cuja “inépcia
[Ungeschik]” e “estupidez [Dummheit]” ele escarnece.
Em relação àquela versão, o naturalismo de Nietzsche é
uma modalidade nova e diferente, devidamente atenta tanto aos
tipos de fenômenos e aspectos das coisas que as ciências naturais
72
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
são boas em descrever e explicar (à sua maneira), quanto, de maneira diversa, aos processos históricos — como a emergência de
conceitos morais diferenciados, formas de religiosidade, tipos de
arte e sensibilidade estética e modos de pensar (que incluem as
variantes científica e filosófica) — que não são determinístico-causais; atenta a coisas como “o que é música numa peça musical”;
ao que ocorre em “casos” como Wagner, Sócrates, cristianismo e
outros semelhantes; ao surgimento de diferentes valorações e, mais
amplamente, de sensibilidades que fazem diferença na vida daqueles que são tocados por elas.
O naturalismo de Nietzsche deve ser aliado das ciências e não
preso ou subserviente a elas — “scientian” [instruído], mas não
cientificista. Aqueles que se integram ao programa, no espírito daquilo que o filósofo diz e faz ao procurar se apropriar dele, devem
se precaver para não serem culpados de “perder ‘a alma’ mal a
tocam”. (JGB/BM 12, KSA 5.27) É óbvio, para quem reinterpreta
o naturalismo nietzschiano, que Seele, assim como Geist, é “nur ein
Wort für Etwas am Leibe [apenas uma palavra para algo relacionado
ao corpo]”.(Za/ZA I Dos desprezadores do corpo, KSA 4.39) Mas
ela é uma palavra para o que veio a ser um “Etwas” extraordinário, convertido filogeneticamente em uma possibilidade humana,
mas que se torna ontogeneticamente o que quer que seja feito de
tal possibilidade em casos particulares, no contexto de um número
imenso de circunstâncias e relações humanas, sociais, culturais e
interpessoais que se desenvolveram historicamente. É imperativo
para nós, se devemos ser o tipo de filósofos que Nietzsche tinha em
mente, ajustarmos nosso naturalismo em conformidade a isso —
tanto metodológica quanto substantivamente —, enquanto nossa
compreensão desse “Etwas” se desenvolve.
cadernos Nietzche 29, 2011
73
Schacht, R.
Abstract: This article takes as its starting point the critical analysis
of some recent versions of the relationship between Nietzsche and
philosophical and scientific naturalism. In an attempt to characterize
positively Nietzsche´s naturalism, the paper presents those naturalistic
features that could plausibly be taken as the most peculiar to nietzschean
thought. Admiting his rejection of any kind of true reality existing
beyond the world of our experience, it goes on by considering emergence
of sensibilities and development of forms of life as crucial aspects of
Nietzsche’s naturalism — avowedly incompatible with any kind of
reductive scientistic naturalism.
Key-words: forms of life – history - natural sciences - Naturalism
- sensitivity
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University Press, 2007.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche
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Artigo recebido em 08/04/2011.
Artigo aceito para publicação em 02/05/2011.
cadernos Nietzche 29, 2011
75
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
O naturalismo de Nietzsche
reconsiderado*
Brian Leiter**
Resumo: Em Nietzsche on Morality (2002), o autor propôs uma leitura sistemática de Nietzsche como um filósofo naturalista, o que atraiu
comentários críticos consideráveis, inclusive por parte daqueles que
tendem a ser simpáticos a tal leitura. Neste artigo, o autor retoma esta
leitura e responde a variadas objeções. Os tópicos abordados incluem o
papel da “especulação” no naturalismo de Nietzsche; a diferença entre
os “Nietzsches” humeano e terapêutico; o papel da cultura nas explicações causais; o estatuto das alegações sobre a causação no naturalismo
de Nietzsche; se a aparente metafísica da vontade de potência é compatível com o naturalismo; e como o naturalismo especulativo de Nietzsche se sai à luz dos subsequentes trabalhos em psicologia empírica.
Palavras-chave: Nietzsche – Naturalismo – Filosofia moral – Psicologia
moral
Segundo um especialista contemporâneo, “a maioria dos comentadores de Nietzsche estaria de acordo em dizer que, em sentido amplo, ele é um naturalista em sua filosofia de maturidade”1.
* O presente artigo do Prof. Brian Leiter será publicado no Oxford Handbook of
Nietzsche, coletânea editada por Ken Gemes e John Richardson e prevista para
2011. Sua publicação em português se deve ao empenho do Prof. Brian Leiter, que
negociou diretamente com o editor de filosofia da Oxford University Press, Peter
Momtchiloff, a permissão para que o texto fosse traduzido e publicado em português
pelos Cadernos Nietzsche. Direito de tradução e publicação não exclusiva para o português cedido gentilmente pelo autor, Prof. Brian Leiter, e pelo Editor de Filosofia
da OUP, Peter Momtchiloff (Nota do colaborador). Tradução de Oscar Augusto Rocha
Santos. Revisão da tradução de Rogério Lopes.
** Professor da Universidade de Chicago,Chicago, Estados Unidos. E-mail: bleiter@
uchicago.edu
1 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford
University Press, 2007, p. 34.
cadernos Nietzche 29, 2011
77
Leiter, B.
Isto pode surpreender aqueles que pensam em Martin Heidegger,
Walter Kaufmann, Paul De Man, Sarah Kofman e Alexander Nehamas, dentre outros, como “comentadores” de Nietzsche. Porém,
há em todo caso sinais claros de que nos últimos vinte anos, conforme os estudos sobre Nietzsche se tornaram filosoficamente mais
sofisticados, a leitura naturalista tem ganhado destaque, ao menos
no ambiente acadêmico de língua inglesa2. Em Nietzsche on Morality3, eu propus uma leitura sistemática de Nietzsche como um
filósofo naturalista, o que atraiu comentários críticos consideráveis,
inclusive por parte daqueles que tendem a ser simpáticos a tal leitura4. Gostaria de revisitar aqui essa leitura e, sobretudo, a questão
de se e em que sentido Nietzsche é um naturalista em sua filosofia.
I. O naturalismo de Nietzsche
Christopher Janaway argumenta que, atualmente, a maioria
dos estudiosos de Nietzsche aceita a tese de que ele é um naturalista em “sentido amplo”:
2 Veja, por exemplo, BITTNER, R. “Introduction,” to Nietzsche’s Writings from the Last
Notebooks. Cambridge: Cambridge University Press, 2003; CLARK, M. Nietzsche on
Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990; HUSSAIN, N.
Nietzsche’s Positivism. In: European Journal of Philosophy, 12, p. 326-368, 2004;
RICHARDSON, J. Nietzsche’s New Darwinism. Oxford: Oxford University Press,
2004; SCHACHT, R. Nietzsche’s Gay Science, or, How to Naturalize Cheerfully.
In: Solomon, R.C.; Higgins, K.M. (orgs.). Reading Nietzsche. New York: Oxford
University Press, 1988.
3 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002.
4 Veja, por exemplo, GEMES, K.; JANAWAY, C. Naturalism and Value in Nietzsche.
In: Philosophy & Phenomenological Research, 71, p. 729-740, 2005; ACAMPORA,
C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. Ansell-Pearson (org.), A
Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006; JANAWAY, C. Beyond Selflessness:
Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Ele se opõe à metafísica transcendente, seja aquela de Platão, do
Cristianismo ou de Schopenhauer. Ele rejeita as noções de alma
imaterial, de uma vontade que comanda de modo totalmente livre
ou de um intelecto puro e autotransparente, em lugar disso enfatiza
o corpo, a natureza animal dos seres humanos e busca assim explicar diversos fenômenos recorrendo aos impulsos, instintos e afetos,
localizados por ele na nossa existência física e corpórea. Os seres
humanos devem ser “traduzidos de volta à natureza”, pois de outra
maneira falsificamos a sua história, a sua psicologia e a natureza de
seus valores – de modo que seja abarcado tudo o que precisamos
conhecer como verdade, enquanto um meio para a importantíssima
revaloração dos valores. Este é o naturalismo de Nietzsche em sentido amplo e que não será questionado aqui5.
De qualquer maneira, isto é menos um naturalismo em “sentido amplo” do que um “naturalismo de lista de lavanderia”. Por
que este conjunto de proposições é algo que um filósofo naturalista
deve defender? O que é que, enfim, faz delas proposições adequadas a um filósofo naturalista?6
Meu objetivo no livro de 2002 foi o de conferir um sentido
filosófico à questão de por que algo como o “naturalismo de lista
de lavanderia” formulado por Janaway parece de fato ser descritivamente adequado àquilo que foi dito por Nietzsche em chave
naturalista. Eu sugeri que, na verdade, subjacente a essa “lista de
lavanderia”, estava um tipo familiar de “Naturalismo Metodológico”
5 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford
University Press, 2007, p. 34.
6 Janaway me disse que ele considera que a oposição à “metafísica transcendente” é
aquilo que une os elementos da lista, apesar de ser difícil ver de que modo o ceticismo acerca desse tipo de metafísica implicaria a crença de que “impulsos, instintos
e afetos (...) em nossa existência física e corpórea” são explanatoriamente primários.
Mesmo se for suficiente, isso simplesmente colocaria a questão um nível atrás: por
que a oposição à metafísica transcendente é o alvo do naturalismo? O que propriamente motiva essa oposição?
cadernos Nietzche 29, 2011
79
Leiter, B.
(daqui pra frente “Naturalismo-M”), segundo o qual “a investigação filosófica (...) deveria ser contínua em relação à investigação
empírica nas ciências”7. Muitos filósofos foram e são naturalistas
metodológicos; porém, para entender o caso de Nietzsche, tudo
depende do tipo preciso de Naturalismo-M em questão. Eu enfatizei dois compromissos característicos do Naturalismo-M de
Nietzsche. Primeiramente, afirmei que Nietzsche é o que chamei
de Naturalista-M Especulativo, isto é, um filósofo que, como Hume,
deseja “construir teorias que sejam ‘modeladas’ nas ciências (...)
tomando delas a ideia de que os fenômenos naturais possuem causas determinísticas”8. Naturalistas-M Especulativos obviamente
não apelam para mecanismos causais reais que tenham sido bem
confirmados pelas ciências: se assim fosse, eles não precisariam
especular! A ideia é, pelo contrário, que suas teorias especulativas
acerca da natureza humana sejam moldadas pelas ciências e pela
perspectiva científica, no tocante ao modo como as coisas funcionam. Veja, por exemplo, a influente formulação de Stroud a respeito do Naturalismo-M Especulativo de Hume:
[Hume] quer fazer pela esfera humana o que ele acredita que a
filosofia natural, principalmente na pessoa de Newton, fez pelo restante da natureza. A teoria newtoniana proporcionou uma explicação completamente geral acerca do porquê das coisas no mundo
acontecerem como acontecem. Ela explica eventos físicos numerosos e complexos por meio de princípios que, comparativamente, são
poucos, extremamente gerais, talvez mesmo universais. De modo
similar, Hume quer uma teoria completamente geral da natureza
humana para explicar por que os seres humanos agem, pensam,
percebem e sentem do modo como em geral o fazem (...). [A] chave para compreender a filosofia de Hume é vê-lo como proponente
7 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 3.
8 Ibidem, p. 5.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
de uma teoria geral da natureza humana da mesma maneira que,
por exemplo, Freud e Marx foram. Todos eles buscaram um tipo
de explicação geral dos vários modos segundo os quais os homens
pensam, agem, sentem e vivem (...). O objetivo de todos os três é
completamente geral – eles tentam propor uma base para explicar
tudo acerca das questões humanas. E as teorias que eles propuseram são todas, grosso modo, deterministas9.
Portanto, Hume modela sua teoria da natureza humana tendo
como referência a ciência newtoniana, na medida em que tenta
identificar poucos princípios básicos e gerais que proporcionarão
uma explicação amplamente determinista do fenômeno humano, do
mesmo modo que a mecânica newtoniana fez em relação ao fenômeno físico. De todo modo, a teoria humiana é ainda especulativa,
pois suas alegações acerca da natureza humana não são confirmadas por nada que seja similar ao modo científico, nem mesmo ganham o suporte de alguma ciência contemporânea de Hume.
O Naturalismo-M Especulativo de Nietzsche obviamente difere daquele de Hume em alguns aspectos: Nietzsche, por exemplo,
parece ser cético em relação ao determinismo, se tivermos por base
seu suposto (se não completamente cogente) ceticismo acerca da
existência de leis na natureza10. No entanto, assim como Hume,
Nietzsche tem um firme interesse em explicar porque os “seres humanos agem, pensam, percebem e sentem” da maneira como o fazem, especialmente no amplo domínio da ética. Assim como Hume,
Nietzsche articula uma psicologia especulativa, muito embora –
como argumentei em outro lugar11 e ainda retornarei mais à frente
– as especulações nietzschianas se mostrem mais procedentes à luz
9 STROUD, B. Hume. Londres: Routledge, 1977, p. 3-4.
10 Veja, por exemplo, JGB/BM §21-22, KSA 5.35-37.
11 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15, 2007;
KNOBE, J.; LEITER, B. The Case for Nietzschean Moral Psychology. In LEITER, B.;
SINHABABU, N., 2007.
cadernos Nietzche 29, 2011
81
Leiter, B.
da subsequente pesquisa em psicologia científica. E essa psicologia especulativa (assim como as eventuais explicações fisiológicas
que oferece incidentalmente) parece nos dar explicações causais
para vários fenômenos humanos que, mesmo sem serem regidos por
leis, ainda assim parecem ter um caráter determinista12.
Contudo, enfatizei também um segundo aspecto do Naturalismo-M de Nietzsche. Como destaquei, alguns Naturalistas-M
pressupõem um tipo de “continuidade de resultados” com a ciência
vigente: estes creem que as “teorias filosóficas devem ser fundadas
ou justificadas por resultados das ciências”13. De todo modo, argumentei que há apenas um tipo de “continuidade de resultados” que
exerce alguma influência no caso de Nietzsche, vale dizer, os resultados que o Materialismo Alemão da época julgava procedentes dos
avanços da fisiologia, ou seja, “que o homem não é de uma ‘origem
superior [ou] distinta’ em relação ao restante da natureza”14. Possivelmente, o essencial do Naturalismo Substantivo de Nietzsche –
isto é, “a tese (ontológica) de que as únicas coisas que existem são
naturais”15 – é consequência dessa “continuidade de resultados”.
12 Cf. LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 5.
13 Ibidem, p. 4.
14 Ibidem, p. 7. Janaway diz: “o registro disso como ‘resultado’ é, talvez, discutível: é
difícil dizer se a natureza exclusivamente natural da humanidade foi uma conclusão
ou um pressuposto da investigação científica do século XIX ou de qualquer outra
época” (JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy, p. 37). Eu
achei isso um tanto quanto surpreendente. Se alguém descobre que as experiências
conscientes têm uma explicação neurofisiológica, ou uma explicação em termos de
bioquímica cerebral, este alguém não estaria apresentando algum tipo de evidência
que incide na questão de se o homem é de “origem superior” ou “distinta” em relação
ao restante da natureza? Nossa consciência e nossa capacidade de auto-reflexão, de
espiritualidade, de “introspecção” estão entre os típicos fenômenos alegados como
evidência de nossa natureza “superior” ou “distinta”, talvez mesmo como vislumbres
de uma “alma” imaterial. Se, de fato, são explicáveis através de processos e mecanismos operativos em outras instâncias do mundo natural, não seria então evidência de
que não somos de uma “origem superior ou distinta” em relação ao restante das coisas
naturais? Se não, o que seriam?
15 Ibidem, p. 5.
82
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Assim, talvez devêssemos fazer uma pausa para reiterar o quão profunda é, para Nietzsche, a implicação das descobertas da influência da fisiologia nas experiências conscientes e nas atitudes.
O influente Materialismo Alemão de meados do século XIX
deu corpo a uma perspectiva naturalista do mundo, bem articulada
por um de seus principais proponentes, o médico Ludwig Büchner,
em seu best-seller de 1855, Kraft und Stoff (Força e Matéria), nos seguintes moldes: “as pesquisas e descobertas dos tempos modernos
já não podem nos permitir duvidar que o homem, com tudo aquilo
que tem e possui, seja espiritual ou corpóreo, é um produto natural
como qualquer outro ser orgânico”16. “O homem é um produto da
natureza”, afirma Büchner, “de corpo e espírito. Assim, não apenas o que ele é, mas também o que ele faz, deseja, sente e pensa,
depende da mesma necessidade natural, como toda estrutura do
mundo”17. O Materialismo Alemão provavelmente teve seu início
com os trabalhos de Feuerbach do final de 1830 e começo de 1840,
porém assumindo maior proeminência no meio intelectual nos meados do século XIX, sob o ímpeto das então recentes descobertas a
respeito dos seres humanos, alcançadas pela emergente ciência da
fisiologia. Na Alemanha, depois de 1830, a “fisiologia (...) se tornou
a base da moderna ciência médica, confirmando assim a tendência,
identificável ao longo de todo o século XIX, à integração das ciências humanas e naturais”18. Em sua Filosofia do Futuro, Feuerbach
escreveria que “a nova filosofia faz do homem, juntamente com a
natureza enquanto fundamento do homem, o objeto único e universal da filosofia: a antropologia, incluindo a fisiologia, se torna
a ciência universal” (Sec. 54). Os anos de 1850 presenciaram uma
explosão de livros dedicados às novas ciências, articulados segundo
16 BÜCHNER, L. Force and Matter. Trad. de J.G. Collingwood. Londres: Trubner, 1870,
p. LXXVIII.
17 Ibidem, p. 239.
18SCHNÄDELBACH, H. Philosophy in Germany: 1831-1933. Trad. E. Matthews.
Cambridge: Cambridge University Press,1983, p. 76.
cadernos Nietzche 29, 2011
83
Leiter, B.
a perspectiva naturalista do Materialismo Alemão. Como escreveu
um especialista: “Durante os anos de 1850, os materialistas alemães (...) tomaram o mundo intelectual de assalto”19. Uma crítica do
materialismo escrita em 1856 denuncia “uma nova perspectiva de
mundo que está se acomodando na mente dos homens. Ela se propaga como um vírus. Todo jovem espírito da geração atual é afetado
por ela”20. Nós sabemos a partir da pesquisa de Thomas Brobjer21
que Nietzsche leu Feuerbach ainda jovem, assim como foi um leitor
regular do jornal Anregung für Kunst, Leben und Wissenschaft que
publicou, no início dos anos de 1860, vários artigos a respeito do
materialismo, escritos inclusive por Büchner.
Entretanto, o acontecimento crucial para Nietzsche foi sua descoberta, em 1866, da então recém-publicada História do materialismo de Friedrich Lange, um livro que revelou a ele toda a história
filosófica do materialismo, incluindo o Materialismo Alemão, assim
como o introduziu nos mais significativos desenvolvimentos da ciência natural moderna, especialmente da química e da fisiologia22.
Assim como no caso de Schopenhauer, o impacto dessa leitura no
jovem Nietzsche foi dramático. “Kant, Schopenhauer, este livro de
Lange – eu não preciso de mais nada”, escreveu ele em 186623.
Ele julgou o trabalho como “indubitavelmente o estudo filosófico
mais significativo surgido nas décadas recentes”24, e o chamou
ainda, em uma carta de 1868, de “verdadeiro tesouro”, mencionando também, dentre outras coisas, a discussão de Lange sobre
19 VITZTHUM, R. C. Materialism: An Affirmative History. Amherst, NY: Prometheus
Books, 1995, p. 98.
20 Apud GREGORY, 1977, F. Scientific Materialism in Nineteenth-Century Germany.
Dordrech: D. Reidel, p. 10.
21 BROBJER, T. Nietzsche’s Philosophical Context:An Intellectual Biography. Urbana:
University of Illinois Press 2008, pp. 44, 123, 133-134.
22 Cf. BROBJER, op. cit., p. 32-36.
23 Apud JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: Biographie. Munique: Hanser, 1978, Vol. I,
p. 198
24 Ibidem.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
o “movimento materialista de nossos tempos”25. Lange, por sua
vez, foi um dos inúmeros “neokantianos” críticos do Materialismo
que defendiam, primeiramente, que a fisiologia moderna corroborou o kantismo ao demonstrar o quão dependente do peculiar
aparato sensório humano é o conhecimento26 [ao discutir a “confirmação por parte da ciência do ponto de vista crítico na teoria
do conhecimento”] e 3ª Sec., Cap. IV [“A Fisiologia dos Órgãos
Sensíveis e o Mundo como Representação”]); e, além disso, que os
Materialistas eram ingênuos em acreditar que a ciência nos fornece
conhecimento da coisa-em-si, ao invés do mero mundo fenomênico (cf. p. 84 [“a fisiologia dos órgãos sensíveis tem (...) apresentado fundamentos decisivos para a refutação [epistemológica] do
Materialismo”]27. No entanto, de modo geral, a atração intelectual
de Lange era claramente direcionada aos Materialistas, assim como
era contrária aos idealistas, teólogos e quaisquer outros que resistiam à crescente visão científica do mundo e dos seres humanos.
Assim, por exemplo, Lange ressalta: “se o Materialismo pode ser
descartado tão somente a partir de um criticismo fundado na teoria
[kantiana] do conhecimento (...) no âmbito das questões positivas,
ele está inteiramente com a razão...”28.
Muito embora se instalasse uma reação ao Materialismo
Alemão entre os anos de 1870 e 1880, o engajamento juvenil de
Nietzsche com os Materialistas causou nele uma profunda e permanente impressão. No início de 1868, ele momentaneamente vislumbrou migrar do estudo de filologia para o de química, e a partir do
final dos anos de 1860, começou uma intensiva leitura de trabalhos
25 Apud STACK, G. Lange and Nietzsche. Berlim: de Gruyter, 1983, p. 13.
26 LANGE, F. History of Materialism, vol. 2. Trad. E.C. Thomas. New York: Humanities
Press, 1950, p. 322.
27 Ibidem, p. 277 ss.; p. 329.
28 Ibidem, p. 322.
cadernos Nietzche 29, 2011
85
Leiter, B.
dedicados às ciências naturais29, leituras estas que continuaram
ao longo dos anos de 188030. Ele declara que, ao final dos anos de
1870, “uma sede ardente tomou conta de mim: dali em diante eu
de fato não me ocupei senão com fisiologia, medicina e ciências
naturais” (EH/EH, Humano, demasiado humano 3, KSA 6.324).
Essa influência é evidente ainda em seus escritos de maturidade,
dos anos de 1880. Em Ecce Homo, ele se lamenta do “grave erro”
de ter “se tornado um filólogo – por que não ao menos médico ou
alguma outra coisa que me abrisse os olhos?” (EH/EH, Por que sou
tão esperto 2, KSA 6.282). Também no quase sempre mal compreendido terceiro ensaio da Genealogia – no qual Nietzsche ataca tão
somente o valor da verdade, e não sua objetividade ou nossa habilidade de conhecê-la – Nietzsche se refere à “quantidade de trabalho útil que há para ser feito” nas ciências e acrescenta, em relação
aos seus “honestos trabalhadores”: “me deleito com seu trabalho”
(GM/GM III 23, KSA 5.395). Como ressalta Clark, os trabalhos de
maturidade de Nietzsche – Genealogia, Crepúsculo dos ídolos, O
Anticristo, Ecce homo – “exibem um acatamento uniforme e nada
ambíguo em relação aos fatos, aos sentidos e à ciência”31.
29 BROBJER, T. Nietzsche’s Philosophical Context: An Intellectual Biography. Urbana:
University of Illinois Press, 2008, p. 35.
30 JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: Biographie, Vol. II, p. 73-74.
31 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990, p. 105. Hussain apresenta um interessante e complicado argumento, no
sentido de que deveríamos entender o naturalismo de Nietzsche através da ótica de
Ernest Mach, para que se entenda como Nietzsche “poderia, simultaneamente, rejeitar a coisa-em-si, aceitar uma tese de falsificação e ser um empirista” que também
seja “amigável com a ciência” (HUSSAIN, N. Nietzsche’s Positivism. In: European
Journal of Philosophy, 12, 2004, p. 327-328). Para Mach, neste sentido, é empirista
quem acredita que “temos acesso direto a toda a realidade existente, ou seja, o mundo
dos elementos sensórios”, mas que igualmente sustenta que “qualquer tentativa de
ter um pensamento que represente algo acerca do mundo dos elementos sensórios se
vale de conceitos que falsificam” estes mesmos elementos (Ibidem, p. 353, 351). No
entanto, Mach é ainda “amigável com a ciência” na medida em que considera que as
“asserções empíricas comuns poderiam ainda conter informações sobre o fluxo das
sensações apesar de serem literalmente falsas” (Ibidem, p. 354). Entretanto, é um
86
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
tanto ou quanto intrigante como um Nietzsche machiano permanece “amigável” com
a ciência no sentido enfatizado por Clark (no texto) e não questionado por Hussain.
Hussain alega que um Nietzsche machiano crê que afirmações causais “falsificam”
a realidade, mesmo que ainda assim “sejam claramente úteis para comunicar informações sobre complexos de sensações relativamente estáveis e suas relações.” Mas
como elas podem ser “falsas” e comunicar “informações”? Mentiras, quando reconhecidas como tais, comunicam informações, mesmo que sejam ainda “literalmente
falsas”, mas isso é por conta das inferências que se pode traçar acerca dos motivos e
intenções do mentiroso, mesmo que isso não pareça ajudar nessa instância. A ideia
deve ser antes que as asserções, apesar de literalmente falsas, são parcialmente verdadeiras em algum sentido. Mas de que modo essa última proposição ajudará no caso
de Nietzsche? Afinal de contas, são as afirmações “causais” que são “literalmente
falsas”, e afirmações causais são aquilo que Nietzsche necessita. Ressentimento, diz
ele na Genealogia (para tomar apenas um exemplo), tem uma “causa fisiológica real”
(I - §15): se isso é literalmente falso, então o que resta nele de verdadeiro e que recomenda as considerações causais/explanatórias de Nietzsche contra as da moral e da
religião que ele pretende substituir? As dificuldades filosóficas com a leitura proposta
se tornam mais urgentes na medida em que surgem determinadas questões históricas
e textuais. Mach realmente teve algum impacto sobre Nietzsche? O principal trabalho
de Mach em questão nem sequer havia aparecido até 1886, mesmo ano de Para além
de Bem e Mal, obra sobre a qual supostamente teria causado impacto. Hussain admite
que evidências explícitas de influência são difíceis de conseguir. Sua mais ambiciosa
interpretação é que o Nietzsche machiano nos ajuda a dar sentido a seções cruciais
de um trabalho tardio (de 1888), Crepúsculo dos Ídolos. Especificamente, ele nos ajudaria a explicar o que Nietzsche quer dizer com sua afirmação de que o mundo “aparente” é o único mundo. Hussain (Ibidem, p. 345) invoca uma passagem de Análise
das Sensações de Mach (1886) que, segundo ele, evoca a perspectiva de Nietzsche
em CI, especialmente a famosa seção “Como o ‘Verdadeiro Mundo’ finalmente se
tornou fábula.” Esta passagem, é claro, foi interpretada por Clark, John Wilcox e
outros como a descrição feita por Nietzsche de sua própria trajetória de pensamento
no que diz respeito à distinção entre aparência e realidade. No entanto, exceto pela
descrição da coisa-em-si como “supérflua” comum a ambos, Mach e Nietzsche, não
consigo ver nenhuma semelhança considerável entre esta passagem de CI e aquela
de Mach destacada por Hussain. De fato, as dessemelhanças são mais notáveis. Não
há nada na passagem de CI, por exemplo, que sugira afinidade de Nietzsche à visão
de Mach de que “o mundo” é “um conjunto coerente de sensações, apenas mais
fortemente coerente no ego.” Alem do mais, o argumento na passagem de CI parece
sugerir claramente que o “positivismo” está apenas no quarto estágio do pensamento
de Nietzsche, algo que ele deixa pra trás no sexto e último estágio, quando o mundo
“aparente” é também abolido (em decorrência de não haver mais um contrastante
mundo “verdadeiro”). A leitura machiana de Hussain poderia se sair um tanto melhor
com partes da seção de CI, “‘Razão’ na filosofia”, apesar de achar que, mesmo ali, os
cadernos Nietzche 29, 2011
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Leiter, B.
Ao inserir o naturalismo de Nietzsche no interior de uma tipologia mais ampla das espécies de naturalismo, aparentemente
semeei confusão junto a alguns estudiosos. A recente crítica de
Christopher Janaway à minha leitura naturalista é ilustrativa. Ele
alega que:
Nenhuma justificação ou suporte científico é dado – ou facilmente imaginável – para a hipótese explanatória central que Nietzsche
oferece para a origem de nossas atitudes e crenças morais. Como um
caso paradigmático incontestável, tome a hipótese de Nietzsche, da
primeira dissertação da Genealogia, segundo a qual a qualificação
das ações altruístas, da humildade e da compaixão como “boas”
começou por ter havido classes sociais inferiores de indivíduos nos
quais sentimentos de ressentimento contra seus senhores motivaram
a criação de novas distinções de valor. Esta hipótese explica os fenômenos morais em termos de suas causas, mas não fica claro como
isso é justificado ou sustentado por algum tipo de ciência, nem mesmo o que tal justificação ou suporte pode ser32.
Esta objeção, é claro, simplesmente ignora minha afirmação de que Nietzsche, assim como Hume, foi um Naturalista-M
Especulativo como tinha de ser, dado o estado primitivo da psicologia do século XIX. Um Naturalista-M Especulativo simplesmente
não alega que os mecanismos explanatórios essenciais à sua teoria – que explicam por que os seres humanos pensam e agem do
reais pontos de referência de Nietzsche são Heráclito e Demócrito, e não algum de
seus contemporâneos; além disso, o próprio sumário que Nietzsche faz do argumento
(na seção 6 de “‘Razão’ na filosofia”) não apresenta elementos machianos. De fato,
essa última seção (que Hussain ignora) melhor se adapta, penso eu, à interpretação dessa passagem feita por Clark (CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy.
Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 106-108).
32 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford
University Press, 2007, p. 37.
88
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
modo como o fazem – são sustentados por resultados científicos
existentes. Para que fique claro, o que Nietzsche realmente faz é
apelar para mecanismos psicológicos – tais como o ódio inflamado
característico do ressentimento – para os quais parece haver ampla evidência tanto na experiência comum quanto na histórica, e
daí tecer uma narrativa mostrando como estes mecanismos simples
poderiam ocasionar atitudes e crenças humanas específicas. Além
do mais, é bastante fácil ver qual evidência empírica incidiria no
caso: por exemplo, a evidência de que um estado psicológico utilmente individualizado como o ressentimento proporciona diagnóstico ou propósitos preditivos. Mesmo na primeira dissertação da
Genealogia, Nietzsche suscita uma série de provas de sua autoria
em apoio à existência desse mecanismo psicológico: por exemplo,
os fatos acerca da etimologia dos termos “bem” e “mal”; o fato
histórico genérico de que o cristianismo fundou suas raízes junto
às classes oprimidas no império romano; além da retórica dos primeiros Padres da Igreja. Aqui vemos Nietzsche argumentando a
favor de um tipo de inferência especificamente científica: ou seja,
acreditar no papel causal de um mecanismo psicológico particular,
para o qual há evidência ampla e independente, nas bases de seu
extenso escopo explanatório, isto é, sua habilidade de dar sentido a
uma variedade de dados e pontos distintos.
Vale ressaltar que Janaway de fato endossa uma visão mais
fraca da minha leitura de Nietzsche como um Naturalista-M, embora esse enfraquecimento pareça derivar de sua má compreensão
do papel da “continuidade de resultados” na minha interpretação
do Naturalismo-M de Nietzsche. Ele escreve que “Nietzsche é um
naturalista na medida em que está comprometido com uma espécie
de teoria que explica X apontando Y e Z como suas causas, quando
nossa melhor ciência não é capaz de falsear o fato de Y e Z serem
cadernos Nietzche 29, 2011
89
Leiter, B.
causas de X”33. Janaway prefere essa formulação por conta de suas
dúvidas a respeito da existência de resultados científicos efetivos
que sustentem as reais explicações causais de Nietzsche. Na medida em que minha leitura do naturalismo de Nietzsche, de todo
modo, enfatiza seu caráter especulativo, a formulação de Janaway
pode servir, por outro lado, como uma maneira de estabelecer uma
restrição pertinente para as explicações especulativas: ou seja, que
elas não invoquem entidades ou mecanismos que a ciência tenha
descartado. Mas, ainda assim, este parece ser um critério desnecessariamente fraco: por que não esperar, ao invés disso, que um
bom naturalista especulativo irá confiar em mecanismos explicativos que gozem de certo suporte probatório, ou de um escopo explanatório mais amplo como o tipo de explicações genuínas que
esperamos que sejam exemplificadas pelas ciências? Não creio
que haja alguma passagem em Nietzsche que resolva essa questão;
trata-se, portanto, de fornecer a reconstrução filosoficamente mais
atraente de sua efetiva prática explanatória. Voltaremos a essa prática na próxima seção.
II. Dois Nietzsches: humiano e terapêutico
Em minha leitura de Nietzsche como um naturalista filosófico, eu enfatizei dois aspectos nos quais o naturalismo seria ou
subordinado a ou substituído por outras preocupações filosóficas. Mesmo que, como argumentei, “o grosso da atividade filosófica [de Nietzsche] seja dedicada a variações sobre este projeto
naturalista”34– ou seja, explicar a moralidade em termos condizentes com o naturalismo – é igualmente claro que seu “naturalismo
seja mobilizado em prol de uma ‘revaloração de todos os valores’”,
33 Ibidem, p. 38.
34 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 11.
90
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
que é o projeto de tentar “livrar os novos tipos superiores de sua
‘falsa consciência’, isto é, de sua falsa crença de que a moralidade
dominante é, de fato, boa para eles”35. Isto significa, obviamente,
que mesmo quando os textos de Nietzsche são moldados por seu
Naturalismo-M, ele tem boas razões para empregar uma variedade
de recursos retóricos, visando inquietar seus leitores em relação a
seus compromissos morais existentes.
Além do fato de que o Naturalismo-M de Nietzsche é um instrumento a serviço da revaloração dos valores, há também o importante aspecto de que ele efetivamente usa o termo “filósofo” como
uma honraria para designar aqueles que “criam” valores36. Essa
atividade não faz parte do projeto naturalista, senão em dois sentidos relativamente fracos: primeiro, na suposição de que ele esteja
observando a restrição de que “dever implica poder”, isto é, na não
valorização de quaisquer capacidades e realizações que estejam,
de fato, além dos horizontes de criaturas como nós; segundo, ao
pensar que as ciências podem esclarecer os efeitos de diferentes
tipos de valor em diferentes tipos de pessoas (os apontamentos de
GM/GM I são notável exemplo)37.
Chamemos de “Nietzsche humiano” o Nietzsche que visa a explicar a moralidade em chave naturalista (no sentido já discutido),
contrastando com o filósofo que chamaremos de “Nietzsche terapêutico”, que deseja fazer com que seus seletos leitores joguem
fora os grilhões da moralidade (ou MSP38, como a denominei39).
A “revaloração dos valores” envolve a mobilização do Nietzsche
35 Ibidem, p. 26, 28; cf. p. 283.
36 Ibidem, p. 11.
37 Gostaria de destacar que tomo a doutrina do eterno retorno como uma doutrina ética,
portanto como parte do projeto de “criação” de novos valores, e assim tendo apenas
uma conexão tangencial com o naturalismo de Nietzsche.
38 MSP aqui equivale a MPS no texto de Leiter referido, se tratando de uma sigla para
Morality in Pejorative Sense, ou seja, Moralidade em Sentido Pejorativo. (NT)
39 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 78-79.
cadernos Nietzche 29, 2011
91
Leiter, B.
humiano para os fins do Nietzsche terapêutico, mesmo que este
último tenha à sua disposição (como argumentei40) uma variedade
de outros recursos retóricos, para além do entendimento da moralidade proporcionado pelo primeiro: por exemplo, explorando
a falácia genética (fazendo com que seus leitores pensem que há
algo de errado com sua moralidade por conta de sua origem vergonhosa) ou explorando sua vontade de verdade (mostrando que
a metafísica do agente da qual sua moralidade depende é falsa).
Que o Nietzsche terapêutico deva recorrer ele mesmo a recursos
não-racionais é algo que não surpreende, sendo, na verdade, algo
decorrente do entendimento que o Nietzsche humiano obtém das
pessoas, como já destaquei:
O naturalismo de Nietzsche, e o proeminente papel que ele atribui a impulsos inconscientes e fatos relativos aos tipos, tornam-no
cético em relação à eficácia de razões e argumentos. Mas um cético
acerca da eficácia da persuasão racional pode muito bem optar pela
persuasão segundo outros recursos retóricos41.
E é justamente o que Nietzsche faz repetidamente, seja na
Genealogia, seja em qualquer outra parte. Como escrevi: uma vez
que “o objetivo último da Genealogia é libertar os novos seres
humanos superiores de sua falsa consciência a respeito da MSP,
Nietzsche não tem razões para desautorizar formas falaciosas de
pensamento [tais como a falácia genética] na medida em que elas
são retoricamente efetivas”42.
Recentemente, Janaway43 tem posto uma ênfase considerável
no Nietzsche terapêutico, argumentando com plausibilidade que
40 Ibidem, p. 159, 176.
41 Ibidem, p. 155.
42 Ibidem, p. 176.
43 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford
University Press, 2007.
92
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Nietzsche procurou se engajar emocional ou “afetivamente” com
seus leitores, porque tal engajamento era uma precondição necessária para alterar a perspectiva do leitor acerca das questões
valorativas. Como o próprio Janaway diz: “sem as provocações retóricas, sem a revelação daquilo que para nós é terrível, vergonhoso,
embaraçoso, reconfortante e comovente, não seríamos capazes de
compreender nem de revalorar os valores correntes”44.
De qualquer maneira, Janaway pretende concluir daí que seja
equivocado tratar o “estilo” – isto é, o recurso retórico essencial
aos objetivos terapêuticos de Nietzsche – como “mero modo de
apresentação, discernível, em princípio, do conjunto elusivo de
proposições que acreditamos provavelmente constituir seu pensamento”, na medida em que fazer isso “é perder grande parte da
real importância de Nietzsche para a filosofia”45. “O modo como
Nietzsche escreve,” explica Janaway, “dirige-se aos nossos afetos,
sentimentos ou emoções. Ele provoca simpatias, antipatias e ambivalências que repousam na psique moderna para além do nível
da decisão racional e da argumentação impessoal.” Isso, afirma
Janaway, “não é um exercício gratuito de estilo que poderia ser
suprimido do pensamento de Nietzsche”46.
Estas e outras passagens similares do livro de Janaway47 parecem confundir os Nietzsches humiano e terapêutico. Não pode
haver dúvida de que o objetivo prático de Nietzsche é transformar
a consciência complacente de seus leitores (ou ao menos de alguns deles) em relação à moralidade herdada, sendo igualmente
44
45
46
47
Ibidem, p. 4; cf. p. 96-98.
Ibidem, p. 4.
Ibidem, p. 4.
Ver principalmente JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy,
p. 212, onde ele afirma, sem qualquer fundamento, que “está fora de questão que
Nietzsche considera a Genealogia como uma fonte de maior conhecimento [destaque
meu] acerca da moralidade que qualquer combinação das tradicionais Wissenschaften
poderia ter alcançado sem auxílio,” o que só seria verdade se os objetivos terapêuticos
fossem confundidos com as teses filosóficas de Nietzsche a respeito da moralidade.
cadernos Nietzche 29, 2011
93
Leiter, B.
evidente que o único modo de se fazer isso é envolvendo-os emocionalmente. No entanto, a proposição de que os leitores somente
irão mudar seus compromissos morais mais básicos se seus estados afetivos fundamentais forem despertados e alterados é, por si
mesma, uma posição filosófica que pode ser exposta independentemente de emoções. O que Janaway é incapaz de estabelecer é a
tese de que não se pode, de fato, separar as posições filosóficas do
Nietzsche humiano (acerca da ação, das motivações, da origem da
moralidade, etc.) do modo de apresentação essencial aos objetivos
do Nietzsche terapêutico.
Considere o caso análogo da psicanálise freudiana. De modo
diverso de Nietzsche, obviamente, os livros de Freud não têm
objetivos terapêuticos; a terapia tem lugar no consultório do psicanalista. Os livros de Freud, por sua vez, expressam conteúdos
cognitivos referentes às suas posições filosóficas e teóricas: acerca
da estrutura da mente, da interpretação dos sonhos, do curso de desenvolvimento da psique humana e – o que é mais importante para
nossos propósitos – da centralidade do mecanismo de transferência
para o sucesso terapêutico. Todavia, uma correta descrição teórica
da transferência não é um substituto da experiência real de transferência do paciente no cenário terapêutico, quando ele projeta no
analista seus sentimentos até então reprimidos e que têm sido a
causa de seu sofrimento, permitindo ao paciente reconhecer enfim
a realidade daqueles sentimentos.
Presumo que ninguém seja contra a possibilidade de se separar a explicação teórica da transferência enquanto mecanismo terapêutico da real experiência de cura via psicanálise, culminando
(mais ou menos) com o momento da transferência. Nietzsche difere
de Freud em muitos aspectos, porém apenas um interessa nesse
contexto: seus livros são a expressão do posicionamento teórico e
o método terapêutico. As posições teóricas do Nietzsche humiano
– por exemplo, o que ele acredita ser capaz de explicar a gênese
de nossa moralidade corrente, como ele entende os mecanismos da
psicologia humana, o que ele considera das consequências causais
94
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
das crenças morais, etc. – estão tanto de forma implícita quanto
explícita em um texto que também visa a produzir um efeito terapêutico em certos leitores, isto é, livrá-los de sua falsa consciência acerca da moralidade dominante. Da mesma maneira que uma
transferência bem-sucedida requer que o paciente experiencie os
sentimentos reprimidos direcionados ao analista, uma revaloração
dos valores bem-sucedida requer, subconscientemente, o envolvimento do leitor em um nível afetivo, a ponto de sentir asco, desgosto e embaraço em relação a suas crenças morais existentes. De
todo modo, não se segue daí que não possamos separar o conteúdo
filosófico ou cognitivo da técnica terapêutica, que não possamos
separar o Nietzsche humiano do terapêutico.
Neste contexto, devemos nos lembrar de quão presente é o projeto
do Nietzsche humiano – não apenas na Genealogia da moral, mas
em Aurora, em Para além de bem e mal (mais obviamente o capítulo “História Natural da Moralidade”), no Crepúsculo dos ídolos e
em outros mais. Em uma nota de pé de página do meu livro48 que
Janaway invoca mais de uma vez, eu descrevo o Naturalismo-M de
Nietzsche como reflexo de sua “real prática filosófica, isto é, aquilo com o que ele mais despende tempo na feitura de seus livros.”
Janaway se contrapõe a essa posição dizendo que “os métodos de
Nietzsche, como evidência daquilo ‘com o que ele mais despende
tempo na feitura de seus livros’, são caracterizados por recursos
artísticos, pela retórica, por provocações afetivas e pela exploração das reações pessoais do leitor, mostrando pouca preocupação
com métodos que, de modo informativo, poderiam ser chamados
científicos”49. Entretanto, esse tipo de censura nada mais faz do
que evidenciar a confusão feita por Janaway entre os Nietzsches
humiano e terapêutico. O Nietzsche terapêutico de fato depende
48 LEITER, B. op. cit,, p. 6.
49 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy, p. 52.
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95
Leiter, B.
“de recursos artísticos, da retórica, da provocação afetiva e da exploração das reações pessoais do leitor” e muito do corpus é, realmente, dedicado ao projeto terapêutico; mas isso não muda o fato
de que o projeto terapêutico é conjuntamente buscado e moldado
pela estrutura básica formulada pelo Nietzsche humiano acerca dos
agentes e da moralidade, o que também está presente no corpus.
Essa última característica é reconhecidamente uma concepção naturalista que, de fato, explica por que a discursividade racional –
em contraste com os recursos estilísticos que Janaway enfatiza – é
uma técnica terapêutica ineficaz50.
50Janaway segue a mesma linha crítica, envolvendo a mesma confusão entre os
Nietzsches humiano e terapêutico, porém de um modo diverso. Ele sugere que
Nietzsche não poderia ter sido um Naturalista-M porque rejeitou a postura “desinteressada, impessoal e afetivamente neutra” do investigador científico: Nietzsche
“defende um estilo literário, pessoal e afetivamente engajado de investigação que
deliberadamente se opõe à ciência, no modo como esta se concebe: como desinteressada, impessoal e afetivamente neutra” (JANAWAY, C, op. cit., p. 39). Sua prova
consiste na afirmação de que a objeção “mais fundamental” de Nietzsche aos “métodos e resultados” de seu amigo Paul Rée é que este assume que o “desinteresse
[selflessness] é constitutivo da moralidade”, que o “desinteresse tem valor positivo”
(Ibidem, p. 40). Esta é certamente a objeção substantiva de Nietzsche à posição de
Rée, mas eu não vejo qualquer evidência de que constitua uma objeção à sua metodologia. GM/GM I 1 inicia por vislumbrar as motivações dos “psicólogos ingleses” (dos
quais Rée é um exemplo), mas então GM/GM I 2 se direciona a uma genuína objeção
metodológica, qual seja, tratar o uso ou significado corrente de algo como garantia de
inferência acerca de sua origem (ver discussão em LEITER, B. Nietzsche on Morality.
Londres: Routledge, 2002, p. 198-199). Para criar uma conexão entre a oposição de
Nietzsche ao desinteresse como ideal moral e suas crenças acerca da confiabilidade
epistêmica dos métodos de investigação, Janaway apela (JANAWAY, C., op. cit, p.
40-41) para FW/GC 345, onde Nietzsche afirma que o “‘desinteresse’ não tem valor
nem no céu nem na terra; todo grande problema demanda grande amor.” Mesmo essa
passagem não diz realmente nada sobre métodos de investigação, apesar de Janaway
destacá-la deste modo: “a adesão ao conceito de moralidade como desinteresse deixa
Rée involuntariamente preso a um modo estéril de investigação que poderia trazer
à tona apenas fracassos filosóficos” (Ibidem, p. 41). Se isso for o que realmente está
em questão, poderíamos esperar alguma evidência textual da Genealogia da moral
expressando essa preocupação. Mas, com exceção de uma passagem incidental na
qual Nietzsche chama os psicólogos ingleses de “velhos, frios, sapos entediantes”
96
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
III. Cultura, causação e vontade de potência
Mesmo se concordarmos que o Nietzsche humiano é um
Naturalista-M e que seu Naturalismo-M explica, por sua vez, por
que algo como a lista de lavanderia de Janaway parece uma correta
descrição das posições expressas por Nietzsche, nos restam ainda
três obstáculos adicionais para a leitura de Nietzsche como um naturalista filosófico: primeiro, embora menos importante, a questão
de se há um papel para a “cultura” no tipo de explicações naturalistas que Nietzsche nos oferece; segundo, como entender a noção
de causação, fundamental para minha leitura de Naturalismo-M,
assim como se Nietzsche está mesmo apto a se valer de tal conceito;
terceiro, e talvez mais importante, se a doutrina nietzschiana da
(GM/GM I 1, KSA 5.257) no contexto da investigação de seus motivos, a única aparente evidência da Genealogia da moral que Janaway pode aduzir é esta: “No epigrama
de GM/GM III, a sabedoria é uma mulher que ama apenas quem seja ‘despreocupado,
zombeteiro, violento’, em oposição [ao tipo descrito em FW/GC 345, KSA 3.577]. O
epigrama introduz o ensaio de Nietzsche sobre o significado do ideal ascético e aponta para a principal reivindicação do ensaio de que o real método científico objetivo
é nada mais que uma outra versão de uma crença metafísica, originariamente cristã,
na autonegação ascética diante de algo absoluto e quase-divino chamado verdade”
(Ibidem, p. 41-42). É algo revelador o fato de que Janaway não cita nenhum texto da
GM/GM III, e sua caracterização do argumento ali presente parece ser imprecisa,
particularmente sua caracterização da objeção de Nietzsche como voltada contra o
“método objetivo, científico”, em oposição à superestimação da verdade pela ciência
(cf. LEITER, B., op. cit.,, p. 265 ss.). A ciência, segundo afirma Janaway, pode ser
“comprometida com uma visão de si mesma como livre de afetos, desinteressada e
impessoal”, mas, com a exceção de alguns poucos especialistas automatizados [clock-like scholars], Nietzsche rejeita a ideia de que a Wissenschaft seja realmente assim
– mesmo os psicólogos ingleses têm motivos ocultos, como ele diz em GM/GM I, 1!
Que a ciência, assim como quase toda atividade investigativa, não seja realmente
desinteressada é algo que não tem implicação nas virtudes metodológicas da ciência,
algo que está claro para Nietzsche. Em suma, Janaway parece confundir os motivos
para se engajar na ciência e os métodos da ciência. Pode-se ter profunda preocupação
com o objeto de investigação (como, por exemplo, Nietzsche teve) e acreditar que as
explicações causais e os mecanismos causais referentes ao naturalismo sejam meios
corretos de entender como o mundo realmente funciona.
cadernos Nietzche 29, 2011
97
Leiter, B.
vontade de potência é realmente compatível com a ideia de que
o Nietzsche humiano vê a si mesmo como alguém que está trabalhando “em parceria com” as ciências empíricas, ao invés de
substituindo-as e transformando-as. Nesta seção, retomaremos
cada uma destas questões.
A. O papel da cultura nas explicações naturalistas.
Em minha leitura do Nietzsche humiano, afirmo que ele busca
oferecer teorias que expliquem vários fenômenos humanos importantes (especialmente o fenômeno da moralidade) e que procede
tanto no sentido de que essas teorias se valem dos resultados científicos reais – ou pelo menos são constrangidas por esses resultados –
mas principalmente no sentido de que são modeladas pela ciência,
na medida em que buscam revelar as determinantes causais desses
fenômenos, geralmente a partir de diversos fatos fisiológicos e psicológicos acerca das pessoas. Mais precisamente, argumentei que
Nietzsche endossa uma visão que eu chamo de “doutrina dos tipos”,
de acordo com a qual toda pessoa tem uma constituição psicofísica
fixa que a define como um tipo particular de indivíduo. Eu denomino os fatos psicofísicos relevantes de “fatos relativos ao tipo”
[type-facts]. São os fatos relativos ao tipo, por sua vez, que figuram
nas explicações das ações e crenças humanas (inclusive as crenças acerca da moralidade). Um dos empreendimentos centrais de
Nietzsche é, portanto, o de especificar os fatos relativos ao tipo – os
fatos psicológicos e fisiológicos – que explicam como e porque uma
moralidade essencialmente ascética ou “negadora da vida” pôde se
apoderar de tantas pessoas ao longo dos últimos dois milênios.
Um fato relativo aos tipos específicos é de fundamental importância para Nietzsche: o que ele chama de “vontade de potência.” Seu papel explanatório central é articulado na Genealogia da
seguinte maneira:
98
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O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Todo animal (...) busca instintivamente [instinktiv] um optimum de
condições favoráveis no qual liberte inteiramente seu poder [ou força; Kraft] e alcance o máximo de sentimento de poder; todo animal
abomina, também instintivamente e com um olfato acurado “maior
que toda razão”, todo tipo de distúrbio e obstáculo que o impeça ou
possa impedi-lo em seu caminho para este optimum... (GM/GM III,
§7, KSA 5.349).
Se é um fato natural acerca das criaturas como nós que “instintivamente” maximizamos nossa força ou poder, então este fato,
juntamente com outros fatos de tipo e circunstanciais, deve figurar
em toda explicação a respeito do que fazemos ou acreditamos. Desse
modo, por exemplo, aqueles que são essencialmente fracos ou impotentes (como os escravos na primeira dissertação da Genealogia da
moral) expressam sua vontade de potência criando valores que são
favoráveis aos seus interesses; aqueles que são fortes, em contrapartida, expressam seu poder através da ação física, e assim por diante.
Christopher Janaway questiona que:
Se as explicações causais de Nietzsche para nossos valores morais
são naturalistas, elas o são no sentido de que incluem no que se
chama aí de “natural” não apenas a constituição psicofísica do indivíduo cujos valores buscamos explicar, mas também vários fenômenos culturais complexos e os estados psicofísicos de indivíduos
passados, com seus tipos individuais idealizados51.
Mais precisamente, partindo de algumas passagens de
Aurora52, Janaway pretende enfatizar o interesse de Nietzsche pelo
papel das “inclinações e aversões” nos juízos morais do agente,
onde, como afirma, “minhas inclinações e aversões são hábitos ad-
51 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy, p. 53.
52 Ibidem, p. 45-47.
cadernos Nietzche 29, 2011
99
Leiter, B.
quiridos, inculcados a partir da cultura específica na qual estou
inserido”, sendo que “esta cultura inculca justamente estes hábitos
porque possui uma estrutura guia para as crenças de valor (...) que
se tornaram dominantes por atenderem a certas demandas afetivas dos indivíduos em estágios culturais mais antigos”53. Conforme
observa Janaway em uma nota de pé de página54, minha formulação do Naturalismo-M não tem razão para “negar” nada disso. Em
primeiro lugar, uma importante virtude do Naturalismo-M é que
ele não pretende resolver questões a priori sobre ontologia, mas
antes acatar algo qualquer que funcione nas práticas explanatórias das ciências. É notável, por exemplo, que o melhor trabalho
atual em psicologia moral – estou pensando aqui especificamente
em The Emotional Construction of Morals (2007) de Jesse Prinz,
que busca atualizar o projeto genealógico de Nietzsche – incorpore
explicitamente fatores culturais, via antropologia, como uma parte
central das ciências cognitivas relevantes que deveria figurar em
nosso entendimento da moralidade. Além disso, outra importante
aspiração própria ao filósofo naturalista, como propõe Stroud ao
explicar a perspectiva de Hume, é buscar explicações por meio
de “princípios gerais, talvez mesmo universais.” As ciências não
explicam por meio da ênfase em pormenores, isto é, em ocorrências
singulares, mas antes subsumindo os pormenores em tipos. Estes
tipos, conforme demonstra Prinz, podem vir a ser de caráter cultural, porém, no exemplo de Janaway, fica indefinido se são tipos
culturais que figuram nas explicações das crenças morais ou se
os fatores culturais simplesmente fixam o conteúdo particular dos
fenômenos explicados pelos tipos psicofísicos. Enfim, tenho muitas
dúvidas a respeito disso. Não há razão para negar que Nietzsche,
53 Ibidem, p. 47.
54 Ibidem, p. 47, n. 24.
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O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
o naturalista, está interessado em cultura, mas isso não deveria nos
levar a perder de vista o papel que as causas psicofísicas desempenham na explicação da moralidade que ele nos oferece.
B. Problemas de causação.
Em minha leitura do Naturalismo-M, o Nietzsche humiano
emula os métodos da ciência tentando construir explicações causais para as práticas humanas e suas crenças morais. Mesmo na
descrição (mais fraca) do naturalismo nietzschiano de Janaway, a
causação é algo central. Conforme ele afirma: Nietzsche “é comprometido com uma espécie de teorização que explica X apontando
Y e Z como suas causas, quando nossa melhor ciência não é capaz
de falsear o fato de Y e Z serem causas de X”55.
Fazemos bem em lembrar o quão importante são as explicações
causais para o projeto filosófico de Nietzsche. Quando ele diz em
Aurora, por exemplo, que “nossos juízos morais e valorações são
apenas imagens e fantasias baseadas em processos fisiológicos por
nós desconhecidos” (M/A 119, KSA 3.114), e que assim “é sempre
necessário trazermos à tona os fenômenos fisiológicos por detrás
dos prejuízos e predisposições morais” (M/A 524, KSA 3.301), ele
está fazendo uma afirmação causal, isto é, a afirmação de que certos processos fisiológicos causam juízos morais por meio de mecanismos presumivelmente complicados que os apresentam como
“imagens” e “fantasias” ocasionadas por estas causas. Quando ele
diz na Genealogia que o ressentimento – e a moralidade fomentada
por ele – tem uma “causa [Ursache] fisiológica real” (GM/GM I,
15, KSA 5.283), seu sentido é obviamente inequívoco. Quando ele
dedica um capítulo inteiro do Crepúsculo dos ídolos ao que chama
55 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford
University Press, 2007, p. 38.
cadernos Nietzche 29, 2011
101
Leiter, B.
de “os quatro grandes erros”, erros que dizem respeito quase inteiramente à causação – “confusão entre causa e efeito”, o “erro da
falsa causação”, o “erro das causas imaginárias” – fica claro que
ele pretende distinguir relações causais genuínas daquelas falaciosas que infectam o pensamento moral e religioso. Quando retorna
ao mesmo tema no Anticristo, novamente ele denuncia o cristianismo por vender “causas imaginárias” e por sugerir “uma ciência
natural imaginária”, que depende de conceitos antropocêntricos
e que carece de “qualquer conceito de causa natural” (M/A 15.
KSA 3.28; cf. M/A 25, KSA 3.36) – ciência correspondendo em
sua descrição a “conceitos saudáveis de causa e efeito” (M/A 49,
KSA 3.53). Causação e explicações causais são fundamentais para
o naturalismo de Nietzsche, assim como voltaram a ocupar uma posição central na filosofia da ciência dos últimos trinta anos56. Sem
a crença em alguma noção de causação é difícil ver como qualquer
uma dessas passagens de Nietzsche pode fazer sentido.
Eu gostaria de considerar dois diferentes tipos de objeções à
centralidade do nexo causal para o Naturalismo-M de Nietzsche.
O primeiro tipo de objeção não envolve qualquer ceticismo acerca
da causalidade, mas preocupações de que a “causação”, e a função que desempenha no Naturalismo-M de Nietzsche como eu o
descrevo, não seja adequada para definir uma posição teórica atraente. O segundo tipo de objeção ocupa-se da posição do próprio
Nietzsche em relação à causação. É desnecessário dizer que esta
segunda objeção é mais radical à luz da evidência que temos apresentado até o momento.
Em um estudo crítico do meu livro, Ken Gemes e Christopher
Janaway (2005) insistiram nessa primeira espécie de objeção. Eles
fazem três objeções-chave à minha formulação do Naturalismo-M:
primeiro, que “há muito na ciência que não diz respeito às
56 Cf. CARTWRIGHT, N. From Causation to Explanation and Back Again. In: Leiter,
B. (org.). The Future for Philosophy Oxford: Oxford University Press, 2004.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
descrições causais, como, por exemplo, as três leis da mobilidade planetária de Kepler”57; segundo, que procurar explicações
causais não é suficiente para estabelecer uma continuidade de
métodos com as ciências – como eles dizem, “apenas porque a astrologia busca explicações causais, não diríamos que ela compartilha uma continuidade de métodos com as ciências”58; e terceiro,
o verdadeiro papel causal que eu afirmo que Nietzsche reivindica
para os “fatos relativos aos tipos” – os fatos psicofísicos essenciais
acerca das pessoas aos quais Nietzsche recorre na explicação das
atitudes e crenças morais – é assaz fraco para determinar uma tese
naturalista atraente.
Podemos nos desfazer da primeira crítica de modo bastante
rápido. É bem verdade que muito do que é característico da prática
e da metodologia científica não envolve causação, muito embora as
três leis da movimentação planetária de Kepler – que são descrições
matemáticas do movimento dos planetas – sejam dedutíveis a partir
das leis newtonianas de movimento e gravitação, e desta maneira se
mantêm válidas por conta das forças causalmente efetivas descritas
por estas leis. Entretanto, o argumento em questão, tanto em minha caracterização do naturalismo de Nietzsche quanto na que faz
Stroud a respeito de Hume, não foi o argumento de que a ciência se
limita ao seu interesse por explicações causais, mas antes que um
aspecto característico da ciência seja que esta visa a proporcionar
autênticas explicações causais ou deterministas dos fenômenos a
partir do apelo a poucos princípios ou mecanismos gerais. Isso é
obviamente compatível com o fato de que parte do empreendimento
científico seja puramente descritivo.
De qualquer maneira, Gemes e Janaway, de modo semelhante,
temem que a tentativa de “atribuir explicações causais” não seja
57 GEMES, K.; JANAWAY, C. Naturalism and Value in Nietzsche. In: Philosophy &
Phenomenological Research, 71, 2005, p. 731.
58 Ibidem, p. 731.
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Leiter, B.
suficiente para falarmos em continuidade de métodos. Afinal de
contas, astrólogos e (poderíamos acrescentar) teóricos do design inteligente podem alegar que estão oferecendo explicações causais,
porém isso dificilmente faz deles Naturalistas-M. É claro que, em
minha formulação, a busca por causas deterministas era apenas um
aspecto do Naturalismo-M; como ressaltei, Nietzsche aceita algumas implicações do Naturalismo-S acerca dos mecanismos causais
viáveis, muito embora, na minha opinião, ele tome essas implicações substantivas como decorrentes das descobertas científicas. O
problema dos astrólogos e teóricos do design inteligente é que seus
conceitos sobre “o que pode causar o que” entram em conflito com
descobertas substantivas da própria ciência (por exemplo, de que
não há evidência empírica que fundamente intervenções sobrenaturais em fenômenos naturais, ou do poder causal dos planetas sobre as questões humanas).
Mais interessante é a crítica que Gemes e Janaway dirigem à
posição naturalista que chamei de “essencialismo causal” e que
atribuo a Nietzsche. Segundo esta posição, conforme ressaltam
Gemes e Janaway59, “toda substância individual tem propriedades
‘essenciais’ que são causalmente primárias com respeito à história
futura desta mesma substância, isto é, determinam de modo nada
trivial a margem de manobra para esta substância”60. Então eles
escrevem:
A importância dada [por Leiter] aos fatos naturais, no sentido de
serem causalmente primários em relação a algum efeito, é de que estes são necessários, porém não suficientes para o efeito em questão.
Entretanto, este é um significado extraordinariamente fraco; o fato de
termos uma cabeça é condição necessária, porém não suficiente para
nos tornarmos filósofos, mas não deveríamos querer dizer com isso
59 Ibidem, p. 733.
60 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 83.
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O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
que o fato de termos uma cabeça é causalmente primário em relação
ao efeito de nos tornarmos filósofos. E, apesar de Leiter colocar “essencial” entre aspas, pode-se temer que, na medida em que as propriedades essenciais são geralmente consideradas como imutáveis,
isso poria nas costas de Nietzsche uma perspectiva na qual o peso do
papel causal da natureza se sobreporia mesmo ao da criação61.
Em meu livro, eu listo os muitos lugares onde Nietzsche, de
fato, adota a ideia de uma natureza62 “imutável” ou “essencial”, mas
o ponto importante aqui é que um Naturalista-M, seja Nietzsche ou
Hume, deve priorizar o papel causal da natureza sobre o da criação,
precisamente com vistas a – como Stroud afirma ao descrever a
perspectiva de Hume – “explicar eventos físicos numerosos e complexos por meio de princípios que, comparativamente, são poucos,
extremamente gerais, e talvez mesmo universais”63. É por isso que
Hume procura “uma teoria completamente geral da natureza humana”, já que uma das características que demarcam tal investida
como algo de aspiração científica é precisamente sua generalidade,
ou seja, sua intenção de transcender elementos culturais vívidos e
61 GEMES, K.; JANAWAY, C. Naturalism and Value in Nietzsche. In: Philosophy &
Phenomenological Research, 71, 2005, p. 733.
62 Nietzsche nos conclama a “completar nossa des-deificação da natureza [e a] ‘naturalizar’ a humanidade em termos de uma natureza pura, novamente descoberta,
novamente redimida” (FW/GC §256, KSA 3.517). De forma ainda mais surpreendente, ele faz frequentes alegações sobre as “essências”: por exemplo, a respeito da
“essência [Wesen] daquilo que vive” (JGB/BM §259, KSA 5.207), “a essência [Wesen]
da vida” (GM/GM II, §12, KSA 5.316) ou “a fraqueza dos fracos (...) quero dizer
[sua] essência [Wesen]” (GM/GM I, §13, KSA 5.279). O erro da maioria das leituras
antiessencialistas de Nietzsche consiste em confundir sua oposição a alegações não-empíricas ou não-naturalistas (que ele, de fato, repudia) com uma oposição a toda
e qualquer reivindicação a respeito de uma essência ou natureza das coisas. Mas as
últimas alegações são bastante plausíveis a partir de um panorama naturalista (como,
por exemplo, o de Quine), desde que as entendamos como reivindicações empíricas
ou naturalistas feitas do interior de nossa melhor teoria de mundo em curso.
63 STROUD, B. Hume. Londres: Routledge, 1977, p. 3.
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Leiter, B.
reais a fim de ver o que todos estes artefatos culturais díspares têm
em comum, isto é, sua gênese em tendências enraizadas na natureza humana64.
O outro viés da crítica de Gemes e Janaway – a respeito da “fragilidade” da necessária, porém não suficiente caracterização do que
seria algo “causalmente primário” para uma explicação – simplesmente explora um problema comum acerca das análises empíricas
da causação, desde Hume até Mackie: ou seja, que elas se atrapalham ao lidar com o problema de reconhecer as “correlações” regulares que contam para fins de nexo causal ou, no caso de Mackie,
em especificar as condições que sejam meramente condições não-causais “implícitas”, quando reconhecemos uma causa INDS de
um evento (onde a causa INDS significa “uma parte insuficiente,
mas necessária de uma condição desnecessária, mas suficiente”
para o acontecimento do evento). O fato de ter uma cabeça não é
causa de alguém ser filósofo (mesmo sendo uma condição necessária), porém ter uma composição genética de tomate é, seguramente,
uma parte central da explicação causal para o fato de uma semente
específica dar origem a um tomateiro. Seria surpreendente – ou
simplesmente grosso anacronismo – pensar que Nietzsche tenha
uma boa explicação de como demarcamos essa diferença, principalmente quando vários filósofos que meditaram sistematicamente
sobre este problema não tiveram. Entretanto, isso não muda o fato
de que a prática comum e científica reconheça a distinção. De fato,
Nietzsche dá todos os sinais de ser um Naturalista-M atento a essa
questão, e não um metafísico desavergonhado, quando descreve a
“ciência” simplesmente como “os saudáveis conceitos de causa e
64 É óbvio que Nietzsche acredita que diferentes tipos de moralidades operam efetivamente como “tipos de criação”, isto é, tipos de sistemas de valor que têm efeitos
previsíveis em certos tipos de pessoas. Ainda assim são sempre os fatos naturais relativos ao tipo que são primordialmente explanatórios no entendimento de quais efeitos
qualquer tipo de moralidade terá. (Agradeço a John Richardson por insistir comigo
nesse ponto).
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O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
efeito” (AC/AC 49, KSA 6.228). Deixemos a ciência e a aplicação
dos métodos científicos decidirem o que é uma causa e o que não é;
então podemos nos servir de qualquer espécie de causa, desde que
funcione. Ao menos, podemos estar certos de que nenhuma teoria
interessante será desenvolvida quanto à explicação para a existência de filósofos com base no fato de que têm uma cabeça, ao mesmo
tempo em que toda explicação científica sensata sobre plantas que
desenvolvem tomates apelará para a constituição genética das sementes do tomateiro. Se Nietzsche está certo (uma questão a qual
voltarei), então o mesmo será verdadeiro a respeito da correta descrição naturalista das atitudes e crenças morais65.
Gemes e Janaway, tanto em sua crítica conjunta ao meu livro
quanto em suas posições acadêmicas pessoais, estão confortáveis
com a ideia de que Nietzsche acredita em relações causais, seja
qual for o sentido de seu entendimento. Todavia, alguns críticos
da minha apresentação do Naturalismo-M de Nietzsche se mostram céticos em relação a este ponto. Tratarei da recente crítica de
Christina Acampora66 como caso representativo.
65 Talvez possamos refinar a dificuldade enfatizando que os fatos relativos ao tipo são
explanatoriamente primários, portanto alterando o status da reivindicação do domínio
metafísico para o epistêmico. Em outras palavras, a reivindicação seria que, a fim de
explicar, por exemplo, a revolta escrava na moral, o papel causal dos fatos relativos
ao tipo acerca do tipo escravo – por exemplo, sua propensão ao ressentimento – é
necessário, porém não suficiente para explicar o evento. Isso concede a possibilidade
de que outros fatores causais sejam importantes – tais como o ambiente social no
qual o tipo escravo se encontra. Entretanto, nessa formulação, nenhuma explicação
da revolta escrava que deixe de fazer referência ao tipo psicofísico de “escravo” seria
epistemicamente adequada. De todo modo, isso pode enfraquecer a reivindicação
além do que Nietzsche parece ter em mente.
66 ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. AnsellPearson (ed.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006.
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Leiter, B.
Em meu livro67, eu destaquei o flerte de Nietzsche, em alguns
trabalhos de juventude, com o ceticismo neokantiano acerca da
causação, assim como em passagens como esta de Para além de
bem e mal:
No “em si” [An-sich] não há nada de “conexões causais”, de “necessidade”, ou de causa (...). Somos nós sozinhos que concebemos
a causa, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo e o propósito; e quando projetamos
e mesclamos este mundo de símbolos às coisas como se existisse
“em si mesmo”, nós agimos uma vez mais como temos sempre agido
– mitologicamente (JGB/BM 21, KSA 5.35).
Esse tipo de crítica teria se tornado familiar a Nietzsche a partir
do neokantiano Friedrich Lange, que criticou os cientistas precisamente por sua falsa crença de que a ciência nos dá conhecimento
do mundo numênico, quando, de fato, apenas o mundo fenomênico
diz respeito à ciência. “Causa” e “efeito” são “puros conceitos”,
diz Nietzsche nessa mesma passagem (claramente ecoando a linguagem kantiana), impostos pela mente humana ao mundo que,
em-si-mesmo, não guarda “nada de conexões causais” ou algo parecido. Obviamente, é notável que mesmo na perspectiva kantiana,
esse ponto não prejudica a objetividade de reivindicações acerca
das causas; isso apenas confina sua verdade objetiva ao mundo tal
qual se nos mostra. Mas uma vez que, como Clark argumentou mais
sistematicamente68, em última análise Nietzsche repudia a inteligibilidade da distinção númeno/fenômeno, não é surpreendente que
em seus trabalhos de maturidade o ceticismo neokantiano acerca
da causação não apareça.
67 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 22-23.
68 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990, p. 103-105.
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O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Acampora alega que, de todo modo, isso é algo “absolutamente
equivocado”69, que o ceticismo acerca da causação está igualmente
presente nos trabalhos de maturidade. Considero aqui que esse
seja o núcleo de sua crítica que, vale ressaltar, inclui uma enorme
concessão à leitura que venho defendendo de Nietzsche como um
Naturalista-M:
Nietzsche é claramente um naturalista buscando enfocar os fenômenos naturais e observáveis, para assim conquistar nosso entendimento do mundo e nosso lugar nele. A ciência empírica é admirável
para Nietzsche por conta de seu método rigoroso e de sua preocupação em se livrar de pressuposições sobrenaturais e mitológicas. Esta
última motivação reflete um tipo de higiene mental que por um longo
período tem sido reconhecida como algo importante para a filosofia,
apesar de raramente alcançada, vale dizer, a prática de evitar o uso
de suposições implícitas ou injustificadas. Para Nietzsche, o problema com a ciência é que ela quase sempre incorre sub-repticiamente
em princípios ou artigos de fé que cheiram às mesmas concepções
metafísicas e teológicas que se busca superar. Duas ideias que foram tão cruciais para a ciência de seu tempo, das quais uma ainda
se mantém como pedra de toque da investigação científica, são a
concepção teleológica da natureza e o conceito de causação70.
Nós podemos deixar o primeiro ponto de lado, e não apenas porque a teleologia deixou de frequentar a prática científica, há muitos
séculos, com o triunfo da revolução científica sobre o aristotelismo.
A questão é se Nietzsche realmente pensa que a causação envolve
“concepções metafísicas e teológicas” que ele mesmo rejeita.
69 ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. AnsellPearson (ed.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006, p. 329, n. 5.
70 Ibidem, p. 316-317.
cadernos Nietzche 29, 2011
109
Leiter, B.
Acampora cita71 brevemente uma das passagens neokantianas
de Para além de bem e mal já mencionada, então a deixaremos de
lado. Infelizmente, ela também se apóia em uma passagem de A
Gaia Ciência (FW/GC 112, KSA 3.472) que provavelmente reflete
o mesmo ceticismo neokantiano e que de modo algum pertence aos
trabalhos “maduros” de Nietzsche – o âmbito no qual ela critica
minha perspectiva de que Nietzsche não é mais cético a respeito
da causação como sendo algo “simplesmente equivocado”. A passagem realmente crucial - a única provinda dos trabalhos maduros de Nietzsche por ela aduzida - está no capítulo “Os Quatro
Grandes Erros” do Crepúsculo dos ídolos, mais especificamente na
seção sobre “o erro da falsa causalidade”, de acordo com o qual nós
acreditamos erroneamente que nossos estados mentais conscientes
causam nossas ações. Mas, para os propósitos de Acampora, a parte
crucial desta seção é sua conclusão (faço aqui uma citação mais
extensa que a dela):
Não há, enfim, nenhuma causa espiritual [geistigen]! (...) [N]ós realmente abusamos daquele “empirismo” - nós o usamos para criar
o mundo como um mundo de causas, vontades e espíritos. Aqui, a
psicologia mais antiga e duradoura está em ação, fazendo nada mais
que isso: considerou todos os eventos como ações, todas as ações
como resultado de uma vontade, fazendo do mundo uma multidão de
agentes, um agente (um “Sujeito”) estando por trás de todo evento.
O homem projetou no mundo três “fatos internos” seus, os fatos em
que acredita de forma mais fervorosa: a vontade, o espírito e o Eu.
Ele tomou o conceito de Ser daquele de Eu, ele imprimiu nas coisas
sua própria imagem, baseado no conceito de Eu como causa. Será
mesmo surpreendente que o homem depois tenha redescoberto nas
coisas tão somente aquilo que nelas foi anteriormente posto? - Mesmo
71 Ibidem, p. 319.
110
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
a “coisa”, vale repetir, o conceito de coisa é apenas um reflexo da
crença no Eu enquanto causa... e mesmo seu átomo, meus caros
senhores mecanicistas e físicos, quanto erro, quanta rudimentar
psicologia ainda existe em seu átomo! Para não mencionar a “coisa-em-si” (...)! O erro de pensar que o espírito causa a realidade! E
fazer disso a medida da realidade! E chamá-la Deus!
O fato de estarmos enganados em pensar que a vontade consciente é causal em relação às ações - o que coincide com a visão
de Nietzsche, como argumentei em outro lugar72 – evidentemente
não acarreta nenhum ceticismo sobre a realidade da causação, o
que supostamente está em questão na crítica de Acampora à minha leitura do Naturalismo-M de Nietzsche. Aquilo que, nesta passagem, supostamente motivaria o ceticismo acerca da causação é
esclarecido por Acampora da seguinte maneira: “o mundo empírico do cientista é povoado por uma série de ‘sujeitos-fantasma’ na
forma de ‘fazedores’ ou agentes. Este é o quadro no qual o conceito
de causação opera”73. Suponha que seja verdade que nossa crença
em “átomos” resultou de nossa (falsa) crença de que nossas vontades são causais. De que modo isso poderia conduzir ao ceticismo
acerca da causação? Isso poderia autorizar o ceticismo acerca da
metafísica atomística da física, mas a causação parece intocada. De
fato, na seção seguinte do Crepúsculo, Nietzsche retorna imediatamente à sua distinção segura entre causas reais e imaginárias, de
modo coerente com o teor do capítulo como um todo.
A própria Acampora, ao que tudo indica, percebe que há um
problema com sua leitura, já que - escondido em uma estranha nota
de pé de página - ela admite: “Isto não quer dizer que Nietzsche
72 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15,
2007.
73 ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. AnsellPearson (ed.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006, p. 320.
cadernos Nietzche 29, 2011
111
Leiter, B.
rejeite a causação como um todo, mas apenas que nosso modo corrente de considerá-la é emperrado por estas outras pressuposições
conceituais ou ‘erros’ como [Nietzsche] as chama”74; e ela continua
observando que as passagens no Crepúsculo que dizem respeito à
critica das noções “falsas” ou “imaginárias” de causação “sugerem
que Nietzsche endossa algum tipo de nexo causal”, porém rejeita
“a estrutura organizada em torno de várias abstrações metafísicas
tais como sujeitos e agentes”75. Eu tomo disso, pela admissão da
própria Acampora, que Nietzsche, de fato, acredita em nexos causais, mas simplesmente nega que algumas supostas causas - por
exemplo, “sujeitos” ou uma vontade consciente - sejam, de fato,
causais. Entretanto, isso nunca esteve em questão em minha leitura do naturalismo de Nietzsche, a qual gasta tempo considerável
examinando justamente essa sua crítica76. O que Acampora prometeu, mas não conseguiu cumprir, foi fornecer alguma evidência
de que seja “simplesmente equivocado” salientar que Nietzsche
acredita em causação em seus trabalhos de maturidade. Ao invés
de ser “equivocado”, Acampora, em sua nota de pé de página,
admite que isso é correto!
A confusa crítica de Acampora, no entanto, traz à tona uma importante questão: ou seja, Nietzsche não seria cético em relação ao
que ele julga ser a base metafísica da ciência moderna? E, se isso
for verdade, como ele poderia então ser um naturalista que leva a
ciência a sério? É a uma versão mais preocupante dessa crítica que
agora nos voltamos.
74 Ibidem, p. 330, no. 8.
75 Ibidem.
76 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 87-101.
112
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
C. A metafísica da vontade de potência.
Uma vez mais, é Janaway quem propõe uma versão mais afiada
da crítica considerada relevante. Ele escreve:
O compromisso de Nietzsche em relação à continuidade de resultados com as ciências é posto em questão por conta de algumas de
suas asserções acerca da capital noção explicativa da vontade de
potência, a qual pode fundamentalmente importar noções de dominação e interpretação para dentro do âmbito biológico77.
De fato, algumas das discussões de Nietzsche sobre a vontade
de potência - especialmente GM/GM II, 12, KSA 5.313 - fazem surgir dúvidas até mesmo acerca da atribuição de um Naturalismo-M a
Nietzsche. Como escreve Janaway:
O problema é que Nietzsche apresenta a vontade de potência como
uma resposta àquilo que vê como o paradigma dominante na ciência,
a “idiossincrasia democrática contra tudo o que domina ou deseja
dominar”, um preconceito sobre o método que se “tornou senhor
sobre toda a fisiologia e doutrina da vida - para seu próprio prejuízo,
removendo sorrateiramente um de seus conceitos fundamentais, o de
atividade” (GM/GM II, §12). Nietzsche diz que a explicação científica do comportamento dos organismos em termos de adaptação reativa ao ambiente deve ser rejeitada em favor de uma visão que, em
todos os níveis do mundo orgânico, há espontaneidade, apropriação
ativa, interpretação e a imposição de formas e sentidos (...)78.
77 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford
University Press, 2007, p. 52.
78 Ibidem, p. 38.
cadernos Nietzche 29, 2011
113
Leiter, B.
A seção 12 da segunda dissertação da Genealogia de fato se
mostra como uma passagem muito estranha para ter sido escrita por
um naturalista filosófico, isso pelas razões apontadas por Janaway.
De que modo ela poderia se alinhar à leitura de Nietzsche como
um Naturalista-M, por sua vez tão bem fundamentada pelos textos?
Maudemarie Clark apresentou um forte argumento, parcialmente seguindo Walter Kaufmann, de que “a teoria da vontade de
potência se originou como tentativa de explicar comportamentos
humanos variados”79 e certamente seu mais importante papel na
Genealogia se dá por meio do princípio psicológico articulado em
GM/GM III, 7, KSA 5.349, segundo o qual “todo animal (...) instintivamente se esforça em alcançar seu maximum de sentimento de
poder”, que por sua vez figura na explicação de Nietzsche para o
apelo do ideal ascético, como já argumentei80. Como Clark também
mostrou81, os argumentos publicados para versões mais ambiciosas
e metafísicas da doutrina da vontade de potência - de acordo com
79 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990, p. 210.
80 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 255-263. Não estou, entretanto, de acordo com a crítica que Clark dirige à vontade de potência enquanto hipótese empírica, segundo a qual ela estaria no mesmo nível do hedonismo
psicológico (CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge
University Press, p. 210-211). É obviamente verdadeiro que para que a ânsia pelo
sentimento de poder possa ser explanatoriamente elucidativa nós precisamos de uma
descrição desse sentimento que seja tanto concreta quanto conceitualmente distinta
daquela de outros sentimentos que poderiam ser pensados como exercendo um papel
motivacional (por exemplo, o prazer). Mas a necessidade de discriminação e distinção
conceitual é compatível com a tese empírica de que outras motivações aparentes são
realmente instâncias motivadoras por meio de uma ânsia pelo sentimento de poder.
Dito isso, a tese de que todo comportamento é motivado por uma ânsia pelo sentimento de poder é tão improvável quanto o hedonismo psicológico, porém é compatível
com a importante tese de que o sentimento de poder é uma motivação significativa
para os seres humanos e figura como a melhor explicação para aspectos centrais das
ações e dos valores humanos.
81 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990, p. 212-218;
114
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
a qual toda matéria, ou ao menos toda matéria orgânica, é “vontade
de potência - depende de premissas (por exemplo, a causalidade da
vontade) que Nietzsche na verdade rejeita explicitamente, de modo
que ele não pode tomá-los como argumentos sérios ou convincentes. De fato, os argumentos ruins que Nietzsche oferece para a doutrina metafísica da vontade de potência são, segundo Clark (a partir
de JGB/BM 5, 6 e 9), uma ilustração irônica de uma tendência
dos filósofos que Nietzsche usualmente critica, ou seja, que eles
apresentam suas doutrinas metafísicas como descobertas racionais,
ao invés de “tentativas de construir o mundo, ou uma imagem do
mundo, em termos dos valores do filósofo”82.
Contra este pano de fundo, devemos nos lembrar que GM/GM
II, 12, KSA 5.313 - a passagem na qual Janaway se concentra - tem
como seu verdadeiro foco o modo correto de fazer uma genealogia,
por exemplo, do castigo. Nietzsche argumenta83 que uma genealogia deve distinguir entre “a causa da gênese de uma coisa e sua
utilidade final”, uma vez que a primeira não garante qualquer inferência confiável acerca da última. Nietzsche escreve:
...enfatizo ainda mais este ponto central a respeito da metodologia
histórica porque ele basicamente vai contra os instintos atualmente
dominantes e o gosto da época, os quais prefeririam antes aprender
a conviver com a absoluta aleatoriedade, assim como com a falta de
sentido mecanicista de todo acontecimento, do que com uma teoria
de uma vontade de potência que atua em todo acontecimento. (GM/
GM II, 12, KSA 5.313)
Isto reflete, diz Nietzsche, “a idiossincrasia democrática contra tudo o que domina ou deseja dominar” (GM/GM II, 12, KSA
5.313), observação que se faz acompanhar de uma breve polêmica
82 Ibidem, p. 221.
83 Cf. LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, cap. 5.
cadernos Nietzche 29, 2011
115
Leiter, B.
contra essa idiossincrasia, que conclui com sua afirmação de que
“a essência da vida” é “sua vontade de potência”, envolvendo fundamentalmente “forças espontâneas, agressivas, subversivas, reinterpretantes, reordenadoras e criativas” (idem). A seção seguinte
se inicia, “para retomar nosso tópico” - ou seja, a prática genealógica conforme ilustrada por meio do estudo de caso do castigo - e
nenhuma palavra a mais é dita no livro a respeito da metafísica
da vontade de potência, em oposição à vontade de potência como
hipótese psicológica84.
Observe então que a aparente metafísica da vontade de potência de Nietzsche surge apenas para reiterar um ponto acerca do
correto método histórico, um que se mantém quase independente
da verdade da metafísica: em outras palavras, ela se parece justamente com uma tentativa de utilizar as reivindicações metafísicas
para fins retóricos, isto é, como estratégia que busca persuadir seus
leitores da correção de sua abordagem genealógica a partir da sua
associação com um sistema de valores diferente, mais “nobre”. E
uma vez cumprido seu propósito retórico, a metafísica então desaparece do livro, dando lugar à versão psicológica da doutrina,
explicitada em GM/GM III 7, KSA 5.349. É tentadora a conclusão
de que - dado este contexto e aquilo que Clark demonstrou sobre
o papel da vontade de potência na obra publicada - GM/GM II 12,
KSA 5.313-6 não deve ser levada assim tão a sério.
84 Uma terceira possibilidade é de que a vontade de potência seja entendida como um
tipo de hipótese biológica, como procura fazer Richardson (cf. RICHARDSON, J.
Nietzsche’s New Darwinism. Oxford: Oxford University Press, 2004). Esta leitura me
parece repleta de dificuldades, tanto interpretativas quanto científicas. Conforme
demonstra Forber (FORBER, P. Nietzsche Was No Darwinian. In: Philosophy &
Phenomenological Research, 75, p. 369-382, 2007), é pouco provável que a versão
de Richardson de uma biologia do poder nietzschiana seja compatível com Darwin, o
que significa dizer que tal leitura não é compatível com a real biologia, o que a coloca
no mesmo barco do que chamo mais à frente de metafísica “maluca” da vontade de
potência. Veja a discussão no parágrafo de conclusão desta seção.
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O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Neste contexto, talvez valha a pena lembrar o quão irrelevante
o próprio Nietzsche considerou a ideia de vontade de potência, no
final das contas. Nos dois principais momentos de autorreflexão
presentes no corpus nietzschiano - Ecce homo, onde Nietzsche revê
e avalia sua vida e seu trabalho, incluindo aí especificamente todos
os seus principais livros, e a série de novos prefácios sinóticos que
ele escreveu, em 1886, para todos os seus livros anteriores à Assim
falava Zaratustra - em momento algum Nietzsche defende a centralidade da vontade de potência - ou de uma metafísica da vontade
de potência - para o seu o trabalho. À luz da avaliação que o próprio
Nietzsche faz de sua filosofia, parece particularmente enganoso ler
passagens como GM/GM II 12, KSA 5.313-6 de maneira tão literal.
De qualquer maneira, uma reflexão conclusiva sobre questões
de método interpretativo pode estar sendo requisitada aqui. Meu
próprio interesse em Nietzsche não se restringe ao de um antiquário, já que, ao menos em parte, o interesse permanente em qualquer naturalista filosófico como Nietzsche deve se dar em função
do quanto consegue tomar a natureza e os fatos corretamente, e
deste modo ensinar-nos coisas importantes. Se for comprovado
que Nietzsche, o indivíduo, está realmente comprometido com
aquilo que parece decorrer do mais surpreendente literalismo sobre um punhado insignificante de passagens publicadas a respeito
da “vontade de potência” (tais como GM/GM II 12, KSA 5.313),
tanto pior para Nietzsche, pode-se dizer. De todo modo, podemos
fazer um favor a Nietzsche, o filósofo, se reconstruirmos seu projeto
humiano em termos que sejam em maior parte reconhecidamente
seus, e ainda, ao mesmo tempo, bem mais plausíveis, isso na medida em que a metafísica maluca da vontade de potência (segundo
a qual toda matéria orgânica “é vontade de potência”) é eliminada.
Eu estou inclinado à perspectiva esperançosa de Clark de que a
metafísica maluca é realmente apresentada em um tom irônico, e
que Nietzsche, o naturalista, bem o sabe. O fato de que nada em sua
real psicologia moral depende da metafísica maluca, e que ele não
cadernos Nietzche 29, 2011
117
Leiter, B.
atribui nenhuma importância à metafísica maluca em sua própria
avaliação do seu corpus, é uma razão adicional para ser esperançoso a esse respeito. Mas Nietzsche foi um mero mortal assim como
o restante de nós, e mesmo o fato de ser um gênio não pode compensar os perigos de ser autodidata sobre tanta coisa. Talvez Nietzsche
tenha realmente acreditado que ele dispunha de alguma intuição
profunda sobre a correta metafísica da natureza, uma intuição que
teria sido deixada de lado pelas ciências empíricas. Se ele teve
este pensamento - algo completamente inconsistente com o resto
de seu naturalismo - tanto pior para ele. Aqueles de nós que lemos
Nietzsche mais de um século depois devemos nos concentrar em
suas ideias produtivas, e não nas bobas, especialmente quando elas
não são centrais para seu importante trabalho em psicologia moral.
IV. Será Nietzsche um naturalista bem sucedido... e como ele poderia
ser?
Os filósofos naturalistas incorrem em um ônus de prova diferente daquele da maioria dos filósofos: suas reivindicações devem
responder aos fatos conforme se desenrolam no curso da investigação empírica sistemática. Kantianos podem construir sua psicologia moral de suas poltronas santarronas, invocando um interesse
limitado ao “conceito” ou à “possibilidade” da motivação moral;
já os naturalistas de fato se importam com o modo como os seres
humanos realmente funcionam. Obviamente Hume não se sai tão
bem em relação a esse padrão mais exigente de prova, já que algumas de suas especulações acerca da natureza humana parecem
envolver ilusões sobre as propensões morais humanas. Nietzsche
certamente não é propenso a ilusões, mas será que ele realmente se
sai melhor? Como se mostra seu Naturalismo-M especulativo mais
de um século depois?
118
cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Como eu argumentei em um trabalho recente85, uma importante razão para que os filósofos devam levar Nietzsche a sério é
porque ele parece ter entendido, ao menos em seus contornos mais
amplos, muitos pontos acerca da psicologia moral humana corretamente. Considere que:
(1)Nietzsche afirma que os fatos relativos ao tipo hereditário são
determinantes fundamentais da personalidade e dos comportamentos
moralmente significantes, uma alegação bem fundamentada em
vastas descobertas empíricas sobre genética comportamental86.
(2)Nietzsche alega que a consciência é algo “superficial” e que “a grande
maioria dos pensamentos conscientes devem ser ainda atribuídos à
atividade instintiva [inconsciente]” (JGB/BM 3, KSA 5.17), teses
amplamente corroboradas por recentes trabalhos de psicólogos
sobre o papel do inconsciente87 e de filósofos que produziram metaanálises sintéticas de trabalhos sobre a consciência na psicologia e
na neurociência88.
(3)Nietzsche afirma que os julgamentos morais são racionalizações
post-hoc de sentimentos que têm origem anterior, e que, portanto,
não são resultado da reflexão racional ou da discursividade, uma
conclusão em sintonia com descobertas do ascendente “intuicionismo
social” em psicologia moral empírica de Jonathan Haidt89 e outros.
85 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15, 2007;
KNOBE, J.; LEITER, B. The Case for Nietzschean Moral Psychology. In LEITER, B.;
SINHABABU, N., 2007.
86 KNOBE, J.; LEITER, B. The Case for Nietzschean Moral Psychology. In LEITER, B.;
SINHABABU, N., 2007.
87Por exemplo, WILSON, T. Strangers to Ourselves: Discovering the Adaptive
Unconscious. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002.
88 Por exemplo, ROSENTHAL, D. Consciousness and Its Function. In: Neuropsychologia,
46, p. 829-840, 2008.
89 HAIDT, J. The Emotional Dog and Its Rational Tail: A Social Intuitionist Approach to
Moral Judgment. In: Psychological Review, 108, p. 814-834, 2001.
cadernos Nietzche 29, 2011
119
Leiter, B.
(4)Nietzsche argumenta que o livre arbítrio90 é uma “ilusão”, que nossa
experiência consciente de vontade é ela mesma um produto causal
de forças inconscientes, uma posição recentemente defendida pelo
psicólogo Daniel Wegner91, que, por sua vez, sintetiza um amplo
conjunto de resultados empíricos, incluindo os famosos dados
neurofísicos acerca da “vontade” coletados por Benjamin Libet.
Se Nietzsche fosse mais amplamente lido por psicólogos
acadêmicos – anos a fio de leituras equivocadas de Heidegger e
Derrida parece tê-los afastado de Nietzsche – então ele seria reconhecido como uma figura verdadeiramente presciente na história
da psicologia empírica.
Os naturalistas são, certamente, reféns da fortuna empírica, e
a notável trajetória de Nietzsche pode se tornar menos impressionante em cinquenta ou cem anos. De todo modo, fazer profecias
acerca das ciências empíricas não é o meu interesse aqui. Pois a
notável perspicácia psicológica de Nietzsche faz surgir um novo e
diferente tipo de enigma a respeito do Naturalismo-M que atribuí a
ele e que aqui defendi de várias críticas. Para dizer de forma simples: Nietzsche parece estar correto a respeito de grande parte da
psicologia moral humana, não obstante sua incapacidade de empregar qualquer um dos métodos da psicologia empírica que confirmou
muito do seu trabalho. Que tipo de naturalismo metodológico é este?
Scott Jenkins propõe uma versão sucinta dessa objeção ao comentar a evidência empírica que Joshua Knobe e eu aduzimos em
apoio à psicologia moral de Nietzsche. Jenkins escreve:
90 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15,
2007.
91 WEGNER, D. The Illusion of Conscious Will. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
Knobe e Leiter examinam um vasto conjunto de estudos psicológicos (incluindo estudos sobre o comportamento de gêmeos, os
efeitos da educação infantil na personalidade e a relação entre o
comportamento moral e os relatos de atitudes morais) e argumentam que o comportamento de uma pessoa, em contexto moral, pode
ser explicado primariamente através do recurso a “fatos relativos ao
tipo” de caráter hereditário, enquanto a educação moral (a perspectiva aristotélica) e a tomada de decisão consciente (a perspectiva
kantiana) surpreendentemente quase não desempenham papel algum em tais explicações. Esta evidência empírica, argumentam, demonstra que a teoria nietzschiana de diferentes tipos psicológicos,
com seus característicos compromissos morais e teoréticos, merece,
ao final, uma séria consideração por parte dos filósofos interessados
em psicologia moral. Knobe e Leiter fazem um trabalho muito bom
na defesa de sua posição, e seu trabalho sugere uma interessante
questão envolvendo o trabalho de Nietzsche – Como exatamente ele
chega a uma teoria que é confirmada por investigações empíricas
atuais, se não por meio da consideração destes dados que dariam
suporte a tal teoria?
Neste contexto, precisamos fazer a distinção entre aquilo que
conta como confirmação de uma teoria e aquilo que pode ter levado
um gênio como Nietzsche a perceber uma possível verdade sobre a
psicologia moral humana. A psicologia empírica tem desenvolvido
métodos para testar e confirmar hipóteses que não estavam disponíveis no século XIX – daí a indispensável especulação peculiar
a filósofos de viés naturalista como Nietzsche. Mas, pela mesma
razão, não é o caso de se pensar que Nietzsche não tenha evidências
sobre as quais sua psicologia moral especulativa possa se apoiar.
Estas evidências parecem ser de três tipos básicos: primeiro, sua
própria observação, tanto introspectiva quanto do comportamento
alheio; segundo, as observações pessoais relatadas por outras pessoas, recolhidas ao longo do tempo em uma ampla variedade de
cadernos Nietzche 29, 2011
121
Leiter, B.
textos históricos, literários e filosóficos, que por algum motivo tendiam a reiterar umas às outras (considere, por exemplo, o realismo
acerca das motivações humanas, pormenorizadas por Tucídides na
antiguidade e pelos aforismos de La Rochefoucauld na modernidade, ambos autores admirados por Nietzsche); e terceiro, suas leituras acerca dos desenvolvimentos científicos de sua época, muitos
dos quais - ainda que de forma amadora ou simplesmente errada
segundo os padrões atuais - representaram tentativas sistemáticas
de aplicar os métodos científicos ao estudo dos seres humanos e
que, em linhas gerais, vem sendo confirmada por subsequentes
desenvolvimentos. Pelos parâmetros contemporâneos dos métodos
das ciências humanas, não chegaríamos a considerar as intuições
[insights] baseadas nessas evidências como bem confirmadas, mas
isso certamente não quer dizer que não sejam adequadas, nas mãos
de um gênio como Nietzsche, aquelas que sobrevivem ao escrutínio de nossos métodos atuais. Esta é precisamente uma das razões
de Nietzsche ser um grande Naturalista-M especulativo na história
da filosofia: valendo-se de dados e métodos nada sistemáticos, ele
pôde, assim mesmo, chegar a hipóteses que vieram a ser fundamentadas por dados e métodos mais sistemáticos. É evidente que
Nietzsche, ao contrário de nossos atuais cientistas sociais, não é
apenas um humiano, mas um terapeuta, e assim entrelaça essas
hipóteses formando um poderoso projeto crítico que visa a transformar a consciência acerca da moralidade. Alguns de nossos
atuais naturalistas da psicologia moral92 talvez tenham objetivos
parecidos, mas nada do talento retórico de Nietzsche, ou de sua
temerária prontidão a abandonar a convencional sabedoria acerca
da moralidade. A ciência cognitiva contemporânea deve nos le-
92Por exemplo, PRINZ, J. The Emotional Construction of Morals. Oxford: Oxford
University Press, 2007 e HAIDT, J. The Emotional Dog and Its Rational Tail: A Social
Intuitionist Approach to Moral Judgment. In: Psychological Review, 108, p. 814-834,
2001.
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cadernos Nietzche 29, 2011
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado
var a uma apreciação renovada sobre as profundas intuições do
Naturalismo-M Especulativo de Nietzsche, mas a ciência cognitiva
não é páreo para o poder retórico do Nietzsche terapêutico, que
vê não apenas como os seres humanos realmente funcionam, mas
também como explorar esse fato de maneira que transtorne a complacente consciência moral de alguns de seus leitores93.
Abstract: In Nietzsche on Morality (2002), the author set out a systematic
reading of Nietzsche as a philosophical naturalist, one which has
attracted considerable critical comment, including from some generally
sympathetic to reading Nietzsche as a philosophical naturalist. In this
paper, the author revisits that reading and respond to various objections.
Topics covered include the role of “speculation” in Nietzsche’s naturalism;
the difference between the Humean and Therapeutic Nietzsches; the
role of culture in naturalistic explanations; the status of claims about
causation in Nietzsche’s naturalism; whether the apparent metaphysics
of the will to power is compatible with naturalism; and how Nietzsche’s
speculative naturalism fares in light of subsequent work in empirical
psychology.
Keywords: Nietzsche – Naturalism – Moral philosophy – Moral
psychology
93 As discussões com os estudantes, no meu seminário da primavera de 2008 sobre
“Nietzsche, Naturalismo e Psicologia Moral” na Universidade do Texas em Austin,
me foram extremamente proveitosas na elaboração deste artigo; eu sou especialmente
grato a Christopher Raymond por muitas ideias importantes. Eu também fui ajudado
pelas discussões na conferência sobre “Nietzsche, Naturalismo e Normatividade” na
Universidade de Southampton, em julho de 2008; eu posso me lembrar particularmente de comentários e questões vindos de Ken Gemes, Christopher Janaway, Peter
Kail e David Owen. Eu também gostaria de agradecer às pessoas que fizeram comentários sobre o artigo em meu blog (www.brainleiternietzsche.blogspot.com) pelos
muitos pontos úteis. Finalmente, obrigado a John Richardson pelos comentários à
penúltima versão.
cadernos Nietzche 29, 2011
123
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cadernos Nietzche 29, 2011
125
Leiter, B.
28. WEGNER, D. The Illusion of Conscious Will. Cambridge,
Mass.: MIT Press, 2002.
29. WILSON, T. Strangers to Ourselves: Discovering the
Adaptive Unconscious. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 2002.
Artigo recebido em 25/05/2011.
Artigo aceito para publicação em 05/06/2011.
126
cadernos Nietzche 29, 2011
Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
Nietzsche e Hume:
naturalismo e explicação*
P. J. E. Kail**
Resumo: O objetivo deste ensaio é oferecer uma caracterização geral do
naturalismo compartilhado por Hume e Nietzsche e tratar de dois temas
a ele relacionados. O primeiro deles diz respeito ao ceticismo acerca da
causação. Aqui há à primeira vista uma dificuldade. Um aspecto comum
ao naturalismo de ambos é o fato de que ele envolve tentativas de explicar,
e explicar em termos causais, todo um leque de fenômenos recorrendo a
elementos mais básicos. Ambos, entretanto, parecem ser céticos quanto
à própria causação, questionando suas pretensões explicativas. O autor
pretende mostrar que para ambos os pensadores não há nenhuma tensão
genuína quanto a este aspecto. O segundo tema abordado no artigo diz respeito tanto à natureza das explicações que ambos oferecem para diversos
tipos de fenômenos quanto às implicações filosóficas destas explicações.
Palavras-chave: naturalismo – explicação - causação
* Tradução de Eduardo André Rodrigues de Lima. Revisão da tradução de Rogério
Lopes. Este artigo foi publicado originalmente no Journal of Nietzsche Studies, New
York, n.37, 2009, p. 5-22.
Agradecimentos do autor: agradeço a Christa Acampora, Bamford Rebecca e ao
Conselho Editorial do JNS por sua valiosa ajuda na escrita deste artigo. Parte deste material foi apresentado em versões anteriores nas universidades de Oxford, Cambridge
e Southampton. Sou grato a todos os presentes, e particularmente a Ken Gemes, Brian
Leiter, Simon Blackburn, Arif Ahmed, Hallvard Lillehammer, David Owen, Manuel
Dries, Richard Schacht, Maudemarie Clark, Christopher Janaway, Dan Came, Aaron
Ridley e Olivia Bailey. Agradeço também a E.M.P. Kail e S.M.S. Pearsall.
Agradecemos ao professor Peter Kail por ter acolhido com entusiasmo nosso convite
para publicar neste número especial dos Cadernos Nietzsche, por ter cedido os direitos de tradução para a língua portuguesa e por ter negociado pessoalmente a permissão para a tradução junto aos editores do Journal of Nietzsche Studies. Aos editores do
JNS, agradecemos pela cessão dos direitos de publicação em língua portuguesa (Nota
do colaborador).
** Professor da Universidade de Oxford, Oxford, Inglaterra. E-mail: Peter.kail@
philosophy.ox.ac.uk.
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Kail, P. J. E.
Para aqueles que pensam através de estereótipos desinformados, Nietzsche e Hume são os polos opostos da filosofia;
Nietzsche é o anticientífico, um “pós-moderno” e decano da filosofia “Continental”; Hume é um protopositivista lógico intransigente e herói da filosofia “analítica”. Ambos os estereótipos são tão
equivocados que fica difícil saber por onde começar sua refutação.
Entretanto, para aqueles que decididamente lêem Nietzsche como
um filósofo naturalista, Hume é um ponto de comparação, e isso
pela simples razão de que, graças a Norman Kemp Smith e Barry
Stroud, o naturalismo está no cerne de sua filosofia1. A questão é,
portanto, o quanto esses pensadores se parecem.
Há um número muito pequeno de estudos comparativos dedicados a Nietzsche e Hume, seja sobre temas pontuais, seja em uma
perspectiva panorâmica2, e me parece que há ainda muita coisa a
1 Ver, p. ex., LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, 3-11;
Schacht, R. Nietzsche and Philosophical Anthropology. In: A Companion to Nietzsche.
Oxford: Blackwell, 2006.
2 Craig Beam (1996, 2001) escreveu dois artigos panorâmicos muito úteis.
Hoy (1994) compara a genealogia de Hume e Nietzsche, embora não esteja
de modo algum claro que Hoy tenha compreendido Hume (ver em BEAM,
C. Hume and Nietzsche: Naturalists, Ethicists, Anti-Christians. In: Hume
Studies 22, 1996 comentários bastante precisos sobre Hoy). Davey (1987)
compara a noção de Eu em Hume e Nietzsche. Poellner (Poellner, P. Nietzsche
and Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 1995, 33 e segs.) discute
a causação em Hume e Nietzsche. Christopher Williams (Williams, C. A.
Cultivated Reason: An Essay on Hume and Humeanism. University Park:
Pennsylvania State University Press, 1999, p. 124) refere-se a Nietzsche no
contexto da crítica de Hume ao ascetismo na moralidade. Swanton compara a noção humiana de simpatia com a visão de Nietzsche sobre a compaixão, na tentativa de mostrar que “Hume tem respostas para as objeções que
Nietzsche formula contra o status de virtude atribuído à compaixão ou piedade” (Swanton, C. Compassion as a Virtue in Hume. In: Feminist Interpretations
of David Hume, University Park: Pennsylvania State University Press, 2000,
p. 157). Danford (1990) vê uma proximidade entre Nietzsche e Hume, mas
considera o primeiro como um “pós-moderno”. Bernard Williams (2000,
2002) aproxima Hume e Nietzsche em suas discussões acerca do naturalismo e da genealogia. Para uma boa discussão sobre Williams, que se apoia na
128
cadernos Nietzche 29, 2011
Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
ser dita; nesse sentido, este artigo é um programa para estudos
posteriores. O objetivo deste ensaio é oferecer uma caracterização
geral do naturalismo compartilhado por ambos e tratar de dois temas a ele relacionados. O primeiro deles diz respeito ao ceticismo
acerca da causação. Aqui há à primeira vista uma dificuldade. Um
aspecto comum ao naturalismo de ambos é o fato de que ele envolve tentativas de explicar, e explicar em termos causais, todo um
leque de fenômenos recorrendo a elementos mais básicos. Ambos,
entretanto, parecem ser céticos quanto à própria causação, questionando suas pretensões explicativas. Procuro mostrar que para
ambos os pensadores não há aqui nenhuma tensão genuína. O
segundo tema tratado por mim diz respeito tanto à natureza das
explicações que ambos oferecem para diversos tipos de fenômenos quanto a quais poderiam ser as implicações filosóficas destas
explicações. Antes de dar prosseguimento, duas advertências devem ser mencionadas. Em primeiro lugar, não me interessa no momento estabelecer linhas de influência entre Hume e Nietzsche.
Segundo, por razões de espaço, terei que renunciar a alguns pormenores que são necessários a uma investigação adequada e, a
fortiori, não estarei em condições de defender plenamente as teses
atribuídas a cada filósofo. Em vez disso, meu objetivo principal é
esclarecer o que há de comum em suas estratégias.
Naturalismo, fisiologia e método.
Tanto Hume como Nietzsche são “naturalistas”. Entretanto,
como filósofos tão diversos quanto Spinoza, Quine, Aristóteles
e John Mc Dowell são considerados “naturalistas”, este título,
The Natural History of Religion de Hume, consultar Craig, E. J. Genealogies
and the State of Nature. In: Contemporary Philosophy in Focus. Cambridge:
Cambridge University Press, 2007, p. 181-200.
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129
Kail, P. J. E.
embora legítimo, é relativamente trivial. Para fazer algum progresso, comecemos com aquilo que Kant disse sobre Locke. Ele
afirmou que Locke propôs uma “fisiologia do entendimento” que,
“ao traçar sua origem vulgar a partir da experiência comum”, equivale “a uma tentativa de lançar dúvidas sobre as pretensões da
suposta rainha”. Felizmente, diz Kant, essa “genealogia” é uma
“ficção”3. A referência à noção de “ficção”, nesse contexto, é mais
interessante do que pode parecer, mas não vou tratar desse tema
controverso aqui. Em vez disso, pondo de lado a ficção, vou sugerir que a descrição que Kant nos propõe corresponde ao núcleo
do naturalismo de Hume e Nietzsche4. Eles propõem “fisiologias
do entendimento” e “genealogias” de conceitos que têm origem na
experiência. Essas explicações, além disso, às vezes “suscitam dúvidas” sobre as pretensões do que é explicado. O que ofereço na
sequência é uma tentativa de desdobramento dessa tese.
De acordo com Brian Leiter, Hume e Nietzsche estão comprometidos com um naturalismo metodológico de cunho especulativo,
que propõem descrições da natureza humana “a fim de explicar
vários fenômenos humanos”5. Essas teorias gerais recorrem a elementos e a princípios empiricamente determináveis que constituem suas respectivas “fisiologias”. Obviamente, seus pontos de
partida são diferentes. Hume recorre a noções como “impressões”,
“associação”, “simpatia”, “sentimento”, “imaginação” e outras semelhantes, enquanto Nietzsche se vale de noções como “impulso”,
“ressentimento”, “vontade de potência” e de “afetos”. Apesar de
3 Kant, Critique of Pure Reason, prefácio, IX-X.
4 O tema controverso que tenho em mente diz respeito à tese de Bernard Williams
segundo a qual a genealogia deve ser entendida como uma demanda por algo que é
essencialmente uma explicação ficcional. Um bom exame, assim como uma crítica
bastante pertinente da leitura de Williams encontra-se em Craig, E. J. Genealogies
and the State of Nature. In: Contemporary Philosophy in Focus. Cambridge: Cambridge
University Press, 2007, p. 181-200.
5 LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, p. 4-5.
130
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
diferentes em substância, esses elementos básicos são concebidos tanto por Hume quanto por Nietzsche em continuidade com
o restante do mundo natural. No caso de Hume, o vocabulário do
Tratado da Natureza Humana deixa entrever a psicofisiologia da
época, que recebe um realce mecanicista e é utilizada nas explicações sobre o comportamento animal.6 Assim, a Cyclopaedia, ou
Dicionário Universal de Artes e Ciências, monumental obra de referência de Ephraim Chambers, datada de 1728, contém verbetes
dedicados a termos como imaginação e associação, termos que nos
são familiares em função de nossa leitura de Hume. A associação,
noção sobre a qual é construída a teoria do Tratado, era considerada um dispositivo mecânico e literalmente estúpido que, de
acordo com pensadores como Hobbes, Descartes, Malebranche,
Leibniz e muitos outros, regulava os mecanismos de inferência dos
animais irracionais. Do mesmo modo, boa parte do vocabulário de
Nietzsche é extraída da fisiologia e biologia (materialistas) de sua
época, ciências que Nietzsche estudou cuidadosamente.7 Isso é
particularmente significativo no que diz respeito à noção de “vontade de potência” que, como mostrou Gregory Moore, estava em
sintonia com certas tendências da biologia alemã, na qual era comum a ocorrência de termos como “apropriação”, “impulso” e “dominação”. Portanto, embora os elementos aos quais eles recorram
6 Sobre o pano de fundo neurofisiológico e mecanicista do vocabulário de Hume, ver
Buckle, S. Hume’s Enlightenment Tract. Oxford: Oxford University Press, 2001,
Hume’s Sceptical Materialism. In: Philosophy 82, 2007, p. 553-78, Wright, J. P. The
Skeptical Realism of David Hume. Manchester: Manchester University Press, 1983.
Para uma discussão sobre o vocabulário de Hume e as teorias da cognição animal,
ver o meu Leibniz’s Dog and Humean Reason. In: New Essays on David Hume, Rome:
FrancoAngeli, 2007a., § 2.4.2, e Projection and Realism in Hume’s Philosophy.
Oxford: Oxford University Press, 2007b.
7 Sobre a fisiologia, ver Moore, G. Nietzsche, Biology, Metaphor. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002. Nietzsche and Evolutionary Theory. In: A Companion to
Nietzsche , Oxford: Blackwell, 2006, p. 517–31 . As influências da biologia incluem
ainda a História do materialismo de Friedrich Lange. Para uma discussão e referências adicionais, ver Leiter, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002., 63ff.
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131
Kail, P. J. E.
sejam diferentes, seu caráter naturalista não o é. Esses elementos
básicos são pontos de partida fisiológicos na medida em que não
são concebidos como elementos radicalmente distintos em gênero
daqueles elementos básicos que se supõe atuarem no mundo natural e, mais particularmente, no mundo animal.
A teoria de Hume da natureza humana e a tentativa de
Nietzsche de “traduzir a humanidade de volta na natureza” (JGB/
BM 230, KSA 5.167,) compartilham do pressuposto de que a natureza humana não difere em gênero do resto da natureza. Eles
rejeitam a hipótese de que “Você [humanidade] é mais! Mais elevada! E tem uma origem distinta!” (JGB/BM 230, KSA 5.167).
Nietzsche identifica como um dos “quatro erros” GC 115 a colocação dos homens “em uma falsa hierarquia em relação aos animais
e ao restante da natureza” (FW/GC 115, KSA 3.474,) (cf. A 31;
HH 11), e, de forma célebre, ele descreve a psicologia da vontade
de potência na GM como a afirmação de que “cada animal... instintivamente, esforça-se para um optimum de condições favoráveis
nas quais ele pode expandir seu poder completamente” (GM/GM
III 7, KSA 5.350). Não obstante, tal posicionamento não deve ser
confundido com a idéia de que não há distinção real entre os seres
humanos e os outros animais. Para Nietzsche, os seres humanos, ao
mesmo tempo em que são animais “doentes” (GM/GM III 7, KSA
5.350), se tornaram também animais interessantes (GM/GM I 6,
KSA 5.264) permanecendo cheios de potencial. Para Hume, existem grandes diferenças entre seres humanos e animais, diferenças
que são reforçadas através da formação da cultura e da convenção.
Entretanto, aquilo que para os outros era uma razão para estabelecer uma diferença de gênero – a alma cartesiana na bête machine
ou um eu numenal contracausal – é explicado apelando-se a um
elemento animal mais maleável.
Esses aspectos das filosofias de Hume e Nietzsche representam seu naturalismo substantivo, uma tese ontológica segundo a
qual os seres humanos são parte da natureza. O naturalismo de ambos também é metodológico, pois Hume e Nietzsche compartilham
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
da rejeição de que existem rotas a priori para o conhecimento. A
alegação de Hume de que ele seria o “Newton da mente” deve
ser entendida à luz da significação da famosa frase newtoniana
“hypotheses non fingo”. Tal sentença, quando aplicada à física,
significa uma recusa em manter os resultados experimentais presos a uma concepção apriorística da matéria. Ao contrário disso,
qualquer teoria deve ser determinada unicamente através dos resultados obtidos por experimentação e observação.8 Essa visão de
Newton é uma resposta direta à física cartesiana, cujas teorias são
limitadas pela afirmação de que temos conhecimento a priori da
matéria como pura extensão. Nós não “honraremos menos o nosso
país natal”, afirma Hume, se aplicarmos os métodos da filosofia
natural à ciência do homem, comparando nossa ignorância sobre
a essência da mente com o nosso desconhecimento da essência do
corpo.9 Para ele, “parece evidente que, se a essência da mente é
igualmente desconhecida para nós como a dos corpos externos, então deve ser igualmente impossível formar qualquer noção das suas
forças e qualidades, exceto a partir de experimentos cuidadosos e
exatos” (TNH, xvii ). Assim, o método de Hume é naturalista no
sentido de que ele é contínuo com a observação e a abordagem
experimental que havia triunfado na física mecânica, e é contínuo
também no sentido de que ele rejeita qualquer concepção a priori
da mente que constranja seus resultados. Tal ponto de vista é sem
dúvida favorável ao empirismo. Nietzsche, como Hume, é cético
em relação a um supostoconhecimento a priori e enaltece o empirismo a partir de Para além de bem e mal. Desse modo, ele escreve
que toda “credibilidade, boa consciência e evidência de verdade se
originam primeiramente dos sentidos” (JGB/BM 134, KSA 5. 96.
8 Sobre esta discussão, ver o meu Newton. In: The Blackwell Companion to
Early Modern Philosophy, Oxford: Blackwell, 2002.
9 Hume, D. A Treatise Concerning Human Nature, Oxford: Oxford University Press,
1978, p. xvii. Todas as outras referências a A Treatise Concerning Human Nature são
feitas entre parênteses no texto pela sigla TNH.
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Kail, P. J. E.
Cf. tb. JGB/BM 15, KSA 5.29 e CD/CI, Razão na Filosofia 3, KSA
6.75-6). Isso não significa que Nietzsche tenha sido acrítico acerca
dos resultados da ciência (veja abaixo); isso tampouco o impediu
de questionar o valor da verdade, ou de sustentar que a ciência por
si mesma não pode criar valores, algo que seria a obrigação dos filósofos (ver, p. ex., a GM/GM III; JGB/BM 211, KSA 5.144-5). Mas
essas características da filosofia de Nietzsche dependem da sua
crença de que ele está compreendendo a natureza humana mais ou
menos corretamente – ou seja, de que ele está correto sobre quais
tipos de criaturas são os seres humanos – e de que o estudo empírico é a fonte de tais conhecimentos.10
Ceticismo sobre a causação?
O naturalismo praticado por Nietzsche e Hume não é um naturalismo de tipo semanticamente redutivo (no sentido de reduzir os
conceitos a postulados relativos à experiência), mas tem, ao invés
disto, uma pretensão explicativa11. Há uma série de diferentes aspectos nessas aspirações compartilhadas que requerem exame. A
alegação de Kant de que uma “genealogia” pode ser uma “tentativa
de pôr em dúvida” é um desses aspectos; um segundo aspecto é a
significativa sobreposição daquilo que é visto tanto por Nietzsche
quanto por Hume como carecendo de explicação, uma sobreposi-
10 Isso tampouco descarta o fato de que a filosofia de Nietzsche tenha uma intenção
terapêutica. Ver: Nietzsche’s Naturalism Reconsidered. In: The Oxford Handbook of
Nietzsche,Oxford University Press, (no prelo).
11 É um fato óbvio e notório que Hume oferece “definições” de “causa”, mas
é um erro vê-las como reduções semânticas (mesmo porque elas não são
nem intensional, nem extensionalmente equivalentes). Para uma discussão
sobre a natureza e o papel de um juízo causal, consulte Garrett, D. Cognition
and Commitment in Hume’s Philosophy, New York: Oxford University Press,
1997, cap. 5.
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cadernos Nietzche 29, 2011
Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
ção que inclui os conceitos de causalidade, substância, eu, crença
religiosa, valorização ascética e avaliações morais em geral. As explicações também são explicações causais. Entretanto, ambos os
pensadores não são céticos em relação à causação? Se este é o caso,
como eles podem oferecer explicações causais?
É inegável que Hume e Nietzsche são “céticos” em relação a
causa e efeito. Entretanto, é preciso distinguir entre um ceticismo
que afirma que não há nada semelhante a uma relação causal e um
ceticismo concernente a teorias metafísicas específicas acerca destas relações e de sua epistemologia. Nietzsche e Hume pertencem
à segunda espécie de céticos , mas não à primeira. Um primeiro
argumento que apoia tal afirmação é o fato de que ambos se valem
das explicações causais e da linguagem causal. Deste modo, Hume
procura entender “quais as causas que nos induzem a acreditar
na existência do corpo” (TNH, 187) e as “causas” da crença religiosa12. Nietzsche critica a “moral e a religião” cristã por não manterem “qualquer contato com a realidade”, pois elas, entre outras
coisas, põem em circulação “causas imaginárias”, sem “qualquer
conceito de causa natural” (M/A 15, KSA 3.28). Nietzsche então
passa a fornecer uma explicação causal dessa má interpretação da
realidade (M/A 15, KSA 3.28-9). Essas declarações podem ser tomadas ao pé da letra, porque quando nos voltamos para as evidências textuais em favor do ceticismo causal, elas apoiam o segundo
e não o primeiro tipo de ceticismo sobre a causação.
Comecemos com Hume ou, mais precisamente, com uma das
influências de Hume, ou seja, Newton. Newton, de forma óbvia,
se preocupa com o mundo natural e com explicações naturalistas.
Mas sua própria posição surge em parte como resultado de uma
crítica empirista da metafísica mecanicista então dominante e, em
particular, a metafísica da causalidade. A metafísica mecanicista
12 Veja The Natural History of Religion. In: Dialogues and Natural History of
Religion, Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 134.
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Kail, P. J. E.
da causalidade pretendia oferecer um modelo geométrico perfeitamente claro para as operações de causalidade, de tal forma que
se podia ver por que tal e tal efeito deve acontecer. O modelo de
causação supostamente se ajustaria à concepção de matéria como
pura extensão determinada a priorique foi mencionada acima.
Entretanto, Newton abandonou esse modelo, uma vez que ele não
se adequava aos resultados experimentais e a fenômenos evidentes
tais como ação à distância e a coesão. Além disso, esse modelo
era incapaz de oferecer qualquer concepção genuína de atividade,
já que nele a matéria é definida como algo passivo. Nada disso
fez Newton duvidar da existência de relações causais, mas o levou a desenvolver uma filosofia experimental que funciona sem
qualquer compromisso com um modelo claro de metafísica. Assim,
no escólio geral dos Principia, Newton escreve: “Mas até agora eu
não fui capaz de descobrir a causa das propriedades da gravidade
a partir dos fenômenos, e eu não fabrico hipóteses. O que não é
deduzido dos fenômenos deve ser chamado de hipótese, e hipóteses, quer sejam metafísicas ou físicas, quer de ocultismo ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental”13. Hume escreveu
em sua History of England que “Newton pareceu tirar o véu de
alguns dos mistérios da natureza, ele mostrou ao mesmo tempo as
imperfeições da filosofia mecânica”14. A crítica de Hume àrelação
causal é newtoniana na medida em que tem como alvo a idéia de
que as relações causais podem ser claramente compreensíveis para
nós, mas esta crítica alarga a modéstia de Newton. Como se sabe,
Newton propõe especulações sobre a natureza da gravidade e sobre
a existência do éter, apesar de considerá-las empiricamente inadequadas (não tendo “lugar na filosofia experimental”). Hume ataca
a própria possibilidade de apreensão de qualquer relação de causa
13 Em Thayer, H. S., Newton’s Philosophy of Nature. New York: Hafner, 1953, p. 46.
14 Hume, D. The History of England from the Invasion of Julius Caesar to the
Revolution in 1688, Indianapolis: Liberty Classics, 1983, 6: 542.
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
e efeito para além da mera regularidade, com base no argumento
de que uma tal apreensão implicaria necessariamente que podemos
ver porque justamente tal e tal efeito precisa se seguir a tal e tal
causa, o que tornaria impossível para nós conceber qualquer outro
efeito se seguindo a uma causa determinada. Mas dado que os nossos conceitos são limitados pelas impressões da experiência sensível, é impossível para nós apreender essa relação. Os poderes e as
forças na especulação newtoniana são “totalmente vedados para a
curiosidade e a investigação humanas”.15 Uma vez que o conceito
que temos de forças que excedem as regularidades não pode ser detectado na experiência, nós somos privados de qualquer concepção
de forças subjacentes às ocorrências causais. Não obstante, isso
não significa que Hume rejeita a relação de causa e efeito: em vez
disso, ele sustenta que a relação entre o que são genuínamente as
causas e seus efeitos não é algo do qual podemos ter uma compreensão clara16.
Tendo em mente essa distinção entre a relação de causa e efeito
e a possibilidade de uma compreensão clara acerca do que está
envolvido nessa relação, voltemo-nos agora para Nietzsche. Ele escreve que “não temos ‘sentidos para as causa efficiens’: aqui Hume
estava certo” (VP 530). A natureza da relação causal não é dada
na experiência. Agora, é bem verdade que nas obras anteriores
Nietzsche parece rejeitar a idéia de que existem relações causais.
Assim, em Para além de bem e mal 21 ele argumenta que “não devemos objetificar erroneamente ‘causa’ e ‘efeito’: ... Devemos usar
15 Hume, D. Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the
Principles of Morals, Oxford: Oxford University Press, 1975, p. 30.
16 Muitos lêem Hume, ao contrário, como um metafísico reducionista quanto
à relação causal: relações causais são apenas exemplos de regularidades.
Note-se que essa posição não é uma rejeição da relação de causa e efeito,
mas, sim, uma visão metafisicamente austera sobre no que consiste essa relação. Hume, nessa leitura, não é cético em relação à causação, mas em relação
a certas visões filosóficas da causação.
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Kail, P. J. E.
‘causa’ e ‘efeito’ apenas como puros conceitos. No ‘em si’ não há nada
como ‘associação causal”’. De acordo com Maudemarie Clark essas
observações revelam uma adesão ao neo-kantismo que Nietzsche,
posteriormente, veio a rejeitar.17 O ceticismo prévio sobre a causação é, nesta leitura, um caso particular da tese mais geral conhecida como “tese da falsificação”. Grosso modo, uma vez que (a) o
“mundo real” deve ser identificado com o mundo numenal e que
(b) como Schopenhauer e outros, Nietzsche considerava ilegítima
a aplicação de conceitos empíricos à coisa-em-si, incluindo o de
“causa” e “efeito”, qualquer afirmação que façamos deve falsificar
o “mundo verdadeiro”, devendo ser ela mesma falsa. No entanto,
de acordo com Clark, Nietzsche posteriormente abandonou a distinção, de efeitos deletérios,entre o mundo numenal e o fenomênico
(cf. CD/CI, Como o “verdadeiro mundo” tornou-se uma fábula), e,
assim, “a tese de falsificação” também é deixada de lado. As obras
posteriores de Nietzsche devem ser lidas de forma que o mundo
real é identificado com o mundo empírico, e a aplicação de conceitos causais não gera erros. Esta tese de Clark não é inconteste,
embora não seja possível fornecer aqui uma discussão detalhada
dessa questão, é preciso dizer que o tratamento que Nietzsche oferece da causação nas obras posteriores tem sido usado algumas vezes contra esse tipo de leitura18. Pois algumas das declarações mais
tardias apresentam, de fato, um teor cético. Parece-me, contudo,
que quando Nietzsche soa como um cético nas obras tardias, deveríamos entendê-lo como cético em relação à nossa compreensão da
17 Veja Clark, M. Nietzsche on Truth and Philosophy, Cambridge: Cambridge
University Press, 1990, p. 103-5; LEITER, B. Nietzsche on Morality, London:
Routledge, 2002, p. 22-23. Em uma palestra proferida recentemente em
Southampton, Clark se afastou desta leitura.
18 Ver, p. ex., ACAMPORA, C. D. Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology.
In: A Companion to Nietzsche , Oxford: Blackwell, 2006, p. 314 - 33 ; Hussain, N.
Nietzsche’s Positivism. In: European Journal for Philosophy 12, 2004, p. 326-68 ;
POELLNER, P. Nietzsche and Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 1995,
p. 22-24.
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
causação e em relação às tentativas de articulação da metafísica da
causação, ao invés de considerá-lo cético em relação à existência
da própria causação.
Em Crepúsculo dos ídolos, “Os Quatro Grandes Erros” (intitulado o “erro de uma falsa causalidade”) Nietzsche escreve: “As
pessoas sempre acreditaram que sabiam o que era uma causa...
mas como chegamos a crença de que temos tal conhecimento?”.
Nietzsche ensaia uma resposta, ou seja, que nós “projetamos a partir de nós mesmos... três ‘fatos interiores’ no mundo” (GD/CI, Os
quatro grandes erros 3, KSA 6. 90): a vontade, a mente e o Eu. Nós
pensamos erroneamente que existe um eu substancial que está por
trás da eficácia causal da vontade, que é o que constitui a causação
mental. Nosso querer supostamente nos fornece uma maneira de
capturar a “causalidade no ato”, juntamente com a idéia de que o
Eu e a causação mental estão demonstrados “como algo dado, como
algo empírico” (GD/CI, Os quatro grandes erros 3, KSA 6.90). Mas
recapitulando um ponto abordado em Para além de bem e mal 19, a
eficácia da vontade não é “empiricamente dada”. O erro desta idéia
leva a um outro: a projeção do eu e da vontade no mundo na medida
em que sustentamos que a eficácia causal natural é perfeitamente
inteligível e envolve operações causais (como “empurrar” e “puxar”) entre substâncias discretas. E a noção de substância é emprestada da equivocada concepção de si mesmo como substância
simples. Nietzsche repreende o “Sr. Mecanicista e sr. Físico” por
promoverem uma metafísica mecânica atomista, modelada inconscientemente sobre a visão equivocada de um eu transparente dotado de uma vontade causalmente eficaz. Isso ecoa a denúncia de
Para além de bem e mal 21 da “estupidez mecanicista dominante
de que obteríamos uma causa empurrando e forçando algo até que
isto ‘afete’ alguma coisa”. A diferença aqui é que Nietzsche não
está sugerindo que não há algo como a causação, mas em vez disso,
ele tenta explicar a crença de que nós compreendemos a relação
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causal. A afirmação de que “A é causa de B” pode ser verdadeira,
embora a afirmação de que podemos compreender inteiramente o
processo causal a partir de um modelo mecânico seja falsa.
Essa linha de interpretação permite explicar também por que
Nietzsche parece disposto a recorrer à causação e a uma distinção
entre causação real e imaginária, por um lado e, por outro, fazer
algumas observações mordazes sobre a explicação causal. Parte da
justificativa para a descrição mecanicista é que as suas supostas
explicações não se limitam a identificar os fatos causalmente relevantes para alguns efeitos, mas prometem igualmente uma forma
clara de compreensão de por que justamente tal e tal causa produz
tal e tal efeito. Newton rejeitou tais modelos como absolutamente
insuficientes para a uma explicação genuína, sem renunciar à idéia
de que existem relações causais. Parece-me que isso ecoa inconscientemente em Nietzsche: “Causa e Efeito . – Nós chamamos isso
de ‘explicação’, mas ‘descrição’ é o que nos distingue dos estágios
mais antigos do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos melhor – nós explicamos tão pouco quanto todos os nossos antecessores... A série de ‘causas’ se apresenta mais completamente diante
de nós em cada caso; nós raciocinamos que ‘isto e aquilo deve vir
antes para que algo se siga’, mas com isso não compreendemos
nada de nada. Por exemplo, o aspecto especificamente qualitativo
de todos os processos químicos ainda parece ser um ‘milagre’, do
mesmo modo que todo deslocamento; ninguém ‘explicou’ o empurrão” (FW/GC 112, KSA 3.472). Agora, é bem verdade que nessa
passagem Nietzsche continua a exibir um ceticismo em relação a
causa e efeito em geral, mas isto não é uma surpresa, já que a
A Gaia Ciência é um texto de transição que mostra preocupação
quanto à legitimidade da aplicação de conceitos à coisa-em-si (cf.
FW/GC 374, KSA 3.626)19. Mas a passagem expressa claramente
19 Ao afirmar que se trata de uma obra “de transição”, quero dizer que Nietzsche
na GC está começando a rejeitar a idéia da coisa-em-si, mas ainda não tomou
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
um ceticismo sobre a possibilidade de alcançar uma compreensão
clara da relação de causa e efeito (e, portanto, uma “explicação”)
da maneira como venho discutindo. Uma vez que a distinção entre
o mundo numênico e fenomênico tenha sido abolida, pode-se manter o ceticismo sobre a nossa compreensão de tal relação, sem que
seja ilegítimo pensar o mundo em termos causais.
Deste modo, tanto Hume quanto Nietzsche podem oferecer o
que nós hoje reconhecemos como explicações causais na medida
em que eles identificam traços causalmente relevantes na tentativa
de mostrar como certos fenômenos emergem. No entanto, uma dificuldade pode surgir quando não podemos responder à questão de
por que exatamente este ou aquele fenômeno precisam ocorrer. A
ciência, que Nietzsche identifica com “os conceitos sadios de causa
e efeito” (M/A 49 KSA 3.53), é sadia na medida em que pode oferecer identificações empíricas de eventos que estão relacionados por
dependência causal, sem ser necessariamente capaz de oferecer
um modelo de porque exatamamente eles têm essa dependência.
Uma última observação: o ceticismo de Newton sobre o alcance
do mecanicismo não o impediu de especular sobre a metafísica
subjacente às forças em jogo no que diz respeito à gravidade e a
coesão. Com isso em mente, poderíamos interpretar as indicações
ocasionais de Nietzsche concernentes a uma metafísica da vontade
de potência em seus trabalhos publicados (p. ex., em GM/GM II
12, KSA 5.313-6) numa chave similar, ainda que tais indicações
sejam muito menos sustentadas por evidências e mais especulativas. Gostaria de ressaltar que não desejome estender muito sobre
esse ponto. Pois embora a vontade de potência seja relevante para a
psicologia de Nietzsche, sua extensão e sua importância além deste
domínio psicológico é muito limitada nos trabalhos publicados.
consciência de suas implicações para a tese da falsificação. Para esta discussão, ver CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge:
Cambridge University Press, 1990, 95 e segs.
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Além disso, Nietzsche não faz nenhuma menção à vontade de potência ao passar em revista a sua obra no Ecce homo, fato para o
qual Leiter tem chamado a nossa atenção. Contudo, especular sobre a metafísica da causação na suposição deque o paradigma dominante é inadequado do ponto de vista explicativo não configura
uma atitude antinaturalista. Como Gregory Moore demonstrou, a
doutrina da vontade de potência foi profundamente influenciada
pelo modo como Nietzsche interpretou tendências de pensamento
da biologia do século XIX,20 e seus trabalhos não publicados conectam a noção de eficácia per si com a da vontade de potência
(por exemplo, VP 689).21 Seja como for, que a noção de vontade de
potência nos proporciona uma genuína metafísica da eficácia não
é algo que tenha influência sobre as explicações naturalistas que
Nietzsche realmente oferece.
Explicações naturalistas e suas consequências
Como já foi mencionado acima, Leiter considera que tanto
Hume quanto Nietzsche propõem uma teoria geral da natureza
humana com o intuito de “fornecer uma base para explicar tudo
o que diz respeito aos sereshumanos”22. Mas é claro que eles não
apenas tentam fornecer uma base para as explicações. Eles também oferecem explicações de alguns fenômenos. E mais ainda,
há uma significativa sobreposição daquilo que eles pretendem
20 Veja MOORE, G. Nietzsche, Biology, Metaphor. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002; Nietzsche and Evolutionary Theory. In: A Companion
to Nietzsche , Oxford: Blackwell, 2006, p. 517-31.
21 Veja POELLNER, P. Nietzsche and Metaphysics, Oxford: Oxford University
Press, 1995, p. 45-46.
22 LEITER, B. Nietzsche on Morality, London: Routledge, 2002, p. 5.
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
explicar. O que é que Nietzsche e Hume procuram explicar em
termos naturalistas? E quais são as conseqüências e a implicação
de suas estratégias?
Começo com uma breve lista das áreas comuns de explicação.
Ambos tentam explicar o surgimento de alguns conceitos centrais,
dentre eles o de um eu substancial e o de eficácia causal, bem como
explicar a crença religiosa e os conceitos morais, o que inclui uma
certa versão ascética da moralidade. Quando eles diferem nos tipos de explicações que eles oferecem, essa divergência se deve, em
parte, às diferenças em suas considerações básicas sobre a natureza
humana, diferenças que já foram expostas sucintamente neste artigo. Eles também diferem em detalhe e foco. Por exemplo, Hume
oferece explicações mais detalhadas sobre as idéias de Eu e de causação que Nietzsche, ao passo que Nietzsche, ao contrário de Hume,
oferece uma rica análise da consciência e da culpa. É evidente que,
para eles, a dimensão explicativa de suas filosofias é importante. No
que se segue, terei que ser um tanto esquemático acerca dos pormenores de algumas dessas explicações (omitindo outros), mas espero
poder fornecer detalhes suficientes para chamar a atenção para a
nossa segunda questão. Recordemos a idéia de Kant de que uma
“fisiologia do entendimento” pode ser vista como uma “tentativa de
pôr em dúvida.” Como assim? Muita coisa depende das explicações
particulares oferecidas, mas comecemos com algumas distinções
esquemáticas que ajudarão a conduzir a discussão subsequente.
Primeiramente, é importante notar que nem toda forma de
explicação naturalista precisa necessariamente lançar alguma
dúvida sobre os explananda em questão. Considerações naturalistas da arquitetura cognitiva ou de processos (por exemplo, o
conexionismo ou a concepção de Marr sobre a visão) não lançam
nenhuma dúvida sobre os fenômenos da inferência e da visão. Em
segundo lugar, as bem sucedidas pesquisas naturalistas podem
lançar dúvidas não sobre os explananda eles mesmos, mas sobre
as interpretações ou atitudes concernentes a tais fenômenos e que
os veem como fundamentalmente diferentes da “mera” natureza.
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Considere a explicação de Nietzsche sobre a consciência ou a explicação de Hume sobre nossos processos de raciocínio. Ambas as
explicações são articuladas contra as interpretações não naturalistas concorrentes desses fenômenos. Consciência para Nietzsche
“não é a voz de Deus no homem” (EH/EH, Genealogia da moral,
KSA 6.352), e a razão, para Hume, não é uma inveterada faculdade cartesiana de percepção racional.23 Ao contrário, estes fenômenos são explicados em termos naturalisticamente aceitáveis
e sem envolver nenhuma transação com termos metafisicamente
duvidosos. Portanto, é a interpretação não naturalista daqueles
fenômenos que é posta em dúvida, e não os próprios fenômenos.
Dessa forma, “explicar” em termos naturalistas não é o mesmo
que “eliminar mediante a explicação”. Aqui não vou me preocupar
muito com essa estratégia, mas vou me concentrar, em vez disso,
nas explicações de Nietzsche que estão relacionadas com o “pôr
em dúvida”. Um aspecto dessa estratégia é que as afirmações alternativas sobre a extensão e a natureza do nosso conhecimento
podem ser postas em dúvida justamente porque não há nenhuma
descrição disponível, e que seja verdadeiramente informativa,
de como poderíamos compreender este suposto domínio. Assim,
Nietzsche desaprova a preocupação de Kant em provar o nosso
“direito” de usar certos conceitos como sendo uma preocupação
inócua do ponto de vista explicativo: o conhecimento síntetico a
priori é possível “por uma faculdade... embora infelizmente não em
tão poucas palavras, mas de forma tão laboriosa, tão venerável, e
com... um esbanjamento de profundidade e afetação alemãs” (JGB/
BM 11, KSA 5.24). Em segundo lugar, pode-se argumentar (como
Nietzsche e Hume fazem) que certas crenças fundamentais são falsas. Aqui uma explicação da posse de tais crenças desempenha um
23 Veja HATFIELD, G. The Natural and the Normative: Theories of Spatial
Perception from Kant to Helmholtz, Cambridge: MIT Press, 1990., cap. 1;
OWEN, D. Hume’s Reason. New York: Oxford University Press, 1999.
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
papel, pois para defender essa posição plenamente é preciso ser
capaz de mostrar exatamente porque nós temos tais crenças. Em
terceiro lugar, há uma linha de pensamento, familiar nas discussões sobre o realismo moral de Gilbert Harman, segundo a qual se
podemos explicar plenamente o fato de termos certo tipo de crenças sem precisar fazer referência aos objetos que concernem a tais
crenças, tal explicação torna esses objetos desnecessários.24 Em
quarto lugar, uma explicação pode pôr em dúvida uma crença ao
colocar em dúvida a confiabilidade das origens dessa crença.
Com essas distinções em mente, retomemos o texto. Para Kant,
os conceitos centrais de força, de Eu e de substância são condições
de possibilidade da experiência: para Hume e Nietzsche, o esforço
consiste em mostrar como tais conceitos poderiam surgir, considerando-se dados mais básicos, caracterizados em termos naturalistas. Às vezes, isso é motivado por uma alegação de que a crença a
ser explicada é falsa. Como já foi mencionado, somente argumentar
que tal e tal crença é falsa pode não convencer, a menos que se
possa explicar por que exatamente nós temos tal crença. Essa exigência está presente no exame que Hume oferece das noções de
Eu, substância, e certas concepções da causação, assim como no
exame que Nietzsche oferece de tópicos semelhantes em diversas
ocasiões (por exemplo, Para além de bem e mal “Sobre os preconceitos dos Filósofos”, FW/GC 110, 112, 121; assim como em outras
partes). Como se sabe, ambos rejeitam a noção de um Eu substancial como sede da atividade mental. Nietzsche chama essa posição
de “atomismo da alma” e propõe, em vez disso, que consideremos o
ego como “uma sociedade construída a partir de impulsos e afetos”
(JGB/BM 12, KSA 5. 26). Hume afirma que nós não podemos encontrar uma comparação “mais adequada” para a alma do que “uma
república ou comunidade na qual os diversos membros [percepções]
24 Ver, p. ex., Harman, G. The Nature of Morality: An Introduction to Ethics,
New York: Oxford University Press, 1977.
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são unidos por laços de governo e de subordinação, dando origem a
pessoas que propagam a mesma república pela transformação incessante das suas partes” (TNH, 261). A conclusão negativa de Hume
é, em parte, impulsionada pela alegação de que nenhum eu substancial é dado introspectivamente. Existem elementos que apontam
nessa direção também em Nietzsche. Ele escreve: “‘O sujeito’ não
é dado, é algo acrescentado, inventado e projetado por trás do que
existe” (VP 481; cf 477). Apesar de compartilharem essa conclusão
negativa, suas respectivas explicações sobre a falsa crença em um
eu substancial diferem. Hume oferece uma explicação que recorre à
relação associativa de semelhança, que segundo ele engana a mente
e a faz pensar que as percepções semelhantes estão ligadas por alguma coisa simples (TNH, 254). Nietzsche pensa que essa crença é
fomentada pelo “hábito gramatical” concernente ao uso do pronome
de primeira pessoa, que se apóia na (falsa) distinção entre o agente
e o ato (VP 484; GM/GM I 13, KSA 5. 316-8). Eles concordam que
existe uma falsa visão do eu como uma unidade substancial, uma
visão que demanda explicação.
Essas considerações são parte integrante de um ceticismo comum acerca das substâncias enquanto tal. Para Nietzsche nossas
crenças em substâncias, no eu e na inteligibilidade da causação
estão ligadas. Recordemos que em CI “Os Quatro Grandes Erros”,
Nietzsche argumenta que nós “projetamos... três ‘fatos internos’ para
fora de nós mesmos e no mundo” (GD/CI, Os quatro grandes erros
3, KSA 6.90), e esta projeção consiste na transformação da falsa
crença em um eu substancial na crença na substância enquanto tal.
Para Hume, a crença geral na substância emerge das operações da
imaginação sobre as percepções semelhantes, conforme mencionamos acima de forma sucinta. Como também já assinalado, para
Nietzsche a idéia de que temos um claro entendimento da causalidade natural deve-se a uma projeção antropomórfica da (supostamente conhecida) eficácia causal da vontade. Hume, assim como
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cadernos Nietzche 29, 2011
Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
Nietzsche, não toma a eficácia da vontade como um dado empírico.25
No entanto, novamente como Nietzsche, Hume sustenta que nós nos
comprometemos com uma projeção dessa falsa suposição para podermos dispor de antemão de uma concepção de causação natural.
Ele sustenta – novamente, como Nietzsche (cf. MA/HH I 111, KSA
2.112-6) – que a crença religiosa surge porque nossa incapacidade
de compreender o nexo de causalidade natural desencadeia uma
disposição para antropomorfizar a natureza que oferece um modelo
duplamente falso de uma natureza governada pela vontade ativa de
uma força inteligente e invisível.26 Essa mesma disposição projetiva,
de acordo com Hume, está por trás da ficção da forma substancial
e da substância estimada na filosofia aristotélica. Para Hume, essa
“ficção” é uma reação psicológica à nossa incapacidade de compreender a eficácia genuína, o que gera noções antropomórficas como
“simpatias, antipatias e medo do vazio” (THN, 224)27.
25 Locke está para Hume assim como Schopenhauer está para Nietzsche, pois é Locke
que afirma que é através da atividade da vontade que obtemos nossa compreensão
da causação. Hume objeta que nenhuma noção genuína de eficácia é revelada: em
vez disso, há um evento que identificamos como uma “vontade” que é simplesmente
seguido de movimento (ver, p. ex., o apêndice do Tratado de Hume).
26 Ver HUME, D. The Natural History of Religion . In: Dialogues and Natural History
of Religion. Oxford: Oxford University Press, 1993, 134-96. Para esta discussão,
ver o meu Projection and Realism in Hume’s Philosophy. Oxford: Oxford University
Press, 2007b, cap. 1, e meu Understanding Hume’s Natural History of Religion. In:
Philosophical Quarterly 57, 2007c, p. 190–211.
27 Há uma questão prévia que Hume, ao contrário de Nietzsche, tenta respon-
der. Dado que não temos “nenhum sentido para a causa eficiente,” qual é a
origem de nossa concepção de eficácia em geral? Hume, é claro, oferece uma
resposta associativa. Repetidas experiências de conjunções constantes produzem uma “determinação da mente”, que depois é projetada para o mundo.
Nietzsche é cético em relação a essas explicações. Não “é o hábito de ver
uma ocorrência se seguir a outra” que determina a nossa noção de poder,
“mas a nossa incapacidade de interpretar tais eventos de outro modo que
não como eventos causados por intenções” (WP 550). Mas isso ainda deixa
sem resposta a questão relativa à noção anterior de eficácia ,e não é claro
que Nietzsche tenha alguma resposta a oferecer. Para um exame mais sólido
desta questão, ver POELLNER, P. Nietzsche and Metaphysics. Oxford: Oxford
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Kail, P. J. E.
Temos então um padrão comum de explicação: identificar uma
falsa crença, e recorrer a um expediente psicológico para explicá-la. Novamente, para ambos, existe uma falsa crença em jogo – uma
certa concepção de poder modelada por vontades humanas – para a
qual eles oferecem uma explicação. Obviamente, as explicações que
eles oferecem são consistentes com a falsidade dessas crenças, mas
as crenças são consideradas falsas por razões independentes. Uma
segunda estratégia consiste em uma linha de pensamento inspirada
em Harman, que procurapôr em dúvida as crenças, mostrando simplesmente que seus supostos objetos são redundantes em termos
explicativos. Essa estratégia é comum a Hume e Nietzsche, mas
sua implementação é complicada. Por exemplo, no caso de Hume,
tanto a crença em conexões causais quanto a crença mais geral no
mundo exterior recebem explicações que são compatíveis com sua
falsidade. Isso coloca a questão se estamos autorizados a manter
essas crenças. A respeito da explicação que Hume oferece de nossa
crença em um mundo externo, Barry Stroud afirma o seguinte:
“Ainda que não sejamos obrigados a considerá-la explicitamente
como falsa, nós a veremos como algo em que nós acreditaríamos,
exatamente como fazemos, quer exista realmente um mundo como
este ou não. Nós veríamos que seríamos inevitavelmente levados
a acreditar nele, independentemente da apaarência que o mundo
à nossa volta venha a ter, se algum de fato existe... Mas eu posso
ver minhas próprias crenças como ‘ficções’ dessa maneira?”28 Algo
que preocupa particularmente Strouddiz a respeito da crença que
está sendo agora considerada, ou seja, a crença no mundo externo,
e isto é parte incontornável do questionamento de Stroud aos limites muito estritos do empirismo naturalista de Hume. Mas devemos ter cuidado no sentido de evitar que dificuldades envolvendo
University Press, 1995, 30 ss.
28 STROUD, B. The Constraints of Hume’s Naturalism. In: Synthese 152, 2006, p.
349.
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
essa crença particular (p. ex, se podemos realmente conceber as
pessoas em um mundo sem “objeto externo”) não obscureçam o
problema geral. A questão relevante é: se nós podemos explicar a
presença de um certo tipo de crenças de um modo que seja consistente com a falsidade destas crenças, que impacto isto teria? E uma
resposta seria: se temos razões independentes para acreditar nos
objetos dessas crenças, então isso não teria qualquer impacto significativo. Pois embora possamos oferecer uma explicação de como
viemos a acreditar em algo que seja ao mesmo tempo consistente
com a falsidade da crença que é objeto de nossa explicação, isso
não exclui a possibilidade de nos certificarmos desses objetos por
outras vias. Considere as outrora populares explicações das ciências sociais para crenças científicas particulares, que pretenderam
mostrar como certas crenças científicas se impuseram devido a meros fatores sociais, como a estima dos colegas, favoritismo, moda,
etc. Podemos tomar isso como uma possibilidade, ou até mesmo
como uma hipótese historicamente convincente, mas semelhante
história da emergência da teoria é perfeitamente compatível com
a existência de meios de verificar a correção da teoria em questão.
Podemos aprender algo da natureza humana, demasiado humana
da atividade científica, mas isso, por si só, não serve para minar
tais crenças (a menos que alguém aceite a visão extravagente de
Rorty de que toda a nossa situação “epistêmica” é assim). O ponto
básico é que o modo como chegamos a acreditar em algo que não
elimina a possibilidade de uma ação (atividade) subsequente na
qual a crença é verificada. Pois se é verdade que podemos explicar
nossas crenças sem tais postulados, estes postulados podem posteriormente explicar outra coisa. Uma das peculiaridades da crença
no mundo externo na qual se concentra Stroud é que ela refere-se
exclusivamente à ordem de nossa experiência e não a como as características do mundo atuam de uma maneira independente dela.
Se não podemos ter uma noção clara de algo externo à nossa experiência, então não podemos distinguir entre a explicação de como
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adquirimos nossas crenças e a postulação de coisas que explicam
como coisas que independem de crenças atuam sobre outras coisas
que independem de crenças.
Isso explica porque as propriedades morais são, no entanto,
vulneráveis à objecção de Harman. Dito de forma direta, tudo o
que os fatos ou propriedades morais podem fazer – se é que eles
devem fazer algo – é explicar nossas crenças e percepções sobre
eles. Moralidade só tem algum efeito sobre o mundo por meio das
crenças morais das pessoas e, se pudermos explicar essas crenças
sem recorrer a essas supostas propriedades morais, então essas
propriedades serão redundantes. Vou tomar como certo que nem
Hume, nem Nietzsche aceitariam um realismo não naturalista
acerca dos valores. Hume, p, ex., procura explicar a peculiaridade
de nossas ideias e experiências valorativas através do recurso a
um mecanismo de projeção, pelo qual “damos brilho” e “coloração” a objetos naturais através de nossas respostas afetivas.29
Não se mencionam propriedades morais na explicação das crenças morais. Mas precisamos ser cautelosos em relação à questão
de em que medida para Hume tais explicações “colocam em dúvida”. Pois ele não considera que esta “descoberta” (THN, 469)
sugira que a prática da moralidade deva ser abandonada. Ele vê
o erro como uma característica pensamento comum que pode ser
superada, e que não põe em causa a “realidade da virtude” (THN,
469), do mesmo modo que a nossa experiência das cores envolve
uma resposta projetiva que não compromete a realidade da cor.
Na verdade, a maior parte das explicações de Hume sobre os fenômenos da moralidade não objetiva atentar contra a moralidade,
mas visa antes a dar uma explicação em termos naturalistas de
modo que as considerações teóricas concorrentes que recorrem a
29 HUME, D. Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the
Principles of Morals. Oxford University Press, 1975, p. 269.
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
elementos não naturais fiquem comprometidas. Tal descrição da
moralidade baseia-se em uma psicologia que inclui respostas afetivas, um mecanismo de simpatia e uma série de paixões, dentre
elas a benevolência limitada e a preocupação com a própria prole.
Todos esses elementos se situam no arcabouço mais básico de seu
associativismo. Essa psicologia é reforçada por algumas conjecturas sobre os tipos de situações nas quais os seres humanos podem se encontrar. Isso inclui, de forma decisiva, suposições sobre
a escassez de recursos. Essa descrição procura explicar como, a
partir desses recursos limitados, instituições como a justiça podem surgir. Trata-se de um tipo de descrição que é formulado contra uma posição antagônica que inclui tanto o “quase-platonismo”
da moral racionalista e quanto o estoicismo providencial. Neste
contexto, explicar não é uma questão de eliminar (através da explicação) a moralidade, mas de eliminar (através da explicação) a
necessidade de elementos que transcendam a natureza humana.
As considerações de Nietzsche sobre a moral também são naturalistas e explicativas. Sua atitude em relação à moralidade é
um pouco diferente, e sua Genealogia é calculada para fomentar a dúvida. Então, qual é a diferença? Há evidências de que
Nietzsche explora algo parecido com o argumento explicativo
contra um realismo não naturalista, ao estilo de Harman. Assim,
em Aurora, ele nos diz que “na medida em que aumenta o sentido de causalidade o domínio da moral diminui... [chegamos a]
destruir um número incontável de causalidades imaginárias que
até então se acreditava ser a base para os costumes – o mundo
real é muito menor do que o imaginário” (M/A 10, KSA 3.24)30.
Entretanto, essa passagem parece oscilar entre uma reprovação
30 Para uma discussão sobre esta passagem em conexão com o argumen-
to de Harman, consulte SINHABABU, N. Vengeful Thinking and Moral
Epistemology. In: Nietzsche and Morality. Oxford: Clarendon Press, 2007, p.
273.
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do pensamento comum, concebido em termos de seu compromisso
com uma metafísica insustentável, e uma aceitação acrítica de determinadas interpretações teóricas impostas a uma prática ordinária de primeira ordem. Recordemos que foi dito que algumas
explicações naturalistas “põem em dúvida” não o que é explicado,
mas as interpretações não naturalistas disso que é objeto da explicação. Desse modo, nessa passagem Nietzsche pode tanto estar censurando o pensamento ordinário como pode, em vez disso,
ter em mira uma certa interpretação desse pensamento, que lhe
foi imposta pelos filósofos ou pelos religiosos. É difícil decidir
sobre qual caminho seguir aqui, e não apenas porque me falta
espaço para rever os textos e a literatura pertinentes. Eu havia
introduzido a distinção entre fenômenos morais e as interpretações
destes através do exemplo do fenômeno genuíno da consciência e
sua contrapartida teorizada, ou seja, “a voz de Deus no homem”.
É relativamente fácil tomar os dois separadamente de modo que
podemos identificar o fenômeno da consciência, independentemente do nosso compromisso para com Deus. Entretanto, as coisas
se tornam muito mais complexas quando nos lembramos de que
uma boa parte da discussão em Nietzsche diz respeito ao jogo sutil
de disposições comportamentais categorizadas pelos tipos “mestre”, “escravo” e “padre”, assim como às mudanças interpretativas ou os Sinne que lhes são impostas. Assim, a divisão clara entre
pensamento comum e “teórico” é problemática, e um dos objetivos
da Genealogia da moral é obviamente o de identificar alguns dos
diferentes significados desses tipos.
Ao invés de focar esta questão, devemos tomar nota de outra.
Falar de “moral” é significa se servir de um instrumento muito
obtuso, já que para Nietzsche há muitas moralidades distintas,
sendo que a diferença mais notável entre os diversos tipos de moralidade é expressa por meio da divisão entre senhor e escravo.
Na Genealogia da moral, Nietzsche parece visar a uma moralidade
ascética particular (que Leiter denominou de “moral no sentido
pejorativo”). Mas se Nietzsche coloca em dúvida a moralidade
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
baseando-se apenas no tipo da alegação de redundância causal,
como foi sugerido acima, então algo mais seria necessário para explicar o porquê da moral ascética ser o seu objeto específico de preocupação. É óbvio que a crítica de Nietzsche à moralidade envolve
inúmeros aspectos, mas o aspecto que nos interessa é saber como,
caso isso de fato ocorra, uma determinada explicação pode “colocar
em dúvida” o que é explicado. Uma série de respostas diferentes a
essa pergunta tem sido oferecida, mas ao invés de discuti-las irei
esboçar uma resposta que tem algumas afinidades com a estratégia
adotada por Hume em sua discussão acerca da crença religiosa. O
aspecto da Genealogia da moral o que me interessa diz respeito ao
surgimento dos compromissos essenciais da moral de escravos.
As linhas gerais são familiares: antes da revolta de escravos, os
escravos reconhecem a hierarquia definida pelo padrão de avaliação dos senhores e o seu lugar na parte inferior da mesma. Este reconhecimento é acompanhado pela atitude reativa de ressentiment
em face da impossibilidade de dominar os mestres. O ressentiment
torna-se criativo ao produzir uma “vingança imaginária” (GM/GM
I 10, KSA 5.270). Produzem-se conceitos valorativos, crenças com
aspectos valorativos, que incorporam uma inversão do modo nobre
de avaliação. O que é importante notar é que o processo psicológico
pelo qual este modelo de avaliação surge deve ser de modo que se
isole das provas ou razões epistêmicas que falam a favor ou contra
suas crenças. Para que as crenças tenham o efeito de amenizar o
desconforto psíquico gerado pelo ressentiment, seus adeptos devem
considerá-las como reflexo da realidade (daí a crença “falsificar” o
mundo [GM/GM I 10, KSA 5.270]). No entanto, os processos pelos
quais essas crenças emergem estão ajustados de modo a eliminar o
desconforto dos escravos: e a fixação de uma crença com o objetivo
de remover desconforto é uma fonte epistêmicamente não confiável
de crença, pois ela não está ligada de um modo compreensível ao
objetivo da crença, ou seja, a verdade. Tomar conhecimento de que
as crenças têm essa fonte “suscita dúvidas” sobre elas na medida
em que é preciso reconhecer que tais crenças exigem agora novas
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justificativas. Isso ocorre porque suas causas não estão de forma
alguma relacionadas com a verdade da crença. Essa descoberta
não mostra que as crenças são falsas, nem demonstra que, para tais
crenças, não pode ser dada alguma justificação adicional, mas ela
demonstra que as crenças devem ser reavaliadas.
Hume desenvolve uma estratégia semelhante em suas considerações sobre o surgimento da crença religiosa. A crença religiosa
surge porque os primeiros seres humanos estão em um estado de ignorância a respeito do mundo natural e são totalmente dependentes
das vicissitudes da natureza para sua sobrevivência e prosperidade.
Não sendo possível prever ou manipular a natureza, os seres humanos estão em um estado permanente de ansiedade que, por sua vez,
aciona e mantém uma disposição permanente para antropomorfizar
a natureza sob a forma de politeísmo. A crença é fixada, não por
causa de qualquer apreciação das razões epistêmicas a seu favor,
mas porque alivia a ansiedade ao franquear uma interpretação das
causas desconhecidas dos eventos naturais e, o que é mais importante, ao oferecer um modelo de como manipulá-los. Novamente, os
processos de formação de crença não são algo que podemos ver de
forma inteligível como conectado com a verdade.
Em ambos os casos, as crenças são desestabilizadas por suas
histórias causais. Dado que os mecanismos que as produziram não
estão relacionados com a verdade, a consciência sobre suas origens fornece uma razão para o pensador procurar motivos para essas crenças. As consequências são diferentes em cada caso. Para
Nietzsche, a explicação não apenas mostra que a moral ascética
não é a única moral possível, mas ela também apela aos valores
ascéticos que são problemáticos na medida em que esses valores
exigem algum apoio adicional, fora do sistema de moralidade, devido às suas origens31. Dessa forma, a “transvaloração do valores”
31 Cf. M/A 103. Nessa passagem, Nietzsche escreve que “é desnecessário di-
zer que eu não nego – a menos que eu seja um idiota – que muitas ações
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
é facilitada na medida em que a moral ascética é colocada na situação de ter nesse momento que defender esses valores.32 Para
Hume, a posição fideísta pela qual a crença religiosa não exige
razões em seu favor se mostra insustentável. Muito mais pode (e
deve) ser dito sobre isso, mas o que já foi dito sugere um sentido
em que uma explicação pode lançar dúvidas sobre uma classe de
crenças mediante a exposição do caráter não confiável das causas
dessas crenças. O que foi dito sugere igualmente que essa é uma
estratégia comum a Hume e Nietzsche.
Conclusão
Este ensaio mal tocou a superfície dos paralelos entre Hume
e Nietzsche. Expus os paralelos no que diz respeito aos seus naturalismos substantivo e metodológico e procurei responder a uma
objeção às suas explicações naturalistas que têm como base o ceticismo de ambos em relação à causação. Identifiquei ainda alguns
dos tipos de explicações comuns a ambos, assim como suas distintas ramificações. Porém, seria preciso um exame muito mais detalhado para tornar convincente as teses apresentadas. Sendo assim,
chamadas imorais devem ser evitadas e combatidas, ou que muitas consideradas morais devem ser feitas e incentivadas, mas eu penso que umas devem
ser encorajadas e outras evitadas por razões distintas das razões até agora
apresentadas” (KSA 3. 91, M/A, § 103, grifo no original). Pode-se presumir
que há determinadas práticas que devem ser seguidas, mas para essas práticas estão disponíveis outras interpretações.
32 Cf. OWEN, D. Nietzsche, Re-evaluation, and the Turn to Genealogy. In:
Nietzsche’s “On the Genealogy of Morals”: Critical Essays , Lanham, Md.:
Rowman and Littlefield, 2006, p. 39–56 ; Ridley, A. Nietzsche and the Reevaluation of Values. In: Nietzsche’s “On the Genealogy of Morals”: Critical
Essays, Lanham, Md.: Rowman and Littlefield, 2006, p. 771-92.
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o aprimoramento dessas teses em seus pormenores poderia constituir um campo para futuros trabalhos. Com efeito, alguns campos
para futuras discussões são:
1. Quais são os elementos naturalistas que aparecem nos projetos explicativos de Hume e Nietzsche, e em que sentido esses elementos
são naturalistas?
2. Em que medida estas divergências de posição podem ser explicadas
pelas diferenças nestes pontos de partida?
3. Dado, porém, que há uma significativa sobreposição, podemos
explicar a existência dessa sobreposição pelas inquietações que
são comuns a ambos?
4. O que são precisamente as explicações relevantes e como elas são
plausíveis?
5. Quais consequências normativas têm estas explicações e por quê?
No entanto, há um número muito maior de sobreposições entre
os dois pensadores que requer exame ou refinamento. Por exemplo, as consideraçõe de Nietzsche e Hume acerca da origem das
crenças religiosas coincidem em forma e conteúdo. Ambos, além
disso, avaliam que essas considerações têm uma relevância normativa para tais crenças religiosas. Isso, naturalmente, é um caso
particular das questões gerais (4) e (5), mas é um tópico particularmente interessante pelo fato de que uma abordagem naturalista
das crenças religiosas tem ocupado o primeiro plano da discussão
filosófica,33 e as considerações que Nietzsche e Hume têm a oferecer não dependem essencialmente de nenhum aspecto controverso
em suas filosofias da mente.
Em ambos os casos, no entanto, a preocupação com a religião
não é uma preocupação teórica, mas diz respeito a sua importância
33 Tenho em mente DENNETT, D. Breaking the Spell: Religion as a Natural
Phenomenon. London: Penguin, 2007.
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Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação
para as concepções éticas da humanidade. Para ambos os pensadores, a religião está emaranhada a uma gama de valores ascéticos
que eles consideram inimigos da prosperidade humana. Portanto,
aqui há outra possibilidade a explorar,
6. Em que medida as concepções de Nietzsche e Hume sobre a relação
entre a religião e a moral ascética são coincidentes? As diferenças
são uma questão de grau, ou elas indicam um desacordo fundamental entre os dois pensadores? Em que sentido eles vêem o ascetismo
como uma ameaça para a prosperidade humana? Existe alguma sobreposição em suas concepções de florescimento humano?
Essa preocupação comum coincide – de alguma forma – com
o método “genealógico”. Tal tema foi ligeiramente discutido nesse
artigo. Em sua investigação recente sobre a genealogia, Bernard
Williams sugeriu um modelo que vê alguma sobreposição entre as
explicações genealógicas de Nietzsche e de Hume sobre a moralidade. Contudo, por razões que não posso desenvolver aqui, eu
duvido que tal seja o modelo correto. Assim, precisamos investigar:
7. Em que sentido as abordagens de Hume e Nietzsche sobre a moralidade podem ser pensadas como “genealógicas”? Quais são as
implicações disso?
Tudo isso vai exigir reflexões e estudos consideráveis. Espero
ter pelo menos estimulado o apetite do leitor.
Abstract: The aim of this essay is to sketch the character of the naturalism shared by both Hume and Nietzsche and address two issues regarding it. One is their skepticism about causation. There is a prima facie
problem here. A shared aspect of their naturalism involves attempts to
explain, and explain causally, a whole host of phenomena by appeal to
more minimal materials. Both, however, appear skeptical about causation
itself, putting pressure on their explanatory aspirations. It shall be shown
cadernos Nietzche 29, 2011
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that there is no genuine tension for either thinker. The second issue explored in this paper is the character of the explanations that they offer of
different kinds of phenomena and what the philosophical ramifications
might be.
Keywords: naturalism - explanation - causation
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Artigo recebido em 18/03/2010.
Artigo aceito para publicação em 28/03/2010.
162
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
Aspectos transcendentais,
compromissos ontológicos
e elementos naturalistas no
pensamento de Nietzsche*
Béatrice Han-Pile**
Resumo: As concepções de Nietzsche sobre o conhecimento foram
interpretadas de pelo menos três maneiras incompatíveis – como
transcendental, naturalista e protodesconstrucionista. Enquanto as duas
primeiras compartilham um compromisso com a possibilidade de uma
verdade objetiva, a terceira leitura nega isso, ao enfatizar as afirmações de
Nietzsche sobre o caráter necessariamente falsificador do conhecimento
humano (a chamada teoria do erro). Este artigo examina as maneiras pelas
quais sua obra pode ser reconstruída como a procura de formas de superar
a oposição estrita entre naturalismo e filosofia transcendental, mesmo
levando inteiramente em consideração a teoria do erro (interpretada
de forma não-literal, como uma advertência hiperbólica contra formas
acríticas de realismo). Fazendo isso, o artigo esclarece a natureza dos
compromissos ontológicos de Nietzsche, tanto na obra jovem quanto na
madura, e mostra que sua relação com o idealismo transcendental é mais
sutil do que admitem os intérpretes naturalistas, enquanto, por outro lado,
explica a impossibilidade de conceber as condições de possibilidade de
conhecimento como genuinamente a priori.
Palavras-chave: filosofia transcendental – naturalismo – ontologia –
epistemologia
* Texto publicado em Inquiry, Routledge, n.52,v.2,2009, p.179-214. Os direitos foram
cedidos aos Cadernos Nietzsche pela Taylor & Francis, a quem agradecemos a colaboração (NE). Tradução: André Luís Mota Itaparica.
** Professora da Universidade de Essex, Essex, Reino Unido. E-mail: beatrice@essex.
ac.uk.
cadernos Nietzche 29, 2011
163
Han-Pile, B.
I.
No que segue, enfocarei as concepções de Nietzsche sobre o
conhecimento, deixando de lado questões como, por exemplo, se
seu entendimento da moralidade deve ser considerado naturalista
ou não. Mesmo desta perspectiva restrita, o que é interessante em
Nietzsche é que ele é um caso particularmente complicado: ele foi
caracterizado como um filósofo da tradição transcendental (Green
11) e mais frequentemente como um naturalista e empirista (Leiter
16; Clark 4,5; Richardson 31; e de uma forma mais nuançada, Cox
6)1. Prima facie (e talvez de forma preocupante), há justificativas
para ambas as concepções, apesar de sua aparente incompatibilidade. Assim, Nietzsche afirmou que a experiência humana é necessariamente estruturada segundo “formas a priori” (NIETZSCHE
28, p. 87)2. Ele defendeu uma forma de idealismo transcendental,
fazendo igualmente a assunção ontológica de que há uma maneira
pela qual as coisas são em si mesmas e a afirmação epistemológica
de que tais coisas são um “misterioso X” (idem, p. 83), por definição fora do alcance do conhecimento humano. Ainda em um feitio
mais naturalista, ele sugeriu que a filosofia deveria ter as ciências
como modelo de investigação e método, levando em consideração
seus resultados. Apesar de suas discordâncias com Darwin sobre
a questão da preservação da vida, ele defendeu uma concepção da
natureza humana como determinada por princípios evolucionistas.
Mais ainda, ele rejeitou tanto a ideia de um Hinterwelt quanto a
1 Ao contrário de Clark e Leiter, Cox leva em conta os recorrentes ataques de Nietzsche
à ciência: assim, Nietzsche “revela uma teologia residual na afirmação do projeto
científico moderno de descrever o mundo como ele é realmente” (COX 6, p.6). Cox
argumenta que a ciência deve “superar a si mesma” em um discurso estético, e assim
essa “autossuperação” é “mais rigorosamente naturalista” (provavelmente no sentido
de que ela é mais inteiramente não-metafísica) do que o projeto científico – uma
posição que presumivelmente nem Clark nem Leiter endossariam facilmente.
2 Neste artigo, as referências às obras de Nietzsche seguirão em parte as edições utilizadas pela autora e, por esta razão, terão um trato por vezes convencional (NE).
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cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
distinção entre fenômeno/coisa em si, de uma forma que parece impedir o dualismo inerente ao idealismo transcendental. E como se
endossar elementos centrais do naturalismo e da filosofia transcendental não fosse complicado o suficiente, Nietzsche também parece
manter uma concepção que nega um aspecto central compartilhado
por essas duas correntes: ele aparentemente rejeita a possibilidade
de conhecimento objetivo (sua chamada teoria do erro). Isso levou alguns (em particular DERRIDA 9; DE MAN 8; e KOFMAN
15) a pensar que ele é um protodesconstrucionista, que tem como
propósito destruir o ideal de conhecimento seguro que subjaz aos
projetos naturalista e transcendental.
A principal maneira de pelo menos reduzir a confusão é ver
as coisas cronologicamente. A esse respeito, a interpretação dominante (capitaneada por intérpretes pró-naturalistas como M. Clark
e B. Leiter) é que o primeiro Nietzsche, sob influência de Kant e
Schopenhauer, era um idealista transcendental, que ele logo renunciou aos equívocos da juventude e tornou-se um naturalista. Para
colocar de forma simples, o Nietzsche de “Verdade e mentira” acreditava tanto na existência de coisas em si mesmas além do âmbito
empírico quanto na sua incognoscibilidade. Do mesmo modo, seu
compromisso anterior com o idealismo transcendental é visto como
o principal fundamento de sua teoria do erro: já que a natureza empírica de todo conhecimento humano impede-o de capturar a essência das próprias coisas, ele é por definição errôneo. Contudo, a
partir de Humano, demasiado humano, Nietzsche teria começado
a ter dúvidas sobre a existência das coisas em si, tendo por fim
rejeitado essa noção e a teoria do erro que a sustentava. Isso teria
pavimentado o caminho para uma epistemologia naturalística caracterizada por seu alegado entusiasmo com as ciências3, sua ênfase
3 Há muitas outras passagens, tanto na obra publicada quanto nos póstumos, que sugerem (contra Clark e Leiter) que a ciência não desfruta, para Nietzsche, de nenhum
privilégio epistêmico particular: Assim, “a ciência, no melhor dos casos, procura na
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Han-Pile, B.
na continuidade entre filosofia e ciência e um compromisso “não-metafísico” com aquilo que Clark chama “realismo do senso
comum”, isto é, a crença na existência de objetos empíricos independentes da mente (CLARK 4, p. 61. Cf. o Capítulo 2 em geral).
Para mim, o problema com essa reconstrução harmônica é
que ela simplifica tanto a posição inicial de Nietzsche quanto o
seu desenvolvimento filosófico4. A principal razão disso é que ela
implicitamente repousa sobre duas assunções não asseguradas:
primeiro, que o idealismo transcendental pode, de forma incontroversa, ser identificado com uma teoria dos dois mundos e com o
compromisso ontológico forte para com a existência de coisas em si
que ela acarreta; em segundo lugar, que ser um idealista transcendental nesse sentido forte é a única maneira de emitir afirmações
transcendentais5. Contudo, como é bem conhecido, interpretações
maioria das vezes nos manter em um mundo simplificado, completamente artificial
construído apropriadamente e apropriadamente falsificado (...) ela ama o erro porque,
sendo viva, ama a vida (JGB/BM 25, KSA 5.42-3). Ou ainda: “os físicos acreditam
em um ‘mundo verdadeiro’ em seu próprio estilo: uma sistematização firme de átomos
em movimento necessário (...). Mas eles estão errados. O átomo que eles postulam
é inferido de acordo com a lógica do perspectivismo da consciência” (Nachlass/FP
188, 14[186], KSA 13.373-4). Talvez a fórmula mais lapidar é a seguinte: “em última
instância, o homem nada descobre nas coisas que não tenha colocado nelas; essa
descoberta é chamada ciência” (Nachlass/FP 1855/1886, 2[174], KSA 12.153-4).
4 Outra dificuldade, notada por muitos comentadores (em particular Poellner, Cox e
Green) é que essa reconstrução não é sustentada por provas textuais incontroversas,
e deixa de lado todo o Nachlass. Dito isso, devo dizer que, em outros aspectos, nutro simpatia pela posição de Clark e Leiter, que sempre considerei esclarecedora.
Em particular, concordo inteiramente com as críticas de Leiter às interpretações de
Nietzsche que o veem como precursor do pós-modernismo, ao procurar negar a possibilidade de qualquer verdade e objetividade (Cf. LEITER 17).
5 Há outros problemas relacionados com a linha naturalista de argumentação. De particular relevância é o fato de que ela repousa em uma definição equivocada da filosofia
transcendental, vista como “a busca por formas a priori de conhecimento que possam
permitir o conhecimento da coisa em si” (CLARK 4, p. 68) – seguindo a mesma
linha, outra passagem define “conhecimento metafísico ou a priori como o acesso
não-empírico à realidade e uma base para rejeitar o testemunho dos sentidos” (idem,
p.71). Contudo, a ambição de Kant não era rejeitar o testemunho dos sentidos, mas
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
deflacionárias como as de Bird (BIRD 3) ou Allison (ALLINSON 1)
rejeitam uma teoria dos dois mundos em favor de uma leitura de
dois aspectos que minimiza radicalmente os compromissos ontológicos do idealismo transcendental, a fim de enfatizar seu âmbito
epistemológico, isto é, sua tentativa de assegurar a possibilidade
de conhecimento empírico objetivo, ao identificar suas condições necessárias a priori. Interpretações tais como as de Strawson
(STRAWSON 35) vão adiante nessa direção, ao argumentar que a
melhor forma de aprimorar esse núcleo epistemológico é extirpar
inteiramente compromissos ontológicos. Neste artigo, sugiro que,
mostrar que ele não pode, por si, ser contado para a possibilidade de conhecimento.
Além disso, definir conhecimento transcendental dessa forma é quase retroceder a
um entendimento pré-kantiano do a priori: para Descartes e Leibniz, de fato, possuir
um conhecimento a priori é equivalente a possuir ideias inatas que nos fornecem
informação adquirida não-empiricamente sobre questões metafísicas como a natureza
da alma ou a existência de Deus. Mas, como bem se sabe, Kant estava tão disposto
quanto Hume (embora por razões diferentes) a rejeitar a ideia de que poderíamos
possuir conhecimento a priori de essências metafísicas. De forma geral, muitos dos
intérpretes de Nietzsche de inclinação naturalista frequentemente não definem nem
o que eles entendem por “filosofia transcendental” nem de que forma eles pensam
que ela se opõe ao naturalismo. Como resultado, os critérios que eles utilizam para
argumentar a favor do “naturalismo” de Nietzsche são frequentemente indecisivos,
porque eles poderiam igualmente se aplicar a um filósofo transcendental e/ou repousam em uma concepção pouco sutil da filosofia transcendental. As razões para
isso, penso eu, são parcialmente históricas e parcialmente dependentes do contexto
dos estudos sobre Nietzsche. Assim, o surgimento do naturalismo (e de movimentos protonaturalistas como o materialismo no século XVIII e o positivismo no século
XIX) direcionava-se mais contra a metafísica do que contra a filosofia transcendental.
Há traços disso, por exemplo, na frequentemente citada definição de naturalismo de
Quine como rejeição da “filosofia primeira”. Consequentemente, muitos dos argumentos apresentados em favor das leituras naturalísticas de Nietzsche se baseiam em
sua rejeição da metafísica. Do mesmo modo, seu pendor antimetafísico é acentuado
pela necessidade de se opor a interpretações – uma das primeiras e mais famosas é a
de Heidegger – que enfatizam o ressurgimento de aspectos metafísicos no pensamento de Nietzsche. Contudo, como foi indicado acima, Kant também nutria desconfiança
para com aquilo que ele chamou de metafísica “dogmática”. Por não levar isso em
conta frequentemente, os leitores de Nietzsche inclinados ao naturalismo, enquanto
têm pouco problema em mostrar que ele não quer ser um metafísico, malogram em
argumentar convincentemente que ele não é um filósofo transcendental.
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Han-Pile, B.
semelhantemente, Nietzsche tem uma concepção muito mais nuançada do idealismo transcendental do que lhe é atribuído por esses
leitores pró-naturalistas, e que ele também estava preocupado em
reservar-se de suas dimensões ontológicas e epistemológicas. Por
meio de um reexame apurado de um texto central para a própria
interpretação de Clark, qual seja, “Verdade e mentira”, defenderei
que suas concepções iniciais sobre a existência de coisas em si são
acompanhadas por uma análise separada da percepção que conclui que nossa experiência possui o que se assemelha a condições6
transcendentais, por meio das quais ela se estrutura necessariamente através de “formas a priori” (NIETZSCHE 28, p. 87), entre
as quais tempo, espaço, sucessão e coexistência. Essas condições
são identificadas independentemente de qualquer compromisso ontológico, por meio de um estudo protogenealógico da evolução da
percepção humana. Dado esse ponto de vista duplo, não é mais possível concluir, como Leiter e Clark o fazem, que a revisão posterior
de Nietzsche de suas antigas concepções sobre as coisas em si seja
o mesmo que rejeitar o idealismo transcendental simpliciter, nem
que isso resulte na eliminação de todos possíveis aspectos transcendentais em seu pensamento7. De fato, suas reflexões sobre seus
compromissos ontológicos prévios são mais sutis do que se presume:
6 Com isso quero dizer, de forma mais geral possível, condições que a) são condições
de possibilidade não-empíricas, não-causais; b) são modalmente necessárias e pressupõem uma concepção normativa de conhecimento, prescrevendo o que deve ser o
caso (antes que simplesmente descrever o que é o caso) para que possamos conhecer
algo; c) consequentemente, envolvem uma investida em direção à universalidade e
são governadas por uma ambição claramente fundacionista (fundamentar, e assim
garantir, contra o ceticismo, a possibilidade de conhecimento objetivo). Discutirei a
noção mais extensamente no artigo, em particular quando examinar a naturalização
de Nietzsche do transcendental.
7 Clark 4, p. 61. “De fato, não há nada de transcendental nessa posição que atribuo
a Nietzsche. Nada que atribuo a ele está em desacordo com a concepção de Rorty
de que ‘a filosofia não terá o que oferecer senão o senso comum (suplementado pela
biologia, história, etc.) sobre o conhecimento e a verdade’”.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
como veremos, ele garante a passagem de uma posição forte para
uma ultradeflacionária, que estabelece a necessidade de permanecer agnóstico em relação a compromissos ontológicos (antes de
rejeitá-los, o que per se é uma outra forma de compromisso forte).
Do mesmo modo, o itinerário filosófico de Nietzsche pode ser interpretado frutiferamente como um aprofundamento de seus antigos
pensamentos sobre a natureza das condições de possibilidade da
experiência, e assim como um desenvolvimento da herança epistemológica do idealismo transcendental.
Similarmente, a chamada teoria do erro não é explicada tão
facilmente pelo abandono de Nietzsche de suas crenças antigas na
existência das coisas em si. Como foi visto por Clark, ele remove
um de seus fundamentos, ou seja, a demanda impossível de uma
adequação metafísica entre o conhecimento humano e a essência
das coisas consideradas em si mesmas. Contudo, “Verdade e mentira” oferece um segundo argumento independente para a teoria do
erro: sem considerar qualquer compromisso ontológico, ele infere,
por contraste entre nossa experiência perceptiva corrente e uma
forma diferente, mais primordial, de experiência (relegada a um
passado mítico), que a estruturação da primeira, por meio de elementos a priori, é ela mesma uma falsificação. Como veremos, essa
afirmação anterior será desenvolvida pela reflexão posterior de
Nietzsche sobre as condições perspectivas da vida em sua relação
com o fluxo primordial de nossas impressões e o que ele chama “o
mundo do vir-a-ser”. A não ser que uma interpretação alternativa
seja proposta, que não repouse simplesmente sobre a rejeição de
Nietzsche de seus antigos compromissos ontológicos fortes, a teoria do erro permanecerá, do mesmo modo, um sério obstáculo para
todos os intérpretes (inclinados ao naturalismo e ao transcendentalismo) que procurem encontrar no pensamento de Nietzsche um
fundamento para a possibilidade de conhecimento objetivo.
Uma vez inteiramente reconhecida a complexidade da relação
entre compromissos ontológicos, aspectos transcendentais e elementos naturalistas na obra de Nietzsche, novas questões surgem,
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Han-Pile, B.
as quais enfocarei na segunda parte deste artigo: é claro que a ideia
central da análise de Nietzsche em “Verdade e mentira” é tanto
asserir a existência de condições “transcendentais” quanto mostrar
que elas têm uma gênese empírica, a qual, evidentemente, coloca
seu estatuto transcendental em questão (por isso meu uso das aspas) e atesta a presença de fortes elementos naturalistas em seu
pensamento (em particular por causa de sua insistência humiana
no papel desempenhado pela crença, pelo hábito e pelas práticas
sociais na gênese de nossas formas a priori). Como devemos então
reconstruir a chamada “naturalização” de Nietzsche do transcendental8 e quais são suas consequências para a ideia de condições
transcendentais (em particular no que diz respeito a sua modalidade e objetivo)? Em segundo lugar, como se darão as dimensões
ontológicas e epistemológicas do idealismo transcendental na obra
madura de Nietzsche? Finalmente, e mais importante, é possível
interpretar sua teoria do erro de uma maneira que não ameace radicalmente a possibilidade de ele ter concepções coerentes sobre o
conhecimento (seja ele transcendental ou naturalista)?
Permitam-se mais uma consideração antes que eu me volte ao
exame acurado dessas questões: deve estar claro, a partir do já dito,
que o objetivo de meu artigo não é convencer que Nietzsche é um
naturalista ou um filósofo transcendental. Não penso que se possa
decidir sobre isso dessa forma, e muito menos identificar, como o
fazem Clark e Leiter, uma evolução de uma primeira posição, de
inclinação transcendental, para uma mais madura, naturalista. Por
razões que aparecerão progressivamente, sequer penso que se deva
decidir sobre isso dessa forma. A ideia aqui é antes examinar a interação de elementos naturalistas e transcendentais no pensamento
8 A expressão foi cunhada por Stack. Contudo, ele estava mais interessado em mostrar
a extensão da influência da Lange no pensamento de Nietzsche; meu interesse não é
tanto com a história das ideias, mas com as implicações teóricas de tal guinada para
a filosofia transcendental e para o naturalismo.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
de Nietzsche, com uma visada que identifica pontos de tensão e as
formas como eles se revelam em sua obra. Como veremos, essas tensões incidem na maioria das vezes: a) na questão se a experiência é
ativamente construída pela mente ou passivamente recebida pelos
sentidos; b) no estatuto das formas e conceitos constitutivos (a priori
ou não); c) no problema se tal concepção de experiência requer a
existência de uma realidade independente da mente (e se assim o
for, como a experiência se relaciona com essa última) e d) dependendo da resposta a essas três questões, o propósito e validade do
conhecimento humano. No curso do exame dessas tensões, eu sugerirei que talvez a hipótese hermenêutica mais promissora é ver a luta
de Nietzsche com elas como uma tentativa de superar a oposição
entre naturalismo e filosofia transcendental. É essa terceira via, com
seus custos e benefícios, que pretendo explorar neste artigo.
II.
O que faz de “Verdade e mentira” particularmente interessante
é o fato de que ele pode ser visto como a matriz na qual a maioria dos componentes das concepções de Nietzsche sobre o conhecimento já está presente. O texto é reconhecidamente complexo,
tendo sido objeto de inúmeras interpretações9. Embora seja obviamente um ataque contra a possibilidade de uma verdade universal
e de um conhecimento objetivo, o que é muito menos claro é a
estratégia de Nietzsche. A principal razão para essa complicação
é que “Verdade e mentira” imbrica constantemente duas linhas
9 Em particular De Man, Kofman e Clark. Enquanto De Man e Kofman leem “Verdade
e mentira” como uma análise desconstrucionista da linguagem (como metafórica),
Clark sustenta que principal objetivo do texto é fornecer uma crítica schopenhaueriana da representação como fundamentalmente inadequada para a coisa em si. Embora
eu concorde com Clark que o texto deveria ser lido como engajado ao idealismo transcendental, não penso que essa seja sua única dimensão (Cf. corpo do texto).
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Han-Pile, B.
principais de argumentação, que têm sua fonte em uma reflexão
sobre o idealismo transcendental. De um lado, e mais obviamente,
Nietzsche infere, da ausência de correspondência metafísica entre o conhecimento empírico e as coisas em si mesmas, que nosso
conhecimento é “antropomórfico” e portanto inválido de um ponto
de vista transcendental. Como veremos, per se essa não é uma posição particularmente boa. Contudo, há, por outro lado, um argumento mais sutil: Nietzsche não trata aqui somente daquilo que
ele vê como uma falha do conhecimento humano em capturar adequadamente o em si, mas também da descrição das condições de
possibilidade da experiência, de uma maneira que ele permanece
agnóstico em relação a suas possíveis implicações ontológicas. Fazendo isso, ele primeiro apresenta uma concepção antirracionalista
da percepção como “metafórica”: tal concepção pode ser interpretada tanto como antikantiana (ela rejeita a afirmação de que a
experiência seja constituída por meio de juízos objetivos) quanto
anti-empirista (ela nega que haja qualquer dado sensível bruto).
Isso conduz, contudo, à ideia de que essa concepção descreveria a
forma pela qual as coisas seriam experimentadas em um passado
mítico e esquecido, não refletindo mais a forma com que nós percebemos. Para explicar as mudanças nas condições perceptuais,
Nietzsche oferece uma descrição claramente humiana das maneiras pelas quais a conceptualização fez-se necessária para o desenvolvimento de novas práticas sociais (a necessidade de veracidade)
e hábitos. Esse procedimento protogenealógico, contudo, culmina,
inesperadamente, em uma visão quase kantiana da experiência,
como determinada agora por “formas a priori” (NIETZSCHE 28,
p. 87). Antes de analisar as mudanças substanciais que o segundo
procedimento traz para a ideia de condições transcendentais, tentarei substanciar e clarificar os sucessivos passos desse argumento,
bastante vertiginoso, com uma concepção que trará seus elementos
tanto transcendentais quanto naturalistas, em suas mútuas tensões.
Como foi visto por Clark, o ataque de “Verdade e mentira” à
objetividade não repousa em uma análise da linguagem, mas da
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
percepção (assim, as metáforas que Nietzsche descreve são “perceptuais” (NIETZSCHE 28, p. 84) e, como veremos, pré-verbais e
pré-linguísticas). O processo perceptual é detalhado da seguinte
maneira: “um estímulo nervoso é transposto em uma imagem: primeira metáfora. A imagem, em contrapartida, é copiada em som:
segunda metáfora” (ibidem)10. Per se, não há nada aqui que sugere
o endossamento do idealismo transcendental. Prima facie, a descrição é feita no nível empírico e diz respeito à gênese de representações. Como isso está muito condensado, vale a pena observar em
maior detalhe. Segundo Aristóteles (Poética 1457b), uma metáfora
é “a aplicação de um termo estranho, transferido do gênero e aplicado à espécie, ou da espécie e aplicado ao gênero, ou de uma espécie a outra, ou a qualquer coisa por analogia”11. Nenhuma regra
ou condição é especificada para essa transferência (meta-phorein).
No caso da transferência de espécie a gênero (ou vice-versa), há
claramente uma relação de familiaridade entre os dois termos considerados, mas esse não é o caso quando a metáfora liga duas espécies “ou qualquer coisa”. Em virtude de sua natureza analógica, a
metáfora indica uma similaridade entre dois termos considerados
(embora falando estritamente uma analogia envolva quatro elementos, dizendo respeito à relação entre dois pares, e não aos próprios
termos). Mas tal similaridade não se baseia em uma consideração
objetiva da natureza dos objetos ligados: a conexão é subjetiva, e o
juízo resultante, tomado literalmente, poderia ser falso. O propósito
de tal conexão não é formar qualquer conhecimento dos objetos,
mas estimular a imaginação, de sorte que ela elimine o fosso entre
dois termos que, per se, têm pouco em comum, e engajar-se num
10 O processo é detalhado em termos quase similares em uma passagem posterior: “primeiro imagens – para explicar como imagens surgem no espírito. Então palavras
aplicadas às imagens. Finalmente conceitos, possíveis somente onde há palavras – a
coleção de muitas imagens em algo não visível mas audível (palavras)” (XI, 25[168]).
11 Tradução de Fyfe, H. (Aristotle. Poetics. Cambridge: Harvard University Press,
1973).
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jogo livre de significações. Assim, o verso de Paul Eluard, “a Terra
é azul como uma laranja” não descortina nenhum fato objetivo sobre a Terra e laranjas. Contudo, a metáfora traz à mente aspectos
por meio dos quais elas poderiam ser pensadas como similares (tal
como a redondeza, o caráter natural, a fertilidade, a superfície irregular, etc.); ela faz isso promovendo uma visão imaginativa, quase
imediata, antes de fazer-nos refletir sobre a natureza dos objetos
(Embora seja possível, como já comecei a fazer, articular posteriormente algumas das conexões estabelecidas).
Como isso se aplica à percepção? A ideia de Nietzsche parece
ser que, assim como as metáforas envolvem a transferência de significado de um termo para um outro que não reflete suas características objetivas, como os procedimentos da imaginação, da mesma
forma, no caso da percepção, não há conexão objetiva, necessária ou
racional entre os estímulos nervosos, imagens e sons. Eles são todos
diferentes em natureza, e a passagem de um para o outro é possível
apenas pela capacidade subjetiva de nossa imaginação, vista como
um poder artístico primordial sobre o qual não há, originalmente,
restrições conceptuais12. Ela “não tem necessidade [de conceitos],
esses paliativos da indigência” (NIETZSCHE 28, p. 90). Assim, somos “indivíduos artisticamente criativos” (idem, p. 86) e sons são “a
solidificação de uma massa de imagens que fluem originalmente da
faculdade primordial da imaginação como um líquido flamejante”
(idem, p. 86). Seguindo as mesmas linhas, Nietzsche fala do “impulso para a formação de metáforas” como “o impulso humano fundamental” (idem, p. 88): somos animados por “um desejo ardente
de recriação do mundo (...) de um tal modo que ele será (...) tão
colorido, sedutor e eternamente novo como um mundo de sonhos”
(idem, p. 89). Como isso depende somente das idiossincrasias do
12 Posteriormente no texto, Nietzsche oferecerá uma protogenealogia das razões empíricas por que esse poder criativo primordial sofreu restrições, em particular pela
necessidade de encontrar semelhanças.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
indivíduo perceptual, cada “metáfora individual” é singular e “sem
igual”. Isso também se aplica às “palavras” usadas para expressar
as imagens: sua assimilação a meros sons e o fato de que eles são
distintos de conceitos (e não dependem dos últimos para sua formação) sugerem que essa protolinguagem é extremamente rudimentar. Ela claramente não possui gramática, nem conectores lógicos,
nem verbos, etc. Cada “palavra” provavelmente funciona, de forma
onomatopeica, como um nome próprio, associado por transferência metafórica ulterior para uma imagem individual, depois que a
última foi formada independentemente pela imaginação. Por não
haver restrições conceptuais na capacidade da imaginação, nem as
imagens nem as palavras aglutinam-se em um mundo ordenado de
representações, sendo “irregulares, isentas de resultado e coerência” (ibidem). Do mesmo modo, como não há estruturas comuns para
sua formação, e como todas as metáforas perceptivas são privadas,
não há um mundo intersubjetivamente compartilhado.
Embora problemática13, essa concepção é interessante na medida em que ela procura alvejar tanto aspectos transcendentais
quanto empiristas da experiência. É um claro ataque ao entendimento kantiano da experiência como dependente de juízos que
unem intuições em representações objetivas. Em um caso, a formação das imagens, tal como descrita aqui, não envolve nenhum
conceito (como veremos, para Nietzsche o último surge da igualação de diferenças perceptuais preexistentes), o que exclui a possibilidade do juízo como a unificação de um múltiplo por meio de
uma regra. Do mesmo modo, a ideia de que representações são metáforas perceptuais que, de qualquer modo, não têm necessidade
alguma de tal possibilidade: o processo pode ser pensado como
13 Entre outras coisas, poder-se-ia argumentar que é difícil entender como “imagens”
poderiam ser formadas sem nenhum insumo conceptual. Além disso, seria difícil distinguir entre duas imagens diferentes se não se dispusesse de conceitos tais como
coexistência, sucessão, etc. Retornarei posteriormente a essas questões.
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puramente associativo. Em um momento, Nietzsche afirma explicitamente que “a metonímia repousa na essência do juízo sintético” (NIETZSCHE 25, p. 152). Na mesma linha, sua insistência
no papel exclusivo desempenhado pela imaginação na formação
de representações pode ser entendido como um ataque indireto à
noção de esquematismo. Na primeira Crítica, o papel da imaginação é restrito à eliminação do fosso existente entre sensibilidade e
entendimento, para assegurar que nossa estrutura categorial possa
aplicar-se a intuições14. Assim, a finalidade dos esquemas da imaginação (como intuições puras determinadas) é possibilitar a unificação das impressões sensíveis sob a regra dos conceitos puros do
entendimento. Aqui, Nietzsche elimina tais limitações, ao retirar a
necessidade de qualquer tipo de conceptualização15. Contudo, há
também fortes elementos anti-empiristas nessas considerações. Em
um caso, a maioria dos empiristas, embora negue que a experiência
seja unida conceptualmente, ainda sustenta que ela possui regularidade. Assim, para Hume, nossas associações mentais não são
livres: elas são reguladas, não por conceitos ou formas a priori, mas
por princípios psicológicos tais como semelhança, contiguidade ou
causalidade. Contudo, isso é rejeitado pela insistência de Nietzsche
na “arbitrariedade” (Nietzsche 28, p. 82) da imaginação e na irregularidade e ausência de coerência de nossas metáforas perceptuais. Em segundo lugar, tanto a própria noção de metáfora quanto a
ideia de que a atividade da imaginação seja “primordial” sugerem
que não existe nada que possa ser considerado como o dado sensível bruto, passivamente impresso na mente. Ao contrário, para que
14 Cf. A136/B175: o esquematismo fornece as “condições sensíveis [os esquemas] unicamente sob as quais os conceitos do entendimento podem ser empregados”.
15 Pode-se ficar tentado a dizer que Nietzsche está mudando para uma perspectiva estética, de acordo com a qual a imaginação esquematiza sem conceitos. Contudo, mesmo
a Terceira Crítica requer a existência de um sensus communis, e a postulação de que
juízos reflexionantes podem ser universais, duas exigências que claramente não são
endossadas aqui pela posição de Nietzsche a respeito das metáforas perceptuais.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
algo seja considerado como um conteúdo perceptual é necessário
que haja a atividade interpretativa da imaginação (o que explica
por que a relação entre estímulo nervoso e imagem não seja meramente causal). A própria disjunção das esferas do estímulo nervoso
e da imagem sugere que um estímulo nervoso puro não poderia nem
registrar-se na mente nem tornar-se significativo para nós, a não ser
que fosse interpretado pela imaginação. Como Nietzsche assevera,
um estímulo tem de “ser visto como vermelho, um outro como azul”
ou “ouvido como um som” (NIETZSCHE 28, p. 87, grifos meus).
Per se, ele não é nem azul nem vermelho; ele não é nada para nós.
O poder artístico da imaginação repousa assim em sua habilidade
de transpor estímulos nervosos em imagens que são significativas
para nós16.
Assim, a primeira maneira de compreender os breves comentários de Nietzsche sobre a natureza metafórica da percepção é
concebê-los como uma descrição independente, que não repousa
em assunções ontológicas: ela está baseada inteiramente na análise interna da gênese de representações, que nega a possibilidade
de juízos sintéticos a priori sem, contudo, endossar uma concepção
empirista da experiência. Contudo, imediatamente (e de forma bastante desnorteadora) Nietzsche muda a discussão para uma outra,
mais carregada metafisicamente: sua própria análise da percepção
é tomada agora como uma metáfora que ilustra a relação inescrutável do conhecimento humano com aquilo que é visto como a essência das coisas. O foco altera-se imperceptivelmente da ideia
16 Como veremos, esse espírito anti-empirista permanece até o fim da obra de Nietzsche:
assim, “tudo o que se torna consciente é totalmente arranjado, simplificado, esquematizado, interpretado” (Nachlass/FP 1887/1888, 11[113], KSA 13.53-4), ou ainda: “tudo o que entra na consciência como ‘unidade’ já é tremendamente complexo”
(Nachlass/FP 1886/1887, 5[56], KSA 12.205). Contudo, deve-se notar que isso não
condiz bem com o anticonceptualismo de Nietzsche no seu primeiro tratamento das
metáforas perceptuais. No decorrer de “Verdade e mentira” e em sua obra madura,
Nietzsche mantém que o juízo desempenha um papel inferior na experiência.
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Han-Pile, B.
de que a gênese da experiência perceptual não assegura a possibilidade de conhecimento empírico objetivo para a afirmação de
que, de qualquer modo, é impossível para nossas representações
corresponder à natureza essencial das coisas. O argumento não é o
de que objetividade é a priori impossível: é o de que, mesmo que
ela fosse possível (e assim tivéssemos um conhecimento verdadeiro do mundo empírico), nossas representações ainda falhariam
em descrever o mundo tal como ele é. Estaríamos em uma situação
análoga à de um surdo contemplando as figuras de Chladni: ver
as ondas produzidas pelos sons na areia não nos aproximaria do
entendimento do que seja o som e nos deixaria perplexos17. Assim, “um pintor sem mãos que quisesse expressar em música a figura presente em sua mente, por meio da substituição das esferas,
ainda revelaria mais sobre a essência das coisas do que o mundo
empírico” (idem, p. 87). Nietzsche parece tender em direção a
uma concepção fenomenalística do idealismo transcendental18, e
afirmar que há uma desconexão radical entre o mundo das representações empíricas e mundo numênico das essências. Ele sugere
duas razões para isso: primeiramente, ele rejeita a ideia (schopenhaueriana) de que poderia haver uma relação causal entre a coisa
em si e os estímulos que recebemos: “a inferência ulterior de um
estímulo nervoso de uma causa fora de nós já é resultado de uma
aplicação falsa e injustificável do princípio de razão” (idem, p. 82).
Entre fenômenos e coisas em si, como entre estímulo e imagem, há
apenas uma relação metafórica, estabelecida subjetivamente: “da
mesma forma como um som aparece como uma figura na areia, o
misterioso X da coisa em si aparece primeiro como um estímulo
17 “Talvez tal pessoa [totalmente surda] olhasse com espanto para as figuras sonoras de
Chladni: talvez ela descobrisse suas causas na vibração das cordas e então jurasse
que deve saber o que os homens querem dizer por ‘som’” (NIETZSCHE 28, p. 82).
18 Assim, “desde início vemos as imagens visuais apenas no interior de nós mesmos,
ouvimos o som apenas no interior de nós mesmos. É um passo largo, a partir disso,
postular um mundo externo” (Nietzsche 25, p. 144).
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
nervoso, depois como imagem e enfim como som” (idem, p. 83).
Em segundo lugar, mesmo que houvesse uma relação entre coisa
em si e fenômeno, ainda assim isso não nos daria um entendimento
da coisa em si: se pensássemos assim, seríamos como um surdo
que “tendo descoberto a causa [das ondas na areia] na vibração das
cordas” poderia “jurar que devia saber o que os homens querem
dizer por ‘som’” (ibidem). Nietzsche conclui, portanto, que “a natureza não conhece nenhuma forma e nenhum conceito, mas somente
um X que permanece inacessível e indefinível para nós” (ibidem).
A segunda linha de argumentação, bem mais conhecida, que é
baseada na impossibilidade do conhecimento humano de aplicar-se ao mundo numênico, é ao mesmo tempo próxima e substancialmente diferente da própria posição de Kant. É claro que Nietzsche
está compromissado com a tese ontológica de que há uma forma
pela qual as coisas são em si mesmas, independentemente de nós,
e com a afirmação epistemológica de que tais coisas, consideradas
de uma perspectiva transcendental (isto é, aquela que identifica
as condições epistêmicas) são por definição incognoscíveis para
nós. Contudo, a última não era um problema para a epistemologia
de Kant: o fato de não conhecermos nada da essência das coisas
consideradas independentemente das condições epistêmicas é uma
consequência do idealismo transcendental, não um argumento contra a possibilidade de conhecimento objetivo do mundo empírico.
Contudo, Nietzsche introduz mais uma exigência, aquela da correspondência metafísica: ele pensa que, para contar como conhecimento, nossas sentenças devem refletir adequadamente as coisas
como são independentemente de nós. Como isso é, por definição,
impossível, Nietzsche conclui que o conhecimento humano é necessariamente falso (a chamada teoria do erro). Como Kant, ele é o
que chamarei um realista ontológico metafísico, na medida em que
ele pensa que faz sentido falar de coisas que possuem uma essência
independentemente da forma como elas aparecem para nós. Mas,
diferentemente de Kant, ele é um realista metafísico epistemológico desapontado: ele pensa que o conhecimento humano deveria
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ser capaz de captar a essência das coisas em si, e defende, da incapacidade de fazer isso, a radical impossibilidade de qualquer
tipo de conhecimento, seja empírico ou numênico. A forma como
ele argumenta contra Kant na seguinte citação é particularmente
indicativa dos compromissos com uma concepção (não-kantiana)
da verdade como adequação metafísica: “Há aqui, para ser preciso, um círculo vicioso: se as ciências estão corretas, então não
estamos sustentados pelos fundamentos kantianos. Se Kant estiver
certo, então as ciências estão erradas” (NIETZSCHE 25, p. 84).
O argumento pressupõe a assunção de que, para que as ciências
estejam certas, elas têm de captar a essência das coisas consideradas em si mesmas. Assim, se elas estiverem certas, sua certeza se
baseia diretamente numa correspondência metafísica. Pode-se ser
um realista metafísico feliz sem qualquer necessidade do idealismo
transcendental ou “fundamentos kantianos”. Se Kant estiver certo,
isto é, se as coisas em si estiverem fora do alcance do conhecimento
humano, então as ciências estão “erradas”, porque elas falham em
capturar a essência da realidade. É claro que Kant diria que só
se ele estiver certo está assegurado que as ciências também estão
certas. O fato de Nietzsche não ver isso é indicativo do seu compromisso implícito com a correspondência metafísica, que é a primeira
base de sua teoria do erro.
Como se pode vislumbrar, essa segunda linha de argumentação
não parece particularmente forte. Uma razão para isso é que ela
repousa sobre uma leitura equivocada das intenções de Kant na
Crítica da razão pura, e consequentemente no acréscimo de uma
premissa (a exigência de correspondência metafísica) que uma
construção correta do projeto crítico consideraria indesejável. Do
mesmo modo, ela pressupõe uma generalização desnecessária da
impossibilidade do conhecimento empírico de representar o em
si em uma impossibilidade do conhecimento empírico tout court.
Mas não se segue do fato de que o conhecimento humano não consiga satisfazer a exigência de correspondência metafísica que ele
não consiga refletir adequadamente estados de coisas empíricos.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
Além disso, mesmo que se garanta a aplicabilidade da exigência
metafísica a todas as formas de conhecimento, ainda não se seguiria obviamente, da afirmação do idealista transcendental de que
coisas ou estados de coisas são incognoscíveis de uma perspectiva
transcendental, que o conhecimento empírico não poderia corresponder às coisas como elas são em si mesmas, embora seja claro
que não haveria como poder saber se tal correspondência existe, e
muito menos fundamentá-la. Em outras palavras, poderia acontecer que nosso conhecimento fosse metafisicamente verdadeiro (no
sentido da adequação), embora não pudéssemos justificar o porquê
de ele ser verdadeiro. Como é bem conhecido, essa é uma questão
bastante intricada nos estudos kantianos (a chamada alternativa
negligenciada de Trendelenburg). Nietzsche estava ciente dessa
possibilidade e de fato critica Kant duas vezes por tê-la excluído:
assim, “contra Kant, pode ser além disso objetado que mesmo se
garantíssemos todas as suas proposições, ainda permanece inteiramente possível que o mundo seja como ele parece ser para nós”
(NIETZSCHE 25, p. 84). Do mesmo modo, “não ousamos afirmar
que esse contraste [entre indivíduo e espécie] não corresponde à
essência das coisas: isso certamente seria uma asserção dogmática
e, com tal, tão indemonstrável quanto o seu oposto” (NIETZSCHE
28, pp. 83-84). Nietzsche assim repreende Kant por não ter sido
crítico o suficiente: ele deveria ter visto que a afirmação de que o
conhecimento empírico não corresponde a estados de coisas metafísicos é um juízo sintético a priori não assegurado19. Contudo,
é bastante estranho que ele pareça não estar ciente de que essa
19 Há formas de, pelo menos, tentar que essa afirmação se sustente, em particular o
argumento de Allison de que se segue analiticamente das considerações de Nietzsche
sobre tempo e espaço serem condições de possibilidade da representação que eles
não podem ser aplicados a coisas em si, e que portanto a afirmação de que as coisas
em si não são espaço-temporais não é sintética mas analítica. Mas como o próprio
Nietzsche não considera a questão, e parece endossar a alternativa de Trendelenburg,
deixarei essa questão de lado.
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crítica se aplicaria igualmente bem a sua própria tese da falsificação, e que pela mesma medida ela é injustificada, em sua afirmação de que nosso conhecimento não consegue necessariamente
capturar qualquer aspecto das coisas em si20. Nesse momento, pode
ser útil sumarizar nossas descobertas, com a concepção que identifica o papel de elementos transcendentais e naturalísticos na primeira fase do pensamento de Nietzsche. Eu sugeri que ele possui
dois argumentos distintos contra a possibilidade de objetividade: o
primeiro diz respeito à gênese de representações e é altamente ambíguo, por combinar aspectos antitranscendentalistas e anti-empiristas. O segundo repousa no seu endossamento de uma forma forte
de idealismo transcendental e de uma exigência não-kantiana de
correspondência metafísica. Contudo, não estamos, no momento,
em posse de uma imagem completa; devemos, portanto, considerar argumentos adicionais oferecidos por Nietzsche em “Verdade e
mentira” antes de traçar conclusões definitivas.
Deixando temporariamente de lado a questão da correspondência metafísica, Nietzsche retorna a sua análise da gênese das
representações, mas agora a partir de uma perspectiva diacrônica.
20 Poder-se-ia talvez dizer, em defesa de Nietzsche, que mesmo se nossos enunciados
viessem a corresponder ao em si, as próprias condições sob as quais o problema está
colocado impediriam que eles contassem como conhecimento. É interessante que a
situação aqui evocada parece antecipar o problema de Gettier: como se sabe, um dos
exemplos de Gettier é aquele de alguém que, vendo um cachorro-robô no gramado,
diz: “Há um cachorro ali”. Como o cachorro percebido não é um cachorro real, o
enunciado é falso (embora justificado), e assim não pode contar como conhecimento.
Gettier então introduz a premissa adicional de que há um cachorro real atrás do cachorro-robô, escondido do falante por um arbusto. A conclusão de Gettier é que, embora o enunciado se torne agora verdadeiro, ele ainda não conta como conhecimento.
Da mesma forma, poder-se-ia talvez argumentar (embora Nietzsche não o faça) que se
nossos enunciados, que são considerados por Nietzsche empiricamente falsos devido
à ausência de correspondência metafísica e assim não são considerados como itens
do conhecimento, tornassem-se metafisicamente verdadeiros, mas por razões que não
nos são acessíveis, eles ainda não contariam como conhecimento. Seria apenas um
caso de sorte epistêmica.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
O elemento novo e importante é que sua primeira análise da percepção é agora recontextualizada em uma genealogia que reconhece que a conceptualização é necessária. Nietzsche ocupa-se em
mostrar as formas em que nossa imaginação, originalmente irrestrita, foi progressivamente forçada a operar de uma forma fixa. Essa
posição pré-genealógica é evidentemente humiana, na medida em
que insiste no papel desempenhado pelas necessidade sociais e
pelos hábitos no processo, providenciando assim razões naturalísticas para a domesticação (e esquecimento) de nosso poder metafórico primordial. Partindo da premissa implícita de que é necessário
para os homens viver em sociedade (presumivelmente por razões
rousseaunísticas de escassez de recursos naturais e da vulnerabilidade natural da espécie), a posição de Nietzsche desenvolve-se com os seguintes passos: a) para ser possível a ordem social,
há a necessidade de que seus membros possam ser verazes. É um
“dever que a sociedade impõe para existir”21 (idem, p. 84), caso
contrário ela seria ameaçada pelo caos e não conseguiria se manter; b) “ser veraz significa empregar as metáforas usuais” (ibidem),
isto é, (para Nietzsche) empregar conceitos de tal forma que enunciados sejam comunicáveis22, verificáveis e justificáveis. Se não
houvesse referência comum ou nenhuma estabilidade na relação
entre sentido e referência, então nenhuma vida social seria possível; c) entretanto, esses próprios conceitos são considerados falsos,
em virtude do processo de abstração através do qual são obtidos;
21 A referência ao “dever” nesse contexto poderia ser vista como ironicamente remanescente dos argumentos de Kant tanto na Fundamentação quanto no “Do suposto direito
de mentir”. Polemicamente, Nietzsche vê a origem empírica, como a necessidade de
ordem social e de coesão, daquilo que Kant entende como um dever moral a priori.
22 Cf. Nachlass/FP 1887, 9[106], KSA 12.395-6: “A comunicação é necessária, e para
haver comunicação algo precisa estar fixo, simplificado, capaz de exatidão (sobretudo
nos chamados casos idênticos). Para algo ser comunicado, contudo, ele deve ser experimentado como adaptado, ‘reconhecível’. A matéria dos sentidos [é] adaptada pelo
entendimento, reduzida a grossos contornos, feita similar”.
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d) consequentemente, temos o “dever de mentir segundo uma convenção fixada, mentir com o rebanho e de uma maneira vinculada
a todos” (ibidem).
É claro que muita coisa está pendente em c). Qual é a base para
se afirmar que a conceptualização é necessariamente uma forma
de falsificação? E o que é exatamente é chamado de falsificação?
Duas razões principais podem ser inferidas do texto de Nietzsche.
A primeira é que o conhecimento conceptual não consegue satisfazer a exigência de correspondência metafísica. Este é provavelmente o argumento mais fraco de Nietzsche, na medida em que é
o menos específico (ele se aplicaria também ao fluxo primitivo de
metáforas): dessa perspectiva, é difícil ver por que metáforas fixas
seriam, como Nietzsche claramente pensa que elas são, pior do que
as não-fixas. A segunda é remanescente da crítica empirista da
formação de ideias abstratas: é a afirmação de que conceitos são
formados a posteriori, através do empobrecimento das metáforas
perceptuais originais. O processo pode ser detalhado em dois passos: primeiro, as imagens originais, singulares, são universalizadas
“(...) em conceitos desbotados, frios, de tal forma que ele [o homem]
possa lhes dar a condução de sua vida e ação” (ibidem). Tal universalização, em contrapartida, tornou-se possível por meio de uma
igualação forçada de diferenças individuais. Assim, “enquanto
toda metáfora é individual e sem igual e portanto escapa de toda
classificação” (idem, pp. 84-5), “todo conceito surge da igualação
de coisas desiguais: exatamente como é certo que nenhuma folha é
totalmente idêntica a outra, do mesmo modo é certo que o conceito
‘folha’ é formado pela desconsideração arbitrária dessas diferenças
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
individuais” (idem, p. 83)23. Em segundo lugar, esquecemos sua
gênese e tomamos os conceitos como se eles se referissem a entidades reais no mundo. Assim, a formação de universais, conjuntamente com o destaque arbitrário (a “transposição arbitrária”; idem,
p. 82) de propriedades como “verde”, que são implicitamente referidas a substâncias como seus suportes, faz surgir a ilusão de
um mundo de entidades empíricas independentes da mente: assim,
“procedemos a partir do erro de acreditar que temos essas coisas
imediatamente diante de nós como meros objetos. Esquecemos que
nossas metáforas perceptuais são metáforas e as tomamos como se
fossem as coisas elas mesmas” (idem, p. 86). Há portanto uma dupla
falsificação em jogo: primeiro, as metáforas perceptuais originárias,
singulares, são solidificadas em conceitos; depois, esse processo é
esquecido e nos tornamos realistas ingênuos, acreditando na existência independente de entidades capturadas por esses conceitos.
Embora não o diga explicitamente, isso permite, presumivelmente,
a atribuição de valor de verdade aos nossos enunciados, já que
essas entidades podem então servir de referência e assim fazem
possibilitar que verifiquemos nossos enunciados.
Esta é a primeira aparição de um tema (qual seja, o de que conceitos, e portanto conhecimento conceptual, são necessariamente
falsificadores) que oferece um segundo fundamento para a teoria do
erro de Nietzsche. Note-se que, assim como as primeiras concepções sobre o caráter metafórico da percepção, ele é independente
do compromisso com o idealismo transcendental, e que portanto
não será afetado pela sua rejeição ulterior da coisa em si. Em virtude de sua importância, vale a pena examinar essa primeira versão
da tese da falsificação conceptual um pouco mais detalhadamente.
23 Nietzsche pressupõe que nossa habilidade de reconhecer objetos diferentes é não-conceptual: contudo, poder-se-ia argumentar que, para identificar uma folha como
tal inicialmente (e assim ser capaz de indenticar duas folhas distintas), já é necessário
o conceito de folha, e portanto ele já é pressuposto pelo próprio processo que é descrito como resultado.
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Talvez a primeira coisa a dizer é que apesar de sua aparente simplicidade, ela é profundamente ambígua, na medida em que a natureza do que é falsificado varia implicitamente: na citação acima,
Nietzsche o identifica com “toda metáfora perceptual originária”,
então avança e diz que “todo conceito surge da igualação de coisas desiguais” (grifo meu). O exemplo da folha confirma que ele
agora está falando da igualação de diferenças entre várias entidades, e não metáforas perceptuais (assim que fala sobre ser certo que
“uma folha [não uma folha percebida] nunca é totalmente idêntica
a outra”). Da mesma forma, sua crítica à arbitrariedade de nossa
captação de propriedades pressupõe uma concepção realista similar daquilo que é falsificado: assim, “falamos de uma ‘serpente’:
essa designação toca apenas na sua habilidade em contorcer-se e
poderia caber também ao verme” (idem, p. 82). Isso sugeriria que
o próprio Nietzsche ocasionalmente é capturado pela ilusão que
ele critica, ou seja, a da existência de entidades independentes da
mente que preexistem à nossa percepção delas24.
Como o foco geral desse argumento em “Verdade e mentira”
recai sobre as metáforas perceptuais, podemos assumir que o que
Nietzsche realmente quer dizer aqui é que os conceitos falsificam
as metáforas originais de nossa imaginação. Nesse caso, a tese da
falsificação assume que temos, desde início, não somente a habilidade de formar muitas metáforas perceptuais, como também
que podemos dizer que essas metáforas diferem uma das outras.
Caso contrário, a ideia de imagens originais “singulares” não faria
sentido, nem a de que uma conceptualização subsequente seria a
igualação de diferenças no conteúdo perceptual – tudo o que teríamos seria um fluxo de percepções indiferenciadas que não seriam individualizadas o suficiente para que fossem falsificáveis.
24 Retornarei a esse ponto, sugerindo uma interpretação do desenvolvimento da teoria
do erro mais como uma advertência contra precisamente essa ilusão do que contra a
possibilidade de conhecimento em geral.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
Mas Nietzsche deixa claro que toda metáfora perceptual é “uma experiência única e original” (idem, p. 83). Então surge a questão se
estamos originalmente cientes de que essas metáforas perceptuais
são diferentes umas das outras (em oposição a ter apenas diferentes
metáforas perceptuais). Nietzsche não é claro nessa questão, mas
parece haver duas possibilidades. Primeiro, se o processo igualador de conceptualização é visto como consciente e intencional, então ele requer que toda metáfora perceptual deva, desde o início,
ser percebida como diferente umas das outras. Caso contrário não
seria simplesmente possível compará-las para formar um mínimo
denominador comum possível (o conceito). Nesse caso, a existência
de tal consciência reforça o aspecto anti-empirista do trato de Nietzsche com a percepção, no sentido de que a percepção da diferença
como tal não pode ser explicada meramente pela posse de metáforas perceptuais diferentes25. Contudo, por essa medida, poder-se-ia
argumentar (em linhas kantianas) que a ideia de que seja possível
diferenciar entre particularidades perceptuais sem qualquer interferência conceptual seria duvidosa. Parece que, para que haja
um sentido de diferença, é necessário uma estrutura conceptual
mínima, incluindo conceitos gerais, por exemplo, quantidade, unidade e sucessão. Caso contrário metáforas perceptuais emergiriam
de outras e seriam indistinguíveis. Isso toca em um problema que
indiquei anteriormente, qual seja, a ideia de que é difícil entender
como a imaginação poderia, sem o uso de qualquer conceito, ter a
atividade formadora e individualizadora que Nietzsche lhe atribui.
Embora seu conteúdo não possa ser totalmente articulado, as metáforas perceptuais originais não poderiam sustentar-se como “imagens” sem o uso, pelo menos, de conceitos categoriais.
25 Como se sabe, Kant fez uma objeção similar a Hume a respeito da sucessão: ter a
percepção da sucessão, como claramente a temos, não é redutível a ter sucessivas
percepções.
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Uma forma de escapar desse problema é passar para a segunda
possibilidade aludida acima, e conceber o processo igualador que
resulta na formação de conceitos como inconsciente. Nesse caso
não haveria a exigência de estar consciente das diferenças entre
metáforas perceptuais. Motivados pela necessidade social, poderíamos simplesmente reagir inconscientemente a tais diferenças de
uma maneira que progressivamente elas fossem reduzidas, de sorte
que terminaríamos com representações estruturadas conceptualmente e assim comunicáveis. Esta pode ser uma visão completamente naturalística da formação de conceitos, em consonância com
a insistência de Nietzsche no papel do hábito e da necessidade em
sua gênese. Contudo, ela não se concilia facilmente com sua visão
não empirista do papel desempenhado pela imaginação na formação de metáfora perceptuais, e também com outras afirmações que
sugerem que a formação do edifício conceptual seria intencional,
deliberada e consciente26. Além disso, se não houvesse consciência da diferença nas percepções por parte daquele que percebe,
então é difícil determinar a perspectiva a partir da qual se poderia
legitimamente dizer que elas são diferentes. A afirmação só poderia ser feita por uma terceira pessoa, do ponto de vista do filósofo (Nietzsche) que identifica, retrospectivamente, as diferenças
na percepção e diagnostica a igualação. Mas como ele pode estar
seguro de que essa identificação é legítima, e de que haveria realmente diferenças no início? Ele não está apenas descrevendo um
passado longíquo, mítico, que ele diz ter sido “esquecido” (idem,
pp. 84,86); ele está também assumindo que é possível descrever
uma experiência em primeira pessoa (de possuir diferentes percepções, sem ser contudo consciente de suas diferenças) a partir de
26 “O homem agora se comporta sob o controle de abstrações. Ele não mais tolerará ser
desviado por repentinas (...) intuições. Primeiro, ele universaliza essas impressões em
conceitos desbotados, frios, de tal forma que ele possa lhes dar a condução de sua vida
e ação” (NIETZSCHE 28, p. 84. Grifos meus).
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
uma perspectiva em terceira pessoa, o que torna problemático o caráter privado de tais percepções27. Poder-se-ia argumentar que ele
está se apoiando numa analogia entre suas percepções correntes e
aquelas atribuídas a homens originários, pré-conceptuais. Mas ele
está claramente ciente das diferenças perceptuais. Mais ainda, o
simples ato de descrever o processo transformaria a experiência
original, se houvesse alguma. Assim, tanto a linguagem da descrição quanto a forma pela qual Nietzsche experiencia o mundo
são agora incompatíveis com a experiência primitiva que ele está
tentando descrever. Nesse caso, torna-se difícil fornecer qualquer
argumento em favor da afirmação de que havia uma diferença no
conteúdo perceptual que teria sido igualada inconscientemente,
pois é impossível estabelecer a verdade da premissa. Na melhor
das opções, todo o raciocínio pode ser visto como hipotético, o que
não é a modalidade do discurso nietzschiano (ele é assertórico).
Apesar dessas dificuldades, as duas linhas originais de argumentação de Nietzsche, ou seja, sua caracterização da experiência como “metáfora perceptiva” e seu endossamento do idealismo
transcendental, unida à exigência não-kantiana de correspondência metafísica, são agora complementados por uma investigação
protogenealógica das maneiras pelas quais o uso conceptual tornou-se necessário. Isso parece culminar em uma concepção bastante humiana da experiência: “mesmo a relação de um estímulo
nervoso e a imagem gerada não é necessária. Mas quando a mesma
imagem foi gerada milhões de vezes e transmitida por muitas gerações e finalmente aparece na mesma ocasião toda vez para toda a
humanidade, então ela, no mínimo, adquire o mesmo sentido para
os homens que ela teria se fosse a única imagem necessária e se
a relação do estímulo nervoso original com a imagem gerada fosse
estritamente causal” (idem, p. 87). Tendo esquecido tanto o papel
27 Lembrar que nessa hipótese não há elemento conceptual na percepção e nenhuma
linguagem comum que pudesse fornecer a tais percepções um caráter público.
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originalmente desempenhado pela imaginação na formação de metáforas perceptuais quanto o processo redutor por meio dos quais os
conceitos são adquiridos, “convencemo-nos da eterna consistência,
onipresença e infalibilidade das leis da natureza (ibidem). Prima
facie, tanto a genealogia quanto sua conclusão parecem reforçar
os elementos naturalísticos do pensamento de Nietzsche. De forma
inesperada, contudo, elas resultam em uma visão substancialmente
diferente e muito mais inclinada transcendentalmente da forma
pela qual a experiência é experimentada agora, isto é, no final do
processo descrito em “Verdade e mentira”.
A principal diferença é esta: enquanto Nietzsche negava anteriormente a necessidade de qualquer espécie de estrutura a priori
que obrigasse a formação de metáforas perceptuais, ele agora considera que “o processo artístico de formação de metáforas com
que toda sensação começa em nós já pressupõe [essas] formas e
assim ocorre no interior delas” (idem, p. 87, grifos meus). Essas
formas são identificadas como “tempo, espaço e em consequência relações de sucessão e número” 28(ibidem). Outras passagens
especificam que “espaço, tempo e o sentimento de causalidade
parecem ter sido dados no decorrer da primeira sensação” (Nietzsche 25, p. 80. Grifos meus), ou ainda que “o múltiplo percebido já
pressupõe espaço e tempo, sucessão e coexistência” (idem, p. 140.
Grifos meus). Vale a pena atentar para duas coisas: primeiro, essas
afirmações colocam Nietzsche ainda mais distante de uma posição
empirista quanto à formação da experiência, na medida em que
elas implicitamente rejeitam a ideia de tabula rasa. Enquanto a
experiência repousar sobre alguma forma de estímulo sensorial,
ela também requererá a existência de elementos a priori. Em todo
momento em que experimentamos algo, as formas “já” estão lá,
“dadas no decorrer da primeira sensação”. As formas não causam
28 (Possivelmente uma referência implícita aos axiomas da intuição, as antecipações da
percepção e as analogias).
190
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
as sensações (como vimos, para Nietzsche, não se pode sequer
dizer que os estímulos nervosos o façam).
Do mesmo modo, sua anterioridade não é cronológica (não faria
sentido dizer que as formas existiriam antes da experiência, já que
relações de anterioridade e posterioridade só podem ser definidas a
partir da perspectiva da experiência, isto é, de dentro da estrutura
fornecida por tais formas). Embora elas não possam ser definidas
isoladamente, elas não existem antes da experiência ou independentemente dela. Nietzsche parece pensar que elas dão forma a
essa experiência (ao invés de a experiência meramente conformar-se a elas): assim, por causa delas, “transmitimos às coisas” suas
propriedades (NIETZSCHE 28, p. 87). Isso pode motivar implicitamente (ou ao menos reforçar) sua afirmação de que o mundo tal
como o percebemos não pode ser o mundo das coisas em si, e assim
que o conhecimento humano, por definição, não consegue satisfazer a exigência de correspondência metafísica. Em segundo lugar,
Nietzsche não parece distinguir fortemente, como Kant o faz, entre
formas a priori da sensibilidade e conceitos puros do entendimento:
tempo, espaço, causalidade, coexistência e sucessão (nenhuma das
duas últimas são, estritamente falando, categorias) são colocados
em um mesmo nível. Isso pode ser parcialmente causado pela influência de Schopenhauer (já que este incluía a causalidade, juntamente com o tempo e o espaço, em sua definição do princípio de
razão suficiente). Isso também indica que, de fato, Nietzsche não
pensa que seja possível considerar o conteúdo sensorial independentemente de alguma forma de conceptualização (havíamos visto
que isso era um problema para sua concepção de que as metáforas
perceptuais repousavam unicamente na imaginação). Contudo, tal
conceptualização não deve ser vista como requisitando um uso de
conceitos acabado, articulado verbal e conscientemente. Ao colocar causalidade, existência e sucessão no mesmo nível do tempo
e espaço, Nietzsche parece sustentar que a percepção requer um
mínimo de ordenamento, que não pode ser fornecido apenas pelo
cadernos Nietzche 29, 2011
191
Han-Pile, B.
tempo e pelo espaço. Temos de ser capazes de julgar que algumas
impressões acontecem depois de outras no tempo. Como veremos,
esse aspecto anti-empirista é reforçado na obra madura.
Entretanto, embora pareçam transcendentais em sentido kantiano, as condições identificadas por Nietzsche não as são verdadeiramente. O cerne do procedimento genealógico é mostrar
como elas foram adquiridas e como a forma com que percebemos
o mundo consequentemente se modifica. Assim, em oposição à
época em que a imaginação corria livre, “somos agora forçados
a compreender todas as coisas unicamente por meio dessas formas”
(NIETZSCHE 28, p. 87. Grifo meu). Além disso, a protogenealogia
de Nietzsche indica que, já que a conceptualização surge de necessidades e foi fortalecida pelo hábito e pelo esquecimento (tanto da
singularidade das metáforas perceptuais originais quanto do papel
desempenhado pela imaginação), não há validação racional para a
necessidade dessas formas: “produzimos essas representações [do
tempo e do espaço] em e a partir de nós com a mesma necessidade
[isto é, presume-se, a necessidade natural] com que a aranha tece”
(NIETZSCHE 28, p. 87). Os elementos “transcendentais” da percepção possuem uma gênese empírica: eles têm sua condição de
possibilidade causais no surgimento de novas práticas (tais como
a vida social) e sua necessidade é apenas relativa a essas práticas.
Assim, embora a posição de Nietzsche em relação à forma corrente
com que experienciamos o mundo não seja certamente empirista,
ela não é verdadeiramente transcendental. Para mostrar sua especificidade, pode ser útil remeter à distinção de Mark Sacks entre
restrições (constraints) transcendentais e características (features)
transcendentais (SACKS 32, pp. 211-18). As primeiras indicam a
“dependência de possibilidades empíricas para com uma estrutura
não-empírica” (idem, 213). Neste caso, as condições de constituição
da experiência são definidas isolada e antecipadamente em relação
àquilo que elas determinam (como a organização transcendental
das faculdades pode, em Kant, ser estabelecida por completo independentemente da experiência, e como essa experiência deve
192
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
se conformar a elas). Isso torna possível, ao menos em teoria, assegurar inteiramente a possibilidade de conhecimento objetivo, isto
é, de forma universal. Não teria sentido pensar em uma mudança
nas restrições transcendentais, o que resultaria em uma mudança
da experiência; ao contrário, são elas que nos permitem pensar na
possibilidade da sucessão (e assim de mudança) e identificá-la na
experiência. Em contraste, características transcendentais “indicam limitações implicitamente determinadas por opções de práticas disponíveis (...) para as quais outras alternativas não podem ser
inteligíveis para aqueles nelas engajados” (ibidem). Afirmar que
existem tais características é rejeitar a concepção empirista (ou
naturalista) de que a experiência é resultado de processos inteiramente associativos que, em última instância, dependem de causas
físicas (como mudanças no meio ambiente ou na neurofisiologia
do cérebro). Isso contribui para o seu aspecto transcendental: elas
operam como restrições transcendentais na medida em que elas delimitam a estrutura com que a experiência tem de conformar para
que conte como experiência. Contudo, elas só podem ser consideradas a priori a partir de uma perspectiva sincrônica, induzida
artificialmente, se se olha para a experiência no instante T e se pesquisa, de forma descontextualizada, sobre a estrutura necessária
dessa experiência. Em última instância, elas têm de ser relocadas
para o interior de uma posição diacrônica (no caso, o projeto protogenealógico de Nietzsche) que mostre que sua gênese é dependente
de mudanças nas práticas empíricas (tais como o aparecimento da
necessidade de veracidade em “Verdade e mentira”). Assim, contrariamente às restrições, as características transcendentais podem
garantir a possibilidade de objetividade apenas de forma limitada,
no interior do contexto de opções de práticas. Se as práticas se modificam, o mesmo ocorrerá com as características transcendentais,
que, no final das contas, nada mais são “que uma sombra de necessidade iluminada por quaisquer práticas que sejam correntes” (ibidem). Parece que isso capta muito mais o espírito da concepção de
Nietzsche: há algumas condições de conhecimento aparentemente
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Han-Pile, B.
não-empíricas, mas que são, no final das contas, dependentes de
circunstâncias empíricas. De um lado, a filosofia tem de “revelar as
precondições que determinam o processo da razão” (Nachlass/FP
1886, 7[63], KSA 12.317-8), tais como as “categorias”, “o espaço
euclidiano” (XIII, 14[152]) ou “a lei a priori da causalidade” (Nachlass/FP 1884, 26[74], KSA 11.168)29. Essas precondições operam de uma forma transcendental na medida em que sua validade
não pode ser verificada por meios empíricos (já que tal prova pressuporia seu uso), e porque é impossível identificá-las com qualquer
conjunto de práticas (Assim, embora “Verdade e mentira” sugira
que elas apareceram no decorrer de novas práticas, elas não são
idênticas a essas práticas). No entanto, por outro lado, “o modo
pelo qual conhecemos e formamos conhecimento é ele mesmo parte
de nossas condições de existência: mas (...) essa condição factual de
existência pode ser apenas fortuita e de maneira nenhuma necessária” (Nachlass/FP 1884, 26[127], KSA 11.183-4). Os primeiros
grifos são meus). Do mesmo modo, essas condições não são racionalmente justificáveis, mas fundadas na crença: sua necessidade é
psicológica, e as verdade que elas propiciam são apenas “condicionais” (Nachlass/FP 1888, 14[152], KSA 13.333-5).
Assim, enquanto tanto Nietzsche quanto Kant são inclinados
transcendentalmente, na medida em que eles possuem uma concepção não-empírica da experiência e concordam que ela necessariamente pressupõe a utilização de uma estrutura espaço-temporal,
Kant vê esta como uma restrição, e Nietzsche como uma característica. Isso tem duas consequências: primeiro, isso torna ainda mais
difícil dizer se Nietzsche deve ser visto como um naturalista ou
como um filósofo transcendentalista. A razão disso é que há uma
instabilidade (ou reversibilidade) intrínseca na noção de características transcendentais: sua existência pode ser vista igualmente
como um argumento para o filósofo transcendental (na medida em
29 Todas as traduções do Nachlass são minhas.
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cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
que a constituição da experiência se conforma a elementos a priori
que não são determinados pela psicologia empírica e pela neurofisiologia) e para o naturalista (na medida em que esses elementos
não são a priori no sentido forte de restrições, já que eles dependem, no final das contas, de práticas contingentes que poderiam,
elas mesmas, ser determinadas de uma forma naturalística, especialmente se se for um naturalista “suave”). Pode-se insistir ou no
intuito anti-empirista de tal consideração da experiência, ou no
fato de que o a priori, sendo enraizado empiricamente, não é nem
universal nem necessário, da maneira não-causal, não-psicológica,
requerida pelas restrições transcendentais. Além disso, a protogenealogia de Nietzsche sugere tanto que a possibilidade de conhecimento é contingente em relação à existência de uma estrutura
específica quanto que essa estrutura pode ser revista se as condições de experiência se modificam (e, de fato, ela já foi revista), algo
que um verdadeiro filósofo transcendental não aceita. Em segundo
lugar (e de forma correlata), uma ambiguidade similar é transferida
para a relação entre características transcendentais e objetividade.
A vantagem do ponto de vista transcendental em relação a um inteiramente empirista ou naturalista é que, se ele alcança sucesso,
ele pode garantir a priori a possibilidade de concordância entre a
experiência e seus objetos. Em tal posição, a experiência pode cessar (ou não acontecer), mas não deixa de se conformar às suas condições a priori. A possibilidade de tal conformidade é preservada
pela noção de características transcendentais, mas de uma maneira
mais limitada: elas garantem que, em um dado momento, e sob
certas condições empíricas, haverá harmonia entre as condições
sob as quais conhecemos e a estrutura dos objetos que podemos conhecer. Mas caso o contexto empírico se modifique, outras formas
de conhecimento e outros objetos aparecerão (como, em “Verdade
e mentira”, objetos espaço-temporais relacionados causalmente se
opõem às metáforas perceptuais originais). Conhecimento objetivo
é agora possível, mas ele não é universal. Enquanto o caráter singular e aleatoriamente formado das metáforas perceptuais tornou
cadernos Nietzche 29, 2011
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Han-Pile, B.
impossível que nossas representações fossem reguladas por qualquer regra e que nós tivéssemos um mundo perceptivo compartilhado, agora a utilização de formas e conceitos a priori pode, em
princípio, garantir a possibilidade de uma concordância entre as
condições sob as quais percebemos e o mundo percebido. Nietzsche está bastante ciente disso: “toda aquela conformidade à lei,
que tanto nos impressiona no movimento dos astros e nos processos
químicos, coincide no fundo com aquelas propriedades que nós colocamos nas coisas” (NIETZSCHE 28, p. 87). Ou ainda: “em todas
as coisas nada compreendemos senão essas formas. Pois elas podem sustentar, no interior delas mesmas, as leis do número” (idem).
Contudo, devido ao seu compromisso, de um lado, com o idealismo
transcendental e sua exigência de correspondência metafísica e, de
outro, com a sua tese da falsificação, essa tentativa aberta para a
objetividade aborta imediatamente: Assim, “nós pressupomos que
a natureza se comporta de acordo com tal conceito. Mas, nesse caso,
primeiro a natureza e depois os conceitos são antropomórficos (...).
A isso não corresponde a essência das coisas: é um processo de
conhecimento que não toca na essência das coisas” (NIETZSCHE
25, p. 150). Mas, caso esse compromisso com o realismo metafísico
ontológico e com sua teoria do erro desaparecesse, isso deixaria, em
princípio, espaço para uma forma relativizada de objetividade no
interior de uma estrutura de traços transcendentais naturalizados.
III.
Agora eu gostaria de observar as formas pelas quais os temas
que tiveram lugar em “Verdade e mentira” se desenvolvem nos períodos intermediário e final de Nietzsche. Como antes, o que mais
me interessa é a relação entre elementos naturalistas, aspectos
transcendentais e suas assunções ontológicas. Eu enfocarei portanto três questões principais: a) a alegada rejeição de Nietzsche do
idealismo transcendental e dos tipos de compromissos ontológicos
196
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
(se há algum) que se seguem dele, b) sua interpretação das características transcendentais como “condições de vida” perspectivas,
e c) se ele pode ser resgatado da ameaça posta pela teoria do erro.
Como foi apontado por Clark e Leiter, a partir de Humano,
demasiado humano Nietzsche parece crescentemente incrédulo
para com afirmações ontológicas, apresentando dois argumentos
distintos: primeiro, de uma forma quase allisoniana, ele identifica
a possibilidade de um reino numênico como o correlato analítico da
noção de condições perspectivas. Assim, “é verdade que poderia
haver um mundo metafísico: sua possibilidade absoluta é difícil de
ser questionada. Nós enxergamos o mundo através da cabeça humana e não podemos decepá-la; contudo, ainda permanece a questão de que mundo poderia restar, se ela fosse decepada [isto é, se
colocássemos em parênteses nossas condições epistêmicas] (MAI/
HHI 9, KSA 2.29-30. Grifos meus). Contudo, Nietzsche argumenta
que, embora tal existência possa ser legitimamente concebida, ela
não é de importância alguma para nós, porque, por definição, não
podemos conhecer nada de tal mundo que fizesse diferença para
nossas vidas: “Nada se pode afirmar do mundo metafísico, exceto
que ele seria um ser outro, um inacessível e incompreensível ser
outro; ele seria uma coisa com qualidades negativas (...). Seu conhecimento seria ainda mais inútil do que o conhecimento químico
da água deve ser para um marinheiro em risco de naufrágio” (idem).
Assim, Nietzsche parece passar implicitamente de uma interpretação forte do idealismo transcendental para uma mais deflacionária,
baseada no númeno como um conceito puramente negativo, para
apontar em seguida, pragmaticamente, que essa possibilidade não
deveria nos dizer respeito, por ser irrelevante para nós. A ideia
subjacente parece ser que, enquanto a interpretação forte do idealismo transcendental é relevante por suas nefastas implicações
morais (e por isso deve ser rejeitada), essa concepção deflacionada
pode se sustentar, por ser tão vazia quanto inofensiva. A esse argumento, Nietzsche acrescenta um segundo, mais ambíguo: “como
se aqui o conhecimento apreendesse o objeto de forma pura e nua
cadernos Nietzche 29, 2011
197
Han-Pile, B.
como a ‘coisa em si’, sem qualquer falsificação por parte do sujeito
ou do objeto! (...) Mas a ‘coisa em si’ envolve uma contradictio in
adjecto” (JGB/BM 16, KSA 5.29.30). A primeira parte da citação
sugere que a ideia de que podemos conhecer a coisa em si é contraditória (o que certamente se segue do seu conceito, a não ser
que esse conhecimento seja inferido analiticamente da definição
de tal coisa); mas a conclusão sugere que é a própria noção de
uma coisa em si é contraditória. Clark expõe essa contradição da
seguinte maneira: “não podemos ter conceito algum, ou somente
um contraditório, de algo que seria independente de todo aquele
que conhece, e consequentemente de toda conceptualização, porque conceber algo é concebê-lo como satisfazendo uma descrição
ou outra, o que é pensar nele como sendo concebível de uma maneira ou outra” (CLARK 5, pp. 46-7). Contudo, esse comentário
só funciona ao preço de introduzir implicitamente uma concepção
diferente de coisa em si daquela presente em Humano, demasiado
humano. Lá Nietzsche sugere que o mundo metafísico é apenas o
correlato da colocação entre parênteses das características transcendentais que são relevantes para nós (o que permanece se “nossa
cabeça for decepada”), não a colocação entre parênteses de qualquer condição epistêmica. Para remodelar isso no vocabulário último do perspectivismo, a primeira ideia é a de que as coisas em si
são coisas consideradas independentemente de nossa perspectiva;
mas uma contradictio in adjecto só pode ocorrer se as coisas em
si forem pensadas como inteiramente extraperspectivas. Somente
assim se torna possível argumentar, como Clark o faz, que a própria
existência da definição pressupõe uma perspectiva da qual ela se
origina, e que portanto há uma contradição latente entre o definiens
e a natureza do definiendum.
Prima facie, posteriormente Nietzsche faz um movimento nessa
direção, quando ele afirma que uma “coisa” (tanto em sentido tradicional, como substância, quanto no sentido mais kantiano de uma
coisa em si) nada mais é que “a soma de seus efeitos” (Nachlass/FP
1888, 14[98], KSA 13.274-6). De acordo com essa lógica, “a ‘coisa
198
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
em si’ é de fato um contrassenso, Se removermos todas as relações,
todas as propriedades, todas as atividades de uma coisa, nada resta
da coisa” (Nachlass/FP 1887, 10[202], KSA 12.580). Como apontou Poellner, pode-se duvidar que esse argumento se aplicaria realmente a Kant30; em todo o caso, ele foi claramente elaborado para
negar a possibilidade de um realismo metafísico ontológico forte,
por invalidar a afirmação de que haja uma maneira pela qual as coisas são em si mesmas. Assim, “a ‘coisa em si’ é mesmo uma concepção absurda: uma ‘constituição em si’, um contrassenso: possuímos
os conceitos de ‘ser’, ‘coisa’, apenas como conceitos relacionais”
(Nachlass/FP 1888, 14[103], KSA 13.280). Contudo, não se segue
disso que não teria sentido perguntar, como o próprio Nietzsche o
fez em Humano, demasiado humano, se algum X permaneceria se
nossas condições perspectivas fossem colocadas entre parênteses.
Embora tenha sido rejeitada a ideia de que tal X pudesse possuir
uma essência autossubsistente, definível independentemente de
qualquer perspectiva, e embora nós não pudéssemos dizer nada de
positivo sobre ela, poderia haver outras perspectivas a partir das
quais esse X pudesse ser considerado. É muito interessante que
esta própria possibilidade seja considerada por uma passagem da
Gaia ciência, em termos estritamente similares àquela de Humano,
demasiado humano: “Até onde se estende o caráter perspectivo
de nossa existência ou mesmo se a existência possua outro caráter que este (...) – isso não pode ser decidido nem pela análise e
pelo auto-exame do intelecto mais industriosos e escrupulosamente
conscienciosos: (...) pois não podemos olhar em volta de nossa própria esquina (...). Mas posso pensar que hoje estamos pelo menos
distantes da ridícula imodéstia de decretar da nossa esquina que
só são permitidas perspectivas desta esquina” (FW/GC 374, KSA
3.626). Assim, o projeto crítico (o “auto-exame do intelecto escrupulosamente consciencioso”) pode apenas nos levar aos limites de
30 (POELLNER 30, p. 96n20).
cadernos Nietzche 29, 2011
199
Han-Pile, B.
nossa própria perspectiva: não podemos transcender as condições
por meio das quais nossa experiência é estruturada. Contudo, essa
crítica também revela que nossa perspectiva não é a única possível,
embora seja a única que podemos entender. Assim, “Permita-nos
dizer que [o que ‘nós mais acreditamos, todo a priori’] apresenta-se
ele mesmo como uma condição de existência para a nossa espécie
– um tipo de hipótese fundamental. Por isso outros seres poderiam
formular outras hipóteses, de quatro dimensões, por exemplo” (Nachlass/FP 1884, 25[307], KSA 11.89). É concebível que poderia
haver uma pluralidade de perspectivas, cada uma com sua própria
espécie de condições a priori (assim, “alguns seres poderiam experimentar o tempo de trás para frente, ou alternadamente para
frente e para trás” (FW/GC 374, KSA 3.626-7)), que fossem incomensuráveis: “é provável que haja numerosos tipos de inteligência,
mas cada uma possui suas próprias leis que tornam impossível para
elas representar uma outra lei” (Nachlass/FP 1881, 11[291], KSA
9.553). A existência dessas outras perspectivas é o que basta para
garantir um compromisso ontológico mínimo com a possibilidade
de haver algum X considerado independentemente de nós, mas
não de qualquer perspectiva. O mais importante, contudo, é que
Nietzsche não diz que há tal X, mas somente que o perspectivismo
permite-nos conceber tal possibilidade. Assim, sua posição na obra
madura é mais sutil do que usualmente se considera: embora ele
rejeite a noção de coisas em si mesmas como sobredeterminada, ele
não faz a afirmação (igualmente forte) de que se as condições que
estruturam nossa experiência fossem colocadas entre parênteses,
nada restaria. Por contraste, sua crítica às coisas em si mesmas e
ao fato de ele reconhecer a possibilidade de uma pluralidade de
condições perspectivas (em oposição a restrições únicas, universais) o conduz a permanecer agnóstico em relação a compromissos
ontológicos. É importante o fato de que isso remove uma das bases
de sua teoria do erro: se, ao colocarmos entre parênteses nossas
200
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
condições epistêmicas, o que restar não “terá nenhuma constituição em si mesma”, então a correspondência metafísica não pode
ser uma exigência31.
Essa reflexão sutil sobre os compromissos ontológicos do idealismo transcendental é acompanhada por um aprofundamento do
entendimento de Nietzsche das características transcendentais,
agora interpretadas como parte de condições perspectivas que tornam possíveis a experiência humana e a vida32. Assim, “a crença
na verdade [dos juízos sintéticos a priori] é necessária, como uma
crença de fachada e uma evidência visual pertencentes à ótica
perspectiva da vida” (JGB/BM 11, KSA 5.24-6). A existência de
características transcendentais é o motivo pelo qual, embora toda
perspectiva particular de um indivíduo empírico possa variar a
depender de suas idiossincrasias, seus interesses e sua situação,
todos os objetos que são destacados pelas perspectivas humanas
compartilham alguns poucos traços comuns – em particular, ser
espaço-temporais, ter uma ordem objetiva de sucessão, ser interconectados pela lei da causalidade33. Contudo, justamente como
31 Em virtude da incomensurabilidade entre as perspectivas, não faria sentido sequer
requerer que o conhecimento empírico que formamos devesse ser válido interperspectivamente. O correlato implícito do multiperspectivismo de Nietzsche parece ser uma
forma de plurirrealismo empírico, no qual diferentes entidades seriam destacadas de
acordo com diferentes conjuntos de características transcendentais. Assim, ao invés
do “mundo (metafísico) verdadeiro”, deveríamos “asserir a existência de ‘x’ mundos
(...). Mas isso nunca foi asserido” (Nachlass/FP 1888, 14[168], KSA 13.350-1).
32 Embora nenhuma perspectiva humana fosse possível sem o uso de características
transcendentais, há mais na noção de perspectiva do que esse uso. Como foi indicado por Poellner (seguindo Leiter), conhecer um objeto de uma perspectiva também
significa conhecê-lo “do ponto de vista de interesses e necessidades particulares”
(POELLNER 30, p. 99). Assim, embora cada perspectiva específica pressuporá, por
definição, o uso de características transcendentais prevalecentes em um momento
particular, o tipo de objeto que ela enfatiza a depende dos interesses do indivíduo que
representa.
33 Cf. POELLNER 30, pp.88-98. Todos os objetos espaço-temporais têm características
que os assinalam como representados (“o que ele chama tese da dependência da
representação”).
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201
Han-Pile, B.
na sua obra anterior, Nietzsche parece desconfortável com essa
ideia. Esse descontentamento é expresso por várias asserções que
sugerem que nosso conhecimento, embora baseado em crenças inevitáveis, poderia, apesar disso, ser, ou mesmo seja, um ‘erro’”34.
Tal afirmação é tanto ambígua quanto problemática. Se lida literalmente, ela ameaça a própria posição de Nietzsche de três diferentes formas: primeiro, como foi visto pela maioria dos comentadores,
ela cria um problema de autorreferência potencialmente fatal. Em
segundo lugar, ela parece tornar inútil a reinterpretação de Nietzsche de Kant e sua naturalização das restrições transcendentais em
características transcendentais, na medida em que ela torna a epistemologia resultante incapaz de dar conta até da possibilidade de
representações objetivas limitadas. Em terceiro lugar (como veremos em seguida), a interpretação literal da teoria do erro nos exigiria a reintrodução justamente do tipo de compromissos ontológicos
substantivos dos quais Nietzsche tentou se distanciar. Em virtude
dessas dificuldades, é forte a tentação de ou desconsiderá-la, como
o faz Clark e Leiter sugere, ou minimizá-la, como o faz Nehamas
(NEHAMAS 19, p.51)35. Resistirei, contudo, a ambas as tentações
e sugerirei que a teoria do erro não deve ser tomada literalmente,
mas sim vista como uma advertência deliberadamente hiperbólica
34 Para a versão mais fraca da teoria do erro, ver, por exemplo, FW/GC 121, KSA 3.115
(“a vida não é argumento. As condições da vida podem incluir o erro”). Nachlass/FP
1885, 38[3], KSA 11.597-8 (“Uma crença pode ser condição da vida e apesar disso
ser falsa”), Nachlass/FP 1886/1887I, 7[63], KSA 12.317-8 (“uma crença, apesar de
ser necessária para preservação de uma espécie, nada tem a ver com a verdade”),
Nachlass/FP 1884, 26[12], KSA 11.152-3 (ver corpo do texto), Nachlass/FP 1888,
14[152], KSA 13.333-5 (idem). Para uma versão mais forte, ver: MAI/HHI 11, KSA
42-3, JGB/BM 24, KSA 5.41-2, GD/CI: A “razão” na filosofia 5, Nachlass/FP 1885,
34[253], KSA 11.506 (“a verdade é um tipo de erro sem o qual certas espécies não
poderiam viver”, Nachlass/FP 1885, 40[13], KSA 11.633-4 (“a vontade de verdade
lógica só pode ser satisfeita depois de uma falsificação fundamental de todos os eventos”, Nachlass/FP 1887, 9[89]), KSA 9.39.
35 Assim, a teoria do erro expressaria justamente a ausência de uma perspectiva do olho
de Deus.
202
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
contra formas ingênuas de realismo e transcendentalismo, a qual,
em contrapartida, serve para reforçar a importância da própria naturalização de Nietzsche do transcendental.
Antes de desenvolver esse argumento, olhemos com maior detalhe a interpretação literal da teoria do erro: ela é alimentada por
dois argumentos distintos que aprofundam a naturalização de Nietzsche do transcendental. Como foi visto por Stack, o primeiro repousa em seu uso da psicologia evolucionista. Enquanto ele admite
que nossa experiência pressupõe certas condições a priori sem as
quais ela não poderia ser a experiência que é, Nietzsche agora dá
uma guinada darwiniana36 nessas condições: elas são “condições
de vida”, no duplo sentido de que elas evoluíram com nossas formas de vida e de que são requeridas para que essa vida se mantenha e se desenvolva. Assim, “se estabelecermos o que é necessário
de acordo com a nossa forma corrente de pensar, teremos provado
(...) somente o que ‘torna possível’ nossa existência em virtude da
experiência – e esse processo está tão arraigado que tentar se livrar
dele é impossível. Qualquer a priori se localiza nele” (Nachlass/
FP IX, 11[286]). Então, enquanto Kant começava pela experiência e perguntava pelas condições não-empíricas que a “tornavam
possível” em sentido transcendental, Nietzsche recontextualiza
tais condições no interior de uma perceptiva evolucionista e sugere ironicamente que ter uma certa forma de experiência (o que
pressupõe essas condições “a priori”) é o que “torna possível” (em
sentido causal, dessa vez) a vida humana, e portanto evoluiu (juntamente com suas condições a priori) para preservar e promover
essa vida. Em termos simples, tornamo-nos programados para usar
conceitos e formas “a priori’ e para acreditar na realidade dos objetos resultantes; mas a existência da tal programação não é garantia
para a verdade do juízo resultante. Assim, “já é tempo de recolocar
36 Como foi argumentado por Richardson 31, na maioria das vezes Nietzsche está de fato
de acordo com Darwin, rejeitando apenas versões vulgares do darwinismo.
cadernos Nietzche 29, 2011
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Han-Pile, B.
a questão kantiana, ‘como são possíveis os juízos sintéticos a priori’
por outra questão, ‘por que é necessária a crença em tais juízos’,
– e compreender que temos de acreditar na verdade de tais juízos,
para a preservação de criaturas como nós; embora eles pudessem,
é claro, ser totalmente falsos!” (JGB/BM 11, KSA 5.24-6). Outra
passagem desenvolve uma ideia similar: “a lei da causalidade a
priori – que se creia nela pode ser uma condição de existência para
nossa espécie; pois ela não é provada” (Nachlass/FP 1884, 26[74],
KSA 11.168)37. As condições de possibilidade da experiência são,
no final das contas, “condições de existência”: sua necessidade é
apenas relativa à nossa necessidade de nelas crer, e sua “verdade”
reflete apenas as condições empíricas das quais elas resultam.
Contudo, tal argumento não é decisivo: não se segue dessa naturalização darwiniana do transcendental que nosso conhecimento
seja falso – e, em muitas passagens, incluindo a citação acima, o
próprio Nietzsche é cuidadoso em sugerir apenas que poderia ser o
caso. Disso tudo se segue que não é a verdade em sentido absoluto,
universal, que seria garantida por restrições transcendentais.
O segundo argumento para a interpretação literal da teoria do
erro se baseia em uma outra naturalização do transcendental, dessa
vez através de uma análise da linguagem que naturaliza as categorias kantianas. Nietzsche não contesta que tais conceitos como
“substancia” e “causalidade” são pressupostos na forma com que
experienciamos o mundo. Contudo, contrariamente a Kant (e em
uma linha no espírito ao argumento anterior presente em “Verdade e
mentira”), ele não vê tais conceitos como verdadeiramente a priori:
ele traça sua gênese na existência de aspectos gramaticais específicos presentes em todas as línguas indo-europeias, em particular
37 Cf. também Nachlass/FP 1884, 26[12], KSA 11.152-3: “as verdades a priori mais
fortemente acreditadas são para mim – assunções provisórias, isto é, a lei da causalidade (...), tanto que uma parte de nós que não acreditasse nela destruiria a raça. Mas
elas são verdadeiras por essas razões? Como se a preservação do homem fosse prova
da verdade”.
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cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
nas estruturas sujeito/objeto e voz ativa/passiva (das quais derivariam respectivamente as noções de sujeito e substância, de um
lado, e de causalidade, de outro). Assim, “postular como ‘verdade a
priori’ nossa crença no conceito de substância (...) é simplesmente
a formulação de nosso hábito gramatical que adiciona um agente
para cada ação” (Nachlass/FP 1887, 10[158], KSA 12.549); em
outras palavras, “o conceito de substância é consequência da noção
de sujeito [gramatical]” (Nachlass/FP 1887, 10[19] KSA 12.465)38.
De forma mais geral, somos governados por nossa “fé na gramática”
(GD/CI, Os quatro grandes erros 5, KSA 6.93; cf. GD/CI, A “razão”
na filosofia 5, KSA 6.77-8). O que Nietzsche aponta aqui não é
simplesmente que quando nós falamos de “coisas”, “sujeitos” ou
“causas”, nós projetamos na realidade estruturas gramaticais que
são estranhas a ela. A ideia é a de que a própria forma através
da qual experienciamos o mundo e individualizamos objetos (anteriormente a qualquer articulação verbal), sendo estruturada por
categorias, é, em última instância, confirmada por uma gramática
de um conjunto específico e contingente de línguas. “Nosso próprio
pensamento já envolve essa crença (com sua distinção de substância, acidente; agente, ato, etc.). Avançar para além disso significa
não mais poder pensar” (Nachlass/FP 1887, 7[63], KSA 12.317-8).
De uma maneira que antecipa a virada linguística na filosofia analítica, Nietzsche argumenta que a estrutura de nossa língua conforma nossa percepção do mundo. Percebemos o que tomamos por
“coisas” existindo independentemente, interagindo causalmente
umas com as outras; mas tal percepção reflete apenas o fato de
que nossa experiência torna-se possível através de conceitos que,
38 Cf. também 631; “a separação da ‘ação’ do ‘agente’, (...) do processo de algo que não
é processo, mas uma substância que permanece, coisas, corpo, alma, etc. – a tentativa
de compreender um evento como uma espécie de mudança e lugar – modificação a
partir de um ‘ser’, de algo constante: essa antiga mitologia estabeleceu a crença em
‘causa e efeito’, depois de ter encontrado uma forma firme nas funções da linguagem
e da gramática”.
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Han-Pile, B.
eles mesmos, resultam da reificação inconsciente de estruturas
gramaticais. Assim, “arranjamos um mundo em que podemos viver
– ao postular corpos (...), causas e efeitos, movimento e repouso,
forma e conteúdo: sem esses artigos de fé ninguém poderia manter-se na existência” (FW/GC 121, KSA 3.115). Dois pontos são dignos
de nota: primeiramente, como acima, a naturalização das categorias
não leva per se à conclusão de que nosso conhecimento é errôneo,
mas apenas que sua natureza e propósito são dependentes das espécies de condições linguísticas que o determinam. O fato de só
podermos perceber as coisas interagindo causalmente entre si não
significa per se que nossa percepção esteja errada: significa apenas
que ela depende de nosso uso da causalidade como categoria, que
ela mesma se deve à característica específica de nossa gramática.
Em segundo lugar, em muitas citações o que Nietzsche parece mais
objetar não é tanto nosso uso da gramática (e assim a existência de
características transcendentais), mas o fato de não estarmos cônscios das admissões e consequências da tal uso. Como veremos, isso
aponta para uma forma mais frutífera de interpretar a teoria do erro.
Ainda assim, não há dúvida de que a naturalização de Nietzsche
do transcendental o conduz a expressar um ceticismo a respeito do
conhecimento humano. Contudo, como foi acima indicado, nenhum
dos argumentos oferecidos leva per se à conclusão de que todo conhecimento é errôneo. Para a interpretação literal da teoria do erro
validar tal conclusão, duas premissas adicionais são necessárias,
quais sejam: a) que o mundo seja de outra forma daquela que o constituímos e b) que nosso conhecimento não consegue corresponder a
ele. Se isso pode dar bons resultados depende, em contrapartida, de
como a premissa a) é concebida, isto é, da natureza desse alegado
mundo falsificado: os próprios textos de Nietzsche conduzem a duas
interpretações possíveis – fenomenológica e ontológica. Antes de
apresentar minha própria conclusão da leitura não-literal da teoria
do erro, eu oferecerei agora uma breve reductio ad absurdum dessas
duas possibilidades, mostrando que nenhuma delas pode ser aceita
sem deixar Nietzsche comprometido com inconsistências grosseiras.
206
cadernos Nietzche 29, 2011
Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
A primeira candidata, a fenomenológica, é o que Nietzsche
chama de “confusão e caos das impressões sensíveis” (Nachlass/
FP 1887, 9[106], KSA 12.395-6): Assim, “há em nós um poder
de ordenar, simplificar, falsificar, distinguir artificialmente. ‘Verdade’ é a vontade de se assenhorar de uma multiplicidade de sensações” (Nachlass/FP 1887, 9[89]), KSA 12.38239. Como foi acima
indicado, a ideia é a de que só podemos perceber um mundo que
foi ordenado com objetos espaço-temporais, idênticos a si mesmos e relacionados causalmente. Esse “mundo de ‘fenômenos’ é
um mundo adaptado, que sentimos como real” (Nachlass/FP1887,
9[106], KSA 12.395-6). Mas tal realidade é uma mera ilusão. Em
contraste, “a antítese desse mundo não é o ‘mundo verdadeiro’, mas
o amorfo e informulável mundo do caos das sensações” (idem, grifos
meus). Essa interpretação da teoria do erro não repousa em assunções metafísicas sobre uma realidade independente da mente, a
qual nossa percepção não consegue conformar. Ela parece ser uma
nova versão da ideia já presente em “Verdade e mentira”, segundo
a qual o uso de conceitos é, per se, falsificador. Em “Verdade e
mentira”, a concepção era a de que os conceitos resultam da igualação das diferenças entre várias metáforas perceptuais, formadas
não-conceptualmente. Aqui Nietzsche oferece uma afirmação contrária: o uso a priori de conceitos simplifica o fluxo primitivo de
dados sensíveis rudimentares que subjaz à percepção sensível.
Talvez a melhor maneira de dar sentido a essa ideia é pensar nela
em termos husserlianos e sugerir que tal fluxo primitivo de impressões pode ser entendido como a “hyle” da percepção, os “conteúdos sensíveis” (HUSSERL 14, § 85), que são associados por meio
de sínteses temporais e espaciais (síntese passiva em Experiência
e juízo), e unidos ativamente em objetos intencionais por meio dos
atos “doadores de sentido” da mente. Contudo, na concepção de
39Tal leitura fenomenológica é evocada, por exemplo, por GRANIER 10, p. 137;
WILCOX 36, pp. 133, 149; e STACK 34, p. 35.
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Han-Pile, B.
Husserl, esses conteúdos sensíveis não são dados sensíveis no sentido de que eles não são objetos da consciência (isto requereria
uma função noética); além disso, eles nunca são dados por eles mesmos (já que, para Husserl, só nos apercebemos de um todo intencional). Eles são aspectos dependentes da experiência consciente,
dos quais só se pode aproximar retrospectivamente, através da introspecção e por meio de procedimentos técnicos como a epoché e
a redução transcendental. Contudo, tanto quanto podemos tentar,
tais procedimentos reflexivos só são capazes de nos dar acesso a
unidades sintéticas. Assim, mesmo que possam existir tais coisas
como uma camada hílica, ela não possui existência independente
e não pode ser descrita adequadamente, mas apenas evocada por
contraste com níveis intencionais superiores, de uma forma abstrata. As concepções de Nietzsche parecem próximas às de Husserl
no sentido de que, como já vimos, ele rejeita que possamos estar
conscientes de dados sensíveis brutos registrados de forma passiva
pela mente. Assim, “a experiência interior só entra na consciência
depois de ter encontrado uma linguagem que o indivíduo entende”
(Nachlass/FP 1888, 15[90], KSA 13.458-9). Como em Husserl, tal
processo possui camadas de níveis superiores: para nós experienciarmos alguma coisa, “ela tem de ser experimentada como adaptada, como ‘reconhecível’. A matéria dos sentidos [é] adaptada pelo
entendimento, reduzida a rudes contornos, feita similar” (Nachlass/
FP 1887, 9[106], KSA 12.395-6). Mas há também camadas inferiores, que parecem próximas da síntese passiva de homogeneidade
husserliana: “não haveria juízo algum se uma espécie de igualação
não fosse exercida no interior da sensação” (Nachlass/FP 1885,
40[15], KSA 11.634-5). Novamente, assim como em Husserl (e
presumivelmente pela mesma razão), tal camada primária é inacessível à consciência: é “uma outra espécie de mundo fenomênico,
uma espécie para nós ‘incognoscível’” (Nachlass/FP 1887, 9[106],
KSA 12.295-6). Contudo, se essa posição for correta, então é difícil
entender como a tese da falsificação pode se manter (e Husserl
certamente não deriva essa conclusão de seu estudo da percepção).
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
A razão disso é que presumivelmente algo só pode ser falsificado se
dele puder ser dito que existe independentemente e possui características intrínsecas identificáveis, que são posteriormente distorcidas de um tal modo que, em comparação como o original, podemos
apontar a falsificação. Contudo, nem do ponto de vista de Nietzsche
nem do de Husserl, camadas primárias da percepção existem por si
mesmas: além disso, devido à forma pela qual nossa mente opera,
seria impossível para nós saber como elas seriam, e portanto julgar
se e como elas teriam sido falsificadas.
O segundo candidato, ontológico, para aquilo que se alega ser
falsificado pelo conhecimento é o ‘mundo do vir-a-ser”40. Segundo
Nietzsche, esse mundo “não poderia, em sentido estrito, ser ‘compreendido’ ou ‘apreendido’ ou ‘conhecido’; somente à medida que
o intelecto que ‘compreende’ e ‘conhece’ encontra um mundo grosseiro, já criado, fabricado a partir de meras aparências, mas que se
torna firme na medida em que essa espécie de aparência preservou a vida, somente nessa medida há ‘conhecimento’” (XI, 36[23]).
Essa segunda versão da tese da falsificação tanto difere como complementa a anterior. Ela compartilha a ideia de que a experiência nos apresenta um mundo de idealidades, cuja estabilidade se
faz necessária para nossas necessidades práticas: assim, “nossas
necessidades fizeram nossos sentidos tão precisos que ‘o mesmo
mundo aparente’ sempre reaparece, adquirindo assim a aparência
de realidade” (Nachlass/FP 1887, 9[144], KSA 12.417-8). O novo
elemento é que, desta vez, o objeto de falsificação não é mais imanente à experiência, da maneira como o ‘caos das sensações’ parecia ser. O que é falsificado é um mundo independente da mente,
um mundo heraclitiano do fluxo perpétuo, que muda tão rapidamente que não pode ser dito de algo sequer que ele seja idêntico
40 Para leituras ontológicas do “mundo do vir-a-ser”, ver DANTO 7, pp.89, 96-97;
GRIMM 12, pp. 30-32; e MAGNUS 18, pp. 25, 169.
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a si mesmo41: “o caráter do mundo, contudo, é o caos por toda a eternidade” (FW/GC 109, KSA 3.969). Assim, a ideia agora é que há
uma incompatibilidade fundamental entre, de um lado, nosso aparato sensorial e conceptual, e, de outro, o mundo “real”. Assim, “a
lógica também depende de pressuposições que a nada corresponde
no mundo real, por exemplo a pressuposição de que existam coisas
idênticas, de que a mesma coisa é idêntica em diferentes pontos
do tempo”42 (MAI/HH I 11, KSA 2.31). O resultado dessa falsificação é um mundo imaginário de objetos espaço-temporais, causas
e efeitos, que nós erroneamente acreditamos ser real: “‘realidade’ é
sempre uma simplificação para fins práticos, ou um engano devido à
grosseria de nossos órgãos” (Nachlass/FP 1887, 9[62], KSA 12.3689). Contudo, o problema com essa leitura é que seu dualismo intrínseco (que contrasta o mundo das aparências estáveis com o mundo
“real” do vir-a-ser) parece repousar justamente na espécie de compromisso ontológico rejeitado por Nietzsche. É difícil ver como tal
mundo, que supostamente possui uma existência independente e só
pode aparecer para nós através da simplificação de nossas mentes, e
assim considerado, por definição, “incognoscível”, seja diferente da
coisa em si criticada por Nietzsche. Nessa interpretação, então, o último Nietzsche terminaria em uma posição pior do que seu eu mais
jovem, já que, na época de “Verdade e mentira”, ele evitou fazer
41 (Pode-se argumentar, em uma linha kantiana, que, em tal construto, seria impossível
para nós notar qualquer mudança, ou mesmo possuir o conceito de mudança).
42 Ver tamém: “sem uma constante falsificação do mundo por meio de número, o homem não poderia viver (JGB/BM 4, KSA 5.18), ou ainda: “a vontade de verdade
lógica só pode ser satisfeita depois de uma falsificação fundamental de todos os eventos” (Nachlass/FP XII, 9[89]). Alguns insights interessantes sobre as concepções de
Nietzsche sobre a lógica podem ser encontrados em Hales & Welshon 13, p.43. Os
autores argumentam que, enquanto a lógica sintática, que fornece as regras para a
manipulação de operadores, conectores, quantificados, etc. do sistema formal, não
precisa de tais pressuposições, a lógica semântica, que especifica domínios de entidades, precisa delas. Assim, “para que os símbolos e as fórmulas da lógica possam
ter algum sentido ou aplicabilidade, deve haver um conjunto de coisas a que eles se
referem” (HALES & WELSHON 13, p.43).
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
qualquer admissão sobre a natureza do “misterioso X”, e assinalou, contra Schopenhauer, que nenhum dos conceitos ou categorias
utilizados na estrutura da experiência empírica pode ser aplicado
a ele. Contudo, se o mundo “real” for identificado com o mundo
do vir-a-ser (isto é, um conceito de origem empírica), Nietzsche
estaria incorrendo nesses dois erros, o que parece estranho, dado o
cuidado que ele tomou de se afastar das admissões ontológicas do
idealismo transcendental. A única maneira de sair desse dilema
é afastar-se de compromissos ontológicos e entender o mundo do
vir-a-ser como um mundo empírico independente da mente. Assim,
Cox afirma que o mundo do vir-a-ser é “o mundo em que habitamos
e que conhecemos: o mundo natural, físico, o mundo da ‘aparência’” (COX 6, p.184). Ele assevera que esse mundo é “evidente empiricamente” (idem, p.188), que é o “mundo físico, natural em que
habitamos e com que nos familiarizamos” (idem, p.193) e que deve
ser entendido com referência a Heráclito. Contudo, essa opção parece muito contra-intuitiva, para não dizer implausível: poder-se-ia
dizer que o propósito das afirmações de Nietzsche sobre como o
mundo do vir-a-ser é caótico e incompreensível é revelar o fato de
que nada é “evidente empiricamente” ou familiar em relação a ele.
O que é evidente empiricamente é justamente o seu oposto, isto é, o
mundo de objetos estáveis que encontramos na experiência, o qual
Nietzsche contrasta com o mundo “real”.
IV
Assim, a leitura literal da teoria do erro, seja construída fenomenologicamente ou ontologicamente, encontra dificuldades insuperáveis. Contudo, alguma coisa talvez pode ser obtida dessa falha:
pode ser um indicativo de que o problema, nesse caso, repousa na
própria literalidade. Eu me voltarei, portanto, para uma reconstrução não-literal, que, devo apressar-me em dizer, é proposta apenas
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como uma tentativa de resposta: a incompatibilidade de algumas
passagens citadas afasta a possibilidade de uma solução unívoca
para o dilema epistemológico resultante da teoria do erro. Minha
hipótese é a de que o alvo real do ceticismo de Nietzsche sobre o
conhecimento pode não ser tanto a possibilidade da objetividade
limitada resultante do uso de condições perspectivas, mas duas
formas de ilusão: de um lado, nossa inclinação, motivada pelo impulso de sobrevivência, a ignorar que nossa experiência é determinada por características transcendentais, o que resulta ou em
um realismo metafísico ou em um realismo empírico ingênuo; de
outro lado, a tendência de alguns filósofos (em particular Kant) de
tomar o que são meras características em restrições, e pensar que
conhecimento universal e necessário seja possível, quando de fato
apenas formas relativas de objetividade são legítimas. Para usar o
vocabulário das citações acima, o problema não pode ser tanto o
fato de possuirmos uma gramática, ou com o mundo que experienciamos de acordo com ela, mas com nossa falta de consciência de
tal gramática e nossa “fé” cega na realidade independente da mente
de entidades que nos cercam e que nós, instintivamente, “sentimos
como reais” (Nachlass/FP 1887, 9[106], 12.395-6). Nesse caso,
não devemos ler o “mundo do vir-a-ser” literalmente, como uma
expressão que descreve o verdadeiro estado do mundo, mas metaforicamente, como assinalando um objeto irrepresentável. A função
desse objeto não seria servir como um referente problemático para
a tese da falsificação, mas para fazer que reflitamos tanto sobre as
obras de nossas próprias mentes e quanto sobre nossas admissões
sobre o mundo empírico: a irrepresentabilidade do “mundo do vir-a-ser” direciona nossa atenção (a contrario) para o fato de que
tanto a percepção quanto os objetos percebidos são estruturados
por algumas características transcendentais naturalizadas, sem as
quais nenhuma representação é possível. Apontando os limites da
representação humana, ele permite que suas condições estruturais
emerjam para a reflexão.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
Essa sugestão tem a vantagem de minimizar o problema de autorreferência e de combinar as principais linhas do pensamento
de Nietzsche, previamente identificadas: seu endossamento qualificado da determinação transcendental, sua naturalização das
restrições transcendentais em características transcendentais, e
seu agnosticismo em relação a compromissos ontológicos. Isso é
claramente compatível com formulações mitigadas da teoria do
erro e ajuda a lhes dar sentido; quanto às formulações mais fortes, elas podem ser vistas, de modo mais frutífero, como um recurso retórico deliberadamente hiperbólico para dar sinal de que o
que é problemático não é tanto a existência de tais características
transcendentais (elas são, no final das contas, apenas expressão
de nossa finitude), mas o fato de que temos uma tendência natural
a não ser cônscios de sua existência. Tendemos a nos comportar
ou como realistas metafísicos, isto é, como se nosso conhecimento
fosse incondicionado e tivéssemos acesso direto à coisa em si, ou
realistas ingênuos do senso comum, isto é, como se pudéssemos
encontrar objetos preexistentes, independentes da mente, sem perceber que há uma concordância a priori (no sentido revisado de
Nietzsche) entre a estrutura desses objetos e as condições sob as
quais os conhecemos, e que portanto esses objetos são constituídos,
não achados. Em outras palavras, o alvo real da teoria do erro não
seria a própria possibilidade de um conhecimento (limitado), mas
uma certa ingenuidade a respeito de seu propósito e objetos. Essa
advertência é expressa claramente na seguinte passagem: “nosso
conhecimento não é conhecimento em si (...). São nossas leis que
projetamos no mundo – mesmo que a aparência ensine o contrário e pareça apontar para nós como consequências desse mundo, e
apontar para essas leis em sua relação conosco” (Nachlass/FP 1881,
15[9], KSA 9.636-7. Grifos meus). Em virtude da inelutabilidade
e da força do “ensinamento das aparências”, precisamos da formulação forte da teoria do erro para nos ajudar a resistir a nossa
tendência natural de acreditar tanto na preexistência quanto na
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independência do mundo empírico (do qual parecemos ser “consequências”) e suas leis. A esse respeito, devemos tomar cuidado
não tanto com o caráter condicional de nosso conhecimento, mas
com nossa ignorância do “poder lógico-poético” do qual ele resulta
e “em virtude do qual nós permanecemos vivos” (idem): “somos
nós que inventamos causa, sucessão (...) e quando projetamos e
misturamos esse mundo simbólico nas coisas, como se ele existisse
‘em si’, agimos como sempre o fizemos – mitologicamente” (JGB/
BM 21, KSA 5.35-6). Na leitura que sugiro, a teoria do erro indica
que o problema não é tanto a projeção, já que ela é constitutiva da
forma pela qual a experiência humana se realiza, mas nossa falta
de consciência de nossa própria atividade, e nossa crença correspondente na existência independente daquilo que projetamos.
Se isso estiver correto, então torna-se possível interpretar as
concepções de Nietzsche sobre o conhecimento de uma forma que
elas não venham a solapar a si mesmas, mas que, ao contrário,
revelem dois aspectos interessantes: primeiro, a imbricação de aspectos naturalistas e transcendentais na sua consideração sobre a
formação da experiência humana, que culmina com sua noção de
condição a priori naturalizada (características transcendentais) e
torna impossível (tanto contra Green, de um lado, quanto Clark,
Cox e Leiter, de outro) defini-lo como um filósofo transcendental
ou naturalista. Nisso Nietzsche antecipa filósofos continentais
posteriores, como Foucault, que compartilha tanto suas admissões
anti-empiristas sobre a constituição da experiência quanto seu
ceticismo sobre a possibilidade de verdadeiras restrições necessárias, universais a priori. A noção foucaultiana de um a priori histórico, enraizado nas práticas históricas contingentes, e contudo
delas distinto, apresenta uma ambiguidade (e interesse) similar à
própria naturalização de Nietzsche do transcendental, na medida
em que a necessidade e o propósito desse a priori dependem de
práticas às quais ele não é redutível, e essas práticas pressupõem
a existência dele para serem inteligíveis. O segundo aspecto reside na dimensão altamente crítica do pensamento de Nietzsche,
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
que se manifesta em dois níveis distintos: falando ontologicamente,
através da rejeição da versão forte, dualista, do idealismo transcendental, endossada anteriormente, em favor de uma ontologia
minimalista, perspectivista, segundo a qual não faz sentido falar
de coisas em si, muito menos lhes atribuir uma essência autossubsistente. De tudo isso pode ser dito que, caso nossas próprias condições perspectivas sejam colocadas entre parênteses, é possível
que outros apliquem as suas, a partir das quais mundos diferentes,
incomensuráveis, seriam constituídos. Mas o que eles aplicam não
poderia ser definido independentemente dessas outras perspectivas, e assim não se poderia dizer que haja alguma essência em si: a
realidade é inteiramente perspectiva. Além disso, sendo essa possibilidade reconhecida, deve-se ser mais cauteloso que o próprio
Kant foi e permanecer agnóstico em relação à existência efetiva de
tais condições e mundos. Em termos kantianos, o impacto crítico
do pensamento de Nietzsche aqui é que o estatuto dos compromissos ontológicos do idealismo transcendental deve ser considerado
como problemático, e não assertórico (muito menos apodítico). Falando epistemologicamente, essa dimensão crítica é expressa pelo
papel desempenhado por sua chamada teoria do erro. Como vimos,
parte do objetivo de sua naturalização do transcendental é enfatizar
o fato de que condições a priori não possuem qualquer validação racional, mas são acarretadas por práticas que são necessárias para a
sobrevivência de nossa espécie. Assim, para preservar e desenvolver suas vidas, os seres humanos têm de acreditar na existência de
um mundo ordenado, relativamente estável, de entidades independentes da mente, com que eles podem interagir causalmente, e no
qual eles possam agir e obter resultados com um grau suficiente de
capacidade preditiva. Do mesmo modo, tendemos instintivamente
a conceber o conhecimento como a identificação não-perspectiva
de propriedades de tais entidades preexistentes. Nesse pano de
fundo, argumentei que a função da teoria do erro não é sugerir que
há algo errado com a percepção, ou que o mundo percebido é fictício, mas nos atentar para a dependência de ambos para com as
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condições transcendentais naturalizadas. Não é tanto uma teoria do
erro stricto sensu, mas uma advertência hiperbólica contra formas
acríticas de realismo. Ela não é direcionada contra a possibilidade
de um enunciado ser verdadeiro no interior de condições perspectivas, mas sim contra um conjunto de crenças implícitas: de que não
há tais condições (realismo ingênuo), ou de que nossos enunciados
podem ser verdadeiros em todas as perspectivas possíveis (o que requereria a existência de restrições transcendentais universais), ou,
pior, extraperspectivos (em virtude da correspondência metafísica).
Assim, a teoria do erro pretende contrabalançar nossa tendência
programada a ser realistas ingênuos a respeito de mundo e do conhecimento43. Enquanto essa tendência não puder ser erradicada
(precisamente por causa da espécie de razões naturalísticas apontadas anteriormente), é possível limitar seus efeitos de duas formas:
de um lado, expondo-a, embora, ao fazer isso, tenha-se de lutar
constantemente com nossa natureza – por isso o caráter deliberadamente hiperbólico da teoria do erro. De outro lado, atrelando os
próprios enunciados de alguém às suas condições de possibilidade
(por isso a ênfase constante de Nietzsche no aspecto perspectivo
43 Assim, isso é pensado para evitar que adotemos precisamente essa espécie de “realismo do senso comum”, advogado tanto por Clark quanto por Leiter. Nesse aspecto,
o intuito do argumento de Nietzsche é sugerir que tal realismo está distante de
estar isento de admissões metafísicas sobre a natureza da realidade. Ele repousa
implicitamente na afirmação de que objetos empíricos são independentes da mente
e possuem propriedades intrínsecas que podem ser definidas independentemente
da forma pela qual as acessamos. O comentário de Leiter da conhecida passagem
sobre o perspectivismo em GM/GM III 12, KSA 5.363-5 é ilustrativo dessa crença:
“consideremos uma analogia útil. Se quiséssemos o conhecimento de uma determinada área geográfica fazendo um mapa dela, o tipo de mapa que faríamos seria
necessariamente determinado por nossos interesses (...). O mapa correspondente a
cada conjunto de interesses nos daria um conhecimento genuíno da área, e quando
mais interesses incorporados ao mapa, mais conheceríamos a área” (LEITER 16,
pp. 273-4). A coisa mais patente nessa analogia é que ela pressupõe que a área a
ser cartografada por vários mapas perspetivos (isto é, o real) preexiste e independe
do próprio cartografar, o que é exatamente a espécie de crença ingênua de que
Nietzsche nos adverte por meio da teoria do erro.
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Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche
de suas afirmações). Assim, o que torna as concepções de Nietzsche sobre o conhecimento particularmente interessantes, em minha
opinião, é que, enquanto elas são claramente muito influenciadas
por preocupações tanto transcendentais quanto naturalistas, elas
apresentam uma posição que tende a superar a oposição entre as
duas tendências, quando aproveita um dos insights mais valiosos
do legado kantiano, qual seja, o seu espírito crítico.
Abstract: Nietzsche’s views on knowledge have been interpreted
in at least three incompatible ways – as transcendental, naturalistic or proto-deconstructionist. While the first two share a commitment to the possibility of objective truth, the third reading
denies this by highlighting Nietzsche’s claims about the necessarily falsifying character of human knowledge (his so-called error theory). This paper examines the ways in which his work can
be construed as seeking ways of overcoming the strict opposition
between naturalism and transcendental philosophy whilst fully
taking into account the error theory (interpreted non-literally, as a
hyperbolic warning against uncritical forms of realism). In doing
so, it clarifies the nature of Nietzsche’s ontological commitments,
both in the early and the later work, and shows that his relation to
transcendental idealism is more subtle than is allowed by naturalistic interpreters while conversely accounting for the impossibility of conceiving the conditions of the possibility of knowledge
as genuinely a priori.
Keywords: transcendental philosophy – naturalism – ontology
- epistemology
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Artigo recebido em 13/05/2011.
Artigo aceito para publicação em 05/06/2011.
220
cadernos Nietzche 29, 2011
Do idealismo transcendental ao naturalismo
Do idealismo transcendental
ao naturalismo: um salto
ontológico no tempo a partir
de uma fenomenologia
da representação
William Mattioli*
Resumo: O presente artigo oferece uma interpretação da noção de tempo
em Nietzsche, a partir de um diálogo com a tradição transcendental,
que vê o naturalismo presente sobretudo em sua obra intermediária e
madura como uma forma moderada de realismo científico fundada no
seu abandono da tese kantiana da idealidade transcendental do tempo.
Assim, diferentemente de uma interpretação puramente fenomenológica
da tese do vir-a-ser, que o considera somente no sentido de um “caos das
sensações”, e em oposição a uma interpretação meramente metafórica do
mesmo, pretendemos mostrar que há em Nietzsche uma aposta ontológica
efetiva em um mundo do vir-a-ser. Um dos pontos centrais deste trabalho
será, nesse sentido, tentar justificar essa aposta ontológica a partir de
uma análise da compreensão nietzschiana da temporalidade.
Palavras-chave: tempo – devir – idealismo – realismo – ontologia
* Mestre em filosofia pelas universidades Carolina de Praga, Université de Toulouse
le Mirail e Bergische Universität Wuppertal, no quadro do programa Master-Mundus
EuroPhilosophie: Philosophies allemande et française dans l’espace européen/
Deutsche und französische Philosophie in Europa. E-mail: mattioli_filosofia@yahoo.
com.br.
cadernos Nietzche 29, 2011
221
Mattioli, W.
1. O transcendentalismo naturalizado e seus paradoxos
Em seu artigo “From Kantian Temporality to Nietzschean Naturalism”, Kevin Hill sugere que o naturalismo de Nietzsche pode
ser mais bem compreendido se o considerarmos como uma tese
acerca da natureza do espaço e do tempo, um problema herdado
da tradição transcendental de Kant e Schopenhauer (Hill 8, p. 75).
Como o título de seu artigo já permite entrever, é sobretudo a partir
de uma análise do tempo que, segundo o autor, devemos situar o
naturalismo de Nietzsche – neste caso, do Nietzsche maduro – em
um tipo de realismo científico. Ao que tudo indica, o jovem Nietzsche, sobretudo em “Verdade e mentira” e em alguns fragmentos
da mesma época, influenciado pela filosofia de Schopenhauer e
ainda cúmplice de seu idealismo transcendental, compreende o
problema em questão a partir da tese, presente na estética transcendental kantiana, da idealidade do tempo e do espaço. Estes são
considerados como formas a priori, porém não puras em sentido
kantiano, mas como condições de possibilidade psicofisiológicas,
que poderiam ser analisadas e estudadas empiricamente1. Trata-se,
portanto, de uma perspectiva transcendental naturalizada, o que
testemunha sua adesão às teses de caráter naturalista e fisiologista
de Lange, mas também, em certo sentido, de Schopenhauer.
No que concerne o caso particular de Schopenhauer, entretanto,
nos deparamos com um paradoxo para o qual o jovem Nietzsche já
havia chamado atenção2 e que concerne o estatuto ou a legitimidade
de sua naturalização do transcendental. Schopenhauer defende a
tese de caráter naturalista/evolucionista segundo a qual as funções
epistêmicas do sujeito (transcendental) devem ser reconduzidas
às funções orgânicas do cérebro. Ou seja, ele concebe o intelecto
1 Cf. a esse respeito HAN-PILE 7, p. 140-141.
2 Ver o fragmento do outono de 1867 / início de 1868 intitulado Sobre Schopenhauer em
KGW II 4, pp. 418-427.
222
cadernos Nietzche 29, 2011
Do idealismo transcendental ao naturalismo
como uma função do cérebro, inserindo-o no desenvolvimento do
orgânico segundo etapas de objetivação da Vontade. Esta, aparecendo como natureza, se serviria de seus meios para criar formas
cada vez mais complexas no interior do mundo orgânico até atingir
o grau mais alto de complexidade, que corresponderia ao intelecto
humano e à consciência. Essa tese concernente às etapas de objetivação da Vontade pressupõe, portanto, que a individuação e suas
formas: tempo, espaço e causalidade, já estejam presentes antes
do surgimento do intelecto, já que sem elas não é possível pensar
qualquer forma de desenvolvimento e evolução do orgânico. Porém,
Schopenhauer mantém a tese kantiana da idealidade transcendental do tempo, espaço e da causalidade como formas da individuação, o que significa que é preciso haver primeiro um intelecto que
perceba o mundo segundo essas formas e que, portanto, estabeleça
a individuação, para que o mundo como representação que conhecemos tenha origem, uma vez que a Vontade, enquanto coisa em si,
é absolutamente livre das formas do fenômeno. Nietzsche observa a
esse respeito: “Em uma tal concepção, um mundo fenomênico é colocado antes do mundo fenomênico: caso queiramos manter os termos schopenhaurianos acerca da coisa em si. Já anteriormente ao
aparecimento do intelecto vemos o principium individiationis, a lei
da causalidade, em plena atividade” (Nachlass/FP KGW II 4.425).
Como observa Kevin Hill (HILL 8, p. 75), este paradoxo nos
deixa com duas opções: ou abandonamos a identificação feita por
Schopenhauer entre o intelecto e o cérebro, e recaímos na concepção kantiana do transcendental que localiza o intelecto numa
esfera atemporal fora da natureza, ou preservamos a naturalização
do intelecto e somos obrigados a abandonar a tese transcendental segundo a qual as formas da individuação dele dependem, já
que o mundo orgânico anterior ao seu surgimento já as pressupõe.
O jovem Nietzsche parece lidar com esse problema inicialmente
através da hipótese de um intelecto originário que é em certa medida identificado com o uno primordial e com a Vontade (Nachlass/
FP 1870, 5[79], KSA 7.111 e 5[81], KSA 7.114-5). Segundo essa
cadernos Nietzche 29, 2011
223
Mattioli, W.
hipótese, as formas do tempo e do espaço pertenceriam não ao intelecto humano, mas a um intelecto primordial, uma espécie de
princípio originário de ordenação da natureza. Como já foi mencionado, porém, em “Verdade e mentira” Nietzsche sustenta a tese de
que tempo e espaço são formas antropomórficas que produzimos
em nós e projetamos no mundo exterior concedendo-lhe a forma segundo a qual o percebemos (WL/VM, KSA 1.885-886.). Nesse sentido, essas formas seriam dependentes do sujeito e constitutivas da
experiência num sentido transcendental e crítico, e não no sentido
metafísico implícito na hipótese de um suposto intelecto originário.
Com efeito, tal hipótese possui um teor por demais metafísico
que é totalmente estranho ao caráter cético de “Verdade e mentira”. Através dessa hipótese, que é apresentada em alguns fragmentos de 1870/71, Nietzsche parece ensaiar uma solução para
o problema no interior de um vocabulário ainda coerente com a
metafísica de Schopenhauer. Contudo, uma vez que o ensaio de
1873 desenvolve um modelo muito mais próximo de um ceticismo
fenomenista e de um transcendentalismo naturalizado sem comprometimentos ontológicos fortes, esse vocabulário metafísico não
poderia encontrar ali nenhum espaço.
Mas há aqui um problema. Mesmo que aceitemos que as teses
de Nietzsche em “Verdade e mentira” acerca da gênese das representações não implicam nenhum comprometimento ontológico
forte3, a motivação naturalista/evolucionista ali presente pressupõe
o conceito de uma natureza estruturada de tal forma que torne possível o surgimento de um intelecto como fruto de um processo de
desenvolvimento orgânico. Ou seja, o naturalismo implícito nesse
texto, na medida em que localiza o intelecto no interior de uma
3 Ver a esse respeito o interessante comentário de Han-Pile neste volume (HANPILE 7, p. 144) acerca de duas teses básicas presentes neste ensaio: uma de caráter
mais fenomenista e focada na análise da gênese das representações, e outra mais
carregada metafisicamente, que confronta nossas representações com a idéia de um
“em-si” das coisas.
224
cadernos Nietzche 29, 2011
Do idealismo transcendental ao naturalismo
natureza compreendida a partir de uma perspectiva darwinista,
sendo ao mesmo tempo conciliado com a tese da idealidade transcendental do tempo e do espaço, é marcado pela mesma contradição
em razão da qual Nietzsche havia criticado o conceito schopenhauriano de Vontade poucos anos antes. Se tempo e espaço são formas
subjetivas (antropomórficas), cuja origem depende de nossa configuração orgânica, fica difícil de entender como essa configuração
orgânica pôde ter se originado no interior de uma natureza na qual
não há espaço ou tempo. O próprio conceito de uma natureza sem
tempo ou espaço nos parece contraditório, assim como a noção de
que algo possa surgir ou se originar numa dimensão atemporal.
A solução apresentada por Kevin Hill para este problema consiste em afirmar que, segundo Nietzsche, “há duas naturezas distintas: a natureza que é o objeto da ciência natural e a natureza
que contém o cérebro, a natureza como ela parece ser a natureza
como ela é.” (HILL 8, p. 76) A natureza “como ela é”, ou seja, a
natureza “em si”, já seria estruturada espaço-temporalmente, e é
nela que ocorreria todo desenvolvimento do orgânico que precederia e possibilitaria o surgimento do intelecto. Porém, a estrutura espaço-temporal dessa natureza em si, na qual nós e nossos cérebros
estaríamos imersos, nos seria totalmente desconhecida. Apenas a
estrutura espaço-temporal que representamo-nos a partir de nossas
formas subjetivas poderia ser conhecida e, nesse sentido, é a ela
que nossas teorias científicas se refeririam.
Entretanto, essa distinção entre duas naturezas estruturadas
espaço-temporalmente, uma como fenômeno, outra como coisa em
si, não é em nenhum momento formulada no texto. É de fato estranho que esse problema não seja explicitamente tratado por Nietzsche neste ensaio, já que ele havia sido um dos pontos centrais de
sua crítica à Schopenhauer. O próprio Schopenhauer, por sua vez,
estava consciente do caráter problemático de sua análise bilateral do intelecto. Ele o considera, por um lado, a partir de dentro,
isto é, de uma perspectiva subjetiva; por outro, porém, a partir de
fora, isto é, de uma perspectiva objetiva. Essas duas perspectivas
cadernos Nietzche 29, 2011
225
Mattioli, W.
correspondem respectivamente às considerações transcendental-idealista e empírico-materialista4 , e a antinomia epistêmica que
daí se segue é apresentada por Schopenhauer da seguinte maneira:
Assim, por um lado, vemos necessariamente a existência do mundo inteiro dependente do primeiro ente cognoscente […]; por outro
lado, vemos de forma igualmente necessária esse primeiro animal
cognoscente totalmente dependente de uma longa cadeia de causas e efeitos que o precede e na qual ele surge como um membro
diminuto. Poderíamos contudo designar esses dois aspectos contraditórios, aos quais somos de fato conduzidos com igual necessidade, como uma antinomia na nossa faculdade de conhecimento
(SCHOPENHAUER 21, p. 76 – tradução modificada).
Schopenhauer parece querer dissolver esse paradoxo reforçando a tese de que “tempo, espaço e causalidade não pertencem
à coisa em si, mas somente ao fenômeno” (idem.). Ao reforçar essa
tese, porém, apenas reforçamos a própria antinomia, uma vez que
o primeiro ente cognoscente, que deve pela primeira vez fazer surgir o mundo fenomênico e com ele suas formas, já é de antemão
“totalmente dependente de uma longa cadeia de causas e efeitos
que o precede”.
Qual poderia ter sido a posição de Nietzsche com relação a
esse problema em “Verdade e mentira”? Podemos ensaiar uma
resposta a essa pergunta através de uma contraposição de suas
posições com a posição de Schopenhauer. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para o fato de que, no que concerne à
naturalização do transcendental e à recondução do idealismo a um
tipo de fenomenismo, Nietzsche parece se situar muito mais ao
lado de Lange do que de Schopenhauer.
4 Ver a esse respeito KALB 9, p. 61-68.
226
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
Em Schopenhauer, a tese acerca do desenvolvimento do orgânico na natureza possui um estatuto claramente metafísico. Ela se
funda na idéia de uma gradação nos fenômenos da Vontade e depende, portanto, de uma concepção positiva da coisa em si. Dentre
as caracterizações que encontramos nessa concepção positiva está
a definição (kantiana) segundo a qual a coisa em si é necessariamente livre das formas do mundo fenomênico. Há aqui claramente
um compromisso ontológico forte.
Em Nietzsche, temos um outro modelo. “Verdade e mentira”
é um ensaio de princípio cético inspirado em teses naturalistas,
isto é, sua linha central de argumentação é sustentada por uma
concepção científica (evolucionista) segundo a qual o homem e
seu intelecto, assim como qualquer outro animal, são partes pertencentes a um todo natural em movimento, podendo ser examinados de um ponto de vista essencialmente empírico (fisiológico).
Nesse sentido, a consciência e o intelecto são apenas meios para a
conservação do indivíduo. De fato, até aqui, não parece haver muitas diferenças entre as posições de Nietzsche e de Schopenhauer.
Porém, para Nietzsche, em virtude do caráter instrumental do intelecto, não podemos fazer nenhuma afirmação epistemicamente
justificada acerca da coisa em si. Além disso, ao que tudo indica,
Nietzsche parece ser mais conivente com uma descrição empírico-materialista (isto é, fisiológica) do que com uma consideração
transcendental-idealista do sujeito (apesar de haver claros aspectos transcendentais em sua adaptação da tese do apriorismo das
formas da intuição). Como já foi indicado, trata-se de um transcendentalismo naturalizado e, nesse sentido, mitigado. Traduzido em
uma forma de darwinismo e na terminologia naturalista de Lange,
o a priori é esvaziado de sua necessidade e universalidade e trazido ao plano fisiológico da evolução dos organismos. O mundo
como representação se torna assim, para utilizar uma expressão de
Lange, produto de nossa organização.
Enquanto tal, porém, o mundo como representação, isto é, o
mundo que é objeto das ciências naturais, se mostra como resultado
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Mattioli, W.
do funcionamento daquelas estruturas fisiológicas a priori, isto é,
se mostra, no fim das contas, como algo “ideal”. E aqui nos deparamos com o aparentemente inevitável ponto de conversão do materialismo em idealismo, ou de uma consideração materialista em
uma consideração idealista. Esta pode ser uma das razões fundamentais que levaram Nietzsche a considerar nossas representações
do tempo e do espaço como formas pertencentes ao sujeito, as quais
não poderiam ser atribuídas de forma consequente às coisas em
si. A utilização que Nietzsche faz do conceito de coisa em si neste
ensaio parece, portanto, estar essencialmente associada à necessidade inerente à posição transcendental de estabelecer um limite à
aplicação de nossas formas cognitivas, limite que só pode ser estabelecido através do conceito (-limite) de coisa em si. Ao tomarmos
consciência de que os órgãos visíveis que são objeto da fisiologia,
assim como as estruturas orgânicas em desenvolvimento na natureza em geral, que constituem o objeto da biologia, e as leis mecânicas que subjazem a todas essas estruturas e que são explicadas pela
física, são resultados de nossa organização mental (psicofísica),
estamos imediatamente no terreno do idealismo. Lange apresenta
essa reviravolta do materialismo ao idealismo como se segue:
O que é um corpo? O que é a matéria? O que é o físico? […] a
fisiologia de hoje, assim como a filosofia, deve nos dar a seguinte a
resposta a essas questões: que isso tudo são apenas nossas representações; representações necessárias, representações resultantes
de leis naturais, mas ainda assim elas não são coisas em si mesmas.
A consideração materialista consequente se converte assim
imediatamente em uma consideração idealista consequente. […]
Obviamente resta investigar, nesse caso, em que medida é provável que o mundo dos fenômenos seja tão diferente assim do mundo
das coisas que o produzem, como quis Kant ao ver espaço e tempo
como meras formas humanas da intuição, ou se estamos autorizados a pensar que ao menos a matéria com seu movimento seja o
fundamento objetivamente existente de todos outros fenômenos,
228
cadernos Nietzche 29, 2011
Do idealismo transcendental ao naturalismo
por mais que esses fenômenos possam diferir das verdadeiras formas as coisas (LANGE 11, p. 496-497).
Nada nos impede de supor que o que está na base do naturalismo de Nietzsche em “Verdade e mentira” seja um pensamento
desse gênero. Isto é, sua tese naturalista e a concepção a ela relacionada de uma natureza “em si” estruturada espaço-temporalmente parecem estar associadas a uma espécie de princípio
probabilístico5, e não se funda em uma teoria metafísica sobre a
coisa em si, como é o caso de Schopenhauer. Nesse sentido, a posição de Nietzsche seria muito mais fenomenista. De acordo com
Rogério Lopes, ela estaria baseada, seguindo uma forte influência
de Lange, numa “compreensão fenomenista, ficcionalista e falibilista das ciências naturais e históricas, que detêm entretanto os
melhores métodos para descrever da forma mais exaustiva e econômica possível as regularidades do mundo fenomênico” (LOPES 13,
p. 164). Poderíamos dizer, portanto, que, diferentemente de Schopenhauer (e de Kant), o jovem Nietzsche não nega a possibilidade
de que o mundo, independentemente das faculdades cognitivas de
seres percipientes, possa ser estruturado espaço-temporalmente.
5 Uma outra passagem da obra de Lange que concerne a esta problemática e que pode
ter exercido um papel importante nas considerações de Nietzsche a esse respeito é
a seguinte: “Os conhecimentos a priori, longe de serem revelações absolutamente
objetivas do mundo das coisas reais, são verdadeiras quimeras na medida em que
atribui-se a eles, para além da experiência, a mesma validade incondicional que eles
possuem no interior da experiência; nada nos impede porém de supor que seu terreno
estenda-se além dos limites de nossas representações. A realidade transcendente
do espaço e do tempo talvez possa, portanto, ser elevada a um alto grau de probabilidade.” (LANGE 11, p. 254) O ponto central do argumento em questão consiste em
mostrar que Kant, injustamente, não concedeu a possibilidade de que o mundo seja
efetivamente como ele nos aparece. Nietzsche apresenta esse argumento em “Verdade
e mentira” (cf. WL/VM, KSA 1.880) e num fragmento da mesma época, onde ele
escreve: “Contra Kant pode-se ainda objetar que, concedidas todas suas proposições,
ainda assim resta a possibilidade de que o mundo seja assim como ele nos aparece”
(Nachlass/FP 1872-3,19[125], KSA 7.459).
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229
Mattioli, W.
Neste “poder ser estruturado de tal forma” se basearia então aquela
compreensão científica falibilista acerca da origem do intelecto,
uma vez que os métodos e modelos científicos se mostram epistemicamente mais dignos de ocupar o lugar de modelos explicativos
do que as suposições metafísicas.
Pode-se notar, contudo, já nos textos de juventude, uma tentativa de Nietzsche de romper de forma ainda mais consistente com as
teses da estética transcendental, particularmente com a tese da idealidade transcendental do tempo. Ou seja, a posição que acabamos
de apresentar como uma compreensão probabilística acerca da possibilidade de uma natureza “em si” estruturada espaço-temporalmente parece se converter numa aposta ontológica mais robusta que
sustenta a existência objetiva do tempo e serve de base para uma
teoria realista do devir. Esta aposta ontológica no devir, por sua vez,
parece ser o que motivou nosso filósofo a uma teoria do erro ainda
mais radical que o ceticismo presente em “Verdade e mentira”.
2. O devir e a teoria do erro
Não parece haver consenso entre os comentadores sobre o estatuto da teoria do erro de Nietzsche, assim como de sua teoria do
devir. De modo geral, porém, podemos dizer que a aposta ontológica que parece estar envolvida nessas teses implica que o caráter
essencial do mundo e da vida é a mudança constante. Segundo
essa posição, a realidade é um fluxo absoluto que não comporta
nenhuma tipo de fixidez, permanência ou repouso. Identificada por
Nietzsche à tese de Heráclito, essa teoria sustenta que o que instaura fixidez no devir são as categorias do pensamento, o qual, por
sua vez, só é possível por meio de um princípio que age normativamente sobre todo conteúdo cognitivo fixando-o como identidade
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cadernos Nietzche 29, 2011
Do idealismo transcendental ao naturalismo
e unidade6. Isso significa que, para que possa haver pensamento
e consciência, é necessário que uma ficção de permanência seja
instaurada no devir, tornando possível o surgimento da noção fundamental de “sujeito”, da qual resultariam então nossos conceitos de “coisa”, “ser”, assim como as leis lógicas e os números.
Segundo Nietzsche, é preciso que criemos descontinuidades no
fluxo para que possamos perceber objetos, substâncias, relações
causais; é preciso que sejamos capazes de reconhecer o mesmo
frente ao não-idêntico, de abstrair da particularidade, da pluralidade e da mudança para identificarmos fenômenos e nos acomodarmos ao mundo, tornando assim nossa sobrevivência possível7.
Eis aqui uma exigência de conservação da vida8. Nesse sentido,
o pensamento e a consciência, com suas categorias cognitivas, ao
fixar necessariamente como identidade aquilo que em verdade
está em constante fluxo, seria uma falsificação do real. Assim
6 Este princípio é o princípio de identidade, o qual, segundo Nietzsche, corresponde ao
nosso conceito de Ser e à noção de incondicionado. Essa tese é tomada emprestada
de Afrikan Spir (cf. por exemplo SPIR 23, p. 198-199 e pp. 330-337). Spir propõe
uma releitura da filosofia crítica que considera como único elemento realmente a
priori do pensamento, no sentido transcendental, o princípio lógico da identidade.
Ele seria o princípio de base de organização da experiência, a partir do qual seríamos capazes de estabelecer e identificar objetos empíricos estáveis, compreendidos como substâncias, a partir dos dados sempre instáveis das sensações. Esta tese
terá um impacto imenso sobre a teoria do erro de Nietzsche, na medida em que ele
interpretará este princípio também como princípio de base de nossa experiência
mas, diferentemente de Spir, que lhe atribui validade objetiva, ele lhe atribuirá um
estatuto ficcional, compreendendo-o como o erro fundamental sobre qual se baseia
o desenvolvimento da vida orgânica até suas formas mais complexas. Para uma
análise aprofundada da relação de Nietzsche com Spir, ver GREEN 6, D’IORIO 4,
SCHLECHTA & ANDERS 19, p. 118-122.
7 Ver a esse respeito, por exemplo: FW/GC 109, KSA 3.96-9, § 111 e § 112, GD/CI Os
quatro grandes erros 3, e os fragmentos: Nachlass/FP KSA 1881 6[349], KSA 9.286;
11[330], KSA 9.569-70; 11[162], KSA 9. 503-4.
8 Em Nietzsche, portanto, as condições transcendentais se tornam condições perspectivas relativas à ótica da vida (cf. JGB/BM 11, KSA 5.24-6).
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231
Mattioli, W.
poderíamos resumir o argumento de base da teoria nietzscheana
do erro, mesmo que de modo precário e geral, e já assumindo uma
interpretação literal da tese do devir.
Essa interpretação literal, porém, é extremamente problemática. Ao caracterizar a posição de Nietzsche como uma aposta ontológica, buscamos chamar atenção exatamente para o fato de que
se trata de uma hipótese quase axiomática mas de caráter fortemente especulativo e que, pelo menos à primeira vista, não pode
ser justificada fenomenologicamente. Uma vez que todo nosso
conhecimento e toda nossa representação do mundo é geneticamente configurada segundo a normatividade epistêmica do princípio de identidade, que é o princípio estruturante da experiência,
torna-se claro que não somos capazes de perceber ou de acessar
fenomenologicamente o devir absoluto, quanto menos de conhecê-lo9. Sendo assim, de onde deveríamos deduzir a idéia de um devir
absoluto como caráter ontológico do mundo? Seria ela justificável
a partir de uma fenomenologia da experiência? E mesmo que ela o
fosse, estaríamos então autorizados a deduzir daí uma ontologia?
Devemos finalmente entender a tese do devir realmente em um
sentido ontológico forte?
Como observa Beatrice Han-Pile em seu artigo “Aspectos
transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche” (HAN-PILE 7, p. 161-164), há
duas maneiras básicas de interpretar literalmente a tese do devir
e a teoria do erro a ela associada: uma interpretação fenomenológica e uma ontológica. A interpretação fenomenológica parte da
idéia de que há uma dimensão originária da experiência ainda não
9 Cf. KSA IX, 11[330]: “o pensamento seria impossível se ele não desconhecesse fundamentalmente a essência da esse: ele precisa afirmar a substância e o idêntico, pois
um conhecimento daquilo que está absolutamente em fluxo é impossível”; Nachlass/
FP 1887, 9[89], KSA 12.382 : “O caráter do mundo como informulável, como “falso”,
como “contrandizendo a si mesmo” / conhecimento e devir se excluem”.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
categorizada por nossos conceitos reificantes: trata-se daquilo que
Nietzsche chama de “caos das sensações”. Nesse nível primitivo,
estaríamos longe da divisão e fixação do mundo empírico em objetos estáveis interagindo uns com os outros segundo leis causais.
Ao ser categorizado por nossos conceitos e fragmentado em substâncias, esse mundo originário e caótico das sensações seria então
falsificado. Segundo a autora, essa interpretação não implica um
comprometimento ontológico com – ou uma tese metafísica sobre
– “uma realidade independente da mente, a qual nossa percepção
não consegue conformar” (idem, p. 161).
O primeiro problema de uma tal interpretação, porém, é que
esse “caos das sensações” não pode ser efetivamente experienciado. Tudo que se encontra na esfera da experiência e, nesse
sentido, da consciência, só tem lugar ali na medida em que se
conforma à normatividade que a rege, isto é, à normatividade do
princípio de identidade. Nesse sentido, um tal mundo caótico
das sensações só poderia ser postulado retrospectivamente como
o oposto do mundo da experiência organizado pelo princípio de
identidade. Além disso, uma vez que não podemos identificar as
qualidades daquilo que é “dado” nessa dimensão sensível originária, não estaríamos autorizados a afirmar que a categorização
conceitual desses “dados” tem como resultado sua falsificação.
A segunda interpretação, isto é, a interpretação ontológica, é
aquela com cuja descrição iniciamos esta segunda parte do nosso
trabalho. Trata-se da tese segundo a qual o caráter essencial do
mundo é um fluxo eterno que não comporta nenhuma permanência
ou repouso, ao passo que o mundo fenomenal de nossa experiência
se apresenta como um mundo de objetos ideais estáveis fixados
por uma necessidade vital. Mas sustentar a tese de que o caráter
essencial do mundo para além de nossas representações é um devir
absoluto seria, nesse sentido, recair em um tipo de dualismo entre
essência e aparência que Nietzsche critica como sendo o contrassenso básico de toda metafísica.
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233
Mattioli, W.
Frente a essas dificuldades, Han-Pile procura lidar com as aporias envolvidas na teoria do erro interpretando-a não literalmente,
como “uma advertência deliberadamente hiperbólica contra formas
ingênuas de realismo e transcendentalismo” (idem, p. 159). Nesse
mesmo sentido, ela procura resolver o problema evolvido na aposta
ontológica que parece sustentar a teoria do erro – uma vez que esta
aposta implicaria um dualismo “que contrasta o mundo das aparências estáveis com o mundo “real” do vir-a-ser”, repousando assim num dualismo ontológico rejeitado por Nietzsche (idem, p. 163)
– interpretando a tese do devir também de forma não literal. Ou
seja, segundo a autora, deveríamos entender a expressão “mundo
do vir-a-ser” não como pretendendo descrever o verdadeiro estado
do mundo, “mas metaforicamente, como assinalando um objeto irrepresentável” cuja função seria não de servir como referente para
a tese da falsificação, mas de chamar nossa atenção para o fato de
que nosso conhecimento do mundo é estruturado por características transcendentais naturalizadas (idem). A nosso ver, porém, essa
interpretação não literal não faz jus à radicalidade da maioria das
afirmações de Nietzsche que concernem sua teoria do erro e a tese
do devir. Pretendemos mostrar que há um tipo de realismo em Nietzsche que se desdobra como consequência de seu abandono da tese
kantiana e schopenhauriana da idealidade transcendental do tempo.
3. Tempo e devir: idealismo ou realismo?
Em seu artigo “Nietzsche on Time and Becoming”, John Richardson distingue quatro formas de interpretar a posição de Nietzsche com relação às noções de tempo e de devir a partir de uma
perspectiva kantiana, focando assim nos aspectos idealistas e/ou
realistas de suas teses. As duas primeiras interpretações, que atribuem a ele um tipo de realismo, correspondem respectivamente
à compreensão do devir como uma espécie de coisa em si inacessível e indeterminável (realismo negativo), ou determinável a
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
partir de certas teorias científicas (realismo positivo). Em ambos
os casos, porém, o devir é compreendido como tendo um caráter
noumenal, independentemente de nossas perspectivas cognitivas
(RICHARDSON 18, p. 212-213). No caso da primeira interpretação, o problema básico é que Nietzsche ultrapassaria aqui os limites de um realismo negativo legítimo ao determinar a coisa em si
positivamente, a partir de seu caráter temporal, como fluxo eterno.
A segunda objeção, que toca ambas as interpretações e que já foi
mencionada na segunda parte deste trabalho, é que Nietzsche estaria estabelecendo aqui um dualismo ontológico que contradiz seu
perspectivismo e sua crítica à metafísica.
As duas outras interpretações apresentadas por Richardson
consideram o devir como algo relativo às nossas perspectivas cognitivas, ou seja, como algo “ideal”. A primeira delas, designada
pelo autor como idealismo de conteúdo, vê o devir como a estrutura
básica de tudo aquilo que nos é dado empirica e fenomenalmente.
Nesse sentido, a posição de Nietzsche com relação ao tempo seria análoga à concepção kantiana do tempo como “forma da intuição” (idem, p. 213-214). O problema dessa interpretação é que
ela desconsideraria as afirmações de Nietzsche que apresentam o
devir exatamente como aquilo que é falsificado ao ser conformado
à norma de nossas perspectivas epistêmicas. O mundo fenomenal
é um mundo de objetos estáveis, não um mundo caótico em fluxo
constante. Nesse sentido, seria necessário distinguir níveis de fenomenalidade, caso queiramos manter a tese da falsificação, e aceitar
a existência de uma dimensão originária da experiência sensível
anterior à reificação e que seria então falsificada. Mas aqui nos
deparamos novamente com os problemas da interpretação fenomenológica apresentados na segunda parte deste trabalho, quando
discutíamos as teses de Han-Pile.
A última e mais promissora interpretação apresentada por Richardson considera o devir não como fenômeno no sentido daquilo
que é dado empiricamente numa perspectiva, mas como um aspecto
real das perspectivas elas mesmas. Trata-se daquilo que o autor
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Mattioli, W.
chama de idealismo perspectivo ou idealismo formal, no sentido de
que o tempo é “a forma ou estrutura das perspectivas, segundo a
qual um conteúdo aparece a elas.” (idem, p. 214) Assim, o tempo
não é simplesmente uma aparência (ou uma forma da aparência),
já que para que haja um tempo fenomenal dado numa perspectiva
é preciso que este tempo seja em certo sentido constituído pela
intencionalidade da perspectiva, um processo que já ocorre temporalmente, pois a perspectiva ela mesma possui uma estrutura
intencional-temporal10.
Deixando de lado aqui, por questões de tempo, o interessantíssimo tratamento dado por Richardson à temporalidade constitutiva
da intencionalidade das vontades de poder, queremos simplesmente
chamar atenção ao fato de que, apesar de designar essa última interpretação como idealista, ele reconhece por fim que a concepção de Nietzsche acerca das perspectivas e de sua temporalidade
imanente o compromete com um realismo temporal. Esta é também
10 Trata-se de uma questão análoga ao problema que encontramos em Kant, e que discutiremos mais profundamente na quinta parte deste trabalho, no que concerne à
temporalidade das sínteses da intuição e da imaginação, as quais são responsáveis
pela construção de nossa representação do tempo. A síntese da intuição é aquilo que,
segundo Kant, deve imprimir as formas do tempo e do espaço ao material bruto dado à
sensibilidade. Ao que tudo indica, porém, a síntese é ela mesma um processo temporal,
o que implicaria que deve existir um tempo que é anterior ao tempo compreendido
como forma dos fenômenos percebidos empiricamente. Essas reflexões nos conduzem
a um realismo temporal. No caso de Nietzsche, podemos dizer que se as perspectivas
se desenrolam num tempo que é imanente a elas mesmas, mas que não coincide com
o tempo que é dado como seu conteúdo, é porque existe uma temporalidade ontologicamente anterior à temporalidade fenomenal e que não pode ser apreendida empiricamente. Como afirma Stegmaier em seu artigo “Zeit der Vorstellung. Nietzsches
Vorstellung der Zeit”, “a representação do tempo ocorre em um tempo que condiciona a representação e que, por isso, não pode mais ser ele mesmo representado, não
pode mais ser fenômeno.” (STEGMAIER 26, p. 203) Cf. a esse respeito sobretudo os
fragmentos onde Nietzsche aborda a questão da “inversão do tempo” no processo de
representação: GD/CI, Os quatro grandes erros 4, KSA, Nachlass/FP 26[35], KSA
11.156-7 e 26[44], KSA 11.159. Dessa forma, somos igualmente conduzidos, a partir
daquilo que Richardson chama de “idealismo formal”, a um realismo temporal.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
nossa posição. Além disso, pretendemos ver na interpretação literal
da tese nietzscheana do devir, no sentido de uma ontologia, não uma
recaída numa espécie de dualismo metafísico, mas a radicalização
de um elemento essencial da imanência da experiência. Para tanto,
nos serviremos de uma interpretação do conceito de tempo em Nietzsche a partir de um diálogo com algumas das teses kantianas da
estética transcendental e com a crítica de Afrikan Spir a estas teses.
4. Afrikan Spir e o argumento fenomenológico
acerca da realidade do tempo
Além de Lange e Schopenhauer, um outro autor que desempenhou um papel fundamental na recepção da filosofia transcendental por Nietzsche foi Afrikan Spir. Em sua obra principal, Denken
und Wirklichkeit (Pensamento e realidade), encontra-se uma crítica
perspicaz à concepção kantiana do tempo que parece ter influenciado de maneira essencial a compreensão que Nietzsche teve do
problema e o seu esforço por romper consistentemente com a tese
do idealismo transcendental do tempo.
O problema é tratado por Nietzsche no contexto de suas reflexões sobre os pré-socráticos, particularmente sobre Parmênides,
no escrito sobre a filosofia na época trágica dos gregos. A leitura
que Nietzsche faz da filosofia de Parmênides se sustenta no quadro
teórico que ele toma emprestado da obra de Spir, segundo o qual
a realidade do devir, sustentada por Heráclito e à qual a filosofia de Parmênides virá se opor, implica a não-inteligibilidade do
real. Spir defende que a atividade cognitiva que está na base de
nossa apreensão do mundo empírico é marcada por uma contradição. Segundo ele, o mundo empírico, na medida em que encerra
pluralidade e mudança, não se deixa subsumir em sentido estrito
ao princípio de identidade (que supõe a identidade absoluta de um
objeto consigo mesmo). Contudo, conhecer não é outra coisa que
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Mattioli, W.
forçar a pluralidade e a mudança do mundo da experiência na unidade de princípio do pensamento. Esta contradição teria como consequência uma aporia insuperável no que concerne à possibilidade
de uma apreensão verdadeira dos objetos da experiência11. Para
Nietzsche, este seria o ponto chave para a compreensão da negação
do movimento e da mudança na filosofia de Parmênides. O pensamento e sua lei lógica fundamental implicam o Ser, idêntico a si
mesmo. A experiência sensível, ao contrário, nos confronta a todo
momento com a mudança, o que contradiz o princípio fundamental
da identidade. Ora, a mudança implica o não-ser; mas o não-ser –
não é! Conclusão: não há mudança, nem movimento, nem tempo,
pois o tempo e a sucessão implicam a mudança. O Ser, ao contrário,
é eterno, imutável e idêntico a si mesmo, como o quer a lei lógica
fundamental do pensamento (cf. KSA 1. 841-844).
A vantagem da concepção de Parmênides frente às de seus contemporâneos seria, segundo Nietzsche, que ela nos permite evitar as
contradições nascidas da aceitação de um espaço e de um tempo infinitos, preenchidos por uma infinidade de substâncias (átomos). Um
dos pontos centrais do pensamento de Parmênides poderia, assim,
ser resumido da seguinte forma: “não pode haver nenhum tempo,
nenhum movimento, nenhum espaço, pois só podemos pensá-los
como infinitos, a saber, infinitamente grandes e, em seguida, infinitamente divisíveis; tudo que é infinito, porém, não possui Ser,
não existe” (idem, p. 856). E é aqui que Nietzsche recorre aos argumentos de Kant e Spir para confrontá-los entre si. Segundo ele, os
adversários de Pardêmides poderiam lhe objetar que há sucessão no
próprio pensamento, que as idéias e as representações ocorrem de
acordo com uma estrutura temporal. Nesse sentido, o próprio pensamento não conteria nada de real e, portanto, nada poderia provar. A uma tal objeção, Parmênides poderia responder, como Kant,
11 Ver a esse respeito Green 6, p. 48.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
da seguinte forma: “é verdade que eu posso dizer que minhas representações se sucedem umas às outras: mas isso significa apenas que
somos conscientes delas numa sequência temporal, isto é, segundo
a forma do sentido interno. Assim, o tempo não é algo em si, tampouco uma determinação objetivamente inerente às coisas.” (idem,
p. 857) Nietzsche observa então a esse respeito que seria necessário
“distinguir entre o pensamento puro, que seria atemporal como o
ser parmenídico, e a consciência desse pensamento, e esta última já
traduziria o pensamento na forma da aparência, ou seja, da sucessão, da pluralidade e do movimento” (idem).
O que temos aqui não é nada mais nada menos que o argumento kantiano a favor do fenomenismo da experiência interna,
o qual se funda no conceito de autoafecção que, por sua vez, está
essencialmente associado à tese da idealidade transcendental do
tempo. Segundo este argumento, a experiência interna, isto é, a
consciência que temos de nós mesmos no fluxo de nossas representações, nos oferece apenas um fenômeno do mesmo gênero daqueles do mundo externo, o que significa que ela não corresponde
à realidade do sujeito. Uma vez que essa consciência emerge sob a
forma do sentido interno (o tempo), ela não pode nos dar senão um
fenômeno do sujeito, já que o sujeito ele mesmo, o sujeito transcendental, deve ser atemporal e independente de todas as formas
da sensibilidade12. Nesse sentido, Parmênides poderia recorrer à
tese kantiana a afirmar que a sucessão de nossas representações na
consciência é apenas um fenômeno que não corresponde à verdadeira natureza do pensamento, do pensamento puro, idêntico a si
mesmo e localizado num dimensão atemporal assim como o próprio
Ser. Nietzsche prossegue, então, e apresenta o argumento de Spir
contra a tese kantiana:
12 Retornaremos a esse argumento na sequência.
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239
Mattioli, W.
É provável que Parmênides tivesse se servido dessa saída: aliás,
deveria-se objetar contra ele o mesmo que A. Spir (Pensamento e realidade, p. 264) objeta contra Kant. “Agora, porém, é claro primeiramente que eu não posso saber nada de uma sucessão enquanto tal
se eu não tiver ao mesmo tempo em minha consciência as partes que
se sucedem. A representação de uma sucessão, portanto, não é ela
mesma sucessiva; por conseguinte, ela é também totalmente distinta
da sucessão de nossas representações. […] O fato é que não podemos de modo algum negar a realidade da mudança. Se a jogarmos
pela janela, ela surge novamente pelo buraco da fechadura. Que se
diga: “simplesmente me parece que os estados e as representações
mudam” – entretanto, essa aparência mesma é algo objetivamente
existente e nela a sucessão possui, sem dúvida alguma, realidade
objetiva; nela, as coisas realmente se seguem umas às outras. […]
Ora, está fora de dúvida que nossas próprias representações nos
aparecem como sucessivas (idem, p. 857-858).
Este argumento é fundamental para a compreensão da temporalidade imanente à experiência proposta aqui como ponto de partida para a afirmação da realidade do devir. O argumento decisivo
desta passagem é o seguinte: ao dizer que meus estados de consciência e minhas representações me aparecem como sucessivos e
mutáveis, sou obrigado a aceitar que essa aparência mesma possui
uma realidade objetiva enquanto estado de consciência – realidade da qual não podemos abstrair a temporalidade sem contradizer radicalmente a evidência fenomenológica mais elementar do
processo do representar.
A estrutura da argumentação em questão é análoga à estrutura
do cogito cartesiano, mesmo que ela não implique necessariamente
uma adesão à tese do cogito propriamente dito (pelo menos não no
sentido em que Nietzsche o compreende). Há aqui um apelo à fenomenalidade radical da consciência representacional, que é levada
a seus limites, e à evidência de sua forma constitutiva. O que é
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
considerado aqui, porém, não é o cogito como o compreenderá Nietzsche mais tarde, isto é, o conteúdo de um ato de consciência enquanto consciência pensante, mas sim a forma da cogitatio, a saber,
sua forma temporal enquanto estrutura imanente a toda representação possível. De acordo com este argumento, o modo temporal das
representações, o fluxo da consciência, implica a realidade objetiva
do tempo. Trata-se aqui, portanto, de uma constatação em certo sentido fenomenológica de que à essência de toda cogitatio pertence
um tempo que é constitutivo da cogitatio ela mesma e que não
pode ser dela abstraído. Assim, a temporalidade não é um atributo acidental do pensamento e da representação, mas, antes, uma
de suas determinações mais essenciais. O aparecer sucessivo e em
constante mudança de dados sensíveis imanentes na atividade do
representar é fenomenologicamente indubitável. Por conseguinte,
na medida em que a sucessão e a mudança das representações possuem realidade objetiva; na medida em que, no próprio aparecer
das representações, uma coisa se segue realmente à outra, não estamos autorizados a negar a realidade do tempo. Com isso, a tese
kantiana da idealidade transcendental do tempo estaria refutada13.
13 A concepção kantiana segundo a qual os conteúdos da mente, dos quais somos conscientes no tempo e através dos quais chegamos à consciência de nós mesmos, são
produtos de atividades intelectuais atemporais de um sujeito localizado fora do tempo,
está envolvida por contradições. A teoria de Kant da autoafecção, sobre a qual ainda falaremos, implica que aquilo que corresponde ao conteúdo da consciência-de-si
empírica é apenas o fenômeno de uma faculdade intelectual transcendental e atemporal que afeta o sentido interno (KANT 15, B153-154). Os atos transcendentais do
pensamento apareceriam, assim, para Kant, como conteúdos representacionais determinados numa consciência temporal; contudo, em si, eles seriam atemporais. Como
observa Henry Allison, porém, resumindo assim uma das críticas de Strawson a Kant:
“qualquer tentativa de imputar uma construção não-temporal no verbo “aparecer”
nos lança imediatamente na ininteligibilidade. Por razões similares, não faz nenhum
sentido falar na sucessão de estados no sujeito empírico como o aparecer do sujeito
supra-sensível” (ALLISON 2, p. 289) Voltaremos a este ponto na sequência.
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Mattioli, W.
5. Kant e as aporias concernentes ao problema do tempo na Crítica
da razão pura
Não é por acaso que a filosofia transcendental kantiana se depara com problemas concretos e quase insuperáveis no que diz respeito à sua tese do idealismo transcendental do tempo, o que talvez
justifique a maior parte das contradições e aporias a esse respeito
na primeira crítica. Inicialmente, podemos dizer que o próprio Kant
não permaneceu absolutamente fiel à teoria do tempo apresentada
por ele na estética transcendental14, de forma que o tempo adquire
um papel muito mais constitutivo na dedução transcendental que
ele não possuía a princípio.
Em primeiro lugar, Kant diferencia dois tipos totalmente diversos de consciência, que correspondem a duas “faces” do sujeito: a
empírica e a transcendental. À consciência empírica corresponde
o sujeito na medida em que este é compreendido como objeto de
uma apercepção temporal que ocorre segundo a forma do sentido
interno através de uma autoafecção. A consciência transcendental,
por sua vez, também chamada apercepção pura, tem como objeto
a unidade formal e sem conteúdo de um sujeito localizado fora do
tempo, e é compreendida com um puro “eu penso”, tendo lugar
numa dimensão totalmente independente das formas das sensibilidade. Essa consciência, contudo, uma vez que ela não possui
14 Ver por exemplo o capítulo sobre o esquematismo dos conceitos puros do entendimento, onde Kant compreende o esquema como uma determinação transcendental
do tempo que deve ser homogênea à categoria, isto é, ao entendimento (B177-178)
Alexander Schnell, em seu livro En deçà du sujet. Du temps dans la philosophie transcendantale allemande, observa a esse respeito que “é necessário deduzir daí que o
tempo – mesmo que Kant não o diga explicitamente – possui uma dimensão intelectual” (SCHNELL 20, p. 61); o que significa, por sua vez, que o próprio entendimento
possui também um caráter temporal. Podemos dizer, portanto, que Kant abdica aqui
da tese apresentada na introdução, e que é pressuposta na estética, segundo a qual há
uma irredutibilidade radical do entendimento à sensibilidade e da sensibilidade ao
entendimento.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
nenhum conteúdo determinado e seu “objeto” não é dado na intuição, não possui um estatuto cognitivo em sentido estrito e não pode
ser considerada uma forma de conhecimento. Antes, ela é a condição formal de todo conhecimento possível. O único conhecimento
propriamente dito que o sujeito tem de si mesmo é resultado da
apercepção empírica, através da qual ele não apreende a si mesmo
como ele é em si, mas somente segundo ele aparece a si mesmo sob
a forma do fluxo temporal da consciência. A tese da idealidade do
tempo enquanto simples forma da intuição é, assim, o pressuposto
fundamental da tese do fenomenismo da experiência interna.
Tudo isso é apresentado de forma mais ou menos clara na estética transcendental, cuja passagem central para a questão do fenomenismo se encontra na segunda parte do parágrafo 8, onde o
conceito de autoafecção é discutido pela primeira vez (B67-68). Por
autoafecção, Kant entende aqui a afecção do espírito por ele mesmo,
através de sua própria atividade de representar. Uma vez que o conceito de afecção é em Kant sempre ligado à intuição sensível, o objeto dado nessa representação, a saber, o próprio sujeito, só é dado
como fenômeno, e não em sua realidade própria, como ele poderia
julgar caso sua intuição fosse intelectual. Sabemos, porém, que para
Kant não há intuição intelectual. É por isso que a apercepção transcendental, na qual o sujeito transcendental e atemporal é de certa
forma “representado” em sua unidade, não é de modo algum uma
intuição e, portanto, não tem nenhum conteúdo determinado.
Kant discute mais uma vez o conceito de autoafecção no contexto das reflexões sobre o entendimento e as categorias, no parágrafo 24 da “Dedução transcendental”. Aqui, porém, o conceito
é definido de forma mais exata como determinação ou ação do
entendimento (a parte ativa do sujeito), sobre a sensibilidade (sua
parte passiva) (B152-154). Kant designa essa ação do entendimento sobre a sensibilidade como uma síntese transcendental da
imaginação, considerando aqui a faculdade da imaginação como
uma função do entendimento.
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Mattioli, W.
Contudo, é exatamente no que concerne ao conceito de síntese
transcendental, na medida em que ele determina o que Kant chama
de “unidade sintética originária da apercepção” (B157), que nos
deparamos com aporias e contradições que colocam em evidência
o caráter ambíguo da concepção kantiana do tempo. Notemos primeiramente que a representação formal que constitui a apercepção transcendental, isto é, o puro “eu penso”, deve corresponder
à unidade do próprio sujeito transcendental (noumenal) enquanto
localizado fora do tempo15. Nesse sentido, Kant diz que “esta representação […] é um ato da espontaneidade, isto é, não pode
15 Na verdade, a tese que apresentamos aqui, segundo a qual a apercepção transcendental corresponde ao sujeito noumenal, em oposição ao sujeito fenomenal que é o objeto
da apercepção empírica, não é de modo algum evidente, principalmente se considerarmos que o eu da apercepção pura é uma unidade meramente formal. Porém, se
partimos do pressuposto de que também no que diz respeito ao conhecimento de si
devemos conceber uma distinção transcendental – o que resulta da noção de autoafecção e que exige uma análise bilateral e dualista do sujeito – devemos nos perguntar
então o que nos permite diferenciar um eu empírico de um eu puro (transcendental),
isto é, de onde inferimos a noção de um eu noumenal, se ele não deve ser entendido
como aquilo que constitui o fundamento dessa afecção. Com efeito, na passagem onde
Kant apresenta pela primeira vez o argumento da autoafecção, ele diz que “a consciência de si mesmo (a apercepção) é a representação simples do eu e se, por ela só,
nos fosse dada, espontaneamente, todo o diverso que se encontra no sujeito, a intuição interna seria então intelectual.” (B68) Isso significa que, se na apercepção todo
o diverso pertencente ao sujeito fosse dado imediatamente através de uma intuição
intelectual, um conhecimento noumenal deste seria possível. Ademais, na passagem
do parágrafo 24 onde Kant apresenta o argumento da autoafecção pela segunda vez,
ele a designa como uma ação do entendimento que é exercida sobre a sensibilidade e
a qual ele dá o nome de síntese transcendental (B153-154). Ora, o fundamento último
dessa síntese não é outra coisa senão a apercepção pura. Kant a compreende como
uma função ou faculdade do entendimento puro através da qual um diverso dado e
parcialmente sintetizado é trazido à unidade categorial da consciência transcendental, do “eu penso”, que é a representação simples de sua unidade. Esta consciência
transcendental é exatamente o que Kant opõe à consciência temporal e empírica que
corresponde à autoafecção e que constitui seu fundamento. Dada a forma como Kant
apresenta essa oposição, não nos resta outra saída senão concluir que a apercepção
transcendental corresponde ao sujeito noumenal, em oposição ao sujeito fenomenal
que corresponde à autoafecção. Ver a esse respeito as seguintes passagens da Crítica:
B68, B153, B154, A118 (nota 1), A346/404, A492/520, A546/B575.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
considerar-se pertencente à sensibilidade.” (B132) Isso implica
necessariamente a exclusão de toda temporalidade possível. Ele
prossegue: “Dou-lhe o nome de apercepção pura, para a distinguir
da empírica, ou ainda o de apercepção originária” (idem).
Porém, essa compreensão do objeto da apercepção transcendental, isto é, da unidade originária do “eu penso”, como livre
de toda determinação da sensibilidade, é contradita em várias
passagens da Crítica. Acreditamos que a razão dessa contradição repouse na tensão indissolúvel que resulta da compreensão
kantiana da apercepção pura, por um lado, como uma unidade
sintética, por outro, porém, como uma identidade atemporal16.
16 A questão que se coloca aqui diz respeito à possibilidade de se pensar uma síntese
que não seja temporal. E isso porquê o próprio conceito de síntese parece implicar
sua dependência estrutural com relação à determinação temporal da sensibilidade.
Se tomarmos, por exemplo, a explicação que Kant oferece acerca da possibilidade
de julgamentos sintéticos a priori, vemos que a síntese aí implicada só é possível
na medida em que um conceito puro é referido a uma intuição pura a priori: “Tem
de recorrer-se à intuição, mediante a qual unicamente a síntese é possível.” (B16)
Ora, o tempo, como forma do sentido interno, é a forma mais geral de toda intuição,
enquanto o espaço diz respeito somente ao sentido externo. Sendo assim, tudo aquilo
que pode ser designado como sintético deve necessariamente ser temporal. No que
concerne a temporalidade dessa função do espírito, a exposição de seus três modos
na “Dedução transcendental” de 1781 desempenha um papel decisivo. A síntese da
apreensão na intuição é temporal no sentido em que o diverso ao qual ela se refere só
pode ser representado na medida em que o espírito é capaz de distinguir o tempo na
série de impressões que se sucedem e de apreender assim as representações umas
após as outras. A afirmação de que todas as representações, enquanto modificações
do espírito, pertencem ao sentido interno e enquanto tal estão submetidas ao tempo,
é estabelecida por Kant como base de toda sua exposição acerca das sínteses das
faculdades (A99). Além disso, a síntese da apreensão, em sua relação com a síntese
da reprodução, é, para Kant, constitutiva dos modos de representação do tempo, isto
é, sucessão e simultaneidade (A99-100) (cf. SCHNELL 20, p. 48). Ademais, sem a reprodução na imaginação daquilo que foi apreendido na intuição, o que torna possível
a permanência na consciência do diverso intuído, “não poderia jamais reproduzir-se
nenhuma representação completa, nem nenhum dos pensamentos mencionados precedentemente, nem mesmo as representações fundamentais, mais puras e primeiras,
do espaço e do tempo. A síntese da apreensão está, portanto, inseparavelmente ligada
à síntese da reprodução.” (A102) Ora, mas se a síntese é o que produz pela primeira vez a representação do tempo, e se o tempo não é outra coisa que uma forma ou
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Enquanto unidade sintética, a apercepção deve ser referida à
sensibilidade e ser condicionada por ela, a saber, pela temporalidade do ato sintetizante, já que a apercepção só tem suas raízes
nas sínteses da intuição e da imaginação. Com efeito, Kant diz que
a unidade sintética do diverso da intuição é “o princípio da identidade da própria apercepção” (B134). A identificação da função
da unidade originária da apercepção com a função da síntese do
diverso é feita por Kant em diversas passagens17. No fundo, o argumento é que a unidade originária da apercepção transcendental
corresponde à unidade do sujeito que é responsável pela síntese
do diverso da intuição. Mas a síntese do diverso, notemos mais
uma vez, é sempre temporal. Como observa Michel Green, “uma
vez que aquilo com que a síntese transcendental opera se encon-
representação pura, como pode a síntese ser ela mesma temporal? No capítulo sobre
as antecipações da experiência, contudo, Kant afirma claramente que “a síntese […]
na sua produção, é uma progressão no tempo” (A170/B211). A única forma de conceder inteligibilidade a essas afirmações é aceitar que existe um tempo originariamente
anterior às nossas representações ou aos modos de nossa consciência do tempo, o qual
não pode ser apreendido, ao passo que aquilo que é produzido pela síntese sãos os
modos da sucessão e da simultaneidade segundo os quais percebemos a temporalidade. Com efeito, em algumas passagens Kant afirma que o tempo não pode, em si, ser
percebido (A183/B226, A199/B233). Ao que tudo indica, trata-se aqui de uma forma
originária do tempo ao qual não podemos atribuir sucessão ou mudança, já que estes
últimos dizem respeito somente aos fenômenos percebidos no tempo, e não ao tempo
ele mesmo (A183/B226). Kant parece sugerir que é nesse tempo originário que a unidade sintética das relações temporais tem lugar, e isso, em última instância, através
da apercepção originária (A177/B220). Esta última, porém, é, para Kant, atemporal.
Ela corresponde, no contexto da exposição das três sínteses na “Dedução” de 1781, à
síntese da recognição no conceito, que é responsável pela unificação categorial de toda
representação em um sujeito numericamente idêntico. Entretanto, devemos notar que
essa unidade da apercepção pura só é possível através do ato de síntese do diverso, e
este só pode ter lugar num horizonte temporal. Assim, a apercepção deve ser temporal
no sentido em que ela tem suas raízes propriamente nas sínteses da intuição e da imaginação. Como diz Alexander Schnell: “isso significa que a unidade da apercepção
transcendental não é nada de substancial, mas que ela só se constitui nas sínteses que
unificam o diverso da apreensão e da reprodução.” (SCHNELL 20, p. 55)
17 Cf. por exemplo B135 e B157.
246
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
tra no tempo, não podemos concebê-la como outra coisa senão um
processo temporal, algo ocorrendo no tempo. Mas, assim entendido,
é impossível enxergar como esse processo pode ser vinculado a
algo […] que se encontra fora do tempo” (Green 6, p. 50).
Frente a esse paradoxo, só nos resta reconhecer que, apesar dos esforços de Kant para distinguir radicalmente a apercepção transcendental da apercepção empírica, desvinculando o
“eu penso” de toda determinação sensível, este só pode ser compreendido, no fim das contas, como um eu temporal. Se aceitarmos a sugestão de Strawson a esse respeito, de que a apercepção
transcendental tem como objetivo estabelecer uma autoconsciência
que revele ao sujeito empírico (temporal) sua identidade essencial
com o sujeito transcendental (suprassensível), vemos o mesmo problema se desdobrando a partir de uma outra perspectiva. Pois o
eu transcendental diz respeito claramente a um sujeito totalmente
atemporal e ahistórico, enquanto o eu empírico, assim como a consciência empírica, pertencem naturalmente a um sujeito que tem
uma história e que se encontra sujeito às vicissitudes do tempo.
Como afirma Strawson, tudo que pode ser atribuído a um homem
como um estado de consciência-de-si constitui algo temporal, algo
que ocorre no tempo. Mesmo seu engajamento intelectual enquanto
ente pensante, através do qual ele deve se tornar consciente de sua
essência transcendental, pertence à sua história: “qualquer consciência-de-si desse gênero, ao que parece, deve pertencer à história
de – e deve ser a consciência de um episódio pertencente à história
de – um ente que tem uma história e que, portanto, não é um ente
suprassensível, não é “o sujeito no qual se funda a representação
do tempo” (STRAWSON 27, p. 248).
Essas considerações têm consequências fundamentais para a
transição do idealismo transcendental ao naturalismo exatamente
ao subverter por dentro a tese da idealidade transcendental do
tempo, afirmando a historicidade de todo ente. Além disso, a rejeição da tese em questão nos coloca em posição de negar a tese
cadernos Nietzche 29, 2011
247
Mattioli, W.
do fenomenismo da experiência interna em sua versão kantiana.
Uma vez que o tempo não pode mais ser visto simplesmente como
uma forma sensível a priori através da qual o sujeito apreende fenomenalmente o mundo e a si mesmo, mas deve ser considerado como
pertencendo à realidade essencial desse sujeito, o fato de que a
experiência interna se dá num modo temporal não serve mais como
argumento a favor de seu caráter fenomenal. E aqui nos deparamos
novamente com o argumento de Spir contra Kant citado por Nietzsche por ocasião de sua crítica à concepção parmenídica de um pensamento puro, atemporal e imutável. Ao contrário do que ocorre em
Kant, segundo este argumento, o caráter temporal da consciência
representacional atesta a essência temporal do sujeito e, assim, a
realidade objetiva do tempo. Não podemos pensar o fluxo do tempo
de forma consequente como algo que é apenas representado por um
sujeito que é em essência atemporal, pois o fato de que as representações aparecem no tempo, que as idéias parecem ocorrer em uma
sucessão temporal, já implica que há algo que se dá efetivamente
no tempo: esta aparência mesma é algo objetivamente dado e a
sucessão tem nela uma realidade objetiva indubitável. Há aqui,
portanto, uma inversão do argumento kantiano que pretende provar
o caráter fenomenal da experiência interna a partir de sua determinação temporal. Para Nietzsche, seguindo o argumento de Spir,
esta determinação temporal é exatamente o núcleo fenomenológico
da experiência a partir do qual chegamos a uma determinação real
do sujeito e, por conseguinte, a uma premissa ontológica.
6. A temporalidade e o devir da representação como certeza
fundamental do Ser
Nos fragmentos póstumos de 1881 encontramos uma reflexão
que, apesar do grande espaço de tempo que as separa, parece
tocar o mesmo tema das reflexões presentes no texto sobre Parmênides do qual tratamos na quarta parte deste trabalho. Trata-se de
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
um fragmento bastante problemático, no qual uma versão alternativa do cogito é apresentada, através da qual Nietzsche procura
provar o caráter ontológico da mudança a partir da evidência do
fluxo imanente da consciência representacional. Antes de analisar o fragmento, porém, é importante chamar a atenção para uma
sutileza na posição de Spir no que concerne à realidade da mudança, e isso porque o fragmento em questão também se insere
num diálogo com seu pensamento.
Como já foi mencionado, para Spir, o princípio de identidade
nos oferece um conceito da essência incondicionada do mundo,
uma vez que a noção de identidade-a-si coincide com a noção de
incondicionado. Isso quer dizer que, com relação à sua realidade
última, cada objeto, cada substância, é absolutamente idêntica a si
mesma, o que implica a exclusão de toda pluralidade, de toda mudança e, por conseguinte, de toda temporalidade. Assim, para Spir,
se por um lado a realidade objetiva do tempo não pode ser negada,
devemos, por outro lado, considerar o incondicionado, a coisa em
si, como livre das vicissitudes do tempo. Podemos deduzir daí que,
ao contrário dos modelos dualistas de Kant e Schopenhauer, Spir
estabelece três níveis ontológicos, dos quais o primeiro, ao qual
pertence a verdadeira essência das coisas, está localizado numa
dimensão atemporal. Com efeito, ele afirma que “além das coisas
em si e das coisas para nós, as quais existem na mera representação, há ainda um terceiro tipo de objetos que não são nem um nem
outro, que existem realmente, porém não como “coisas em si”, – a
saber, nós mesmos, os sujeitos cognoscentes ao menos, e nossas representações.” (SPIR 23 I, p. 266)18 Portanto, é a este último nível
que pertencem ontologicamente a temporalidade e a mudança nas
quais o sujeito e suas representações estão imersos, enquanto no
nível ontológico da coisa em si elas estão ausentes.
18 Cf. a esse respeito D’Iorio 4, p. 268.
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Mattioli, W.
Desse modo, em seu diálogo com a filosofia de Spir, Nietzsche
faz uso de sua argumentação perspicaz contra a tese kantiana da
irrealidade do tempo, mas ele não acata de modo algum sua ontologia. No fim das contas, parece que o intuito de Spir ao afirmar a
realidade efetiva do tempo e da mudança não é outro senão o de
contrapô-la à lei originária do pensamento, o princípio de identidade, a fim de provar assim seu caráter absolutamente a priori
e sua validade objetiva (SPIR 23 I, p. 269). De acordo com ele, a
essência incondicionada das coisas tem a mesma natureza do Ser
de Parmênides. Nesse sentido, para Nietzsche, Spir estaria tão próximo da superstição básica da filosofia transcendental (de cunho
parmenídico) quanto Kant. Nietzsche vê o conceito de incondicionado como uma ficcção da representação; uma ficção necessária,
tanto para o pensamento quanto para a vida em geral, na medida
em que ela torna possível o (re)conhecimento do “idêntico” – mas
ela não é nada mais que uma ficção19.
Voltemos então agora nossa atenção para algumas das passagens mais importantes do fragmento de 1881 mencionado acima:
O que é próprio ao processo do representar é a mudança, […] assim
como o esvaecimento e o surgimento, e, no processo mesmo do representar, não há nada de permanente; contrariamente a isso, porém, ele
postula duas permanências, ele acredita na permanência 1) de um eu
2) de um conteúdo: esta crença na permanência da substância, isto é,
no permanecer-idêntico de algo consigo mesmo, é o oposto do processo
mesmo da representação. […] É claro em si, porém, que o representar
não é nada em repouso, nada idêntico a si mesmo, imutável: portanto, o
único ser que nos é assegurado é mutável, não-idêntico-a-si-mesmo, tem
relações (é condicionado, o pensamento tem que ter um conteúdo para
ser pensamento). – Eis a certeza fundamental do ser. Mas o representar
19 Ver a esse respeito, por exemplo, Nachlass/FP 1883, 8[25], KSA 10.342-3 e 40[12],
KSA 11.633-4.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
afirma precisamente o contrário do ser! O que nem por isso precisa
ser verdade! Antes, talvez essa afirmação do contrário seja apenas uma
condição de existência deste tipo de ser, do tipo representacional! Isso
significa que o pensamento seria impossível se ele não desconhecesse
fundamentalmente a essência da esse: ele precisa afirmar a substância
e o idêntico, pois um conhecimento daquilo que está absolutamente
em fluxo é impossível; ele precisa atribuir qualidades ficcionais ao ser,
para poder ele mesmo existir. […] Em suma: o que o pensamento apreende como o real, o que ele tem que apreender como real, pode ser o
oposto do ente! (Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70).
Como já indicou Karl-Heinz Dickopp (DICKOPP 3, p. 56), a
principal fonte para o desenvolvimento dessas reflexões é o primeiro capítulo do primeiro livro da segunda edição da obra principal de Spir, Denken und Wirklichkeit, que trata da certeza imediata.
O título do fragmento é certeza fundamental (Grundgewissheit), e
nele encontramos, como abertura da argumentação, uma versão alternativa do cogito como ponto de partida para uma determinação
ontológica do Ser. A versão nietzscheana da fórmula cartesiana é
a seguinte: ““represento, logo há ser” (Ich stelle vor, also giebt es
Sein), cogito, ergo est” (Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70).
Que Descartes, contudo, não é realmente o filósofo visado aqui,
fica claro ao compararmos o fragmento com o texto de Spir que
encontramos no primeiro capítulo de sua obra. No mesmo sentido
que Descartes, Spir afirma que a certeza é o fim da filosofia, e
que há fundamentalmente dois tipos de certezas: as mediatas e as
imediatas. À filosofia é atribuído o papel de encontrar uma certeza
imediata sobre a qual todo conhecimento digno do nome deve ser
fundado. Para Spir, Descartes teria sido o primeiro a lidar com essa
questão de forma essencial, ao considerar o pensamento e a consciência como imediatamente certos (SPIR 24 I, p. 26). Na sequência
do texto, Spir se desloca então do campo semântico aberto pelo
termo “pensamento”, considerado como certeza imediata, para o
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Mattioli, W.
campo semântico do termo “representação”, mais geral, mas por
isso mesmo mais preciso no contexto em questão. Ele diz então que
“em todo saber, ou dito de forma mais geral, em toda representação,
deve-se distinguir duas coisas: o que a representação mesma é, e o
que ela representa; em outras palavras: o que é dado numa representação e o que nela é afirmado (acerca dos objetos).” (idem, p. 27)
Segundo Spir, só estamos imediatamente certos com relação ao
que a representação mesma é, ao passo que aquilo que é afirmado
acerca do conteúdo da representação permanece duvidoso.
A sequência da argumentação nos apresenta então um novo
elemento. Após sustentar a necessidade de investigar a natureza da
representação enquanto tal, uma vez que a certeza fundamental só
pode ser encontrada nas próprias representações, Spir afirma que,
além da facticidade irrefutável daquilo que é imediatamente dado
na representação e que possui um caráter individual e particular, há
ainda princípios do conhecimento em geral que possuem o mesmo
grau de certeza que os conteúdos imediatos da representação. Contudo, contrariamente a estes últimos, de natureza factual e particular (eles são designados como uma certa impressão dos sentidos,
um som, um gosto ou um odor particulares), os princípios gerais do
saber se referem ao universal e abstrato. Assim, eles seriam a fonte
de toda certeza racional, “diferentemente da certeza factual, a qual
pertence aos dados e fatos da consciência” (idem, p. 29). E a certeza
fundamental que pertence a este nível é precisamente o princípio
de identidade, o qual, para Spir, nos dá o conceito do incondicionado, que corresponde à verdadeira essência das coisas.
Esta retomada das teses de Spir é necessária se quisermos
compreender o argumento central apresentado por Nietzsche no
fragmento que estamos analisando. Em seu comentário deste texto,
Karl-Heinz Dickopp parece ter se enganado com relação a um ponto
central do argumento. Ele sugere que na segunda parte do aforismo
Nietzsche sustenta a tese de que o ser, no sentido em que o compreende Spir, isto é, o ser como incondicionado, nos é desconhecido, e que não haveria nenhuma ponte que pudesse nos conduzir
252
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
da certeza fundamental do ser que representa, o ser condicionado,
ao verdadeiro ser incondicionado, o qual, segundo Dickopp, estaria designado no texto de Nietzsche pelo termo “esse” (DICKOPP
3, p. 57-58). Acreditamos haver aqui um sério mal-entendido no
que diz respeito à compreensão do Ser desenvolvida por Nietzsche
neste texto. De fato, a utilização do termo “Ser” é aqui ambígua.
Em Nietzsche, ele designa geralmente o Ser no sentido parmenídico (assim como Spir o compreende), ou seja, como identidade
absoluta, permanência, em suma, como o incondicionado atemporal. É por essa razão que ele afirma com frequência que o Ser é
uma ilusão, referindo-se aqui ao sentido original do termo. No fragmento em questão, porém, o termo designa exatamente o contrário
daquilo que está originalmente nele implicado; “Ser”, aqui, como
aquilo que nos é dado no processo do representar enquanto certeza
fundamental, significa devir, não-identidade, mudança e relacionalidade. O mesmo vale para o termo “esse”. A afirmação que o
pensamento deve desconhecer a essência do “esse” significa que
não haveria pensamento ou representação, e portanto tampouco
experiência, sem uma ficção de permanência que tornasse o representar possível a partir de uma normatividade epistêmica segundo
a qual o devir é fragmentado em objetos ideais estáveis: “o pensamento seria impossível se ele não desconhecesse fundamentalmente
a essência da esse: ele precisa afirmar a substância e o idêntico,
pois um conhecimento daquilo que está absolutamente em fluxo é
impossível” (Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70).
Se retomarmos o texto de Spir, veremos que se trata aqui de
uma estratégia argumentativa bastante sofisticada de Nietzsche
contra sua ontologia do incondicionado. Como vimos, na sua análise da certeza imediata, Spir distingue entre o que a representação
mesma é, e o que é afirmado acerca do conteúdo da representação,
considerando como certo somente o primeiro. Contudo, na sequência da argumentação, ele afirma que o princípio de identidade,
como princípio geral da representação, é tão certo quanto seu dado
factual (cf. SPIR 24 I, p. 29). Enquanto elemento constitutivo
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253
Mattioli, W.
da representação, o princípio de indentidade, ao estabelecer a
norma a priori para a determinação do conteúdo da representação enquanto objeto empírico, garante objetividade à experiência,
atuando como discriminante ontológico. Do valor a priori desse
princípio, Spir deduz então sua validade objetiva, afirmando que
a partir dele estamos autorizados a determinar a essência incondicionada das coisas. É exatamente com relação a este aspecto de
discriminante ontológico do princípio de identidade que Nietzsche
dirá que o representar afirma o contrário do Ser. Acompanhando
Spir em seu argumento segundo o qual somente o dado factual da
representação é certo, ao passo que aquilo que é afirmado acerca
dele permanece incerto, Nietzsche escreve: “É claro em si, porém, que o representar não é nada em repouso, nada idêntico a
si mesmo, imutável: portanto, o único ser que nos é assegurado é
mutável, não-idêntico-a-si-mesmo […] Eis a certeza fundamental
do ser. Mas o representar afirma precisamente o contrário do ser!”
(Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70). Ou seja, ao passo
que o fluxo, a mudança e a não-identidade são dados de modo
imanente no processo da representação, este conteúdo factual
imanente é julgado e interpretado de modo a se adequar à norma
epistêmica que rege a constituição da experiência e, assim, a representação afirma o contrário do devir. Contudo, como havia indicado Spir, o que é afirmado acerca do conteúdo da representação
não possui o estatuto de certeza fundamental e, por conseguinte,
não pode servir de base para a construção de um conhecimento
ontológico seguro. Para Nietzsche, isso implica na negação do estatuto ontológico do Ser como o compreende Spir e Parmênides.
Se estamos em algum grau autorizados a falar numa “identidade
entre Ser e pensamento”, essa identidade deve ser buscada não
na ficção de permanência exigida pela representação como sua
condição de existência, mas na evidência de seu caráter mutável
e temporal. O Ser de Nietzsche é, portanto, visto a partir de uma
fenomenologia do processo de representação, o devir.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
7. Temporalidade, força e devir absoluto
A partir do que foi dito até agora, podemos concluir que a
negação da tese do idealismo transcendental do tempo implica a
afirmação do caráter ontológico da mudança e, portanto, do devir.
É o que podemos ver também em um fragmento de 1885, onde
Nietzsche escreve: “Rejeitar o “atemporal”. Em um momento determinado da força, a condição absoluta de uma nova distribuição
de todas suas forças está dada: ela não pode permanecer em repouso. A “mudança” pertence à essência, por conseguinte, a temporalidade também: com o que apenas estabelecemos mais uma
vez, conceitualmente, a necessidade da mudança” (Nachlass/FP ,
35[55], KSA 9.537).
Os três conceitos centrais deste fragmento são: temporalidade,
mudança e força. Para Nietzsche, mudança e temporalidade são
termos praticamente intercambiáveis, uma vez que a temporalidade implica necessariamente a mudança e a mudança pressupõe
necessariamente a temporalidade. O novo conceito com o qual nos
deparamos aqui é o conceito de força, o qual concede uma determinação mais positiva à noção nietzscheana do devir. Além disso,
ele faz uma ponte entre a perspectiva essencialmente “subjetiva/
internalista” (de primeira pessoa), a partir da qual estabelecemos a
realidade do tempo através de uma fenomenologia do processo de
representação, e uma perspectiva “objetiva/externalista” (de terceira pessoa), baseada em modelos explicativos das ciências naturais que servirão para a confirmação e elaboração logicamente
ulteriores da tese do devir. Com efeito, é somente por meio do conceito de força que podemos deduzir, partindo do caráter ontológico
do tempo e da mudança, o caráter absoluto do vir-a-ser. Assim, para
Nietzsche, em toda mudança está implicada a ação de uma força
que age no tempo, e a qual não pode um só instante permanecer
em repouso, já que sua essência consiste precisamente em agir.
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Mattioli, W.
Além disso, ao rejeitar o atemporal, Nietzsche nega toda ontologia
de cunho parmenídico, inclusive a de Spir, sustentando que a temporalidade e a mudança pertencem à essência.
A compreensão da mudança como consequência das variações
de condição da força no tempo já havia sido elaborada por Nietzsche num fragmento de 1873, onde ele desenvolve sua teoria dos
átomos temporais (Zeitatomlehre): “se tomarmos aquilo que age no
tempo, então aquilo que age é, em cada momento mais ínfimo do
tempo, algo diverso. Isto é: o tempo atesta a não-permanência absoluta de uma força.” (Nachlass/FP 1873, 26[12], KSA 7.575-6)20
Isto significa que toda relação de força implica sempre uma perda
ou diminuição e um ganho ou aumento de força. A ação entre as
forças engendra, assim, uma mudança necessária em termos de
quantidade nos estados da energia dada num momento determinado. A força não pode jamais permanecer imóvel, pois caso contrário ela seria “não-força” (Unkraft) (Nachlass/FP 1881,11[281],
KSA 9.549). Sua natureza mais essencial consiste precisamente em
sua capacidade de agir e produzir uma mudança quantitativa dos
estados de energia no tempo.
O principal modelo científico sobre o qual jovem Nietzsche se
baseia para a construção de sua Zeitatomlehre é o modelo dinâmico
do físico Roger Bocovich (1711-1787), que abdica do conceito de
matéria e procura construir uma teoria fundada na noção de pontos
inextensos compreendidos como centros dinâmicos de força21. Porém, Boscovich não é o único pensador que ofereceu a Nietzsche
20 Ver ainda no mesmo fragmento: “Normalmente, na física atomística, aceitamos a existência de átomos de força imutáveis no tempo, ou seja, ὄντα em sentido parmenídico.
Estes, porém, não podem agir. Apenas forças absolutamente mutáveis podem agir;
forças que em nenhum instante são as mesmas. Todas as forças são apenas função do
tempo” (idem).
21 Para uma análise mais detalhada da relação entre Nietzsche e Boscovich, ver, por
exemplo, SCHLECHTA& ANDERS 19, pp. 127-153, WHILOCK 28 (sobretudo sobre
a influência de Boscovich na Zeitatomlehre) e WHITLOCK 29.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
alguns elementos científicos para pensar a relação entre tempo e
devir, nem a física é a única ciência natural da qual Nietzsche retirou inspiração. No texto que serviu de base para suas lições sobre os filósofos pré-platônicos, particularmente no parágrafo sobre
Heráclito, Nietzsche recorre a algumas observações do fisiólogo
Ernst von Bär22 para ilustrar a concepção heraclítica do devir e
conceder-lhe assim uma maior credibilidade. Ele comenta que Bär
se serve de uma ficção notável para apresentar sua tese acerca do
tempo biológico. De acordo com a tese em questão, cada organismo
perceberia as mudanças no tempo segundo a estrutura fisiológica
que determina sua pulsação. Mas antes de apresentar a tese de Bär,
Nietzsche introduz o conceito de força, sugerindo que algo estritamente permanente não pode ser encontrado em lugar algum, já que
toda ação de forças implica uma variação e, portanto, uma perda
de força. Por conseguinte, é apenas em virtude de nossa pequena
unidade de medida subjetiva que o homem acredita reconhecer repouso e estabilidade na natureza. Com efeito, segundo Bär, “a velocidade da sensação e dos movimentos voluntários, da vida mental,
portanto, parece ser, em diferentes animais, proporcional à velocidade de sua pulsação.” (KGW II 4.267-268) Nesse sentido, um
animal que possui uma pulsação quatro vezes mais rápida que um
outro poderá sentir, experienciar e viver, num mesmo intervalo de
tempo, quatro vezes mais que este último.
A vida interior das diversas espécies animais (inclusive do homem) decorre no mesmo espaço de tempo astronômico com uma
velocidade especificamente diversa: e é de acordo com ela que se
22 Como demonstrou Paolo D’Iorio (cf. D’IORIO 5, pp. 398-400), Nietzsche retira essas
observações do artigo de Otto Liebmann: “Über subjective, objective und absolute Zeit”, publicado no Philosophisches Monatsheft do inverno de 1871/72. O artigo de Liebmann foi publicado também em seu livro Zur Analysis der Wirklichkeit.
Philosophische Untersuchungen. A passagem em questão se encontra nas páginas 8385 da edição de 1876.
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Mattioli, W.
orienta a medida subjetiva do tempo. É somente porquê em nós essa
medida é proporcionalmente pequena que um indivíduo orgânico,
uma planta, um animal nos aparece como estável em termos de
grandeza e forma: pois podemos vê-lo, em um minuto, cem vezes ou
mais, sem notar exteriormente nenhuma mudança. […] apenas para
um certo grau de percepção existem formas. A natureza é tão infinita
para dentro quanto para fora: chegamos, no momento, até a célula e
as partes da célula: mas não há um limite onde pudéssemos dizer:
aqui é o último ponto para dentro; o devir nunca cessa, nem no infinitamente pequeno. Mas tampouco há algo absolutamente imutável
naquilo que é da maior grandeza (idem, pp. 268-270).
A tese de que a percepção da mudança depende de uma unidade de medida absolutamente subjetiva, encontramo-la mais uma
vez em alguns fragmentos dos anos 80, onde Nietzsche diz, por
exemplo, que o tempo real é provavelmente muito mais lento que a
velocidade segundo a qual o percebemos: “percebemos tão pouco,
ainda que, para nós, um dia pareça muito longo, ao contrário do
mesmo dia no sentimento de um inseto. Em verdade, porém, nossa
circulação sanguínea poderia ter a duração de um ciclo da terra e
do sol” (Nachlass/FP 1881, 11[184], KSA 9.512). Nosso mundo
fenomenal depende integralmente dessa unidade de medida orgânica. Segundo as considerações de Bär citadas por Nietzsche em
seu texto sobre Heráclito, uma alteração na intensidade de nossa
pulsação teria um efeito direto sobre nossa percepção da mudança.
Poderíamos, por exemplo, imaginar nossa pulsação enormemente
desacelerada, como se vivêssemos centenas de milhares de anos,
de modo que nossa estrutura sensível seria incapaz de perceber
formas ou coisas permanentes; tudo o que nos aparece agora como
estável se fundiria num fluxo eterno: “todas as formas que nos parecem permanentes se diluiriam na precipitação dos acontecimentos e seriam tragadas pela tormenta selvagem do devir” (KGW II
4.269). Em um outro fragmento dos anos 80, Nietzsche escreve:
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
“o mundo, para nós, não é ele apenas uma soma de relações sob
uma medida? Tão logo essa medida aleatória desapareça, nosso
mundo se dilui!” (Nachlass/FP 1881, 11[36], KSA 9.454).
A conclusão que emerge da argumentação em questão é a seguinte: a realidade do tempo implica a realidade da mudança; esta,
por sua vez, deve ser compreendida como uma variação dos estados
de energia como resultado da ação das forças no tempo; entendida
como alteração nos estados das forças, a mudança deve ser vista
como contínua e absoluta, pois a força não pode permanecer um
só instante imóvel. Tudo que percebemos como imóvel é apenas
o resultado de nossa incapacidade de perceber a mudança num
tempo que não pode ser apreendido por nossa unidade de medida
temporal. Assim, no fundo, os movimentos e mudanças dos estados do mundo considerados por nós como lentos ou rápidos não se
deixam medir segundo uma unidade supostamente absoluta. Nesse
sentido, “lento” ou “rápido” seriam apenas determinações relativas
a uma estrutura particular de percepção da mudança. O “absolutamente lento” para uma certa configuração perceptiva equivaleria
então à permanência e à imobilidade.
Na verdade, segundo Nietzsche, se houvesse realmente, no
mundo do devir, um só instante de imobilidade da força em sentido estrito, isso engendraria uma aniquilação sistemática do movimento total do mundo do vir-a-ser. Se a energia dinâmica que
constitui os estados da força em constante alteração encontrasse
uma estabilidade, chegaríamos no fim das contas a um estado de
repouso ou equilíbrio absoluto que Nietzsche, seguindo alguns
outros pensadores e cientistas da época, chamou de Gleichgewichtszustand23. Uma vez alcançado esse estado, não se poderia mais
23 Para uma análise da discussão da época sobre a tese de um estado de equilíbrio no
universo, sobretudo com relação ao princípio de conservação da energia, e sobre a
recepção de Nietzsche dessa discussão através de diferentes fontes científicas de seu
tempo, cf. MITTASCH 14, p. 113-114, ABEL1, pp. 381-395, ZITTEL 30, p. 408-409.
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sair dele24. Contudo, já que não chegamos a um tal estado de coisas
– e a existência do próprio pensamento enquanto um devir é, para
Nietzsche, uma evidência fenomenológica para tal afirmação25 –
devemos concluir que este estado não é possível. Em suas reflexões
sobre o eterno retorno, encontramos uma justificativa para tal conclusão. Trata-se da tese segundo a qual o tempo é infinito. Esta tese
implica que se um tal estado não ocorreu no passado (considerado
aqui como um tempo passado infinito), pois, se tivesse ocorrido,
não se poderia ter dele saído, tampouco pode ele ocorrer no futuro:
Se o mundo tivesse um fim, ele deveria ter sido alcançado. Se
houvesse, para ele, um estado final involuntário, este também deveria ter sido alcançado. Se ele estivesse, em algum grau, sujeito à
permanência e ao enregelamento, ao “Ser”; se ele tivesse, em apenas um momento de todo seu devir, essa capacidade para do “Ser”,
todo o devir, por sua vez, já teria encontrado seu fim, assim como
todo pensamento, toda “mente”. A existência da “mente” como um
devir prova que o mundo não tem um fim, um estado final, e que ele
é incapaz do Ser (Nachlass/FP 1885, 36[15], KSA 11.556-7).
Não entraremos aqui em uma análise mais detalhada desta
tese, o que demandaria um tratamento mais profundo da teoria do
eterno retorno. Nos limitaremos, portanto, à conclusão de que, uma
vez que a temporalidade implica a mudança e que a força aí atuante não pode um só instante permanecer em repouso, a existência
objetiva do tempo nos conduz à tese do devir absoluto.
24 A esse respeito, ver ainda a correspondência entre Nietzsche e Peter Gast de julho
de 1885 (cf. respectivamente KGB III 4.34, KGB III 3, p. 69 e KWB III 4, p. 42)
acerca do recém lançado livro de Paul Widemann, Erkennen und Sein (Conhecimento
e Ser), na qual encontramos reflexões interessantes sobre o tema em questão e sobre
as noções de tempo, espaço, matéria e força. Infelizmente não há espaço aqui para
uma discussão dessa correspondência.
25 Cf. KSA XI, 36[15]. A esse respeito, ver ainda SMALL 22, p. 100.
260
cadernos Nietzche 29, 2011
Do idealismo transcendental ao naturalismo
8. Tempo, espaço e força: fenomenologia e naturalismo
É possível notar, finalmente, que a consequência da tese da
realidade objetiva do tempo é, para Nietzsche, uma forma de realismo
que se apoiará nas ciências naturais para o desenvolvimento do
modelo mais adequado para a compreensão do real. É sobretudo
a partir de Humano, demasiado Humano que vemos essa tendência naturalista se desenvolver de forma mais clara, associada fundamentalmente àquilo que Nietzsche chama de filosofar histórico
(MA/HH I 2, KSA 2.24-5). De acordo com ele, o erro básico comum
aos filósofos (seu alvo parece ser sobretudo os filósofos transcendentais) é sua falta de sentido histórico, na medida em que eles
não compreendem ou não querem compreender que o homem,
assim como o mundo em geral, veio a ser, e que também nossas
faculdades cognitivas vieram a ser. Ou seja, aquilo que os filósofos transcendentais como Kant e Spir consideram como uma estrutura cognitiva a priori fixa e imutável, que seria comum a todos
os homens independentemente do desenvolvimento histórico e dos
processos evolutivos, é posto por Nietzsche em movimento. Essas
estruturas a priori e, por conseguinte, o mundo como representação que delas emerge, encontram-se assim em um lento e gradual
vir-a-ser que poderia ser progressicamente desvelado a partir de
uma investigação genealógica, uma investigação que nos colocaria
diante da história natural do surgimento do pensamento (MA/HH I
18, KSA 2.38-40).
Essa radicalização da tendência naturalista que já estava presente em “Verdade e mentira” está claramente vinculada ao abandono definitivo da tese do idealismo transcendental do tempo por
parte de Nietzsche e ao seu comprometimento com uma forma de
realismo temporal. Contudo, devemos observar que a recusa de
Nietzsche da idealidade do tempo não toca a idealidade do espaço. Pode parecer estranho, à primeira vista, que possamos conceber um naturalismo que negue a existência do espaço, já que a
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261
Mattioli, W.
natureza da qual tratam as teorias científicas que o sustentam, sobretudo as teorias evolutivas, é estruturada espaço-temporalmente.
Apesar disso, Nietzsche parece se direcionar cada vez mais a um
modelo puramente dinâmico de explicação da natureza que abdica
do conceito de espaço ao abandonar o conceito de matéria. Desde
suas reflexões de juventude, mesmo antes de romper com a tese
da idealidade do tempo, ele parece considerar o espaço como uma
intuição ou representação de segundo grau26. De acordo com ele,
o espaço é o resultado da aplicação de nossas estruturas perceptivas e de nossas categorias de representação à multiplicidade das
sensações, e não corresponde a nada de ontologicamente real na
esfera do devir27. “Nossos sentidos nunca nos mostram uma contiguidade, mas sempre uma sucessão. O espaço e as leis humanas
do espaço pressupõem a realidade de figuras, formas, substâncias,
e sua durabilidade, isto é, nosso espaço só é válido para um mundo
imaginário. Nada sabemos do espaço que pertence ao fluxo eterno
26 Cf. por exemplo o seguinte fragmento de 1872: “Devemos deduzir a sensação do
espaço por metáfora a partir da sensação do tempo – ou o contrário?” (Nachlass/FP,
19[210], KSA 7.484), e também o fragmento 26[12] de 1873, já mencionado aqui,
onde Nietzsche apresenta sua teoria dos átomos temporais (Zeitatomlehre). Trata-se
de um modelo dinâmico, inspirado pela física de Boscovich, que reduz o mundo existente a pontos temporais discontínuos e sem extensão, afim de superar as dificuldades
e paradoxos ligados à noção de movimento no quadro espaço-temporal do mecanicismo clássico. Segundo esse modelo, o mundo das forças teria uma dimensão puramente temporal, constituída por pontos e linhas temporais que interagem umas com
as outras formando figuras provisórias, as quais, por sua vez, seriam traduzidas pela
representação em uma dimensão espacial: “A essência da sensação consistiria em
sentir e medir de forma cada vez mais sutil essas figuras temporais; a representação
as constrói em termos de justaposição e esclarece então a marcha do mundo segundo
essa justaposição espacial.” (Nachlass/FP, 26[12], KSA 7.575-6) Ou seja, a representação do espaço é o mero resultado de um ser reprodutor que mantém os momentos
anteriores das linhas temporais ao lado dos momentos presentes através de uma espécie de “retenção”. “Nisso, nossos corpos são imaginados. Assim, só há contiguidade
na representação. […] As leis do espaço seriam, em sua totalidade, construídas, e não
garantiriam a existência do espaço.” (idem)
27 Cf. LOPES 18, p. 251-252 e p. 276.
262
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
das coisas” (Nachlass/FP 1881, 11[155], KSA 9.500) não tem uma
estrutura espacial. A sugestão de Nietzsche parece ser, aqui, que a
realidade seria puramente temporal. Como vimos, esta idéia já estava presente no jovem Nietzsche, particularmente em sua tentativa
de desenvolver um modelo dinâmico, inspirado pelas teorias físicas de Bocovich, que reduz o mundo existente a pontos temporais
inextensos. Estes, por sua vez, coincidiriam com instantes pontuais
da sensação, de forma que seria possível reconduzir a atomística
do tempo a uma teoria da sensação. Seguindo uma indicação que
parece provir de Spir (cf. SPIR 23 II, p. 19), Nietzsche pressupõe
uma espécie de disposição da representação para reter os dados
sucessivos da sensação – pois, segundo Nietzsche e Spir, não pode
haver simultaneidade real no âmbito das sensações – num presente
contínuo, criando assim nossa intuição do espaço.
A referência a essas reflexões do jovem Nietzsche tem por fim
chamar atenção para o fato de que, para nosso filósofo, desde suas
reflexões de juventude, o tempo e a experiência da temporalidade
parecem gozar de uma prioridade respectivamente “ontológica” e
“fenomenológica” face à experiência do espaço e às intuições a ela
associadas. É nesse sentido que devemos compreender sua simpatia pelos modelos puramente dinâmicos de explicação da realidade,
como o modelo de Boscovich. Além de ter desempenhado um papel
fundamental para o desenvolvimento da noção de pontos temporais
em sua Zeitatomlehre, este modelo inspirou profundamente a crítica madura de Nietzsche aos conceitos de base do mecanicismo,
sobretudo ao conceito de matéria. No aforismo 12 de Além do bem
e do mal, ele menciona o físico e o reconhece como o primeiro
a abjurar a idéia de um substrato último do mundo corporal, de
uma substância material fixa que estaria na base de todo fenômeno:
“Boscovich ensinou a abjurar a crença na última parte da terra
que “permanecia firme”, a crença na “substância”, na “matéria”,
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263
Mattioli, W.
nesse resíduo e partícula da terra, o átomo: foi o maior triunfo sobre
os sentidos que até então se obteve na terra” (JGB/BM 12, KSA
5.26-7).
Os sentidos aos quais Nietzsche se refere no final dessa passagem parecem ser principalmente os sentidos da visão e do tato,
que são os responsáveis por nossa representação do espaço e dos
corpos que o preenchem. Através da audição, por exemplo, cujas
sensações nos são dadas num modo puramente temporal, nunca
chegaríamos à representação do espaço, a qual é primariamente
tributária da visão: “A partir do olho, nunca chegaríamos à representação do tempo; a partir do ouvido, nunca à representação do espaço. A sensação do tato corresponde à sensação da causalidade”
(KSA VII, 19[217])28. Nesse sentido, Nietzsche sugere que as concepções e noções básicas do mecanicismo são prisioneiras de uma
ontologia substancialista cujas raízes fenomenológicas podem ser
explicadas pela tirania exercida pelos sentidos da visão e do tato
na nossa representação ordinária do mundo29. Assim, ao abandonar
os conceitos fundadores desta ontologia, Boscovich se insere na
história do pensamento como “o maior e mais vitorioso adversário
da evidência sensível” (JGB/BM 12, KSA 5.26-7).
Como indicado, dentro desse contexto, o abandono do conceito
de matéria do mecanicismo e a opção por uma interpretação puramente dinâmica do mundo parecem trazer consigo um tipo de realismo científico moderado comprometido com uma ontologia sem
espaço: “O espaço é, assim como a matéria, uma forma subjeitva. O
28 Encontramos algumas considerações semelhantes no artigo de Otto Liebmann: “Über
die Phänomenalität des Raumes” (cf. LIEBMANN 12, p. 47-48 e p. 68).
29 A esse respeito, ver os seguintes fragmentos: Nachlass/FP 1885, 43[2], KSA 11.7012: “Negação do espaço vazio e redução da mecânica à tirania do olho e do tato”; KSA
XI, 34[247]: “a concepção mecanicista de pressão e impacto, apenas uma hipótese
baseada na evidência visual e no sentido do tato”; KSA XIII, 14[79]: “O mundo
mecanicista é imaginado da mesma forma que o olho e o tato se representam um
mundo”. A esse respeito, ver ainda LOPES 13, p. 251, nota 210.
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
tempo não.” (Nachlass/FP 1880, 1[3], KSA 9.9) Nietzsche acredita
que nosso conceito de espaço está intimamente associado à nossa
representação da matéria. É somente através da representação de
um espaço vazio que construímos nosso conceito de espaço, isto é,
o espaço é algo que só pode ser concebido e compreendido com
relação à sua capacidade de ser preenchido por uma matéria extensa. “Não há matéria – não há átomo […] Não há espaço. (A noção
pré-concebida de um “vazio de matéria” é que engendrou a suposição de espaços.)” (Nachlass/FP 1883-4, 24[36], KSA 10.663-4)
Por outro lado, e de forma análoga, assim como o espaço é indissociável da matéria, o tempo é indissociável da força30. Assim, um
modelo ontológico, no qual tudo o que existe essencialmente são
forças interagindo entre si e produzindo um devir constante e absoluto, implica uma dimensão puramente temporal31.
Portanto, se o espaço é, ao contrário do tempo, uma simples
forma subjetiva à qual nada corresponde no mundo do devir, a
única experiência que poderia nos apresentar fenomenologicamente algo de real seria um tipo de experiência pura do tempo,
não reificada pelas relações espaciais; uma experiência íntima
da temporalidade imanente ao devir de nossas representações e
30 Ver, a esse respeito, o comentário de Stambaugh em seu livro: Untersuchungen zum
Problem der Zeit bei Nietzsche (Stambaugh 25, p. 84-85), onde ele argumenta que a
concepção nietzscheana do tempo como essência íntima da força – em oposição ao
tempo da esfera perspectiva, o qual, enquanto representação do tempo, é sempre o produto de uma certa unidade temporal orgânica – não pressupõe um universo temporal
“no qual a força desdobra suas qualidades; antes, esse tempo se encontra na própria
força e deve de algum modo ali se desdobrar.” Isto significa que “o tempo não é uma
sequência sucessiva na qual as forças se efetivam, mas, antes, que o tempo repousa
unitariamente na força, isto é, ele deve se realizar como a unidade pertencente a essa
força.” Por fim, “a força não está no tempo; antes, é o tempo que está “na” força, isto
é, ele faz parte essencial da constituição da força.”
31 Nesse sentido, seguindo uma sugestão de Stegmaier, podemos arriscar a suposição de
que, “se Nietzsche determinou “o mundo visto de dentro” como “vontade de poder e
nada mais” (JGB/BM 36, KSA 5.54-5), da mesma forma pode-se agora determinar a
vontade de poder, “vista de dentro”, como tempo.” (STEGMAIER 26, p. 226)
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265
Mattioli, W.
conteúdos psíquicos, já que esta temporalidade, apesar de não corresponder estritamente ao caráter absoluto do devir universal, está
nele imerso32. Trata-se aqui de uma perspectiva essencialmente
internalista, já que a intuição do mundo exterior está sempre necessariamente adequada à forma reificante do espaço.
O argumento geral apresentado neste trabalho pode então ser
resumido da seguinte forma: 1) ao contrário da realidade do espaço, a realidade do tempo não pode ser negada, pois ela é evidente nos processos de representação, e o argumento a favor da
idealidade do sentido interno e da existência de um pensamento
puro fora do tempo é insustentável33; 2) com a realidade objetiva do
tempo, afirmamos assim a realidade objetiva da mudança, isto é,
temporalidade e mudança se implicam mutuamente em função da
ação temporal das forças; 3) dada a realidade da mudança, é preciso concluir que o devir é constante e absoluto, não comportando
nenhum repouso, pois a força que engendra a mudança não pode
permanecer um só instante em repouso; 4) isso significa que o que
percebemos como permanente é apenas o resultado de uma unidade subjetiva de medida e percepção do tempo e da aplicação de
nossas categorias de permanência, por meio das quais a experiência se torna possível em sua integralidade; ou seja, a permanência
é uma mera ilusão: heraclitismo / teoria do erro.
Para concluir, notemos que o fio condutor da interpretação proposta aqui se funda primeiramente na evidência fenomenológica
da temporalidade imanente aos conteúdos da consciência. A partir
de uma inversão do argumento kantiano acerca do fenomenismo da
32 “Nós pertencemos ao caráter do mundo, não há dúvida! Só temos acesso a ele através
de nós” (Nachlass/FP 1885-6, I[89], KSA 12.33).
33 Cf. ainda o seguinte fragmento: “O que nos separa tanto de Kant quanto de Platão e
Leibnitz: acreditamos apenas no devir também no mental e espiritual, somos históricos de cima a baixo. […] O modo de pensar de Heráclito e Empédocles ressurgiu.
Tampouco Kant superou a contradictio in adjecto do “espírito puro”: nós, porém - - -”
(Nachlass/FP 1885, 34[73], KSA 11.442).
266
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Do idealismo transcendental ao naturalismo
experiência interna, acreditamos poder encontrar um ponto cervical para uma análise imanente do devir em Nietzsche. Ao contrário
de Kant, que, por sua vez, não parece ter sido capaz de sustentar de maneira consequente a tese da idealidade transcendental
do tempo e, assim, sua versão da tese do fenomenismo da experiência interna, em Nietzsche, a temporalidade dessa experiência
desempenhará um papel decisivo na elaboração de uma teoria do
devir. Uma vez que o devir enquanto tal não pode, em sentido estrito, ser experienciado ou representado empiricamente, já que
nossas faculdades de percepção e representação são regidas por
uma normatividade epistêmica que o falsifica, falar do devir sem
recair numa metafísica dualista implica em encontrar, na imanência da própria experiência, o elemento que seja capaz de justificar
fenomenologicamente uma tal concepção. Este elemento é, a nosso
ver, a temporalidade. Entretanto, essa abordagem em certo sentido fenomenológica não pressupõe de modo algum a noção de uma
transparência plena da consciência a si mesma, noção presente
nas abordagens clássicas da fenomenologia. Na verdade, Nietzsche
mantém ainda a tese do fenomenismo da consciência, mas através
de argumentos bastante distintos daqueles utilizados por Kant e
que se baseiam numa noção de inconsciente associada a uma teoria
dos afetos. Esta noção desvincula Nietzsche de forma definitiva da
tradição fenomenológica clássica. Neste sentido, a temporalidade
seria o único elemento que, no interior da tese do fenomenismo,
adquire um estatuto particular enquanto evidência fenomenológica
a favor do caráter ontológico da mudança, a partir da qual a tese
do devir poderia ser justificada sem estar condenada a recair numa
forma de metafísica dualista.
Abstract: This article offers an interpretation of Nietzsche’s notion of
time on the basis of a dialogue with the transcendental tradition. The
interpretation offered here sees his naturalism present especially in his
intermediary and mature work as a mild form of scientific realism which
is founded in his abandonment of the Kantian thesis of the transcendental
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267
Mattioli, W.
ideality of time. Thus, unlike a purely phenomenological theory of
becoming, which considers it only in the sense of a “chaos of sensations”,
and as opposed to a merely metaphorical interpretation of it, we intend
to show that what is peculiar to Nietzsche´s position should be described
as an effective ontological commitment with a world of becoming. In this
sense, one of the central points of this work will be the attempt to justify
this ontological commitment on the basis of an analysis of Nietzsche›s
understanding of temporality.
Keywords: time – becoming – idealism – realism – ontology
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Artigo recebido em 25/07/2011.
Artigo aceito para publicação em 05/08/2011.
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cadernos Nietzche 29, 2011
Naturalismo descritivo e ficção normativa
Naturalismo descritivo e
ficção normativa: a questão
dos valores sob a perspectiva
do espírito livre nietzschiano
Oscar Augusto Rocha Santos*
Resumo: O artigo busca propor uma resposta para o aparente desacordo
entre certas demandas descritivas provenientes do naturalismo presentes
na psicologia moral formulada por Nietzsche e seu engajamento em prol
de um específico conjunto de valores notadamente vinculados ao ideal de
vida do espírito livre.
Palavras-chave: naturalismo - espírito livre – valor - psicologia moral
- normatividade
Neste artigo buscaremos apresentar algumas considerações
acerca do naturalismo moral de Nietzsche, tendo como pano de
fundo certa articulação entre sua teoria de valores e o conceito
de espírito livre, aqui tomado como ideia central de sua filosofia
intermediária1. De maneira mais específica, trata-se de fornecer algum tipo de resposta ao suposto descompasso existente entre certas
* Professor da Fundação Cultural Campanha da Princesa (FCCP) vinculada a Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Minas Gerais, Brasil. E-mail:
[email protected]
1 Segundo nota do tradutor Paulo César de Souza, “na contracapa da primeira edição
[de A gaia ciência] havia o seguinte texto, redigido pelo próprio autor: ‘Este livro
conclui uma série de obras de Friedrich Nietzsche, cujo objetivo comum é estabelecer uma nova imagem e novo ideal do espírito livre. A esta série pertencem: /
Humano, demasiado humano. Com apêndice: Opiniões e sentenças variadas./ O andarilho e sua sombra./ Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais./ A gaia ciência”.
(NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005, p. 318).
cadernos Nietzche 29, 2011
271
Santos, O. A. R.
características descritivas da psicologia moral de Nietzsche e seu
manifesto empenho na defesa de valores ligados ao ideal de vida
do espírito livre. Assim, tomamos a axiologia nietzschiana como um
modelo biológico-historicista de interpretação, ou seja, uma teoria
de valores que se sustenta, por um lado, no senso histórico e sua
capacidade de proporcionar uma perspectiva mais ampla e realista
do fenômeno moral, e por outro, em certo naturalismo metodológico, cujo foco se atém à pluralidade constitutiva do agente e os aspectos fisiológicos envolvidos em suas valorações. Esta perspectiva
implica por sua vez em uma psicologia moral de cunho naturalista
que tende a descrever a estrutura das ações humanas a partir de fatos fisiológicos relativos aos diferentes tipos de indivíduos, de modo
que seus valores sejam determinados segundo critérios de ajustamento entre estes valores e seus impulsos e afetos predominantes,
sendo, de todo modo, algo decididamente não universalizável. Ora,
o que de imediato se espera de alguém que adote este tipo de perspectiva naturalista para a descrição da estrutura da ação humana é
que também assuma ou uma posição de indiferença com relação à
contrapartida normativa para tal tese, ou que acate as consequências de um possível relativismo axiológico. De qualquer maneira,
como acreditamos que a posição nietzschiana não se reduz nem a
uma nem a outra das alternativas, pretendemos, a partir destes pressupostos, apontar de que modo seria possível buscar a conciliação
entre esta descrição naturalista da psicologia moral e o inegável
engajamento do filósofo em prol dos espíritos livres, ou seja, determinando certos limites para seu naturalismo moral, de maneira que
fique reservado o devido espaço para algum nível de intervenção
normativa, mesmo que edificada a partir de ficções conceituais por
sua vez fundadas em uma relação honesta de aceitação de certos
erros e ilusões regulativas.
272
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Naturalismo descritivo e ficção normativa
Naturalismo descritivo
Brian Leiter inicia um de seus estudos sobre o naturalismo
moral nietzschiano partindo da seguinte distinção: por um lado teríamos o que ele chama de naturalismo substantivo – preferencialmente tomado como a crença no caráter estritamente natural de
tudo aquilo que existe, inclusive as manifestações humanas ditas
mais espirituais como a arte e a moral – e por outro um naturalismo
metodológico – este por sua vez relacionado à continuidade, tanto
de métodos quanto de resultados, entre a atividade filosófica e as
ciências empíricas2. Quanto ao primeiro sentido do naturalismo,
salvo casos específicos de estudos dedicados a Nietzsche3, parece
haver certa concordância em se dizer que o filósofo alemão assume
uma posição abertamente contrária a toda forma de ontologia metafísica4, considerando toda a realidade como determinantemente
natural. De todo modo, é preciso que haja clareza quanto a esta
questão para que não se radicalize sua perspectiva ao ponto de
fazer da filosofia moral nietzschiana algum tipo de fisicalismo reducionista, a partir do qual a moralidade pudesse ser explicada por
2 Cf. LEITER, B. Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002, p. 3-5.
3 Talvez possamos afirmar que Heidegger seja hoje considerado como representante
quase isolado desta leitura que toma a filosofia nietzschiana a partir de algum sentido metafísico. Sem a menor pretensão de entrar aqui nos méritos da leitura heideggeriana, apenas mencionamos suas conferências sobre Nietzsche como tentativa
paradigmática de caracterizar seu pensamento como uma espécie de encerramento da filosofia metafísica, mas ainda assim nela circunscrito (cf. HEIDEGGER, M.
Nietzsche. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008, 2v.).
4 É importante aqui ter em vista a existência de diferentes sentidos para a crítica do
conceito de metafísica no contexto da filosofia nietzschiana, mesmo que ele não se
ocupe tanto em esclarecer seu leitor quanto aos modos de discerni-los: por um lado,
pode-se pensar em uma oposição mais abrangente direcionada a toda metafísica
substancialista (o que resolveria parcialmente o problema, já que o naturalismo não
exclui necessariamente toda forma de metafísica) e, por outro, uma crítica à metafísica como doutrina normativa, onde o dualismo ontológico desempenha o papel de
fundamento “objetivo” dos valores.
cadernos Nietzche 29, 2011
273
Santos, O. A. R.
meio de meras reações físico-químicas desenroladas no organismo
do indivíduo5; é necessário antes que se considere, em última instância, o caráter inapreensível dos reais motivos e mecanismos envolvidos na ação humana, sobretudo com relação à impossibilidade
de se fazer um discurso epistemicamente válido, que seja fundamentado na lógica e na inteligibilidade dos fatos objetivos acerca
dos valores e valorações.
Por outro lado, quando se trata do referido naturalismo metodológico, ou seja, quando a questão se dirige à continuidade entre
a atividade filosófica nietzschiana e os métodos e resultados das ciências empíricas, a situação se torna menos consensual e, portanto,
demanda maior atenção. Todavia, antes de avançarmos em direção
a estes problemas de continuidade, gostaríamos de acrescentar à
discussão uma segunda perspectiva concorrente acerca do naturalismo moral de Nietzsche que ao invés de tomá-lo por este duplo
viés, prefere descrevê-lo como um naturalismo em sentido amplo.
Assim, Christopher Janaway irá defini-lo fundamentalmente como
uma atitude de oposição a todo tipo de metafísica transcendente
– seja aos moldes de Platão, do cristianismo ou mesmo de Schopenhauer6 – o que, segundo Leiter, seria uma correta descrição
do naturalismo nietzschiano, mas que em todo caso não apresenta
5 “Nietzsche não pretende reduzir complexos afetivos a seus constituintes ontológicos
elementares, sejam eles químicos ou físicos, mas simplesmente mostrar que a reivindicação metafísica de uma origem transcendente para determinados afetos ignora que
eles resultaram de um processo de sublimação de um mesmo fenômeno demasiado
humano” (LOPES, R. Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche. Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais, 2008, p. 274 (Tese de doutorado)).
6 Derivados deste primeiro aspecto central, Janaway indica ainda outras caracteísticas
do naturalismo nietzschiano como: a rejeição de noções tais como alma imaterial,
vontade livre ou intelecto puro e autotransparente; a ênfase no corpo e na natureza
animal dos seres humanos; a tentativa de explicar diversos fenômenos recorrendo
aos impulsos, instintos e afetos, localizados por ele na nossa existência física e corpórea; e por fim, a tarefa de tradução do homem de volta à natureza (cf. JANAWAY,
C. Naturalism and genealogy. In: PEARSON, K. A. (org.). A companion to Nietzsche.
Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 337).
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Naturalismo descritivo e ficção normativa
qualquer elemento capaz de unificar suas diferentes características
de modo coerente, papel que caberia ao sentido de continuidade de
métodos e resultados com as ciências.
Este naturalismo metodológico de Nietzsche, afirma Leiter, seria evidenciado pelo modo recorrente segundo o qual “visa oferecer
teorias que expliquem diversos fenômenos humanos (especialmente
o fenômeno da moralidade), a partir dos atuais resultados científicos” – isso somado à prática de “modelar suas teorias a partir das
ciências, no sentido de se buscar revelar as determinantes causais
destes fenômenos partindo de fatos psicológicos e fisiológicos sobre
as pessoas”7. Entretanto, conforme destaca Janaway, ambas as teses
de continuidade apresentam problemas, principalmente se tomadas
como expressão daquilo que definiríamos como sendo a atividade
filosófica nietzschiana propriamente dita: primeiro e de forma mais
dura, ele discorda da continuidade de métodos, pois, se basta emular a ciência, se basta tomá-la como modelo descritivo firmado em
explicações causais dos fenômenos em geral para daí concluir que
Nietzsche oferece uma visão naturalista da moralidade, então teríamos que admitir que qualquer sistema de crenças como o cristianismo ou mesmo a astrologia sejam formas de naturalismo, já que
também estes se valem de certas cadeias causais em suas explicações para a ação humana8. Por conseguinte, se buscamos salvar a
tese de Leiter evocando a continuidade de resultados, resta ainda
outra crítica, ainda que mais amena, de que certos resultados científicos serviriam não como fundamento ou justificação para o naturalismo moral, mas apenas como um pano de fundo que garantiria
7LEITER, op. cit., p.8.
8 Pensamos aqui em formulações “causais” do tipo: “Se ele age assim é porque sucumbe à tentação do Mal” ou ainda, “ele age desta forma porque é do signo de
gêmeos”. Em ambos os casos, mesmo que aceitemos a banalidade dos argumentos,
ainda assim são formulações causais, no sentido de que certos comportamentos são
explicados como efeitos de causas específicas (a influência de um demônio, ou o
alinhamento dos astros).
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certo critério de qualidade às suposições causais. Em outras palavras, Janaway concede uma forma mais fraca de continuidade de
resultados, no sentido de que as explicações filosóficas devam apenas não ser falseadas por meio do apelo aos resultados da melhor
ciência disponível9. A resposta de Leiter às críticas será de que
não passam de meros mal-entendidos: primeiramente, por desconsiderar que o naturalismo metodológico de Nietzsche é de viés essencialmente especulativo10; e, além disso, por não considerar que
a única continuidade de resultados relevante ao caso diz respeito
ao materialismo alemão do século XIX, mais especificamente com
relação aos avanços da fisiologia11. Dito isto, vejamos os dois casos
em separado e suas consequências para nossa problemática.
9 Cf. JANAWAY, op. cit., p. 338-339.
10 “First, I claimed that Nietzsche is what I called a Speculative M-Naturalist, that is,
a philosopher, like Hume, who wants to ‘construct theories that are modeled on the
sciences…in that they take over from science the idea that natural phenomena have
deterministic causes’ (Cf. LEITER, B. Guidebook of Nietzsche on morality. London:
Routledge, 2002, p. 5). Speculative M-Naturalists do not, of course, appeal to actual
causal mechanisms that have been well-confirmed by the sciences: if they did, they
would not need to speculate! Rather, the idea is that their speculative theories of human nature are informed by the sciences and a scientific picture of how things work”
(LEITER, B. Nietzsche’s naturalism reconsidered. In: GEMES, K.; RICHARDSON,
J. (Orgs.). The Oxford handbook of Nietzsche. Chicago, 2008, p. 3). A tradução para o
português deste artigo se inclui neste número dos Cadernos Nietzsche sob o título de
O naturalismo de Nietzsche reconsiderado.
11 “But I also emphasized a second aspect of Nietzsche’s M-Naturalism. As I noted,
some M-Naturalists demand a kind of ‘results continuity’ with existing science: ‘philosophical theories’ should, they believe, ‘be supported or justified by the results of
the sciences’ (Cf. LEITER, Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge,
2002, p. 4). I argued, however, there is only one kind of ‘results continuity’ at work
in Nietzsche, namely, the result that the German Materialists of his day thought followed from advances in physiology, namely, ‘that man is not of a higher…[or] different
origin than the rest of nature’ (LEITER, op. cit., p. 7). Arguably, Nietzsche’s main bit
of Substantive Naturalism – meaning ‘the (ontological) view that the only things that
exist are natural’ (LEITER, op. cit., p. 5) – is a consequence of this results continuity.” (LEITER, op. cit., p. 3-4).
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Naturalismo descritivo e ficção normativa
Quando Leiter afirma que o naturalismo metodológico nietzschiano é essencialmente especulativo, ele pretende deixar claro
que não se trata efetivamente de fazer ciência, mas antes de se
valer dela como modelo a partir do qual seria possível a emulação
da atividade mesma, buscando dela se aproximar o máximo possível; deste modo, ele irá vincular o procedimento nietzschiano ao de
David Hume, por exemplo, aproximando ambos das consequências
metodológicas da ciência newtoniana12. De todo modo, com relação
ao que diz Leiter sobre a emulação da ciência por meio de especulações acerca das determinantes causais dos fenômenos morais,
pensamos que seja mais acertado dizer que se trata, sobretudo, de
aderir a certo princípio de economia conceitual próprio à atividade
científica, de forma que se busque dar conta da tarefa de descrever
a estrutura da ação humana a partir de conceitos mínimos e abrangentes – o que manteria válida a comparação com a especulação
humeana e, consequentemente, com a ciência newtoniana. Além
disso, é preciso ter em conta que a postura própria da atividade
científica, devido às suas condições de moderação e realismo, se
mostraria mais adequada a uma proposta que se almeja poder contrapor e mesmo ocupar a lacuna deixada pelo abandono do discurso
12 “[Hume] quer fazer pela esfera humana o que ele acredita que a filosofia natural,
principalmente na pessoa de Newton, fez pelo restante da natureza. A teoria newtoniana proporcionou uma explicação completamente geral acerca do porque das coisas
no mundo acontecerem como acontecem. Ela explica eventos físicos numerosos e
complexos por meio de princípios que, comparativamente, são poucos, extremamente
gerais, talvez mesmo universais. De modo similar, Hume quer uma teoria completamente geral da natureza humana para explicar por que os seres humanos agem,
pensam, percebem e sentem do modo como em geral o fazem (...). [A] chave para
compreender a filosofia de Hume é vê-lo como proponente de uma teoria geral da natureza humana da mesma maneira que, por exemplo, Freud e Marx foram. Todos eles
buscaram um tipo de explicação geral dos vários modos segundo os quais os homens
pensam, agem, sentem e vivem (...). O objetivo de todos os três é completamente geral
– eles tentam propor uma base para explicar tudo acerca das questões humanas. E as
teorias que eles propuseram são todas, grosso modo, deterministas.” (STROUD, 1977,
p. 3-4. Apud. LEITER, op. cit., p. 3).
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metafísico a respeito dos valores e da moral. Portanto, poderíamos
dizer que a continuidade de métodos entre a filosofia e a ciência
fundamenta o naturalismo moral de Nietzsche se considerada como
uma relação de aprendizado a partir da qual o filósofo pode adquirir a virtude e o rigor necessários para “alcançar um fim de modo
pertinente”, o que equivale a dizer que a ciência proporciona à filosofia um incremento da habilidade ou capacidade metodológica,
porém não um saber propriamente dito. Deste modo, afirma Nietzsche, ter sido um homem de ciência é valioso “em vista de tudo
o que se fará depois” (MA I/HH I § 256, KSA 2.212)13, indicando
assim o papel preparatório da ciência em relação a outras atividades humanas como, por exemplo, a filosofia e a psicologia moral.
Ora, segundo nos parece, estas primeiras observações sobre a continuidade metodológica nos permitem extrair também algumas consequências com relação à continuidade de resultados, na medida
em que evidencia que o interesse de Nietzsche em aproximar sua
filosofia moral das ciências naturais está antes voltado aos ganhos
práticos, o que seria suficiente para pôr os resultados da ciência
em segundo plano, em um sentido mais fraco como sugerido por
Janaway. Entretanto, como Leiter destaca que estes devem ser limitados aos resultados relativos ao Materialismo alemão do século
XIX, mais especificamente aos resultados referentes à fisiologia e
às ciências biológicas, pensamos que seja importante uma palavra
a mais sobre o assunto.
Segundo Leiter, a única continuidade de resultados significativa para a filosofia moral de Nietzsche seria aquela exposta pela
prédica materialista de sua época de que “o homem não é de uma
origem superior ou diferente em relação ao restante da natureza”14,
13 Todas as referências diretas ao texto de Nietzsche presentes neste trabalho seguem
as traduções de Paulo César de Souza para a Coleção das obras de Nietzsche, editada
pela Companhia das Letras.
14 LEITER, B. Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002, p. 7.
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e aponta como exemplo máximo desta linha de pensamento o livro
Força e matéria do médico alemão Ludwig Büchner, onde se encontrariam as principais teses do materialismo da época. Destacamos em seguida uma passagem do livro que nos parece ilustrar bem
a linha geral de suas formulações:
As leis que regem o macrocosmo ou o Universo (...) são também
as que regem na natureza, o microcosmo ou o homem, no ser e no
pensamento do qual elas de qualquer sorte se reflectem, ou se contemplam. Que o homem com todas as suas vantagens e todas as
suas faculdades seja, não obra da divindade, mas produto da natureza, resultando, como todas as criaturas que o rodeiam, de um
desenvolvimento sucessivo e natural e de evolução espontânea, é
essa uma grande e brilhante verdade que não pode por forma alguma ser contestada hoje senão pela ignorância ou pela obstinação
do caso pensado15.
Sem dúvida que o pensamento nietzschiano parece também se
ater a esta relação de pertencimento entre as coisas humanas e a
natureza; porém, quando se trata de dizer que Nietzsche estabelece
uma relação de continuidade entre sua filosofia e os resultados do
materialismo, existem certos fatores a serem considerados que indicam antes um distanciamento significativo entre uma posição e
outra. Mesmo na argumentação de Leiter, a questão dos resultados
propriamente ditos fica em segundo plano na relação de Nietzsche
com o materialismo, sendo este antes uma espécie de inspiração
metodológica – algo que fica bastante claro se tivermos em mente a
fundamental importância e influência do pensamento de Friedrich
Albert Lange sobre Nietzsche desde sua primeira leitura, no ano
de 1866. Desta maneira, como Leiter mesmo ressalta, é antes por
15 BÜCHNER, L. Força e matéria: ou princípios da ordem natural ao alcance de todos.
Porto: Lello e Irmãos Editores, 1958, p. 206-207.
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meio da leitura que faz da obra de Lange que Nietzsche entrará
em contato com todo o aparato conceitual do materialismo, o que
nos permite considerar que a recepção deste aparato seja também
mediada pela posição crítica do autor – algo que não é sequer considerado no comentário de Leiter. Mesmo que chegue a apontar a
posição crítica do autor em relação ao materialismo16, Leiter não
parece concordar com a tese de que haja um alinhamento mais
abrangente entre a filosofia de Nietzsche e a perspectiva crítica
de Lange17. Quando o comentador inglês fala em continuidade de
resultados entre a filosofia nietzschiana e o materialismo alemão
do século XIX, ele toma o naturalismo substantivo de Nietzsche
como sendo uma consequência desta continuidade, no sentido de
que os resultados do materialismo da época propiciaram ao filósofo
o “pressuposto (ontológico) de que as únicas coisas que existem
são naturais”18. Fica assim claro que Leiter não parece considerar
a possibilidade de atrelarmos a filosofia nietzschiana à posição crítica de Lange com relação ao materialismo, ou seja, ele não parece
endossar a tese de que Nietzsche assuma de forma mais programática as conclusões de Lange quanto à discrepância entre o inegável
16 “Lange, himself, was one of a number of ‘neo-Kantian’ critics of Materialism who
held, first, that modern physiology vindicated Kantianism by demonstrating the dependence of knowledge on the peculiarly human sensory apparatus and, second, that
the Materialists were naive in believing science gives us knowledge of the thing-initself rather than the merely phenomenal world” (LEITER, op. cit., p. 66).
17 “See generally, Salaquarda (1978) and Stack (1983). Stack, in my view, overstates
Nietzsche’s debt to Lange, and fails to note their many differences, e.g., Nietzsche
was less critical of materialism than Lange, and Nietzsche plainly repudiated Lange’s
Kantianism (e.g., Lange’s view that ‘[w]e must therefore recognize the existence of
a transcendent order of things . . .’ (1865: 230)). Stack’s book does usefully demonstrate that an influence on Nietzsche can be profound (as evidenced by the views he
would later express) without Nietzsche acknowledging that fact. Thus, for example,
his Nachlass references to Büchner tend to be rather dismissive and rude. Cf. KSA 7:
596, 740. The similarities, however, between Materialist thought and Nietzsche’s own
turn out to be striking” (LEITER, op. cit., p. 65, nota 32).
18LEITER, op. cit., p. 5.
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valor metodológico do materialismo e sua improvável aceitação enquanto tese ontológica. Deste modo, devemos antes ter em conta,
como afirma Rogério Lopes, que “Lange atribui à tendência materialista o mérito de ter fornecido as condições conceituais para
a formação da disciplina metódica, considerada por ele como o
traço essencial de uma cultura científica”, cultura esta capaz de
“redirecionar para o objeto da investigação os impulsos subjetivos
cultivados na tradição idealista”19. Ora, se Lange reserva um papel
ao menos edificante para o idealismo prático em sua perspectiva
crítica, isto segundo a tese antropológica de uma necessidade metafísica inerente ao homem que precisa ser satisfeita, uma afirmação
como a de Leiter, de que Lange demonstraria uma “simpatia intelectual” pelo materialismo justamente por conta de sua oposição ao
idealismo20, fica um pouco despropositada, ou mesmo superficial.
Deste modo, pensamos ser mais apropriada a leitura que restringe
o mérito do materialismo ao âmbito metodológico – como “uma
concepção sóbria e econômica da natureza” que permite “o cultivo
das virtudes epistêmicas necessárias para a criação de uma cultura verdadeiramente científica, na qual a aquisição do método é a
única conquista definitiva”21. Inclusive, se levarmos um pouco mais
adiante a questão do alcance e influência da obra de Lange sobre o
pensamento de Nietzsche, podemos ainda encontrar outra maneira
de pensarmos o sentido especulativo do naturalismo moral nietzschiano, um que fosse além da mera emulação reclamada por Leiter.
Se dermos por certo que a intenção de Lange em sua História
do Materialismo é antes a de indicar um caminho de reconciliação
entre o método materialista e a dimensão edificante do idealismo22,
19LOPES, op. cit., p. 51.
20 “At the same time, Lange’s general intellectual sympathies were clearly with the
Materialists as against the idealists, theologians, and others who resisted the blossoming scientific picture of the world and of human beings” (LEITER, op. cit., p. 66).
21LOPES, op. cit., p. 52.
22 Ainda sobre este ponto: “O materialismo é a tendência que melhor promove nossos
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de modo que o dogmatismo23 consequente da exacerbação de um
dos pólos seja evitado justamente por conta desta contraposição,
então teremos uma indicação mais acurada do que seria o caráter especulativo do naturalismo moral de Nietzsche. Neste sentido,
ressalta Rogério Lopes, para Lange “a especulação deve ser interpretada como o produto dos impulsos estético, arquitetônico,
sintético e ideal da humanidade”, não cabendo à filosofia o papel
de “reprimir tais impulsos, mas de direcionar sua satisfação para
o âmbito apropriado, qual seja, o da ficção conceitual”24. Entretanto, tendo em vista nossa intenção de tomar o espírito livre como
conceito central deste trabalho – o que implica em considerar o
posicionamento geral de Nietzsche durante o período intermediário de sua obra, onde fica marcada precisamente sua tentativa de
estabelecer um discurso filosófico que fosse independente das ficções conceituais da metafísica – é preciso atenção para que não se
perca de foco os limites e continuidades entre os pensamentos de
Nietzsche e Lange, ou ao menos para não ponderarmos de forma
apressada seus entrelaçamentos; de qualquer modo, estas discussões abrem espaço para retomarmos o debate sobre o naturalismo
moral de Nietzsche, porém agora apontando uma segunda frente
crítica, mais orientada a entender de que maneira se conciliam este
viés metodológico do naturalismo nietzschiano e o modo retórico e
quase-artístico por ele adotado para expor suas ideias.
valores epistêmicos, o idealismo a tendência que melhor promove nossos valores não
epistêmicos. A história crítica do materialismo concebida por Lange pode ser lida
como um esforço de reconciliar formalmente esta dupla tendência da cultura ocidental, reconhecendo seus respectivos méritos” (LOPES, op. cit., p. 76).
23 “Esta reconciliação formal aponta por sua vez para uma superação do caráter parcial
de ambas as perspectivas, parcialidade esta decorrente de seu dogmatismo. O idealista dogmatiza na medida em que desconhece o caráter ficcional de seus conceitos e
a dimensão edificante de toda atividade especulativa. O materialista o faz na medida
em que desconhece o caráter puramente fenomênico do discurso científico” (LOPES,
op. cit., p. 76).
24LOPES, op. cit., p. 76.
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Naturalismo descritivo e ficção normativa
Ficção conceitual e normatividade
O problema de conciliação entre o materialismo metodológico
e a forma como Nietzsche expressa sua filosofia moral fica bastante
evidente a partir da contraposição de duas afirmações concorrentes
quanto à sua atividade filosófica: Leiter diz que se olharmos “a efetiva prática filosófica de Nietzsche, i.e., aquilo que mais toma seu
tempo na feitura de seus livros”, encontraremos um naturalismo
“fundamentalmente metodológico”25; para Janaway, ao contrário, o
que caracteriza o efetivo método filosófico de Nietzsche é antes o
“uso de recursos artísticos e retóricos, a incitação dos afetos do
indivíduo, além da exploração das reações pessoais do leitor”26 –
de qualquer maneira, um método onde as ciências teriam papel
bastante limitado, já que Nietzsche toma o método científico como
uma busca impessoal pela verdade, algo livre de afetos e paixões,
eliminando justamente a possibilidade de identificação dos afetos
em seu papel causal na criação dos valores, por meio de sua experimentação pessoal. Deste modo, seria indiscutível a existência
de certo descompasso entre o realismo moderado da perspectiva
metodológica do naturalismo moral e o que às vezes parece ser o
verdadeiro foco da atividade nietzschiana, ou seja, estimular propensões afetivas de modo a propiciar verdadeiras transformações
valorativas – sendo apenas outra forma de expor a dificuldade anteriormente detectada de adequação entre uma visão naturalista da
moral e o engajamento de Nietzsche em prol de uma hierarquia de
valores específica.
A partir desta discussão, Leiter propõe uma solução que nos
parece aceitável, porém somente enquanto estratégia elucidativa,
algo que ele próprio chega a confirmar: é sugerido que se pense em
dois “Nietzsches” – um Nietzsche humeano que busca estabelecer
25 LEITER, op. cit., p. 6.
26 JANAWAY, op. cit., p. 350.
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um discurso acerca da moralidade segundo a perspectiva do naturalismo metodológico, ou seja, por meio da especulação causal
fundamentada nos resultados da ciência; e um Nietzsche terapêutico, preocupado em fazer com que indivíduos que já possuam certa
propensão valorativa se libertem das imposições da moralidade tradicional27. Desta forma, a tarefa de estipular valores – ou a apologia
do tipo de vida do espírito livre – envolveria o alistamento do Nietzsche humeano em prol dos fins do Nietzsche terapêutico, mesmo que
este último se valha de uma variedade de outros recursos artísticos,
retóricos e passionais que estão a seu dispor e que evidentemente
vão além do mero escrutínio da moralidade. É como se houvesse
duas tarefas distintas a serem consideradas, porém decididamente
inseparáveis na prática. O projeto naturalista de Nietzsche seria,
portanto, descrever a moralidade em termos seguramente naturais, sem abrir mão do engajamento em prol de valores específicos,
como tarefa de libertação dos novos espíritos livres com relação à
sua falsa consciência moral, sua falsa crença de que a moralidade
dominante é de fato boa para eles. Este segundo aspecto, que não
faz parte propriamente do projeto naturalista de Nietzsche, seria a
tarefa a qual o filósofo se entregaria de forma mais incisiva e proeminente em seus livros.
Feitas estas primeiras observações, haja vista os caminhos
promissores que nos foram abertos pela aproximação entre a teoria de valores de Nietzsche e a filosofia crítica de Lange, buscaremos explorar um pouco mais esta estratégia de abordagem,
retomando aquilo que dizíamos sobre o sentido especulativo da filosofia formulado por este último em sua História do materialismo.
Ressaltamos anteriormente que, como Lange assume a tese antropológica de uma necessidade metafísica, ele irá entender que cabe
à especulação um papel legítimo e fundamental de proporcionar
27 Cf. LEITER, B. Nietzsche’s naturalism reconsidered. In: GEMES, K.; RICHARDSON,
J. (Orgs.). The Oxford handbook of Nietzsche. Chicago, 2008, p. 11-16.
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ficcionalmente um sentido geral ou uma finalidade para a existência humana. Entretanto, destacamos também que graças ao cultivo
de certas virtudes epistêmicas proporcionado pela inspiração metodológica do materialismo, a especulação adquire condições de
se precaver em relação às pretensões da metafísica imaginativa de
“penetrar a essência da natureza e determinar a partir de noções
puras o que somente a experiência pode ensinar”28. Por conseguinte, conclui Lange, “uma coisa é certa, que o homem necessita
suplementar a realidade com um mundo ideal de sua própria criação, e que as mais altas e nobres funções da sua mente cooperam
em tais criações”29. Ora, se concedermos que a influência de Lange
possa ter se estendido até este ponto, talvez fosse o caso de tomarmos a posição de Nietzsche como sendo justamente uma tentativa
de conciliar ciência e criatividade a partir deste “ponto de vista do
ideal”. Hans Vaihinger, por exemplo, irá aproximar as perspectivas
de Lange e Nietzsche justamente por concluir que ambos endossam
a tese de que “vida e ciência não são possíveis sem concepções
imaginárias ou falsas”30. Desta maneira, deixando de lado a questão do engajamento do jovem Nietzsche em um uso edificante de
sua metafísica de artista, devemos nos perguntar aqui se há como
pensar estas continuidades mesmo no período do espírito livre, haja
vista que um de seus núcleos – como parte do objetivo geral de se
construir uma “nova imagem e novo ideal do espírito livre” – seja
a tentativa de se formular uma proposta de vida possível em um
cenário pós-metafísco; de qualquer modo, poderíamos dizer que o
que Nietzsche se propõe no período intermediário é pensar até que
ponto seria possível abrir mão dos erros fundamentais da vida em
28 LANGE, F. A. The history of materialism and criticism of its present importance.
London: Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD, 1925, p. 340.
29LANGE, op. cit., p. 342.
30 VAIHINGER, H. The philosophy of “as if”: a system of the theoretical, practical and
religious fictions of mankind. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD,
1935, p. 341.
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nome da busca pelo conhecimento científico (FW/GC 110, KSA
3.469) – ou trazendo a questão para nosso caso específico, poderíamos dizer que o problema é entender até que ponto seria possível
conciliar, por um lado, o conhecimento (histórico-naturalista) de
que os valores são uma criação afetiva prudencialmente determinada e, por outro, a própria vida, uma vez que esta só foi possível
graças a erros e ilusões relativas à natureza dos valores e avaliações
– como por exemplo, que eram eternos e imutáveis (FW/GC 115,
KSA 3.474), ou justos e lógicos (MA I/HH I 31-32, KSA 2.51)31.
Assim sendo, nossa questão se encaminharia da seguinte
maneira: tendo em vista que os livros que compõem o período intermediário da filosofia nietzschiana têm como objetivo de grupo
oferecer uma nova imagem e um novo ideal do espírito livre, temos
que admitir como primeira premissa que Nietzsche esteja, ainda
neste momento de sua obra, preocupado em criar ou propor certo
sentido ou valor para a vida, porém de modo limitado, selecionando
um grupo específico de indivíduos aos quais se dirigir; assim, ao
invés de falarmos em um ideal de humanidade, talvez fosse o caso
de falarmos em um ideal do tipo espírito livre. De qualquer modo,
mesmo que se aceite essa premissa, ainda assim o problema de
conciliação entre o conhecimento histórico-naturalista e a criação
de valores permanece.
Nadeen Hussain, por exemplo, irá formular a questão da seguinte maneira: se por um lado Nietzsche parece claramente propor
certo niilismo teórico, no sentido de negar ao mundo qualquer valor
senão o que lhe foi doado pelos homens, por outro, podemos notar uma concomitante preocupação em evitar o niilismo prático, ou
31 Ainda sobre este ponto: “O conhecimento só pode admitir como motivos o prazer e o
desprazer, o proveitoso e o nocivo: mas como se arrumarão esses motivos com o senso
da verdade? Pois eles também se ligam a erros (na medida em que, como foi dito, a
inclinação e a aversão, e suas injustas medições, determinam essencialmente nosso
prazer e desprazer). Toda a vida humana está profundamente embebida na inverdade”
(MA I/HH I 34, KSA 2.54).
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seja, as consequências práticas da crença na ausência total de valor
no mundo32. Tendo como base uma incontornável inflexão do erro
em nossas valorações, a solução apontada por Hussain vai em direção da tese de que Nietzsche (enquanto espírito livre ele mesmo)
partiria de certa ilusão honesta – algo semelhante ao que pensa
Hans Vaihinger ao discorrer sobre aquilo que denomina “doutrina
nietzschiana da ilusão consciente”33. Deste modo, em uma linguagem bastante apropriada à contraposição com Vaihinger, Nadeen
Hussain irá ressaltar que Nietzsche sem dúvida está atento ao fato
de que as “coisas nos aparecem como se fossem valorosas nelas
mesmas, mas que esta aparência é gerada por nós”34, o que implicaria na aceitação de que o ideal de vida proposto por Nietzsche
deve contemplar esta peculiaridade de que seus valores pareçam
valorosos em si mesmos, sem que se perca, contudo, a consciência
desta sua natureza de criação – ou em outras palavras, o espírito
livre teria tanto que se manter fiel a sua integridade intelectual,
que lhe mostra o fundo ilógico e injusto de todas as valorações,
quanto aderir a certa atitude criativa em âmbito valorativo. Ora,
se tivermos em conta que, de maneira geral, a criação dos valores
se vincula ao sentido avaliativo proveniente das orientações afetivas referentes aos impulsos predominantes no indivíduo, então
temos ao menos a indicação de duas coisas: primeiro, que os valores que compõem este ideal do espírito livre têm que atender
ao pressuposto prudencial anteriormente ressaltado, de forma que
32 “Theoretical nihilism is the belief in valuelessness, or as Nietzsche often puts it, goallessness. Practical nihilism is the practical consequence in most agents of the belief,
usually only a tacit belief, in valuelessness or goallessness. Practical nihilism consists of a range of psychological and sociological phenomena. Now it is certainly true
that Nietzsche is extremely concerned about the rise of practical nihilism, but theoretical nihilism is something that he does indeed seem to endorse.” (HUSSAIN, N.
Honest illusion: valuing for Nietzsche’s free spirits. In: LEITER, B.; SINHABABU,
N. (Orgs.). Nietzsche and morality. New York: Oxford University Press, 2007, p. 161)
33 Cf. VAIHINGER, op. cit., p. 341-362.
34HUSSAIN, op. cit., p. 163 (grifo nosso).
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respondam a certa relação de adequação com impulsos e afetos
predominantes no “candidato” a espírito livre; além disso, nos parece iminente que, se ao menos dois impulsos ou afetos específicos
estiverem presentes de modo determinante no indivíduo, os valores
do ideal nietzschiano do espírito livre lhe parecerão como se fossem
valorosos em si mesmos: certa paixão pelo conhecimento, fruto de
sua integridade intelectual, somada a um impulso estético que lhe
garanta a boa vontade para com o erro e a aparência, de modo que
funcione como contrapeso para a primeira. Dito isto, fica a indicação de que ao se dedicar à formulação de um novo ideal do espírito
livre, Nietzsche pretende, antes de qualquer outra coisa, promover
ou incentivar um tipo de vida onde haja a convivência moderada
entre, por um lado, impulsos e afetos próprios do homem da ciência
(sua integridade intelectual e sua paixão pelo conhecimento) e, por
outro, certa boa vontade para com a falsidade própria à atividade
artística, haja vista a proeminente ameaça de que uma excessiva
influência dos valores epistêmicos pode implicar justamente na
inércia ou na negação e inviabilização da própria vida (cf. FW/GC
107, KSA 3.464). No entanto, mesmo estas observações não nos
parecem ser suficientes para justificar o engajamento de Nietzsche
em prol deste modo de vida específico – ou posto de maneira definitiva: ainda não fica claro como seria viável manter os resultados
descritivos da psicologia moral e do naturalismo metodológico, e ao
mesmo tempo se empenhar na formulação de um ideal normativo –
mesmo que limitado a um grupo restrito de indivíduos.
Segundo nos parece, a chave para compreendermos a questão
está em uma peculiaridade da filosofia intermediária de Nietzsche: enquanto nos livros do período de maturidade Nietzsche se
entrega com muito mais vigor à defesa dos “homens superiores”,
evitando reconhecer qualquer mérito ao “homem de rebanho”, nas
obras intermediárias, sua posição é mais moderada ao conceber
a sociedade como bem fundamentada na contraposição e enfrentamento entre indivíduos inovadores e mantenedores da tradição.
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Naturalismo descritivo e ficção normativa
O pensamento de Nietzsche neste momento de sua obra reconhece
méritos tanto nos homens “bons” quanto nos “maus” (cf. FW/GC
1, KSA 3.369), ressaltando apenas que cada um tem seu papel na
economia total da vida (cf. FW/GC 4, KSA 3.376). Entretanto, de
forma conjunta a esta visão equilibrada de sociedade, Nietzsche
parece também estar especialmente preocupado tanto com possíveis tiranias ou exacerbações por parte de qualquer um dos pólos
de força35, quanto com a limitada capacidade da ciência de oferecer novos objetivos ou ideais de vida. Deste modo, cremos que
se Nietzsche apresenta o espírito livre de modo a desempenhar
certo papel de tipo normativo em seus livros, assim o faz com total
conhecimento de que este tipo de vida não é o melhor para todos os indivíduos; porém, se ainda assim fala como se este fosse o
melhor tipo de vida dentre as vidas possíveis, é porque se dirige
preferencialmente a quem os valores a ela correspondentes serão
recebidos parecendo valores-em-si – mesmo que não haja critérios
epistêmicos de verdade envolvidos nesta percepção, ainda assim
poderíamos conceder algum tipo de critério psicofisiológico de
reconhecimento, o que em outras palavras equivale a dizer que,
mesmo que este critério permaneça invariavelmente desconhecido
para nós, ainda assim ele pode ser sentido justamente naqueles
onde prevalece previamente certo gosto ou temperamento. Assim,
uma vez encontrada a forma de conciliar estas características diversas, teríamos uma boa imagem do que Nietzsche pretende e
espera dos espíritos livres: que por meio de uma gaia ciência eles
não só preservem a natureza dinâmica dos valores e valorações,
mas que também compreendam seu papel inalienável nessa “nova
lei de fluxo e refluxo” (FW/GC 1, KSA 3.372).
35 Vale ressaltar que, neste momento de sua obra, Nietzsche se mostra atento não só à
ameaça da imposição dos valores tradicionais de modo massificante, mas também a
uma possível e indesejada “vulgarização” do caráter de exceção: “Bem, algo pode ser
dito em favor da exceção, desde que ela nunca deseje se tornar regra” (FW/GC § 76,
KSA 3.432).
cadernos Nietzche 29, 2011
289
Santos, O. A. R.
Abstract: The paper aims to propose an answer to the seeming disagreement
between specific demands from the descriptive naturalism present in the
moral psychology developed by Nietzsche and his efforts on behalf of a
specific set of values notably linked to the ideal of the free spirit’s life.
Keywords: naturalism - free spirit – value - moral psychology normativity
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cadernos Nietzche 29, 2011
Naturalismo descritivo e ficção normativa
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Artigo recebido em 10/08/2011.
Artigo aceito para publicação em 15/08/2011.
cadernos Nietzche 29, 2011
291
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
Ciência como
continuação da
arte em Humano,
demasiado humano
Alice Medrado*
Resumo: Neste artigo, analisamos brevemente as inovações trazidas
à tona por Humano, demasiado humano no que diz respeito ao papel
da arte e da ciência na cultura, buscando uma melhor compreensão da
afirmação nietzschiana de que “o homem científico é a continuação do
homem artístico” (MA I/HH I § 222, KSA 2.185).
Palavras-chave: arte - ciência - Humano, demasiado humano
Humano, demasiado humano é conhecido entre os comentadores como obra inaugural do chamado “período intermediário” ou
“período do positivismo cético” por trazer uma série de rupturas
em relação às principais disposições que formam o ambiente filosófico da metafísica de artista desenvolvida em O nascimento da
tragédia – ambiente este caracterizado pela crença na necessidade
da metafísica enquanto propulsora da cultura, e pelo temor de que
o investimento em impulsos teóricos solapassem as fontes de criatividade da cultura.
Seguindo a tese proposta por Rogério Lopes, entendemos que
os motivos mais fortes para que Humano seja visto como um livro
de ruptura em relação à obra anterior de Nietzsche dizem respeito
a uma nova concepção sobre as condições de florescimento cultural
* Mestranda em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas
Gerais/MG, Brasil. E-mail: [email protected]
cadernos Nietzche 29, 2011
293
Medrado, A.
e a uma reelaboração do lugar da filosofia na cultura. É em vista
desse novo lugar da filosofia que Nietzsche enfatiza a necessidade
de aproximação com o método científico, pelo qual nutria forte admiração desde seus anos de formação1. Em Humano, a ciência entra em cena como uma aliada estratégica contra, principalmente, o
apriorismo transcendental kantiano, em que o lugar sui generis do
filósofo se caracteriza pelo trabalho de dedução por introspecção
das categorias formatadoras do conhecimento.
Nietzsche estaria de acordo com a intuição central da “revolução copernicana” promovida pela filosofia kantiana, isto é, a ideia
de que o objeto é formatado pelas disposições internas do sujeito,
mas seguiria ainda a tendência de naturalização daquilo que Kant
chamou de “condições transcendentais do conhecimento”. Essa
tendência de naturalização das condições do conhecimento caracteriza certa linha do neokantismo no século XIX a que Nietzsche
teve acesso principalmente através do trabalho de Friedrich Albert Lange. Assim como Lange, Nietzsche desenvolverá a ideia de
que as formas condicionantes do conhecimento não são expressão
de um esquematismo mental transcendental, mas da organização
psicofísica do sujeito cognoscente, o que implica que o método
mais adequado para conhecer essas condições do conhecimento
não seria a dedução por introspecção, mas o método e abordagem
próprios às ciências naturais. Essa herança langiana de Nietzsche
é assim explicada por Lopes:
1 Ver LOPES, R., Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche. Tese de doutorado.
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, 2008.
Vários estudiosos têm notado que ao referir-se ao método científico, Nietzsche não
parece designar um procedimento em particular, mas uma certa disposição de espírito
voltada à cautelosa pesquisa empírica e à observação dos princípios de economia,
simplicidade, coerência. Ver LOPES, R. (2008); LEITER, B. (2002).
294
cadernos Nietzche 29, 2011
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
Lange nega que o filósofo disponha de um método específico para
o estabelecimento de suas teses epistemológicas. Embora tome
o partido de Kant contra Mill ao defender a tese de que existem
determinados elementos a priori que não apenas antecedem, mas
condicionam a experiência – estes elementos são por sua vez interpretados em termos de um a priori de nossa organização psicofísica
–, Lange recorrerá a um argumento do filósofo inglês para contestar
que o método transcendental adotado por Kant possa ter êxito na
identificação e fixação destes elementos da cognição. Tais elementos devem ser descobertos pelas vias usuais do método científico,
método que ele identifica com a indução, que permite a formulação
de proposições com graus variados de generalização (…)2.
Apesar de o contato de Nietzsche com Lange datar de seus
anos de formação, e de ter sido entusiasticamente comunicado a
seus colegas, a discussão só ganha destaque na obra nietzschiana
publicada a partir de Humano, demasiado humano. Nesse livro,
Nietzsche radicaliza algumas das ideias do neokantiano. Para
Lange, a investigação empírica seria capaz de revelar quais formas,
dentre aquelas constitutivas da organização psicofísica do sujeito,
contariam como meramente acidentais e transitórias na história
cognitiva da espécie, e quais delas poderiam ser encontradas como
constantes necessárias, de forma que estas últimas estabeleceriam
padrões de objetividade do conhecimento. No entanto, Nietzsche
insistirá em que todas as formas que funcionam como a prioris do
conhecimento se encontram igualmente sujeitas a um devir radical,
assim como o restante do mundo natural, e que seu caráter circunstancial viria à tona ao se considerar o desenvolvimento da espécie
em perspectivas de longa duração. Esse mesmo caráter circunstancial de nossa formatação cognitiva faria com que nenhuma das
formas a priori pudesse se habilitar ao posto de grandeza fixa do
2 LOPES, R. Op. cit., p. 60.
cadernos Nietzche 29, 2011
295
Medrado, A.
conhecimento. Todas essas categorias formatadoras seriam construídas segundo a necessidade dos organismos de simplificar e estabilizar um mundo em absoluto devir; a história natural mostraria
como diferentes arranjos de categorias puderam cumprir de forma
eficaz esse papel adaptativo.
A este respeito, Béatrice Han-Pile3 comenta que, ao partir da
ideia de que as condições “transcendentais” teriam uma gênese
empírica, Nietzsche coloca em questão o próprio estatuto “transcendental” dessas condições. Se é possível dizer que Nietzsche
reconhece certos “a prioris” do conhecimento, deve-se entender
o sentido preciso a eles conferidos, isto é, o sentido de formas que
antecedem e condicionam a experiência, mas não o sentido estritamente kantiano segundo o qual esses a prioris seriam universais,
a-históricos, necessários. Han-Pile chama atenção ainda para o
tom humeano da naturalização proposta por Nietzsche, que insiste
no papel do hábito, da crença, das práticas sociais, na formação
das categorias formatadoras do conhecimento. Vale lembrar, no entanto, que Nietzsche difere de Hume justamente por propor uma
visão historicizada não só das construções culturais, mas também
das disposições biológicas atuantes no processo cognitivo.
Ao investir em uma visão historicizada do mundo biológico,
Nietzsche na verdade não faz mais do que seguir o caminho que,
após o trabalho seminal de Charles Darwin, seria a rota de confluência dos naturalistas do século XIX (o século da História) em
diante. A ideia de que o mundo natural, também, tem sua história
aparece como um grande acontecimento desse século, e logo ecoará de forma estrondosa por toda Europa, envolvendo uma miríade
de pensadores sob o rótulo de “evolucionistas”4, pensadores com
3 HAN-PILE, B. “Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos natu­
ralistas no pensamento de Nietzsche”. In: Cadernos Nietzsche, n. 29, São Paulo, 2011.
4 Sobre as fontes e diálogo de Nietzsche com seus contemporâneos evolucionistas ver o
trabalho precioso de Wilson A. Frezatti Jr. (Nietzsche contra Darwin. São Paulo: GEN/
Discurso Editorial/Editora UNIJUÍ, 2001 (Coleção Sendas & Veredas).
296
cadernos Nietzche 29, 2011
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
os quais Nietzsche travou um diálogo mais intenso do que com o
próprio Darwin. Mas Nietzsche deixará clara sua diferença em relação a algumas das ideias que circulavam entre os evolucionistas
de então; o filósofo alemão se mostrará um crítico particularmente
feroz das teorias de Herbert Spencer.
A contenda de Nietzsche com Spencer gira em torno do fato
de este último entender que o sucesso adaptativo de certas crenças
serve como indício da correção dessas crenças. A ideia de Spencer
é que se uma crença se mostrou útil à adaptação, temos razões para
acreditar que ela seja também verdadeira. Contra Spencer, Nietzsche repetirá a ideia de que a vida se favorece do erro, do autoengano, acima de tudo, algo que seria mostrado pelo desenvolvimento
da ciência, que dissolveu até mesmo os artigos de fé mais celebrados, como o conceito de matéria, átomo, etc.5 Uma vez que esses
artigos de fé, cujo valor instrumental para uma certa a época é inquestionável, eventualmente tiveram seu caráter fictício revelado,
a conclusão nietzschiana é de que “a crença forte prova apenas a
sua força, não a verdade daquilo em que se crê” (MA I/HH I §15,
KSA 2.35-6). Se a utilidade de uma crença, que faz com que ela
seja fortemente aceita, não prova sua verdade, a conclusão reversa
também é válida, isto é, a falsidade de uma crença não prova sua
inutilidade. Ciente disto, Nietzsche apontará, com muito alarde, o
papel fundante desempenhado pelo erro na organização da vida.
5 O modelo atomista entra em crise a partir das descobertas de Newton sobre a gravidade, que levou à conclusão de que esse modelo não se aplicava aos fenômenos de “ação
à distância”. A crise do atomismo levou vários teóricos a formular modelos alternativos; o modelo proposto pelo matemático croata Boscovich sugeria que se substituísse
o conceito de “matéria” pelo conceito de “força”. O trabalho de Boscovich teve um
enorme impacto sobre Nietzsche, que tem sido notado pela tradição de comentadores.
Ver, por exemplo, Keith Ansell Pearson, “Nietzsche’s Brave New World of Force”, In:
Pli: Warwick Journal of Philosophy, University of Warwick, 2000, v. 9, p. 6-35.
cadernos Nietzche 29, 2011
297
Medrado, A.
Se as formas com que categorizamos o mundo cumprem meramente uma função adaptativa, se seu sucesso não significa qualquer indício de correção, se essas formas estão num processo de
deriva radical, o resultado é que todo o conjunto de nossas crenças
passa a contar como erros. O erro é a consequência necessária de
um intelecto cujo modo operacional mesmo se dá pela criação de
ficções instrumentais, ficções que no entanto devem ser tomadas
como verdades para que cumpram o efeito organizador esperado.
Caberia às ciências da história natural e cultural o papel de
trazer à luz os fatores condicionantes do conhecimento, e portanto
atribui-se às ciências o papel de depuração desses erros que atuam
na fundação dos processos cognitivos. A aposta de Nietzsche em
que uma filosofia cientificamente informada se encarregará de prover uma nova compreensão das condições do conhecimento e da
cultura em geral – essa aposta é apresentada já no primeiro aforismo de Humano, demasiado humano e dá o tom programático do
“filosofar histórico”, que para Nietzsche se apresenta então como
uma necessidade.
A moral em devir – o papel da ciência na superação das “necessidades
metafísicas”
Defender uma visão do mundo natural em devir absoluto é importante para que Nietzsche deixe aberta a possibilidade de que as
categorias que condicionam nosso conhecimento e percepção tanto
no plano da epistemologia, quanto da moral e da estética, sejam
ocasionalmente revistas, relativizadas, reavaliadas, reinventadas.
Em Humano, demasiado humano, Nietzsche estará especialmente
298
cadernos Nietzche 29, 2011
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
interessado em mostrar como as chamadas “necessidades metafísicas” não mais se apresentam como necessárias, podendo agora ser
vistas como um dado do passado cultural da espécie6.
A tese de que o homem invariavelmente tem “necessidades
metafísicas” – isto é, disposições especulativas que não podem ser
satisfeitas no campo da ciência, mas de cuja satisfação, buscada no
campo da arte ou da religião, provêm ganhos éticos imprescindíveis
– é encontrada, com ligeiras variações, em três grandes interlocutores de Nietzsche: Kant, Lange e Schopenhauer. Em Humano,
demasiado humano, Nietzsche buscará subsídios nas ciências naturais e históricas que permitam circunscrever o advento de tais
necessidades a um momento específico da história biológica e cultural da espécie e, em contrapartida, promover a visão de que a superação dessas necessidades abriria o caminho para uma renovada
compreensão do homem enquanto ser natural e cultural.
O pensamento metafísico, que Nietzsche identifica com o pensamento mitológico ou supersticioso, teria sido favorecido por uma
época que ainda não havia desenvolvido um método rigoroso para a
busca de conhecimento, um método que finalmente se cultivou no
interior da ciência moderna. Ou seja, segundo a visão nietzschiana,
no ambiente cultural que deu ensejo às “necessidades metafísicas”, imperam “os piores, e não os melhores métodos cognitivos”7.
Que tais necessidades encontrem defensores ainda à sua época é
visto pelo filósofo como um sinal de atavismo.
Em MA I/HH I §108, KSA 2.107-9, Nietzsche apresenta a ideia
de que o desenvolvimento da ciência permitiria que se identificassem as causas do sofrimento, ao invés de simplesmente conferir
uma significação positiva para o sofrimento, o que seria a função da
6 Ver MA I/HH I § 27/KSA 2.48 dentre outros. Todas as citações de Humano, demasiado humano neste artigo feitas conforme a tradução de Paulo César de Souza
(Companhia das Letras: São Paulo, 2005).
7 Ver MA I/HH I § 9/KSA 2.29-30.
cadernos Nietzche 29, 2011
299
Medrado, A.
arte e da religião. Dada a possibilidade de agir diretamente sobre
essas fontes psicofisiológicas e culturais de uma série de mazelas
humanas, os expedientes de consolação metafísica se tornariam
cada vez mais obsoletos. Além disto, segundo o diagnóstico apresentado em MA I/HH I §109, KSA 2.108-9, o homem moderno,
ambientado numa cultura científica, padeceria de sofrimentos outros, para os quais não há consolo metafísico que se aplique.
Conta o pensamento metafísico, ainda, o fato de que este foi
responsável por promover uma visão do homem que estabelece
entre ele e o restante do mundo natural uma falsa hierarquia, uma
vez que as “necessidades metafísicas”, vistas como a única fonte
de motivação da arte, da ética, e de tudo aquilo a que sempre se
conferiu o maior valor no mundo humano, foram tratadas como o
signo de distinção do homem em relação ao restante do mundo
natural. Segundo o diagnóstico nietzschiano apresentado já no
primeiro aforismo de Humano, demasiado humano, o pensamento
metafísico supôs assim um solo “miraculoso” para os mais valiosos artigos humanos, impedindo que tais artigos fossem abordados
pelo mesmo método empregado no estudo de outras áreas da experiência humana, o que contribuiu para uma má compreensão do
homem e de suas criações.
A atitude de indiferença em relação às necessidades metafísicas seria especialmente salutar para o modo de vida do espírito
livre, personagem conceitual a que Nietzsche dedica o livro. Esse
modo de vida se caracteriza por uma prática intelectual informada
nos métodos e resultados das ciências, e dedicado ao cultivo das
“coisas próximas”, que como Nietzsche deixa entrever ao longo do
livro, são aquelas coisas mundanas que fazem o cotidiano de uma
vida simples e particular, coisas relativas à alimentação, ao humor,
ao trato das amizades e outros tipos de convívio social, à escolha
dos livros, ao cultivo do gosto, aos sentimentos de inveja, vaidade,
empatia, etc. – coisas estas que, diferentemente dos artigos metafísicos, seriam passíveis de uma abordagem científica.
300
cadernos Nietzche 29, 2011
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
Por fim, a dispensabilidade das necessidades metafísicas se
justifica pela visão de que a criação de novos elementos edificantes, orientadores das práticas éticas e estéticas, depende de um
pensamento informado sobre as “condições da cultura” (MA I/HH I
§ 25, KSA 2.46). Com isto, Nietzsche parece sugerir que o filósofo,
em sua atividade de fomentador cultural e criador de valores, tem
muito de que se beneficiar com o conhecimento sobre a gênese
das necessidades culturais e as diferentes soluções encontradas
por diferentes povos, em diversas configurações espaço-temporais.
Trata-se de um tipo de conhecimento fornecido, é claro, pela história das ideias, pela história política e econômica dos povos, pela
arqueologia, pela antropologia, etc.
Tentamos reconstituir, até aqui, dois pontos de inflexão da
aproximação entre filosofia e ciência segundo o programa de Humano, demasiado humano: no plano epistemológico, a ciência
aparece como aliada na tarefa de tomar pé das condições do conhecimento humano, apontando o caráter provisório, simplificador,
falsificador das categorias que formatam nossa visão do mundo e de
nós mesmos, e ainda, a ciência proveria um método para se abordar
a gênese e o funcionamento dos valores e das ficções culturais em
geral; no plano ético, a ciência aparece como instrumento próprio
a um modo de vida voltado ao conhecimento das coisas próximas.
Tentamos mostrar também que, em Humano, demasiado humano, a ênfase na investigação histórico-filosófica das condições
do conhecimento se liga às investidas nietzschianas no sentido de
pensar um novo lugar para o filósofo, diferente do lugar sui generis
definido pela filosofia transcendental. A aposta num “filosofar histórico”, e portanto num fazer filosófico informado pela ciência, se
justifica, então enquanto opção metodológica que permitiria uma
melhor abordagem dos fenômenos cognitivos envolvidos na formação de crenças sobre o mundo, a ética e a estética.
Poderíamos acrescentar, ainda, que Nietzsche credita um
efeito terapêutico aos conhecimentos científicos, uma vez que eles
cadernos Nietzche 29, 2011
301
Medrado, A.
seriam capazes de combater os danos causados pelo apregoamento
das “necessidades científicas”. Vale lembrar, é claro, que Nietzsche não vê na ciência um meio de acesso a algo como a “constituição última” da realidade; no discurso científico, como nos demais,
está-se sempre no domínio dos fenômenos humanos, o que equivale
a dizer – considerando-se o que foi dito sobre o caráter circunstancial, adaptativo, instrumental dos a prioris que formatam o conhecimento humano – que se está sempre no domínio da ficção.
“O homem científico é a continuação do homem artístico”
A vantagem da ciência sobre outras formas de percepção e organização do mundo está exatamente em ver a ficção como ficção,
em assumir uma posição de distanciamento frente aos erros que
regem nossa organização cotidiana do mundo. Nietzsche valoriza
a ciência enquanto espaço onde se cultiva a desconfiança frente a
seus próprios instrumentos conceituais, e consequentemente entende que também os instrumentos conceituais da ciência, como
todos os outros, são forjados por projeção de nosso aparato perceptivo e intelectual. A fiar-se na descrição nietzschiana, seria
característico desse aparato perceptual e intelectual cumprir uma
função adaptativa que depende da simplificação, da transfiguração
do mundo segundo nossas necessidades circunstanciais. Ou seja,
o modo de funcionamento mesmo de nosso aparato cognitivo faz
com que ele esteja destinado a nutrir-se, acima de tudo, da ilusão
e do autoengano. Se na gênese de nossos conceitos atua essa função simplificadora, ficcionalista, tampouco os conceitos científicos
escaparão ao título de ficção. É essa origem ficcional e criativa dos
mecanismos utilizados pela ciência o que fará com que ela seja
vista em íntima analogia com a arte.
Béatrice Han-Pile analisou, de forma primorosa, como Nietzsche concebia a analogia entre arte e ciência no artigo inacabado de
302
cadernos Nietzche 29, 2011
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
juventude, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. O que
temos tentado mostrar é que os traços fundamentais dessa analogia
são reiterados em Humano, o que provavelmente é ofuscado pelo
tom de ruptura desse livro, tom que salta aos olhos do leitor anteriormente familiarizado com O nascimento da tragédia.
Segundo nossa interpretação, o fundamental dessa ruptura
aparece na desvalorização da arte enquanto instrumento de propulsão da cultura metafísica. A partir dessa mudança na avaliação
nietzschiana podemos compreender seus esforços no sentido de
afastar-se da metafísica de gênio schopenhaueriana, substituindo-a por uma visão naturalizada do fazer artístico. O que é posto em
xeque em Humano é a ideia de que o artista teria acesso imediato à
constituição última da existência, seja ela pensada como “vontade”
ou “coisa em si”. Questiona-se a ideia de que o artista seria o sujeito de uma “inspiração” miraculosa.
Na visão naturalizada do artista, este é caracterizado como
um trabalhador perseverante, observador, como alguém cujos esforços estão em continuidade com a tradição, alguém portador de
boas qualidades humanas, ao invés de dons divinos. Essa visão é
construída por Nietzsche de forma muito nuançada e penetrante ao
longo de todo o capítulo “Da alma dos artistas e escritores”, mas
pode ser sintetizada na fórmula que conclui o aforismo 155, sob o
título A crença na inspiração, que analisa o fazer artístico (cf. MA I/
HH I §155, KSA 2.146-7). A conclusão do aforismo é que “Todos
os grandes foram grandes trabalhadores, incansáveis não apenas
no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar.”
Note-se que essa descrição do fazer artístico contribui enormemente para a aproximação entre o artista e o cientista. Poderíamos
lembrar também que, ao pensar “o grau superior da cultura, que se
coloca sob o domínio (se não sob a tirania) do conhecimento” – isto
é, o tipo de cultura que Nietzsche acreditava estar em ascensão
em seu tempo – o filósofo identificará como os valores distintivos
dessa cultura a “reflexão severa, concisão, frieza, simplicidade
cadernos Nietzche 29, 2011
303
Medrado, A.
deliberada levada ao extremo; em suma, restrição do sentimento e
laconismo”. É notável que esses princípios que Nietzsche aplica à
arte de seu tempo em muito se assemelham às “virtudes epistêmicas” que ele havia creditado à ciência.
O passo final da naturalização da arte será mostrar que o artista se beneficiou da má compreensão que o interpretou em termos
metafísicos – a mesma má compreensão que atuou na origem das
concepções que associam a imagem do artista àquela do louco e
do santo – e acabou por acreditar ele mesmo nessa interpretação.
Como resultado, a arte foi fortemente atrelada à tradição de pensamento metafísico. Podemos supor, com bastante segurança, que é
justamente por isso que a arte recebe um papel menor no programa
filosófico de Humano, e que o papel de destaque conferido à ciência tem uma razão estratégica, uma vez que haveria uma intolerância recíproca entre ciência e metafísica.
Tendo em vista o intuito nietzschiano de pensar as condições
de uma cultura pós-metafísica, podemos compreender melhor as
afirmações, um tanto polêmicas, de que a arte representaria um
estágio específico do pensamento humano, um estágio em vias de
desaparecimento, ou ainda, de que a arte seria ultrapassada pela
ciência. Há aqui, é claro, uma ressonância das ideias de Auguste
Comte, segundo as quais o pensamento humano se desenvolveu em
três estágios: teológico, metafísico e positivo8.
Nos momentos do livro em que Nietzsche ressalta a oposição
entre ciência e arte, esta é pintada com as cores da metafísica, isto
é, nesses momentos Nietzsche a associa com as ideias de grandeza,
intensidade, obscuridade, por contraste com a modéstia, leveza e
clareza que caracterizariam o pensamento científico9. Por outro
8 Ver COMTE, A. Opúsculos de filosofia social. Trad. de Ivan Lins e João Francisco de
Souza. Porto Alegre: Editora Globo, 1972.
9 Ver MA I/HH I §150, KSA 2.144.
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cadernos Nietzche 29, 2011
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
lado, nos momentos em que o que está em questão não é a inserção
da arte na cultura metafísica, mas a compreensão naturalista do fazer artístico ele mesmo, vimos como arte e ciência são aproximadas.
Na ideia de que “o homem científico é a continuação do homem artístico” (MA I/HH I § 222, KSA 2.185-6) está contida tanto
essa visão (comtiana) progressista do pensamento humano, quanto
a analogia genética entre arte e ciência. O fator comum entre arte e
ciência segundo este aforismo, ao que tudo indica, é que ambas seriam meios pelos quais se aprende a “olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer, e a elevar nosso sentimento ao ponto
de enfim exclamarmos: ‘Seja como for, é boa a vida’”. Ou seja, arte
e ciência seriam formas de conhecimento, formas de “olhar a vida”,
bem como motivadores de uma atitude que afirma a vida. Que não
passe despercebida tampouco a “lição” que Nietzsche então credita à arte, a lição de “ter prazer na existência e de considerar a
vida humana um pedaço da natureza, sem excessivo envolvimento,
como objeto de uma evolução regida por leis – esta lição se arraigou em nós, ela agora vem novamente à luz como necessidade
todo-poderosa de conhecimento”. O notável aqui é que esta é uma
lição a ser recebida pelo espírito livre, caracterizado por um modo
de vida voltado ao conhecimento, ao cuidado das coisas próximas,
à percepção de si mesmo como nem mais nem menos que natural10.
Seguindo uma pista dada já no primeiro aforismo do livro, poderíamos pensar que arte e ciência têm em comum o fato de serem
ambas formas sublimadas de lidar com as percepções e organizações conceituais humanas, entendendo que com a metáfora da
sublimação, tomada da química, Nietzsche refere-se à capacidade
de tornar mais refinados materiais originalmente grosseiros, como
seriam nossas representações triviais.
É interessante notar, afinal, que o tom comtiano de Nietzsche
no que concerne à arte tende a desaparecer nas obras subsequentes;
10 Ver MA I/HH I § 34, KSA 2.53-55.
cadernos Nietzche 29, 2011
305
Medrado, A.
aliás, Nietzsche posteriormente se esforçará bastante para purgar
de sua visão evolutiva do mundo qualquer resíduo da ideia de progresso. Já no chamado período intermediário, de forma mais emblemática em A gaia ciência, Nietzsche passará a enfatizar sua aposta
na arte e na ciência enquanto meios para a sublimação que estaria
na base de toda grande obra cultural. Ganhará espaço também uma
linha de pensamento que Nietzsche deixa apenas entrever em Humano, demasiado humano, segundo a qual arte e ciência seriam as
formas por excelência de lidar com o caráter ilusório, errôneo das
formas com que organizamos o mundo. Neste sentido, arte e ciência trariam contribuições opostas e complementares a um modo
de vida voltado ao conhecimento – caberia à ciência o cultivo das
exigências de “integridade intelectual”, firmando uma atitude de
desconfiança frente ao mundo humanizado, radicalmente construído sobre o erro; por outro lado, caberia à arte o papel de cultivar
a boa consciência na ilusão, um papel reconciliador caracterizado
por Nietzsche como “suspensão da descrença”. Como dissemos,
essa última consideração sobre arte e ciência está apenas sugerida
em Humano, aparece em suas entrelinhas, sendo completamente
desenvolvida apenas nas obras posteriores, razão por que dela trataremos em outro lugar.
Abstract: In this article, we shortly analyse the innovations raised
by Human, All Too Human, regarding to the role of art and science in
culture, looking for a better understanding of Nietzschean statement that
“the scientific man is the continuation of the artistic man” (MA I/HH I §
222, KSA 2.185).
Keywords: art – science – Human, All Too Human
306
cadernos Nietzche 29, 2011
Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano
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cadernos Nietzche 29, 2011
307
Medrado, A.
11. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora
UNESP, 2005.
Artigo recebido em 09/08/2011.
Artigo aceito para publicação em 20/08/2011.
308
cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
“A ambicionada assimilação
do materialismo”: Nietzsche
e o debate naturalista na
filosofia alemã da segunda
metade do século XIX
Rogério Lopes*
Resumo: Este artigo procura caracterizar o modo como Nietzsche pensa
a relação entre filosofia e ciências empíricas em termos de uma concepção
naturalista liberal, a partir de uma confrontação de sua posição e as de
alguns de seus contemporâneos. Começa-se por mostrar que havia na
filosofia alemã da segunda metade do século XIX algo similar ao debate
contemporâneo em torno do naturalismo metodológico. Em seguida são
apresentadas as teses históricas de F. A. Lange referentes à emergência
de uma disciplina metódica no interior da tradição materialista, o
acolhimento destas teses por Nietzsche e, finalmente, os argumentos
de Spir contra os programas de naturalização de sua época, assim
como a réplica nietzschiana. Na última seção discuto o significado da
orientação especulativa da filosofia tardia de Nietzsche e sua possível
compatibilidade com uma concepção mais liberal de naturalismo.
Palavras-chave: naturalismo - filosofia transcendental - virtudes
epistêmicas - princípio de economia
O que caracteriza o século XIX não é a vitória da ciência, mas
a vitória do método científico sobre a ciência (Nachlass/FP 1888,
15[51], KSA 13.442).
* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Minas Gerais/MG, Brasil. E-mail: [email protected].
cadernos Nietzche 29, 2011
309
Lopes, R.
1. Considerações introdutórias
A filosofia contemporânea de língua inglesa é fortemente marcada pelo debate em torno do naturalismo. Pode-se dizer que a maior
parte dos filósofos que pertencem a esta tradição está, de um modo
ou outro e em diferentes níveis de radicalidade, comprometida com
alguma versão da tese naturalista, enquanto a minoria divergente se
esforça para formular uma tese alternativa que não a faça parecer
adepta de alguma entidade sobrenatural ou disposta a menosprezar
o enorme sucesso e prestígio acumulado pelas ciências empíricas
ao longo da modernidade. Os diversos programas de naturalização
em filosofia vão desde a naturalização da mente, do conhecimento,
da moralidade e dos valores em geral, passando pelas categorias
abstratas da lógica e da matemática, até atingir a noção geral de
significado, com a proposta de eliminar, ou pelo menos reduzir toda
e qualquer entidade ou propriedade abstrata, intencional ou normativa a alguma entidade ou propriedade que possa receber um tratamento estritamente naturalista (cf. DE CARO & MACARTHUR 3).
Este cenário é em alguma medida surpreendente se nós pensarmos
nas origens do que se convencionou denominar de “tradição analítica”, um rótulo com o qual não devemos nos comprometer muito
seriamente em função de sua alta carga polêmica, inversamente
proporcional à sua força descritiva, quase nula. Nas origens desta
tradição, mas também das grandes escolas da chamada “filosofia
continental” (se quisermos continuar a nos servir de rótulos pouco
confiáveis), tais como a fenomenologia e a hermenêutica, encontra-se a recusa do que poderíamos chamar de atitude naturalista,
assim como o movimento contrário de reivindicação de uma especificidade metodológica para a reflexão filosófica.
Um modo simples e esquemático de organizar a história da filosofia no século XX seria dizer que ela foi preponderantemente
avessa a todo projeto de naturalização durante a primeira metade
do século, procurando afirmar sua própria identidade tanto pela
defesa de sua especificidade metodológica quanto de um domínio
310
cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
de objetos e questões que lhe seriam próprias: objetos abstratos
e intencionais, como conceitos, significados, proposições, assim
como a elucidação das questões normativas. Esta estratégia de autoafirmação começou a ruir tanto no interior da tradição analítica,
fortemente marcada em seus inícios pela utopia logicista e pela
análise dos significados e usos linguísticos, quanto nos movimentos do estruturalismo e pós-estruturalismo, que se estabeleceram
contra a tradição fenomenológica e existencialista e seu apriorismo
subjetivista. Enquanto a tradição analítica pós-quineana investiu
pesadamente no diálogo com as ciências naturais e adotou programaticamente a tese da continuidade entre análise conceitual
e investigação empírica, o estruturalismo e pós-estruturalismo
pretenderam recorrer às diversas ciências sociais como forma de
denunciar as ilusões totalizantes do sujeito consciente. Ambas as
tradições realizaram na segunda metade do século XX um movimento inverso ao que prevaleceu na sua primeira metade: elas não
apenas desistiram de reivindicar qualquer especificidade metodológica para a filosofia (que em termos concretos se traduziu na recusa do apriorismo até então hegemônico em ambas as tradições),
como em certa medida denunciaram esta reivindicação como uma
tentativa ilegítima de estabelecer uma relação imperialista com as
ciências empíricas, cujo resultado teria sido o reforço das antigas
ilusões identitárias e substancialistas do discurso metafísico. Esta
última conclusão encontra-se de forma mais explícita na chamada
tradição continental, dado o seu maior gosto pela autoestilização e
pela dramatização dos embates intelectuais.
Esta guinada naturalista da filosofia contemporânea, especialmente visível no cenário acadêmico de língua inglesa, poderia ser apontada como a causa mais imediata do enorme interesse
que este tema tem despertado entre os intérpretes de Nietzsche,
conforme podemos perceber pelos artigos publicados neste número
dos Cadernos Nietzsche. Apontar esta causa imediata poderia, por
sua vez, alimentar a suspeita de que estas tentativas de aproximação entre Nietzsche e os programas de naturalização em voga no
cadernos Nietzche 29, 2011
311
Lopes, R.
debate contemporâneo teriam sido motivadas menos pelas questões que foram de fato cruciais para o filósofo alemão do que por
uma agenda imposta de fora. Esta agenda, por sua vez, teria resultado de uma pressão cada vez maior por explicação que, no limite,
ameaça a autonomia da filosofia, ao sugerir sua subordinação aos
métodos e resultados das ciências. Neste artigo pretendo combater esta suspeita, ao argumentar mediante uma rápida reconstrução
histórica que algo similar ao debate naturalista esteve presente no
contexto intelectual alemão no qual Nietzsche se formou, e que
este debate influiu decisivamente no rumo de suas preocupações
filosóficas. Em resumo, se por um lado julgo pertinente que se estabeleçam paralelos entre o debate contemporâneo e as preocupações de Nietzsche, por outro lado considero recomendável que
este exercício comparativo não se limite ao espaço rarefeito das
razões, mas se arrisque no palco da história efetiva, que é o espaço
no qual se desenrola o confronto efetivo dos argumentos. Isso exigirá do intérprete um esforço no sentido de conceder a palavra aos
reais interlocutores de Nietzsche (que não são Quine, Davidson e
McDowell, ou Heidegger, Foucault e Derrida, mas Schopenhauer,
Lange e Spir, para citar os menos esquecidos). O que move este esforço de reconstrução do contexto histórico não é necessariamente
um impulso de antiquário, mas a expectativa de que este pequeno
desvio pelo passado nos permita surpreender algum resíduo de extemporaneidade em Nietzsche. O teste para saber se este desvio
foi cognitivamente bem-sucedido não é dado pelo que ele permite
confirmar de nossas expectativas teóricas contemporâneas, mas por
sua capacidade de produzir um estranhamento, ainda que leve, em
relação às teses que se converteram em moeda corrente e que constituem o conforto indispensável para que a mente cumpra as suas
funções cognitivas rotineiras. Com o intuito de mostrar que tal desvio pode ser cognitivamente produtivo, argumento que Nietzsche
está comprometido com uma versão do naturalismo que não tem
paralelos nas diversas tentativas filosóficas contemporâneas de se
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cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
chegar a uma formulação adequada do que seria o tão almejado
compromisso liberal e não cientificista com o naturalismo (cf. DE
CARO & MACARTHUR 4).
2. A crise de legitimação da filosofia e as disputas intelectuais no
contexto de formação do jovem Nietzsche.
Inspirado em Mark Sacks (SACKS 19), Paul Redding (REDDING 18) aponta, em seu artigo intitulado “Duas direções para
o kantismo analítico: naturalismo e idealismo”, duas dificuldades
a serem enfrentadas pelos diversos programas de naturalização da
filosofia transcendental: a primeira dificuldade é denominada por
ele de “o problema da identidade disciplinar” (REDDING, idem,
p. 265) e diz respeito às condições de legitimação da atividade filosófica a partir do momento em que nos dispomos a negar, inspirados pelo programa de naturalização, a existência de verdades a
priori que seriam acessíveis mediante análise conceitual e método
reflexivo. Segundo esta leitura, a tese naturalista da continuidade
entre reflexão filosófica e ciências empíricas é menos uma resposta
ao problema do que uma desistência ou uma capitulação face às
ciências empíricas; a segunda dificuldade é mais genérica e diz
respeito aos efeitos niilistas da tese naturalista: segundo Redding,
a tentativa de naturalização da perspectiva transcendental agrava o
problema da legitimação da normatividade iniciado com a recusa,
por parte de Kant, de uma fundamentação teocrática do discurso
filosófico. Esta acusação foi formulada pela primeira vez por Jacobi
na recepção imediata da Crítica da razão pura; segundo Jacobi, niilismo e relativismo seriam as consequências naturais da tentativa
kantiana de emancipar a filosofia da religião natural e revelada. O
projeto de naturalização do transcendental seria um passo adiante
neste processo de dissolução de uma instância fundacionista das
reivindicações normativas (REDDING, ibidem, p. 266).
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313
Lopes, R.
O primeiro programa sistemático de naturalização do transcendental foi formulado na segunda metade do século XIX, durante os
anos de formação de Nietzsche, a princípio como uma resposta moderada a um movimento radical de naturalização, cujo objetivo era a
divulgação e vulgarização dos resultados das ciências naturais com
o intuito de fomentar e difundir uma visão de mundo estritamente
materialista. Uma resposta complexa e nuançada a este movimento
radical de naturalização foi formulada pelo filósofo Friedrich Albert Lange em sua História do materialismo, cuja primeira edição
data de 1866 e que exerceu profunda influência sobre o modo como
Nietzsche recepcionou o debate (cf. LOPES, 13, cap. I). Esta polêmica dominou parte do público esclarecido alemão na década de 50
e teve como principais protagonistas do lado do materialismo Karl
Vogt, Jacob Moleschott e Ludwig Büchner, autores que praticavam
um tipo de literatura filosófica de amplo apelo popular e que encontrou seu solo propício no contexto das lutas que marcaram a recomposição das relações de forças no ambiente intelectual alemão após
a derrocada dos grandes sistemas filosóficos do Idealismo, em especial do sistema hegeliano. Klaus Christian Köhnke (KÖHNKE 10)
narrou em detalhes a reestruturação da filosofia acadêmica alemã a
partir desta derrocada, que teve início imediatamente após a morte
de Hegel, como um esforço titânico empreendido pela mesma para
recuperar seu prestígio intelectual através da árdua tarefa de determinar seu objeto específico de reflexão e assegurar com isso sua
própria identidade face ao avanço das ciências naturais e históricas, determinado em boa parte pelo processo de industrialização
relativamente tardio na Alemanha dos anos 40. Este movimento de
reestruturação, que conduziu ao estabelecimento do Neokantismo
como a filosofia acadêmica oficial de língua alemã, adotou uma dupla estratégia para promover o resgate da dignidade da filosofia:
identificou na reflexão acerca do método científico a principal tarefa filosófica e procurou manter o máximo de discrição possível nas
disputas em torno das visões de mundo. Uma das causas do colapso
das chamadas filosofias da identidade foi justamente o fosso criado
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cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
por estes sistemas entre reflexão filosófica e atividade científica. As
disputas cada vez mais acirradas no campo das ideias políticas e a
virulência da crítica à religião entre os herdeiros do hegelianismo,
juntamente com a repressão política que se seguiu aos movimentos
de insurreição de 1848, contribuíram para consolidar de vez entre
os filósofos acadêmicos aquele sentimento de insatisfação que originalmente estava fundado em razões de ordem teórica e que terminou por se converter numa atitude de franca hostilidade em relação
a toda variante de filosofia especulativa. Aos poucos se impôs entre
os ditos filósofos de profissão um profundo ceticismo quanto à possibilidade de encontrar critérios racionais para orientar a escolha
entre visões de mundo concorrentes1.
Duas vias alternativas começaram a se impor a partir da década
de 50, ou seja, após um primeiro esgotamento das disputas no interior do hegelianismo: 1) a via de conversão da ciência em visão de
mundo e de absolutização do discurso científico, que desencadeou a
polêmica em torno do materialismo; 2) o lento caminho de retorno a
Kant como o filósofo capaz ao mesmo tempo de apaziguar o conflito
entre filosofia e ciência e de neutralizar as disputas entre visões
de mundo concorrentes. No que diz respeito a esta segunda via,
1 Cf. KÖHNKE, 10, em especial o capítulo 3, “Die skeptische Generation der 1850er
Jahre”. O livro de Köhnke reconstrói de forma minuciosa um lado pouco conhecido da
filosofia alemã do século XIX, ou seja, a filosofia universitária. Sua leitura funciona
como um corretivo primoroso à crença amplamente difundida de que no século XIX
alemão só se fez filosofia digna do nome fora dos muros da academia. Esta crença é
ela mesma fruto de uma opção historiográfica. O amplo cenário intelectual reconstruído por Köhnke contribui também, ainda que indiretamente, para o árduo desafio de
situar Nietzsche em sua própria época. Embora Nietzsche tenha abusado menos da
retórica antiacadêmica do que seu mestre Schopenhauer, alguns traços de seu estilo
filosófico, somados a certas vicissitudes na recepção de sua obra contribuíram para
forjar a imagem de um autor imune às inquietações filosóficas que moveram o debate
universitário de sua época. Hoje estamos mais bem informados tanto destas inquietações como dos hábitos de leitura de Nietzsche, o que nos obriga como intérpretes a
rever certos traços da imagem do filósofo como outsider. O livro de Köhnke pode ser
visto como um complemento essencial ao estudo clássico de Löwith (LÖWITH 14).
cadernos Nietzche 29, 2011
315
Lopes, R.
cabe observar que a decisão de percorrê-la não partiu exclusivamente dos filósofos, mas também de alguns dos mais eminentes
cientistas naturais da época, que se mostravam insatisfeitos com
a interpretação dogmática dos resultados de sua própria atividade
e que não gostariam de ver excluída a possibilidade de que outra visão de mundo que não a materialista fosse compatível com
estes mesmos resultados. Hermann Helmholtz contribuiu duplamente neste sentido: ele reinseriu Kant no debate epistemológico
da época, ao interpretar os resultados empíricos de sua investigação no âmbito da fisiologia dos órgãos sensoriais como uma confirmação das teses kantianas (sem tomar conhecimento do caráter
problemático de tal reivindicação), definindo com isso a estratégia
de reatualização do kantismo que mais tarde seria adotada pelo
próprio Lange; Helmholtz destacou ainda os méritos de Kant como
cientista natural em uma conferência que se tornou imediatamente
célebre. Os dois movimentos conjugados tinham por finalidade
mostrar que entre filosofia e ciência, pelo menos no período heroico
de formação da cultura alemã, não reinava a discórdia, mas uma
afinidade e cooperação íntimas. O recurso a Kant evidenciava que
o conflito entre filosofia e ciência não era de princípio, mas fruto de
uma contingência histórica2:
2 Segundo Köhnke a conferência em homenagem a Kant pronunciada por Helmholtz
em Königsberg no início de 1855 teve ampla repercussão justamente por mobilizar
contra o materialismo um argumento idealista que vinha acompanhado da chancela
das ciências naturais. Cf. KÖHNKE 10, p. 153. O historiador refere-se à conferência intitulada “Über das Sehen des Menschen”, na qual Helmholtz introduz a tese
de que os resultados recentes da fisiologia dos órgãos sensoriais representam uma
confirmação empírica de algumas teses epistemológicas de Kant. Helmholtz refere-se neste contexto à lei da energia específica dos órgãos sensoriais proposta por seu
professor, o médico e fisiologista Johannes Mülller. Parte importante do debate em
teoria do conhecimento das primeiras três décadas da segunda metade do Século XIX
gira em torno das implicações epistemológicas deste princípio, que reza que as diferenças qualitativas entre as diversas sensações dependem em primeira instância da
energia específica relacionada a determinado órgão sensorial e apenas indiretamente
da natureza do estímulo nervoso. Uma mesma sensação pode resultar de estímulos
nervosos distintos, assim como um mesmo estímulo nervoso pode ocasionar sensações
316
cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
A cisão fundamental que atualmente separa a filosofia e as ciências naturais ainda não vigorava no tempo de Kant [...]. A filosofia
de Kant não visava a aumentar nossos conhecimentos através do
pensamento puro, pois o seu princípio supremo era que todo conhecimento da realidade tinha que ser extraído da experiência.
Ela visava apenas a investigar as fontes do nosso saber e seu grau
de justificação, uma ocupação que estará sempre reservada à filosofia, e da qual nenhuma época poderá se eximir impunemente
(HELMHOLTZ 7, p. 5).
Vinte e cinco anos mais tarde o filósofo Otto Caspari, na Introdução à sua coletânea de ensaios intitulada Der Zusammenhang
der Dinge, referia-se a esta cisão fundamental entre filosofia e ciências naturais como se se tratasse de um fantasma do passado:
Um dos resultados mais satisfatórios dos movimentos que estamos
presenciando na época atual, marcada pela ciência, é sem dúvida o
fato de que a filosofia pôde se reaproximar das ciências da natureza
[...]. No que diz respeito a esta nova reunificação da filosofia e das
ciências naturais é, contudo, de suma importância considerar mais
atentamente o seguinte: qual deve ser a natureza desta aliança que
se firmou e contra quais erros precisamos estar alertas para que
uma nova ruptura não venha a acontecer, o que sem dúvida alguma conduziria ambas as ciências, que se pertencem mutuamente, a
direções opostas e a novos extravios (CASPARI 1, p. 1).
qualitativamente distintas conforme o órgão sensorial afetado. O ensaio inacabado e
póstumo de Nietzsche, intitulado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, não é
de modo algum indiferente ao impacto desta tese em sua primeira tentativa de articular, de um ponto de vista genealógico, uma visão minimamente coerente das diversas
dimensões envolvidas na pesquisa da verdade através da incorporação do conjunto
heterogêneo de leituras empreendidas pelo filósofo nestes anos de formação e que
abarcam diversos tópicos da filosofia teórica.
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Lopes, R.
Embora Caspari afirme que a possibilidade de uma recaída
nos velhos erros do idealismo alemão não possa ser descartada de
princípio e exija um exame cuidadoso da natureza da nova aliança
firmada entre a filosofia e as ciências naturais para exorcizar de
vez esta ameaça, a mudança na percepção do cenário intelectual
não é por isso menos notável. O que ocorreu de tão significativo
no ambiente intelectual alemão em menos de um quarto de século
que levou a uma mudança tão radical nos termos do debate? Minha
hipótese é que entre as polêmicas em torno do materialismo que
marcaram a década de cinquenta e a hegemonia do Neokantismo a
partir da segunda metade da década de oitenta a filosofia acadêmica
alemã viveu uma espécie de interregno naturalista sob a liderança
intelectual de Friedrich Albert Lange e de sua influente História
do materialismo. Embora sua obra tenha sido concebida como um
manifesto programático em defesa do retorno a Kant, o desenvolvimento posterior do neokantismo conferiu ao movimento um rumo
inteiramente diverso daquele sugerido por Lange. O combate ao
psicologismo, ao antropomorfismo, ao positivismo, ao materialismo,
ao empirismo, a defesa intransigente da especificidade da reflexão
filosófica face às ciências empíricas, a valorização unilateral da
tendência idealista e do aspecto construtivo do conhecimento em
suas diversas manifestações representam uma inversão quase que
completa das posições de Lange. Se com isso o neokantismo se
tornou um movimento mais genuinamente kantiano é outra questão, que não deve nos ocupar aqui. O fato é que, sob a liderança
intelectual de Lange e devido à sua inclinação naturalista, os temas
que dominaram a paisagem filosófica de língua alemã nas décadas
de sessenta e setenta do século XIX apresentam notáveis similaridades com aqueles que encontramos na tradição analítica pós-quineana. Dada a incontestável influência de Lange sobre Nietzsche,
uma investigação sobre suas eventuais contribuições para o tema
do naturalismo se justifica também de um ponto vista histórico.
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cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
3. A “ambicionada assimilação do materialismo”: Lange, Nietzsche e
uma possível versão liberal dos compromissos naturalistas do filósofo.
Um diagnóstico preciso da disposição de espírito que dominou
a filosofia alemã nas décadas de sessenta e setenta do século XIX
foi formulado por Hans Vaihinger (em uma obra destinada justamente à defesa da posição de Lange) doze anos após a publicação
da primeira edição (1866), e três anos após a publicação da segunda edição, revista e consideravelmente ampliada, da História
do materialismo (1873-1875):
A filosofia, dizia-se, precisa se orientar pelas ciências naturais; ela
precisa se afastar das especulações estéreis e das querelas escolásticas e retornar ao verdadeiro solo das ciências positivas. Nenhum
sistema que seja incapaz de cumprir estas exigências, em especial a
ambicionada assimilação do materialismo, poderá reivindicar uma
validade universal; nenhum filósofo que não ‘tenha sido ungido com
uma gota de óleo do materialismo’ será erguido ao trono [...]. Tal
era a palavra de ordem da filosofia e das ciências naturais a uma ou
duas décadas atrás (VAIHINGER 23, p. 2).
Não há dúvida de que pelo menos sob este aspecto Nietzsche
pode ser visto como um filho de seu tempo. Também ele quis em
alguma medida ser ungido com ‘uma gota de óleo do materialismo’,
conforme ele mesmo admite em um fragmento póstumo de 1884:
Quando penso em minha genealogia filosófica, eu me sinto ligado
ao movimento antiteleológico, isto é, espinozista de nossa época,
com a diferença, entretanto, que eu considero também ‘o fim’ e ‘a
vontade’ em nós uma ilusão; assim como me sinto ligado ao movimento mecanicista (redução de todas as questões morais e estéticas
a questões fisiológicas, de todas as questões fisiológicas a químicas, de todas as questões químicas a mecânicas), com a diferença,
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Lopes, R.
entretanto, que eu não acredito em ‘matéria’ e considero Boscovich,
assim como Copérnico, um dos grandes pontos de inflexão; que eu
considero o autoespelhamento do espírito como um ponto de partida estéril e não acredito em nenhuma investigação séria que não
tome o corpo como fio condutor. Não uma filosofia como dogma, mas
como um regulativo provisório da investigação (Nachlass/FP 1884,
26[432], KSA 11.266-7).
Que tipo de compromisso ou concessão ao materialismo pode
ser extraído da passagem acima? E que tipo de paralelo pode ser
estabelecido entre o materialismo do século XIX e o naturalismo
da segunda metade do século XX? Penso que o modo como Lange
tratou do problema pode nos auxiliar a responder as duas questões
que acabo de formular.
No que se refere ao materialismo, podemos resumir a tese
central de Lange nos seguintes termos: enquanto método ou estratégia cognitiva o materialismo deve ser cultivado, enquanto posição epistemológica ele está refutado, enquanto tese ontológica é
indemonstrável e enquanto visão de mundo ele deve ser moderadamente combatido.
O mérito do materialismo consiste, segundo Lange, em ter se
estabelecido historicamente como uma escola do rigor metódico,
definida pela sobriedade e economia de seu vocabulário e pelo
controle de suas hipóteses. A estratégia reducionista que acompanha toda ocorrência histórica do materialismo é justificada também
na perspectiva do método e na medida em que serve ao objetivo
da ciência, que é o de fornecer uma descrição a mais exaustiva e
econômica possível da regularidade do mundo fenomênico. Ao determinar o saldo final da especulação filosófica dos antigos, Lange
aponta como principal mérito da tendência materialista, cujos expoentes máximos seriam Demócrito e Epicuro, o fato de ter elaborado uma visão de mundo na qual regularidade e legalidade valiam
como axiomas. A condição sine qua non para tanto foi a exclusão de
todo elemento arbitrário, de toda intervenção miraculosa no mundo,
320
cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
de todo acaso e de toda consideração teleológica dos fenômenos naturais. Em outros termos, o materialismo estabeleceu o axioma da
inteligibilidade do mundo da experiência mediante a recondução
de sua diversidade fenomênica à simplicidade de seus elementos
constitutivos (os átomos) e à regularidade de seu comportamento (as
leis que governam seus movimentos e determinam a diversidade de
suas formas fenomênicas)3. A visão de mundo expressa na tendência materialista criou deste modo as condições para uma transição
histórica natural da especulação filosófica acerca dos princípios
para uma cultura caracterizada por um notável progresso no campo
das ciências positivas (LANGE 11, p. 32). Esta cultura é a Alexandrina, e seu feito histórico mais significativo foi o de consolidar no
âmbito das mais diversas disciplinas científicas as diretrizes metódicas derivadas da especulação atomística. A formação do ethos
científico, a aquisição de um conjunto de virtudes epistêmicas e
o estabelecimento de uma série de procedimentos metódicos no
interior das respectivas disciplinas científicas são eventos históricos que permitem estabelecer certa continuidade entre a ciência
moderna e a especulação materialista dos gregos pela mediação
da cultura Alexandrina. Esta tese acerca do significado histórico
3 Os axiomas da visão de mundo democritiana são apresentados por Lange nas pp.
7-8 da primeira edição da História do materialismo. Eles antecipam o essencial da
visão científica moderna do mundo. Nietzsche adota em suas preleções sobre os filósofos pré-platônicos a mesma estratégia de confrontação das hipóteses antigas com
os resultados da ciência moderna. Lange traduz nos seguintes termos sua impressão
da atualidade do sistema de Demócrito: “Ao lançarmos um olhar retrospectivo ao
sistema de Demócrito descobrimos nele aquela hipótese científica que ainda hoje
a ciência empírica considera como a hipótese, no mínimo, mais cômoda [...]. Nós
encontramos neste sistema o princípio da equivalência de todo ente pressuposto de
forma axiomática, um princípio que nossa época ainda está ocupada em provar; encontramos finalmente neste sistema uma resoluta tomada de posição em favor da
causalidade contra a teleologia, a primeira condição fundamental para todo estudo
bem-sucedido da natureza” (LANGE 11: p. 9).
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321
Lopes, R.
da cultura Alexandrina comparece também em Nietzsche e parece
corresponder a um lugar comum da filologia alemã representada
por Ritschl (LANGE, idem, p. 32-33)4.
Embora no Nascimento da Tragédia Nietzsche acate a identificação da cultura científica com a cultura Alexandrina, ele parece
recusar a tese de Lange segundo a qual esta cultura seria um desdobramento natural da especulação atomística. Ao associar a cultura
Alexandrina à tendência socrática, Nietzsche parece adotar uma
tese histórica oposta à sugerida por Lange, pois esta associação
nos induz a pensar que a formação da disciplina metódica incorporada na prática das ciências positivas teve como seu pres­suposto
essencial a visão de mundo representada pelo otimismo teórico socrático. Aos olhos de Nietzsche, entretanto, Sócrates teve um papel
decisivo ao fornecer uma justificação metafísica para a atividade
teórica, evitando assim as consequências destrutivas do pessimismo prático. Nietzsche parece ter chegado a esta tese robusta
acerca dos pressupostos necessários para a formação de uma cultura científica a partir de uma segunda grande intuição de Lange.
4 Lange, assim como Nietzsche, recebeu o essencial de sua formação científica sob a
supervisão e o aconselhamento de Friedrich Ritschl na Universidade de Bonn. Em
Bonn Lange frequentou o curso de Filologia Clássica, obtendo seu título de doutor
pela mesma Universidade no ano de 1851 com uma tese sobre métrica grega. Em
algumas de suas cartas, Lange confessa seu débito para com a Escola de Filologia de
Bonn e para com seu mestre Ritschl, que teria cultivado nele as virtudes do método
científico. Esta é provavelmente a raiz mais remota e comum da convicção, expressa
mais tarde por ambos os autores, de que uma cultura científica se caracteriza em
última instância por seus métodos, ou seja, não tanto pelos resultados de suas investigações (sempre provisórios e sujeitos à revisão), mas tampouco pela aquisição
de um conjunto de procedimentos ou regras formais a serem aplicadas no contexto
da prática científica, mas pela formação de uma tradição no interior da qual se torna
possível transmitir de geração a geração o que podemos chamar de virtudes epistêmicas. Neste sentido, Ritschl e a tradição filológica representada pela Escola de Bonn
seriam os verdadeiros antídotos contra o sono dogmático que costuma acometer os
filósofos. Esta tradição retoma, no contexto de consolidação das ciências históricas
na Alemanha do século XIX, os preceitos do ceticismo metódico que pautaram a
Revolução Científica no início da Modernidade.
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cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
Esta intuição permite a ele explicar o fato aparentemente paradoxal
de que as principais descobertas científicas da antiguidade foram
feitas por adeptos da tendência idealista. Na medida em que se entrega livremente à fabulação conceitual, esta tendência deveria ser
considerada um obstáculo ao desenvolvimento científico. Entretanto, prossegue Lange, quando investigamos a filiação dos maiores
cientistas naturais e matemáticos da antiguidade, descobrimos que
todos, à exceção de Demócrito, provinham ou da escola idealista
platônica, ou da escola formalista aristotélica ou mesmo seguiam
orientações filosóficas ainda mais delirantes, como a pitagórica
(LANGE, ibidem, p. 65). Esta constatação parece contradizer a tese
de Lange de que o principal mérito da tendência materialista teria
consistido na promoção dos valores cognitivos. No entanto, a consideração do problema do ponto de vista da psicologia da descoberta
científica permite a Lange não só contornar esta aparente contradição, como reconhecer que a orientação idealista, ainda que por vias
indiretas, colaborou de forma decisiva para o progresso do conhecimento científico. Ao infundir na alma entusiasmo pela investigação
da verdade, a tendência idealista mobilizou as energias do homem
como um todo e as colocou a serviço do conhecimento. Ao vincular
valores morais, estéticos e religiosos à busca da verdade, ela conferiu um impulso subjetivo à pesquisa e uma intensidade ao engajamento na investigação do mundo fenomênico que jamais poderiam
provir da sóbria visão de mundo característica do materialismo5.
5 “Aqui não podemos deixar escapar a chance de nos aprofundarmos na grande verdade de que o que é objetivamente correto e conforme ao entendimento não é o que
na maioria das vezes promove o homem, não é sequer aquilo que o conduz à maior
profusão de conhecimentos objetivamente corretos” (LANGE 11, p. 66). Poderíamos
ver nesta passagem uma antecipação da distinção popperiana entre contexto de descoberta e contexto de justificativa, mas creio que Lange chama a atenção para um
aspecto ainda mais singular da “lógica” da descoberta científica: o papel produtivo
do erro e da ilusão na psicologia do conhecimento. Este tema langeano, como tantos
outros, será retomado e radicalizado por Nietzsche.
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Lopes, R.
A presença do materialismo como um contrapeso é vista, entretanto, como uma condição necessária para que o entusiasmo
idealista pela busca da verdade possa ser canalizado para a investigação no âmbito das ciências empíricas, ao invés de degenerar
em um mero fantasiar arbitrário. O materialismo, na medida em
que exerce influência sobre os espíritos, cultiva neles uma “moralidade do pensamento” que, segundo Lange, lhes obriga a ater-se
às exigências do objeto. A explicação oferecida por Lange parece
sugerir que as exigências da consciência metódica, cultivadas na
tradição materialista, permitem redirecionar para o objeto da investigação os impulsos subjetivos cultivados na tradição idealista
(LANGE, ibidem, p. 68).
Nietzsche propõe no Nascimento da tragédia a figura de Sócrates
como o modelo para o homem teórico e associa explicitamente a cultura Alexandrina ao predomínio da tendência expressa no otimismo
teórico. Todas as declarações posteriores de Nietzsche nos fazem
crer que ele compartilha a convicção de Lange de que a essência de
uma cultura científica consiste na formação da disciplina metódica.
De Humano, demasiado Humano até o Anticristo, Nietzsche vê a formação desta disciplina como um capítulo da história dos efeitos do
ceticismo6, mas em alguns momentos esta hipótese é substituída por
uma que lhe parece mais plausível do ponto de vista psicológico:
convicções metafísicas, religiosas e morais precisam ter estado na
origem da formação do ethos científico. Este movimento retoma uma
tese que Nietzsche desenvolve pela primeira vez no Nascimento da
tragédia. Segundo minha interpretação, esta tese corresponde a uma
expansão, também para o âmbito da aquisição dos métodos, da explicação fornecida por Lange de como suposições idealistas atuam
como um elemento motivador da pesquisa científica e, portanto,
6 E não do materialismo. Mas aqui não há nenhuma divergência significativa em relação a Lange, pois também para ele o materialismo que toma consciência de si enquanto método não se diferencia do ceticismo metódico e disciplinado.
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
como um fator subjetivo do progresso científico. Nietzsche expande
esta intuição de Lange ao defender que a decisão de se impor uma
disciplina metódica tem como condição subjetiva o compromisso
prévio com algum tipo de postulado metafísico, ou seja, pressupõe a
aceitação de algum tipo de convicção última.
O principal mérito do materialismo é, portanto, metodológico:
aos olhos de Lange, ao se apresentar como uma concepção sóbria
e econômica da natureza ele permitiu a alguns espíritos o cultivo
das virtudes epistêmicas necessárias para a criação de uma cultura verdadeiramente científica, na qual a aquisição do método é
a única conquista definitiva. Por outro lado, o materialismo compreendido como posição ontológica padece desde suas origens gregas de algumas fragilidades e inconsistências que nunca puderam
ser contornadas. Três grandes dificuldades teóricas acompanham
o materialismo desde sua primeira formulação cabal por Demócrito: a aparente irredutibilidade das sensações às leis dos átomos, o enigma da consciência (como a matéria pode agir sobre o
pensamento e vice-versa) e a dificuldade de derivar a totalidade
orgânica (a vida em suas diferentes manifestações) da unidade do
átomo. Aqui também haveria pontos de contato entre Nietzsche e
Lange que poderiam ser explorados de forma muito produtiva e
esclarecedora para o debate acerca do naturalismo substancial de
Nietzsche, tais como o seu compromisso com o sensualismo, sua
adesão a uma concepção essencialmente dinâmica da natureza e
os diversos aspectos de sua crítica ao mecanicismo. Ao invés de
perseguir este caminho, vou me concentrar na tensão entre naturalismo e normatividade epistêmica no contexto nos diversos
programas de reformulação da filosofia transcendental de Kant na
segunda metade do século XIX.
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Lopes, R.
4. Nietzsche e a tradição transcendental: aspectos normativos e
naturalistas na abordagem da cognição.
No século XIX há inúmeras variantes de filosofia transcendental, e Nietzsche estava bem familiarizado com pelo menos três delas: a variante de Schopenhauer, a de Lange e a de Spir. Todas elas
são versões relativamente heterodoxas da filosofia transcendental.
Schopenhauer e Lange, por exemplo, defendem que certos elementos de nossa cognição são transcendentais, no sentido de que são
condições de possibilidade para a experiência empírica em geral,
mas esta defesa não se faz acompanhar pela reivindicação kantiana
de que haveria um método propriamente transcendental para a
identificação e fixação destes elementos, ou para a sua dedução, no
sentido técnico que Kant associa à noção. Schopenhauer entende
que por serem condições de possibilidade, estes elementos não podem resultar de nenhum procedimento de prova: são itens aos quais
eu tenho acesso imediato ao consultar a intuição (cf. GUYER 6).
Lange entende, por sua vez, que estes elementos são obtidos através de uma investigação empírica convencional. É muito provável
que a versão mais fiel ao espírito antinaturalista que está na origem
da resposta kantiana a Hume seja a oferecida por Spir. Mas de todos os modelos de filosofia transcendental com os quais Nietzsche
teve contato, este é o que ele recusa de forma mais veemente. Por
outro lado, o confronto com algumas teses de Spir fornece uma ilustração paradigmática do modo como Nietzsche transforma certas
reivindicações transcendentais em hipóteses genealógicas e mantém, ao mesmo tempo, certa fidelidade à visão normativa dos conceitos epistêmicos, que é uma das motivações originais do projeto
kantiano. Esta combinação de descrição naturalista das condições
da cognição e interpretação normativa dos conceitos epistêmicos
resulta numa modalidade de ceticismo ou fideísmo naturalista que
pode ser encontrada tanto em Pascal quanto em Hume.
Ao lado de Lange, Afrikan Spir (1837-1990) é reconhecidamente uma das principais fontes de Nietzsche para discussões no
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
domínio da epistemologia. Seu principal livro, Denken und Wirklichkeit (SPIR, 22), discute pormenorizadamente as posições do empirismo inglês e da tradição kantiana. O diálogo de Nietzsche com
Spir é igualmente decisivo para a compreensão de suas posições no
interior do debate metafísico. Spir é o responsável pela formulação
da tese de que aqueles que pretendem abraçar a visão de que a
realidade se caracteriza pelo devir absoluto devem estar dispostos
a abandonar o axioma da inteligibilidade do real. Ao aceitar este
desafio, Nietzsche se mantém fiel à tese de Spir de que conceitos
epistêmicos (tais como ‘objetividade’, ‘verdade’, ‘justificação racional’) têm implicações normativas, mas sua opção pelo devir absoluto o obriga a se afastar da perspectiva transcendental defendida
por este filósofo e a compor uma narrativa naturalista e pragmática
acerca dos mecanismos que atuaram tanto na formação e fixação
quanto na transmissão e transformação de nossas crenças básicas e
padrões de inferência, ou seja, naqueles itens de nossa vida mental
que dificilmente estão sujeitos a revisão. Tais itens são, por exemplo, nossa crença no mundo exterior, na existência de objetos que
subsistem ao longo do tempo, na liberdade da vontade e na correção de nossas inferências causais. Nenhum daqueles conceitos
epistemicamente normativos comparece nesta narrativa, pois se
participassem efetivamente dos processos de formação e fixação
de nossas crenças básicas, seja via percepção, seja via inferência,
suas elevadas exigências de fundamentação teriam um efeito deletério sobre a espécie humana (cf. FW/GC110, KSA 3.469-71).
O caminho que leva Nietzsche a esta conclusão só pode ser compreendido a partir de um rápido resumo da filosofia de Spir.
Spir divide os filósofos em dois grupos: o dos dogmáticos e o
dos filósofos críticos. Os filósofos dogmáticos, também denominados de metafísicos, são caracterizados em termos kantianos como
aqueles que pretendem avançar no conhecimento do absoluto sem
uma crítica prévia dos limites de nossas faculdades cognitivas:
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Lopes, R.
A metafísica pretende ser a doutrina do próprio incondicionado; a
filosofia crítica, por sua vez, na medida em que ela se eleva sobre a
experiência, não pode ser nada mais do que a doutrina do conceito
do incondicionado, da origem, do significado e da validade objetiva
deste conceito (SPIR 22, I, p. 2).
Nietzsche considera legítima a pergunta pela origem e pelo
significado das representações e dos afetos metafísicos, mas ele entende que esta não é uma investigação de natureza lógico-transcendental (nos termos de Spir) ou genético-transcendental (nos termos
de Schopenhauer), mas empírico-genealógica. Ao optar pelo devir
absoluto, ele precisa recusar de antemão a pergunta pela validade
objetiva do conceito de incondicionado. Em seu lugar ele coloca
a pergunta pela função vital da crença na validade objetiva de
tal conceito (a utilidade vital da crença na existência, por exemplo, de substâncias, que tanto Spir quanto Nietzsche interpretam
como uma aplicação da noção de incondicionado). Este programa
alternativo contesta as duas vertentes da metafísica: a crítica ou
pós-kantiana, que tem como ambição definir a priori as condições
de possibilidade do conhecimento do mundo empírico (pela substituição da desacreditada ontologia por uma doutrina das categorias); e a dogmática, que pretende nos fornecer um conhecimento
do conteúdo do incondicionado. Os intérpretes de Nietzsche têm
dado muita atenção à sua crítica à metafísica dogmática, mas nem
sempre têm investigado com a devida atenção sua crítica à metafísica da experiência, ou doutrina das categorias.
De acordo com Spir, os sensualistas, que são avessos à metafísica no sentido dogmático, ignoram, contudo, a especificidade
lógica da representação e tentam inutilmente derivá-la das leis empíricas que regem as sensações, reduzindo-a a processos fisiológicos que podem ser descritos em termos fisicalistas (SPIR, idem,
p. 66). Segundo Spir, o domínio da representação é regido por leis
lógicas do sujeito do conhecimento que são irredutíveis às leis que
regem o domínio dos fenômenos físicos:
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
As leis próprias do sujeito cognoscente são de uma espécie inteiramente distinta, pois elas se referem à concepção de objetos que
estão fora da representação; elas são normas originárias do conhecimento, princípios de afirmações de natureza lógica e não física7.
A lei a priori do sujeito do conhecimento é o princípio de Identidade. Este princípio não tem apenas a função de uma proposição
de identidade, mas é também uma proposição sintética a priori,
pois desempenha um papel constitutivo na experiência. Portanto,
ele deve funcionar como um discriminante ontológico8. Spir propõe
diversas vias para comprovar que as leis gerais do conhecimento
empírico (o princípio de causalidade e o princípio de indução)
pressupõem a validade objetiva desta lei puramente lógica do sujeito do conhecimento. As leis de associação destacadas pela tradição empirista se aplicariam somente ao conteúdo da representação,
7 Cf. SPIR, 22, I, p. 79. A nota que acompanha esta passagem talvez traduza com ainda
maior clareza a sofisticada percepção de Afrikan Spir de que há uma ordem lógica
e normativa das razões, que faz parte da dimensão da justificativa do conhecimento,
que não se confunde com a ordem das causas: “Uma lei física é uma forma imutável
da simultaneidade ou sucessão de fenômenos ou processos reais. Uma lei lógica é,
por sua vez, a disposição interna de acreditar em algo sobre os objetos. As leis físicas
regem a sucessão real dos eventos em uma ordem temporal, as leis lógicas regem a
sucessão lógica dos pensamentos na ordem das justificações. Percebe-se claramente
como ambas são inteiramente distintas por natureza”. Spir protesta contra a redução
da mente ao cérebro e da teoria do conhecimento a um ramo da fisiologia. Seu protesto
antecipa em alguns anos uma tendência que se tornará hegemônica (com a consolidação no neokantismo), mas na década de 1870 ele ainda é uma voz claramente
dissonante: “Chegou-se agora a um consenso de que a ciência do espírito é um ramo
da fisiologia. Para investigar as leis do pensamento é preciso seccionar o cérebro
e submetê-lo aos mais variados experimentos. Por mais úteis e frutíferos que estes
experimentos possam ser para a psicologia, para a lógica e a epistemologia propriamente eles em nada contribuem“. (SPIR, idem, I, p. 107-108).
8 Cf. o § 3 do segundo capítulo do livro dois do volume I, intitulado “Uebergang von der
Logik zur Ontologie” (p. 178-184) e o §3 do sexto capítulo do mesmo livro, intitulado
“Der den ursprünglichen Begriff a priori ausdrückende Satz muss zugleich ein identischer und ein synthetischer sein” (p. 237-239).
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Lopes, R.
ou seja, às sensações. A forma lógica da mesma só pode ser compreendida a partir da lei fundamental do sujeito do conhecimento.
A tese transcendental de Spir, segundo a qual a certeza originária de que existem casos idênticos na natureza está racionalmente fundada na lei lógica do sujeito transcendental e de que
apenas a sua admissão torna a ciência possível (no sentido de
epistemicamente fundada) é transformada por Nietzsche em uma
hipótese genealógica acerca das condições fisiológicas, psicológicas e históricas do surgimento da ciência. Segundo Nietzsche,
para explicar como a ciência se tornou facticamente possível não é
necessário supor a validade lógico-transcendental do princípio de
Identidade, a partir do qual se podem derivar os princípios do conhecimento empírico e fundamentar sua convicção básica de que
existem casos idênticos na natureza; para tanto basta a simples
ilusão psicológica de que tais casos existem. A crença na validade
objetiva das ficções é condição suficiente (do ponto de vista histórico e psicológico) para o surgimento da ciência. O erro da filosofia
transcendental consiste em inferir da existência fática da ciência
(que é descrita por Nietzsche como um conjunto de estratégias de
assimilação do devir mediante categorias ficcionais) sua validade
epistêmica. Nietzsche transforma a pergunta pela validade objetiva das proposições sintéticas a priori na pergunta pelos mecanismos naturais e históricos que atuaram na formação da crença na
validade objetiva de tais proposições. Esta crença remete a uma
função orgânica primitiva, que por sua vez é reforçada pelas ficções linguísticas. Nietzsche retoma neste contexto as sugestões de
Lange acerca da contribuição do erro para o progresso científico e
as radicaliza ao remeter esta contribuição à pré-história dos organismos. A linguagem, a lógica, a matemática, que juntas fornecem
o órganon para toda assimilação teórica da realidade, são descritas
como um sistema de ficções cuja eficácia histórica e psicológica
repousa justamente na ignorância, por parte dos agentes cognitivos, de seu estatuto ficcional (cf. MAI/HH I 11 e 19, KSA 2.30-1
e 40-1). Esta ignorância só é possível por estar fundada em uma
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
forma de erro muito mais primitiva, que tem suas raízes em funções orgânicas elementares (cf. MAI/HH I 18, KSA 2.38-40).
Nietzsche explica a tese central de Spir, segundo a qual o conhecimento do mundo empírico pressupõe a validade objetiva do
princípio de Identidade e do conceito de substância, com o auxílio da teoria evolucionista de Spencer acerca dos mecanismos de
formação e transmissão de nossas convicções de base e de nossos
padrões de inferência, e insere este conjunto em sua teoria do erro,
que é por um lado uma radicalização da sugestão que ele encontra em Lange e, por outro lado, um corolário de sua adesão à tese
do devir absoluto. Nietzsche não se compromete com o critério
de verdade proposto pela tese evolucionista, segundo o qual estas convicções de base são verdadeiras e os padrões de inferência
são corretos porque eles teriam sido testados ao longo da história
natural da espécie e teriam garantido a sua sobrevivência. Nietzsche sem dúvida concorda que estas convicções e estes padrões de
inferência permitiram a conservação da espécie, mas ele se recusa
a identificar sucesso e eficácia biológica com verdade e correção
epistêmica. Nietzsche parece aludir diretamente a Spencer e aos
primeiros proponentes de um critério pragmático de verdade de
coloração biologizante no aforismo 30 de Humano, demasiado humano, intitulado Maus hábitos de raciocínio:
Os erros de raciocínio mais habituais dos homens são estes: uma
coisa existe, portanto é legítima. Aqui se deduz a conformidade a
fins a partir da capacidade de viver, e a legitimidade a partir da
conformidade a fins. Em seguida: uma opinião faz feliz, portanto é
verdadeira; seu efeito é bom, portanto ela mesma é boa e verdadeira.
Aí se atribui ao efeito o predicado de fazer feliz, de bom, no sentido
de útil, e se dota a causa com o mesmo predicado de bom, mas no
sentido de logicamente válido (NIETZSCHE 17, p. 37; MA I/HH I
30, KSA 2.50; com pequenas correções na tradução)9.
9 Um fragmento póstumo de 1880 reforça a tese de que um dos alvos de Nietzsche
neste aforismo era Spencer: “aquilo que segundo
conceitos
causais
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Nietzche
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Embora recuse o núcleo normativo da epistemologia evolucionista, Nietzsche adota, no entanto, o seu núcleo descritivo, e o utiliza
para contestar a pretensão de Spir de ter demonstrado a validade
objetiva das leis a priori do pensamento. Assim, o princípio de Identidade e a lei originária do sujeito do conhecimento são reinterpretados como funções vitais dos organismos, que surgiram em estágios
bastante inferiores de desenvolvimento. Nietzsche prevê um grau de
desenvolvimento futuro da ciência em que a história da gênese do
mundo como representação terá sido concluída, e então as leis lógicas de Spir se revelarão aquilo que de fato são: ficções regulativas,
erros necessários a determinadas formas de vida, funções orgânicas.
Nietzsche propõe este cenário no aforismo 18 de Humano, demasiado humano, intitulado “Questões fundamentais da metafísica”:
Quando algum dia se escrever a história da gênese do pensamento, nela também se encontrará, sob uma nova luz, a seguinte frase
de um lógico eminente: “A originária lei universal do sujeito cognoscente consiste na necessidade interior de reconhecer cada objeto em si, em sua própria essência, como um objeto idêntico a si
mesmo, portanto existente por si mesmo e, no fundo, sempre igual
e imutável, em suma, como uma substância”. Também essa lei, aí
denominada “originária”, veio a ser – um dia será mostrado como
gradualmente surge essa tendência nos organismos inferiores [...]
(NIETZSCHE 17, p. 27-28; MA I/HH I 18, KSA 2.38-40)10.
rigorosos nos é realmente bom (p. ex. crença incondicional, etc.), justamente isso
talvez não nos seja mais possível em função do rigor do espírito científico! (contra a fé
inócua de Spencer na harmonia entre saber e utilidade)” (Nachlass/FP 1880, 7[56],
KSA 9.328).
10 Nietzsche retoma acima a seguinte passagem de Spir: “Das ursprüngliche allgemeine
Gesetz des erkennenden Subjects besteht, [wie schon ausführlich nachgewiesen worden: frase ignorada por Nietzsche, por razões óbvias], in der inneren Nothwendigkeit,
jeden Gegenstand an sich, in seinem eigenen Wesen als einen mit sich selbst identischen, also selbstexistirenden und im Grunde stets gleichbleibenden oder unwandelbaren, kurz als eine Substanz zu erkennen“ (SPIR 22, II, p. 177).
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
A princípio este programa pode ser entendido como um desdobramento da parte negativa do programa de Lange. Embora reivindique a herança kantiana, a concepção langeana da tarefa negativa
da filosofia entendida como crítica dos conceitos e teoria do conhecimento diverge em alguns aspectos da formulação original de
Kant. Em primeiro lugar, Lange nega que o filósofo disponha de um
método específico para o estabelecimento de suas teses epistemológicas. Embora tome o partido de Kant contra Mill ao defender a tese
de que existem determinados elementos a priori que antecedem a
experiência e a tornam possível – estes elementos são por sua vez
interpretados em termos de um a priori de nossa organização psicofísica –, Lange recorrerá a um argumento do filósofo inglês para
contestar que o método transcendental adotado por Kant possa ter
êxito na identificação e fixação destes elementos da cognição. Tais
elementos devem ser descobertos pelas vias usuais do método científico, método este que ele identifica com a indução, que permite a
formulação de proposições com graus variados de generalização e
cuja certeza é definida em termos meramente probabilísticos:
Que os conceitos primitivos de nosso conhecimento a priori precisem ser descobertos também a priori, ou seja, mediante dedução
a partir de conceitos necessários, é algo que pode parecer muito
evidente. Isto é, contudo, uma falsa suposição. Devemos distinguir
claramente entre uma proposição necessária e a prova de uma proposição necessária. Nada é mais facilmente concebível do que o
fato de que as proposições válidas a priori devam ser descobertas
somente pela via da experiência (LANGE, 11, p. 248)11.
11 Ainda na mesma direção: “Para a exposição e exame das proposições uni-
versais que não são derivadas da experiência, nós estamos reduzidos aos
recursos usuais da ciência; só podemos enunciar proposições prováveis acerca da questão se conceitos e formas do pensamento, que nós precisamos
assumir momentaneamente como verdadeiros sem nenhuma prova, provêm
da natureza permanente do homem ou não; em outros termos, se eles são os
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Lopes, R.
Enquanto Lange entende que a tarefa da filosofia crítica, cujo
método ele não diferencia dos métodos usuais das ciências empíricas, consiste em discriminar, sempre de forma aproximativa, dentre
as inúmeras proposições a priori aquelas que valem somente para
um determinado estágio de desenvolvimento de nosso organismo e
que devem, portanto, ter sua pretensão de validade universal negada, Nietzsche entende que esta tarefa consiste em mostrar que
todas as supostas proposições sintéticas a priori pertencem de fato
a esta última classe, descrita pelo filósofo como a classe dos erros
fundamentais necessários à conservação de certo tipo de vida. Embora Nietzsche tenha combinado outras influências para a elaboração de seu programa filosófico, podemos discernir claramente os
ecos de Lange tanto nas páginas programáticas que abrem Humano,
demasiado humano como na reformulação tardia destas mesmas páginas em Para além de bem e mal (cf. os aforismos programáticos de
número 4 e 11). Nietzsche permanece fiel à convicção de Lange de
que os métodos filosóficos não diferem dos métodos científicos convencionais. Assim como Lange, ele entende que esta convicção não
está em choque com a manutenção da pretensão normativa da filosofia (esta afirmação pode parecer duvidosa, ou mesmo altamente
problemática, mas penso que apenas para aqueles que identificam
erroneamente a recusa da concepção moral ou metafísica da normatividade (fundada no dualismo dos dois mundos) com uma recusa da
normatividade em geral, que não faz parte das intenções do filósofo,
mesmo porque ele a considera um traço inerradicável do humano).
A partir de Humano, demasiado humano Nietzsche dará um
passo decisivo para além das posições fundamentais de Lange.
Este passo acentua ainda mais as consequências céticas da reforma
promovida por Lange na tradição da filosofia transcendental. O caráter normativo de conceitos epistêmicos tais como ‘conhecimento’,
autênticos conceitos primitivos de todo conhecimento humano ou se eles se
mostrarão em algum momento como ‘erros’” (LANGE 11, p. 249).
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‘verdade’, ‘justificação racional’, ‘objetividade’, entre outros, nos
proíbe reivindicar para quaisquer de nossas convicções fundamentais um estatuto de validade objetiva (as ditas proposições sintéticas a priori). O fato de não podermos organizar nossa experiência
sem recorrermos a estes proposições de base, o fato de elas serem
incontornáveis será interpretado por Nietzsche como expressão de
uma necessidade fisiológica a ser explicada através de uma história genética do pensamento, cuja tarefa será justamente narrar a
gênese do mundo como representação sem apelar para hipóteses
metafísicas nem tampouco para uma teoria do entendimento puro
no sentido de Schopenhauer.
Mas ao identificar indiscriminadamente estas convicções de
base que determinam nossa experiência a erros fundamentais do
organismo em estágios rudimentares de desenvolvimento, seja da
vida animal como um todo, seja da espécie humana em particular,
sem introduzir com isso qualquer menção ao corpo e suas estruturas como um candidato alternativo a ocupar o lugar do sujeito
transcendental kantiano, Nietzsche está se recusando a reconhecer
validade objetiva às proposições que traduzem estas convicções e
transformando em uma gigantesca teoria do erro o que em Lange
era uma mera reserva falibilista no âmbito da investigação transcendental das condições de possibilidade da experiência. Seria um
equívoco supor que Nietzsche com isso está defendendo uma reforma pragmática de nossos conceitos epistêmicos. O que ele está
propondo é uma teoria descritiva, segundo a qual as nossas crenças
básicas (as proposições sintéticas a priori) são formadas a partir de
critérios pragmáticos. Considere-se, por exemplo, a seguinte passagem de Para além de bem e mal:
A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma
objeção contra ele; [...]. A questão é em que medida ele promove ou
conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa
inclinação básica é afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais
os juízos sintéticos a priori) nos são os mais indispensáveis, que,
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sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade
com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver – que renunciar aos juízos falsos
equivale a renunciar à vida, negar a vida. [...] (NIETZSCHE 16, p.
11-12; JGB/BM 4, KSA 5.18).
Defender uma teoria pragmática dos processos que atuam
na formação de nossas crenças básicas é algo muito diferente de
sustentar uma concepção pragmática de verdade. A primeira nos
diz que considerações pragmáticas atuam na formação das nossas
crenças; a segunda afirma que nós estamos justificados epistemicamente ao nos deixarmos conduzir por tais considerações. Nietzsche recusa esta conclusão em quase todas as suas considerações
sobre o tema, e ele só pode fazê-lo na medida em que pressupõe
uma compreensão normativa do funcionamento de nossos conceitos
epistêmicos, como fica evidente nesta outra passagem célebre de
Para além de bem e mal:
[...] é tempo, finalmente, de substituir a pergunta kantiana, “como
são possíveis juízos sintéticos a priori?”, por uma outra pergunta:
“por que é necessária a crença em tais juízos?” – isto é, de compreender que, para o fim da conservação de seres como nós, é preciso
acreditar que tais juízos são verdadeiros, com o que, naturalmente,
eles também poderiam ser falsos! Ou, dito de maneira clara e crua:
juízos sintéticos a priori não deveriam absolutamente “ser possíveis”: não temos direito a eles, em nossa boca são somente juízos
falsos. Mas é claro que temos que crer em sua verdade, uma crença de fachada e evidência que pertence à ótica-de-perspectivas da
vida. [...] (NIETZSCHE 16, p.18; KSA JGB/BM 11).
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cadernos Nietzche 29, 2011
“A ambicionada assimilação do materialismo”
5. O corpo como fio condutor: uma interpretação heterodoxa do que
significa para um filósofo emular os métodos científicos.
Em um artigo de 1994, Salaquarda defende a tese de que as
reiteradas reivindicações do corpo como fio condutor feitas por
Nietzsche nos póstumos de 1884 a 1885 teriam por finalidade primeira rivalizar com o materialismo metodológico e com o mecanicismo das ciências naturais de sua época. Gostaria de sugerir
que esta tese não é inteiramente verdadeira12. A necessidade de
se posicionar filosoficamente face ao desafio posto pelo sucesso
da estratégia cognitiva reducionista do materialismo metodológico
já está presente no início do período intermediário, quando Nietzsche comunica aos leitores a sua resolução de estabelecer uma
nova aliança entre a tarefa normativa da filosofia e a investigação
empírica (cf. o aforismo programático de M I/HH I 1, KSA 2.234). Neste momento de seu percurso, o corpo não é reivindicado
12 Cf. SALAQUARDA 20, p. 40-41. Eu digo que a tese não é inteiramente verdadeira
porque ela carece de uma qualificação que não se encontra no texto de Salaquarda.
É necessário distinguir com muita clareza entre o materialismo enquanto posição
ontológica (que Salaquarda chama de materialismo mecanicista) do materialismo
metodológico (que designa uma estratégia cognitiva específica, caracterizada pelo
reducionismo e pela sobriedade no vocabulário e nas hipóteses). Enquanto a primeira posição não tinha nenhum representante entre os cientistas naturais com
boa reputação na época, a segunda posição era aceita tanto por cientistas naturais
quanto por filósofos interessados em retomar o diálogo com as ciências. Esta última
posição era defendida tanto por Schopenhauer quanto por Lange. Mas a tese de uma
continuidade de método entre ciência empírica e reflexão filosófica era defendida
apenas por Lange, e recusada por Schopenhauer, que entendia a continuidade muito mais em termos de resultados (principalmente se os resultados empíricos iam ao
encontro de suas teses especulativas) do que de método. Nietzsche adota a posição
de Lange e a radicaliza a partir de Humano, demasiado humano. Portanto, não é
inteiramente correta a afirmação de que o recurso ao corpo próprio tem como finalidade primeira competir com o materialismo metodológico. Como Nietzsche defende
uma versão relativamente forte da tese da continuidade de método, o seu esforço
é mostrar que o retorno à especulação não irá comprometer os valores epistêmicos
cuja promoção está associada a esta posição.
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como fio condutor; e esta reivindicação não está presente porque
ela é desnecessária para os propósitos filosóficos do momento, que
excluem como ilegítimo qualquer tipo de impulso especulativo. As
reiteradas reivindicações do corpo próprio surgem, por sua vez, no
momento em que Nietzsche passa a se ocupar mais intensamente
com o projeto especulativo da vontade de potência. Esta coincidência favorece a hipótese, à primeira vista paradoxal, de que é justamente nos textos de maturidade que Nietzsche mais se aproxima de
Schopenhauer, no sentido de buscar nele inspiração metodológica
para a retomada da especulação. Isso não significa que encontraremos nos dois autores o mesmo padrão de argumentação, nem tampouco que o projeto especulativo da vontade de potência coincida
em termos de conteúdo com a metafísica da Vontade. Este último
ponto já foi exaustivamente discutido pelos melhores intérpretes de
Nietzsche, não havendo muito mais que dizer a este respeito. Mas
em relação ao primeiro aspecto, que concerne à inspiração metodológica, creio que há entre os dois filósofos afinidades e contrastes
que mereceriam um exame mais detido.
Deste modo, para que possamos entender o significado das
reiteradas reivindicações do corpo próprio como fio condutor nos
póstumos da segunda metade da década de 80 penso que seria instrutivo situar estas reivindicações no contexto argumentativo mais
amplo de defesa da legitimidade da vocação especulativa da filosofia, interpretada não mais no sentido da função exclusivamente
prática que Nietzsche lhe conferia na juventude, à luz da tese langeana da função edificante da fabulação conceitual (cf. LOPES 13,
cap. I), mas no sentido de um projeto mais ambicioso de conciliação
da totalidade de nossos interesses e impulsos (para fins de simplificação, vamos chamá-los de epistêmicos, práticos e estéticos). O
que há de ambição há igualmente de tensão neste novo projeto. A
prova cabal de que Nietzsche estava ciente destas tensões é a sua
persistente hesitação no que diz respeito aos diversos projetos literários para uma obra sistemática. Parte importante destas tensões
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
decorre do compromisso com premissas céticas e naturalistas que
denunciam uma continuada adesão de Nietzsche ao modelo epistemológico proposto por Lange. No meu entendimento, a via pela
qual o filósofo procura minimizar estas tensões consiste fundamentalmente na revisão e relativização de uma posição que ocupava
lugar central em sua crítica do conhecimento e da metafísica no período intermediário: a denúncia do caráter antropomórfico de nossos constructos teóricos e especulativos. A reivindicação do corpo
como fio condutor da especulação pressupõe uma surpreendente tolerância epistêmica em relação ao método de projeção antropomórfica. Em um famoso apontamento de 1885, que eu cito apenas em
parte, o filósofo se pronuncia sobre este recuo nos seguintes termos:
Não há nada a fazer: é preciso conceber todos os movimentos,
todos os “fenômenos”, todas as “leis” como meros sintomas de um
acontecer interior e se servir até o fim da analogia com o homem
(Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563).
Nietzsche argumenta que esta tolerância epistêmica em relação ao procedimento analógico é legítima desde que se eliminem
previamente os inúmeros acréscimos introduzidos na imagem do
homem por milênios de interpretação moral. O que compromete
nossos constructos teóricos e especulativos não é tanto o método de
projeção em si (e no fim das contas não dispomos de outro recurso),
mas o conteúdo daquilo que é projetado. Para que o corpo possa
servir de fio condutor para a reflexão é necessário, portanto, restituir o homem à natureza e à história, tarefa que exige, por sua vez,
a contribuição de todas as ciências empíricas. Nietzsche é explícito
quanto a este ponto em uma célebre passagem do aforismo 230 de
Para além de bem e mal:
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Traduzir o homem de volta à natureza; tornar-se senhor das muitas
interpretações e conotações vaidosas e exaltadas, que até o momento foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura;
fazer com que no futuro o homem se coloque frente ao homem tal
como hoje, endurecido na disciplina da ciência, já se coloca frente
à outra natureza, com destemidos olhos de Édipo e ouvidos tapados
de Ulisses, surdo às seduções dos velhos, metafísicos apanhadores de pássaros, que por muito tempo lhe sussurraram docemente:
“Você é mais! É superior! Tem outra origem!” (NIETZSCHE 16, p.
138, com alterações na tradução; JGB/BM 230, KSA 5.169).
O que está implícito neste recorte do aforismo 230 é menos
um programa filosófico original do que um diagnóstico de porque
o programa schopenhaueriano de uma metafísica pós-kantiana não
pôde obter êxito: somente após uma depuração de tudo o que é
acréscimo moralizante o corpo se tornará um guia seguro para a
especulação. Para isso é necessário abrir mão de todo intuito edificante, pois sob a tirania deste intuito projetamos na natureza muito
mais as nossas aspirações e expectativas morais do que aquilo que
uma genuína experiência do corpo próprio poderia nos ensinar.
Nietzsche se volta aqui contra a tradição na qual ele se formou
e que definiu a sua militância filosófica de juventude: a tradição
do idealismo prático, que entende a metafísica como um ramo da
filosofia moral, responsável por um discurso edificante que se dirige essencialmente aos nossos afetos morais para seduzi-los. Só
faremos um uso adequado do corpo próprio se o reinserirmos na
história e na natureza, fazendo dele o lugar de atravessamento de
uma pluralidade de forças em conflito e de difícil nomeação. A
solução de Nietzsche é pensar o corpo e seus processos a partir
da metáfora política das relações de poder; segundo este modelo,
o que chamamos de bom funcionamento do organismo dispensa a
postulação de uma instância dirigente suprafisiológica, sendo antes o signo mais visível de que no interior do devir certo complexo
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
pulsional alcançou um equilíbrio de poder. Não podemos dizer que
este equilíbrio seja uma meta conscientemente fixada pelo complexo pulsional, pois tal complexo não preexiste ao equilíbrio,
muito menos uma instância que lhe fosse exterior. Como não faria
sentido falarmos em ‘equilíbrio de forças’ no devir, mas apenas em
‘equilíbrio de poder’ (dado que a incomensurabilidade entre as forças acompanha a hipótese do devir absoluto como uma sombra),
segue-se que este ‘equilíbrio de poder’ é o resultado de um artifício
ou de um contrato, ou seja, de um acordo fundado na disposição
e na capacidade de cada impulso de fazer concessões e assumir
compromissos. Estas características, essenciais à metáfora política
básica da vontade de potência, pressupõem por sua vez a tese de
que cada impulso dispõe de uma perspectiva sobre os demais impulsos, ou seja, que interpretar e avaliar sejam atividades constitutivas da vida pulsional. Observe como esta rápida caracterização do
modelo político já nos conduz para bem longe do modelo volitivo da
corporeidade que é tão familiar à filosofia de Schopenhauer e que
o compromete com a tese de uma irracionalidade constitutiva do
real (e com a negação ascética como a única resposta eticamente
cabível a esta irracionalidade constitutiva). Mas por outro lado, ela
também parece nos conduzir para bem longe de qualquer programa
habitualmente caracterizado como naturalista, não apenas no sentido fisicalista, mas mesmo em suas versões mais liberais. Vejamos
o que Nietzsche pode dizer a favor de sua posição.
Para um bom uso do corpo a regra fundamental nos foi ensinada
por Bernard Williams: recorrer a um vocabulário que pressuponha
minimamente categorias morais, e que seja maximamente realista13.
13 É importante notar que a adoção de um vocabulário realista (no sentido de Tucídides
e de Maquiavel) não significa de modo algum a exclusão do vocabulário intencionalista. Antes pelo contrário, o vocabulário realista, na medida em que é um vocabulário
extraído da metáfora política das relações de poder, é um vocabulário inteiramente
dominado pelo léxico da intencionalidade e totalmente estranho à linguagem do fisicalismo. Com isso fica claro que o compromisso de Nietzsche com o naturalismo
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Desde que esta cláusula possa ser observada, Nietzsche acredita
que o corpo tomado como fio condutor da investigação teórica e
da especulação estaria em condições de atender aos preceitos da
consciência metódica de forma mais satisfatória do que o paradigma mecanicista. É importante notar que a consciência metódica
foi cultivada historicamente no interior da tradição materialista,
conforme demonstrou Lange, e muito mais pelas ciências empíricas do que pela filosofia, conforme insistiu Nietzsche. Não será a
referência ao corpo na expressão “o corpo como fio condutor” que
garantirá a fidelidade de Nietzsche ao naturalismo metodológico,
pois é quase desnecessário dizer que o corpo não pode ser concebido nos termos de um vocabulário mecanicista, uma possibilidade
que já havia sido teoricamente descartada tanto por Schopenhauer
quanto por Lange, ainda que por vias distintas. Em ambos os autores o conceito de corpo jamais remete a uma substância extensa,
nos moldes clássicos do cartesianismo. Enquanto Lange o deixa
ontologicamente indeterminado, cunhando para tanto o neologismo ‘organização psicofísica’ e antecipando com isso a posição que
mais tarde seria identificada como monismo neutro, Schopenhauer
metodológico não implica de modo algum o compromisso com uma ontologia fisicalista, como poderíamos ser levados a crer se nos deixássemos guiar pela comparação
com as tendências naturalistas contemporâneas. Estar atento aos métodos e aos resultados das ciências empíricas não é o mesmo que abraçar suas convicções metafísicas
ou ontológicas. Que aqui haja um non sequitur nem sempre é aceito pelos defensores
e adversários do naturalismo. Um bom exemplo desta recusa é Keil (cf. KEIL 9) que
nega que haja qualquer distinção relevante entre naturalismo metodológico e naturalismo substantivo. Esta recusa se funda, segundo eu posso supor, numa compreensão
muito particular do que estaria envolvido na tese da continuidade de métodos: que
apenas as ciências naturais estariam autorizadas a se pronunciar sobre a questão
de quais são as coisas que existem. Bernard Williams (WILLIAMS, 24) apresenta
uma defesa lúcida e convincente da necessidade de um naturalismo moderado, cuja
finalidade não é tornar a filosofia subserviente às ciências naturais e ao chamado fisicalismo reducionista, mas cultivar na reflexão as virtudes da sobriedade e da cautela
cognitivas. Esta defesa é menos uma exegese de Nietzsche do que um desdobramento
de suas inúmeras intuições acerca do tema.
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opta por identificar o corpo com a totalidade de nossa vida afetiva, remetendo-o em última instância ao seu monismo voluntarista. O primado que Nietzsche confere ao corpo tampouco pode ser
confundido com a defesa de algum tipo de fisicalismo, conforme
já foi sobejamente demonstrado pela literatura secundária sobre
o tema. Nietzsche considera o vocabulário fisicalista uma linguagem figurada para os sentidos da visão e do tato (seguindo nisso
uma indicação de Teichmüller; cf. Nachlass/FP 1883, 24[17], KSA
10.656); e assume que o vocabulário intencionalista é primitivo em
relação ao vocabulário fisicalista, sem se comprometer com a tese
de que ele seria por isso um vocabulário logicamente primitivo ou
transparente ou explicativo por si só.
Tendo em vista o que acabamos de expor, podemos concluir que
a reivindicação do corpo como fio condutor coincide com um movimento de retomada da especulação, enquanto seu compromisso
com o cultivo da disciplina metódica é anterior a esta reivindicação
e, como ocorre algumas vezes no período intermediário, pode parecer incompatível com um engajamento especulativo. Neste sentido,
creio que é necessário distinguir entre o compromisso de Nietzsche
com o que contemporaneamente chamamos de naturalismo metodológico, e que no século XIX era imprecisamente denominado
de materialismo metodológico, e sua reivindicação tardia do corpo
como fio condutor para a especulação. Nietzsche tenta nos convencer de que o seu novo paradigma acolhe de forma mais satisfatória
os preceitos da consciência metódica e que, além disso, ele o autoriza a avançar hipóteses de natureza especulativa. Cabe a nós, seus
leitores, avaliar em que medida seus argumentos são convincentes.
Devemos destacar aqui três aspectos essenciais que Nietzsche (seguindo mais uma vez o exemplo de Lange) associa ao materialismo
metodológico, e que interessa a ele preservar em sua confrontação
com o mesmo. É justamente a atenção a estes elementos que pode
contribuir para dirimir certas polêmicas atuais em torno da filiação de Nietzsche a alguma versão do chamado naturalismo metodológico (que está no centro do debate entre Leiter (LEITER, 12)
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e seus críticos: Schacht (SCHACHT, 21), Janaway (JANAWAY 8),
Maudemarie Clark & Dudrick (CLARK & DUDRIC 2)). Se este naturalismo deve ser descrito em termos de seu compromisso com um
programa filosófico que se entende em continuidade de método e
de resultados com as ciências empíricas, e se Nietzsche, ao mesmo
tempo, tem reservas consideráveis ao modelo explicativo de tipo
causal ou mesmo monocausal que ele identifica na prática científica de sua época, então nós devemos nos perguntar o que justifica
a sua filiação programática a este tipo de naturalismo. Penso que
há três boas razões para insistirmos nesta filiação:
(1) Nietzsche considera que a atividade científica, ou a prática
de um método científico, isto é, a submissão a uma coerção e disciplina metódica por um determinado período, sob o policiamento da
comunidade científica e dos pares, oferece as condições optimais
para a aquisição e o cultivo das virtudes epistêmicas que serão necessárias para a reflexão filosófica, cuja principal tarefa é normativa, no sentido mais ambicioso da legislação e hierarquização de
valores que definem uma cultura. Tais virtudes são eminentemente
céticas e Nietzsche as associa às disposições necessárias para o
exercício da suspeita. O que é valioso na cultura científica são os
métodos, mas os métodos não são valiosos por se constituírem em
um conjunto de regras ou procedimentos abstratos, mas pela disciplina dos impulsos que uma longa subordinação a eles acaba por
produzir, combatendo assim os vícios epistêmicos que são incompatíveis com a responsabilidade filosófica14.
14 “O valor de se praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa
não está propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão uma gota
ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento
de energia, de capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a alcançar
um fim de modo pertinente. Neste sentido é valioso, em vista de tudo o que se
fará depois, ter sido homem de ciência” (NIETZSCHE 17, p. 175; MAI/HH I
256, KSA 2.212).
“No conjunto, os métodos científicos são um produto da pesquisa ao menos
tão importante quanto qualquer outro resultado: pois o espírito científico
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“A ambicionada assimilação do materialismo”
(2) O compromisso de Nietzsche com o naturalismo metodológico inclui a defesa da estratégia reducionista. Mesmo que
Nietzsche seja cético em relação à possibilidade de compreendermos algo do suposto nexo causal entre os eventos e tenha reservas
quanto à legitimidade (e principalmente contra as pretensões de
exclusividade) do modelo explicativo causal, ele reconhece que a
sobriedade e a economia de hipóteses e princípios são responsáveis pelo êxito descritivo das ciências naturais. Esta estratégia é
bem-vinda e o filósofo deve se submeter a esta exigência ao propor hipóteses genealógicas e ao avançar teses normativas. Mas é
importante adiantar que a estratégia reducionista não implica o
compromisso com uma ontologia particular, fisicalista ou mentalista. Permanece em aberto a questão de qual vocabulário se
apresenta como o mais econômico no final das contas. Nietzsche
sugere que o vocabulário das vontades de potência é o que melhor
atende ao princípio pragmático de economia15, além de ser o mais
repousa na compreensão do método, e os resultados todos da ciência não
poderiam impedir um novo triunfo da superstição e do contrassenso, caso
esses métodos se perdessem. Pessoas de espírito podem aprender o quanto
quiserem sobre os resultados da ciência: em suas conversas, particularmente nas hipóteses que nelas surgem, nota-se que lhes falta o espírito científico: elas não possuem a instintiva desconfiança em relação aos descaminhos
do pensar, que após prolongado exercício deitou raízes na alma de todo
homem científico. [...] Por isso cada um, atualmente, deveria chegar a conhecer no mínimo uma ciência a fundo: então saberia o que é método e como
é necessária uma extrema circunspecção.” (NIETZSCHE 17, p. 304; MAI/
HH I 635, KSA 2.360-1).
15Em Para Além de Bem e Mal são duas as ocorrências em que Nietzsche faz esta
reivindicação para o princípio da vontade de potência; a primeira delas ocorre no
aforismo 13, em um contexto no qual Nietzsche se posiciona contra o princípio de
autoconservação no domínio das ciências empíricas, em especial na fisiologia; e a
segunda no crucial aforismo 36, no qual Nietzsche se envolve com disputas no campo
das teorias metafísicas: “Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico. Uma criatura
viva quer antes de tudo dar vazão à sua força – a própria vida é vontade de potência –:
a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso.
– Em suma: nisso, como em tudo, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos
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intuitivamente acessível. A questão da acessibilidade intuitiva do
vocabulário comparece no famoso aforismo 36 de Para além de bem
e mal. Aqui há uma premissa histórica importante que subjaz ao
argumento de Nietzsche. A força do modelo mecanicista clássico
residia em duas virtudes: sua sobriedade e economia e o caráter
intuitivamente acessível de seu modelo explicativo, baseado na noção de causação por impacto ou contato. Esta segunda virtude desaparece com Newton, na medida em que ele é obrigado a acolher
a noção contra-intuitiva de uma ação à distância para tornar compreensível o modo de atuação da força gravitacional. A suposição
de uma ação à distância permitiu descrever de forma unificada e
econômica os fenômenos naturais, mas introduziu uma grande dúvida em relação à capacidade explicativa do modelo corpuscular
clássico. Os físicos passaram paulatinamente a considerar este modelo um dispositivo heurístico e uma ficção tolerável para fins descritivos. Nietzsche argumenta no aforismo 36 que o tipo de atuação
que nós atribuímos à vontade (fundada numa relação de mando e
obediência que não pressupõe contato entre uma instância e outra)
permite uma apreensão intuitiva daquilo que seria a ação à distância, comprovando assim a superioridade (do ponto de vista da acessibilidade intuitiva) do modelo baseado nas vontades de potência.
A grande dificuldade consiste no fato de que nós não temos
[...]. Assim pede o método, que deve ser essencialmente economia de princípios.”
(NIETZSCHE 16, p. 20; JGB/BM 13, KSA 5.27-8); “Supondo que nada seja “dado”
como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer ou
subir a nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos – pois
pensar é apenas a relação desses impulsos entre si –: não é lícito fazer a tentativa e
colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do
que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou “material”)? [...] Afinal, não
é apenas lícito fazer essa tentativa: é algo imposto pela consciência de método. Não
admitir várias espécies de causalidade enquanto não se leva ao limite extremo (– até
ao absurdo, diria mesmo) a tentativa de se contentar com uma só: eis uma moral de
método, à qual ninguém se pode subtrair hoje; – ela se dá “por definição”, como diria
um matemático.” (NIETZSCHE 16, p. 42; JGB/BM 36, KSA 5.54-5).
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nenhuma clareza acerca do modo como uma vontade age sobre
outra vontade, ou do que seja propriamente uma vontade. Mas segundo Nietzsche não se pode negar que a nossa crença mais primitiva é a crença na causalidade da vontade, e que toda concepção
de causalidade que não a da vontade é uma construção posterior
que tem aquela como modelo principal16. De todo modo, a argumentação presente neste aforismo mostra que Nietzsche está inegavelmente distante do chamado “princípio do fechamento causal
do mundo físico”, que é o princípio ao qual todo defensor de um
naturalismo de tipo fisicalista, e mesmo os defensores de versões
mais moderadas e não redutivas do monismo fisicalista apelam.
(3) Por fim, Nietzsche é um adversário de toda forma de apriorismo e de formalismo, o que o impede de conceber a reflexão filosófica como uma atividade distanciada da experiência. As ciências
empíricas não são as únicas, mas são boas informantes do que se
passa no âmbito da experiência.
6. Conclusões
Há muitos aspectos interessantes no debate sobre o naturalismo que não foram mencionados neste estudo. Um deles diz respeito ao melhor modo de descrever a pretensão explicativa que
Nietzsche associa à sua prática genealógica sem o comprometer
16 Eis o argumento de Nietzsche: “A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo – e
no fundo a crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma –, temos
então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como
única. “Vontade”, é claro, só pode atuar sobre “vontade” – e não sobre “matéria”
(sobre “nervos”, por exemplo –): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em
toda parte onde se reconhecem “efeitos”, vontade atua sobre vontade – e de que todo
acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de
vontade, efeito de vontade.” (NIETZSCHE 16, p. 43; JGB/BM 36, KSA 5.54-5).
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com um modelo causal que sua filosofia da ciência parece recusar
com muita determinação. Aqui seria o caso de pensarmos em explicações que envolvem um procedimento de tipo narrativo e ficcional, numa direção sugerida por Bernard Williams, mas também
nas inúmeras sugestões presentes no artigo de Peter Kail publicado
neste volume dos Cadernos Nietzsche. Outro tema interessantíssimo
diz respeito à crítica de Nietzsche à moralidade e ao papel que o
naturalismo desempenha em sua contestação da solução moral para
a normatividade. Parte significativa do esforço filosófico de Nietzsche consistiu em romper com o que ele supunha ser a estratégia de
imunização das crenças morais montada pelas filosofias de Kant e
Schopenhauer. Nietzsche reivindicou para o pensamento filosófico
e científico o direito de submeter este domínio da experiência humana aos mesmos padrões de exame crítico que vigoram em outros
domínios. É preciso avaliar cuidadosamente os argumentos que ele
tem a nos apresentar a favor desta reivindicação, mas uma vez que
ela possa ser atendida, parte substancial de nossa autocompreensão estará sujeita a drásticas revisões, como as suas rápidas incursões pelo terreno da moralidade permitem antecipar.
Um rápido balanço de nosso percurso permite afirmar que se
há um naturalismo em Nietzsche, ele não se identifica com a defesa
de nenhum tipo de concepção essencialista da natureza; não opõe
as ciências naturais duras às ciências históricas; não insiste na definição de um método científico único; não é um fisicalismo nem se
apoia em algo vagamente similar ao princípio do fechamento causal
do mundo físico; insiste na tese de que a tarefa propriamente filosófica é de natureza normativa, mas não funda esta tese na reivindicação de uma especificidade metodológica para a filosofia; tampouco
exclui que a filosofia tenha uma tarefa também explicativa, e não
meramente elucidativa de conceitos; recusa toda forma de apriorismo; é uma forma de reducionismo, pois prescreve que as teorias
filosóficas, sejam elas normativas ou explicações genealógicas sobre
os processos de formação, fixação, transmissão e transformação de
crenças, práticas, instituições e conceitos devem ser eminentemente
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econômicas; por fim, não é uma modalidade de naturalismo que por
definição seja avesso à especulação filosófica, pois ele reconhece
de forma liberal que há outros valores a serem promovidos além dos
valores puramente cognitivos ou epistêmicos. Na perspectiva deste
naturalismo, o que um filósofo deve emular nas teorias científicas é
menos o modelo explicativo de tipo causal do que a sobriedade do
vocabulário e a economia de princípios. Por fim, o combate incessante à nossa tendência natural à credulidade mediante o cultivo da
suspeita e sua associação com a boa consciência.
Abstract: This paper compares Nietzsche´s views on the rela-
tionship between philosophy and empirical sciences against the
background of some of the debates in the so-called transcendental tradition, in order to characterize his position in terms of a liberal one. Initially it will be shown that there are some similarities
between the debates in the German academic philosophy of the
second half of the nineteenth century and the contemporary debates on methodological naturalism. I discuss subsequently F. A.
Lange´s historical views concerning the emergence of methodical
discipline within the materialistic tradition, as well as Nietzsche´s
reception of them. Next I present Spir´s arguments against the
naturalizing programs of his time, as well as Nietzsche´s response
to him. In the last section I discuss the meaning of Nietzsche´s
orientation to a speculative philosophy of the will to power in
his late works and whether it is compatible or not with one more
liberal conception of naturalism.
Keywords: Naturalism - transcendental philosophy - epistemic virtues
- principle of economy
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Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.29, GEN, 2011.
Artigo recebido em 20/06/2011.
Artigo aceito para a publicação em 18/07/2011.
352
cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
As abordagens de Nietzsche
acerca da epistemologia e
da ética kantianas* **
Tom Bailey***
Resumo: Este artigo explora as abordagens de Nietzsche acerca do
idealismo e da ética kantianos. Depo is de considerar suas abordagens
juvenis inconclusas acerca do idealismo kantiano, o artigo sustenta que,
ao rejeitar posteriormente o idealismo kantiano, Nietzsche afirma, em vez
de negar, que a realidade nos é acessível, e também supera sua anterior
recusa kantiana de que podemos produzir juízos acerca dessa realidade.
O artigo sustenta, então, que as críticas explícitas de Nietzsche à ética
kantiana não são convincentes, mas que ele também desenvolveu uma
ética “kantiana” a seu modo. Assim, o artigo pretende mostrar que
elementos negligenciados das abordagens de Nietzsche acerca de Kant
são mais proveitosos do que aqueles comumente enfatizados.
Palavras-chaves: Nietzsche – Kant – neokantismo – idealismo – ética
- vontade
Introdução
Talvez seja compreensível que Nietzsche seja frequentemente
tomado como tendo tido pouco interesse em Kant e nas questões
* Tradução de André Luiz Fávero. As adaptações das citações e referências, conforme
a convenção proposta pela edição Colli/Montinari das Obras Completas de Nietzsche,
foram feitas por Braian Sanchez Matilde. Revisão da tradução por Vinícius Andrade,
Éder Corbanezi e Braian Sanchez Matilde.
** Agradecimento do autor: este artigo é uma tradução de uma versão abreviada de
“Nietzsche the Kantian?”, no prelo para Ken Gemes e John Richardson (Ed.),
Oxford Handbook of Nietzsche, Oxford: Oxford University Press, 2012. Ele é publicado com a gentil permissão da Oxford University Press.
***Professor da John Cabot University e LUISS “Guido Carli”, Roma. E-mail: tbailey@
johncabot.edu.
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353
Bailey, T.
kantianas, ou, no máximo, como tendo tratado noções kantianas
como a “coisa em si” e o “imperativo categórico” a seu modo, de
forma não-kantiana, pois ele reserva alguns de seus comentários
mais desdenhosos a Kant – em Crepúsculo dos Ídolos, por exemplo, ele chama Kant de o “mais deformado conceito-coxo que tenha
existido” (GD/CI, O que falta aos alemães 7, KSA 6. 109)1 – e não
há evidência forte de que ele já tivesse lido quaisquer textos de
Kant.2 Contudo, numa inspeção mais próxima, Nietzsche parece
ter desenvolvido uma série de interesses e compromissos kantianos através de abordagens intensas, senão diretamente dos textos
kantianos, ao menos de numerosos comentários sobre Kant e trabalhos no neo-kantismo. E essas abrodagens não só se desenvolveram
substancialmente ao longo do tempo, desde seus primeiros aos últimos escritos, como também foram frequentemente desenvolvidas
mais sofisticadamente sem referência explícita tanto a Kant quanto
às fontes kantianas. Além disso, as conclusões finais de Nietzsche
não são nem decisivas nem tão aplicáveis a Kant quanto sugeririam seus comentários desdenhosos a respeito de Kant. Mais do
que mera indiferença ou desdém, a ligação de Nietzsche com Kant
foi larga e dinâmica, mediada por fontes e frequentemente deixada
implícita e irresoluta, e nem sempre justa para com o próprio Kant.
1 São utilizadas as traduções de Rubens Rodrigues Torres Filho e de Paulo César de
Souza para as traduções de passagens das obras de Nietzsche, salvo quando estas
inexistem ou se encontram indisponíveis – pelo que então se traduziu diretamente da
transcrição do autor (Nota do Tradutor).
2 Thomas Brobjer sustenta que Nietzsche leu a Crítica do Juízo de Kant em 1868, enquanto planejava uma dissertação a ser intitulada “Über den Begriff des Organischen
seit Kant”, e que as referências em suas anotações, cartas e aulas do final da década
de 1860 e começo da de 1870 também sugerem uma leitura de Kant durante aquele
período. Todavia, Brobjer admite não haver forte evidência de que Nietzsche possuísse ou tivesse emprestado qualquer texto de Kant nesse período, e eu sugeriria que o
comentário de Kuno Fischer sobre Kant, Immanuel Kant und seine Lehre, fosse uma
fonte mais provável de referências feitas no plano da dissertação. Ver Brobjer 2008:
36-39, 48, 195, 202 e 226-7 e nn. 86, 87, 89 e 90, p.38.
354
cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
Este artigo explora dois temas principais nessa ligação intensa
e complexa com Kant. A primeira parte se concentra no idealismo
kantiano e em como Nietzsche desenvolveu um tratamento crítico
acerca de alguns de seus pressupostos mais básicos. A segunda
parte considera sua relação com a ética kantiana, e mostra que,
enquanto a critica, ele também afirma uma nítida ética “kantiana”
a seu modo.3
I. Nietzsche e o idealismo kantiano
Uma formação inicial
A abordagem, por Nietzsche, das questões kantianas começou
em meados da década de 1860 e, particularmente, com sua descoberta entusiasmada de uma cópia de Die Welt als Wille und Vorstellung, de Arthur Schopenhauer, num sebo em Leipzig, em 1865,
quando ele tinha vinte e um anos. Isso foi seguido de um periodo
de extensas leituras ulteriores do neo-kantismo, durando cerca de
dez anos ou mais. Esses textos propuseram várias linhas de idealismos inspirados em Kant, de acordo com os quais as capacidades
humanas perceptivas e conceituais impõem certas condições sobre
seus objetos, de tal forma que os seres humanos não são capazes
de conhecer os objetos como eles devem ser “em si mesmos”, independentemente dessas condições. Essas posições foram com frequência apresentadas como meios para ajustar a filosofia ao desafio
de desenvolver as ciências naturais e à rejeição da metafísica e da
teleologia em particular – visto que elas se prestavam a explicar as
3 Por razões de espaço, não considerarei aqui os tratamentos menos extensivos de
Nietzsche sobre a estética de Kant. Para uma discussão deste aspecto de sua relação
com Kant, ver Rampley 2000: esp. 156-165, 174-183 e 190-214.
cadernos Nietzche 29, 2011
355
Bailey, T.
ciências como aplicáveis aos objetos cognoscíveis, enquanto também admitiam um papel para a filosofia na análise de noções científicas básicas e na orientação prática da vida humana.
Fora particularmente significativa para Nietzsche a distinção
de Schopenhauer entre o mundo como ele aparece a nós, sujeito às
condições do espaço, do tempo e da causalidade, e o mundo como
ele é “em si mesmo”, aquele da vontade cegamente empenhada,
ao qual temos um certo acesso em nossa experiência volitiva e em
algumas experiências morais e estéticas.4 Nietzsche também abordou o pessimismo metafísico de Eduard von Hartmann, de acordo
com o qual a cognição e a vontade são manifestações de uma substância inconsciente singular, que conduz o mundo a um estado de
não-vontade consciente, e com o postulado de Afrikan Spir de um
objeto de juízo não-empírico singular, em razão de que o caráter
temporal e múltiplo da experiência sensível contradiz as exigências
de aplicação conceitual.5 Mas igualmente importante para Nietzsche foram as posições menos metafisicamente extravagantes adotadas por Friedrich Lange e atribuídas a Kant nos comentários de
Kuno Fischer e Friedrich Überweg. De particular importância neste
ponto foi a consideração de Lange acerca de como a fisiologia e a
4 Nietzsche primeiramente leu Die Welt als Wille und Vorstellung, de Schopenhauer,
em sua segunda edição, ou no final de outubro ou no começo de novembro de 1865,
e o releu, junto com Parerga und Paralipomena e possivelmente outras obras de
Schopenhauer nos anos imediatamente seguintes. Ele também leu vários comentários
sobre Schopenhauer e obras de schopenhauerianos entre o final da década de 1860
e meados da de 1870. Ver Janz 1979: v.1, 180 e Brobjer 2008: 29, 31-32, 47-49, 55,
66-70, 72, 191-198 e 211-212.
5 Nietzsche faz referência à Philosophie des Unbewußten. Versuch einer Weltanschauun,
de Hartmann, em numerosas notas de 1869 até meados de 1870 e estudou a Forschung
nach der Gewissheit in der Erkenntniss der Wirklichkeit, de Spir, e a primeira edição de
Denken und Wirklichkeit. Versuch einer Erneuerung der kritischen Philosophie particular e intensivamente entre o verão de 1872 e a primavera de 1873. Sobre Hartmann,
ver Campioni et al 2003: 284 e Brobjer 2008: 51-55, 196, 198, 206 e 208; e, sobre
Spir, ver D’Iorio 1993: esp. 257-258 e 259-270, Crescenzi 1994: 420, 421, 425 e 428,
Campioni et al 2003: 582 e Brobjer 2008: 71-72, 203 e 207.
356
cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
psicologia humanas impõem certas condições idealistas, incluindo
a noção de um objeto independentemente-existente, de tal modo
que nosso conhecimento não se estende para além dessas condições
e a metafísica seja mera “poesia conceitual”, valiosa apenas como
um meio de criar mitos edificantes.6 Os comentários de Fischer e
Überweg forneceram a Nietzsche leituras idealistas ulteriores dos
tratamentos de Kant acerca do espaço, do tempo, da imaginação,
das “categorias” e das “ideias”, e atraíram as consequentes conclusões céticas acerca do conhecimento da “coisa em si”.7
À primeira vista, essas leituras neokantianas podem parecer
ter levado Nietzsche a endossar o idealismo kantiano em seus primeiros escritos. Em O Nascimento da Tragédia, por exemplo, ele
afirma a demonstração de Kant que, ao invés de “leis totalmente
incondicionais, dotadas da mais universal das validades”, espaço,
tempo e causalidade erigem “o mero fenômeno [...] em única e
suprema realidade”, como se ele fosse a “essência íntima e verdadeira das coisas e, com isso, tornar impossível o conhecimento
efetivo desta”. Lá ele também apresenta a experiência dionisíaca
como revelando ser a “realidade empírica” uma mera “aparência
[Schein]” ou “o não-ser verdadeiro” e apenas uma manifestação d’
“o verdadeiro ser e da unidade primordial [Ur-Eine]” que reside
para além dela(GT/NT 18, 4, KSA 1. 115).8
6 Nietzsche leu a primeira edição de Geschichte des Materialismus und Kritik seiner
Bedeutung in der Gegenwart, de Lange, por volta de agosto de 1866 e a releu em 1868
e 1873. Ver Brobjer 2008: 33-35, 192, 195 e 206
7 Nietzsche se refere a Immanuel Kant und seine Lehre, de Fischer, em seu plano de
dissertação de abril-maio de 1868 e comprou uma cópia de Grundriß der Geschichte
der Philosophie von Thales bis auf die Gegenwart, de Überweg, em outubro de 1867.
Sobre Fischer, ver Brobjer 2008: 37 e 49 e, sobre Überweg, ver Campioni et al 2003:
641-642 e Brobjer 2008: 37, 49, 194-195 e 205.
8 Ver também GT/NT 15, 17 e 19, KSA 1. 97, e, sobre a experiência dionisíaca, GT/
NT 1, 5-8, 15-19, 21, 24 e 25, KSA 1.25. Alegações idealistas similares podem
ser encontradas em DS/Co. Ext. I, 6, KSA 1. 188 e SE/Co. Ext. III, 3, KSA 1. 350.
Alguns comentadores, como Stack 1980: 37-39, 1987: 7-11 e 1991: 33 e Clark
1990: 63-93 e 1998: 40-47, consideram que as alegações de Nietzsche sobre a
cadernos Nietzche 29, 2011
357
Bailey, T.
Mas uma inspeção mais próxima de O Nascimento da Tragédia sugere que Nietzsche endossa e emprega posições idealistas
apenas por razões terapêuticas ou culturais, mais do que por razões estritamente teóricas. Ao apresentar sua consideração acerca
da experiência dionisíaca, ele descreve a noção de uma “unidade
primordial” como uma “suposição metafísica” e um “conforto metafísico”, uma “ilusão” que faz a natureza efêmera do mundo que
conhecemos suportável a nós, tratando o mundo como o “jogo artístico” de um “artista primordial do mundo” para além dele (GT/
NT 4, 18, 24, 5, KSA 1. 38).9 E mais do que prover qualquer exame
teórico ou defesa de posições idealistas, ele as endossa no contexto de uma discussão crítica do efeito deletério sobre a “arte”
da crença moderna na possibilidade de conhecimento genuíno, na
esperança de que, ao reduzir o conhecimento humano mesmo a
um tipo de “arte”, essas posições possam resultar em reverter essa
prioridade cultural (GT/NT 18, KSA 1.115).10
Ademais, em seus escritos não publicados desse período, Nietzsche desenvolve dois tipos substanciais de crítica teórica ao idealismo kantiano. Primeiro, sua obstrução das alegações positivas
sobre os objetos, de como eles devem ser independentemente das
condições idealistas, leva-o a duvidar de que a “coisa em si” tenha
qualquer importância epistemológica e de que seja mesmo legítimo
pressupor sua existência. Segundo, ele considera incoerente a ideia
de que os próprios conhecedores humanos sejam tanto as origens
quanto os produtos de condições idealistas do conhecimento humano, sendo essa incoerência uma razão para deixar pra trás as
posições idealistas kantianas.11
experiência dionisíaca contradizem seu idealismo, enquanto outros, como Brown
1980: 40-45, leem sua consideração sobre a experiência dionisíaca como almejando precisamente justificá-lo.
9 Ver também GT/NT 1, 16 e 17, KSA 1.25.
10 Ver também DS/Co. Ext. I, 6, KSA 1. 188 e SE/Co. Ext. III, 3, KSA 1.350.
11Ver KGW I:4 57 [51, 52 e 55] (outono de 1867 - primavera de 1868), II:4,
358
cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
Pode ser tentador supor que o jovem Nietzsche desenvolveu
uma linha mais nuançada de idealismo kantiano à luz dessas preocupações teóricas e terapêuticas ou culturais.12 Porém, talvez até
isso seja subestimar a natureza experimental e inconclusiva de suas
abordagens iniciais acerca de tal idealismo, pois seu insucesso em
se comprometer com qualquer posição em seus primeiros textos publicados – nos quais ele está, acima de tudo, preocupado principalmente com outros assuntos – e por que suas críticas a tais posições
em seus escritos não publicados desse período sugerem fortemente
que ele se encontrava longe de estar convencido por elas. E enquanto seus escritos não publicados expõem a intensidade de seu
interesse pelas posições idealistas kantianas, nesses escritos ele estava também livre para explorar essas posições e os problemas que
elas suscitavam, sem estar limitado por exigências de coerência,
argumento ou comprometimento. De fato, lá suas críticas são acompanhadas por numerosos endossos ao idealismo. Portanto, mais do
que adotar ou desenvolver qualquer posição particular, parece mais
plausível considerar as abordagens iniciais de Nietzsche acerca do
idealismo kantiano como uma “formação” preliminar e experimental em certas posições e assuntos neokantianos contemporâneos.
A rejeição de Nietzsche ao idealismo kantiano
Diferentemente de seus textos juvenis, os textos de Nietzsche,
de Humano, Demasiado Humano em diante, manifestam uma
pp.241-242, 291-296 e 339-340 (verão de 1872), PHG/FT, 1, 4, 10, 11 e 13, KSA
1. 804 e WL/VM 1, KSA 1.875 e KSA 7.459, Nachlass/FP 19 [125] e [153], do
verão de 1872 – começo 1873.
12 Ver, por exemplo, Stack 1980, 1983: esp. cap. 8 e 1987: 7-23, Crawford 1988
e 1997, Hill 2003: pt. 1 e Doyle 2009: cap. 3. Outros comentadores, tais como
Fazio 1986-1989, D’Iorio 1993: 259-270, Sánchez 1999: 66-90 e 2000b e
Green 2002: esp. cap. 2 e 3, enfatizam o endosso inicial de Nietzsche acerca
do ceticismo de Spir sobre o juízo empírico, o qual considero a seguir.
cadernos Nietzche 29, 2011
359
Bailey, T.
atitude consistentemente crítica em relação ao idealismo kantiano,
e em seus últimos textos ele o rejeita terminantemente. Talvez ele
seja mais naturalmente lido como reivindicando ou que as capacidades humanas perceptivas e conceituais inevitavelmente “simplificam” ou “falseiam” a natureza real das coisas, ou que a noção de
uma natureza objetivamente “real” das coisas seja em si mesma incoerente, e ainda como criticando o idealismo kantiano por reivindicar o oposto – a saber, que temos algum acesso à realidade, uma
vez que isso subjaza para além de nossas capacidades perceptivas
e conceituais, ou que possamos ao menos concebê-la, embora não
lhe tenhamos acesso.13 Mas atribuir tal posição a Nietzsche suscita
notórios problemas. Em particular, é paradoxal alegar que se sabe
que não podemos ter conhecimento autêntico, e é também difícil
ver como Nietzsche poderia fazer tal alegação enquanto também
afirmando a importância do conhecimento empírico, fazendo numerosas alegações de conhecimento de si próprio.
É auspicioso, então, que, ao rejeitar a noção de uma realidade
para além de nossas capacidades perceptivas e conceituais, a
interpretação e a crítica de Nietzsche acerca do idealismo kantiano
seja, na verdade, precisamente o oposto do que inicialmente
possa parecer. Ou seja, ele defende, contra o idealismo kantiano,
a ideia de que a realidade seja acessível às nossas capacidades
perceptivas e conceituais, e está assim preocupado não com que
o idealismo kantiano reivindique que possamos ter algum acesso
à/ou concepção da verdadeira natureza das coisas, mas, pelo contrário, com que ele negue isso. Além do mais, as passagens relevantes revelam uma segunda preocupação, relacionada menos à
acessibilidade da realidade do que a como fazemos juízos acerca
de qualquer realidade. Essa preocupação revela Nietzsche ainda
13 Ver, por exemplo, Danto 1965: esp. cap. 3 e Nehamas 1985: cap. 2, esp. 48-52. Tais
leituras permitem considerar a posição de Nietzsche como um tipo de idealismo “kantiano”. Ver, por exemplo, Stack 1983: esp. cap. 8 e Crowell 1999.
360
cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
menos resoluto: ele alterna entre negar que possamos autenticamente fazer juízos acerca da realidade acessível a nós e aceitar
esta possibilidade, enquanto simultaneamente explorando a ideia
de que os juízos possam nos dar um acesso a priori a outros aspectos de nós mesmos e do mundo.
A acessibilidade da realidade
Em seus últimos escritos Nietzsche faz três críticas à noção
kantiana de uma realidade inacessível às capacidades humanas
perceptivas e conceituais – a saber, que esta noção é contraditória,
que é epistemologicamente supérflua e ainda moralmente suspeita.
Cada crítica sugere que ele não sustenta que essas capacidades
“simplifiquem” ou “falseiem” a realidade ou que a noção de realidade seja incoerente, mas, ao contrário, ao rejeitar a noção de uma
realidade inacessível, também admite uma realidade que seja, ao
menos em princípio, acessível às nossas capacidades perceptivas e
conceituais, ainda que ontologicamente independente delas.14
A primeira crítica de Nietzsche à noção de uma realidade
inacessível, de que ela seja contraditória, é particularmente clara
numa seção de Para uma genealogia da moral, na qual ele rejeita
“o conceito kantiano de ‘caráter inteligível das coisas’”. Observando que este conceito faz da realidade “absolutamente incompreensível” a nós, ele a rejeita em razão de que não há “‘observação
desinteressada’ (um absurdo sem sentido)”, mas “apenas uma
14 Nietzsche continuou a estudar as noções idealistas kantianas de uma realidade inacessível na década de 1880, com particular atenção para com Lange e, notavelmente, também Zur Analysis der Wirklichkeit. Eine Erörterung der Grundprobleme der
Philosophie e Die Arten der Nothwendigkeit – Die mechanische Naturerklärung – Idee
und Entelechie, de Otto Liebmann. Liebmann fora, como Lange, um dos primeiros
a propor um “retorno” ao idealismo kantiano, entendido como uma negação cética
de nosso conhecimento da realidade. Sobre Lange, ver Campioni et al 2003: 346 e
Brobjer 2008: 33-36, 221, 226-227 e n. 68 a 34; e, sobre Liebmann, ver Campioni et
al 2003: 364-367 e Brobjer 2008: 76, 104, 221-222 e 229.
cadernos Nietzche 29, 2011
361
Bailey, T.
visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo”. O que é
signficativo aqui é como Nietzsche também chama o conceito kantiano de realidade de um “conceito contraditório” e insiste que o “
‘conhecer’ perspectivo” possa chegar a uma certa “ ‘objetividade’
”, a qual ele descreve como a capacidade de “de modo a saber
utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas
e interpretações afetivas” (GM/GM III 12, KSA 5.363). Ao rejeitar o conhecimento não-perspectivístico ou “desinteressado” da
realidade, Nietzsche não está alegando, assim, que nossa “perspectiva” das particulares capacidades perceptivas e conceituais
inevitavelmente “simplifica” ou “falseia” a realidade, ou que ela
confira incoerência à noção de realidade. Ele está simplesmente
negando que a alegação kantiana de que essa perspectiva impede
o conhecimento, de tal modo que a realidade deve ser inacessível
ou “completa e absolutamente incompreensível” a conhecedores
perspectivísticos como nós – uma alegação que ele presumivelmente considera “contraditória” porque ela torna o conhecimento
da realidade impossível para nós. Sua rejeição à noção de uma realidade inacessível como contraditória envolve, assim, sua afirmação, em vez de negação, da acessibilidade da realidade às nossas
particulares capacidades perceptivas e conceituais.15
A segunda crítica de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível é que ela é epistemologicamente supérflua. Em particular, em sua consideração de “Como o ‘Verdadeiro Mundo’ acaba
por se tornar em Fábula”, em Crepúsculo dos ídolos, o passo “königsbergiano” (uma referência à cidade natal de Kant) afirma uma
realidade “inalcancável, indemonstrável, imprometível” e é seguido pela compreensão originária de que tal realidade deva ser
15 Leituras anti-céticas desse tipo têm sido desenvolvidas por vários comentadores. Para
a leitura especialmente influente de Maudemarie Clark, ver Clark 1990: cap. 1-5,
Clark 1998 e Clark e Dudrick 2004. Para outras, ver Anderson 1996, 1998, 1999,
2002 e 2005: 187-192, Hill 2003: pt. 2 e Doyle 2009: cap. 1-2, esp. 56-65.
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cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
“inalcançada, também desconhecida”, e, portanto, por sua rejeição
como “uma Ideia que se tornou inútil, supérflua, consequentemente
uma Ideia refutada” (GD/CI, Como o “Verdadeiro Mundo” Acabou
por se Tornar em Fábula 3, KSA 6.80).16 Nietzsche conclui que a realidade à qual temos acesso não poderia mais ser considerada como
meramente “aparente”, mas, ao contrário, ser considerada como
real, uma vez que o padrão de uma realidade ulterior e inacessível é
supérfluo. Assim, ao dar o passo final, ele insiste que “com o verdadeiro mundo expulsamos também aparente”. No capítulo precedente
de Crepúsculo dos Ídolos, “A ‘Razão’ na Filosofia”, ele também se
refere a Kant ao afirmar “a evidência dos sentidos” e nosso conhecimento do “mundo verdadeiro”, o mundo “aparente” do “tornar-se”, contra a postulação de um “mundo real”, e concluindo que “os
fundamentos, em vista dos quais ‘este’ mundo foi designado como
aparente, fundam, em vez disso, sua realidade – uma outra espécie
de realidade é absolutamente indemonstrável” (GD/CI, A “Razão
na Filosofia” 2 e 6, KSA 6.75). Como sua primeira crítica, então, a
segunda crítica de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível
afirma, em vez de negar, nosso conhecimento da realidade.
A crítica final de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível consiste nas hipóteses relativas às funções psico-físicas e culturais da crença numa tal realidade. Estas hipóteses pretendem
sugerir que, mais do que exercerem um papel teórico necessário
em nosso conhecimento do mundo, esta crença pode ser explicada
por outros propósitos, decididamente mais suspeitos, aos quais ela
serve. Nietzsche se refere particularmente a um tipo de enojamento
ou frustração com o mundo acessível e à expectativa de defender
a moral tradicional e as idéias teológicas contra as dúvidas empíricas. Em “Como o Verdadeiro Mundo acaba por se tornar em
Fábula”, por exemplo, ele descreve o passo “königsbergiano” como
16 Ver também MA I/HH I, 9, 16, 20 e 21, KSA 2. 29 e AC/AC 10, KSA 6. 176.
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Bailey, T.
postulando uma realidade que pretende ser “pensada um consolo,
uma obrigação, um imperativo”, e em “A ‘Razão’ na Filosofia” ele
escreve que “forjar histórias sobre “um outro” mundo que não este
é completamente sem sentido, assim como não há instinto forte
para difamar, depreciar e suspeitar da vida em nós: no último caso
nós nos vingamos a nós mesmo em vida através da fantasmagoria
de “uma outra” e “melhor” vida (GD/CI, A “Razão na Filosofia”,
6, Como o “Verdadeiro Mundo” Acabou por se Tornar em Fábula,
3, KSA 6.80).17 Novamente, então, ao criticar a noção de uma realidade inacessível, Nietzsche afirma, em vez de negar, o conhecimento
humano possível da realidade – neste caso, o conhecimento daquela
realidade que pode nos enojar ou nos frustrar, ou ameaçar nossa moral tradicional e nossas ideias teológicas.
O Nietzsche tardio, por conseguinte, critica a noção kantiana de
uma realidade inacessível não porque ela alega que temos acesso à
realidade ou que podemos ao menos concebê-la, mas precisamente
porque ela nega isto: ela torna a realidade inacessível a nós de uma
forma contraditória, epistemologicamente supérflua e moralmente
suspeita, e deve ser rejeitada em nome da realidade que podemos
perceber e conceber.
Vale notar, contudo, que essas críticas pareceriam mais aplicáveis a Schopenhauer, Lange ou Fischer do que ao próprio Kant.
Isso porque é altamente debatível se Kant afirma uma realidade
inacessível ou, se ele o faz, ainda se argumenta das formas que
17 Para as hipóteses de Nietzsche’s relativas às funções psico-físicas e culturais de crença numa realidade inacessível, frequetemente com referência a Kant, ver também MA
I/HH I, 17, KSA 2.38, GT/NT, Ensaio de Autocrítica, 5, KSA 1. 17, JGB/BM 2, 5, 6,
10, 59, 210 e 211, KSA 5. 16, GM/GM, III, 25, KSA 5. 402, FW/GC, Prólogo 2, 346,
347 e 370, KSA 3. 347, GD/CI, Incursões de um Extemporâneo, 34, KSA 6. 132, AC/
AC 10, 15, 24, 38, 50 e 58, KSA 6. 176, EH/EH, Por que Sou Tão Esperto, 10, KSA
6. 295, O Nascimento da Tragédia, 2, KSA 6.311 e Por que Eu Sou um Destino, 3-8,
KSA 6. 367. Ver também MA I/HH I, 9, 10 e 16, KSA 2. 29 e Za/ZA I, Dos trasmundanos, KSA 4. 35 para declarações sobre os objetivos deflacionários de tais hipóteses
e referências na nota 30 a seguir.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
Nietzsche critica.18 Kant se esforça para distinguir seu idealismo
“transcendental” do ceticismo, de tal modo que as condições
“transcendentais” do conhecimento são visadas como garantias de
um realismo “empírico” e, para evitar problemas tais como aqueles identificados por Nietzsche, alguns comentadores de Kant até
argumentam que ele pretende que a “coisa em si” seja o que expresse a ausência de comprometimentos com a realidade do objeto
considerado independentemente das condições a priori do conhecimento.19 Além disso, mesmo se sua “coisa em si” for igualada à
realidade inacessível que Nietzsche rejeita, as críticas de Nietzsche têm pouco a “dizer”, por exemplo, à insistência de Kant sobre
sermos afetados por objetos que venhamos a conhecer ou à necessidade de uma “Revolução Copernicana” idealista para evitar as
impropriedades do realismo. A este respeito, pois, a abordagem
de Nietzsche acerca do idealismo kantiano não é particularmente
promissora como uma abordagem acerca de Kant mesmo.
Juízos da realidade
Outras discussões acerca do idealismo kantiano nos textos
tardios de Nietzsche estão preocupadas com outras noções kantianas, contudo mais distintas. Isso é particularmente evidente no capítulo “ ‘A ‘Razão’ na Filosofia’, em Crepúsculo dos Ídolos, no qual
Nietzsche se concentra nas posições de Spir e Gustav Teichmüller.
Ele estudou particularmente essas posições de modo intenso no
final dos anos 1870 e 1880 e elas o levaram a tratar do idealismo
18 Admitidamente, comentadores de Nietzsche, com frequência, tomam Kant como afirmando uma realidade inacessível e Nietzsche como bem sucedidamente utilizando-se disso. Além das obras a isso relativas na nota 18 acima, ver, por exemplo, Brown
1980: 42-45, Stack 1991: esp. 30-33, Houlgate 1993: esp. 128-157, Conrad 2001:
25-33 e Ibáñez-Noé 2002: 132-134 e 144-147.
19 Ver, em particular, Allison 1983/2004 e, sobre a importância de tais interpretações
para Nietzsche, Mosser 1993: esp. 73-76 e Weiss 1993.
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Bailey, T.
kantiano menos em termos de sua noção de uma realidade inacessível do que em termos de como ele nos considera para fazermos
juízos sobre a realidade.
A abordagem de Nietzsche acerca de Spir é notável por sua
preocupação com uma certa noção do objeto de juízo e por sua
transformação radical em “A ‘Razão’ na Filosofia”. Em seus escritos
inéditos iniciais e em suas obras publicadas de Humano, demasiado
humano até Para além de bem e mal, Nietzsche endossa o argumento de Spir da impossibilidade de juízos empíricos, de acordo
com o qual um conceito pode ser aplicado apenas a um objeto autoidêntico e tal objeto não é manifestado na experiência sensível,
ao mesmo tempo em que, entretanto, não segue Spir em postular
um objeto de juízo ulterior, não-empírico. Como ele coloca em Para
Além de Bem e Mal, embora “que sem um deixar-valer as ficções da
lógica, sem um medir a efetividade pelo mundo puramente inventado do incondicionado, do igual-a-si-mesmo, sem uma constante
falsificação do mundo pelo número, o homem não poderia viver”,
esses são, todavia, “os mais falsos juízos” (JGB/BM 4, KSA 5.18).20
Em “A ‘Razão’ na Filosofia”, entretanto, Nietzsche abandona
o argumento de Spir da impossibilidade de juízos empíricos. Sua
preocupação principal neste capítulo é criticar as alegações de
que a “razão” nos dá as bases para postular “unidade, identidade,
duração, substância, causa, coisidade, ser” dos objetos, apesar do
fato de que nossa experiência sensível desses objetos não exemplifica esses conceitos. Spir claramente faz uma alegação a priori
20 Sobre esta posição, ver também MA I/HH I, 1, 11, 16, 18 e 19, KSA 2. 23, WS/AS 11
e 12, KSA 2. 546, FW/GC 107, 110 e 111, KSA 3. 464, JGB/BM 2 e 36, KSA 5. 16
e, nos cadernos iniciais, PHG/FT 5, 7, 10 e 15, KSA 1. 822, WL/VM 1, KSA 1. 875,
KSA 7. 493, Nachlass/FP 19 [235, 236 e 242] do verão de 1872 – começo de 1873
e KSA 7. 542, Nachlass/FP 23 [11] e [39], do inverno de 1872 – 1873. D’Iorio argumenta que Nietzsche abordou intensivamente a segunda edição revisada de Denken
und Wirklichkeit em 1877, no verão de 1881 e no verão de 1885. Ver D’Iorio 1993:
esp. 257-259 e também Campioni et al 2003: 567-570 e Brobjer 2003: 222.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
precisamente desse tipo, com sua premissa a respeito da autoidentidade do objeto de juízo. O que é notável no capítulo é que,
ao criticar tais alegações, Nietzsche não apenas rejeita a postulação de objetos e características não-empíricos, como ele havia
feito anteriormente, mas também nega que a realidade possa ser
determinada sobre bases lógicas e afirma a possibilidade de juízos
empíricos. Assim, na passagem seguinte ele afirma a “ciência” empírica e enfatiza que isso não é apenas porque rejeita postulações
não-empíricas, mas também porque não considera “lógico” ser a
medida da realidade.
Nós possuímos ciência hoje precisamente à medida que decidimos aceitar a eviência dos sentidos, – à medida que aprendemos a
aguçá-los, a fortalecê-los, a pensá-los em vista de suas conclusões.
O resto é deformação e ainda-não-ciência: ou seja, metafísica, teologia, psicologia, epistemologia. Ou ciência formal, teoria de signos: como a lógica e aquela lógica aplicada, a matemática. Nisso a
realidade não aparece mesmo, nem como um problema; apenas tão
pouco como aparece a questão de qual valor podem ter tanto uma
convenção de signos quanto a de uma lógica (GD/CI, A “Razão” na
Filosofia 3, KSA 6.75).21
Noutras palavras, somente em Crepúsculo dos ídolos Nietzsche
realmente rejeita as bases spirianas sobre as quais anteriormente
havia negado que possamos realizar juízos empíricos – ou seja, as
bases “lógicas” de que um conceito possa ser aplicado apenas a um
objeto autoidêntico. Antes de Crepúsculo dos Ídolos, essas bases o
21 Aqueles comentadores que enfatizam a abordagem tardia de Nietzsche com Spir geralmente consideram que ele endossa o argumento de Spir contra a possibilidade do
juízo empírico ao longo de seus escritos tardios. Ver D’Iorio 1993: 277-294, Sánchez
2000a e Green 2002: esp. cap. 2 e 3. Critico Green a esse respeito e ofereço uma discussão ulterior sobre as passagens relativas ao texto acima em Bailey 2006: 242-249.
Ver também Clark 2005, Clark e Dudrick 2006 e Green 2005: 55-72.
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haviam colocado na estranha posição de rejeitar a noção de uma
realidade inacessível em nome da realidade que nos é acessível,
enquanto também de negar que podemos realizar juízos autênticos
da realidade. Ao rejeitar essas bases em Crepúsculo dos ídolos, ele
vem a aceitar que podemos fazer juízos da realidade acessível a nós.
“A ‘Razão’ na Filosofia” também é importante por sua expressão da abordagem de Nietzsche acerca de Teichmüller. Tendo insistido que a lógica não é a medida da realidade, Nietzsche procede
explicando a ideia de que a “razão” nos dá as bases para postular
“unidade, identidade, duração, substância, causa, coisidade, ser”
dos objetos como uma reflexão acerca do que ele chama “as pressuposições fundamentais da metafísica da linguagem”, as quais, ele
alega, originam-se no “tempo da mais rudimentar forma de psicologia”. Acerca dessa psicologia, ele escreve “esse vê por toda parte
agente e ato: esse acredita em vontade como causa em geral; esse
acredita no “eu”, no eu como ser, no eu como substância, e projeta
a crença na substância-eu sobre todas as coisas – somente com isso
cria o conceito “coisa” […] somente da concepção “eu” se segue,
como derivado, o conceito “ser” (GD/CI, A “Razão” na Filosofia 5,
KSA 6.78).22 Embora este diagnóstico seja aplicável à postulação
de Spir de um objeto de juízo autoidêntico, ele se aplica mais de
perto à postulação de Teichmüller do objeto de juízo como uma
substância, pois Teichmüller sustenta que o sujeito tem “experiência imediata” de si mesmo como um ser substancial que une a
pluralidade de suas sensações, afetos e vontades, e que esta atividade unificadora é refletida na gramática sujeito-predicado e que o
sujeito pode conhecer um objeto apenas ao estender a ele esse conceito de ser substancial.23 Assim, em Em “A ‘Razão’ na Filosofia”,
22 Sobre ataques similares à “metafísica da linguagem”, ver JGB/BM, Prefácio, 16, 17,
19, 20, 34 e 54, KSA 5. 11 e GM/GM, I, 13, KSA 5. 278.
23 Nietzsche se refere às alegações e argumentos de Teichmüller, em Die wirkliche und
die scheinbare Welt. Neue Grundlegung der Metaphysik , em numerosas notas de
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
Nietzsche rejeita não apenas sua própria alegação spiriana anterior
acerca da autoidentidade do objeto de juízo, mas também a consideração de Teichmüller de como o sujeito mesmo postula o objeto
de juízo como uma substância.
Surpreendentemente, contudo, o Nietzsche mais maduro também se encarrega de reformular precisamente o tipo de argumento
das premissas psicológicas primitivas que ele diagnostica em Spir
e Teichmüller. Ou seja, enquanto afirma uma realidade empiricamente acessível e passível de juízo, ele também deriva uma ontologia de causação como “vontade de potência” a priori da potência
causal que a psicologia primitiva atribui à escolha consciente, ou
“a vontade”, e que ele consistentemente nega. Em particular, numa
seção de Para além de bem e mal, ele argumenta a favor daquilo
que chama de “direito de determiner toda força eficiente univocamente como: vontade de potência”, com base em três premissas
hipotéticas: primeiramente, que “nada outro está ‘dado’ como real,
a não ser nosso mundo dos apetites e paixões”; em segundo, que “reconhecemos efetivamente a vontade como eficiente”; e, em terceiro
lugar, que esclarecemos nossa experiência psicológica em termos
de “uma forma fundamental da vontade – ou seja, da vontade de
potência” (JGB/BM 36, KSA 5.54). Fossem estas premissas aceitas,
ele insiste, o princípio de parcimônia requeriria que explicações não
somente de eventos psicológicos, mas também de eventos orgânicos
e inorgânicos fossem dadas em termos de “vontade de potência”. E
ele prossegue com esse argumento de modo entusiasmado em seus
escritos não publicados, enfatizando lá que, embora o argumento
apele à potência causal da volição, ele não atribui a volição a um
sujeito substancial – ele assim segue a psicologia primitiva no primeiro sentido, mas não no último. Suas explicações dos eventos em
meados da década de 1880 em diante. Sobre as interpretações acerca da importância
de Teichmüller para Nietzsche, ver D’Iorio 1993: 283-294, Orsucci 1997: esp. 53-56
e 2001: 212-219 e Small 2001: 43-56.
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termos de “vontade de potência” consequentemente concernem não
às relações causais entre “coisas” substanciais, mas antes às meras “vontades” ou “potências”, ou, quando muito, às suas combinações hierarquicamente organizadas – que, em uma nota de 1888, ele
chama de “quanta dinâmicos numa relação de tensão com todos os
outros quanta dinâmicos: cuja essência consiste em sua relação com
todos os outros quanta, em seus ‘efeitos’ sobre estes” (KSA 13.257,
Nachlass/FP 14 [79], da primavera de 1888).24
Certamente, à medida que Nietzsche deriva sua ontologia causal a priori da potência causal da volição, ele intencionalmente fornece precisamente o que noutro lugar nega que possa ser fornecido
– isto é, uma determinação a priori da realidade – precisamente da
forma em que noutro lugar ele rejeita – ou seja, ao estender à realidade uma pressuposição psicológica primitiva acerca da atividade
que ele considera errônea. De fato, como indica com seu comentário parentético sobre a segunda premissa de seu argumento em
Para Além de Bem e Mal ser “justamente nossa crença na própria
causalidade”, ele consistentemente alega que qualquer “explicação” de um evento em termos de potências causais reflete a crença
errada de que uma ação de um agente seja determinada pela potência causal de sua escolha consciente, assim como qualquer atribuição de potências causais a uma “coisa” substancial reflete a crença
errada de que a escolha e sua potência possam ser atribuídas a
24 Dentre as muitas outras notas similares de meados ao final da década de 1880, ver
KSA 12. 383, Nachlass/FP 9 [91], do outono de 1887 e KSA 13. 261, Nachlass/FP
14 [82] e [121], da primavera de 1888. Em GM/GM, II, 12, KSA 5. 313 Nietzsche
afirma essa ontologia a respeito dos eventos orgânicos e estende o “orgânico” de modo a
incluir as práticas sociais humanas, enquanto em GM/GM, III, 11 e 18, KSA 5. 361 ele
esclarece os “ideais ascéticos” nesses termos. Ver também GM/GM, I, 13, KSA 5. 278
e as alegações gerais em JGB/BM 23, KSA 5. 38 e AC/AC 2, KSA 6. 170.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
uma “vontade” substancial (JGB/BM 36, KSA 5. 54).25 Mesmo em
suas abordagens posteriores acerca do idealismo kantiano, Nietzsche permanece indeciso – neste caso, entre sua afirmação de uma
realidade acessível a e passível de juízo por nossas capacidades
perceptivas e conceituais ordinárias e sua ontologia da causação
como “vontade de potência”.
Entretanto, essa abordagem hesitante acerca das concepções
kantianas de juízo possibilita uma abordagem mais fecunda acerca
de Kant do que das críticas de Nietzsche à noção de uma realidade
inacessível, pois isso diz respeito a assuntos importantes relativos
à própria consideração de juízo por Kant. Em particular, como Spir,
Kant considera que um juízo consistir na aplicação normativa de
um conceito a um objeto e, assim, suscita o problema de como a experiência sensível poderia ser admitida num juízo, uma vez que tal
experiência pareceria ter um papel causal, mais do que normativo,
na explicação de um juízo. A solução de Kant, alegar que a imaginação fornece critérios para a aplicação de conceitos à experiência
sensível, é notoriamente insatisfatória. Assim como Teichmüller,
Kant também alega que um juízo deve se referir a um “Eu”, entendido como um ser não-empírico, uma reivindicação que suscita
questionamentos significativos sobre a natureza e o papel do sujeito
no conhecimento de um objeto. A crítica de Nietzsche a Teichmüller e seus esforços para formular uma ontologia sem sujeitos substanciais pode ser tomada como resposta a tais questionamentos.
Além disso, o tratamento de Nietzsche da coisidade e causalidade
25 Assim, Nietzsche não embasa sua ontologia da “vontade de potência” nem sobre
evidência meramente empírica ou sobre compromissos normativos, nem sobre postulados metafísicos básicos, mas, antes, numa premissa empírica que considera falsa. Sobre uma leitura contrastante, ver Doyle 2004 e 2009: cap. 4-5, esp. 115-21.
Nietzsche elabora sua crítica às “explicações” casuais em GD/CI, A “Razão” na
Filosofia, 5, KSA 6. 77 e Os Quatro Grandes Erros, 3, KSA 6. 90 e também em FW/
GC 112 e 127, KSA 3. 472, JGB/BM 12, 14, 17 e 21-23, KSA 5. 26 e GM/GM, I, 13,
KSA 5. 278, ecoando as alegações feitas por Teichmüller e Liebmann, dentre outros.
Sobre essas alegações, ver Orsucci 1997: 57-63.
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diz respeito a uma outra das preocupações primárias de Kant, a saber, defender contra as objeções empíricas a ideia de que os objetos
de juízo consistem, no final das contas, em substâncias em relações
causais. Ao igualmente criticar tal ideia como um erro de “razão”
que reflete uma psicologia primitiva e ao oferecer uma alternativa
nos termos da “vontade de potência”, Nietzsche discutivelmente
responde a uma preocupação muito semelhante. Ao se dedicar mais
rigorosamente a seu tratamento das concepções de juízo do que a
suas críticas à noção de uma realidade inacessível, a abordagem
posterior de Nietzsche acerca do idealismo kantiano poderia, então,
ser apresentada como não apenas mais rica, mas também como mais
impressionantemente relacionada ao idealismo do próprio Kant.
II. Nietzsche e a ética kantiana
As objeções não convincentes de Nietzsche
As abordagens de Nietzsche acerca da ética kantiana estão
concentradas quase exclusivamente em suas obras e notas dos
anos 1880 e são menos marcadas pelas leituras secundárias particulares do que suas abordagens acerca do idealismo kantiano26.
26 Além das partes relevantes dos textos de Fischer, Hartmann, Lange,
Schopenhauer e Überweg mencionada nas notas 4, 6-9 e 17 acima, as leituras
de Nietzsche sobre a ética de Kant incluiram Über das Fundament der Moral
/ Über die Grundlage der Moral, de Schopenhauer, as quais ele leu em 1884.
Ver Campioni et al 2003: 554 e Brobjer 2008: 32, 38 e 226 e n. 89, p.38. A
série de citações, resumos e discussões de passagens de Grundlegung zur
Metaphysik der Sitten, Kritik der praktischen Vernunft, Kritik der Urteilskraft,
Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, Die Metaphyik der
Sitten and Der Streit der Fakultäten, de Kant, em KGW VIII:1 7 [4] (final de
1886 - primavera de 1887) derivam não de leituras de primeira-mão desses
textos, mas de uma releitura de Immanuel Kant und seine Lehre, de Fischer.
Ver Brobjer 2001: 421, 2003: 65 e n. 42 e 2008: 38 e n. 87, p. 38.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
Ele geralmente trata da ética kantiana como sintomática de uma
crise mais ampla da moral moderna e do valor moral de igualdade,
em particular. De fato, suas alegações mais comuns a respeito da
ética kantiana são que ela afirma acriticamente tais valores modernos e que explora a noção de uma realidade inacessível para
os proteger da crítica empírica. Em Para Além de Bem e Mal, por
exemplo, Kant é apresentado como um moralista acrítico que, com
sua noção de um “imperativo categórico”, deseja mostrar que “o
que é nobre sobre mim é que posso obedecer – e isso não deveria
ser diferente para você do que é para mim”, enquanto no prefácio
de 1886 em Aurora, Nietzsche escreve que Kant “para abrir espaço
para seu ‘reino moral’, ele se viu obrigado a anexar um mundo indemonstrável, um ‘além lógico [...] tornar o ‘reino moral’ invulnerável, de preferência ainda, invulnerável à razão” (JGB/BM 187,
KSA 5.107, M/A, P, 3, KSA 3.12)27. Contudo, não está claro que
as críticas gerais de Nietzsche à moral moderna oferecem mais
expectativa de uma abordagem fecunda acerca da ética kantiana.
Pois mesmo se as noções kantianas de igualdade, liberdade e razão
são “morais” no sentido pejorativo de Nietzsche, as críticas gerais
de Nietzsche à moral – de seu “ressentiment” ou ascetismo, por
exemplo, ou sua obstrução de indivíduos “superiores” – têm pouca
relevância para os argumentos e preocupações de Kant.28
27 Ver também VM/OS 27, KSA 2. 391, WS/AS 216, KSA 2. 650, M/A 142, 197, 207
e 481, KSA 3. 133, FW/GC 193 e 335, KSA 3. 504, JGB/BM 5, 11, 186, 188 e 210212, KSA 5. 18, GM/GM, III, 12 e 25, KSA 5. 363, WA/CW 7, KSA 6. 26, GD/CI,
A “Razão” na Filosofia, 6, Como o “Verdadeiro Mundo” Acabou por se Tornar em
Fábula e Incursões de um Extemporâneo, 1, 16, 29 e 42, KSA 6.78, AC/AC 10, 12,
55 e 61, KSA 6. 176 e EH/EH, Considerações Extemporâneas, 3 e O caso Wagner,
2 e 3, KSA 6. 319.
28 Isso também vale para leituras que alegam que, com sua crítica às entidades e qualidades “ultra-mundanas”, Nietzsche supera os dualismos da filosofia moral de Kant
e incita à afirmação do que supostamente permanece, um reino “este-mundano” de
impulsos ou “vir-a-ser”. Ver, por exemplo, Deleuze 1962: 102-108, Ansell-Pearson
1987: 310-339, Müller-Lauter 1995: esp. 25-27 e Simon 2000.
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Além disso, nas duas passagens publicadas em que Nietzsche procede para além de tais alegações gerais sobre a “moral”
kantiana para fazer objeções específicas à ética kantiana, suas objeções não são convincentes. Na primeira, uma seção de A Gaia
Ciência intitulada “Viva a física!”, ele insiste que requerer que
todos façam a mesma coisa nas mesmas circunstâncias seja um
tipo “cego, mesquinho e despretensioso” de “egoísmo” e que é
impossível julgar nossas razões pela ação, uma vez que as ações e
circunstâncias experimentadas são sempre mais singulares do que
aquelas identificadas pelas razões. Na outra passagem, uma seção
em O Anticristo, ele alega que um juízo moral kantiano considera
“o prazer como uma objeção” e é, portanto, “prejudicial” ou “perigoso à vida”. E em ambas as passagens ele conclui que, em vez de
realizar juízos morais kantianos, devemos cultivar nossas próprias
particularidades e criatividade: em “Viva a física!”, ele alega que,
diferentemente de Kant, “queremos tornar-nos aqueles que somos
– os novos, os únicos, os incomparáveis, os legisladores de si mesmos, os criadores de si mesmos!”, enquanto em O Anticristo ele
insiste que “(uma) virtude deve ser invenção nossa, nossa autodefesa e necessidade mais pessoal” e que “cada um deveria inventar
sua virtude, seu imperativo categórico” (FW/GC 335, KSA 3. 560,
AC/AC 11, KSA 6.177).
Essas objeções entendem mal a natureza de um juízo moral
kantiano. Primeiramente, Kant não tenciona que um juízo moral
simplesmente sustente o que todo agente deve ou não fazer nas
mesmas circunstâncias, um juízo que, de fato, poderia ser feito sobre bases “autocentradas” ou em prol de qualquer necessidade ou
querer contingentes de qualquer agente. Pelo contrário, ele tenciona que um juízo moral seja “universal” num sentido mais forte,
que excluiria tais bases particulares ao se referir especificamente
às bases morais e incondicionais, àquelas que ele frequentemente
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
descreve como o objeto de um tipo moral distinto de “respeito”.29
Nietzsche aprecia melhor este senso de universalidade na seção
de O anticristo, onde descreve as bases de um juízo moral kantiano não como “autocentrado”, mas como “‘o bom em si’, bom com
o caráter de impessoalidade e universalidade” e como “um sentimento de respeito pelo conceito de ‘virtude’” (AC/AC 11, KSA
6.177). Mas ao insistir que o juízo moral kantiano assim considera
“o prazer como uma objeção”, ele ainda é injusto com Kant, pois
este concede que o que é moralmente bom pode coincidir com a
satisfação de necessidades ou quereres contingentes, bem como
que tais necessidades ou quereres sejam levados em conta à medida que são relevantes às questões morais e até considera que a
conquista da própria bondade moral proporciona seu próprio tipo
de “prazer”.30 Além do mais, em relação aos juízos de nossas razões
para a ação, Kant admite que as razões sejam indeterminadas e
que não possamos, consequentemente, julgar ações passadas pelas razões pelas quais elas pudessem ter sido realizadas. Mas ele
insiste que essa indeterminação não impede a prescrição de ações
futuras de acordo com as razões e que, nisso, um nível suficiente
29 A diferença entre estes dois sentidos de “universalidade” tem influenciado muito os
comentadores de Kant, uma vez que Kant tem sido pensado por alguns como bem
sucedido em justificar apenas o sentido mais fraco. Ver, por exemplo, Allison 1996b:
143-147 e 150-154 e Wood 1999: 48 e 81-82. A objeção de Nietzsche aqui ecoa
aquela em Schopenhauer 1841: pt. II, §7 e 1844: App..
30 Uma interpretação mais indulgente acerca da concepção da ação “por dever” em
Kant é que agir “por dever” é fazer o que é moralmente exigido porque o é moralmente exigido e, assim, sem restrição a se fazer o que é moralmente exigido também
coincide com a satisfação de inclinação. Ver, em particular, a discussão em Kant
1785: 397-399. O emprego, por Kant, de suas fórmulas para deduzir deveres, indica
que ele considera a satisfação de necessidades ou quereres contingentes como moralmente significativas à medida que elas são relevantes para os problemas “universais”
expressos por suas fórmulas. Ver, por exemplo, seu argumento para um dever de beneficência em Kant 1797/1798: 453. Finalmente, ao menos nos textos posteriores, ele
distingue entre (des)prazer na (in)satisfação de uma inclinação e (des)prazer na (falta
de) cumprimento de exigências morais. Ver Kant 1790: 178-179 e 207-209, 1793:
283-284 e 1797/1798: 211-213, 378 e 399-400.
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Bailey, T.
de determinação possa ser atingido através da qualificação mútua
de razões diferentes para a ação – uma possibilidade que Nietzsche
não considera.31 Finalmente, a proposta de Nietzsche de que, em
vez de realizar juízos morais kantianos, cultivamos nossas próprias
particularidades e criatividade está de igual modo longe das preocupações de Kant. Por mais que a “autonomia” seja frequentemente considerada um problema caracteristicamente “kantiano”,
propor que considerações de universalidade ou igualdade devam
ser rejeitadas em nome de uma particularidade ou criatividade de
um agente – em que, assim, “nos tornamo quem somos” – é claramente um bocado alheio à concepção de Kant de juízo moral.32
A ética kantiana de Nietzsche
Para revelar bases mais persuasivas para a crítica de Nietzsche
à ética kantiana, é necessário considerar algumas outras passagens
nas quais, embora Kant não seja explicitamente mencionado, o próprio Nietzsche decididamente desenvolve as noções “kantianas” de
autonomia e igualdade. Particularmente significativo a esse respeito é uma série de seções no começo do segundo ensaio de Genealoga da Moral. Lá Nietzsche apresenta o que chama de “indivíduo
soberano” como um agente – ou seja, um ser capaz de “querer”
31 Ver, em particular, Kant 1785: 407-408 e 1797/1798: 390. Kant também admite
que não agimos sempre por razões, em Kant 1790: 380 e 1789-1790: 196, 17921793/1794: n. para 29, 1797/1798: 407-408 e 1798b: 251-275. Sobre algumas discussões acerca da apresentação da objeção de Nietzsche na seção 355 de A Gaia
Ciência, ver Bailey 2006: 256-260.
32 Entretanto, alega-se frequentemente que Nietzsche rejeita as noções kan-
tianas de igualdade ou universalidade em nome do desigual ou particular,
geralmente entendido nos termos da “autonomia” de um agir do indivíduo de
acordo com impulsos ou desejos particulares ou singulares que ele mesmo
tenha descoberto, organizado ou criado. Ver, em particular, Owen 1994: cap.
1-4, 1995: 87-90 e 1999: 3-11, Ridley 1998: 1-11 e 69-72, May 1999: 13 e
Dudley 2002: 3-8, 123-212 e 227-230.
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cadernos Nietzche 29, 2011
A psicologia moral minimalista de Nietzsche
suas ações – cuja “medida de valor” é precisamente a habilidade de
desejar, de tal forma que “olhando para os outros a partir de si, ele
honra ou despreza” ao distinguir “seus iguais” em atividade daqueles de menor atividade e “afirma-se” como capaz de um certo grau
de atividade . Assim, escreve Nietzsche, o “indivíduo soberano” é
distintamente “autônomo” (GM/GM, II, 2, 3, KSA 5. 293).
É plausível supor que com isso Nietzsche apresenta um
exemplo particular da ética “nobre” que ele apresenta no primeiro
tratado de Para uma Genealogia da Moral e em Para Além de
Bem e Mal. Tal ética identifica as “boas” e as “más” ações com
aquelas realizadas pelos exemplares agentes “bons” e “maus”, e
identifica agentes “bons” e “maus” através de uma característica
distintiva – tal como seu ser “aloirado”, um “guerreiro” ou “verídico” – o qual se supõe conceder “bondade” ou “maldade” a suas
ações. Ações “boas” e “más” são determinadas, e agentes motivados a realizar “boas” ações e a não realizar “más” ações, por
meio de uma demonstração e de uma medida constantes, criativas
e mútuas da característica de concessão-de-“bondade” relevante,
uma prática a que Nietzsche frequentemente se refere como “retribuição [Vergeltung]”33. Em sua consideração acerca do “indivíduo soberano”, Nietzsche então pareceria considerar a atividade
mesma como uma característica-que-concede-bondade, que deve
ser continuamente demonstrada em ações julgadas pelos outros
como o correto a se fazer.
33 Sobre a abordagem de Nietzsche acerca da ética do “bom e mau”, ver, em particular,
JGB/BM 259, 262, 263, 265, 272 e 287, KSA 5. 207 e GM/GM, I, 10 e 11, KSA 5.
270. Marcadamente, das dez seções de seus primeiros textos aos quais Nietzsche
se refere em GM/GM, P, 4, KSA 5. 250 como prefigurando reivindicações feitas em
Genealogia da Moral, seis apresentam sua noção de retribuição em algum detalhe
e uma delas é uma de duas seções sucessivas de Aurora, a qual apresenta longas
análises acerca da “retribuição”, precisamente nos termos da atividade. Ver MA I/
HH I, 45 e 92, KSA 2. 67, WS/AS 22, 26 e 33, KSA 2. 555 e M/A 112, KSA 3. 100 e
também MA I/HH I, 44, KSA 2. 66 e M/A 133, KSA 3. 102.
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Bailey, T.
Se assim é, então a “autonomia” que Nietzsche afirma contra a
concepção de juízo moral de Kant não precisa se referir ao cultivo
de particularidade ou criatividade proposto em “Viva a física!” e
na seção de O Anticristo, um problema de insignificância moral
fundamental para Kant. Antes, o “indivíduo soberano” de Nietzsche afirma a atividade como tal e em geral como o valor mais alto
e incondicional, e assim um sentido da importância moral igual
ou universal da atividade que nega qualquer importância moral
fundamental às contingências dos agentes ou, certamente, a qualquer outro valor que a atividade. A esse respeito, pois, ele segue
Kant, à medida que Kant também considera o valor moral como
expressando a “autonomia” de vontade ao tratar a própria atividade como o valor mais alto e incondicional – nos termos de suas
fórmulas, ele considera que o valor moral consiste em querer o que
se pode querer que se torne “uma lei universal”, sempre tomando
a vontade como um “fim” e não meramente como um “meio”, e a
“autonomia” de uma vontade é, assim, “dar a lei a si mesma”.34
A autonomia e a igualdade expressas pelo “indivíduo soberano” de
Nietzsche são, dessa forma, profundamente kantianas.
Crucialmente, contudo, enquanto afirma a igual importância
moral da atividade, o “indivíduo soberano” também é sensível às
variações na atividade através dos agentes e ao longo do tempo.
De fato, é isso que torna necessário sua demonstração e medida
constantes da habilidade de querer, com base na qual ele distingue seus “iguais” dos outros. Enquanto compartilha com Kant a
afirmação da atividade, pois, o “indivíduo soberano” não respeita a
universalidade requisitada pelo juízo moral kantiano, uma vez que
ao admitir graus diferentes de atividade ele admite graus diferentes de importância moral entre os agentes. Nietzsche enfatiza isso
quando insiste que o “indivíduo soberano” é “autônomo supramoral
34 Kant 1785: 421, 429, 433, 431.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
(pois ‘autônomo’ e ‘moral’ se excluem”, uma vez que lá ele iguala a
“moral” com o tratar os agentes como “uniformes, de igual pra igual”
(GM/GM II 2, KSA 5.293).35 Sua ética kantiana, portanto, difere da
do próprio Kant ao admitir graus diferentes de atividade e, consequentemente, de importância moral entre os agentes.36
As seções sobre o “indivíduo soberano” fornecem, assim, uma
explicação alternativa da rejeição de Nietzsche à ética kantiana
àquela dada em “Viva a física!” e na seção de O Anticristo. Ou seja,
por “indivíduo soberano” a ética kantiana acertadamente considera a própria atividade como o valor mais alto e incondicional, mas
falha ao não considerar que a atividade mesma varia em graus. De
fato, a proposta de Nietzsche de nos tornarmos “os legisladores de si
mesmos”, em “Viva a física!” ou de que “cada um deveria inventar
sua virtude, seu imperativo categórico”, em O anticristo, poderia
ser relida sob esta luz – ou seja, como apelando não à particularidade ou criatividade como tais, mas às demonstrações de graus de
atividade entre “iguais” na atividade.
A isso pode ser objetado que Nietzsche queira dizer “atividade” num sentido substancialmente diferente de Kant. Pois ele
nega que ações possam ser explicadas ou prescritas de acordo com
razões, que um agente consiste numa “vontade” substancial e que
suas ações são causadas por sua escolha consciente. Ele também
rejeita a espontaneidade contra-causal do “livre-arbítrio” e o sentido super-inflado de responsabilidade com que a associa – a saber,
35 Que Nietzsche empregue a palavra ‘sittlich’, ao invés de ‘moralisch’, para “moral”,
aqui, não implica que ele considere ser o “indivíduo soberano” livre apenas da primitiva “moral do costume [Sittlichkeit der Sitte]”, sob a qual ele alega que a atividade se desenvolve, e nem da moral moderna, à qual ele geralmente se refere como
“Moral” ou “Moralität”. Pois ele considera o tratamento dos agentes como “uniforme,
de igual pra igual” persistir na moral moderna e, na verdade, frequentemente se refere à igualdade kantiana como exemplificadora disso. Ver MA I/HH I, 96-99, KSA 2.
92, M/A 9, KSA 3. 21 e JGB/BM 187 e 188, KSA 5. 107, por exemplo.
36 Apresento uma discussão mais aprofundada acerca dessa ética “kantiana” em Bailey
2003: 14-21 e 2006: 254-256.
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Bailey, T.
aquele que assegura o agente como único responsável não apenas
por todo seu comportamento, mas também, como Nietzsche coloca
em Crepúsculo dos Ídolos, “por em geral estar aí, por ser assim e
assim, por estar sob essas circunstâncias, nesse meio” (GD/CI, Os
Quatro Grandes Erros, 8, KSA 6.96).37 De fato, ele frequentemente
se refere a Kant como afirmando tais sentidos de “livre-arbítrio”
e responsabilidade. Mas Nietzsche, entretanto, compartilha da
concepção básica kantiana da atividade como ação que não é determinada pelas experiências e desejos imediatos: enquanto Kant
define a atividade como ação motivada que é “livre” no sentido
de que “pode [...] ser afetada, mas não determinada por impulsos”, Nietzsche apresenta a atividade do “indivíduo soberano”
como consistindo na habilidade de “esquecer” e, assim, “digerir”
experiências e desejos, que confere “uma pequena tabula rasa de
consciência” e uma habilidade oposta de fazer e manter uma promessa, ou “um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade”, a qual
constitui uma “rara liberdade” e “o privilégio extraordinário da
responsabilidade”.38 Ao afirmar essa concepção kantiana básica de
atividade, Nietzsche não segue Kant em pensar que tal “liberdade”
também requer a espontaneidade contra-causal ou assegura o “indivíduo soberano” responsável num sentido super-inflado – ele o
considera ser “livre” simplesmente para querer sem ser determinado à ação por experiências e desejos imediatos, e “responsável”
simplesmente pelas ações que quis. Ele também não segue Kant
em se concentrar em razões ou contradizer suas próprias críticas
37 Sobre as críticas de Nietzsche à espontaneidade contra-causal e à responsabilidade
super-inflada associadas ao “livre-arbítirio”, ver também JGB/BM 21, KSA 5. 35,
GM/GM, I, 13 e II, 4, KSA 5. 278 e GD/CI, Os Quatro Grande Erros, 7 e 8, KSA 6. 95.
38 Kant 1797/1798: 213, GM/GM, II, 1 e 2, KSA 5. 291. Sobre a concepção de atividade
em Nietzsche, ver também JGB/BM 19 e 230, KSA 5. 31 e GD/CI, O que falta aos
alemães, 6, KSA 6. 108, e sobre este aspecto particular da concepção de atividade em
Kant, ver também Kant 1797/1798: 211.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
acerca da suficiência de razões ou “vontade” para prescrever ou explicar as ações, embora, enquanto estendendo a atividade ao não-racional e não-consciente, ele conserva um papel causal parcial
para o raciocinar e o escolher conscientes – ou seja, para as várias
habilidades auxiliares a que se refere coletivamente, como aquelas
de ser “capaz de calcular, contar” (GM/GM II 1, KSA 5. 291).
Também pode ser objetado que a ética kantiana que Nietzsche
expressa com sua consideração do “indivíduo soberano” seja um
caso isolado ou excepcional. Porém, isso informa bastante de sua
ética noutros lugares. Isso é particularmente claro em seu tratamento da justiça, no segundo tratado de Para uma Genealogia da
Moral, no qual, depois de apresentar a consciência do indivíduo
soberano acerca da habilidade de querer como “uma verdadeira
consciência de potência e de liberdade” e uma “consciência de [...]
potência sobre si mesmo e o destino”, ele esclarece as origens da
“justiça” em termos de “potência”, precisamente neste sentido. Em
particular, ele escreve que a “justiça” se origina na “boa vontade,
entre os que têm potência mais ou menos igual, de se acomodarem uns aos outros, de, por meio de um igualamento, voltarem a se
‘entender’ – e, em referência aos que têm menos potência, coagi-los, abaixo de si, a um igualamento” (GM/GM, II, 2 e 8, KSA 5.
293).39 Para Nietzsche, então, a justiça consiste nos “equilíbrios”
que demonstram graus aproximadamente iguais da habilidade
de querer entre “iguais” nesse sentido, e na desigualdade deles
em relação àqueles de maior ou menor habilidade de querer. De
fato, em Crepúsculo dos Ídolos, seus inúmeros comentários em louvor das distinções sociais “nobres” e contra o ideal político moderno de “igualdade” são acompanhados da seguinte explicação:
39 Além das três passagens referidas em GM/GM, Prólogo, 4, KSA 5. 250 a esse respeito, MA I/HH I, 92, KSA 2. 89, WS/AS 26, KSA 2. 560 e M/A 112, KSA 3. 100, ver
também WS/AS 22 e 33, KSA 2. 555, JGB/BM, 259, KSA 5. 207, GM/GM, II, 4-7,
9-11, KSA 5. 297, e KSA 12. 221, Nachlass/FP 5 [82], do verão de 1886 – outono de
1887.
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“A doutrina da igualdade! ... Mas não existe veneno mais venenoso:
pois ela aparece ser louvada pela própria justiça, enquanto é o término da justiça... ‘Igual para os iguais, desigual para os desiguais’
– esta seria a verdadeira voz da justiça: e o que segue dela ‘Nunca
nunca faz iguais os desiguais’” (GD/CI Incursões de um Extemporâneo 48, KSA 6.150).40
Um outro exemplo da ênfase de Nietzsche na demonstração
da atividade é dado em seu tratamento sobre o amor. Por exemplo,
duas seções sucessivas de A gaia ciência apresentam tipos diferentes de amor – benevolência, compaixão, cortesia, amor sexual
e amizade – como indicadores de níveis relativos de dependência
entre agentes e de suas diferentes preferências a respeito desses
níveis. Em particular, tipos benevolentes de amor são apresentados
como relações de dependência entre aqueles desiguais na independência, e, logo, como valorados [valued] por aqueles que dependem
de outros ou desejam manter a dependência de outros em relação a
si, enquanto outros tipos de amor são apresentados como relações
de independência entre os aproximadamente iguais na independência. Daqueles que preferem os últimos tipos de amor, Nietzsche
escreve aprobativamente que “para com aquele que sofre são frequentemente duras, pois este não é digno de seu esforço e de seu
orgulho – mas se mostram tanto mais atenciosas para com os iguais,
com os quais um combate e luta seriam, em todo caso, honrosos,
se alguma vez se encontrasse uma ocasião para isso” (FW/GC 13,
KSA 3.384).41 Que a independência e igualdade com as quais Nietzsche se preocupa aqui sejam questões de atividade é indicado por
uma série de seções posteriores no livro, nas quais ele critica os
relacionamentos amorosos tradicionais, por sua subordinação das
40 Ver também Za/ZA, II, Das Tarântulas, KSA 4. 128, JGB/BM 202 e 272, KSA 5. 124,
FW/GC 356 e 377, KSA 3. 595, GD/CI, Incursões de um Extemporâneo, 37, KSA 6.
136 e AC/AC 43 e 57, KSA 6. 217. Para uma leitura da filosofia política de Nietzsche
nestes termos, ver Bailey 2010b e 2011.
41 Ver também GS 14 FW/GC 14, KSA 3. 386.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
“vontades” das mulheres. Em tais relacionamentos, escreve ele,
“o jeito do homem é a vontade; o jeito da mulher é a disposição
vontade”, ao passo que “a capacidade [... e] a boa vontade para a
vingança” são necessárias se uma mulher “for capaz de nos segurar
(ou de nos ‘subjugar’, como ele diz)”, e ser “capaz e pronta para o
domínio sobre os homens” é necessário se as mulheres tiverem “almas altivas, heróicas e régias” (FW/GC 68-70, KSA 3. 427). Esses
comentários sugerem fortemente que é a atividade que Nietzsche
pensa ser aproxidamente igual e demonstrada em relacionamentos
amorosos ideais, de forma a impedir formas dependentes de amor.42
As passagens sobre o “indivíduo soberano” em Para uma Genealogia da Moral fornecem, portanto, um indício para uma abordagem crítica mais fecunda da ética kantiana do que oferecem as
objeções explícitas de Nietzsche, o que também informa muito de
sua ética alhures. Em particular, essa abordagem implica que, em
vez de rejeitar completamente a ética kantiana, Nietzsche partilha
de sua afirmação sobre o valor da atividade como tal, mas insiste
que ela concebe mal a igualdade entre agentes porque falha ao não
considerar que a atividade mesma e, por conseguinte, a importância moral dos agentes são uma questão de grau. As melhores críticas de Nietzsche à ética kantiana confirmam-se, assim, igualmente
implícitas e internas.
Conclusão
As observações reprovadoras de Nietzsche a Kant e sua
falta de leitura dos próprios textos kantianos, consequentemente
42 Para uma apresentação mais detalhada dessa leitura dos tratamentos do amor em
A Gaia Ciência, acompanhada de uma leitura correspondente dos encontros de
Zarathustra com os “homens superiores” em Za/ZA, IV, Do Homem Superior, KSA 4.
356, ver Bailey 2010a.
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Bailey, T.
obscurecem abordagens sofisticadas acerca de ambos o idealismo e
a ética kantianos, abordagens que são dinâmicas e frequentemente
implícitas, mediadas por fontes secundárias, por fim irresolutos e
apenas problematicamente aplicáveis a Kant mesmo. Em particular, as abordagens profundas de Nietzsche acerca do idealismo
kantiano, de meados dos anos 1860 a meados dos anos 1870, combinam um interesse em seu potencial terapêutico ou benefícios culturais, enfatizados em seus escritos publicados nesse período, com
uma investigação das dificuldades teóricas, desenvolvida em seus
escritos não publicados, não obstante sem chegar a conclusões definitivas. Em suas últimas obras publicadas, ele procede rejeitando
explicitamente o idealismo kantiano, não apenas pela incoerência
conceitual, insignificância epistemológica e funções psico-físicas e
culturais suspeitas acerca de sua noção de uma realidade inacessível, mas também pela ontologia injustificada e psicologia primitiva
de suas noções de juízo. Entretanto, ele também reformula com
precisão tanto o argumento das noções kantianas de juízo que ele
diagnostica, quanto esclarece sua própria ontologia da “vontade de
potência”. De fato, em seus aspectos igualmente críticos e reformadores, seu tratamento das noções kantianas de juízos parece mais
pertinente às preocupações do próprio Kant do que suas críticas
à noção de uma realidade inacessível. Em suas obras tardias, ele
também aborda a ética kantiana, não somente ao propalar algumas
objeções não convincentes acerca dela, mas também ao desenvolver distantamente uma ética “kantiana” a seu próprio modo – a
qual, enquanto partilhando o valor kantiano de atividade como tal,
difere de Kant ao insistir em graus diferentes de atividade e, assim,
de importância moral. Dessa maneira, ele oferece uma promissora
crítica interna de Kant. A respeito de seu idealismo e sua ética,
portanto, Nietzsche oferece uma série de abordagens críticas intensas, progressivas e sutis acerca de Kant.
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A psicologia moral minimalista de Nietzsche
Abstract: This article explores Nietzsche’s engagements with Kantian
idealism and Kantian ethics. After considering his inconclusive early
engagements with Kantian idealism, the paper argues that in later
rejecting Kantian idealism Nietzsche affirms, rather than denies, that
reality is accessible to us and also overcomes his previous Kantian denial
that we can make judgments about this reality. The paper then argues
that Nietzsche’s explicit criticisms of Kantian ethics are unconvincing,
but that he also developed a ‘Kantian’ ethics of his own. The paper thus
attempts to show that neglected elements of Nietzsche’s engagements
with Kant are more fruitful than those commonly emphasised.
Keywords: Nietzsche – Kant - neo-Kantianism – idealism – ethics - will
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Artigo recebido em 15/10/2010.
Artigo aceito para publicação em 05/11/2010.
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cadernos Nietzche 29, 2011
História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
História e memória
como crença no futuro:
esquecimento e superação
do niilismo em Nietzsche
Danilo Augusto Santos Melo*
Resumo: Os temas da memória e do esquecimento são abordados mais
profundamente por Nietzsche em duas obras separadas por 14 anos.
Apesar da separação temporal, estes temas permanecem estritamente
ligados a uma problemática comum: o advento do niilismo. Assim,
enquanto na Segunda Consideração Intempestiva a vida é escamoteada
pelo excesso de conhecimento histórico, na Genealogia da moral as
forças que julgam e despotencializam a vida se expressam pelas figuras
da má consciência e do ressentimento, doenças da memória. No entanto,
em ambas as obras Nietzsche recorre a duas estratégias próximas para
pensar a superação do niilismo: através do acesso ao elemento a-histórico
e intempestivo que libera o conhecimento dos grilhões do passado, e
pelo esquecimento ativo capaz de livrar a consciência das amarras do
ressentimento e da culpa. Nestas obras, o signo da saúde de uma cultura
e da potência elevada da vida consiste em que o homem possa se instalar
no presente e projetar-se no porvir, isto é, no ponto em que a história e a
memória se expressem ativamente como crença no futuro.
Palavras-chave: História – Memória – Esquecimento – Niilismo Cultura
A. Estava eu doente? Estou agora são?
Quem foi o meu médico?
Como pude esquecer tudo!
B. Agora sim, creio que está são:
Pois sadio é quem esquece (FW/CG 4, KSA 3.354).
* Professor do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes – UCAM.
E-mail: [email protected]
cadernos Nietzche 29, 2011
395
Melo, D. A. S.
Introdução
O problema da memória e do esquecimento foi tratado explicitamente por Nietzsche em duas obras separadas no tempo por cerca
de 14 anos. Na Segunda consideração intempestiva, este problema
é tratado a partir das análises da história, aparecendo sob os termos do “histórico” e do “a-histórico”. Nesta obra, Nietzsche realiza
uma crítica ao historicismo de sua época, dominado pelo racionalismo moderno, denunciando o excesso de conhecimento histórico
como uma doença da modernidade. O homem moderno volta-se
para o excesso de conhecimento histórico ao buscar compreender
racionalmente o real, de modo a se afastar cada vez mais, da ação
e da vida. Ou seja, ao tomar a Vida como o principal critério de
avaliação, Nietzsche pensa a hegemonia da ciência histórica como
uma negação do real, da vida.
Na segunda dissertação da Genealogia da moral, Nietzsche
trata da emergência da memória a partir de relações de forças dada a
necessidade do convívio social. Neste livro, Nietzsche mostra como
o homem era um animal esquecidiço e que, por meio da violência,
foi adestrado para poder responder por suas ações no seio de suas
relações sociais. Nietzsche localiza este processo na pré-história da
cultura, pois o objetivo aí seria a constituição de um tipo ativo ou
nobre de homem, de um homem capaz de fazer promessas e para
isso, dotado de memória. No entanto, no decurso desse processo,
ocorreu uma virada na qual Nietzsche denuncia um domínio de forças reativas. Esta inversão da força dará início ao que Nietzsche
denominou como a miséria da humanidade, o niilismo. Sob o domínio deste, o homem desenvolve uma memória vinculada excessivamente ao passado, e passa a representar a fonte das duas grandes
doenças da humanidade: a má consciência e o ressentimento.
A nossa proposta aqui, portanto, será acompanhar o desenvolvimento que Nietzsche realiza na Genealogia da moral, articulando
as noções de memória e esquecimento com as análises históricas
de sua Segunda consideração intempestiva, pois acreditamos que
396
cadernos Nietzche 29, 2011
História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
nesta obra já se encontram, em forma embrionária, alguns conceitos que ganharão maior consistência naquela de 1887.
Memória e esquecimento na pré-história da cultura
A história da cultura ocidental irá coincidir, para Nietzsche,
com o triunfo das forças reativas associadas à vontade de nada,
cujo primeiro modelo foi o niilismo negativo, associado à emergência do cristianismo e dos valores do além-mundo. No entanto, para
compreendermos como este triunfo foi possível, é preciso investigar o projeto pré-histórico da cultura que antecedeu o momento da
“rebelião escrava da moral”, e cujo objetivo era a produção de um
tipo nobre, de um tipo ativo de homem.
Tal projeto, portanto, coincide com a necessidade da criação de
uma memória como instrumento no processo de adestramento das forças reativas do animal-homem, produzindo um homem capaz de fazer
promessas (GM/GM II 1, KSA 5.291). Pois, em sua pré-história, o homem era um animal a-histórico, que agia instintivamente em resposta
às suas necessidades orgânicas (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.250). Em
seu nomadismo, vagava como um ser esquecidiço e espontâneo, não
possuindo qualquer necessidade de previsão, cálculo ou memorização: seus instintos lhe garantiam as condições de sua sobrevivência,
era o que lhe bastava. Não havia qualquer necessidade de autocontrole ou autoconhecimento em sua vida errante, nada era retido ou
julgado. Ele vivia a-historicamente, pois não possuía memória nem
consciência, de modo que assimilava ou digeria ativamente as suas
experiências. Esquecer era, portanto, sua condição natural.
No entanto, como foi possível criar no bicho-homem uma memória? Por quais meios se produziu uma tal faculdade de reter as
experiências? Como fazer desse animal esquecido um ser capaz
de fazer promessas? Nietzsche nos diz que foram necessárias as
tarefas mais violentas e cruéis para tornar este animal esquecido
capaz de fazer e cumprir promessas. Para isso “é preciso ter boa
cadernos Nietzche 29, 2011
397
Melo, D. A. S.
memória, para poder cumprir as promessas feitas” (MA I/HH I 59,
KSA 2.77). Foi por meio da dor, do sofrimento, do sangue, do fogo,
do martírio, que se produziu um adestramento dos instintos errantes do homem: tal foi a mnemotécnica pela qual se produziu a interiorização de idéias fixas e inesquecíveis. A produção de hábitos
sociais, de leis a que se deve obedecer, a partir da ação do homem
sobre o homem, de um trabalho de si por si mesmo foi o meio pelo
qual se produziu o processo de hominização. Assim, esse animal
no qual o esquecimento é uma força, “desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento
é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve
prometer” (GM/GM II 1, KSA 5.292). Lembrar é, portanto, a capacidade de resgatar uma experiência passada para agir no presente,
para cumprir, no caso, uma promessa ou compromisso feito.
Assim, a memória surge ao mesmo tempo que a história, servindo à vida e ao processo de socialização do homem. Ou seja,
constituída no seio da necessidade de convívio social, a memória
foi produzida como um instrumento por meio do qual se poderia
prever as consequências negativas no conjunto social em que o homem está inserido. Com o adestramento dos instintos, a cultura
irá se fundar a partir da formação da idéia de responsabilidade,
que emerge da relação entre os homens e exige a produção de uma
memória social. Esta produção, portanto, é pensada por Nietzsche
a partir de uma interpretação de caráter econômico, onde se estabelecem relações contratuais entre aqueles que prometiam, ou
seja, que contraiam uma dívida e aceitavam serem cobrados, e seus
credores. Dessa forma, Nietzsche nos diz:
Precisamente nelas (nas relações contratuais) fazem-se promessas; justamente nelas é preciso construir uma memória naquele que
promete. O devedor, para infundir confiança em sua promessa de
restituição, para garantir a seriedade e santidade de sua promessa
(...) por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de
não pagar algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder,
398
cadernos Nietzche 29, 2011
História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida, (...) o
credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações
e torturas (GM/GM II 5, KSA 5.298-299).
Nesta relação entre credor e devedor o castigo é o meio de
compensação a um dano sofrido, de modo que a qualidade e intensidade do castigo devem ser equivalentes ao dano causado, reforçando as lembranças de que cada um é responsável por suas
forças reativas (esquecimento) e que o dano é pago com a dor e o
sofrimento; ou seja, “qualquer dano encontra o seu equivalente e
pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor de seu
causador” (GM/GM II 4, KSA 5.298). A compensação consiste,
portanto, em um convite e um direito à crueldade, de modo que
“a equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de
algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao
credor como reparação e recompensa – a satisfação de quem pode
livremente descarregar seu poder sobre um impotente, a volúpia
de ‘faire le mal pour le plaisir de le faire’, o prazer de ultrajar”
(GM/GM II 5, KSA 5.299-300).
Assim, a cultura se revela como o exercício de uma atividade
formadora cujo produto é o homem livre e ativo, que pode prometer,
gerir suas reações, suas forças, de modo que credor e devedor devem tornar-se soberanos e legisladores de si próprios no fim deste
projeto. Por outro lado, o castigo representa apenas o meio pelo
qual o homem pode medir progressivamente a aptidão das forças
reativas de serem acionadas. Dessa forma, este projeto tinha como
objetivo formar um tipo ativo de homem cuja atividade seria a de
constituir valores que afirmassem a vida, que a exaltasse.
No entanto, é preciso que compreendamos o que Nietzsche
denominava como vida, que vida era essa que ele pregava a sua
afirmação. Na Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche nos
diz que a vida é um “poder obscuro, impulsionador, inesgotável
que deseja a si mesmo” (HL/Co. Ext. II 3, KSA 1.269). Em outras
cadernos Nietzche 29, 2011
399
Melo, D. A. S.
palavras, vida significa instinto de dominação, desejo de expansão, vontade de agregação de mais poder, de exploração, enfim,
a vida é vontade de potência, é força ativa e atuante, é vontade
de perseverar, de repetir-se, criando, para isso, uma memória do
futuro. “A vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do
que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas
próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração”
(JGB/BM 259, KSA 5.207). Para Nietzsche, a exploração não é
própria de uma vida corrompida, mas faz parte da essência do que
vive, como uma função orgânica básica, pois é consequência da
própria vontade de potência, que é precisamente vontade de vida.
Esse ponto de vista em que se insere o conceito de vontade
de potência pressupõe, entretanto, que o plano da realidade seja
compreendido não como um conjunto de formas estratificadas, mas
como uma pluralidade de forças em relação, cuja tendência seria a
dominação, a sujeição de umas sobre as outras. Neste sentido, todo
corpo, todo acontecimento que se constitui como fato, deriva de
uma tal relação de dominação, que devemos pensar como temporária, já que as coisas existentes não param de mudar, de modo que a
manutenção de um determinado domínio de forças é índice de um
embate que continua, de uma tensão constante. Devemos, portanto,
considerar este plano das forças como o meio microfísico a partir do
qual emergem os valores morais, as composições as mais diversas,
sejam elas de ordem física, biológica ou social. No entanto, o tipo
das forças que dominam uma determinada composição pode ser
avaliado como um elemento ativo ou afirmador da vontade, ou como
um elemento reativo ou negador da vontade.
Enfim, a vontade de potência representa precisamente o “verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do
poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação” (FW/CG 349, KSA 3.585). Assim, um corpo vivo,
e não moribundo, deverá ter “a vontade de potência encarnada,
quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio –
não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas por
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cadernos Nietzche 29, 2011
História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
que vive, e vida é precisamente vontade de potência” (JGB/BM
259, KSA 5.208). Neste sentido, Nietzsche afirma que “seria preciso saber exatamente qual o tamanho da força plástica de um
homem, de um povo, de uma cultura; penso esta força crescendo
singularmente a partir de si mesma, transformando e incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma as formas partidas”
(HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.251).
O advento do Niilismo
Porém, o meio pelo qual este projeto se constituía foi degenerado, distorcido por forças negadoras da vida, dando origem à primeira forma do niilismo, o niilismo negativo, que se utilizou dos
meios constituintes da cultura para criar uma domesticação, uma diminuição, um embotamento das forças transformadoras do homem,
um envergonhamento do homem pelo próprio homem, por seus instintos, por seu poder criador. Ou seja, na medida em que uma vida
se abstém de toda ofensa, da violência, da exploração mútua, equiparando sua vontade à do outro, sua vontade deixa de ser vontade
de afirmação para se definir como vontade de negação da vida.
É segundo este princípio, portanto, que tem início a história
da humanidade, uma história produzida sob o domínio das forças
reativas cuja atividade consiste em negar a própria força vital impulsiva. A vida, enquanto vontade de negação real e efetiva, não
se limita a dizer Não, a querer Não, mas também a fazer o Não.
É então neste sentido que Nietzsche nos fala desta degeneração
da qualidade da vida como a última grande rebelião de escravos,
“a grande revolta contra a dominação dos valores nobres”, como
uma “tresvaloração de todos os valores em algo hostil à vida, daí a
moral... Definição da moral: Moral – a idiossincrasia dos décadents,
com o oculto desígnio de vingar-se da vida – e com êxito” (EH/EH,
Por que sou um destino 7, KSA 6.373). Assim, no lugar da atividade
cadernos Nietzche 29, 2011
401
Melo, D. A. S.
que produz a cultura, vemos surgirem Morais, Igrejas e Estados, organizações sociais de caráter reativo cujo objetivo é conservar, produzir uma memória voltada tão somente para o passado. Ou seja, a
tarefa da memória, quando dominada pelo niilismo, passa a ser a de
organizar e propagar as forças reativas.
Assim, quando as forças reativas se apoderam da cultura,
os procedimentos de adestramento são utilizados com o objetivo
de enfraquecer nos homens sua vontade de expansão da vida, de
torná-los sofredores e escravos; enfim, de formar rebanhos. Sob
este domínio, a relação credor-devedor ganha uma outra configuração, na qual o devedor recebe um estatuto de “infrator”. Dessa
forma, não bastando apenas ser castigado para quitar sua divida
finita, o devedor sofre um processo de “interiorização” do dano
causado, transposto na forma de sentimento de culpa. De tal modo
que, além de sua dívida material, o devedor passa agora a carregar
consigo uma “dívida infinita”.
O niilismo negativo representa o momento em que se instaura o
poder religioso, pois ele inverte as relações e os valores dos meios
de produção da cultura, cria o ressentimento e a má consciência,
e instaura a vontade de um além-mundo. Na relação entre os homens, é colocada a falta no lugar da dívida, que faz o devedor se
sentir culpado pelo dano cometido, torna o homem inapto a agir
suas próprias forças, de modo que ele deve se envergonhar delas e
escamoteá-las, deve ter nojo de sua crueldade e de seus instintos.
Vemos, portanto, que a crueldade não se extinguiu nesta primeira
forma do niilismo, mas tornou-se espiritualizada e divinizada, foi
transposta para a consciência através das noções de culpa, pecado,
juízo final etc. Dessa maneira, Nietzsche nos diz que “quase tudo
a que chamamos ‘cultura superior’ é baseado na espiritualização e
no aprofundamento da crueldade – eis a minha tese; esse ‘animal
selvagem’ não foi abatido absolutamente, ele vive e prospera, ele
apenas – se divinizou” (JGB/BM 229, KSA 5.166).
Os seus frutos são o “ressentimento” e a “má consciência”: de
um lado, o ressentimento representa uma forma de ativar a memória,
402
cadernos Nietzche 29, 2011
História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
de maneira que aquele que sofre um dano nunca esquece, sempre
rumina e elabora seu plano de vingança contra o outro; de outro,
a internalização do ressentimento cria uma mudança de sentido:
o sentimento de vingança antes voltado para fora, para o outro, se
volta agora para o próprio ressentido, transformando-se em sentimento de culpa. Portanto, aquele que antes colocava o motivo da
sua dor nos outros, encontra agora em si mesmo o culpado, e a
consciência de sua própria culpa se transforma em má consciência. Assim reduzida a vida terrena a este mar de culpa, de dor e
de sofrimento, os valores predominantes deste período pregavam
a anulação dos instintos do homem, a luta contra os impulsos humanos, a diminuição da vida terrestre como modo de alcançar uma
vida melhor num mundo além deste, uma vida harmoniosa e livre
de impurezas no reino dos céus.
Niilismo e conhecimento histórico
Na modernidade, um processo de crescente esvaziamento dos
valores, denominado por Nietzsche como “a morte de Deus”, marca
o momento da segunda transmutação do niilismo, o niilismo reativo.
O homem matou Deus, numa reação a todos os valores divinos,
e colocou-se em seu lugar, instalando a era humanista. No lugar
de Deus é colocado o homem reativo, cuja marca é a negação de
todos os valores extra-humanos, um homem que diz não, que se
rebela contra todos os valores da velha tradição, que tenta quebrar
as velhas tábuas do passado, “leão” destruidor dos valores divinos,
negador de toda possibilidade de superioridade acima de seus próprios valores. No entanto, a vida do homem reativo é incapaz de
criar novos valores, presa que está a tudo o que nega, de modo que
a vontade deste homem reativo se configura como uma vontade de
nada, uma vontade de negar.
É, portanto, neste momento, que Nietzsche situa o problema
da história, de modo que as categorias de memória e esquecimento
cadernos Nietzche 29, 2011
403
Melo, D. A. S.
aparecerão sob os termos do histórico e do a-histórico. Este momento corresponde ao auge do cientificismo no século XIX, da
busca compulsiva pelo passado histórico dos fatos, por uma vontade
de saber que afasta o homem cada vez mais da vida e da ação. Assim, o historicismo moderno é regido pelo dogma da ciência, tendo
o racionalismo como critério hegemônico na construção do saber.
É neste período que Nietzsche identifica a busca do homem por
um excesso de história, por uma tentativa enlouquecida de querer
compreender o real, dominar o real através do seu conhecimento
mais profundo. Na busca desta profundidade, o homem escava
até o mais longínquo a história de um fato, não deixando passar a
menor informação possível. Com isto, o conhecimento passa a ser
tomado como finalidade última de si mesmo, o conhecimento pelo
conhecimento, cada vez mais afastado da ação e da vida.
O homem moderno é apresentado por Nietzsche pela imagem
do especialista que escava compulsivamente o passado, buscando
aprofundar seus limites. Nesta operação, portanto, o passado (ou
a história de um fato) é tomado como um dado acabado e, assim,
passível de ser recuperado em sua verdadeira identidade. É neste
sentido que Nietzsche irá considerar a história como uma teologia
disfarçada, pois em sua tarefa arqueológica ela recria a identidade
de um povo, de uma cultura e de uma época. Enfim, a historia é o
que resgata a memória de um passado entendido como soterrado,
mas que se conserva numa forma ideal e guarda em si a verdade
que será desvelada pela luz da razão. Tal tarefa, para Nietzsche,
é inesgotável, pois, por mais que se escave uma camada de fatos,
sempre outras camadas irão surgir por baixo das outras. Assim, o
conhecimento produzido pela história se afasta cada vez mais das
necessidades do presente do historiador, de modo que o passado já
não irá mais servir à vida e à ação.
Este excesso de conhecimento histórico produz, segundo Nietzsche, uma cisão que dará origem a dois pólos: o interior e o exterior. Neste sentido, a compulsão pelo conhecimento preenche
no homem a sua “interioridade”, de modo que ele se orgulha dela
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cadernos Nietzche 29, 2011
História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
como o que ele possui de mais precioso. Do outro lado, a vida, o que
ocorre no exterior, não terá a menor importância para este homem,
de modo que seu conhecimento não se torna ação neste exterior.
Tal é, portanto, a qualidade mais própria a este homem moderno,
e que os povos antigos não conheciam: “a estranha oposição entre
uma interioridade à qual não corresponde nenhuma exterioridade e
uma exterioridade à qual não corresponde nenhuma interioridade”
(HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.272). Em outras palavras Nietzsche nos
diz que “o saber, consumido em excesso sem fome, sim, contra a
necessidade, não atua mais como um agente transformador que impele para fora e permanece velado em um certo mundo interior
caótico, que todo e qualquer homem moderno designa com um orgulho curioso como a ‘interioridade’ que lhe é característica” (HL/
Co. Ext. II 4, KSA 1.272-273).
Com isso, produz-se uma indiferença generalizada na vida do
homem moderno, pois a ânsia de conhecimento faz com que se
perca a valorização hierárquica dos fatos, de maneira que qualquer fato, sendo passível de ser conhecido, não possui mais ou
menos valor do que os outros, todos os momentos adquirindo o
mesmo valor. Para Nietzsche, a perda da hierarquia dos valores
irá criar um desgosto, uma apatia da existência. Tal perda de sentido da existência faz com que o homem passe a não levar nada
a sério, de modo que ele parece não se afetar ou se impressionar
muito pouco com o que ocorre no exterior, tornando-se um ser
de “personalidade fraca” (HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.274). Em outros termos, esta fraqueza da personalidade será denominada por
Nietzsche Vontade de nada. O que vemos na modernidade é, portanto, a expressão do niilismo sob um novo modo de existência, é
mais uma vez o tipo reativo que se apresenta através da figura do
homem de ciência. Sua vontade de negar se manifesta pela excessiva vontade de saber, negando qualquer fato, ou qualquer forma
de pensamento que não tenha como critério primordial a razão.
Sob o crivo da racionalidade, este homem se põe a negar todo e
qualquer princípio que esteja apoiado em valores transcendentais
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Melo, D. A. S.
ou extra-humanos. Além de serem demasiadamente humanos, os
valores não podem fugir aos fundamentos da razão que, por isso
mesmo, deve corrigir toda e qualquer existência conduzida por valores metafísicos. É o homem que aí se coloca como valor superior,
substituindo o velho Deus da tradição metafísica.
O excesso de conhecimento do homem moderno o torna reativo, já que ele, assim procedendo, nega a sua natureza a-histórica
ou esquecidiça. O niilismo como modo predominante de existência impede o homem de sentir a-historicamente, de modo que o
esquecimento é tomado como um erro que põe em risco a razão
como princípio fundamental do conhecimento. O homem aí nada
cria, não faz nascerem novos valores, porque não pode esquecer,
porque está preso às grades da racionalidade que o impele apenas
à compreensão imediata do real, à aplicação de um quadro de
compreensão previamente construído sobre uma realidade inédita
que não para de se constituir. Rebater todo presente e futuro sobre um passado já conhecido, esta é a função da memória e da
história sob o domínio das forças reativas, ou seja, quando a vida
está aprisionada pela suprema falta de valor, pelo niilismo. Daí
o perigo da história para Nietzsche: mumificar a vida. A história
“compreende a vida só para conservá-la, não gerá-la; por isto, ela
sempre subestima o que devém porque não tem nenhum instinto
para decifrá-lo” (HL/Co. Ext. II 3, KSA 1.268), e assim impede a
emergência do novo enquanto tal, sem qualquer forma de recondução ao velho ou já conhecido.
Esquecimento e superação do niilismo
Quando Nietzsche nos diz que a vida padece da doença histórica, devemos entender tal doença como o sintoma decorrente do
domínio do niilismo ou das forças reativas sobre as forças plásticas
e criativas, degenerando e limitando a vida de sua potência de
transmutação.
406
cadernos Nietzche 29, 2011
História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
Não se trata, portanto, de lutar contra a história para que se
liberte a vida. Trata-se, antes, de fazer com que a história venha
servir à vida, e não apenas sufocá-la com seu excesso degenerador.
Desse modo, tanto o modo de sentir histórico quanto o a-histórico,
são importantes à vida de uma época, ou seja, “o conhecimento
do passado, em todas as épocas, só é desejado a serviço do futuro
e do presente, não para o enfraquecimento do presente ou para o
desenraizamento de um futuro vitalmente vigoroso” (HL/Co. Ext.
II 4, KSA 1.271). Nietzsche ainda complementa: “o histórico e o
a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um
individuo, um povo e uma cultura” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.252).
No entanto, a relação entre os sentidos histórico e a-histórico e
a vida deve ser pensada a partir de limiares de intensidades. Pois
não se trata de anular um pelo outro, mas tomá-los a partir de uma
tensão que corresponde à variação de potência em que a vida se
cria. É neste sentido, portanto, que Nietzsche nos diz que “há um
grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo ou
uma cultura” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.250). Este grau ou limiar
corresponde, em sua denúncia, ao excesso que o sentido histórico
ganhou na modernidade em função do domínio das forças reativas,
impedindo, assim, que o elemento a-histórico desta cultura pudesse passar e impingir uma ameaça à sua garantia de conservação. Entretanto, “a cultura histórica só é efetivamente algo salutar
e frutífero para o futuro em consequência de uma nova e poderosa
corrente de vida, do vir a ser de uma nova cultura” (HL/Co. Ext. II
1, KSA 1.257). Portanto, a história sempre estará a serviço da vida
enquanto estiver articulada a um poder a-histórico. Assim, Nietzsche nos assegura da necessidade desta tensão criadora da vida
proferindo que “a ação feliz, a confiança no que está por vir – tudo
isso depende, tanto nos indivíduos como no povo (...) que se saiba
tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo;
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Melo, D. A. S.
que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário
sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico” (HL/Co.
Ext. II 1, KSA 1.251-252).
Dessa forma, a superação do niilismo no modo histórico de
existência a partir do poder a-histórico vai operar um deslocamento
na maneira de nos relacionarmos com o passado. A partir daí, não
mais rebatemos o futuro sobre o passado, impedindo assim que a
novidade venha produzir algum efeito sobre a vida e a ação, mas
passamos a nos servir do passado ao modo de quem se serve de um
alimento poderoso, cujo elemento nutritivo nos impele ao porvir,
numa ação livre e criadora de um modo inédito de viver. A este
alimento selecionado do passado, Nietzsche irá denominar de elemento supra-histórico, pois ele guarda em si tudo aquilo que é grandioso e imperecível em função de uma crença no futuro. Enfim, ao
supra-histórico importam os tipos grandes e intensos que possam
despertar a criação de uma nova possibilidade para o futuro a partir
de sua recuperação no presente. Segundo Nietzsche, alguém que
assumisse o ponto de vista supra-histórico “não poderia mais se
sentir de maneira nenhuma seduzido para continuar vivendo e colaborando com o trabalho da história; (...) aquele alguém estaria
curado do risco de tomar a partir de então a história exageradamente a sério” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.254).
Neste modo de existência, onde o a-histórico e o supra-histórico comparecem como elementos predominantes, o esquecimento
ganha um estatuto positivo, pois vem liberar a memória dos velhos
grilhões que a aprisionavam ao passado e a impediam de compor
com o futuro novos modos de existência, modos de vida não mais
reativos, mas ativos. O esquecimento como atividade irá, portanto,
produzir uma alteração na própria concepção de memória. Assim,
a memória deixará de ser entendida como uma prisão de marcas
de um passado que se conserva, como um simples e passivo “não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida”, passando
a ser considerada como “um ativo não-mais-querer-livrar-se, um
prosseguir querendo o já querido, uma verdadeira memória da
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História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche
vontade” (GM/GM II 1, KSA 5.292). Esta operação do esquecimento, para Nietzsche, coincide com o momento em que podemos
nos instalar no pleno presente, onde possamos responder por nós
próprios como futuro, projetando-nos no futuro. Neste instante, por
fim, a memória configura-se como uma “crença no futuro”, vinculada ao esquecimento e aberta ao por vir.
Abstract: The themes of memory and forgetfulness are approached more
deeply by Nietzsche in two works that are separated by 14 years. Despite
the temporal separation, these themes are related to a common problem:
the coming of nihilism. While in the Second Untimely Meditations life is
pilfered by the excess of historical knowledge, in the Genealogy of Morals
the forces that judge and disable life are expressed by figures of bad
conscience and of resentment, both diseases of memory. In both works,
however, Nietzsche relies on two strategies to ponder the overcoming of
nihilism: the access to an ahistorical and untimely element that liberates
the knowledge of the metal chains of the past, and an active forgetfulness
capable of liberating the conscience from the cables of resentment and of
blame. In these works the sign of the health of a culture and of the high
potency of life consist in the man that can settle in the present, yet be
projected into the future; in other words, this is the point in which history
and memory are active expressions of a faith in the future.
Keywords: History – Memory – Forgetfulness – Nihilism - Culture
referências bibliográficas
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7. _____________. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para
a vida. Tradução: Marco Antônio Casanova.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
Artigo recebido em 10/07/2011.
Artigo aceito para publicação em 25/07/2011.
410
cadernos Nietzche 29, 2011
Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
Nietzsche e Sartre:
bárbaros da modernidade
Marcelo S. Norberto* **
Resumo: Este ensaio pretende refletir sobre a peculiar relação entre
Nietzsche e Sartre. Das acusações infames de Sartre sobre a pseudorelevância filosófica de Nietzsche aos pontos confluentes encontrados
a partir da análise dos textos “David Strauss: sectário e escritor” e “O
que é literatura?”, surge a possibilidade de uma nova compreensão desta
afinidade existencial, para além dos aparatos conceituais de cada autor.
Palavras-chave: cultura inautêntica - extemporaneidade - agir filosófico
– espelho existencial
É a nossa época que não tem estilo, ninguém ousa confessá-lo,
mas a própria idéia de estilo tornou-se estranha, vai-se então para a
linguagem pastiche, as combinações de empréstimo (Paul Válery).
Nada mais temerário na filosofia do que tentar aproximar dois
pensadores autônomos. O esforço de encontrar semelhanças em
filosofias distintas quase sempre é recompensado com o enfraquecimento de ambas, transformando o que era antes vigoroso em
uma massa disforme e sem viço. É preciso ter um grande objetivo,
uma necessidade incontornável para que valha a pena o risco de
perder a vitalidade do pensamento em questão. O perigo se torna
maior quando um dos autores explicitamente desqualifica o outro.
Como se já não bastasse a angústia de incorrer no problema citado, surge uma nova ameaça: ser flagrado em plena manobra
intelectual de caráter grosseiro; o que só evidenciaria a incapacidade do pretenso mediador.
* Este ensaio é dedicado à minha mãe in memoriam.
** Doutorando em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio) e professor convidado do curso de especialização em
Filosofia Contemporânea (PUC-Rio/CCE). E-mail: [email protected].
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Norberto, M. S.
Em certa medida, esta é a situação de quem almeja aproximar
Nietzsche de Sartre. Nas poucas referências produzidas pelo pensador francês, é claro o seu conhecimento da obra nietzschiana1,
tanto quanto o desprezo por sua falsa relevância filosófica. De duas
minguadas citações em “O ser e o nada”, sendo uma de natureza
quase que literária2, à acusação contundente no ensaio sobre Brice
Parain3, Sartre deixa claro sua opinião sobre Nietzsche4.
Temos também os textos marginais. O mais simbólico é o ensaio
perdido5 em que Sartre teria elevado Nietzsche ao Olimpo literário
na companhia de Baudelaire, Genet e Flaubert. Além deste ensaio,
há a novela “Une défaite”, na qual Sartre se inspira nas figuras
de Wagner, Cosima e Nietzsche. O personagem do filósofo alemão
reflete o temperamento do jovem Sartre. Ainda nas lembranças de
1 “Mais uma reviravolta se dá nos anos de 1920. O interesse pelo filósofo
2
3
4
5
então ressurge com jovens intelectuais, como Jean-Paul Sartre, Simone de
Beauvoir, Paul Nizan, Henri Lefebvre, Georges Bataille. Eles se voltam para
as suas obras, frustrados com as correntes kantiana e bergsoniana que dominavam a filosofia francesa” Cf. MARTON, S. Voltas e reviravoltas - acerca da
recepção de Nietzsche na França. In: Nietzsche, um “francês” entre os franceses. São Paulo: Editora Barcarolla; Discurso Editorial. 2009, p.26.
“Mas se nos desvencilharmos do que Nietzsche chamava ‘a ilusão dos trás-mundos’, e não acreditarmos mais no ser-detrás-da-aparição, esta se tornará, ao contrário, plena positividade, e sua essência um ‘aparecer’ que já não
se opõe ao ser, mas, ao contrário, é a sua medida.” Cf. SARTRE, J-P. O ser e o
nada - ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Editora Vozes. 2005,
p.16.
“Nietzsche não é filósofo”, “frivolidades”, referindo-se ao livro “Vontade de
poder” Cf. SARTRE, J-P. Ida e volta. In: Situações I - críticas literárias. São
Paulo: Editora CosacNaify. 2005, p.222.
“(Nietzsche) terá sempre sucesso com aqueles que preconizam a forma à troca de idéias” Cf. SARTRE, J-P. Carnet Midy. In: Écrits de Jeunesse. Contat,
Michel et Rybalka, Michel (org.). Paris: Éditions Gallimard. 1990, p.471
(minha tradução).
Cf. RIDER, J. Nietzsche en France - De la fin du XIX siècle au temps présent.
Paris: Presses Universitaires de France. 1999, p.137 e Cf. BEAUVOIR, S.
A cerimônia do adeus - seguido de Entrevistas com Jean-Paul Sartre. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1982, p.251.
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
Raymond Aron6, há a influência de Nietzsche nos primeiros esboços sartrianos, nos tempos da École Normale, das noções de contingência e na distinção entre para-si e em-si7.
Nenhuma destas menções elucidam o caso. Nietzsche é tomado
como uma inspiração secundária8. É a influência da literatura na
filosofia, e não da filosofia reverberando na própria filosofia, como,
por exemplo, Sartre com Hegel, Husserl ou Heidegger.
É preciso romper com rejeição externada pelo intelectual francês para que o obscuro, o inaudito possa emergir. Não adianta, por
exemplo, analisar a passagem que Sartre recorre à noção do eterno
retorno para explicar Jean Genet em “Saint Genet”, pois, novamente, seguiremos o rastro deixado em que o final já é previsível: a
literatura fornecendo subsídios para que a filosofia brilhe.
Não se trata de recriminar tal prática, mas, se almejamos encontrar uma afinidade filosófica entre os dois autores, não é cabível
retroceder a esta inspiração literária. É necessário então buscar
becos menos iluminados, trilhas mais abandonadas, confronto de
textos inesperados, situações em que os autores possam parecer
mais vulneráveis, menos protegidos com sua artilharia teórica, enfim, mais propícios a novos diálogos, sendo quase que obrigados
a responderem no calor da aproximação inusitada. Este é o solo
cobiçado para tal empreitada. Para este fim, ou seja, uma tentativa de encontrar uma abertura, uma possibilidade de repensar esta
6 Cf. LÉVY, B-H. O século de Sartre - inquérito filosófico. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira. 2001, p. 147.
7 Ainda há algumas citações em “Carnets de la drôle de guerre”, “Cahiers
pour une morale” e no “Carnet Midy”, obras inacabadas e publicadas
postumamente.
8 “Ele (Nietzsche) é um poeta que teve a infelicidade de ser confundido com
um filósofo” Cf. SARTRE, J-P. Carnet Midy. In: Écrits de Jeunesse. Contat,
Michel et Rybalka, Michel (org.). Paris: Éditions Gallimard. 1990, p.471
(minha tradução).
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Norberto, M. S.
relação, utilizaremos como foro por mim privilegiado a primeira
intempestiva de Nietzsche, “David Strauss: sectário e escritor”, de
1873, e o ensaio sartriano “O que é literatura?”, de 1947.
*
*
*
Num momento de euforia germânica, surge um jovem professor de filologia irritado com a pequenez de uma Alemanha que se
contenta em ser grande. Para ele, vitórias militares, imposições
territoriais ou mera diversidade cultural não constituem uma civilização invejável. É preciso uma cultura autêntica que dê unidade
à multiplicidade da vida para que um povo se torne digno de júbilo
e de triunfo.
É a partir desta análise que Nietzsche resolve escrever ensaios
de intervenção, as “Considerações Intempestivas”. Do projeto inicial, foram realizadas somente quatro “Considerações”, das quais
iremos privilegiar a primeira extemporânea. Nesta primeira intervenção, Nietzsche se propõe a analisar o escritor David Strauss e
sua obra “A antiga e a nova fé”. Porém, por meio desta proposta
inicial, Nietzsche realiza uma dura crítica à cultura alemã contemporânea, especialmente ao erudito desta pseudo-civilização, chamado no texto pela alcunha de filisteu culto.
Ao contrário do que a imprensa e os ilustrados da época pregavam9, Nietzsche identifica na Alemanha um enfraquecimento do
pensamento, um esvaziamento da vitalidade cultural de seu país10.
9 “Depois da guerra, essa tropa é só felicidade, gravidade e confiança em si”
(DS/Co. Ext. I, 1, KGW 3.157).
10 “Aí está o que deveríamos todos saber a nosso respeito; por isso um dos raros
homens que tinha o direito de recriminar os alemães falou publicamente:
‘Nós, alemães - dizia um dia Goethe a Eckermann, somos de ontem’” (DS/Co.
Ext. I 1, KGW 3.160).
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
A confusão feita entre uma vitória militar e uma superioridade
artística já diz muito sobre a má-compreensão do que seja uma
cultura admirável e altiva.
Torna-se urgente, para Nietzsche, destruir a discutível sensação de plenitude que os alemães passaram a ter, a fim de salvar a
sociedade germânica do empobrecimento completo. Ao se recusar
a compartilhar desta excitação desmedida e injustificável, o filósofo alemão se coloca em uma posição privilegiada para repensar
seu tempo e descortinar o véu que cegava seu povo.
Em 1947, um outro pensador se depara com um cenário inquietante. Dois anos depois de criar a revista cujo o título já demostrava o seu comprometimento com uma nova era11, Sartre se
sente impelido a se colocar à contracorrente, a ser aquele que polemiza com o status quo francês. O bem em perigo é a literatura e
os “visigodos” em questão são os distintos escritores franceses. O
anseio pela pureza na arte da escrita, homens desejosos de serem
clérigos12, confusão entre poesia e prosa e a recusa de comprometimento no escrever são alguns dos equívocos que introduziram uma
debilidade na força vital da linguagem.
Em nome de valores eternos, de signos abstratos como a liberdade, justiça e razão, os eruditos renegam a vida, a sua época
e produzem assim uma concepção desencarnada de literatura13.
Esta desordem passa a ser introjetada pelo escritor ilustrado, que
não sabe mais qual é o seu lugar no mundo: “o homem de letras
escreve enquanto se batem; um dia, tem orgulho nisso, sente-se
11 “Les Temps Modernes” é uma evidente homenagem ao filme de Charles
Chaplin.
12 Em francês, “clerc” significa tanto clérigo letrado medieval quanto um tipo
de intelectual moderno.
13 Nietzsche já havia denunciado este escapismo erudito: “São palavras belas,
solenes, reluzentes, tilintantes: honestidade, amor à verdade, amor à sabedoria, sacrifício pelo conhecimento, heroísmo do que é veraz (...) essa digna
pompa verbal é parte do velho enfeite-mentira, poeira e purpurina da inconsciente vaidade humana” (JGB/BM 230, KGW 6.175).
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depositário e guarda dos valores ideais; no dia seguinte, sente vergonha disso, pensa que a literatura se assemelha muito a um modo
de afetação especial”14.
Esta desorientação é um terrível risco para a literatura do século XX. O suposto erudito, crítico por profissão e por desespero15,
contribui para que “se leia mal, afoitamente, e se julgue antes de se
compreender”16, levando a um dilaceramento do nobre tecido que
aproxima os homens no espetáculo literário. Em termos sartrianos,
esta prática introduz uma opacidade no seio da arte literária, contaminando as palavras e adoecendo a linguagem. Era preciso reagir!17
Os dois autores possuem oponentes definidos: o filisteu culto
e o crítico literário. Para a compreensão destas figuras apresentadas por Nietzsche e Sartre como aqueles que perpetraram práticas
detestáveis em suas épocas, é preciso entender que são personagens criados (tipos) e, portanto, representantes de um conceito do
que seja cultura.
O filisteu culto não se trata de uma mera variação do filisteu
historicamente entendido: não é o burguês ignorante, incapaz de
reconhecer a sutileza da arte, mas, ao contrário, aquele tido como
filho da cultura, intelectuais e artistas que se julgam superiores,
porém incapazes de atribuir unidade de estilo ao seu fazer cultural (DS/Co. Ext. I, 2 KGW 3.160-165). Da mesma forma, o crítico
14 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações
II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.10.
15 “O crítico vive mal; sua mulher não o aprecia como seria de se desejar, seus
filhos são ingratos, os fins de mês são difíceis. Mas ele ainda pode entrar na
sua biblioteca, apanhar um livro na estante e abri-lo. Do livro escapa um
leve odor de porão, e tem início então uma estranha operação que ele decidiu
chamar de leitura” Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora
Ática. 2004, p.24.
16 ibid., prefácio.
17 “Não queremos ter vergonha de escrever e não sentimos a necessidade de
falar para não dizer nada” Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les
Temps Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América.
1968, p.11.
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
de Sartre não é simplesmente o representante da crítica literária,
função esta exercida pelo próprio Sartre em diversos ensaios. É o
homem erudito que renega a vida e se esconde atrás de um papel
social respeitável para matar um pensamento potente.
Em ambos os casos, do filisteu culto ao crítico literário, a cultura está entregue ao seu maior inimigo. Enquanto a cultura em geral, ou a literatura, deveria ser um espaço propício para que o novo
surgisse, para que a vida adquirisse uma dimensão mais essencial,
humana, seus detratores dissimulados acabam por silenciá-la e
podá-la de qualquer fagulha de vitalidade.
Para Nietzsche, aquilo que é produzido e fomentado pelo filisteu culto não se assemelha, nem vagamente, a uma cultura dita
vigorosa, a não ser no vigor com que estes bárbaros “rejeitam todo
estilo cultural e artístico rigoroso” (DS/Co.Ext.I 11, KGW 3.217).
Um cenário cultural digno de orgulho não se caracteriza pelo acúmulo de informações nem pela variedade de técnicas artísticas18.
É fundamental haver aquilo que o filósofo alemão denomina
de unidade de estilo. Esta exigência máxima e necessária é um
querer que dá forma às diferenças e imprime uma expressão à
cultura. Este é o caráter plástico exigido por Nietzsche. A força
plástica não se reduz a uma forma estética, mas abarca toda uma
vontade que possua um enfoque criador, permitindo o surgimento
de uma outra natureza para o homem: a cultura. Fora deste panorama, o que há é uma perda das distinções em favor de uma multiplicidade desconexa, de meros dados dissonantes que resultam
18 “O alemão acumula em torno de si as formas, as cores, os produtos e as
curiosidades de todos os tempos e de todos os climas e cria assim essa carnavalesca confusão que seus intelectuais se encarregam em seguida de estudar
e definir como a ‘essência do moderno’, enquanto que ele próprio permanece
tranquilamente sentado no meio desse tumulto de todos os estilos” (DS/Co.
Ext. I 1, KGW 3.159).
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numa barbárie, em um caos de signos e gestos, sobre os quais o
filisteu culto aproveita para gerar artificialmente uma marca de
sofisticação e de modernidade19.
No caso francês, a questão incontornável é o engajamento próprio da linguagem. Ao recorrer à linguagem, o escritor faz com que
as palavras sejam engendradas de sentido no exato momento da
nomeação, gerando um comprometimento inerente e imediato com
o dizer. Quem escreve jamais será uma Vestal ou um Ariel, pois “todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja
muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe”20.
A noção de engajamento tratada em “O que é literatura?” extrapola uma simples exigência política, adquirindo uma natureza
metafísica. O pensador francês se refere a um caráter próprio da
linguagem, uma habilidade singular da escrita que, ao se iniciar,
produz “uma transmutação contínua do real em irreal e do irreal em
real”21, atribuindo ao escritor um engajamento que se desprende
até mesmo de suas intenções iniciais. Ao transformar as figuras
do mundo, o autor está “metido no caso, faça o que fizer, marcado,
comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento”22. Assim, negar o engajamento é negar a própria linguagem. Tentar
escrever fora deste registro é agir como “uma criança, ao acaso,
fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir tiros”23.
19 “De fato, essa marca uniforme que nos impressiona em todos os alemães
instruídos de hoje não constitui uma unidade a não ser pela exclusão e negação consciente ou inconsciente de toda forma artística fecunda e de todas as
exigências de um verdadeiro estilo” (DS/Co. Ext. I, 2, KGW 3.162).
20 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações
II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.11.
21 Cf. BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 1997, p.
188.
22 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações
II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.11.
23 Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.21.
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
Mas este não é o único intento do crítico literário. Ele deseja
mais: quer não só esvaziar a escrita como também lavá-la até não
sobrar um só grão de vida em sua prosa. Estes moradores de cemitérios24 buscam petrificar o pensamento dos autores mortos,
lançando mão de classificações abstratas (pessimistas, idealistas,
moralistas, etc.), quando não recorrem à empobrecedora análise
estrita da dimensão histórica, amortecendo o impacto dos pecados
do viver. É deste modo que os críticos constituem um novo “mundo
desencarnado que o rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem mais, passaram à categoria de afeições
exemplares, em suma, de valores”25. Tendo esmaecido a força dos
verdadeiros textos clássicos26, os críticos passam a atacar os ainda
vivos, pedindo para que eles “não se agitem demasiadamente, e
que se empenhem desde já em se parecer com os mortos que futuramente serão”27.
Esta ligação estreita com a morbidez, este fascínio pela necrofilia, é um traço marcante também nos filisteus cultos. Nada mais
nutritivo para um filisteu da cultura do que digerir pensadores vigorosos. Sua alegria é evidente e seu prazer indisfarçável28. Até aqueles autores aparentemente eleitos por esta cultura bárbara como
24 “É preciso lembrar que a maioria dos críticos são homens que não tiveram
muita sorte na vida, e que quando já estavam à beira do desespero, encontraram um lugarzinho tranquilo como guarda de cemitério» (ibid., p.24).
25 Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.25.
26 Nietzsche vislumbra na cultura filisteia esta tentativa de enfraquecer a grandeza dos autores clássico. Contra isso, reage contundentemente: “Fora as
patas!” (DS/Co. Ext. I, 12, KGW 3.225).
27 Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.25.
28 “Um caráter é um belo pensamento para o verme e o verme é um pensamento
horrível para todo ser vivo. Os vermes sonham com um reino celeste sob a
forma de um corpo bem gordo, os professores de filosofia procuram o deles
remexendo as entranhas de Schopenhauer (...) O filisteu à moda de Strauss se
aloja nas obras de nossos grandes poetas e de nossos grandes músicos como
um verme que vive destruindo, que admira devorando e que adora digerindo”
(DS/Co. Ext. I, 6, KGW 3.184).
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dignos de respeito sofrem rasgos e fissuras na vitalidade de suas
obras quando tomados por clássicos ou merecedores de homenagem, pois “tudo isso não passa de pagamento em moeda corrente,
ao que consente o filisteu instruído, a fim de poder ignorá-los no
restante e acima de tudo, a fim de não ser forçado a seguir suas pegadas e a prosseguir suas pesquisas” (DS/Co. Ext. I 2, KGW 3.164).
Este gosto pelo estável e seu prezar pela quietude evidenciam
o incômodo do filisteu culto com as vicissitudes da vida, contra sua
natureza contingente e seu caráter mutante. Nada mais marginal a
uma cultura bárbara do que a desmedida. É preciso o decoro e a
postura típica das belas almas. Por isso, “rejeitam (...) essa confusão de filósofos delirantes e incongruentes, com suas teorias históricas extravagantes e tendenciosas, (...) essas aberrações poéticas
engendradas na embriaguez, pois o filisteu não pode realmente
permitir-se um excesso” (ibid. ibidem). Portanto, estes bárbaros,
no comando da cultura, atuam incessantemente na busca de aplacar qualquer tipo de abuso. Dentro dos seus escritórios de estudo,
constroem novas interpretações a fim de suavizar formas do pensar
que ainda insistam em romper com a harmonia da doçura do viver29.
A tranquilidade é o ar que respira o crítico literário. Para Sartre, este andar compassado, esta prudência cultivada são frutos de
um descaso proposital com o tempo presente. O erudito queria ser
um homem do futuro e assim se ver livre de todas as exigências de
sua época. Ele quer manter suas luvas limpas, tão puras quanto a
arte a que ele se dedica30. Deste jeito, acabam por transformar suas
29 “Os mesmos filisteus satisfeitos se apoderaram também, sempre para salva-
guardar sua quietude, da história e procuraram transformar todas as ciências
que ainda ameaçavam perturbar sua satisfação, particularmente a filosofia e
a filologia clássica, como disciplinas históricas. Pela consciência histórica,
eles se garantem contra o entusiasmo” (DS/Co. Ext. I, 2, KGW 3.165).
30 “Nossos críticos são como hereges cátaros: não querem ter nada a ver com
o mundo real, salvo comer e beber, e já que é imperiosamente necessário
conviver com os nossos semelhantes, decidiram fazê-lo com os defuntos” Cf.
SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.25.
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cadernos Nietzche 29, 2011
Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
bibliotecas em locais assépticos, protegidos da vida tanto quanto os
cemitérios são avessos aos vivos (“Deus sabe o quanto os cemitérios são tranqüilos: os mortos estão lá!”31).
*
*
*
Só por leviandade é possível afirmar haver uma comunhão teórica entre as figuras do filisteu culto e o crítico literário. O primeiro
personagem se refere a um tipo que se julga ser predileto das musas, um intelectual artista, produtor de variedades, miscelânea esta
tomada irresponsavelmente por cultura. Já o crítico literário é um
comentarista, um resenhista de obra alheia, atribuidor de valor do
trabalho de outrem. É aquele que analisa e qualifica a produção
artística em nome de valores desencarnados.
Buscar também justapor a reivindicação de unidade de estilo
na cultura à imposição de engajamento na linguagem só é possível
através de vistas fracas por parte do moderador32. A unidade de estilo é uma tentativa de dar conta da multiplicidade das expressões
artísticas sem que a cultura decaia para um relativismo populista
ou uma sofisticação afetada. Enquanto o engajamento é um clamor
por uma dimensão ética da linguagem, um apelo ao caráter plural
da literatura.
Posto tais ressalvas, não é admissível negar a percepção de
uma afinidade nos textos expostos aqui. Este sentimento, em verdade, extrapola os ensaios escolhidos para análise. A utilização
de outros escritos de Sartre e Nietzsche, como “O ser e o nada”
31 ibid., ibidem.
32 “Quem pretende servir de mediador entre dois pensadores resolutos con-
dena-se à mediocridade: não tem olhos para distinguir o que é único; ver
semelhanças em tudo é sinal de vista fraca” Cf. Nietzsche apud MURICY,
K. Benjamin e Nietzsche: considerações sobre o conceito de história e a crítica
da cultura. In: Revista Síntese Nova Fase, V.20, n.63. Belo Horizonte. 1993,
p.663 (FW/GC 228, KGW 5.189).
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Norberto, M. S.
e “Genealogia da Moral” ou ainda “Carnets de la drôle de guerre” e
“Ecce homo”, por exemplo, em nada comprometeria esta sensação
de simpatia intelectual. O que sugere, quanto a origem deste parentesco bastardo, algo para além do apartado conceitual de cada autor.
Uma indicação promissora para esta questão é a tarefa que
cada um destes filósofos se impôs de pensar o seu tempo. Para
Sartre, pensar é se lançar no mundo, na vida. Como não há meios
de fugir do presente, o homem deve abraçar sua época33. É desta
forma que o filósofo francês crê ser capaz de intervir em seu tempo:
pensar o presente em nome de um porvir, entretanto não um porvir
em fuga, mas na afirmação de um agora34.
Como não associar uma compreensão de pensamento encarnado, de uma filosofia do presente, com uma postura extemporânea? Nietzsche se faz inatual para ser um melhor crítico do seu
tempo. O presente só floresce para a filosofia quando o pensador
rompe a relação imediata e natural com o tempo. Do contrário, o
homem descobre-se à imagem e semelhança de um fantoche guiado
pelo destino. É através de uma atitude intempestiva, de um distanciamento interessado, que é possível vislumbrar um futuro capaz
de fornecer instrumentos para atacar os equívocos do presente. Em
“Schopenhauer educador”, Nietzsche define a implicação do futuro
no presente em seu agir extemporâneo:
Mas, ainda que o futuro não nos deixasse qualquer esperança,
a singularidade da nossa existência neste momento preciso é o que
nos encorajaria mais fortemente a viver segundo a nossa própria
lei e conforme a nossa própria medida: quero falar sobre este fato
33 “(A nossa época) talvez não seja a melhor, mas é a nossa, temos apenas
esta vida para viver” Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps
Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968,
p.12.
34 “É o futuro da nossa época que deve ser o motivo dos nossos cuidados: um
futuro limitado que mal se distingue - porque uma época, como um homem,
é antes de mais nada um futuro” (ibid., p.18).
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
inexplicável de vivermos justamente hoje, quando dispomos da extensão infinita do tempo para nascer, quando não possuímos senão
o curto lapso de tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele,
porque razões e para que fins, aparecemos exatamente agora. Temos de assumir diante de nós mesmos a responsabilidade por nossa
existência, por conseguinte, queremos agir como verdadeiros timoneiros desta vida, e não permitir que nossa existência pareça uma
contingência privada de pensamento (SE/Co.Ext.III 1, KGW 3.335).
Os ecos deste testemunho parecem ressoar nas palavras de
Sartre no “Les Temps Modernes”:
Não queremos olhar o nosso mundo com os olhos do futuro, o que
seria o meio mais seguro de o matar; queremos vê-lo com os nossos
olhos de carne, com os nossos verdadeiros olhos perecíveis. Não queremos ganhar o nosso processo em apelo e não queremos uma reabilitação póstuma: é agora e ainda em vida que os processos se ganham
ou se perdem (...) (porque) não é perseguindo a imortalidade que
nos tornaremos eternos: não seremos absolutos por termos refletido
nas nossas obras alguns princípios desencarnados, suficientemente
vazios e nulos para passarem de um século ao outro, mas porque
combatemos apaixonadamente na nossa época, porque amamos com
paixão e porque decidimos perecer completamente com ela35.
Enfim, a influência filosófica de Nietzsche em Sartre não é
identificada por conceitos ou recuperação de temas tratados, mas
sim por um agir, por uma maneira de se portar no mundo, atitude
que acaba por condicionar todo um pensamento filosófico.
Contudo, houve uma mudança. A multiplicidade se desgarrou da vida e se tornou um mérito em si mesma e uma nova ordem foi estabelecida. A prática de um jeito, de um fazer filosófico,
35 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações
II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.14.
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Norberto, M. S.
criticado por Nietzsche e Sartre, antes taxada de barbárie, criou
raízes e tornou-se expressão dominante. Longe desta tragédia pôr
fim às batalhas. Apenas os nossos autores foram obrigados a trocarem de trincheiras. Aquele agir não era mais cultuado, mas tido
como marginal ao processo vigente. Aquilo que era degenerado assumiu a face do instituído e respeitado, e aqueles que desafiavam o
seu poder, tornaram-se bárbaros. Perante sua contemporaneidade,
tanto Nietzsche quanto Sartre incorporaram os valores bastardos
com o intuito de confrontar seus iguais e de transformar suas épocas, civilizações empobrecidas pelo aviltamento da própria noção
de homem e de cultura.
Se, por ingenuidade, possa parecer pouco este agir filosófico
ser o constitutivo desta relação filosófica entre Sartre e Nietzsche,
é somente pelo leitor desconhecer o quanto sui generis é a empreitada intelectual destes bárbaros da modernidade. Nada poderia ser
mais concreto do que esta influência existencial, esta aproximação
quase que corpórea. Afinal, a única herança possível que um andarilho pode deixar a outro é o movimento do próprio corpo, sua
inquietude frente à mesmice. O único espólio a ser reclamado por
um bárbaro é o seu desejo por dilacerar o estabelecido sob bases
ilusórias; é o martelo rumo àquilo cristalizado pela inércia. Entender o parentesco de Sartre com Nietzsche ganha relevo a partir
deste cenário contemporâneo.
O segredo do agir sartriano, o seu encanto é esta inspiração
pouco consciente de Nietzsche, este ímpeto perante a vida deixado
pelo filósofo alemão. De certa forma, Sartre é um nietzschiano pelo
avesso, solto das amarras conceituais de sua inspiração, livre então
para refletir, à sua maneira, o seu próprio tempo.
Neste sentido, tentar encontrar rastros na obra sartriana de um
Nietzsche mais conceitual ou, em outras palavras, tentar ver Sartre
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
como um intérprete tradicional de Nietzsche é afastar de vez qualquer possibilidade de vislumbrar a espetacular e decisiva contribuição nietzschiana no modo de se portar sartriano36.
A falta de percepção de Sartre quanto à sua dívida com Nietzsche diz menos respeito à uma má compreensão dos preceitos filosóficos do pensador alemão e mais a própria natureza inesperada
deste diálogo, ou seja, a este agir comum, a esta postura existencial.
Esta semelhança sem igualdade é fruto de um espelho existencial. Sartre, ao criticar e menosprezar Nietzsche, acaba por evidenciar a si próprio. O pensador alemão traz à tona aquilo que o
filósofo francês nunca soube aceitar pacificamente em sua história:
sua obsessão pela palavra, seu desejo de se tornar um escritor, seu
gosto pelo estilo, enfim, sua autointitulada “neurose burguesa”37.
Nietzsche surge como imagem refletida daquilo que Sartre sempre
tentou transformar ou superar, mas jamais conseguiu se desvencilhar: a ele próprio.
36 Por isso, apesar do corajoso título concedido a Sartre (“um nietzschiano
inconsciente” – Cf. DAIGLE, C. Sartre and Nietzsche: Brothers in arms.
In: Sartre’s Second Century. O’Donohoe, Benedict and Elveten, Roy (org.).
Newcatle: Cambridge Scholars Publishing. 2009, p.57), Daigle trilha um
caminho oposto do sugerido neste ensaio. Ainda presa a uma minuciosa
pesquisa analítica, a autora de “Le nihilisme est-il un humanisme?” busca
encontrar nas entranhas do corpo conceitual de cada autor um “DNA” que
prove a ancestralidade em questão. De forma bem resumida, Daigle acredita ser possível aproximar o conceito de autenticidade sartriana à noção de
super-homem nietzschiana (“Minha reinvindicação é de que o superhomem
é, essencialmente, o homem autêntico sartriano e vice versa” Cf. DAIGLE,
C. Sartre and Nietzsche: Brothers in arms. In: Sartre’s Second Century.
O’Donohoe, Benedict and Elveten, Roy (org.). Newcatle: Cambridge Scholars
Publishing. 2009, p.70), concluindo que “o autêntico humanismo é, antes de
mais nada, um niilismo” Cf. DAIGLE, C. Le nihilisme est-il un humanisme?
– Étude sur Nietzsche et Sartre. Québec: Les Presses de L’Université Laval.
2005, p.240. Para uma compreensão mais detalhada do percurso trilhado
por Daigle, ver DAIGLE, C. Le nihilisme est-il un humanisme? – Étude sur
Nietzsche et Sartre. Québec: Les Presses de L’Université Laval. 2005
37 Esta expressão passa a ser recorrente nas diversas entrevistas concedidas
por Sartre a partir do lançamento do livro “As palavras” em 1964.
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Sabemos de seu projeto declarado de utilizar cada análise existencial como possível rota para sua própria vida. Mas Baudelaire e
Flaubert, apesar de geniais, eram impróprios para tal empreitada.
A figura emblemática não podia ser unicamente um escritor. Era
preciso que a filosofia e a escrita estivessem brilhantemente em
exercício em um único ser. Sartre não percebeu que seu modelo
mais talhado, sua batalha mais tortuosa teria sido o confronto com
o “ser-no-mundo” nietzschiano.
Talvez esta cegueira seja produto de sua insistente busca por
se converter num homem radicalmente livre, solto das amarras
culturais, sociais e políticas, abdicando de qualquer ilusão metafísica. Movimento este que se instaura imediatamente e, a despeito da vontade individual, em caráter irrevogável e inalienável
da existência humana. Porém, como ele mesmo nos ensinou, Sartre
deveria ter percebido quanto a sua “neurose”, que somos livres
para sermos tudo, só não podemos não-ser. Aquele homem francês,
educado pelo avô, que se refugiava nos livros, personalidade central do pós-guerra, referência original para as gerações seguintes,
militante até o último suspiro de vida, só pôde se constituir como
projeto a partir de si mesmo, de seus medos e anseios, do abismo
insuperável entre o projeto e sua realização, entre ser o que não é e
não ser o que é.
Por causa disso, e não apesar disso, esta interlocução muda,
uma peculiar e intensa afinidade, à revelia de uma mera ascendência teórica, vislumbra na definição de Lévy, ao analisar o caráter
festivo do pensamento sartriano, a conclusão lapidar deste encontro: «Dizia Nietzsche não poder crer em um Deus que não soubesse
dançar. Sartre não crê, dança!”38.
38 Cf. LÉVY, B-H. O século de Sartre - inquérito filosófico. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira. 2001, p.40.
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
Abstract: This essay intends to reflect on the singular relationship
between Nietzsche and Sartre. Of the infamous accusations from Sartre
about the Nietzsche’s pseudo-philosophical relevance to the confluent
points found in the texts analyzed “David Strauss: the confessor
and the writer” and “What’s literature?”, arises the possibility of a
new understanding of this affinity existential beyond the conceptual
apparatuses of each author.
Keywords: inauthentic culture – untimeliness – philosophical act –
existential mirror
referências bibliográficas
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Entrevistas com Jean-Paul Sartre. Trad. Rita Braga.
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Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade
17. ____________ Ida e volta. In: Situações I - críticas literárias. Trad. Cristina Prado. São Paulo: Editora CosacNaify. 2005.
Artigo recebido em 16/05/2011.
Artigo aceito para publicação em 28/05/2011.
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1. As referências bibliográficas devem ser incluídas no final do artigo,
limitando-se aos títulos das obras nele citadas. Devem obedecer à
ordem alfabética pelo sobrenome do autor (no caso do mesmo autor, as
obras devem ser elencadas da mais antiga para a mais recente).
Exemplos:
Livros:
MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze
und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova York: Walter
de Gruyter, 1971.
Capítulos de livros:
BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O avesso
da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57.
Artigos:
MÜLLER-LAUTER, W. Décadence. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.6, p.11-30, 1999.
MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la philosophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris,
t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006.
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cadernos Nietzche 29, 2011
2. As referências às obras de Nietzsche deverão ser feitas no corpo do
texto, como se segue: Obra ou Fragmento Póstumo (com o ano); seção;
número do aforismo, do parágrafo ou do fragmento; número do volume
da KSA ou KSB ou KGW ou KGB e (depois do ponto) número da página (no tocante às edições e às siglas, ver, abaixo, a “Convenção para
a citação das obras de Nietzsche”).
(As demais referências de comentadores ou outros autores às citações
ou menções feitas no corpo do texto devem ir para nota de rodapé).
Exemplos:
ZA/ZA I, Da mordida da víbora, KSA 4.88
Nachlass/FP 1881, 11[143], KSA 9.496
EH/EH, Assim falava Zaratustra 6, KSA 6.343 s./f.
EH/EH, Por que sou tão esperto 10, KSA 6.297
GD/CI, Moral como contra-natureza 6, KSA 6.87
GM/GM I, 13, KSA 5.278
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Convenção para a citação
das obras de Nietzsche
Os Cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição
Colli/ Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português
acompanham, porém, as siglas em alemão, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais.
I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:
I. 1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:
GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)
DS/Co. Ext. I - Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David
Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II - Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom
Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)
SE/Co. Ext. III - Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer
como educador)
WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard
Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth)
MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1))
MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2))
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VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e
sentenças)
WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein
Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua
sombra)
M/A - Morgenröte (Aurora)
IM/IM - Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência)
Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)
WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner
I. 2. Textos preparados por Nietzsche para edição:
AC/AC - Der Antichrist (O anticristo)
EH/EH - Ecce homo
DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)
II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:
GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)
ST/ST - Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia)
DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)
GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico)
BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de
nossos estabelecimentos de ensino)
CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios
a cinco livros não escritos)
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PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos)
WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)
III. Sigla dos fragmentos póstumos:
Nachlass/FP
IV. Edições:
KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe
KGW = Kritische Gesamtausgabe
KSA = Werke: Kritische Studienausgabe
KSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe
V. Formas de citação
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará a seção; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico
remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remeterá
à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/CI
e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,
indicará a seção.
Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou
romano, conforme o caso, indicará a parte do texto.
Para os fragmentos póstumos, os algarismos arábicos, que se
seguem ao ano, indicarão o fragmento póstumo.
cadernos Nietzche 29, 2011
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text. For longer quotations use letter size 10.
5. Terms from non-latin alphabets must be transliterated. All terms
or expressions in prominence shall appear in italics, not in
bold.
6. Contributors with figures, carvings, illustrations and drawings
will not be accepted.
7. Contributors should enclose an abstract (not exceeding 100
words) and key-words (not exceeding 6 words), both in the original language and in English.
8. The original articles must present the author´s full name, institution s/he belongs to (in full and in abbreviations) and e-mail.
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9. Cadernos Nietzsche retains the copyrights of its published texts.
However, authors have permission to republish their own texts
with no need of an explicit authorization, since they mention
Cadernos Nietzsche publication data.
10. The Cadernos Nietzsche uses a double-blind review process.
Contributions not accepted for publication will not be returned.
Manuscript Preparation
1. Bibliographical references must come in the end of the text, limited to its cited titles. Number them all following an alphabetic
order according to the author´s last name (in case of the same
author, from the least to the most recent work). Examples of bibliographical references:
Books:
MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova
York: Walter de Gruyter, 1971.
Books chapters:
BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O
avesso da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57.
Articles:
MÜLLER-LAUTER, W. Décadence. Trad. Scarlett Marton. In:
Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.6, p. , 199.
MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la
philosophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris, t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006.
440
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2.References to Nietzsche’s works should be made in the text,
as follows: Work or Posthumous Fragment (with the year); section, number of the aphorism, paragraph or fragment, number or volume of KSA or KSB or KGW or KGB and (after the
dot) page number (with respect to issues and acronyms, see below, the “Convetions for Nietzsche’s Works quotations).
(The other references to other authors or reviewers citations or references made in the text should go to the footnote).
Examples:
Za/ZA I, Of the Adder’s Bite, KSA 4.88
Nachlass/PF 1881, 11[143], KSA 9.496
EH/EH, Thus spoke Zarathustra 6, KSA 6.343 s./f.
EH/EH, Why I am So Wise 10, KSA 6.297
GD/CI, Morality as Anti-Nature 6, KSA 6.87
GM/GM I, 13, KSA 5.278
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Conventions for Nietzsche’s
Works quotations
Cadernos Nietzsche adopt the convention proposed by Colli/
Montinari edition of Nietzsche´s Complete Works. The acronym in
Portuguese should accompany the acronym in German, intending to
facilitate the efforts of readers less familiarized with the original texts.
I. Acronyms of texts published by Nietzsche:
I. 1. Texts edited by Nietzsche himself:
GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)
DS/Co. Ext. I - Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações
extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II - Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück:
Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história
para a vida)
SE/Co. Ext. III - Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück:
Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III:
Schopenhauer como educador)
WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück:
Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV:
Richard Wagner em Bayreuth)
MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano,
demasiado humano (vol. 1))
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MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano,
demasiado humano (vol. 2))
VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de
opiniões e sentenças)
WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer
und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra)
M/A - Morgenröte (Aurora)
IM/IM - Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência)
Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)
WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner
I. 2. Texts prepared by Nietzsche for edition:
AC/AC - Der Antichrist (O anticristo)
EH/EH - Ecce homo
DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)
II. Acronyms of unfinished inedita writings:
GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)
ST/ST - Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia)
DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do
mundo)
GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do
pensamento trágico)
BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino)
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CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos)
PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A
filosofia na época trágica dos gregos)
WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)
III. Abbreviations and acronyms of posthumous fragments:
Nachlass/FP
IV. Editions:
KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe
KGW = Kritische Gesamtausgabe
KSA = Werke: Kritische Studienausgabe
KSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe
V. Forms of citation
For texts published by Nietzsche, arabic cipher will indicate
the section; in the case of GM/GM, the roman cipher right before
the arabic will address to the part of the book; in the case of Za/
ZA, the roman cipher will address to the part of the book and will
be succeeded by the discourse title; in the case of GD/CI and EH/
EH, the arabic cipher, which will succeed the chapter, will indicate
the section.
For the unfinished inedita writings, the arabic or roman cipher,
according to each case, will indicate the part of the text. For the
posthumous fragments, the arabic ciphers, which succeed the year,
will indicate the posthumous fragment.
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