Cadernos Nietzsche 29
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Cadernos Nietzsche 29
.$/1%0)" 2'1&3".41 São Paulo – 2011 N Noo 29 28 1413-7755 ISSNISSN 1313-7755 !"#$%&'()"#*+,-'.$/)"#0)" .$/1%0)" 2'1&3".41 "5)#'0/16$/)"#*)%## !"#$%"&'()(*"#+,)$-./#01$ 2'3)#$#$4#(/3/() cadernos Nietzsche no 29 – São Paulo – 2011 ISSN 1313-7755 Editor/Publisher GEN – Grupo de Estudos Nietzsche Editor Responsável/Editor-in-Chief Ivo da Silva Júnior (Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, Brasil) Editora Adjunta/Associated Editor Scarlett Marton (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil) Conselho Editorial/Editorial Advisors Antonio Marques (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), Diego Sánchez Meca (Universidade de Madri – UNED, Espanha), Ernildo Stein (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil), Germán Meléndez (Universidade Nacional da Colômbia, Colômbia), Giuliano Campioni (Universidade de Pisa, Itália), José Jara (Universiade de Valparaiso, Chile), Luis Enrique de Santiago Guervós (Universidade de Málaga, Espanha, Mónica B. Cragnolini (Universidade de Buenos Aires, Argentina), Patrick Wotling (Universidade de Reims, França), Paulo Eduardo Arantes (Universidade de São Paulo, Brasil), Rubens Rodrigues Torres Filho (Universidade de São Paulo, Brasil). Comissão Editorial/Associate Editors André Luís Mota Itaparica (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cruz das Almas, Bahia, Brasil), André Fávero (Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil, discente), Clademir Luís Araldi (Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil), Eduardo Nasser (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, discente), João Evangelista Tude de Mero (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, discente) Luís de Xavier Rubira (Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil), Márcia Oliveira de Rezende (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, discente) Márcio José Silveira Lima (Universidade Federal da Bahia, Barreira, Bahia, Brasil), Vânia Dutra de Azeredo (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, Brasil), Wilson Frezzatti Júnior (Universidade do Oeste do Paraná, Toledo, Paraná, Brasil). Revisor/Reviser Vinicius de Andrade Endereço para correspondência/Editorial Offices Cadernos Nietzsche [email protected] www.cadernosnietzsche.unifesp.br Cadernos Nietzsche é uma publicação do Cadernos Nietzsche is a publication of the Composição do miolo/Grafic design & productions: Paula Casarini Foto da capa/Front cover: C.D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818 1.000 exemplares/1.000 copies Fundados em 1996 por Scarlett Marton, os Cadernos Nietzsche são lançados desde então regularmente nos meses de maio e setembro. E a partir da edição de 2010, a revista passou a receber também versão eletrônica (www.cadernosnietzsche.unifesp.br). Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, os Cadernos Nietzsche contam difundir trabalhos de especialistas estrangeiros e brasileiros, dos mais experientes a doutorandos ou mestrandos. Espaço aberto para o confronto de interpretações, os Cadernos Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as ideias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano. Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os Cadernos Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular. Founded in 1996 by Scarlett Marton, Cadernos Nietzsche (www.cadernosnietzsche.unifesp.br) is published twice yearly – every May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a professional Brazilian context for contemporary readings of Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to publishing translations of contemporary European and American scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’s philosophy. Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche/Study Group Nietzsche, Cadernos Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a current circulation of about 1.000 copies and is actively engaged in expanding its base, especially to university libraries. And it has been sent free of charge to the Brasilian departments of philosophy, foreigner libraries and research instituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects and particularly on Nietzsche’s thought. Sumário Editorial 9 Dossiê “Nietzsche e o naturalismo” A psicologia moral minimalista de Nietzsche 15 Bernard Williams O naturalismo de Nietzsche 35 Richard Schacht O naturalismo de Nietzsche reconsiderado 77 Brian Leiter Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação 127 Peter Kail Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche 163 Béatrice Han-Pile Do idealismo transcendental ao naturalismo: um salto ontológico no tempo a partir de uma fenomenologia da representação William Mattioli 221 Naturalismo descritivo e ficção normativa: a questão dos valores sob a perspectiva do espírito livre nietzschiano 271 Oscar Augusto Rocha Santos Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano 293 Alice Medrado “A almejada assimilação do materialismo”: Nietzsche e o debate naturalista na filosofia alemã da segunda metade do século XIX 309 Rogério Lopes * As abordagens de Nietzsche acerca da epistemologia e da ética kantianas 353 Tom Bailey História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche 395 Danilo Augusto Santos Melo Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade 411 Marcelo S. Norberto Instrução para os autores 431 Convenção para a citação das obras de Nietzsche 435 Contents Editorial Dossier “Nietzsche and naturalism” 9 Nietzsche’s minimalist moral psychology 15 Bernard Williams Nietzsche’s naturalism 35 Richard Schacht Nietzsche’s naturalism reconsidered 77 Brian Leiter Nietzsche and Hume : naturalism and explanation127 Peter Kail Transcendental aspects, ontological commitments and naturalistic elements in Nietzsche’s thought 163 Béatrice Han-Pile From transcendental idealism to naturalism: an ontological leap into time based in a phenomenology of representation William Mattioli 221 Descriptive naturalism and normative fiction: the question of values under Nietzschean free spirit´s perspective 271 Oscar Augusto Rocha Santos Science as a continuation of art in Human, All Too Human 293 Alice Medrado “The desired assimilation of materialism”: Nietzsche and the naturalist debate in the German philosophy of the second half of 19th century 309 Rogério Lopes * Nietzsche’s Engagements with Kantian Epistemology and Ethics 353 Tom Bailey History and memory as belief in the future: forgetfulness and overcoming of nihilism in Nietzsche 395 Danilo Augusto Santos Melo Nietzsche and Sartre: the barbarians of modernity 411 Marcelo S. Norberto Notes for contributors 439 Convention for citation of Nietzsche’s Works 443 Editorial Os Cadernos Nietzsche 29 não teriam sido possível sem a colaboração de Rogério Lopes. Da concepção à revisão técnica, passando pelo contato com muitos dos autores e editoras que cederam os direitos autorais para este volume dos Cadernos Nietzsche, seu trabalho – imenso – foi fundamental. Fica aqui então registrado o nosso agradecimento – e certamente o do público brasileiro interessado pelo pensamento de Nietzsche – por este volume. Ivo da S ilva Júnior Editor-responsável * Os Cadernos Nietzsche 29 trazem um dossiê sobre “Nietzsche e o naturalismo”. Visa assim a contribuir com a discussão de um rol de questões em torno de leituras da filosofia nietzschiana ainda pouco debatidas no Brasil. Se não há dúvidas sobre a importância do naturalismo na constituição da filosofia de Nietzsche, muitas são as questões sobre a maneira pela qual o pensamento naturalista impactou o nietzschiano. Neste número 29 da revista, tem-se por intenção confrontar interpretações de importantes comentadores de Nietzsche, da Nietzsche-Forschung internacional e da brasileira, sobre este tema. Este número dos Cadernos Nietzsche traz como primeiro artigo um texto clássico de Bernard Williams, sobre a definição de uma psicologia moral “naturalista”. Segue-se a ele um texto inédito de Richard cadernos Nietzche 29, 2011 9 Schacht, em que o autor, ao investigar o sentido do naturalismo no pensamento de Nietzsche, afasta qualquer traço cientificista do naturalismo nietzschiano. O trabalho seguinte, de Brian Leiter, estabelece um diálogo com outros textos com a mesma temática, reafirmando suas posições sobre o naturalismo metodológico em Nietzsche. O texto de Peter Kail, por sua vez, discute o estatuto da explicação em Nietzsche e Hume, reafirmando contra a leitura cética que em ambos os autores o que está em jogo são explicações causais. Béatrice Han-Pile traz um trabalho que procura mostrar que Nietzsche ultrapassa posições naturalistas tout court e transcendentalistas para criar um naturalismo transcendental. Este dossiê prossegue com as contribuições da pesquisa brasileira para este debate sobre Nietzsche e naturalismo, que ocorrem sobretudo entre os integrantes do Grupo Nietzsche da UFMG, coordenado pelo Prof. Rogério Lopes. O primeiro artigo é de William Mattioli, em que o autor procura mostrar haver uma ontologia em Nietzsche a partir de uma reinterpretação da noção de tempo na obra nietzschiana. O trabalho de Oscar Augusto Rocha Santos, na sequência, discute a aproximação entre um naturalismo descritivo e a ficção normativa. Alice Medrado, por sua vez, analisa o papel da arte e da ciência em Humano, demasiado humano. Este dossiê termina com um artigo de Rogério Lopes, que apresenta a maneira pela qual Nietzsche pensa a relação entre filosofia e ciências empíricas, em termos de uma concepção naturalista liberal, a partir do debate naturalista na filosofia alemã hodierna a Nietzsche. Dois textos programados para este número não puderam ser publicados por falta de acordo – não evidentemente com os autores – mas com as editoras que os publicaram inicialmente. Um deles, de Maudemarie Clark e David Dudrick, discutiria a presença de dois tipos de naturalismo presentes em Para além de bem e mal, sendo que um deles Nietzsche aceitaria e outro em que criticaria. O outro, de Christopher Janaway debateria diretamente com Brian Leiter, criticando o “naturalismo metodológico” que este encontraria em Nietzsche. 10 cadernos Nietzche 29, 2011 Os Cadernos Nietzsche 29 esperam assim possibilitar que este dossiê sobre “Nietzsche e o naturalismo” abra novas perspectivas de pesquisa entre nós a partir desse tema que, como já dissemos, ainda não está muito presente nas leituras brasileiras. Para este número, muitos foram os que trabalharam para a sua produção. Há que ressaltar o trabalho de tradução de Alice Parrela Medrado e de Daniel Filipe Carvalho dos textos de Maudemarie Clark e David Dudrick e de Christopher Janaway, respectivamente, que, como dissemos acima, não puderam ser publicados neste número. A todos que colaboraram, de uma forma ou de outra, o nosso agradecimento. Ivo da S ilva J únior Editor-responsável Rogério Lopes Colaborador dos Cadernos Nietzsche 29 cadernos Nietzche 29, 2011 11 Dossiê “Nietzsche e o naturalismo” A psicologia moral minimalista de Nietzsche A psicologia moral minimalista de Nietzsche* Bernard Williams** Resumo: Neste artigo, Bernard Williams aponta as dificuldades de definição do que seria uma psicologia moral “naturalista”. Segundo o autor, as tentativas de Nietzsche no sentido de deflacionar o vocabulário moral usado na explicação de fenômenos psicológicos morais com o auxílio de informações provenientes da observação de domínios não morais da experiência humana podem ser mais bem entendidas como um tipo de “realismo”. Williams, então, aplica esta chave de leitura ao exame nietzschiano do problema da “vontade”, ao qual se liga uma concepção peculiar das condições para a atribuição de responsabilidade e censura. Palavras-chave: psicologia moral – realismo – vontade - censura * Este artigo apareceu pela primeira vez em European Journal of Philosophy (1, 1: p.414, abril de 1993), tendo sido reeditado na coletânea organizada por Richard Schacht Nietzsche, Genealogy, Morality: Essays on Nietzsche’s Genealogy of Morals (Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1994, p. 237-247), assim como na coletânea de artigos do próprio autor (Making Sense of Humanity and Other Philosophical Papers, Cambridge: Cambridge University Press, 1995) e, mais recentemente, numa coletânea de textos do autor editada por Myles Burnyeat (The Sense of the Past. Essays in the History of Philosophy. Princenton: Princenton University Press, 2006: pp. 299-310). Os direitos para essa tradução brasileira foram adquiridos de John Wiley and Sons Ltda. Tradução de Alice Parrela Medrado. ** Foi Professor Catedrático de Filosofia Moral em Oxford, Oxford, Inglaterra (1929-2003). cadernos Nietzche 29, 2011 15 Williams, B. Nietzsche, Wittgenstein e a extração de teorias Nietzsche não é uma fonte de teorias filosóficas. De certa forma a questão é óbvia, mas pode ser menos óbvia sua profundidade. A este respeito, há um contraste com Wittgenstein. Wittgenstein disse repetidamente, e não apenas em sua obra tardia, que ele não devia ser lido como se estivesse propondo uma teoria filosófica, porque não podia haver algo como uma teoria filosófica. Mas sua obra estava menos preparada que a de Nietzsche para manter essa posição postumamente. Há mais de uma razão para isto1. Wittgenstein pensava que sua obra demandava não apenas o fim da teoria filosófica, mas o fim da filosofia – algo associado, para ele, com o fim de suas próprias demandas por fazer filosofia. Essa associação, do fim da teoria filosófica com o fim da filosofia, não nega a ideia de que se houver filosofia, ela há de tomar a forma da teoria; na verdade, ela reforça prontamente essa ideia. Além disso, os tópicos sobre os quais Wittgenstein queria que não houvesse mais filosofia – os tópicos, para ele, próprios à filosofia – eram tópicos tradicionais da filosofia acadêmica. Não surpreende que aqueles que dão continuidade ao trabalho teórico sobre esses tópicos ainda procurem por elementos na própria obra de Wittgenstein a partir dos quais esse trabalho pode ser desenvolvido. Muitos que assim procedem carecem de uma adequada ironia em relação ao que eles fazem com os textos de Wittgenstein, mas sua atitude não é uma traição em nenhum sentido relevante: é menos traição, na verdade, que a atitude daqueles que pensam que Wittgenstein de fato conduziu a teoria filosófica sobre aqueles tópicos a um fim, e que mantêm por sua vez uma atividade acadêmica que consiste em reiterar essa mesma coisa. Dentre os que pensam 1 Mesmo se não levamos em conta o fato de que apenas uma obra de Nietzsche (A Vontade de Potência) não é uma obra de Nietzsche, enquanto as obras tardias de Wittgenstein, se consideradas como livros completos, são suas de forma muito incerta. 16 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche que ainda há espaço para uma teoria filosófica sobre aqueles tópicos, e que pensam que Wittgenstein contribuiu para tanto, alguém deve a Wittgenstein uma explicação de por que ele deixou de ver as coisas desse modo. Mas tal explicação poderia ser dada, e nós poderíamos vir a entender que, se Wittgenstein não podia mais enxergar a edificação de uma disciplina intelectual, sua cegueira não era aquela de Sansão, mas antes aquela de Édipo em Colona, cujo desaparecimento deixou para trás águas curativas. Os textos póstumos de Wittgenstein, apesar de não serem destinados a expressar ou encorajar a teoria, na verdade não colocam obstáculos à sua extração. Com Nietzsche, ao contrário, a resistência a dar prosseguimento à filosofia por meios ordinários é arquitetada no texto, que dispõe de armadilhas não só contra a reconstituição de teorias a partir dele como, em muitos casos, contra qualquer exegese sistemática que o assimile à teoria. Sua escrita o faz em parte por sua escolha de temas, em parte por seu estilo e pelas atitudes que expressa. Esses aspectos do texto nietzschiano oferecem resistência contra uma mera exegese de Nietzsche, ou contra a incorporação de Nietzsche à história da filosofia enquanto fonte de teorias. Alguns pensam que esses aspectos depõem contra a incorporação de Nietzsche à filosofia tomada como um empreendimento acadêmico de modo geral, mas se com isso se pretende sugerir que Nietzsche não tem importância para a filosofia, isso deve estar errado. Ao insistir na importância de Nietzsche para a filosofia, eu me refiro a algo de que não podemos nos esquivar através de uma definição de “filosofia”. Em particular, algo de que não podemos nos esquivar apelando para algum contraste entre filosofia “analítica” e “continental”. Essa classificação sempre envolveu um amálgama um tanto bizarro entre o metodológico e o topográfico, como se alguém classificasse carros entre os que têm direção dianteira e aqueles que são feitos no Japão; mas além deste e outros absurdos da distinção, há a questão mais imediata de que nenhuma classificação desse tipo pode evitar as persistentes continuidades cadernos Nietzche 29, 2011 17 Williams, B. entre a obra de Nietzsche e a atividade que qualquer um chama de filosofia. Ao menos em filosofia moral, ignorar tais continuidades não é simplesmente adotar um estilo, mas furtar-se a um problema. Eu concordo com uma observação feita por Michel Foucault em uma entrevista tardia, de que não há um único nietzscheanismo, e de que a questão correta a ser colocada é “a que uso sério Nietzsche pode servir?”. Um uso sério é ajudar-nos com problemas que se impõem a qualquer filosofia séria (à filosofia moral em particular), que não se furte às suas questões mais básicas. Nietzsche não terá serventia se o tomarmos por alguém que nos impõe algum método. Eu já disse que acho seus textos firmemente protegidos contra exegese por extração de teoria; mas disso não se segue, e é importante que não se siga, que quando tentamos nos servir dele para um uso sério nossa filosofia não deva conter teoria. A razão disso é que as persistentes continuidades entre as questões dele e a nossa atividade movem-se em ambas as direções. Algumas das inquietações que o ocupam poderão ser mais bem enfrentadas – quer dizer, enfrentadas de um modo que nos coloque em condições melhores para extrair algo delas – através de estilos de pensamento bem diversos e, eventualmente, através de alguma teoria de procedência distinta; certamente não por meio de encantamentos teóricos ou mesmo antiteóricos supostamente retomados do próprio Nietzsche. Naturalismo e realismo em psicologia moral Há certo grau de consenso de que precisamos de uma psicologia moral “naturalista”, e o que se tem em mente com isso é que nossa visão das capacidades morais deve ser compatível com nossa compreensão do ser humano enquanto parte da natureza, ou até quem sabe no espírito dessa mesma compreensão. Uma exigência expressa em tais termos provavelmente é aceita pela maioria dos filósofos, com exceção de alguns anciens combattants das guerras do livre arbítrio. O problema, e sem dúvida também a condição de 18 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche possibilidade desse feliz e amplo consenso, contudo, é que ninguém sabe o que ele envolve. Formulações de posição tendem a excluir coisas demais ou de menos. A posição exclui coisas demais se ela tenta, redutivamente, ignorar cultura e convenção; isso é equivocado mesmo em bases científicas, no sentido de que viver sob a cultura é uma parte básica da etologia dessa espécie2. Ela exclui coisas de menos se inclui muitas coisas que têm sido parte da autoimagem da moralidade, como certas concepções da cognição moral; uma teoria pouco contribuirá para a causa do naturalismo, nesse sentido, se aceitar enquanto característica básica da natureza humana a capacidade de intuir a estrutura da realidade moral. É tentador dizer que uma psicologia moral naturalista explica capacidades morais nos termos de estruturas psicológicas que não são distintamente morais. Mas tanta coisa depende do que aqui contaria como explicação, e do que faz com que um elemento psicológico seja distintamente moral, que permanece sistematicamente obscuro se a fórmula deve ser tomada como uma fórmula insipidamente conciliadora, como ferozmente reducionista ou como algo entre uma coisa e outra. A dificuldade é sistemática. Se uma psicologia moral “naturalista” tem que caracterizar a atividade moral em um vocabulário que possa ser igualmente aplicado a todo o resto da natureza, então ela está comprometida com um reducionismo fisicalista que conduz claramente a um beco sem saída. Se o caso é descrever a atividade moral em termos que podem ser aplicados a outros domínios, mas não a todos os domínios, não temos muita ideia de quais termos devem ser esses, ou quão “especial” admite-se que seja a atividade moral, em consonância com o naturalismo. Se estamos autorizados a descrever a atividade moral em quaisquer termos que pareçam suscitados por ela, então o naturalismo não exclui coisa alguma, e voltamos ao começo. O problema é que o próprio termo “naturalismo” invoca uma abordagem verticalizada, na qual se supõe que 2 Eu discuto esse ponto mais pormenorizadamente em “Making sense of Humanity”. cadernos Nietzche 29, 2011 19 Williams, B. sabemos de antemão quais termos são necessários para descrever qualquer fenômeno “natural”, e somos convidados a aplicar tais termos à atividade moral. Mas nós não sabemos quais termos são esses, a menos que eles sejam (inutilmente) os termos da física, e isso leva à dificuldade. Em relação a esse impasse podemos encontrar em Nietzsche tanto uma atitude geral quanto algumas sugestões particulares que podem ser de grande ajuda3. Eu direi algo adiante sobre o que considero que sejam algumas de suas sugestões. A atitude geral tem dois aspectos relevantes que devem ser considerados conjuntamente. Em primeiro lugar, à questão “em que medida nossas explicações da atividade distintamente moral deveriam acrescentar algo às nossas explicações de outras atividades humanas”, a resposta seria: “na menor medida possível”, e quanto mais uma certa compreensão moral dos seres humanos parece recorrer a elementos que servem especialmente aos propósitos da moralidade – certas concepções da vontade, por exemplo – tanto mais razão temos para nos perguntar se não haveria uma explicação mais esclarecedora que se apoie apenas em concepções que já usamos alhures, de um modo ou de outro. Essa exigência de minimalismo na psicologia moral não é, contudo, apenas uma aplicação de um desejo occamista por economia, e esse é o segundo aspecto da atitude geral nietzschiana. Sem alguma orientação sobre os materiais que deveríamos usar ao propor nossas explanações econômicas, tal atitude simplesmente recairá nas dificuldades que já encontramos. A abordagem de Nietzsche consiste em identificar um excesso de conteúdo moral na psicologia, apelando primeiro àquilo que um intérprete experiente, honesto, sutil, não otimista, pode entender do comportamento humano em 3 Ficará óbvio que na presente discussão o interesse por Nietzsche está situado muito mais em seus esforços mais “céticos”, do que (por exemplo) em suas ideias de autossuperação. Isso não significa negar que elas também possam ter seus usos. Em todo caso, não há esperança de obter algo de suas aspirações redentoras sem contrapô-las às suas explicações da moralidade convencional. 20 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche outras áreas [não morais]. Tal intérprete pode ser dito – usando uma expressão descaradamente avaliativa – “realista”, e nós podemos dizer que aquilo a que essa abordagem nos conduz é a uma psicologia moral realista, ao invés de naturalista. O que está em questão não é a aplicação de um programa científico predefinido, mas antes uma interpretação informada de algumas experiências e atividades humanas em relação com outras. Pode-se, de fato, dizer que tal abordagem envolve, na expressão bem conhecida de Paul Ricoeur, uma “hermenêutica da suspeita”. Enquanto tal, ela não pode compelir demonstrativamente, e não tenta fazê-lo. Ela convida a uma perspectiva, e em alguma medida a uma tradição (marcada por figuras como Tucídides, por exemplo, ou Stendhal, ou os psicólogos da moral britânicos descritos por Nietzsche como “velhos sapos”) em que aquilo que parece demandar mais material moral faz sentido em termos daquilo que demanda menos material moral. Contudo, o empreendimento pode funcionar apenas na medida em que a suspeita que ele implica não seja uma suspeita de tudo. É típico daqueles que escrevem sobre Nietzsche que eles prestem mais atenção às suas afirmações, ou ao que aparentemente são suas afirmações, de que todas as crenças sobre a relação dos seres humanos com a realidade estão abertas a suspeita, de que tudo é, por exemplo, uma interpretação. O que quer que precise ser dito a esse nível [de generalidade], é igualmente importante [notar] que quando ele diz que não há fenômenos morais, apenas interpretações morais (cf. JGB/BM 108, KSA 5.92), uma observação específica sobre a moralidade está sendo feita. Isto não quer dizer que devamos simplesmente esquecer, mesmo neste contexto, as afirmações mais abrangentes. Precisamos obter uma compreensão mais aprofundada sobre onde esses pontos de suspeita particular devem ser encontrados, e pode ser útil construir por meio das afirmações mais gerais um caminho que nos permita apreender as afirmações mais circunscritas. Isso é ainda mais verdadeiro quando se tem em mente que “afirmação”, se estamos falando de Nietzsche, raramente é a palavra certa. Ela é não apenas cadernos Nietzche 29, 2011 21 Williams, B. muito fraca para algumas das coisas que ele diz e muito forte para outras; nós podemos também com alguma utilidade nos lembrar (ou talvez fingir) que mesmo quando ele soa insistente ou agudamente expositivo, ele não está necessariamente nos dizendo algo, mas nos incitando a perguntar algo. No restante deste artigo, tentarei organizar algumas das sugestões de Nietzsche sobre um suposto fenômeno psicológico, o da vontade. Eu deixarei de lado muitas coisas interessantes que Nietzsche diz sobre esse conceito, em particular sobre sua história. Meu objetivo é ilustrar, através de um tratamento esquemático desse exemplo central, a forma pela qual um método da suspeita – a busca, pode-se quase dizer, por um culpado – pode nos ajudar a alcançar uma psicologia moral reduzida e mais realista. As ilusões do Eu Falando seriamente, há boas razões para que toda dogmatização filosófica, porquanto solenes e definitivos tenham sido seus ares, tenha sido, contudo, não mais que uma nobre infantilidade e tirania. E talvez o tempo se aproxime em que será reiteradamente compreendido quão pouco bastava para fornecer a pedra de toque de edificações de filósofos tão sublimes e incondicionais quanto aquelas que os dogmáticos têm construído até agora; qualquer velha superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, na forma da superstição do sujeito e do ego, até hoje não deixa de causar danos), talvez algum jogo de palavras, uma sedução da gramática, uma audaciosa generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos (JGB/BM, Prefácio, KSA 5.11-13)4. 4 A menção a Lichtenberg feita abaixo se encontra na seção 17 de Para além de bem e mal. 22 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche A observação geral que Nietzsche faz aqui (uma observação compartilhada por Wittgenstein e também por J. L. Austin sobre a extraordinária precariedade das teorias filosóficas) dirige-se a uma ideia particular, de que o ego ou o sujeito é algum tipo de ficção. Mais à frente no mesmo livro, Nietzsche segue Lichtenberg ao criticar o cogito enquanto produto de hábitos gramaticais. Em outra obra, ele faz uma observação semelhante, mais especificamente sobre a ação. Ele cita um cético: “Não sei o que faço. Não sei o que devo fazer.” Você está certo, mas tenha certeza disto: você está sendo feito [du wirst getan], a todo momento. A humanidade, em todos os tempos, tomou erradamente a voz passiva por voz ativa: é seu constante erro gramatical” (M/A 127, KSA 3.117)5. Muitas ideias poderiam ser extraídas deste compósito, algumas delas pouco convidativas; por exemplo, que nós na verdade nunca fazemos algo, que não há eventos que possam ser chamados de ações. De forma mais interessante, pode-se interpretar que Nietzsche diz que a ação é uma categoria de interpretação útil, mas paroquial ou dispensável; isso me parece não menos implausível, mas alguns o aceitaram.6 Se as pessoas realizam ações, então elas as realizam porque pensam ou percebem certas coisas, e isso é suficiente, ademais, para nos livrarmos de um epifenomenalismo tosco 5 NIETZSCHE, F. Daybreak. Trad. R. J. Hollingdale. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, 120 (KSA 3.115). A passagem sobre o nascer do sol, mencionada abaixo, é também de Aurora 124 (KSA 3.1160). 6 Por exemplo, Frithjof Bergmann, “Nietzsche´s critique of morality”. Bergmann inclui “agência individual” (junto a itens como individualidade, liberdade e culpa) na lista de conceitos supostamente peculiares à nossa moralidade; ele acredita (equivocadamente, eu penso) estar seguindo Clifford Geertz na afirmação de que esse conceito não era conhecido na Bali tradicional. Erros semelhantes foram cometidos em relação à perspectiva da Grécia homérica: ver abaixo nota 10. A ideia de que a ação, em nossa compreensão comum, é uma concepção dispensável e na verdade equivocada é compartilhada por um tipo muito diferente de filosofia, o materialismo eliminativo; neste caso por razões cientificistas. cadernos Nietzche 29, 2011 23 Williams, B. que pode ser encontrado em algumas das declarações de Nietzsche – possivelmente na sua sugestão de que toda ação é semelhante a querer que o sol nasça quando o sol está prestes a nascer. As dúvidas de Nietzsche sobre a ação são entendidas com maior proveito, eu sugiro, enquanto dúvidas referentes a uma interpretação substancialmente moral da ação, em termos de vontade, e não à ideia mesma de alguém fazer algo. A crença na vontade envolve, para ele, duas ideias em particular: que a vontade parece ser algo simples quando não é; e que o que parece ser simples também parece ser um tipo peculiar e imperativo de causa. “Os filósofos estão acostumados a falar da vontade como se fosse a coisa melhor conhecida no mundo (...). Mas (...) querer me parece acima de tudo algo complicado, algo que constitui uma unidade somente enquanto palavra – e é precisamente nesta palavra que se esconde o preconceito popular que sobrepujou a cautela sempre inadequada dos filósofos” (JGB/BM 19, KSA 5.31-2)( a seção inteira é relevante). Ele prossegue explicando que o que se chama “querer” é um complexo de sensações, pensamentos, e um afeto de comando. Ele aponta as consequências de sermos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e de nossa “desconsideração dessa dualidade”. “Uma vez que, na grande maioria dos casos só houve um exercício da vontade quando se podia esperar o efeito do comando – isto é, obediência; isto é, a ação – a aparência traduziu-se em sensação, como se houvesse uma necessidade de efeito. Em suma, aquele que quer acredita com razoável grau de certeza que vontade e ação sejam, de alguma forma, a mesma coisa; ele atribui o sucesso, a execução do querer, à vontade ela mesma, e por isso goza de um aumento da sensação de poder que acompanha todo sucesso” (JGB/BM 19, KSA 5.31-2). Qual é exatamente a ilusão que Nietzsche alega ter exposto aqui? Não é a ideia de que uma certa experiência seja causa suficiente de uma ação. Ele de fato pensa que as experiências envolvidas no “querer” não revelam, e podem ocultar o complexo 24 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche cambiante de forças psicológicas e fisiológicas que jazem por detrás de qualquer ação, os constantes, desconhecidos movimentos desejantes que fazem de nós, como ele diz, uma espécie de pólipo (M/A 119, KSA 3.111-4). Mas não é que a experiência se coloque como a causa. Antes, a experiência parece revelar um tipo diferente de causa, e sugere que a causa não se encontra em qualquer evento ou situação – seja uma experiência minha ou não – mas em algo a que me refiro como “Eu”. Tal causa parece se relacionar com o resultado apenas no modo de prescrição, através de um imperativo; e uma vez que isso não está em relação com qualquer conjunto causal de eventos, essa causa pode ser vista como produzindo seu resultado ex nihilo. É claro que qualquer teoria sensata da ação que conceda que de fato haja ação, e que pensamentos não são meramente epifenomenais em relação à ação, terá que conceder que minha consciência de agir não é o mesmo que uma consciência de que um estado meu causa um certo resultado. Isso se segue meramente da observação de que a consciência de primeira pessoa que se tem quando envolvido em uma ação não pode, ao mesmo tempo, ser uma consciência de terceira pessoa acerca desse envolvimento ele mesmo. Mas a consciência de primeira pessoa que um agente necessariamente tem não precisa por si mesma conduzir ao tipo de imagem que Nietzsche ataca; a ação não envolve, necessariamente, essa compreensão de si mesma7. Essa imagem é uma imagem peculiar, particularmente associada com uma noção como a do “querer”, e quando ela 7 Tal aspecto é claramente exemplificado pelo tratamento conferido por alguns estudiosos à concepção homérica de ação; não tendo encontrado em Homero essa imagem da ação, eles pensaram que os gregos arcaicos não tinham qualquer ideia de ação, ou que tinham uma ideia imperfeita, por faltar a ela o conceito de vontade. Eu discuto este e outros equívocos conceituais relacionados em Shame and Necessity: ver, em particular, o capítulo 2. cadernos Nietzche 29, 2011 25 Williams, B. está presente, não se trata somente de uma teoria filosófica da ação, mas ele pode acompanhar muitos de nossos pensamentos e reações morais. Então, de onde ela vem e que função ela cumpre? Parte da explicação do próprio Nietzsche deve ser encontrada no curso de uma de suas passagens mais famosas: Pois, do mesmo modo que a mente popular separa o corisco do clarão, e toma o último por uma ação, pela operação de um sujeito chamado corisco, assim também a moralidade popular separa a força das expressões da força, como se houvesse um substrato neutro por trás do homem forte, que seria livre para expressar ou não sua força. Mas tal substrato não existe; não há “ser” por trás de fazer, efetivar, vir-a-ser; o “agente” é meramente uma ficção adicionada à ação – a ação é tudo. A mente popular de fato duplica a ação, na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo evento primeiro como causa e então uma segunda vez como seu efeito (GM/GM I 13, KSA 5.278-81)8. Há duas ideias úteis nessa descrição. Uma é que a imagem que está sendo criticada envolve um tipo de duplicação. O sujeito ou Eu que é a causa é ingenuamente apresentado como a causa de uma ação. Se meu Eu-agente produz apenas um conjunto de eventos, pode parecer que isso não seja suficiente para o meu envolvimento na ação: eu devo ser no máximo o “piloto no navio” a que Descartes se refere. A duplicação da ação também se segue da ideia de que o modo de causação é o do comando. Obediência ao comando consiste numa ação; mas o próprio comandar já é uma ação. O Eu pode agir (em um momento em vez de outro, agora ao invés de antes) somente ao fazer algo – fazer aquilo que ele faz, ou seja, querer; mas por mais de uma razão o que ele traz à tona dessa 8 NIETZSCHE, F. The Genealogy of Morals. Trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale. Nova York, 1967 (GM/GM I 13, KSA 5.278-81). 26 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche forma parece ser, por si mesmo, uma ação. Ao transformar a ação em algo que introduz um agente-causa, a descrição tem uma forte tendência a produzir duas ações. O segundo pensamento útil a ser retomado de Nietzsche é que essa descrição de tal modo peculiar tem de ter um propósito, e que esse propósito é um propósito moral. O objeto da censura O propósito da descrição pode ser interpretado a partir do modo como ela associa duas ideias, que contribuem para sua incoerência e a compõem conjuntamente. Uma ideia é de que há uma unidade especial metafísica, uma ação real, diferente de tudo o mais que possa ser individuado dentre os processos do mundo. A outra ideia é de que isso se encontra numa relação imediata – algo como ser um efeito ex nihilo – com algo de tipo bem diferente, mas também único – uma pessoa, ou Eu, ou agente. Existe uma ideia que necessita de itens que se encontrem justamente numa tal relação: trata-se de certa concepção purificada da censura. A censura precisa de uma ocasião – uma ação – e um objeto – a pessoa que realizou a ação, e que vai da ação ao encontro da censura. Essa é sua natureza; alguém poderia dizer, sua forma conceitual. No mundo real, a censura não precisa dessas coisas na forma pura e isolada sugerida pela descrição da vontade. Os gregos homéricos censuravam as pessoas por fazerem coisas, e o que quer que entrasse exatamente nessa prática homérica da censura, não era tudo isso. Por outro lado, aquela concepção da ocasião e do objeto será exigida por uma concepção muito purificada de censura, uma concepção que aparentemente é exigida pela justiça moral. É importante [notar] que a simples ideia de justa compensação não coloca essa exigência, nem toda e qualquer ideia de responsabilidade. Se A foi lesado pela ação descuidada de B, B pode ser considerado responsável pela perda e razoavelmente obrigado a compensar cadernos Nietzche 29, 2011 27 Williams, B. A, apesar de a perda de A não fazer parte daquilo que B quis. Uma concentração muito pontual na vontade de B, assim como a concepção inteiramente seletiva da censura que a acompanha, não são exigências postas automaticamente pela responsabilidade ou pelas demandas por compensação próprias da justiça, mas por algo mais específico. Não é difícil encontrar uma explicação para a exigência mais específica. Ela repousa na aparente exigência da justiça de que o agente deveria ser censurado única e exclusivamente por aquilo que estaria em seu poder. Aquilo que o agente causou (e pelo quê, na ordem usual das coisas, ele pode ser instado a fornecer compensação) pode muito bem ser uma questão de sorte, mas aquilo pelo que ele pode ser estritamente (no dizer dessas concepções, “moralmente”) censurado não pode ser uma questão de sorte, e deve depender de sua vontade num sentido estrito e isolável. É dito de forma apropriada que aquilo que depende de sua vontade é o que está estritamente em seu poder: é em relação com aquilo que ele quer que o agente tem ele mesmo o sentimento de poder na ação, sentimento ao qual Nietzsche se refere. Enquanto agentes, e também enquanto censores no âmbito da justiça, nós temos um interesse nessa imagem. As necessidades, exigências, e sugestões do sistema da moralidade bastam para explicar a peculiar psicologia da vontade. Mas há algo mais que precisa ser dito sobre as bases desse sistema ele mesmo. É célebre a sugestão do próprio Nietzsche de que uma fonte específica desse sistema deveria ser encontrada no sentimento de ressentimento – um sentimento que tem ele mesmo uma origem histórica, embora Nietzsche não a localize de forma muito precisa. Eu não irei abordar o aspecto histórico, mas penso que vale a pena propor uma breve especulação sobre a fenomenologia dessa concepção 28 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche seletiva da censura, que está para a “genealogia” de Nietzsche numa relação próxima o bastante para que possa, quem sabe, contar como uma versão dela9. Se há uma vítima que se queixa de um dano, há um agente que deve ser censurado e um ato desse agente que causou o dano. A raiva da vítima transita do dano ao ato, [e do ato] ao agente; e a compensação ou recompensa por parte do agente será um reconhecimento tanto do dano quanto do fato de que ele foi a causa do dano. Suponhamos que o agente causa um dano à vítima, e o faz intencional e voluntariamente; onde “intencionalmente e voluntariamente” não deve invocar os mecanismos especiais da vontade, mas significa tão somente que o agente sabia o que estava fazendo, quis fazê-lo, e estava num estado mental normal quando o fez. Suponhamos que o agente não está disposto a oferecer compensação ou reparação, e que a vítima não tem poder para arrancar tal coisa dele. Ao recusar reparação, o agente recusa-se a reconhecer a vítima ou o dano que esta sofreu; é uma demonstração particularmente vívida da impotência da vítima. 9 Uma genealogia nietzschiana combina de forma peculiar história, fenomenologia, psicologia “realista” e interpretação conceitual de um modo tal que a filosofia analítica considera perturbadora. As histórias históricas, além disso, variam de forma notável de um contexto para outro. Alguns dos procedimentos de Nietzsche devem ser vistos especificamente à luz da Fenomenologia de Hegel, e de seu recorrente assombro de que pudesse ter havido algo como o Cristianismo. Alguns [procedimentos de Nietzsche] são certamente menos úteis que outros. Mas a ideia básica de que precisamos que tais elementos funcionem juntos é correta. Nós precisamos entender quais partes de nosso esquema conceitual são culturalmente localizados, e em que grau eles o são. Nós entendemos isso melhor quando entendemos um esquema humano concreto que difere do nosso em certos aspectos. Um meio muito importante para situar tal esquema é procurá-lo na história, em particular na história de nosso próprio esquema. Para entender esse outro esquema, e para entender por quê deveria haver essa diferença entre outros povos e nós mesmos, precisamos entendê-lo como um esquema humano; isto é, entender as diferenças em termos das similaridades, o que exige o recurso à interpretação psicológica. Para dizê-lo de forma muito esquemática, uma genealogia nietzschiana pode ser vista hoje como tendo como ponto de partida Davidson acrescido de história. cadernos Nietzche 29, 2011 29 Williams, B. Essas circunstâncias podem ocasionar, na vítima ou em alguém que a represente, uma fantasia muito especial de prevenção retrospectiva. Enquanto vítima, tenho a fantasia de introduzir no agente um reconhecimento de mim que tomaria o lugar do próprio ato que me prejudicou. Eu quero pensar que ele poderia ter me reconhecido, que ele poderia ter sido impedido de me prejudicar. Mas a ideia não pode ser a de que eu, por uma via empírica qualquer, poderia tê-lo impedido: aquela ideia representa apenas um lamento de que não tenha sido isso o que de fato aconteceu e, nessas circunstâncias, um lembrete da humilhação. A ideia tem que ser, antes, de que eu, agora, possa mudar o agente, para que ele passe do não reconhecimento ao reconhecimento de mim. Essa mudança mágica, fantasiada, não envolve realmente nenhuma mudança e, portanto, não tem relação alguma com aquilo que poderia de fato ter mudado as coisas, se é que algo o poderia. Ela requer tão somente a ideia do agente no momento da ação, da ação que me prejudicou, e da recusa dessa ação, tudo isso isolado da rede de circunstâncias na qual sua ação estava efetivamente inserida. Ela envolve precisamente a imagem da vontade que já foi exposta. Muita coisa pode brotar a partir desse sentimento básico. Ele serve de alicerce para o constructo da punição na sua forma mais pura e mais simples, e é muito significativo como a linguagem da retribuição emprega com naturalidade noções teleológicas de conversão, educação, ou melhoria (“ensinar-lhe uma lição”, “mostrar a ele”) enquanto insiste, ao mesmo tempo, que sua visada é inteiramente retrospectiva e que, na medida em que é puramente retributiva, não busca uma verdadeira reforma10. Mas o constructo é pelo menos igualmente operante quando não está em jogo nenhuma 10 Um exemplo particularmente esclarecedor é a discussão de Robert Nozick sobre punição retributiva in Philosophical Explanations (Oxford: Oxford University Press, 1984, p. 363 e segs.). Sua tentativa heróica de expressar o que a pura retribuição tenta alcançar (em oposição ao que, de fato, ela faz) revela, ao que me parece, que não há espaço lógico para que a pura retribuição tenha sucesso. 30 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche punição real, mas apenas concepções exclusivamente morais de culpa e censura, e neste caso o constructo envolve uma abstração a mais; ele introduz não apenas a ideia da retribuição por causação retrospectiva, como a ideia própria à moralidade de uma lei que se impõe embora sem sanções, de um julgamento que não comporta nenhum poder além do julgamento ele mesmo. Conclusão Este é, naturalmente, apenas um esboço de uma possível descrição extraída (de forma bastante direta) de material nietzschiano. Seu aspecto mais importante para o presente propósito é sua estrutura. Nós começamos com um suposto fenômeno psicológico, o querer, associado com a concepção do Eu na ação. O fenômeno parece reconhecível na experiência, e parece também ter uma certa autoridade. Sua descrição já comporta dificuldades e obscuridades, mas propostas de simplesmente eliminá-lo da explicação ou ignorá-lo parecem ter ignorado com freqüência algo importante acerca da ação, ou mesmo omitir a sua essência. Ter em mente que imagens distintas da ação têm sido sustentadas em diferentes culturas e que a noção mesma de ação não é algo transparente pode nos ajudar a ver que a integridade da ação, a genuína presença do agente na mesma, pode ser preservada sem esta imagem [peculiar] da vontade – que ela só pode, na verdade, ser preservada sem esta imagem. O processo pelo qual nós podemos vir a enxergar isso pode ser complexo e doloroso o bastante para nos fazer sentir que não apenas aprendemos uma verdade, mas que fomos aliviados de um fardo. Uma vez que a imagem não é nem coerente nem universal, mas mesmo assim tem essa autoridade, nós precisamos nos perguntar de onde ela vem e que função ela cumpre. A imagem não está por si mesma inequivocamente ligada à moralidade, oferecendo antes uma imagem da ação voluntária em geral; mas há um fenômeno moral, uma certa concepção da censura, à qual ela se ajusta de cadernos Nietzche 29, 2011 31 Williams, B. forma imediata. Esta concepção tampouco é universal, sendo antes parte de um complexo particular de ideias éticas, com outros traços peculiares e afins. O ajuste entre a concepção psicológica particular e as exigências da moralidade nos permite ver que essa peça de psicologia é ela mesma uma concepção moral, que, além disso, compartilha aspectos notavelmente duvidosos dessa moralidade particular. Cumpre acrescentar ainda que nós podemos estar aptos a fornecer algumas concepções psicológicas alternativas que nos ajudem a entender as motivações dessa forma particular do ético. Essas concepções, tais como apresentadas por Nietzsche sob o nome de ressentimento, decerto conduzem totalmente para fora do [domínio do] ético, em direção às categorias de ódio e de poder; e o quanto essas categorias são explicativas não pode ser uma questão que cabe apenas à filosofia decidir. Outras explicações podem ser necessárias, e pode ser que elas se revelem mais fundamentalmente ligadas a noções de justiça, por exemplo. Mas ao contrapor essas explicações umas às outras, e ao diagnosticar a psicologia da vontade como uma exigência do próprio sistema da moralidade, nós estaremos seguindo uma rota inequivocamente nietzschiana em direção à naturalização da psicologia moral. Abstract: In this paper Bernard Williams points out the theoretical difficulties involved in any attempt to define what would be a “naturalistic” moral psychology. According to Williams´s reading, Nietzsche´s attempts to develop a minimalistic moral psychology in his explanation of moral phenomena by introducing in his analysis both non-moral vocabulary and information obtained from non-moral domains of human experiences would be more understandable if they were described as a kind of “realism”. Williams applied this hermeneutical hypothesis to the nietzschean analysis of the “willing” phenomenon, which is connected with a very peculiar view of the conditions for assigning responsibility and blame. Keywords: moral psychology – naturalism – realism – willing - blame 32 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche referências bibliográficas 1. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke.Kritische Studienausgabe. Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1980, 15 v. 2. __________. Beyond Good and Evil. Trad. Walter Kaufmann. New York, 1966. 3. __________. Daybreak. Trad. R. J. Hollingdale. Cambridge: Cambridge University Press. 1982. 4. __________. The Genealogy of Morals. Trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale. Nova York, 1967. 5. NOZICK, Robert. Philosophical explanation. Oxford: Oxford University Press, 1984. Artigo recebido em 10/04/2011. Artigo aceito para publicação em 05/05/2011. cadernos Nietzche 29, 2011 33 O naturalismo de Nietzsche O naturalismo de Nietzsche* Richard Schacht** Resumo: Partindo da discussão de algumas versões recentes da relação entre Nietzsche e o naturalismo filosófico e científico, o artigo consiste em uma apresentação daqueles traços do pensamento nietzschiano que mais plausivelmente podem ser tomados como naturalistas. Admitida a rejeição, pelo filósofo, da existência de qualquer realidade mais verdadeira do que a que constitui o mundo da nossa experiência, avança-se no sentido de considerar a emergência das sensibilidades e o desenvolvimento das formas de vida como aspectos centrais do naturalismo de Nietzsche — portanto, reconhecidamente incompatível com qualquer modo de pensamento cientificista. Palavras-chave: ciências da natureza – formas de vida – história – naturalismo - sensibilidade Nietzsche parece estar sempre na necessidade de ser resgatado da assimilação a modos de pensamento que estão em desacordo significativo com o seu próprio modo de pensar. Mas o elenco de personagens muda a cada 15 ou 20 anos. Uma vez foi preciso resgatá-lo do alinhamento com o nazismo. Depois da associação com o existencialismo. Em seguida da identificação com o pós-estruturalismo. Recentemente entrou em voga uma nova e problemática assimilação, a algo que é tão distinto dos desenvolvimentos anteriores quanto estes mesmos eram distintos entre si. Para muitos de nós, * Tradução de Olímpio Pimenta. Revisão da tradução de Rogério Lopes. Agradecemos ao Prof. Richard Schacht por ter aceito o convite para publicar neste número especial dos Cadernos Nietzsche e por ter nos enviado um artigo inédito (Nota do colaborador). ** Professor Emérito da Universidade de Illinois, Urbana-Champaign, Estados Unidos. E-mail: [email protected] cadernos Nietzche 29, 2011 35 Schacht, R. que tanto nos empenhamos para que Nietzsche fosse levado a sério nos círculos da filosofia analítica como algo mais do que um mero proto-pós-estruturalista, não é pouco irônico que hoje, ao menos em alguns círculos, ele comece a ser levado a sério por ser seriamente mal entendido na direção contrária, e interpretado de forma cientificista sob a bandeira do “naturalismo”. O problema, tal como o vejo, não é com esta bandeira (que, segundo meu entendimento, é de fato bastante apropriada quando adequadamente compreendida), mas, antes, com a orientação sobre como ela deve ser tomada no caso de Nietzsche. Assim, considero que ele precisa mais uma vez ser resgatado — da mais recente de uma longa série de tratamentos duvidosos de tipo procustiano. Ao me ocupar do tema, espero defender de modo convincente que seu tipo de naturalismo deve ser entendido de modo diverso — e que, assim entendido, ele é um “bebê” promissor, que não deveria ser jogado fora com a água do banho cientificista na qual ele vem sendo imerso. I Há tempos que considero que Nietzsche foi um pensador “naturalista” em termos filosóficos, que dispôs de uma agenda filosófica significativa que se torna mais compreensível se entendida nestes termos1. Essa é uma caracterização com a qual muitos vieram a concordar — ao menos na parte da comunidade filosófica em que predomina uma mentalidade analítica. Mas existem muitos tipos de 1 Esta foi a tese básica e o tema unificador de meu Nietzsche (London: Routledge & Kegan Paul; publicado na coleção “Argumentos dos filósofos” por Ted Honderich em 1983). Ver também meu Making sense of Nietzsche [Interpretando Nietzsche] (Urbana & Chicago: University of Illinois Press, 1995), capítulo 10, “How to Naturalize Cheerfully: Nietzsche’s “Frohlische Wissenschaft” [Como naturalizar sem perder o bom humor: A gaia ciência de Nietzsche]. 36 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche coisas chamadas “naturalismo” na literatura filosófica; e seria um erro supor que qualquer uma delas em particular é aquela esposada por Nietzsche, ou à qual ele tenderia — especialmente porque existem alguns tipos de naturalismo acerca dos quais ele é bastante desdenhoso, e até contundentemente crítico. Por exemplo, há o tipo “mecanicista” que ele chama de uma “das mais estúpidas [der dümmsten]” maneiras de apreciar e interpretar a música (mas não só a música) no livro V da segunda edição de A gaia ciência (FW/ GC 373, KSA 3.626)2, assim como o tipo que ele atribui (em Para além de bem e mal) aos “Naturalisten” cuja inépcia [Ungeschick] é tal que “mal tocam a alma e a perdem” (JGB/BM 12, KSA 5.27). Assim precisamos considerar que tipo de naturalismo é o seu. Em várias ocasiões, o próprio Nietzsche faz um uso positivo da linguagem do “naturalismo” para caracterizar seus esforços e projetos filosóficos. Assim, por exemplo, no início do livro III da primeira edição de A gaia ciência ele escreve: “Quando poderemos começar a nos naturalizar, nós humanos [uns Menschen ... zu vernatürlischen] em termos de uma natureza pura, novamente descoberta, novamente redimida! — isto é, “natureza” reconcebida de uma maneira inteiramente desdivinizada [ganz entgöttlicht], purificada de todos os traços da ideia de Deus (FW/GC 109, KSA 3.469). E em Para além de bem e mal ele proclama de modo similar a “tarefa” de “traduzir o homem de volta na natureza” [den Menschen ... zurückübersetzen in die Natur], atentando para que “daqui em diante o homem se coloque face ao homem como hoje, endurecido [hart geworden] no treino [Zucht, aprendizado, literalmente ‘cultivo’] da Wissenschaft, ele se coloca face à outra natureza [der anderen Natur]” – particularmente no sentido de ser “surdo ao canto de 2 Geralmente sigo as traduções da obra em inglês feitas por Kaufmann ou Hollingdale (preferindo Kaufmann quando tiverem sido feitas versões pelos dois), mas eu as modifico sempre onde julgo preferíveis diferentes variantes para o alemão de Nietzsche. cadernos Nietzche 29, 2011 37 Schacht, R. sereia dos velhos e metafísicos apanhadores de pássaros que têm soprado para ele já há muito ‘você é mais, você é superior, é de uma origem diferente’[anderer Herkunft]!” (JGB/BM 230, KSA 5.169). Para Nietzsche, nós Menschen chegamos a nos diferenciar significativamente do resto da natureza em torno de nós; mas isto, ele insiste, é devido a outra coisa que a uma “origem diferente”, no sentido de originariamente distinta. Não obstante os muitos comentários críticos de Nietzsche à Wissenschaft, considero sua atitude geral para com as Wissenschaften e o modo como estas se relacionam com seu tipo de filosofia como algo em geral positivo, desde que elas não ultrapassem seus limites nem sejam superestimadas. (Esses termos alemães são comumente traduzidos por “ciência” e “as ciências”; mas já que tanto para Nietzsche quanto no uso corrente do século XIX tais termos abrangem disciplinas como história e linguística [Sprachwissenschaft], eles são melhor interpretados quando tomados em sentido mais amplo, o que ocorre quando Nietzsche usa tais termos para significar algo como “investigação cognitiva” e “disciplinas cognitivas” de várias espécies, dedicadas à obtenção de uma variedade de formas de conhecimento). Nietzsche está longe de ser hostil ou desdenhoso em relação às ciências da natureza [Naturwissenschaften], isto sem mencionar as Wissenschaften em geral. Com efeito, da primeira seção de Humano, demasiado humano (1878) em diante Nietzsche passa a atribuir grande importância à sofisticação científico-natural (bem como à histórica, à cultural, à lingüística e à psicológica) do pensamento filosófico, e também à consideração filosófica do que pode ser aprendido sobre nós mesmos e o nosso mundo pela via da investigação científico-natural. Para enfatizar o ponto, recorro a uma palavra antiga, mas ainda útil da língua inglesa com o intuito de caracterizar seu pensamento filosófico em geral — e seu naturalismo em particular —; ele é, entre outras coisas, scientian [instruído]. Vale dizer: entre outras coisas, seu pensamento pretende ser cientificamente informado e sofisticado, e ele confere importância a este propósito. 38 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche Naturalismos que vão mais longe — por privilegiar o pensamento científico-natural, por supor que tudo que diz respeito à realidade humana deve ser explicado e entendido nos termos definidos pelo mesmo tipo de causas deterministas encontradas em teorias e explicações científico-naturais em geral; por considerar tal pensamento não questionável no que concerne ao status de seus tipos de conhecimento, metodologicamente paradigmático, capaz de abarcar tudo em seu escopo e conclusivo em sua autoridade — podem ser chamados “cientificistas”. Do modo como o leio, o tipo de naturalismo de Nietzsche não é, de modo algum, desse gênero. De fato, eu diria que ele não só se abstém claramente de semelhante “cientificismo”, como se coloca em oposição resoluta a ele. Ou seja: ele tem objeções consideráveis ao pensamento científico — e especialmente ao pensamento científico-natural — tão logo se pretenda que este nos fornece não só conhecimento digno de consideração sobre muitas coisas, mas a versão completa em relação a tudo, inclusive à realidade e ao mundo humano em toda sua profusão.O naturalismo de Nietzsche é um tipo de naturalismo que respeita as Wissenschaften e se vale delas — incluindo sem sombra de dúvida as ciências da natureza —, mas que não se identifica com elas, não deposita nelas todas as suas esperanças, e nem tampouco extrai delas todas as suas inspirações. Este tipo de naturalismo está determinado a levar em conta a investigação científica e o que pode ser aprendido e entendido através dela. Mas de forma alguma postula, ou tampouco supõe que não possa haver algo mais sobre a realidade humana e sobre o mundo no qual nos encontramos, com tudo o mais que isso abarca, exceto aquilo que as ciências da natureza são capazes de oferecer e dizer. cadernos Nietzche 29, 2011 39 Schacht, R. II Alguns intérpretes de Nietzsche em anos recentes tomaram-no não apenas como um naturalista filosófico do gênero amplamente “scientian” [instruído], mas como um naturalista cientificista. Brian Leiter é um caso típico. Em termos básicos, estou de acordo com a afirmação de Leiter, no início de seu Nietzsche on morality, segundo a qual Nietzsche pertence “à companhia de naturalistas como Hume e Freud — isto é, grosso modo ele está entre os filósofos da natureza humana”3. Mas então começam meus problemas com sua restituição do naturalismo de Nietzsche. Leiter estrutura sua discussão de Nietzsche a partir da “distinção entre duas doutrinas naturalistas básicas: metodológica (ou M-naturalismo) e substantiva (ou S-naturalismo)”. Ele caracteriza a “doutrina metodológica” como a convicção de que “a pesquisa filosófica deve ser contínua em relação à pesquisa nas ciências”4 — isto é, “contínua em relação às ciências tanto em virtude de sua dependência dos resultados efetivos do método científico em diferentes domínios quanto em virtude do emprego e da imitação de modos especificamente científicos de ver e explicar as coisas”5. Com esta última frase Leiter quer dizer: ver tudo o que acontece no mundo — incluída a vida humana — como fenômenos com “causas deterministas” semelhantes às que figuram em teorias e explicações científicas. “O principal da atividade filosófica [de Nietzsche]”, ele sustenta, foi “dedicado a variações no projeto naturalista” e à “explicação naturalista” de diversos fenômenos humanos “que é contínua tanto em relação aos resultados quanto aos métodos das ciências”6. Leiter considera que isso torna Nietzsche 3 4 5 6 LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, p. 2-3. Ibidem, p. 3. Ibidem, p. 5. Grifos acrescentados. Ibidem, p. 11. 40 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche um “naturalista metodológico” no sentido precisado. Ele considera ainda que Nietzsche é o que chama de “M-naturalista especulativo” assim como Hume, que (diz Leiter) “constrói uma teoria especulativa da natureza humana... modelada sobre o paradigma científico mais influente na época”7. De acordo com Leiter, isto é exatamente o que Nietzsche também fez — e é assim que seu naturalismo deve ser entendido. Em uma revisão recente de sua posição, intitulada “Nietzsche’s naturalism reconsidered” [“O naturalismo de Nietzsche reconsiderado”], Leiter refere-se ao que ele chama “a convicção ‘ontológica’ de que as únicas coisas que existem são naturais” como “a parte principal do naturalismo substantivo de Nietzsche”8. Ele situa o “naturalismo especulativo” de Nietzsche não apenas entre as “teorias especulativas da natureza humana” que “são informadas pelas ciências”, mas também entre aquelas comprometidas com “uma visão científica de como as coisas funcionam”9. Ele admite que às vezes Nietzsche se afasta desse “projeto naturalista” de “explicação” natural em moldes científicos e avança o que chama, um tanto pejorativamente, de “tarefa independente... daquele que ‘cria’ valores”10. Entretanto, quando se trata de “como as coisa funcionam” e do que ocorre na vida humana (juntamente com tudo o mais), a visão global de Nietzsche (segundo Leiter) é uma “visão científica”. Eu diria que isso é um exemplo paradigmático da interpretação cientificista do naturalismo de Nietzsche. Eu de minha parte concebo o seu naturalismo de um modo bastante diferente: como algo que não apenas se coloca, mas inclusive pretende se colocar 7 Ibidem, p. 4. 8 Idem, Nietzsche’s naturalism reconsidered. In: JAMES, K.; RICHARDSON, J. (orgs.). Oxford Handbook of Nietzsche. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 5. (no prelo). 9 Ibidem, p. 3. Grifos acrescentados. 10 Ibidem, p. 11. cadernos Nietzche 29, 2011 41 Schacht, R. exatamente como uma alternativa — e até mesmo como um antídoto — a esse tipo de naturalismo (cientificista). Em minha leitura, Nietzsche não endossa nenhuma das “duas doutrinas naturalistas” de Leiter — a que concerne ao “que existe” e aquela relativa a “como as coisas funcionam” e devem ser explicadas. Nietzsche decerto supõe que tudo no mundo (a realidade humana incluída) começou como algo meramente “natural”. Sem dúvida ele defende que a interpretação filosófica de tudo o que diz respeito à realidade humana (junto com tudo o mais) precisa ser “informada pelas ciências” que sejam pertinentes. E ele supõe ser o caso que tudo a respeito da realidade humana — e tudo o que entra na experiência e na vida humanas — veio a ser como é por meio de um processo cujo caráter é inteiramente mundano. Mas tais convicções, enquanto traços de seu naturalismo, não mostram nem implicam que ele seja um naturalista cientificista. E as variantes e “doutrinas” do naturalismo que Leiter identifica são leitos de Procusto nos quais o seu naturalismo não se ajusta. Parece-me que não fazemos nenhuma justiça ou favor a ele e a seu tipo de naturalismo se o esticamos ou acomodamos para caber naqueles moldes. Poupado de tais modificações procusteanas, é melhor que ele seja acrescentado à lista de naturalismos possíveis, na condição de alternativa significativa e promissora em relação a outros. III Christopher Janaway ofereceu recentemente em seu livro Beyond Selflessness [Além do altruísmo] uma caracterização do que ele chama de “naturalismo nietzscheano em sentido amplo” que considero muito mais acertada. Ele escreve: [Nietzsche] se opõe à metafísica transcendente, seja ela a de 42 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche Platão, do cristianismo ou de Schopenhauer. Ele rejeita as noções de alma imaterial, de uma vontade que comanda de modo absolutamente livre, ou do puro intelecto transparente a si mesmo, e em lugar disso enfatiza o corpo, discute a natureza animal dos seres humanos, e procura explicar inúmeros fenômenos recorrendo a impulsos, instintos e afetos que localiza em nossa existência física corpórea. Seres humanos devem ser “traduzidos de volta na natureza”, uma vez que, de outro modo, nós falsificamos sua história, sua psicologia e a natureza de seu valor...11 Em seu ensaio recente, Leiter qualifica essa caracterização de forma depreciativa de um “naturalismo de lista de lavanderia”, supondo criticá-la com eloquência ao perguntar: “Por que é este justamente um conjunto de convicções que um filósofo naturalista deveria sustentar?”12. Mas Janaway não está fazendo semelhante reivindicação. Ele está antes caracterizando “o naturalismo de Nietzsche”, o que precisa ser feito com cuidado antes que aquela questão possa ser considerada de forma relevante. Seu entendimento disso é bastante similar ao meu, até onde é dado ver. Com razão, Janaway observa e enfatiza que os métodos de Nietzsche são freqüentemente “descontínuos em relação àqueles da investigação científica empírica”, ao invés de baseados ou modelados nela13; que “fatos explicativos sobre mim, mesmo que de alguma maneira se localizem em minha psico-fisiologia, são essencialmente configurados pela cultura”14; e que: “Se as explicações causais de Nietzsche sobre nossos valores morais são naturalistas, elas o são num sentido que inclui no ‘natural’ não só a constituição psico-fisiológica do indivíduo cujos valores estão por explicar, 11 12 13 14 JANAWAY, C. Beyond Selflessness. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 34. LEITER, B., Ibidem, p. 2. JANAWAY, C., Ibidem, p. 39. Grifo acrescentado. Ibidem, p. 47. cadernos Nietzche 29, 2011 43 Schacht, R. mas também muitos fenômenos culturais complexos”15. Aqui Janaway está mirando na direção certa; mas parece-me que precisamos avançar adiante nessa direção a fim de expor a coloração completa do naturalismo de Nietzsche. Leiter, em seu ensaio recente, concede a Janaway que “o naturalista Nietzsche está interessado em cultura”; ele insiste, porém, que “isto não deveria nos levar a perder de vista o papel que causas psico-fisiológicas desempenham na explicação da moralidade que está sendo oferecida por ele”16. Com isso ele segue sustentando que “Causação e explicação causal são centrais no naturalismo de Nietzsche”17, o que envolve, basicamente, “a oferta de teorias” que “são fundamentalmente modeladas na ciência, no sentido de que buscam revelar os determinantes causais desses fenômenos, que sejam típicos de diversos fatos fisiológicos e psicológicos sobre as pessoas”18 . Eu julgo que isso é uma má caracterização (ou má interpretação) do fato de que a explicação processual é central no naturalismo de Nietzsche. Explicação processual não é o mesmo que explicação causal. Creio que precisamos nos afastar do paradigma científico-natural causal-determinista esposado por Leiter mais ainda do que Janaway o faz ao propor sua alternativa à posição de Leiter, apresentada em termos liberais (e nomeadamente não cientificistas), quando afirma, por exemplo, que “Nietzsche pode ser lido como um naturalista na medida em que busca explicações que referem causas de um modo que não entra em conflito com a ciência”19. Seria melhor, segundo me parece, abandonar toda referência a “causas” em qualquer afirmação com esse nível de 15 16 17 18 19 Ibidem, p. 52-53. LEITER, B., Ibidem, p. 20. Ibidem, p. 21. Ibidem, p. 17. JANAWAY, C., Ibidem, p. 52. Grifo acrescentado. 44 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche generalidade; pois embora Nietzsche recorra ocasionalmente a uma linguagem causal, quando se expressa de forma mais precisa ele tem sérias reservas ao conceito de “causa e efeito”, chegando a evitá-lo em muitos contextos. Eu retificaria e expandiria a afirmação de Janaway dizendo (de modo um pouco mais detalhado): “Nietzsche pode ser lido como naturalista na medida em que busca explicações e interpretações sobre todas as coisas humanas que não entrem em conflito com a ciência, que sejam cientificamente informadas onde couber, e não façam referência a nada além das transformações e processos inteiramente mundanos em nossa animalidade humana original e fundamental”. (Com “mundano” pretendo simplesmente captar o espírito de temas de Nietzsche tais como “o caráter deste mundo” e as origens modestas de tudo o que é humano). Parece-me que uma consideração abrangente sobre o modo de pensamento “desdivinizado” e pós-metafísico que anima, do início ao fim, suas discussões sobre a vida e o mundo — e sobre a realidade humana em particular – nos fornece um guia mais apropriado para entender o significado do naturalismo de Nietzsche. É deste modo que tento proceder, e é o que espero fazer a seguir. IV Antes de entrarmos nos pormenores, alguns comentários preliminares são oportunos. A interpretação de Nietzsche é um negócio notoriamente complicado. Em várias passagens ele diz coisas que são difíceis de compatibilizar com basicamente qualquer interpretação de seu pensamento que atribua a ele posições definitivas de algum tipo. Ao tentar decidir o que fazer com elas e que peso lhes conferir, e ao considerar quais linhas interpretativas devem ser favorecidas e quais desfavorecidas, acredito que um peso considerável deve ser dado às suas preocupações recorrentes e que cadernos Nietzche 29, 2011 45 Schacht, R. sejam evidenciadas em uma vasta gama de seus escritos, ainda que de vez em quando ele diga coisas que possam soar — ou até mesmo ser, se tomadas literalmente — estranhas em relação a essas preocupações. Vale também lembrar, nessa aproximação mais geral, que Nietzsche foi um amante da vivacidade da linguagem, da retórica poderosa, da ironia bem colocada e das figuras do discurso dotadas de graça. Além disso, ele foi um polemista feroz e arrojado, que teve em sua obra publicada — sem mencionar seus cadernos de notas — no mínimo tantos momentos pouco cautelosos, para não dizer violentos, quantos foram os cuidadosos e bem medidos. Mais ainda, ele faz com freqüência extensas generalizações que não se incomoda em qualificar e nem se esforça em explicar, enquanto as testa ou emprega para efeito de provocação. Ele foi um pensador declaradamente experimental, cuja experimentação filosófica não se restringiu aos seus cadernos (nos quais virtualmente tudo o que escreveu deveria ser considerado antes um experimento do que um compromisso). Por todas essas razões, deve-se proceder com cuidado ao considerar o que fazer com qualquer passagem de seus escritos, publicada ou não, e é mais aconselhável que ele seja lido de forma compreensiva ao invés de seletiva. E deve-se sempre considerar o escritor juntamente com suas preocupações antes de antecipar qualquer conclusão sobre seu sentido e resultado. E mais: como Nietzsche faz ver nitidamente em seu Prólogo a Para além de bem e mal, e repetidas vezes alhures, dogmatismo e alarde doutrinário são anátemas para ele. Em épocas desconstrucionistas era um erro comum supor que ele nunca queria dizer o que parecia estar dizendo e fazendo ao avançar determinadas proposições, teorias ou interpretações. A proposição e a crítica de estimativas e interpretações é moeda corrente em seus escritos, assim como o uso de frases e imagens surpreendentes no curso desta atividade propositiva e crítica. Entretanto, há também um mal-entendido em interpretá-lo como se ele estivesse promulgando doutrinas 46 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche com as quais teria um compromisso dogmático. Em Assim falava Zaratustra e em outras ocasiões encontramos declarações que ele descreve com a palavra “Lehre”; e esta é uma palavra que pode e costuma ser traduzida por “doutrina”. Em Assim falava Zaratustra, contudo, as “Lehren” que ele põe na boca de Zaratustra são indubitavelmente melhor compreendidas como “ensinamentos” (outro significado do termo), exortações e imagens poderosas. Também em outros de seus escritos, os pronunciamentos de Nietzsche assumem em algumas circunstâncias essa característica de “meu ensinamento”. Em outras circunstâncias ele faz asserções de um modo direto, pouco nuançado e enfático, o que pode nos levar a interpretá-las como se estivessem sendo enunciadas em um espírito doutrinário. Parece-me, contudo, que mesmo então elas não devem ser entendidas como “doutrinas” estabelecidas com as quais ele está incondicionalmente comprometido, mas como teorias, interpretações, estimativas ou simples pontos de vista que vão sendo desenvolvidos, sujeitos às advertências inerentes à sua recusa generalizada do dogmatismo e à sua adesão à ideia de que toda investigação cognitivo-interpretativa, mesmo em seus melhores momentos, permanece indefinidamente experimental e provisória. Elas devem ser levadas a sério (pelo menos quando se trata de interpretá-lo) — mas nem sempre da mesma forma, ou tão diretamente como tendemos a supor que muitos filósofos desejam e deveriam ser levados a sério. V O tipo de naturalismo de Nietzsche, assim como seu tipo de filosofia, toma como seu ponto de partida o que ele resume na expressão “a morte de Deus” — isto é, o fim da plausibilidade, não só da ideia judaico-cristã de Deus, mas também de qualquer modalidade religiosa, metafísica ou moralmente imaginada de realidade cadernos Nietzche 29, 2011 47 Schacht, R. “superior” ou “mais verdadeira” que seja subjacente ou transcendente ao mundo no qual nos encontramos e vivemos nossas vidas. Este tipo de naturalismo procede segundo a suposição de que a modalidade de mundo em que consiste “este mundo” — “o mundo da vida, da natureza e da história [die Welt des Lebens, der Natur und der Geschichte]” (FW/GC 344, KSA 3.577) — é a única modalidade de mundo e realidade que há, sem que qualquer configuração particular deles seja essencial ou fundamental. Este tipo de naturalismo procede ainda em conformidade com o que chamarei “diretriz” geral, no sentido de que tudo que ocorre e vem a ser neste mundo é a efetivação de processos ocorridos em seu interior, que são inteiramente devedores de sua dinâmica interna e das contingências geradas por estes processos e que vêm à luz de baixo para cima (por assim dizer), através da elaboração ou transformação, relacionalmente-precipitada, daquilo que já estava acontecendo ou já tinha chegado a ser. Sugiro que este seja o naturalismo de Nietzsche em sua forma mais condensada. Ele não é mais do que isto em termos de qualquer espécie de “doutrina” ou conjunto de “doutrinas”; e mesmo sua “diretriz” é apenas isso — uma diretriz. Sua adesão a ele, inequívoca sem ser dogmática, é baseada em sua crescente confiança (testada em combate) de que será capaz de enfrentar todos os desafios e lidar de forma defensável com todos os contraexemplos que lhe forem dirigidos (como no caso dos ideais ascéticos, dos valores morais e das ideias religiosas) — embora siga aberto a eles. No segundo Prefácio, acrescentado por Nietzsche em 1886 a O nascimento da tragédia (1872), ele comenta a respeito de si mesmo que embora seu “olho” de intérprete tenha se tornado durante este intervalo de tempo “mais velho e cem vezes mais exigente” do que era antes, ele “não se tornou alheio à tarefa que seu audacioso livro ventilou pela primeira vez: ver a ciência sob a Optik do artista, mas arte sob a da vida” — ao que acrescenta, duas seções adiante, 48 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche “a questão mais grave de todas”: nomeadamente, “Qual é, visto sob a Optik da vida, o significado da moralidade?” (GT/NT, Tentativa de autocrítica 2 e 4, KSA 1.14 e 17). Essas “questões” não são “doutrinas” — assim como tampouco o é a convicção de que vale a pena explorá-las. Pode-se considerar a proposição e a exploração de tais questões como o projeto básico do naturalismo de Nietzsche em geral. Ao fazê-lo, é claro que ele não tinha em mente (ao contrário do que entende Leiter) proceder “em relação ao pensamento causal científico-natural de uma maneira contínua, ou por ele modelada”, nem quando as questões foram “ventiladas” pela primeira vez em 1872, nem quando escreveu aquelas linhas em 1886. Para Nietzsche, a filosofia envolve experimentar e propor relatos de vários gêneros — alguns “genealógicos” ou processuais, outros interpretativos ou aptos a atribuir sentido. Ocasionalmente — mas de modo algum sempre, ou sequer em sua maior parte — eles são moldados nos termos da explicação das ciências naturais; ainda mais improvável seria dizer que estes relatos se baseiam explicitamente no apelo ao resultado de pesquisas do tipo das que são realizadas pelas disciplinas das ciências naturais. Com freqüência, tais relatos são propostos e desenvolvidos de forma meramente imaginativa ou hipotética, a fim de ajudar a evidenciar a plausibilidade da diretriz segundo a qual se pode dar sentido a todas as coisas humanas em termos de seu desenvolvimento processual neste mundo, ainda que dessa maneira eles resultem problemáticos. Em Para além de bem e mal, ao discutir o modo de pensar que ele chama “sensualismo [Sensualismus]”, Nietzsche o defende “no mínimo como uma hipótese regulativa, senão como um princípio heurístico” (JGB/BM 15, KSA 5.29). Tal linguagem (deixando inteiramente de lado a questão sobre o que ele entende aqui por “Sensualismus”) pode ser empregada com proveito no presente contexto. Sugiro que, para Nietzsche, naturalismo (interpretado como acabei de esboçar) é ao mesmo tempo uma “hipótese regulativa” cadernos Nietzche 29, 2011 49 Schacht, R. (em termos substantivos) e um “princípio heurístico” (em termos metodológicos). Enquanto “hipótese regulativa”, trata-se da hipótese de que essa diretriz funcionará bem (em termos de plausibilidade, viabilidade e significatividade contínuas) se nos atemos a seus limites na medida em que a investigação filosófica, a reflexão e os procedimentos interpretativos seguem o seu rumo. Enquanto uma “heurística”, trata-se do pensamento de que aproximar-se das coisas desse modo será proveitoso para a investigação interpretativa e reinterpretativa. O naturalismo de Nietzsche, tal como ele se apresenta em seus diversos escritos, não está de forma alguma comprometido com a convicção de que tudo o que acontece na vida humana, assim como no desenvolvimento e desdobramento da realidade e da experiência humanas, pode ser adequadamente explicado e totalmente compreendido em termos de conceitos e processos científico-naturais ou científica e naturalmente modelados — sendo a “causalidade” o primeiro e principal elemento da experiência humana a escapar à explicação científica. De fato, ele admite que a sofisticação do pensamento causal característico das ciências naturais e a confiança que elas tendem a depositar neste tipo de pensamento constituem simultaneamente sua força e sua limitação na parceria que se estabelece entre elas e a filosofia com vistas ao tratamento de tais temas [relativos à realidade humana]. Sob este aspecto, ele parece compartilhar ao menos algo da profunda dúvida mencionada em seus comentários relativos a Kant em sua discussão sobre “O velho problema: ‘O que é alemão?’” no livro V de A gaia ciência: “Como alemães, duvidamos com Kant da validade última do conhecimento científico-natural e de tudo o que se deixa conhecer causalmente [ Allem, was sich causaliter erkennen lasst]”. Pois o que é “cognoscível [Erkennbare]” desse modo, prossegue ele, “parece-nos ser de menor valor”. (Isto é: de menor valor do que aquilo que não “se deixa conhecer causalmente”, e assim de forma científico-natural, porque é mais do que meramente natural. Essa é uma ideia que 50 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche ele endossa claramente, mas à qual ele confere um sentido novo e muito diferente, um sentido “ligado a este mundo”, em termos da transformação do natural que lhe confere sentido) (FW/GC 357, KSA 3.597-602). Nietzsche não duvida nem por um instante que os processos pelos quais a realidade humana veio a ser como é, e que as várias espécies de coisas que entram na vida humana são engendradas e perpassadas por necessidades, influências, atrações, injunções, reações, interações e relações de poder de toda sorte. Ele certamente duvida (e até zomba) da ideia de que o pensamento causal em moldes científicos e naturais é capaz de fazer inteira justiça a todas elas, ou mesmo de ser adequado a um grande número delas — não obstante o contraste entre a “ciência” e o modo patológico de interpretação que ele associa ao cristianismo sacerdotal em O anticristo20, contraste que favorece a “ciência”, concebida como “o saudável conceito de causa e efeito” (AC/AC 49, KSA 6.228). “Traduzir o homem de volta na natureza”, levando em conta o que ele chama de “o terrível [schreckliche] texto básico do homo natura [homem em estado natural]”, de um modo que “se tornou duro no cultivo da ciência [hart geworden in der Zucht der Wissenschaft]”, não significa para Nietzsche tratar a realidade humana como se agora ela não fosse em nada diferente do que era quando nossa espécie apareceu pela primeira vez, nem tampouco lidar com ela em moldes puramente científico-naturais. De preferência, ser “endurecido na Zucht da Wissenschaft” para ele é questão de ter sido 20 Este título é comumente traduzido em inglês por The Antichrist [O anticristo]. Entretanto, como indica seu subtítulo (Fluch auf dem Christenthum [Curse upon Christianity / Maldição sobre o Cristianismo]), este título seria mais bem traduzido — de acordo com o uso comum da palavra alemã “Christ” para designar “cristão” ao invés de “o Cristo” — por The Anti-Christian [O anticristão]. cadernos Nietzche 29, 2011 51 Schacht, R. suficientemente disciplinado e formado no trato com o pensamento científico a ponto de se tornar “redlich” — isto é, não apenas “honesto” (como é habitualmente traduzida esta palavra favorita de Nietzsche), mas intelectualmente consciencioso, mentalmente forte, não sentimental e em guarda contra o querer crer (wishful thinking) — em nossa reinterpretação desdivinizada tanto da realidade humana quanto do mundo em que nos encontramos. E o que mais interessa a Nietzsche não é simplesmente o que esse “texto básico” foi originalmente e o que dele permanece, mas igualmente o potencial transformativo de que ele já deu provas, assim como as suas transformações futuras ainda possíveis. VI O ponto que acabamos de estabelecer é importante, desde que devidamente explicitado. O naturalismo de Nietzsche sustenta a possibilidade e a realidade de episódios qualitativamente transformadores na vida humana, ocorrendo no transcurso de eventos inteiramente humanos e mundanos — episódios que resultam na emergência de formas de vida (Lebensformen, “formas de vida” humanas) que se desenvolvem (e às vezes entram em mutação) de forma historicamente diversificada e que são social e linguisticamente configuradas. Nietzsche identifica e discute muitos fenômenos dessa natureza, de diferentes tipos e sujeitos à contingência histórica, que costumam variar significativamente em relação aos seus e a outros precedentes e contemporâneos, variações de natureza tanto histórica quanto biológico-evolucionária e que demandam, além disso, um tipo de compreensão distinto daquele fornecido pela consideração de seu embasamento fisiológico. (A expressão Lebensform, mais comumente associada a Wittgenstein, é também usada por Nietzsche em certas ocasiões, e é bastante adequada ao presente contexto). 52 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche O naturalismo de Nietzsche é sensível e atento às várias espécies de Lebensformen (e aos tipos de experiência, atividade e objetivação a elas associados) que vieram a se tornar parte da realidade humana, envolvendo a tentativa de compreendê-las de um modo que faça jus à riqueza e à diversidade por elas atingida, bem como às suas origens bem humanas (e muitas vezes demasiado humanas). Aquelas que ele menciona e discute incluem variados fenômenos sociais, culturais, políticos, religiosos, artísticos, científicos e até filosóficos. Todas elas (juntamente com “o tipo Mensch” em geral) devem ser ao mesmo tempo “traduzidas de volta na natureza” em sua constituição e origem básicas, mas também compreendidas em seu caráter de fenômeno humano — como um tipo de “natureza transfigurada” (conforme o modo de falar de Nietzsche), revelando algumas das coisas que nossa natureza, no princípio puramente natural, tinha de ter em si para ter sido engendrada e vindo a ser como é. Em certo sentido, o naturalismo de Nietzsche é talvez minimalista, comprometido com pouco mais do que a diretriz mencionada acima. Ainda assim é um naturalismo robusto, no sentido de ter olhos para a parafernália completa de nosso mundo e realidade humanos — bem diferente do naturalismo seco, descolorido e austeramente cientificista atribuído a Nietzsche por Leiter, segundo o qual “as únicas coisas que existem são naturais”, e tudo na e da realidade humana deve ser entendido em termos de “uma imagem científica de como as coisas funcionam”. O naturalismo próprio de Nietzsche é muito mais abrangente do que isso, tanto substantivamente (em termos de como está apto a falar do que existe e acontece no mundo da realidade humana) quanto metodologicamente (em seus modos de abordá-la e lidar com ela). O mundo da realidade humana segundo Nietzsche — “o mundo que nos concerne”, como ele por vezes o chama — contém entidades como palavras, linguagens, livros, pianos, óperas, sinfonias, peças, pinturas, esculturas, cidades, estados, universidades, exércitos, profissões, jogos, leis, moralidades e Wissenschaften. cadernos Nietzche 29, 2011 53 Schacht, R. Todas essas são coisas cuja existência está — para Nietzsche — acima de disputa. Embora haja um sentido em que elas são “naturais” (isto é, não têm origem supramundana), existe outro sentido em que elas, de modo algum, são apenas isso (isto é, compreensíveis nos termos do tipo de processos que bastam para explicar o que entra em conta e acontece no resto da natureza). As partes e pedaços da realidade “natural” que nelas figuram podem de alguma maneira ser aquilo de que elas “são feitas”; mas o que elas são é uma história muito diferente — ou melhor, uma extensa variedade de histórias diferentes. A fim de que se lhes compreenda, os meios segundo os quais tais coisas devem ser abordadas, referidas e interpretadas precisam estar adequadamente sintonizados com essas histórias diferentes — como Nietzsche tenta estar ao lidar com elas. Um naturalista seco poderia objetar: “Mas, falando de forma rigorosa e filosófica, coisas desse tipo não existem realmente enquanto tais; o que é realmente real, e realmente existe, são os elementos de que são feitas e os processos e relações causais nas quais aparecem”. Da parte do naturalismo nietzschiano, a réplica apropriada a esta objeção seria primeiro rir, e depois observar que esse modo de pensar representa a metafísica do “mundo verdadeiro” mais uma vez, e por essa razão figura entre os alvos dogmáticos visados pelo Prólogo de Para além de bem e mal. Embora os tipos de coisas mencionadas há pouco não sejam “coisas em si”, e sejam o que são apenas no contexto da vida humana, elas tampouco são “meras aparências”, às quais se poderia contrapor “coisas em si” geradas pela fantasia, mas de um gênero que poderia ser imaginado como possuindo um modo de “ser verdadeiro” do qual aquelas, enquanto meras aparências, careceriam. Elas existem — como realidades que vieram a ser em nossas vidas e em nosso mundo, no interior do qual foram engendradas. A geração de tais coisas, que envolve a transformação humanamente criativa dos recursos naturais de nossos corpos e ambiente, é fundamental 54 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche para o desenvolvimento e consubstanciação do que é mais que animal na realidade humana. Fazer justiça a elas e à diferença que seus efeitos acarretam na caracterização a ser obtida daquela realidade é desafio e tarefa central do naturalismo de Nietzsche. VII Isso tem implicações consideráveis em relação à maneira na qual aquela tarefa deve ser realizada — como Nietzsche torna vividamente claro em FW/GC 373, KSA 3.624-626, usando o exemplo da música para obter um efeito poderoso. Sua alegação aqui é que uma “interpretação do mundo” em moldes puramente científico-naturais — e especialmente uma “interpretação do Mensch” exclusivamente desse tipo, sem acréscimo — não seria melhor que uma espécie de interpretação e apreciação estritamente “científicas” do “que é efetivamente música em uma peça musical”, algo que ele ridiculariza. Semelhante naturalismo seria para ele “uma grosseria e ingenuidade”, e de fato (como ele coloca) seria “uma das mais estúpidas [dümmsten]” interpretações. O que há de “estúpido” e “ingênuo” nesse tipo de naturalismo é que, mesmo que um grande volume de conhecimento pudesse ser obtido por seu intermédio, limitar-se a esse tipo de interpretação seria tomar o que ele designa como “justamente o aspecto mais superficial e externo da existência” pela totalidade da existência. E isso seria um grande equívoco no caso de todo tipo de coisa que é constituída de sentido, ainda que ela seja igualmente baseada na natureza e materializada de um modo ou de outro. Nesta passagem o que Nietzsche tem em mente é especificamente o pensamento científico de tipo materialista “mecanicista”; mas o escopo de sua observação abrange o pensamento científico-natural em geral, sempre que este envolva a realidade e o mundo humanos: um tal pensamento é intrinsecamente cego ao sentido. cadernos Nietzche 29, 2011 55 Schacht, R. Ele está sintonizado com os aspectos observáveis das coisas, e estes excluem qualquer sentido que possa ser constitutivo delas; daí que um mundo concebido de acordo com essa forma de pensamento seria “essencialmente destituído de sentido [essentiell sinnlose]”. Uma interpretação desse tipo ignoraria completamente todas as camadas e texturas de sentido que contribuem tão decisivamente para que o que existe e o que acontece em nosso mundo e em nossas vidas sejam a realidade que são. Isso pode não ter tanta importância no caso dos tipos de fenômenos aos quais várias ciências naturais se ajustam. Importa bastante, porém, se tais modos de pensamento são mobilizados para tratar de assuntos que definitivamente não podem ser compreendidos com acerto sem levar em conta os tipos de significado que lhes dão sentido e fazem deles o que são — dos quais a música é o exemplo específico de Nietzsche aqui, embora um sem número de experiências e realidades humanas possa ser considerado analogamente. Assim, usando uma linguagem que enfatiza o ângulo epistêmico (mais do que meramente valorativo) em jogo, ele escreve: “O que alguém teria compreendido, entendido ou conhecido dela [von ihr begriffen, verstanden, erkannt]? Nada, realmente nada do que nela é propriamente música” (FW/GC 373, KSA 3.626; grifo acrescentado). Isto é, nada do que faz com que ela seja o que ela é, como o tipo de coisa formada a partir daquilo de que é feita. Todavia, são precisamente estes tipos de realidade e estes tipos de diferença que Nietzsche considera que nós filósofos devemos ser capazes de perceber — e de discernir com atenção, na condição de agentes a serviço do desenvolvimento de um naturalismo mais sofisticado. Vale insistir que o caso da música é especial sob muitos aspectos; e é indubitavelmente verdadeiro que há muito mais acerca da realidade humana que pode ser iluminado pela investigação científica de forma importante e proveitosa — de maneiras significativas para a própria apreensão e interpretação filosófica nietzschiana — do que questões do tipo “o que é ‘música’ na música”. 56 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche Assim como é igualmente certo que mesmo em relação a algo como a música há muita coisa que pode ser descoberta e aprendida mediante uma abordagem que não se limita a uma íntima familiaridade e a uma sensibilidade cultivada, fatores que Nietzsche considera necessários para a sua compreensão, mas que se serve igualmente de uma ampla variedade de disposições e perspectivas que podem ser direcionadas para os múltiplos aspectos da música como fenômeno e parte da realidade humana — algumas físico-científicas, fisiológicas, neurológicas e psicológicas, outras antropológicas, culturais, históricas, biográficas, sociológicas e mesmo tecnológicas. Isto serve para evidenciar e ilustrar um ponto importante sobre que tipo de naturalismo é o de Nietzsche. Ele próprio o indica numa passagem bastante conhecida da Terceira Dissertação da Genealogia da moral. Ali ele anota, acerca da necessidade da “Zucht [cultivo, treinamento] e da preparação do intelecto para sua futura objetividade”, que “quanto mais olhos, olhos diferentes, pudermos usar para observar uma mesma coisa [diselbe Sache], mais completo será nosso conceito dessa Sache, nossa ‘objetividade’”. E ele considera isso desejável não só para os propósitos da autoexpressão e da criação, mas principalmente porque “desse modo se saberá como tornar a diversidade [Verschiedenheit, variedade] de perspectivas e interpretações afetivas aproveitáveis para o conhecimento [fur die Erkenntniss]” (GM/GM III 12, KSA 5.364-365, segundo grifo acrescentado). Entendo os diferentes olhares sobre as coisas que acabei de mencionar como exemplos paradigmáticos de “mais olhos, diferentes olhos” sobre os quais ele fala aqui. E entendo que ele considera o tipo de mentalidade que ele associa ao pensamento científico-natural como um daqueles (ou ainda um conjunto daqueles) olhares, que é certamente necessário — mas que de modo algum é o único. Essa passagem notável tem grande relevância para a questão da “metodologia” naturalista de Nietzsche. Com efeito, ela pode ser vista como seu melhor pronunciamento isolado sobre esta questão. cadernos Nietzche 29, 2011 57 Schacht, R. De uma maneira interessante, ela pode ser associada com uma reflexão anterior, presente na primeira edição de Genealogia da moral, na qual ele discute tanto a genealogia do “pensamento wissenschaftlich” quanto alguns modos nos quais este pensamento exige complementação. Ele começa observando que “Tantas coisas têm que se unir para que surja o pensamento wissenschaftlich”. Então ele acrescenta que “enquanto elas ainda estavam separadas”, acontecia com frequência que o “seu efeito era o de um veneno”; mas “ao serem integradas no interior do pensamento wissenschaftlich, elas regulam umas às outras” e são capazes de trabalhar em conjunto para produzir, de acordo com as possibilidades humanas, um tipo de resultado muito diferente (em termos cognitivos e não apenas letais). É particularmente interessante, em relação ao ponto em questão, sua conclusão de que “mesmo agora parece distante o tempo em que as energias artísticas [kunsterischen Kräfte] e a sabedoria prática de vida irão se juntar ao pensamento wissenschaftlich para formar um sistema orgânico superior [höheres organischer System]” ou um modo de proceder no qual eles se complementem e suplementem uns aos outros. (FW/GC 113, KSA 3.474) Isso se parece bastante com uma receita prévia para o tipo de pensamento que caracterizaria a “filosofia do futuro” de Nietzsche. Para citar um exemplo a mais: na pouco usual, e por isso mesmo surpreendente “Nota [Anmerkung]” no final da Primeira Dissertação de Genealogia da moral, Nietzsche oferece o que entendo ser um excelente exemplo do tipo de coisa que ele está discutindo na seção 12 da Terceira Dissertação de Genealogia da moral (acima). Como no próprio livro, o tópico desse comentário conclusivo são os “conceitos morais” dos quais ele pretende tratar — mantendo seu compromisso com uma reinterpretação (naturalista) de todas as coisas humanas — em termos de sua “história” processual. (MA I / HH I 2, KSA 2.24-25) Ele começa sugerindo que essa é uma matéria que “demanda a atenção de filólogos e historiadores, bem como a dos filósofos profissionais”. Ele observa na 58 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche sequência que “é igualmente necessário atrair o interesse de fisiólogos e médicos [Mediziner]” para a empreitada, por ele defendida, de reavaliação “do valor dos valores existentes até então”, uma vez que “a questão: qual é o valor desta ou daquela tábua de valores, desta ou daquela ‘moral’? deve ser posta a partir das mais diversas perspectivas [unter die verschiedensten Perspektiven]” (GM/GM I 17, KSA 5.289). O papel inicial dos filósofos, diz Nietzsche, e mais especificamente dos “filósofos profissionais” (dos quais ele geralmente tem muito pouco de positivo a dizer), “após transformarem as relações entre filosofia, fisiologia e medicina, originalmente tão reservadas e cheias de desconfiança, em um intercâmbio amistoso e frutífero”, seria o de atuar como “defensores e mediadores” nas relações entre essas “diversas perspectivas” e aquilo que pode ser entendido por meio dessas distintas abordagens e modos de pensar. Aqueles que o fizerem, valendo-se presumivelmente da perspicácia alcançada por este meio, poderiam prosseguir rumo a uma reinterpretação e uma revisão mais abrangentes dos valores e da moral em questão, dando seguimento por fim ao que ele chama “a futura tarefa dos filósofos”, para a qual “doravante todas as Wissenschaften devem preparar o caminho”: ou seja, enfrentar “o problema do valor” e da “hierarquia dos valores”. Dificilmente se poderia exigir uma indicação melhor sobre o caráter e a ampla agenda do naturalismo nietzscheano. VIII Portanto, o tipo de naturalismo que encontramos em Nietzsche está visceralmente envolvido não só com questões sobre explicações e origens, mas também com questões acerca dos processos — e mais especificamente com a identificação e a compreensão dos aspectos qualitativos pelos quais a realidade humana tornou-se algo significativamente diferente do tipo de evento simplesmente cadernos Nietzche 29, 2011 59 Schacht, R. biológico que ele supõe que ela tenha sido em seu começo. Seu interesse na “Ent-tierung” ou “des-animalização” do “tipo Mensch” é tão forte e relevante quanto sua ênfase em nossa natureza fundamentalmente animal [tierische] e seu interesse pelos âmbitos em que ela continua a governar e dar forma à vida humana. Além disso, o naturalismo de Nietzsche é historicamente (tanto quanto biologicamente) processual; e sua concepção da realidade que nós humanos atingimos é tão social e cultural quanto é biológica, fisiológica e psicológica. Ele está atento tanto à realidade emergente, que não pode prescindir daquelas primeiras dimensões, e aos processos que trazem consequências significativas naqueles níveis, quanto aos traços e disposições do segundo tipo, e às questões sobre sua diferença e mutabilidade. De fato, o foco principal de sua visada incide sobre o surgimento e o desenvolvimento de vários tipos de fenômenos humanos que têm não somente pressupostos fisiológicos e biológicos e dimensões psicológicas, mas também um caráter histórico, processos em que eventos sociais e culturais, circunstancialmente contingentes, podem ter desempenhado um papel crucial (sobre o qual ele se delicia em especular). Assim, por exemplo, o título que Nietzsche dá à terceira parte de Para além de bem e mal é eloquente e revelador no que tange a isso: “Zur Naturgeschichte der Moral [Para uma história natural da moral]”. Ele trata da questão de quais podem ter sido as origens e a estória processual dos variados fenômenos morais — supondo-se que eles sejam fenômenos históricos que podem ser entendidos em termos inteiramente naturais (isto é, em termos psicológica e socioculturalmente mundanos). Ser capaz de acompanhar o sentido processual de tais fenômenos é importante para ele, em parte para fortalecer a própria defesa do naturalismo, ao mostrar que ele é suficiente para uma apropriação das formas mais sublimes de nossa espiritualidade. Isso contribui de modo decisivo também para o entendimento daquilo com que devemos trabalhar e de que precisamos 60 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche tratar ao nos ocuparmos com um ulterior “engrandecimento da vida”, nos dirigindo à decisiva questão nietzschiana a respeito “do que pode ainda ser feito do homem” (JGB/BM 203, KSA 5.127). Resumindo: Nietzsche tira muito proveito de considerações e conjecturas fisiológicas e psicológicas, buscando confrontar a duradoura tendência dos filósofos a se esquecerem da relevância delas no que se refere às coisas que eles estimam ser as mais elevadas e que dizem respeito a nós mesmos. Mas ele também está bastante convencido de que os fenômenos culturais humanos, embora enraizados fisiologicamente, constituem Lebensformen historicamente desenvolvidas, que diferem qualitativamente dos fenômenos biológicos e fisiológicos associados à sua geração e percurso formativo. Eles refletem expressões diversamente articuladas e elaboradas de aspectos da realidade humana realizados desigualmente, bem como variações nas possibilidades humanas em diferentes circunstâncias históricas e sociais. O procedimento típico de Nietzsche (e a “metodologia” de seu naturalismo tal como ele é) envolve, portanto, o aporte e o emprego de uma multiplicidade de diferentes perspectivas, “ópticas” e mentalidades, como assinalamos acima, postas a serviço da iniciativa de expandir e aprofundar nossa compreensão de nós mesmos e das possibilidades humanas que chegaram a se realizar e a se expressar em coisas tão distintas como traços e tipos psicológicos, culturas e subculturas, sociedades e instituições, arte e literatura, morais e valores, assim como formas de pensar e conhecer. IX Esses traços do naturalismo de Nietzsche já foram antecipados, com uma intenção claramente programática, em Humano, demasiado humano. Na terceira e última parte da esclarecedora seção final, O andarilho e sua sombra (1880), ele escreve: “Muitas cadernos Nietzche 29, 2011 61 Schacht, R. correntes foram lançadas sobre o homem, a fim de que ele não mais se comporte como um animal”. (WS/AS 350, KSA 2.702) E bem no início da primeira parte (1878) ele estabelece diversos pontos cruciais. Começa proclamando que a “ciência da natureza [Naturwissenchaft]” é o “mais novo de todos os métodos filosóficos”, com a qual o tipo de filosofia que ele próprio advoga (em contraste com a “filosofia metafísica”) precisa se aliar, e da qual ela “não pode mais ser separada” (MA I/HH I 1, KSA 2.23). Mas então, por uma razão importante, que será apresentada e desenvolvida na seção seguinte, ele se adianta, chamando seu novo tipo de filosofia de “filosofia histórica”. Ele afirma que os filósofos devem admitir e levar a sério algo que eles há muito relutam em reconhecer: “que o homem veio a ser [geworden ist], assim como a “capacidade cognitiva [Erkenntnisvermogen] que empregamos em todas as formas de investigação cognitiva”. Com efeito, ele afirma que “Tudo veio a ser: não existem fatos eternos, assim como não existem verdades absolutas. Por conseguinte, o que é exigido de agora em diante é o filosofar histórico [historische Philosophieren], e com ele a virtude da modéstia” (MA I/HH I 2, KSA 2.25). Já neste momento, mas também em momentos posteriores de sua obra, o “filosofar histórico” é para Nietzsche um modo de filosofar ciente de que “tudo veio a ser”, atento às características “histórico-processuais” do que quer que seja com que ele estiver às voltas, e em particular com a realidade humana (“der Mensch”, foco central dessa seção). Assim, embora ele insista na relevância e na importância da “Naturwissenschaft” em seu empreendimento, é o filosofar “histórico” (ao invés do “naturwissenschaftlische”) que é por ele reivindicado. O “devir” ou o desenvolvimento processual das coisas é considerado crucial para sua abordagem e compreensão adequadas; e pelo uso que faz do termo “historische” Nietzsche indica que, embora os tipos de processo de que se ocupam as ciências da natureza devam ser doravante levados em conta pelos filósofos, estes não são os únicos processos a demandar consideração 62 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche de sua parte. No que concerne a todas as coisas humanas, os tipos de processo aos quais devemos estar especialmente atentos são de ordem histórica. E isso significa que devemos nos valer não apenas do “mais novo de todos os métodos filosóficos” — isto é, aquele da pesquisa científico-natural — mas também de outros métodos requeridos para compreender tais processos. É isso que Nietzsche passou a maior parte de seu tempo investigando, nas inúmeras reflexões que constituem o restante de Humano, demasiado humano, bem como nos dois outros volumes aforísticos da série do “espírito livre” que a ele se seguiram (Aurora e A gaia ciência). E é isso que ele continuou a fazer até o fim, nos livros que se seguem a Assim falava Zaratustra. Às vezes ele se serve da linguagem causal ao fazê-lo; mas poucos dentre os processos que ele discute se prestam à análise e à interpretação causais. As interpretações e explanações propostas por ele decerto envolvem a ideia de influência em várias acepções; contudo, basta refletir um instante sobre os tipos de fenômeno e processo com os quais ele se ocupa para que fique evidente que a causação em moldes científico-naturais é inadequada à maior parte daquilo que ele julgou mais significativo e digno de atenção. Aí se incluem muitos fenômenos sociais e culturais que são estruturados ou têm consequências em termos normativos, e isso faz uma diferença considerável quando são internalizados na vida humana. De fato, semelhante modelo de causação não é apropriado para a compreensão dos fenômenos humanos crucialmente importantes implicados nessa mesma internalização. Em suma: embora Leiter tenha bastante razão ao afirmar que o “projeto naturalista” de Nietzsche ocupa boa parte de sua atividade filosófica21, tal “projeto” envolve muito mais do que “explicar a moral [no singular!] em termos naturalistas respeitáveis”, o que Leiter defende ser sua meta principal — ainda que ele de fato envolva a 21 LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, p. 11. cadernos Nietzche 29, 2011 63 Schacht, R. tentativa de dar sentido à moralidade (ocidental moderna) – mas como uma dentre outras formas de moralidade e como um dentre muitos outros fenômenos humanos – em termos naturalistas. E ainda assim, mais uma vez, a concepção do que seja para Nietzsche “termos naturalistas respeitáveis” é consideravelmente mais ampla do que sugere o relato cientificista de Leiter. Seu “projeto naturalista” poderia ser caracterizado de forma mais apropriada como uma reinterpretação da realidade humana, em toda a sua complexidade, com base no que ele considerava ser naturalisticamente respeitável — e, em consonância com isso, como uma reinterpretação do que ele supunha ser a moralidade ocidental atual, uma subespécie de outros tipos de moralidade, assim como de um vasto espectro de outros fenômenos e processos (predominantemente sociais, culturais e psicológicos) presentes na configuração da vida humana em suas inúmeras articulações ao longo do curso dos acontecimentos humanos. X De uma maneira que traz implicações significativas para o entendimento do naturalismo de Nietzsche, convém que eu desenvolva este ponto valendo-me da noção de “sensibilidades [Sensibilitäten]”, associando-a às culturas humanas e às formações culturais, das quais alguns exemplos figuram com destaque em seus escritos. Seu naturalismo deve ser concebido de forma a levar em conta sua preocupação em fazer justiça e dar sentido a esse fenômeno humano de crucial importância, que para ele é central na vida humana e na caracterização da realidade humana a que pertencemos. Nietzsche parece não ter descoberto a palavra “Sensibilität” — ou sua utilidade para seus propósitos não ocorreu a ele — até bem tarde. Entretanto, ele a emprega de um modo bastante significativo em seu livro tardio O caso Wagner, ao fazer o elogio a Carmen, 64 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche a ópera de Bizet. Nietzsche escreve que “uma sensibilidade diferente [eine andere Sensibilität]” da de Wagner encontra expressão nessa peça — uma sensibilidade que de fato não havia encontrado expressão em toda música clássica europeia até então. Ele se refere a ela caracterizando-a como “esta sensibilidade mais meridional, morena, queimada [de sol] [dieser südlicheren, bräuneren, verbrannteren Sensibilität]” (WA/CW 2, KSA 6.15). Outros exemplos deste tipo de fenômeno há muito chamavam a atenção de Nietzsche. Efetivamente, as sensibilidades figuram de modo significativo em seu entendimento de como a conduta humana veio a se distinguir do “típico comportamento animal” — e também como a vida humana chega a ser configurada de forma diferente, não apenas em sociedades e culturas diferentes, mas inclusive no próprio interior destas. Assim, por exemplo, elas constituem boa parte daquilo de que ele se acerca ao falar dos vários “tipos” humanos, bem como de “povos e pátrias”. Um exemplo notável disso pode ser encontrado no Crepúsculo dos ídolos (1888) quando, após observar “Como é completamente ingênuo dizer: ‘o homem deveria ser assim e assado’”, ele acrescenta: “A realidade nos mostra uma riqueza de tipos encantadora, a abundância numa profusão de lances e mudanças de forma” (GD/CI Moral como contranatureza 6, KSA 6.86). O interesse de Nietzsche pelo fenômeno da sensibilidade — e por suas condições de possibilidade, sua variabilidade e sua importância na vida humana — apareceu pela primeira vez, e de um modo impressionante, em O nascimento da tragédia. Neste momento ele está interessado pela história do “nascimento” ou surgimento e desenvolvimento da “tragédia”, não só como gênero literário, mas também (e, para ele, principalmente) como fenômeno cultural e espiritual humano — e pela sensibilidade “trágica” a eles associada, uma sensibilidade que foi a um só tempo expressa e cultivada pelo gênero e pela cultura trágica. Ele também está interessado em O nascimento da tragédia (e nas obras posteriores) nos diferentes cadernos Nietzche 29, 2011 65 Schacht, R. fenômenos e sensibilidades culturais que deram origem a esta sensibilidade trágica, e que ele chama pelos nomes das divindades a eles associadas — “apolíneo” e “dionisíaco” — assim como está interessado no fenômeno e na sensibilidade que ele associa a Sócrates e que resultaram na morte da tragédia, preparando o caminho para o aparecimento subsequente daqueles fenômenos e sensibilidades ligados por um lado à ciência, e por outro ao cristianismo (ao menos implicitamente). Este interesse permanece e se torna mais consciente de si mesmo nos escritos seguintes, e é central para o projeto mesmo de Assim falava Zaratustra — cujo cerne é o cultivo de uma nova sensibilidade que afirma a vida (que é tanto pós-niilista quanto pós-cristã); o mesmo interesse se torna ainda mais pronunciado na análise e na crítica das diversas patologias culturais nas polêmicas dos dois últimos anos de sua vida produtiva. O projeto naturalista de Nietzsche envolve o reconhecimento e o exame de tais sensibilidades e de formas correlatas de experiência e atividade, assim como a tentativa de mostrar de que modo elas podem de forma plausível e convincente ser tomadas como nada mais nada menos do que fenômenos psicológicos, socioculturais e históricos que surgiram e se desenvolveram sob formas que podem ser esclarecidas em termos inteiramente mundanos. Elas podem ser relacionadas processualmente a certas capacidades e disposições humanas (tal como se pretende que a arte e a sensibilidade apolínea e dionisíaca tenham se desenvolvido a partir dos fenômenos humanos do sonho e da embriaguez), ou umas às outras (tal como se pretende que a tragédia e a sensibilidade a ela vinculada tenham “nascido do espírito da música”, por intermédio da combinação entre o dionisíaco e o apolíneo). Elas podem também ter emergido e tomado forma sob o impacto de determinadas injunções e dinâmicas sociais, e coisas semelhantes (que por sua vez incidiram sobre sensibilidades e disposições prévias). Nos relatos que propõe acerca dos muitos casos de que trata (por exemplo, na Genealogia da moral e em outras oportunidades), 66 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche Nietzsche demonstra uma notável imaginação. Por mais problemáticos que sejam na maioria das vezes, estes relatos contribuem pelo menos para produzir a sensação de que a diretriz do projeto é plausível — o que pode muito bem ter sido o objetivo básico de Nietzsche ao propô-los. Eles não precisam ser acertados para colaborar com uma defesa efetiva daqueles fins. XI Sensibilidades são configurações complexas de disposições, atitudes, crenças, valorações e tendências interpretativas. Elas são alimentadas (por assim dizer) por fontes afetivas e podem ser, em alguma medida, governadas por algum traço humano herdado, mas variável; mas elas também estão fortemente inscritas na cultura, refletindo elementos das formações culturais a que se foi exposto e que foram internalizados. Sensibilidades são tipicamente conectadas a Lebensformen e às formações a estas associadas (como práticas, tradições, instituições, artefatos, símbolos, formas de arte e textos), de cujas sensibilidades elas são a internalização, e nas quais estão ancoradas — sendo delas ainda expressão e elaboração, uma conformando e sustentando a outra. Esta relação dinâmica é um dos sinais distintivos — e também parte da própria construção — da humanidade em que nos constituímos. Suas contingências e mutabilidade infinita servem também para tornar possível que a realidade humana floresça na profusão criativa “da profusão de lances e mudanças de forma”, doando e enriquecendo a si mesma com valores e sentidos surgidos historicamente — ainda que todos esses fenômenos eles mesmos sejam produtos da transformação de habilidades e traços humanos meramente naturais. Para Nietzsche, são sempre nossos afetos que expressam a si mesmos em qualquer coisa que façamos; mas eles o fazem através de nossas sensibilidades, que não apenas os conformam, mas também cadernos Nietzche 29, 2011 67 Schacht, R. os transformam quanto a seu modo de expressão. Tais transformações podem ser particularmente dramáticas quando outros aspectos de nosso repertório psicológico humano vêm à baila — dentre os quais têm importância particular nossas capacidades para o que ele chama “internalização”, “redirecionamento” e “sublimação” de nossos impulsos e disposições básicos. Sensibilidades existem no meio dinâmico e altamente diferenciado das linguagens humanas, e deste modo poderia ser útil pensa-las como envolvendo distintos “jogos de linguagem”, no interior dos quais seus conceitos, normas e valores característicos estão ancorados. Porque muito de seu conteúdo e configuração têm ainda caráter histórico, elas estão sujeitas à contingência de todas as coisas históricas. Além do mais, seres humanos não são apenas passiva e uniformemente programados pelas formações culturais que emprestam a eles seu roteiro básico — ao invés disso, eles reagem ativamente e de modo não idêntico mesmo quando as internalizam. Por todas essas razões, sensibilidades são resistentes à análise em moldes científico-naturais. Para Nietzsche, os seres humanos não estão meramente aptos a ingressar em formas de vida mais amplas ou mais estreitas, historicamente desenvolvidas, sempre nuançadas culturalmente e no mais das vezes também contextualizadas socialmente, e de adquirir delas suas respectivas sensibilidades e mentalidades — assim como não estão meramente aptos a aprender, utilizar e adquirir uma linguagem e as sensibilidades que lhe são características. Eles (nós) temos que proceder assim, por termos perdido a capacidade de viver de outro modo, exatamente na medida em que essas aptidões foram adquiridas. É parte do preço que teve que ser pago para que pudéssemos adquiri-las. Isto é, ao mesmo tempo, nossa força exclusiva como espécie e nossa grande vulnerabilidade — razão pela qual Nietzsche constantemente caracteriza o homem por meio de frases como: “o animal sob maior risco”, “o animal não fixado”, “o animal mais desnaturado” e “o animal que se extraviou de seus velhos instintos de forma mais perigosa” — 68 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche mas também “o animal mais interessante”, através de cuja transformação “o aspecto da terra foi fundamentalmente alterado” (GM/GM II 16, KSA 5.321-324). Nietzsche se delicia em explorar as várias sensibilidades e mentalidades por ele constatadas, muitas das quais se relacionam de maneira significativa com assuntos que ele persegue através do espectro de seus interesses filosóficos. Suas investigações destas sensibilidades em sua especificidade histórica (e ocasionalmente biográfica) são o grão para o moinho de seu robusto naturalismo. Sua atenção aos fenômenos ligados à sensibilidade, de que estas investigações são exemplo, constitui parte importante de tal naturalismo — assim como sua preocupação em mostrar que estas sensibilidades podem ser esclarecidas nos limites da moldura de sua diretriz: ancoradas em — ou surgindo a partir de — aspectos de nossa natureza humano-animal, por meio de processos históricos de natureza social e cultural; e cultivadas por formas da vida humana que lhes são correlatas. XII Nietzsche parece inclinado a pensar que foi desse modo e através desses meios que a espécie deslocou-se da animalidade para a realidade humana. Lebensformen e sensibilidades converteram-se em parte da realidade humana tanto quanto o uso das formas de linguagem ricas e complexas que ambas demandam e modificam continuamente. Além disso, ele parece pensar ainda que, exatamente como elas foram o modo e os meios para todo “engrandecimento da vida” já ocorrido, versões delas serão necessárias para desempenhar o mesmo tipo de papel no porvir — e, pela mesma razão, assim como elas foram decisivas em processos desfavoráveis ao florescimento e engrandecimento do homem, isso continuará a ser possível também no futuro. cadernos Nietzche 29, 2011 69 Schacht, R. Nietzsche considera que as sensibilidades adquiridas por seres humanos individuais sejam modificáveis ao longo do curso de suas vidas — para melhor (como ele acredita que tenha sido no seu próprio caso) e para pior (como ele considera ter acontecido no caso de Pascal, por exemplo). Contudo, é sugerido que a regra humana geral é que os seres humanos tendem a viver suas vidas e a se comportar de uma maneira que reflete sensibilidades que eles vieram a adquirir por meio de uma combinação entre natureza (isto é, hereditariedade) e modos específicos de criação, sob certas circunstâncias sociais. Para Nietzsche, isto é o que deve ser esperado — e apenas raramente é de se lamentar. Para ele, os seres humanos também podem — e isso talvez ocorra com maior frequência — ter identidades em que sensibilidades singulares plenas sejam suficientemente dominantes neles a ponto de ser apropriado caracterizá-los conforme tais sensibilidades — como ele faz amiúde. Porém, Nietzsche considera ainda que é humanamente possível que um ser humano único desenvolva uma multiplicidade de sensibilidades (mais ou menos como ao tornar-se poliglota), sendo capaz de transitar de uma a outra em contextos apropriados, ou mesmo de jogar umas contra as outras, ou ainda de combinar várias delas de uma só vez quando isso se mostra vantajoso, esclarecedor ou criativo. Esta é uma aptidão que ele considera de particular importância e valia para um filósofo; mas é também requerida de qualquer um que viva em uns tantos “mundos” social e culturalmente diferentes, cada qual demandando que se disponha e maneje a sensibilidade e a mentalidade mais convenientes de acordo com suas diferenças. Ampliando e extrapolando o alcance dessa ideia, Nietzsche prevê possibilidades humanas ligadas à sua ideia de uma humanidade “mais elevada”, indicada e antecipada aqui e ali, e que consiste de seres humanos que atingiram autonomia, criatividade e domínio de si em uma escala suficiente para autorizá-los a moldar sensibilidades distintivas próprias, além e acima daquelas encontradas ou 70 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche adquiridas previamente por eles, conferindo “estilo” próprio a seu “caráter” e tornando-se “artistas de suas próprias existências”. Seu naturalismo deve ainda ser concebido de modo a vir ao encontro dessas possibilidades, articulando as alegações que ele faz a respeito da diferenciação entre elas e a regra humana geral. Quer me parecer que, ao conceber e falar delas, mais ainda que nos casos de uma humanidade e de uma sensibilidade mais comuns (ou patológicas), as modalidades de pensamento científico e investigação em moldes explanatórios científico-naturais estarão aptas a desempenhar um papel apenas secundário — e me parece igualmente que essa é a percepção do próprio Nietzsche a respeito do assunto. É exatamente um tal papel — secundário, e não principal — que Nietzsche prevê para esta modalidade de investigação em uma passagem importante de A gaia ciência, na qual ele a acolhe e celebra, ao mesmo tempo em que, gentilmente, a coloca em seu devido lugar no contexto desta tarefa [de configuração da própria sensibilidade NR]. Ela exibe o charmoso título “Hoch die Physic! [Viva a física!]”. A respeito da “mais elevada humanidade” à qual gostaria que aspirássemos junto com ele, lê-se: “Nós, contudo, queremos nos tornar quem somos”. Para ele, isto envolve alcançarmos tanto a autonomia dos “indivíduo[s] soberano[s]” de GM/GM II 2, KSA 5.293, quanto a criatividade dos “homem[ns] futuro[s]” da GM/GM II 24, KSA 5.336, como mostra sua explicação na linha seguinte: “os novos, os únicos, os incomparáveis, os legisladores de si mesmos, os criadores de si mesmos”. De pronto, ele então prossegue: E para este fim devemos nos tornar os melhores aprendizes e descobridores de tudo o que seja conforme leis [Gesetzlichen] e necessário no mundo: devemos ser físicos [Physiker, cientistas da natureza] para sermos capazes de ser, nesse sentido, criadores [Schopfer sein zu konnen]. E assim: viva a física! [Hoch die Physik]. E sobretudo [hoher noch, ainda por cima] o que a ela nos compele: nossa Redlichkeit [integridade intelectual]! (FW/GC 335, KSA 3.563-564). cadernos Nietzche 29, 2011 71 Schacht, R. O conhecimento de “tudo o que é conforme leis e necessário no mundo” não será suficiente para capacitar alguém a viver a vida de forma autônoma e criativa, e decerto não bastará para determinar o que alguém que agisse assim realmente faria ou criaria. Nietzsche sem dúvida pensa que isso pode ser e será de grande ajuda; mas não será sequer suficiente para capacitar alguém a compreender autonomia e criatividade como possibilidades humanas — o que para Nietzsche consiste no desafio e na tarefa supremas de seu tipo de filosofia, de sua reinterpretação da realidade humana, de seu naturalismo. Pode ser desejável, e mesmo necessário; mas não será suficiente para seu tipo de filósofo, nem para seu tipo de naturalismo. Estes exigem um conjunto mais pleno de olhos e estratégias de reconhecimento e interpretação, sintonizados de modo mais abrangente com tudo o que a realidade humana se tornou — e veio a ser capaz de se tornar. XIII Em conclusão: sustento que, para Nietzsche, nenhum naturalismo é digno de ser levado a sério se ignora ou é inepto ao tratar a dimensão e o caráter da realidade humana que discuti em termos de “sensibilidades” e daquilo que elas possibilitam. Não resta dúvida de que esta é pelo menos em parte a razão pela qual ele é tão zombeteiro a respeito de algumas versões do naturalismo. O naturalismo a que ele visa e para o qual conclama, que tenta inaugurar e que supõe que será abraçado e desenvolvido pelos “novos filósofos”, pelos quais ele nutre esperanças, este naturalismo não pode, portanto, ser aquele dos naturalistas toscamente cientificistas, de cuja “inépcia [Ungeschik]” e “estupidez [Dummheit]” ele escarnece. Em relação àquela versão, o naturalismo de Nietzsche é uma modalidade nova e diferente, devidamente atenta tanto aos tipos de fenômenos e aspectos das coisas que as ciências naturais 72 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche são boas em descrever e explicar (à sua maneira), quanto, de maneira diversa, aos processos históricos — como a emergência de conceitos morais diferenciados, formas de religiosidade, tipos de arte e sensibilidade estética e modos de pensar (que incluem as variantes científica e filosófica) — que não são determinístico-causais; atenta a coisas como “o que é música numa peça musical”; ao que ocorre em “casos” como Wagner, Sócrates, cristianismo e outros semelhantes; ao surgimento de diferentes valorações e, mais amplamente, de sensibilidades que fazem diferença na vida daqueles que são tocados por elas. O naturalismo de Nietzsche deve ser aliado das ciências e não preso ou subserviente a elas — “scientian” [instruído], mas não cientificista. Aqueles que se integram ao programa, no espírito daquilo que o filósofo diz e faz ao procurar se apropriar dele, devem se precaver para não serem culpados de “perder ‘a alma’ mal a tocam”. (JGB/BM 12, KSA 5.27) É óbvio, para quem reinterpreta o naturalismo nietzschiano, que Seele, assim como Geist, é “nur ein Wort für Etwas am Leibe [apenas uma palavra para algo relacionado ao corpo]”.(Za/ZA I Dos desprezadores do corpo, KSA 4.39) Mas ela é uma palavra para o que veio a ser um “Etwas” extraordinário, convertido filogeneticamente em uma possibilidade humana, mas que se torna ontogeneticamente o que quer que seja feito de tal possibilidade em casos particulares, no contexto de um número imenso de circunstâncias e relações humanas, sociais, culturais e interpessoais que se desenvolveram historicamente. É imperativo para nós, se devemos ser o tipo de filósofos que Nietzsche tinha em mente, ajustarmos nosso naturalismo em conformidade a isso — tanto metodológica quanto substantivamente —, enquanto nossa compreensão desse “Etwas” se desenvolve. cadernos Nietzche 29, 2011 73 Schacht, R. Abstract: This article takes as its starting point the critical analysis of some recent versions of the relationship between Nietzsche and philosophical and scientific naturalism. In an attempt to characterize positively Nietzsche´s naturalism, the paper presents those naturalistic features that could plausibly be taken as the most peculiar to nietzschean thought. Admiting his rejection of any kind of true reality existing beyond the world of our experience, it goes on by considering emergence of sensibilities and development of forms of life as crucial aspects of Nietzsche’s naturalism — avowedly incompatible with any kind of reductive scientistic naturalism. Key-words: forms of life – history - natural sciences - Naturalism - sensitivity referências bibliográficas 1. JANAWAY, C. Beyond Selflessness. Oxford: Oxford University Press, 2007. 2. LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002. 3. ______. Nietzsche’s naturalism reconsidered. In: JAMES, K.; RICHARDSON, J. (orgs.). Oxford Handbook of Nietzsche. Oxford: Oxford University Press, 2009. (no prelo). 4. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke.Kritische Studienausgabe. Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München, Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1980, 15 v. 5. ______. Basic Writings of Nietzsche. Trad.: W. Kaufmann. New York: Modern Library, 2000. 74 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche 6. SCHACHT, R. Nietzsche. London: Routledge & Kegan Paul, 1983. 7. ______. Making sense of Nietzsche. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1996. Artigo recebido em 08/04/2011. Artigo aceito para publicação em 02/05/2011. cadernos Nietzche 29, 2011 75 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado O naturalismo de Nietzsche reconsiderado* Brian Leiter** Resumo: Em Nietzsche on Morality (2002), o autor propôs uma leitura sistemática de Nietzsche como um filósofo naturalista, o que atraiu comentários críticos consideráveis, inclusive por parte daqueles que tendem a ser simpáticos a tal leitura. Neste artigo, o autor retoma esta leitura e responde a variadas objeções. Os tópicos abordados incluem o papel da “especulação” no naturalismo de Nietzsche; a diferença entre os “Nietzsches” humeano e terapêutico; o papel da cultura nas explicações causais; o estatuto das alegações sobre a causação no naturalismo de Nietzsche; se a aparente metafísica da vontade de potência é compatível com o naturalismo; e como o naturalismo especulativo de Nietzsche se sai à luz dos subsequentes trabalhos em psicologia empírica. Palavras-chave: Nietzsche – Naturalismo – Filosofia moral – Psicologia moral Segundo um especialista contemporâneo, “a maioria dos comentadores de Nietzsche estaria de acordo em dizer que, em sentido amplo, ele é um naturalista em sua filosofia de maturidade”1. * O presente artigo do Prof. Brian Leiter será publicado no Oxford Handbook of Nietzsche, coletânea editada por Ken Gemes e John Richardson e prevista para 2011. Sua publicação em português se deve ao empenho do Prof. Brian Leiter, que negociou diretamente com o editor de filosofia da Oxford University Press, Peter Momtchiloff, a permissão para que o texto fosse traduzido e publicado em português pelos Cadernos Nietzsche. Direito de tradução e publicação não exclusiva para o português cedido gentilmente pelo autor, Prof. Brian Leiter, e pelo Editor de Filosofia da OUP, Peter Momtchiloff (Nota do colaborador). Tradução de Oscar Augusto Rocha Santos. Revisão da tradução de Rogério Lopes. ** Professor da Universidade de Chicago,Chicago, Estados Unidos. E-mail: bleiter@ uchicago.edu 1 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 34. cadernos Nietzche 29, 2011 77 Leiter, B. Isto pode surpreender aqueles que pensam em Martin Heidegger, Walter Kaufmann, Paul De Man, Sarah Kofman e Alexander Nehamas, dentre outros, como “comentadores” de Nietzsche. Porém, há em todo caso sinais claros de que nos últimos vinte anos, conforme os estudos sobre Nietzsche se tornaram filosoficamente mais sofisticados, a leitura naturalista tem ganhado destaque, ao menos no ambiente acadêmico de língua inglesa2. Em Nietzsche on Morality3, eu propus uma leitura sistemática de Nietzsche como um filósofo naturalista, o que atraiu comentários críticos consideráveis, inclusive por parte daqueles que tendem a ser simpáticos a tal leitura4. Gostaria de revisitar aqui essa leitura e, sobretudo, a questão de se e em que sentido Nietzsche é um naturalista em sua filosofia. I. O naturalismo de Nietzsche Christopher Janaway argumenta que, atualmente, a maioria dos estudiosos de Nietzsche aceita a tese de que ele é um naturalista em “sentido amplo”: 2 Veja, por exemplo, BITTNER, R. “Introduction,” to Nietzsche’s Writings from the Last Notebooks. Cambridge: Cambridge University Press, 2003; CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990; HUSSAIN, N. Nietzsche’s Positivism. In: European Journal of Philosophy, 12, p. 326-368, 2004; RICHARDSON, J. Nietzsche’s New Darwinism. Oxford: Oxford University Press, 2004; SCHACHT, R. Nietzsche’s Gay Science, or, How to Naturalize Cheerfully. In: Solomon, R.C.; Higgins, K.M. (orgs.). Reading Nietzsche. New York: Oxford University Press, 1988. 3 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002. 4 Veja, por exemplo, GEMES, K.; JANAWAY, C. Naturalism and Value in Nietzsche. In: Philosophy & Phenomenological Research, 71, p. 729-740, 2005; ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. Ansell-Pearson (org.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006; JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007. 78 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Ele se opõe à metafísica transcendente, seja aquela de Platão, do Cristianismo ou de Schopenhauer. Ele rejeita as noções de alma imaterial, de uma vontade que comanda de modo totalmente livre ou de um intelecto puro e autotransparente, em lugar disso enfatiza o corpo, a natureza animal dos seres humanos e busca assim explicar diversos fenômenos recorrendo aos impulsos, instintos e afetos, localizados por ele na nossa existência física e corpórea. Os seres humanos devem ser “traduzidos de volta à natureza”, pois de outra maneira falsificamos a sua história, a sua psicologia e a natureza de seus valores – de modo que seja abarcado tudo o que precisamos conhecer como verdade, enquanto um meio para a importantíssima revaloração dos valores. Este é o naturalismo de Nietzsche em sentido amplo e que não será questionado aqui5. De qualquer maneira, isto é menos um naturalismo em “sentido amplo” do que um “naturalismo de lista de lavanderia”. Por que este conjunto de proposições é algo que um filósofo naturalista deve defender? O que é que, enfim, faz delas proposições adequadas a um filósofo naturalista?6 Meu objetivo no livro de 2002 foi o de conferir um sentido filosófico à questão de por que algo como o “naturalismo de lista de lavanderia” formulado por Janaway parece de fato ser descritivamente adequado àquilo que foi dito por Nietzsche em chave naturalista. Eu sugeri que, na verdade, subjacente a essa “lista de lavanderia”, estava um tipo familiar de “Naturalismo Metodológico” 5 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 34. 6 Janaway me disse que ele considera que a oposição à “metafísica transcendente” é aquilo que une os elementos da lista, apesar de ser difícil ver de que modo o ceticismo acerca desse tipo de metafísica implicaria a crença de que “impulsos, instintos e afetos (...) em nossa existência física e corpórea” são explanatoriamente primários. Mesmo se for suficiente, isso simplesmente colocaria a questão um nível atrás: por que a oposição à metafísica transcendente é o alvo do naturalismo? O que propriamente motiva essa oposição? cadernos Nietzche 29, 2011 79 Leiter, B. (daqui pra frente “Naturalismo-M”), segundo o qual “a investigação filosófica (...) deveria ser contínua em relação à investigação empírica nas ciências”7. Muitos filósofos foram e são naturalistas metodológicos; porém, para entender o caso de Nietzsche, tudo depende do tipo preciso de Naturalismo-M em questão. Eu enfatizei dois compromissos característicos do Naturalismo-M de Nietzsche. Primeiramente, afirmei que Nietzsche é o que chamei de Naturalista-M Especulativo, isto é, um filósofo que, como Hume, deseja “construir teorias que sejam ‘modeladas’ nas ciências (...) tomando delas a ideia de que os fenômenos naturais possuem causas determinísticas”8. Naturalistas-M Especulativos obviamente não apelam para mecanismos causais reais que tenham sido bem confirmados pelas ciências: se assim fosse, eles não precisariam especular! A ideia é, pelo contrário, que suas teorias especulativas acerca da natureza humana sejam moldadas pelas ciências e pela perspectiva científica, no tocante ao modo como as coisas funcionam. Veja, por exemplo, a influente formulação de Stroud a respeito do Naturalismo-M Especulativo de Hume: [Hume] quer fazer pela esfera humana o que ele acredita que a filosofia natural, principalmente na pessoa de Newton, fez pelo restante da natureza. A teoria newtoniana proporcionou uma explicação completamente geral acerca do porquê das coisas no mundo acontecerem como acontecem. Ela explica eventos físicos numerosos e complexos por meio de princípios que, comparativamente, são poucos, extremamente gerais, talvez mesmo universais. De modo similar, Hume quer uma teoria completamente geral da natureza humana para explicar por que os seres humanos agem, pensam, percebem e sentem do modo como em geral o fazem (...). [A] chave para compreender a filosofia de Hume é vê-lo como proponente 7 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 3. 8 Ibidem, p. 5. 80 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado de uma teoria geral da natureza humana da mesma maneira que, por exemplo, Freud e Marx foram. Todos eles buscaram um tipo de explicação geral dos vários modos segundo os quais os homens pensam, agem, sentem e vivem (...). O objetivo de todos os três é completamente geral – eles tentam propor uma base para explicar tudo acerca das questões humanas. E as teorias que eles propuseram são todas, grosso modo, deterministas9. Portanto, Hume modela sua teoria da natureza humana tendo como referência a ciência newtoniana, na medida em que tenta identificar poucos princípios básicos e gerais que proporcionarão uma explicação amplamente determinista do fenômeno humano, do mesmo modo que a mecânica newtoniana fez em relação ao fenômeno físico. De todo modo, a teoria humiana é ainda especulativa, pois suas alegações acerca da natureza humana não são confirmadas por nada que seja similar ao modo científico, nem mesmo ganham o suporte de alguma ciência contemporânea de Hume. O Naturalismo-M Especulativo de Nietzsche obviamente difere daquele de Hume em alguns aspectos: Nietzsche, por exemplo, parece ser cético em relação ao determinismo, se tivermos por base seu suposto (se não completamente cogente) ceticismo acerca da existência de leis na natureza10. No entanto, assim como Hume, Nietzsche tem um firme interesse em explicar porque os “seres humanos agem, pensam, percebem e sentem” da maneira como o fazem, especialmente no amplo domínio da ética. Assim como Hume, Nietzsche articula uma psicologia especulativa, muito embora – como argumentei em outro lugar11 e ainda retornarei mais à frente – as especulações nietzschianas se mostrem mais procedentes à luz 9 STROUD, B. Hume. Londres: Routledge, 1977, p. 3-4. 10 Veja, por exemplo, JGB/BM §21-22, KSA 5.35-37. 11 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15, 2007; KNOBE, J.; LEITER, B. The Case for Nietzschean Moral Psychology. In LEITER, B.; SINHABABU, N., 2007. cadernos Nietzche 29, 2011 81 Leiter, B. da subsequente pesquisa em psicologia científica. E essa psicologia especulativa (assim como as eventuais explicações fisiológicas que oferece incidentalmente) parece nos dar explicações causais para vários fenômenos humanos que, mesmo sem serem regidos por leis, ainda assim parecem ter um caráter determinista12. Contudo, enfatizei também um segundo aspecto do Naturalismo-M de Nietzsche. Como destaquei, alguns Naturalistas-M pressupõem um tipo de “continuidade de resultados” com a ciência vigente: estes creem que as “teorias filosóficas devem ser fundadas ou justificadas por resultados das ciências”13. De todo modo, argumentei que há apenas um tipo de “continuidade de resultados” que exerce alguma influência no caso de Nietzsche, vale dizer, os resultados que o Materialismo Alemão da época julgava procedentes dos avanços da fisiologia, ou seja, “que o homem não é de uma ‘origem superior [ou] distinta’ em relação ao restante da natureza”14. Possivelmente, o essencial do Naturalismo Substantivo de Nietzsche – isto é, “a tese (ontológica) de que as únicas coisas que existem são naturais”15 – é consequência dessa “continuidade de resultados”. 12 Cf. LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 5. 13 Ibidem, p. 4. 14 Ibidem, p. 7. Janaway diz: “o registro disso como ‘resultado’ é, talvez, discutível: é difícil dizer se a natureza exclusivamente natural da humanidade foi uma conclusão ou um pressuposto da investigação científica do século XIX ou de qualquer outra época” (JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy, p. 37). Eu achei isso um tanto quanto surpreendente. Se alguém descobre que as experiências conscientes têm uma explicação neurofisiológica, ou uma explicação em termos de bioquímica cerebral, este alguém não estaria apresentando algum tipo de evidência que incide na questão de se o homem é de “origem superior” ou “distinta” em relação ao restante da natureza? Nossa consciência e nossa capacidade de auto-reflexão, de espiritualidade, de “introspecção” estão entre os típicos fenômenos alegados como evidência de nossa natureza “superior” ou “distinta”, talvez mesmo como vislumbres de uma “alma” imaterial. Se, de fato, são explicáveis através de processos e mecanismos operativos em outras instâncias do mundo natural, não seria então evidência de que não somos de uma “origem superior ou distinta” em relação ao restante das coisas naturais? Se não, o que seriam? 15 Ibidem, p. 5. 82 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Assim, talvez devêssemos fazer uma pausa para reiterar o quão profunda é, para Nietzsche, a implicação das descobertas da influência da fisiologia nas experiências conscientes e nas atitudes. O influente Materialismo Alemão de meados do século XIX deu corpo a uma perspectiva naturalista do mundo, bem articulada por um de seus principais proponentes, o médico Ludwig Büchner, em seu best-seller de 1855, Kraft und Stoff (Força e Matéria), nos seguintes moldes: “as pesquisas e descobertas dos tempos modernos já não podem nos permitir duvidar que o homem, com tudo aquilo que tem e possui, seja espiritual ou corpóreo, é um produto natural como qualquer outro ser orgânico”16. “O homem é um produto da natureza”, afirma Büchner, “de corpo e espírito. Assim, não apenas o que ele é, mas também o que ele faz, deseja, sente e pensa, depende da mesma necessidade natural, como toda estrutura do mundo”17. O Materialismo Alemão provavelmente teve seu início com os trabalhos de Feuerbach do final de 1830 e começo de 1840, porém assumindo maior proeminência no meio intelectual nos meados do século XIX, sob o ímpeto das então recentes descobertas a respeito dos seres humanos, alcançadas pela emergente ciência da fisiologia. Na Alemanha, depois de 1830, a “fisiologia (...) se tornou a base da moderna ciência médica, confirmando assim a tendência, identificável ao longo de todo o século XIX, à integração das ciências humanas e naturais”18. Em sua Filosofia do Futuro, Feuerbach escreveria que “a nova filosofia faz do homem, juntamente com a natureza enquanto fundamento do homem, o objeto único e universal da filosofia: a antropologia, incluindo a fisiologia, se torna a ciência universal” (Sec. 54). Os anos de 1850 presenciaram uma explosão de livros dedicados às novas ciências, articulados segundo 16 BÜCHNER, L. Force and Matter. Trad. de J.G. Collingwood. Londres: Trubner, 1870, p. LXXVIII. 17 Ibidem, p. 239. 18SCHNÄDELBACH, H. Philosophy in Germany: 1831-1933. Trad. E. Matthews. Cambridge: Cambridge University Press,1983, p. 76. cadernos Nietzche 29, 2011 83 Leiter, B. a perspectiva naturalista do Materialismo Alemão. Como escreveu um especialista: “Durante os anos de 1850, os materialistas alemães (...) tomaram o mundo intelectual de assalto”19. Uma crítica do materialismo escrita em 1856 denuncia “uma nova perspectiva de mundo que está se acomodando na mente dos homens. Ela se propaga como um vírus. Todo jovem espírito da geração atual é afetado por ela”20. Nós sabemos a partir da pesquisa de Thomas Brobjer21 que Nietzsche leu Feuerbach ainda jovem, assim como foi um leitor regular do jornal Anregung für Kunst, Leben und Wissenschaft que publicou, no início dos anos de 1860, vários artigos a respeito do materialismo, escritos inclusive por Büchner. Entretanto, o acontecimento crucial para Nietzsche foi sua descoberta, em 1866, da então recém-publicada História do materialismo de Friedrich Lange, um livro que revelou a ele toda a história filosófica do materialismo, incluindo o Materialismo Alemão, assim como o introduziu nos mais significativos desenvolvimentos da ciência natural moderna, especialmente da química e da fisiologia22. Assim como no caso de Schopenhauer, o impacto dessa leitura no jovem Nietzsche foi dramático. “Kant, Schopenhauer, este livro de Lange – eu não preciso de mais nada”, escreveu ele em 186623. Ele julgou o trabalho como “indubitavelmente o estudo filosófico mais significativo surgido nas décadas recentes”24, e o chamou ainda, em uma carta de 1868, de “verdadeiro tesouro”, mencionando também, dentre outras coisas, a discussão de Lange sobre 19 VITZTHUM, R. C. Materialism: An Affirmative History. Amherst, NY: Prometheus Books, 1995, p. 98. 20 Apud GREGORY, 1977, F. Scientific Materialism in Nineteenth-Century Germany. Dordrech: D. Reidel, p. 10. 21 BROBJER, T. Nietzsche’s Philosophical Context:An Intellectual Biography. Urbana: University of Illinois Press 2008, pp. 44, 123, 133-134. 22 Cf. BROBJER, op. cit., p. 32-36. 23 Apud JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: Biographie. Munique: Hanser, 1978, Vol. I, p. 198 24 Ibidem. 84 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado o “movimento materialista de nossos tempos”25. Lange, por sua vez, foi um dos inúmeros “neokantianos” críticos do Materialismo que defendiam, primeiramente, que a fisiologia moderna corroborou o kantismo ao demonstrar o quão dependente do peculiar aparato sensório humano é o conhecimento26 [ao discutir a “confirmação por parte da ciência do ponto de vista crítico na teoria do conhecimento”] e 3ª Sec., Cap. IV [“A Fisiologia dos Órgãos Sensíveis e o Mundo como Representação”]); e, além disso, que os Materialistas eram ingênuos em acreditar que a ciência nos fornece conhecimento da coisa-em-si, ao invés do mero mundo fenomênico (cf. p. 84 [“a fisiologia dos órgãos sensíveis tem (...) apresentado fundamentos decisivos para a refutação [epistemológica] do Materialismo”]27. No entanto, de modo geral, a atração intelectual de Lange era claramente direcionada aos Materialistas, assim como era contrária aos idealistas, teólogos e quaisquer outros que resistiam à crescente visão científica do mundo e dos seres humanos. Assim, por exemplo, Lange ressalta: “se o Materialismo pode ser descartado tão somente a partir de um criticismo fundado na teoria [kantiana] do conhecimento (...) no âmbito das questões positivas, ele está inteiramente com a razão...”28. Muito embora se instalasse uma reação ao Materialismo Alemão entre os anos de 1870 e 1880, o engajamento juvenil de Nietzsche com os Materialistas causou nele uma profunda e permanente impressão. No início de 1868, ele momentaneamente vislumbrou migrar do estudo de filologia para o de química, e a partir do final dos anos de 1860, começou uma intensiva leitura de trabalhos 25 Apud STACK, G. Lange and Nietzsche. Berlim: de Gruyter, 1983, p. 13. 26 LANGE, F. History of Materialism, vol. 2. Trad. E.C. Thomas. New York: Humanities Press, 1950, p. 322. 27 Ibidem, p. 277 ss.; p. 329. 28 Ibidem, p. 322. cadernos Nietzche 29, 2011 85 Leiter, B. dedicados às ciências naturais29, leituras estas que continuaram ao longo dos anos de 188030. Ele declara que, ao final dos anos de 1870, “uma sede ardente tomou conta de mim: dali em diante eu de fato não me ocupei senão com fisiologia, medicina e ciências naturais” (EH/EH, Humano, demasiado humano 3, KSA 6.324). Essa influência é evidente ainda em seus escritos de maturidade, dos anos de 1880. Em Ecce Homo, ele se lamenta do “grave erro” de ter “se tornado um filólogo – por que não ao menos médico ou alguma outra coisa que me abrisse os olhos?” (EH/EH, Por que sou tão esperto 2, KSA 6.282). Também no quase sempre mal compreendido terceiro ensaio da Genealogia – no qual Nietzsche ataca tão somente o valor da verdade, e não sua objetividade ou nossa habilidade de conhecê-la – Nietzsche se refere à “quantidade de trabalho útil que há para ser feito” nas ciências e acrescenta, em relação aos seus “honestos trabalhadores”: “me deleito com seu trabalho” (GM/GM III 23, KSA 5.395). Como ressalta Clark, os trabalhos de maturidade de Nietzsche – Genealogia, Crepúsculo dos ídolos, O Anticristo, Ecce homo – “exibem um acatamento uniforme e nada ambíguo em relação aos fatos, aos sentidos e à ciência”31. 29 BROBJER, T. Nietzsche’s Philosophical Context: An Intellectual Biography. Urbana: University of Illinois Press, 2008, p. 35. 30 JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: Biographie, Vol. II, p. 73-74. 31 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 105. Hussain apresenta um interessante e complicado argumento, no sentido de que deveríamos entender o naturalismo de Nietzsche através da ótica de Ernest Mach, para que se entenda como Nietzsche “poderia, simultaneamente, rejeitar a coisa-em-si, aceitar uma tese de falsificação e ser um empirista” que também seja “amigável com a ciência” (HUSSAIN, N. Nietzsche’s Positivism. In: European Journal of Philosophy, 12, 2004, p. 327-328). Para Mach, neste sentido, é empirista quem acredita que “temos acesso direto a toda a realidade existente, ou seja, o mundo dos elementos sensórios”, mas que igualmente sustenta que “qualquer tentativa de ter um pensamento que represente algo acerca do mundo dos elementos sensórios se vale de conceitos que falsificam” estes mesmos elementos (Ibidem, p. 353, 351). No entanto, Mach é ainda “amigável com a ciência” na medida em que considera que as “asserções empíricas comuns poderiam ainda conter informações sobre o fluxo das sensações apesar de serem literalmente falsas” (Ibidem, p. 354). Entretanto, é um 86 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado tanto ou quanto intrigante como um Nietzsche machiano permanece “amigável” com a ciência no sentido enfatizado por Clark (no texto) e não questionado por Hussain. Hussain alega que um Nietzsche machiano crê que afirmações causais “falsificam” a realidade, mesmo que ainda assim “sejam claramente úteis para comunicar informações sobre complexos de sensações relativamente estáveis e suas relações.” Mas como elas podem ser “falsas” e comunicar “informações”? Mentiras, quando reconhecidas como tais, comunicam informações, mesmo que sejam ainda “literalmente falsas”, mas isso é por conta das inferências que se pode traçar acerca dos motivos e intenções do mentiroso, mesmo que isso não pareça ajudar nessa instância. A ideia deve ser antes que as asserções, apesar de literalmente falsas, são parcialmente verdadeiras em algum sentido. Mas de que modo essa última proposição ajudará no caso de Nietzsche? Afinal de contas, são as afirmações “causais” que são “literalmente falsas”, e afirmações causais são aquilo que Nietzsche necessita. Ressentimento, diz ele na Genealogia (para tomar apenas um exemplo), tem uma “causa fisiológica real” (I - §15): se isso é literalmente falso, então o que resta nele de verdadeiro e que recomenda as considerações causais/explanatórias de Nietzsche contra as da moral e da religião que ele pretende substituir? As dificuldades filosóficas com a leitura proposta se tornam mais urgentes na medida em que surgem determinadas questões históricas e textuais. Mach realmente teve algum impacto sobre Nietzsche? O principal trabalho de Mach em questão nem sequer havia aparecido até 1886, mesmo ano de Para além de Bem e Mal, obra sobre a qual supostamente teria causado impacto. Hussain admite que evidências explícitas de influência são difíceis de conseguir. Sua mais ambiciosa interpretação é que o Nietzsche machiano nos ajuda a dar sentido a seções cruciais de um trabalho tardio (de 1888), Crepúsculo dos Ídolos. Especificamente, ele nos ajudaria a explicar o que Nietzsche quer dizer com sua afirmação de que o mundo “aparente” é o único mundo. Hussain (Ibidem, p. 345) invoca uma passagem de Análise das Sensações de Mach (1886) que, segundo ele, evoca a perspectiva de Nietzsche em CI, especialmente a famosa seção “Como o ‘Verdadeiro Mundo’ finalmente se tornou fábula.” Esta passagem, é claro, foi interpretada por Clark, John Wilcox e outros como a descrição feita por Nietzsche de sua própria trajetória de pensamento no que diz respeito à distinção entre aparência e realidade. No entanto, exceto pela descrição da coisa-em-si como “supérflua” comum a ambos, Mach e Nietzsche, não consigo ver nenhuma semelhança considerável entre esta passagem de CI e aquela de Mach destacada por Hussain. De fato, as dessemelhanças são mais notáveis. Não há nada na passagem de CI, por exemplo, que sugira afinidade de Nietzsche à visão de Mach de que “o mundo” é “um conjunto coerente de sensações, apenas mais fortemente coerente no ego.” Alem do mais, o argumento na passagem de CI parece sugerir claramente que o “positivismo” está apenas no quarto estágio do pensamento de Nietzsche, algo que ele deixa pra trás no sexto e último estágio, quando o mundo “aparente” é também abolido (em decorrência de não haver mais um contrastante mundo “verdadeiro”). A leitura machiana de Hussain poderia se sair um tanto melhor com partes da seção de CI, “‘Razão’ na filosofia”, apesar de achar que, mesmo ali, os cadernos Nietzche 29, 2011 87 Leiter, B. Ao inserir o naturalismo de Nietzsche no interior de uma tipologia mais ampla das espécies de naturalismo, aparentemente semeei confusão junto a alguns estudiosos. A recente crítica de Christopher Janaway à minha leitura naturalista é ilustrativa. Ele alega que: Nenhuma justificação ou suporte científico é dado – ou facilmente imaginável – para a hipótese explanatória central que Nietzsche oferece para a origem de nossas atitudes e crenças morais. Como um caso paradigmático incontestável, tome a hipótese de Nietzsche, da primeira dissertação da Genealogia, segundo a qual a qualificação das ações altruístas, da humildade e da compaixão como “boas” começou por ter havido classes sociais inferiores de indivíduos nos quais sentimentos de ressentimento contra seus senhores motivaram a criação de novas distinções de valor. Esta hipótese explica os fenômenos morais em termos de suas causas, mas não fica claro como isso é justificado ou sustentado por algum tipo de ciência, nem mesmo o que tal justificação ou suporte pode ser32. Esta objeção, é claro, simplesmente ignora minha afirmação de que Nietzsche, assim como Hume, foi um Naturalista-M Especulativo como tinha de ser, dado o estado primitivo da psicologia do século XIX. Um Naturalista-M Especulativo simplesmente não alega que os mecanismos explanatórios essenciais à sua teoria – que explicam por que os seres humanos pensam e agem do reais pontos de referência de Nietzsche são Heráclito e Demócrito, e não algum de seus contemporâneos; além disso, o próprio sumário que Nietzsche faz do argumento (na seção 6 de “‘Razão’ na filosofia”) não apresenta elementos machianos. De fato, essa última seção (que Hussain ignora) melhor se adapta, penso eu, à interpretação dessa passagem feita por Clark (CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 106-108). 32 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 37. 88 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado modo como o fazem – são sustentados por resultados científicos existentes. Para que fique claro, o que Nietzsche realmente faz é apelar para mecanismos psicológicos – tais como o ódio inflamado característico do ressentimento – para os quais parece haver ampla evidência tanto na experiência comum quanto na histórica, e daí tecer uma narrativa mostrando como estes mecanismos simples poderiam ocasionar atitudes e crenças humanas específicas. Além do mais, é bastante fácil ver qual evidência empírica incidiria no caso: por exemplo, a evidência de que um estado psicológico utilmente individualizado como o ressentimento proporciona diagnóstico ou propósitos preditivos. Mesmo na primeira dissertação da Genealogia, Nietzsche suscita uma série de provas de sua autoria em apoio à existência desse mecanismo psicológico: por exemplo, os fatos acerca da etimologia dos termos “bem” e “mal”; o fato histórico genérico de que o cristianismo fundou suas raízes junto às classes oprimidas no império romano; além da retórica dos primeiros Padres da Igreja. Aqui vemos Nietzsche argumentando a favor de um tipo de inferência especificamente científica: ou seja, acreditar no papel causal de um mecanismo psicológico particular, para o qual há evidência ampla e independente, nas bases de seu extenso escopo explanatório, isto é, sua habilidade de dar sentido a uma variedade de dados e pontos distintos. Vale ressaltar que Janaway de fato endossa uma visão mais fraca da minha leitura de Nietzsche como um Naturalista-M, embora esse enfraquecimento pareça derivar de sua má compreensão do papel da “continuidade de resultados” na minha interpretação do Naturalismo-M de Nietzsche. Ele escreve que “Nietzsche é um naturalista na medida em que está comprometido com uma espécie de teoria que explica X apontando Y e Z como suas causas, quando nossa melhor ciência não é capaz de falsear o fato de Y e Z serem cadernos Nietzche 29, 2011 89 Leiter, B. causas de X”33. Janaway prefere essa formulação por conta de suas dúvidas a respeito da existência de resultados científicos efetivos que sustentem as reais explicações causais de Nietzsche. Na medida em que minha leitura do naturalismo de Nietzsche, de todo modo, enfatiza seu caráter especulativo, a formulação de Janaway pode servir, por outro lado, como uma maneira de estabelecer uma restrição pertinente para as explicações especulativas: ou seja, que elas não invoquem entidades ou mecanismos que a ciência tenha descartado. Mas, ainda assim, este parece ser um critério desnecessariamente fraco: por que não esperar, ao invés disso, que um bom naturalista especulativo irá confiar em mecanismos explicativos que gozem de certo suporte probatório, ou de um escopo explanatório mais amplo como o tipo de explicações genuínas que esperamos que sejam exemplificadas pelas ciências? Não creio que haja alguma passagem em Nietzsche que resolva essa questão; trata-se, portanto, de fornecer a reconstrução filosoficamente mais atraente de sua efetiva prática explanatória. Voltaremos a essa prática na próxima seção. II. Dois Nietzsches: humiano e terapêutico Em minha leitura de Nietzsche como um naturalista filosófico, eu enfatizei dois aspectos nos quais o naturalismo seria ou subordinado a ou substituído por outras preocupações filosóficas. Mesmo que, como argumentei, “o grosso da atividade filosófica [de Nietzsche] seja dedicada a variações sobre este projeto naturalista”34– ou seja, explicar a moralidade em termos condizentes com o naturalismo – é igualmente claro que seu “naturalismo seja mobilizado em prol de uma ‘revaloração de todos os valores’”, 33 Ibidem, p. 38. 34 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 11. 90 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado que é o projeto de tentar “livrar os novos tipos superiores de sua ‘falsa consciência’, isto é, de sua falsa crença de que a moralidade dominante é, de fato, boa para eles”35. Isto significa, obviamente, que mesmo quando os textos de Nietzsche são moldados por seu Naturalismo-M, ele tem boas razões para empregar uma variedade de recursos retóricos, visando inquietar seus leitores em relação a seus compromissos morais existentes. Além do fato de que o Naturalismo-M de Nietzsche é um instrumento a serviço da revaloração dos valores, há também o importante aspecto de que ele efetivamente usa o termo “filósofo” como uma honraria para designar aqueles que “criam” valores36. Essa atividade não faz parte do projeto naturalista, senão em dois sentidos relativamente fracos: primeiro, na suposição de que ele esteja observando a restrição de que “dever implica poder”, isto é, na não valorização de quaisquer capacidades e realizações que estejam, de fato, além dos horizontes de criaturas como nós; segundo, ao pensar que as ciências podem esclarecer os efeitos de diferentes tipos de valor em diferentes tipos de pessoas (os apontamentos de GM/GM I são notável exemplo)37. Chamemos de “Nietzsche humiano” o Nietzsche que visa a explicar a moralidade em chave naturalista (no sentido já discutido), contrastando com o filósofo que chamaremos de “Nietzsche terapêutico”, que deseja fazer com que seus seletos leitores joguem fora os grilhões da moralidade (ou MSP38, como a denominei39). A “revaloração dos valores” envolve a mobilização do Nietzsche 35 Ibidem, p. 26, 28; cf. p. 283. 36 Ibidem, p. 11. 37 Gostaria de destacar que tomo a doutrina do eterno retorno como uma doutrina ética, portanto como parte do projeto de “criação” de novos valores, e assim tendo apenas uma conexão tangencial com o naturalismo de Nietzsche. 38 MSP aqui equivale a MPS no texto de Leiter referido, se tratando de uma sigla para Morality in Pejorative Sense, ou seja, Moralidade em Sentido Pejorativo. (NT) 39 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 78-79. cadernos Nietzche 29, 2011 91 Leiter, B. humiano para os fins do Nietzsche terapêutico, mesmo que este último tenha à sua disposição (como argumentei40) uma variedade de outros recursos retóricos, para além do entendimento da moralidade proporcionado pelo primeiro: por exemplo, explorando a falácia genética (fazendo com que seus leitores pensem que há algo de errado com sua moralidade por conta de sua origem vergonhosa) ou explorando sua vontade de verdade (mostrando que a metafísica do agente da qual sua moralidade depende é falsa). Que o Nietzsche terapêutico deva recorrer ele mesmo a recursos não-racionais é algo que não surpreende, sendo, na verdade, algo decorrente do entendimento que o Nietzsche humiano obtém das pessoas, como já destaquei: O naturalismo de Nietzsche, e o proeminente papel que ele atribui a impulsos inconscientes e fatos relativos aos tipos, tornam-no cético em relação à eficácia de razões e argumentos. Mas um cético acerca da eficácia da persuasão racional pode muito bem optar pela persuasão segundo outros recursos retóricos41. E é justamente o que Nietzsche faz repetidamente, seja na Genealogia, seja em qualquer outra parte. Como escrevi: uma vez que “o objetivo último da Genealogia é libertar os novos seres humanos superiores de sua falsa consciência a respeito da MSP, Nietzsche não tem razões para desautorizar formas falaciosas de pensamento [tais como a falácia genética] na medida em que elas são retoricamente efetivas”42. Recentemente, Janaway43 tem posto uma ênfase considerável no Nietzsche terapêutico, argumentando com plausibilidade que 40 Ibidem, p. 159, 176. 41 Ibidem, p. 155. 42 Ibidem, p. 176. 43 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007. 92 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Nietzsche procurou se engajar emocional ou “afetivamente” com seus leitores, porque tal engajamento era uma precondição necessária para alterar a perspectiva do leitor acerca das questões valorativas. Como o próprio Janaway diz: “sem as provocações retóricas, sem a revelação daquilo que para nós é terrível, vergonhoso, embaraçoso, reconfortante e comovente, não seríamos capazes de compreender nem de revalorar os valores correntes”44. De qualquer maneira, Janaway pretende concluir daí que seja equivocado tratar o “estilo” – isto é, o recurso retórico essencial aos objetivos terapêuticos de Nietzsche – como “mero modo de apresentação, discernível, em princípio, do conjunto elusivo de proposições que acreditamos provavelmente constituir seu pensamento”, na medida em que fazer isso “é perder grande parte da real importância de Nietzsche para a filosofia”45. “O modo como Nietzsche escreve,” explica Janaway, “dirige-se aos nossos afetos, sentimentos ou emoções. Ele provoca simpatias, antipatias e ambivalências que repousam na psique moderna para além do nível da decisão racional e da argumentação impessoal.” Isso, afirma Janaway, “não é um exercício gratuito de estilo que poderia ser suprimido do pensamento de Nietzsche”46. Estas e outras passagens similares do livro de Janaway47 parecem confundir os Nietzsches humiano e terapêutico. Não pode haver dúvida de que o objetivo prático de Nietzsche é transformar a consciência complacente de seus leitores (ou ao menos de alguns deles) em relação à moralidade herdada, sendo igualmente 44 45 46 47 Ibidem, p. 4; cf. p. 96-98. Ibidem, p. 4. Ibidem, p. 4. Ver principalmente JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy, p. 212, onde ele afirma, sem qualquer fundamento, que “está fora de questão que Nietzsche considera a Genealogia como uma fonte de maior conhecimento [destaque meu] acerca da moralidade que qualquer combinação das tradicionais Wissenschaften poderia ter alcançado sem auxílio,” o que só seria verdade se os objetivos terapêuticos fossem confundidos com as teses filosóficas de Nietzsche a respeito da moralidade. cadernos Nietzche 29, 2011 93 Leiter, B. evidente que o único modo de se fazer isso é envolvendo-os emocionalmente. No entanto, a proposição de que os leitores somente irão mudar seus compromissos morais mais básicos se seus estados afetivos fundamentais forem despertados e alterados é, por si mesma, uma posição filosófica que pode ser exposta independentemente de emoções. O que Janaway é incapaz de estabelecer é a tese de que não se pode, de fato, separar as posições filosóficas do Nietzsche humiano (acerca da ação, das motivações, da origem da moralidade, etc.) do modo de apresentação essencial aos objetivos do Nietzsche terapêutico. Considere o caso análogo da psicanálise freudiana. De modo diverso de Nietzsche, obviamente, os livros de Freud não têm objetivos terapêuticos; a terapia tem lugar no consultório do psicanalista. Os livros de Freud, por sua vez, expressam conteúdos cognitivos referentes às suas posições filosóficas e teóricas: acerca da estrutura da mente, da interpretação dos sonhos, do curso de desenvolvimento da psique humana e – o que é mais importante para nossos propósitos – da centralidade do mecanismo de transferência para o sucesso terapêutico. Todavia, uma correta descrição teórica da transferência não é um substituto da experiência real de transferência do paciente no cenário terapêutico, quando ele projeta no analista seus sentimentos até então reprimidos e que têm sido a causa de seu sofrimento, permitindo ao paciente reconhecer enfim a realidade daqueles sentimentos. Presumo que ninguém seja contra a possibilidade de se separar a explicação teórica da transferência enquanto mecanismo terapêutico da real experiência de cura via psicanálise, culminando (mais ou menos) com o momento da transferência. Nietzsche difere de Freud em muitos aspectos, porém apenas um interessa nesse contexto: seus livros são a expressão do posicionamento teórico e o método terapêutico. As posições teóricas do Nietzsche humiano – por exemplo, o que ele acredita ser capaz de explicar a gênese de nossa moralidade corrente, como ele entende os mecanismos da psicologia humana, o que ele considera das consequências causais 94 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado das crenças morais, etc. – estão tanto de forma implícita quanto explícita em um texto que também visa a produzir um efeito terapêutico em certos leitores, isto é, livrá-los de sua falsa consciência acerca da moralidade dominante. Da mesma maneira que uma transferência bem-sucedida requer que o paciente experiencie os sentimentos reprimidos direcionados ao analista, uma revaloração dos valores bem-sucedida requer, subconscientemente, o envolvimento do leitor em um nível afetivo, a ponto de sentir asco, desgosto e embaraço em relação a suas crenças morais existentes. De todo modo, não se segue daí que não possamos separar o conteúdo filosófico ou cognitivo da técnica terapêutica, que não possamos separar o Nietzsche humiano do terapêutico. Neste contexto, devemos nos lembrar de quão presente é o projeto do Nietzsche humiano – não apenas na Genealogia da moral, mas em Aurora, em Para além de bem e mal (mais obviamente o capítulo “História Natural da Moralidade”), no Crepúsculo dos ídolos e em outros mais. Em uma nota de pé de página do meu livro48 que Janaway invoca mais de uma vez, eu descrevo o Naturalismo-M de Nietzsche como reflexo de sua “real prática filosófica, isto é, aquilo com o que ele mais despende tempo na feitura de seus livros.” Janaway se contrapõe a essa posição dizendo que “os métodos de Nietzsche, como evidência daquilo ‘com o que ele mais despende tempo na feitura de seus livros’, são caracterizados por recursos artísticos, pela retórica, por provocações afetivas e pela exploração das reações pessoais do leitor, mostrando pouca preocupação com métodos que, de modo informativo, poderiam ser chamados científicos”49. Entretanto, esse tipo de censura nada mais faz do que evidenciar a confusão feita por Janaway entre os Nietzsches humiano e terapêutico. O Nietzsche terapêutico de fato depende 48 LEITER, B. op. cit,, p. 6. 49 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy, p. 52. cadernos Nietzche 29, 2011 95 Leiter, B. “de recursos artísticos, da retórica, da provocação afetiva e da exploração das reações pessoais do leitor” e muito do corpus é, realmente, dedicado ao projeto terapêutico; mas isso não muda o fato de que o projeto terapêutico é conjuntamente buscado e moldado pela estrutura básica formulada pelo Nietzsche humiano acerca dos agentes e da moralidade, o que também está presente no corpus. Essa última característica é reconhecidamente uma concepção naturalista que, de fato, explica por que a discursividade racional – em contraste com os recursos estilísticos que Janaway enfatiza – é uma técnica terapêutica ineficaz50. 50Janaway segue a mesma linha crítica, envolvendo a mesma confusão entre os Nietzsches humiano e terapêutico, porém de um modo diverso. Ele sugere que Nietzsche não poderia ter sido um Naturalista-M porque rejeitou a postura “desinteressada, impessoal e afetivamente neutra” do investigador científico: Nietzsche “defende um estilo literário, pessoal e afetivamente engajado de investigação que deliberadamente se opõe à ciência, no modo como esta se concebe: como desinteressada, impessoal e afetivamente neutra” (JANAWAY, C, op. cit., p. 39). Sua prova consiste na afirmação de que a objeção “mais fundamental” de Nietzsche aos “métodos e resultados” de seu amigo Paul Rée é que este assume que o “desinteresse [selflessness] é constitutivo da moralidade”, que o “desinteresse tem valor positivo” (Ibidem, p. 40). Esta é certamente a objeção substantiva de Nietzsche à posição de Rée, mas eu não vejo qualquer evidência de que constitua uma objeção à sua metodologia. GM/GM I 1 inicia por vislumbrar as motivações dos “psicólogos ingleses” (dos quais Rée é um exemplo), mas então GM/GM I 2 se direciona a uma genuína objeção metodológica, qual seja, tratar o uso ou significado corrente de algo como garantia de inferência acerca de sua origem (ver discussão em LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 198-199). Para criar uma conexão entre a oposição de Nietzsche ao desinteresse como ideal moral e suas crenças acerca da confiabilidade epistêmica dos métodos de investigação, Janaway apela (JANAWAY, C., op. cit, p. 40-41) para FW/GC 345, onde Nietzsche afirma que o “‘desinteresse’ não tem valor nem no céu nem na terra; todo grande problema demanda grande amor.” Mesmo essa passagem não diz realmente nada sobre métodos de investigação, apesar de Janaway destacá-la deste modo: “a adesão ao conceito de moralidade como desinteresse deixa Rée involuntariamente preso a um modo estéril de investigação que poderia trazer à tona apenas fracassos filosóficos” (Ibidem, p. 41). Se isso for o que realmente está em questão, poderíamos esperar alguma evidência textual da Genealogia da moral expressando essa preocupação. Mas, com exceção de uma passagem incidental na qual Nietzsche chama os psicólogos ingleses de “velhos, frios, sapos entediantes” 96 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado III. Cultura, causação e vontade de potência Mesmo se concordarmos que o Nietzsche humiano é um Naturalista-M e que seu Naturalismo-M explica, por sua vez, por que algo como a lista de lavanderia de Janaway parece uma correta descrição das posições expressas por Nietzsche, nos restam ainda três obstáculos adicionais para a leitura de Nietzsche como um naturalista filosófico: primeiro, embora menos importante, a questão de se há um papel para a “cultura” no tipo de explicações naturalistas que Nietzsche nos oferece; segundo, como entender a noção de causação, fundamental para minha leitura de Naturalismo-M, assim como se Nietzsche está mesmo apto a se valer de tal conceito; terceiro, e talvez mais importante, se a doutrina nietzschiana da (GM/GM I 1, KSA 5.257) no contexto da investigação de seus motivos, a única aparente evidência da Genealogia da moral que Janaway pode aduzir é esta: “No epigrama de GM/GM III, a sabedoria é uma mulher que ama apenas quem seja ‘despreocupado, zombeteiro, violento’, em oposição [ao tipo descrito em FW/GC 345, KSA 3.577]. O epigrama introduz o ensaio de Nietzsche sobre o significado do ideal ascético e aponta para a principal reivindicação do ensaio de que o real método científico objetivo é nada mais que uma outra versão de uma crença metafísica, originariamente cristã, na autonegação ascética diante de algo absoluto e quase-divino chamado verdade” (Ibidem, p. 41-42). É algo revelador o fato de que Janaway não cita nenhum texto da GM/GM III, e sua caracterização do argumento ali presente parece ser imprecisa, particularmente sua caracterização da objeção de Nietzsche como voltada contra o “método objetivo, científico”, em oposição à superestimação da verdade pela ciência (cf. LEITER, B., op. cit.,, p. 265 ss.). A ciência, segundo afirma Janaway, pode ser “comprometida com uma visão de si mesma como livre de afetos, desinteressada e impessoal”, mas, com a exceção de alguns poucos especialistas automatizados [clock-like scholars], Nietzsche rejeita a ideia de que a Wissenschaft seja realmente assim – mesmo os psicólogos ingleses têm motivos ocultos, como ele diz em GM/GM I, 1! Que a ciência, assim como quase toda atividade investigativa, não seja realmente desinteressada é algo que não tem implicação nas virtudes metodológicas da ciência, algo que está claro para Nietzsche. Em suma, Janaway parece confundir os motivos para se engajar na ciência e os métodos da ciência. Pode-se ter profunda preocupação com o objeto de investigação (como, por exemplo, Nietzsche teve) e acreditar que as explicações causais e os mecanismos causais referentes ao naturalismo sejam meios corretos de entender como o mundo realmente funciona. cadernos Nietzche 29, 2011 97 Leiter, B. vontade de potência é realmente compatível com a ideia de que o Nietzsche humiano vê a si mesmo como alguém que está trabalhando “em parceria com” as ciências empíricas, ao invés de substituindo-as e transformando-as. Nesta seção, retomaremos cada uma destas questões. A. O papel da cultura nas explicações naturalistas. Em minha leitura do Nietzsche humiano, afirmo que ele busca oferecer teorias que expliquem vários fenômenos humanos importantes (especialmente o fenômeno da moralidade) e que procede tanto no sentido de que essas teorias se valem dos resultados científicos reais – ou pelo menos são constrangidas por esses resultados – mas principalmente no sentido de que são modeladas pela ciência, na medida em que buscam revelar as determinantes causais desses fenômenos, geralmente a partir de diversos fatos fisiológicos e psicológicos acerca das pessoas. Mais precisamente, argumentei que Nietzsche endossa uma visão que eu chamo de “doutrina dos tipos”, de acordo com a qual toda pessoa tem uma constituição psicofísica fixa que a define como um tipo particular de indivíduo. Eu denomino os fatos psicofísicos relevantes de “fatos relativos ao tipo” [type-facts]. São os fatos relativos ao tipo, por sua vez, que figuram nas explicações das ações e crenças humanas (inclusive as crenças acerca da moralidade). Um dos empreendimentos centrais de Nietzsche é, portanto, o de especificar os fatos relativos ao tipo – os fatos psicológicos e fisiológicos – que explicam como e porque uma moralidade essencialmente ascética ou “negadora da vida” pôde se apoderar de tantas pessoas ao longo dos últimos dois milênios. Um fato relativo aos tipos específicos é de fundamental importância para Nietzsche: o que ele chama de “vontade de potência.” Seu papel explanatório central é articulado na Genealogia da seguinte maneira: 98 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Todo animal (...) busca instintivamente [instinktiv] um optimum de condições favoráveis no qual liberte inteiramente seu poder [ou força; Kraft] e alcance o máximo de sentimento de poder; todo animal abomina, também instintivamente e com um olfato acurado “maior que toda razão”, todo tipo de distúrbio e obstáculo que o impeça ou possa impedi-lo em seu caminho para este optimum... (GM/GM III, §7, KSA 5.349). Se é um fato natural acerca das criaturas como nós que “instintivamente” maximizamos nossa força ou poder, então este fato, juntamente com outros fatos de tipo e circunstanciais, deve figurar em toda explicação a respeito do que fazemos ou acreditamos. Desse modo, por exemplo, aqueles que são essencialmente fracos ou impotentes (como os escravos na primeira dissertação da Genealogia da moral) expressam sua vontade de potência criando valores que são favoráveis aos seus interesses; aqueles que são fortes, em contrapartida, expressam seu poder através da ação física, e assim por diante. Christopher Janaway questiona que: Se as explicações causais de Nietzsche para nossos valores morais são naturalistas, elas o são no sentido de que incluem no que se chama aí de “natural” não apenas a constituição psicofísica do indivíduo cujos valores buscamos explicar, mas também vários fenômenos culturais complexos e os estados psicofísicos de indivíduos passados, com seus tipos individuais idealizados51. Mais precisamente, partindo de algumas passagens de Aurora52, Janaway pretende enfatizar o interesse de Nietzsche pelo papel das “inclinações e aversões” nos juízos morais do agente, onde, como afirma, “minhas inclinações e aversões são hábitos ad- 51 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy, p. 53. 52 Ibidem, p. 45-47. cadernos Nietzche 29, 2011 99 Leiter, B. quiridos, inculcados a partir da cultura específica na qual estou inserido”, sendo que “esta cultura inculca justamente estes hábitos porque possui uma estrutura guia para as crenças de valor (...) que se tornaram dominantes por atenderem a certas demandas afetivas dos indivíduos em estágios culturais mais antigos”53. Conforme observa Janaway em uma nota de pé de página54, minha formulação do Naturalismo-M não tem razão para “negar” nada disso. Em primeiro lugar, uma importante virtude do Naturalismo-M é que ele não pretende resolver questões a priori sobre ontologia, mas antes acatar algo qualquer que funcione nas práticas explanatórias das ciências. É notável, por exemplo, que o melhor trabalho atual em psicologia moral – estou pensando aqui especificamente em The Emotional Construction of Morals (2007) de Jesse Prinz, que busca atualizar o projeto genealógico de Nietzsche – incorpore explicitamente fatores culturais, via antropologia, como uma parte central das ciências cognitivas relevantes que deveria figurar em nosso entendimento da moralidade. Além disso, outra importante aspiração própria ao filósofo naturalista, como propõe Stroud ao explicar a perspectiva de Hume, é buscar explicações por meio de “princípios gerais, talvez mesmo universais.” As ciências não explicam por meio da ênfase em pormenores, isto é, em ocorrências singulares, mas antes subsumindo os pormenores em tipos. Estes tipos, conforme demonstra Prinz, podem vir a ser de caráter cultural, porém, no exemplo de Janaway, fica indefinido se são tipos culturais que figuram nas explicações das crenças morais ou se os fatores culturais simplesmente fixam o conteúdo particular dos fenômenos explicados pelos tipos psicofísicos. Enfim, tenho muitas dúvidas a respeito disso. Não há razão para negar que Nietzsche, 53 Ibidem, p. 47. 54 Ibidem, p. 47, n. 24. 100 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado o naturalista, está interessado em cultura, mas isso não deveria nos levar a perder de vista o papel que as causas psicofísicas desempenham na explicação da moralidade que ele nos oferece. B. Problemas de causação. Em minha leitura do Naturalismo-M, o Nietzsche humiano emula os métodos da ciência tentando construir explicações causais para as práticas humanas e suas crenças morais. Mesmo na descrição (mais fraca) do naturalismo nietzschiano de Janaway, a causação é algo central. Conforme ele afirma: Nietzsche “é comprometido com uma espécie de teorização que explica X apontando Y e Z como suas causas, quando nossa melhor ciência não é capaz de falsear o fato de Y e Z serem causas de X”55. Fazemos bem em lembrar o quão importante são as explicações causais para o projeto filosófico de Nietzsche. Quando ele diz em Aurora, por exemplo, que “nossos juízos morais e valorações são apenas imagens e fantasias baseadas em processos fisiológicos por nós desconhecidos” (M/A 119, KSA 3.114), e que assim “é sempre necessário trazermos à tona os fenômenos fisiológicos por detrás dos prejuízos e predisposições morais” (M/A 524, KSA 3.301), ele está fazendo uma afirmação causal, isto é, a afirmação de que certos processos fisiológicos causam juízos morais por meio de mecanismos presumivelmente complicados que os apresentam como “imagens” e “fantasias” ocasionadas por estas causas. Quando ele diz na Genealogia que o ressentimento – e a moralidade fomentada por ele – tem uma “causa [Ursache] fisiológica real” (GM/GM I, 15, KSA 5.283), seu sentido é obviamente inequívoco. Quando ele dedica um capítulo inteiro do Crepúsculo dos ídolos ao que chama 55 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 38. cadernos Nietzche 29, 2011 101 Leiter, B. de “os quatro grandes erros”, erros que dizem respeito quase inteiramente à causação – “confusão entre causa e efeito”, o “erro da falsa causação”, o “erro das causas imaginárias” – fica claro que ele pretende distinguir relações causais genuínas daquelas falaciosas que infectam o pensamento moral e religioso. Quando retorna ao mesmo tema no Anticristo, novamente ele denuncia o cristianismo por vender “causas imaginárias” e por sugerir “uma ciência natural imaginária”, que depende de conceitos antropocêntricos e que carece de “qualquer conceito de causa natural” (M/A 15. KSA 3.28; cf. M/A 25, KSA 3.36) – ciência correspondendo em sua descrição a “conceitos saudáveis de causa e efeito” (M/A 49, KSA 3.53). Causação e explicações causais são fundamentais para o naturalismo de Nietzsche, assim como voltaram a ocupar uma posição central na filosofia da ciência dos últimos trinta anos56. Sem a crença em alguma noção de causação é difícil ver como qualquer uma dessas passagens de Nietzsche pode fazer sentido. Eu gostaria de considerar dois diferentes tipos de objeções à centralidade do nexo causal para o Naturalismo-M de Nietzsche. O primeiro tipo de objeção não envolve qualquer ceticismo acerca da causalidade, mas preocupações de que a “causação”, e a função que desempenha no Naturalismo-M de Nietzsche como eu o descrevo, não seja adequada para definir uma posição teórica atraente. O segundo tipo de objeção ocupa-se da posição do próprio Nietzsche em relação à causação. É desnecessário dizer que esta segunda objeção é mais radical à luz da evidência que temos apresentado até o momento. Em um estudo crítico do meu livro, Ken Gemes e Christopher Janaway (2005) insistiram nessa primeira espécie de objeção. Eles fazem três objeções-chave à minha formulação do Naturalismo-M: primeiro, que “há muito na ciência que não diz respeito às 56 Cf. CARTWRIGHT, N. From Causation to Explanation and Back Again. In: Leiter, B. (org.). The Future for Philosophy Oxford: Oxford University Press, 2004. 102 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado descrições causais, como, por exemplo, as três leis da mobilidade planetária de Kepler”57; segundo, que procurar explicações causais não é suficiente para estabelecer uma continuidade de métodos com as ciências – como eles dizem, “apenas porque a astrologia busca explicações causais, não diríamos que ela compartilha uma continuidade de métodos com as ciências”58; e terceiro, o verdadeiro papel causal que eu afirmo que Nietzsche reivindica para os “fatos relativos aos tipos” – os fatos psicofísicos essenciais acerca das pessoas aos quais Nietzsche recorre na explicação das atitudes e crenças morais – é assaz fraco para determinar uma tese naturalista atraente. Podemos nos desfazer da primeira crítica de modo bastante rápido. É bem verdade que muito do que é característico da prática e da metodologia científica não envolve causação, muito embora as três leis da movimentação planetária de Kepler – que são descrições matemáticas do movimento dos planetas – sejam dedutíveis a partir das leis newtonianas de movimento e gravitação, e desta maneira se mantêm válidas por conta das forças causalmente efetivas descritas por estas leis. Entretanto, o argumento em questão, tanto em minha caracterização do naturalismo de Nietzsche quanto na que faz Stroud a respeito de Hume, não foi o argumento de que a ciência se limita ao seu interesse por explicações causais, mas antes que um aspecto característico da ciência seja que esta visa a proporcionar autênticas explicações causais ou deterministas dos fenômenos a partir do apelo a poucos princípios ou mecanismos gerais. Isso é obviamente compatível com o fato de que parte do empreendimento científico seja puramente descritivo. De qualquer maneira, Gemes e Janaway, de modo semelhante, temem que a tentativa de “atribuir explicações causais” não seja 57 GEMES, K.; JANAWAY, C. Naturalism and Value in Nietzsche. In: Philosophy & Phenomenological Research, 71, 2005, p. 731. 58 Ibidem, p. 731. cadernos Nietzche 29, 2011 103 Leiter, B. suficiente para falarmos em continuidade de métodos. Afinal de contas, astrólogos e (poderíamos acrescentar) teóricos do design inteligente podem alegar que estão oferecendo explicações causais, porém isso dificilmente faz deles Naturalistas-M. É claro que, em minha formulação, a busca por causas deterministas era apenas um aspecto do Naturalismo-M; como ressaltei, Nietzsche aceita algumas implicações do Naturalismo-S acerca dos mecanismos causais viáveis, muito embora, na minha opinião, ele tome essas implicações substantivas como decorrentes das descobertas científicas. O problema dos astrólogos e teóricos do design inteligente é que seus conceitos sobre “o que pode causar o que” entram em conflito com descobertas substantivas da própria ciência (por exemplo, de que não há evidência empírica que fundamente intervenções sobrenaturais em fenômenos naturais, ou do poder causal dos planetas sobre as questões humanas). Mais interessante é a crítica que Gemes e Janaway dirigem à posição naturalista que chamei de “essencialismo causal” e que atribuo a Nietzsche. Segundo esta posição, conforme ressaltam Gemes e Janaway59, “toda substância individual tem propriedades ‘essenciais’ que são causalmente primárias com respeito à história futura desta mesma substância, isto é, determinam de modo nada trivial a margem de manobra para esta substância”60. Então eles escrevem: A importância dada [por Leiter] aos fatos naturais, no sentido de serem causalmente primários em relação a algum efeito, é de que estes são necessários, porém não suficientes para o efeito em questão. Entretanto, este é um significado extraordinariamente fraco; o fato de termos uma cabeça é condição necessária, porém não suficiente para nos tornarmos filósofos, mas não deveríamos querer dizer com isso 59 Ibidem, p. 733. 60 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 83. 104 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado que o fato de termos uma cabeça é causalmente primário em relação ao efeito de nos tornarmos filósofos. E, apesar de Leiter colocar “essencial” entre aspas, pode-se temer que, na medida em que as propriedades essenciais são geralmente consideradas como imutáveis, isso poria nas costas de Nietzsche uma perspectiva na qual o peso do papel causal da natureza se sobreporia mesmo ao da criação61. Em meu livro, eu listo os muitos lugares onde Nietzsche, de fato, adota a ideia de uma natureza62 “imutável” ou “essencial”, mas o ponto importante aqui é que um Naturalista-M, seja Nietzsche ou Hume, deve priorizar o papel causal da natureza sobre o da criação, precisamente com vistas a – como Stroud afirma ao descrever a perspectiva de Hume – “explicar eventos físicos numerosos e complexos por meio de princípios que, comparativamente, são poucos, extremamente gerais, e talvez mesmo universais”63. É por isso que Hume procura “uma teoria completamente geral da natureza humana”, já que uma das características que demarcam tal investida como algo de aspiração científica é precisamente sua generalidade, ou seja, sua intenção de transcender elementos culturais vívidos e 61 GEMES, K.; JANAWAY, C. Naturalism and Value in Nietzsche. In: Philosophy & Phenomenological Research, 71, 2005, p. 733. 62 Nietzsche nos conclama a “completar nossa des-deificação da natureza [e a] ‘naturalizar’ a humanidade em termos de uma natureza pura, novamente descoberta, novamente redimida” (FW/GC §256, KSA 3.517). De forma ainda mais surpreendente, ele faz frequentes alegações sobre as “essências”: por exemplo, a respeito da “essência [Wesen] daquilo que vive” (JGB/BM §259, KSA 5.207), “a essência [Wesen] da vida” (GM/GM II, §12, KSA 5.316) ou “a fraqueza dos fracos (...) quero dizer [sua] essência [Wesen]” (GM/GM I, §13, KSA 5.279). O erro da maioria das leituras antiessencialistas de Nietzsche consiste em confundir sua oposição a alegações não-empíricas ou não-naturalistas (que ele, de fato, repudia) com uma oposição a toda e qualquer reivindicação a respeito de uma essência ou natureza das coisas. Mas as últimas alegações são bastante plausíveis a partir de um panorama naturalista (como, por exemplo, o de Quine), desde que as entendamos como reivindicações empíricas ou naturalistas feitas do interior de nossa melhor teoria de mundo em curso. 63 STROUD, B. Hume. Londres: Routledge, 1977, p. 3. cadernos Nietzche 29, 2011 105 Leiter, B. reais a fim de ver o que todos estes artefatos culturais díspares têm em comum, isto é, sua gênese em tendências enraizadas na natureza humana64. O outro viés da crítica de Gemes e Janaway – a respeito da “fragilidade” da necessária, porém não suficiente caracterização do que seria algo “causalmente primário” para uma explicação – simplesmente explora um problema comum acerca das análises empíricas da causação, desde Hume até Mackie: ou seja, que elas se atrapalham ao lidar com o problema de reconhecer as “correlações” regulares que contam para fins de nexo causal ou, no caso de Mackie, em especificar as condições que sejam meramente condições não-causais “implícitas”, quando reconhecemos uma causa INDS de um evento (onde a causa INDS significa “uma parte insuficiente, mas necessária de uma condição desnecessária, mas suficiente” para o acontecimento do evento). O fato de ter uma cabeça não é causa de alguém ser filósofo (mesmo sendo uma condição necessária), porém ter uma composição genética de tomate é, seguramente, uma parte central da explicação causal para o fato de uma semente específica dar origem a um tomateiro. Seria surpreendente – ou simplesmente grosso anacronismo – pensar que Nietzsche tenha uma boa explicação de como demarcamos essa diferença, principalmente quando vários filósofos que meditaram sistematicamente sobre este problema não tiveram. Entretanto, isso não muda o fato de que a prática comum e científica reconheça a distinção. De fato, Nietzsche dá todos os sinais de ser um Naturalista-M atento a essa questão, e não um metafísico desavergonhado, quando descreve a “ciência” simplesmente como “os saudáveis conceitos de causa e 64 É óbvio que Nietzsche acredita que diferentes tipos de moralidades operam efetivamente como “tipos de criação”, isto é, tipos de sistemas de valor que têm efeitos previsíveis em certos tipos de pessoas. Ainda assim são sempre os fatos naturais relativos ao tipo que são primordialmente explanatórios no entendimento de quais efeitos qualquer tipo de moralidade terá. (Agradeço a John Richardson por insistir comigo nesse ponto). 106 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado efeito” (AC/AC 49, KSA 6.228). Deixemos a ciência e a aplicação dos métodos científicos decidirem o que é uma causa e o que não é; então podemos nos servir de qualquer espécie de causa, desde que funcione. Ao menos, podemos estar certos de que nenhuma teoria interessante será desenvolvida quanto à explicação para a existência de filósofos com base no fato de que têm uma cabeça, ao mesmo tempo em que toda explicação científica sensata sobre plantas que desenvolvem tomates apelará para a constituição genética das sementes do tomateiro. Se Nietzsche está certo (uma questão a qual voltarei), então o mesmo será verdadeiro a respeito da correta descrição naturalista das atitudes e crenças morais65. Gemes e Janaway, tanto em sua crítica conjunta ao meu livro quanto em suas posições acadêmicas pessoais, estão confortáveis com a ideia de que Nietzsche acredita em relações causais, seja qual for o sentido de seu entendimento. Todavia, alguns críticos da minha apresentação do Naturalismo-M de Nietzsche se mostram céticos em relação a este ponto. Tratarei da recente crítica de Christina Acampora66 como caso representativo. 65 Talvez possamos refinar a dificuldade enfatizando que os fatos relativos ao tipo são explanatoriamente primários, portanto alterando o status da reivindicação do domínio metafísico para o epistêmico. Em outras palavras, a reivindicação seria que, a fim de explicar, por exemplo, a revolta escrava na moral, o papel causal dos fatos relativos ao tipo acerca do tipo escravo – por exemplo, sua propensão ao ressentimento – é necessário, porém não suficiente para explicar o evento. Isso concede a possibilidade de que outros fatores causais sejam importantes – tais como o ambiente social no qual o tipo escravo se encontra. Entretanto, nessa formulação, nenhuma explicação da revolta escrava que deixe de fazer referência ao tipo psicofísico de “escravo” seria epistemicamente adequada. De todo modo, isso pode enfraquecer a reivindicação além do que Nietzsche parece ter em mente. 66 ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. AnsellPearson (ed.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006. cadernos Nietzche 29, 2011 107 Leiter, B. Em meu livro67, eu destaquei o flerte de Nietzsche, em alguns trabalhos de juventude, com o ceticismo neokantiano acerca da causação, assim como em passagens como esta de Para além de bem e mal: No “em si” [An-sich] não há nada de “conexões causais”, de “necessidade”, ou de causa (...). Somos nós sozinhos que concebemos a causa, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo e o propósito; e quando projetamos e mesclamos este mundo de símbolos às coisas como se existisse “em si mesmo”, nós agimos uma vez mais como temos sempre agido – mitologicamente (JGB/BM 21, KSA 5.35). Esse tipo de crítica teria se tornado familiar a Nietzsche a partir do neokantiano Friedrich Lange, que criticou os cientistas precisamente por sua falsa crença de que a ciência nos dá conhecimento do mundo numênico, quando, de fato, apenas o mundo fenomênico diz respeito à ciência. “Causa” e “efeito” são “puros conceitos”, diz Nietzsche nessa mesma passagem (claramente ecoando a linguagem kantiana), impostos pela mente humana ao mundo que, em-si-mesmo, não guarda “nada de conexões causais” ou algo parecido. Obviamente, é notável que mesmo na perspectiva kantiana, esse ponto não prejudica a objetividade de reivindicações acerca das causas; isso apenas confina sua verdade objetiva ao mundo tal qual se nos mostra. Mas uma vez que, como Clark argumentou mais sistematicamente68, em última análise Nietzsche repudia a inteligibilidade da distinção númeno/fenômeno, não é surpreendente que em seus trabalhos de maturidade o ceticismo neokantiano acerca da causação não apareça. 67 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 22-23. 68 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 103-105. 108 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Acampora alega que, de todo modo, isso é algo “absolutamente equivocado”69, que o ceticismo acerca da causação está igualmente presente nos trabalhos de maturidade. Considero aqui que esse seja o núcleo de sua crítica que, vale ressaltar, inclui uma enorme concessão à leitura que venho defendendo de Nietzsche como um Naturalista-M: Nietzsche é claramente um naturalista buscando enfocar os fenômenos naturais e observáveis, para assim conquistar nosso entendimento do mundo e nosso lugar nele. A ciência empírica é admirável para Nietzsche por conta de seu método rigoroso e de sua preocupação em se livrar de pressuposições sobrenaturais e mitológicas. Esta última motivação reflete um tipo de higiene mental que por um longo período tem sido reconhecida como algo importante para a filosofia, apesar de raramente alcançada, vale dizer, a prática de evitar o uso de suposições implícitas ou injustificadas. Para Nietzsche, o problema com a ciência é que ela quase sempre incorre sub-repticiamente em princípios ou artigos de fé que cheiram às mesmas concepções metafísicas e teológicas que se busca superar. Duas ideias que foram tão cruciais para a ciência de seu tempo, das quais uma ainda se mantém como pedra de toque da investigação científica, são a concepção teleológica da natureza e o conceito de causação70. Nós podemos deixar o primeiro ponto de lado, e não apenas porque a teleologia deixou de frequentar a prática científica, há muitos séculos, com o triunfo da revolução científica sobre o aristotelismo. A questão é se Nietzsche realmente pensa que a causação envolve “concepções metafísicas e teológicas” que ele mesmo rejeita. 69 ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. AnsellPearson (ed.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006, p. 329, n. 5. 70 Ibidem, p. 316-317. cadernos Nietzche 29, 2011 109 Leiter, B. Acampora cita71 brevemente uma das passagens neokantianas de Para além de bem e mal já mencionada, então a deixaremos de lado. Infelizmente, ela também se apóia em uma passagem de A Gaia Ciência (FW/GC 112, KSA 3.472) que provavelmente reflete o mesmo ceticismo neokantiano e que de modo algum pertence aos trabalhos “maduros” de Nietzsche – o âmbito no qual ela critica minha perspectiva de que Nietzsche não é mais cético a respeito da causação como sendo algo “simplesmente equivocado”. A passagem realmente crucial - a única provinda dos trabalhos maduros de Nietzsche por ela aduzida - está no capítulo “Os Quatro Grandes Erros” do Crepúsculo dos ídolos, mais especificamente na seção sobre “o erro da falsa causalidade”, de acordo com o qual nós acreditamos erroneamente que nossos estados mentais conscientes causam nossas ações. Mas, para os propósitos de Acampora, a parte crucial desta seção é sua conclusão (faço aqui uma citação mais extensa que a dela): Não há, enfim, nenhuma causa espiritual [geistigen]! (...) [N]ós realmente abusamos daquele “empirismo” - nós o usamos para criar o mundo como um mundo de causas, vontades e espíritos. Aqui, a psicologia mais antiga e duradoura está em ação, fazendo nada mais que isso: considerou todos os eventos como ações, todas as ações como resultado de uma vontade, fazendo do mundo uma multidão de agentes, um agente (um “Sujeito”) estando por trás de todo evento. O homem projetou no mundo três “fatos internos” seus, os fatos em que acredita de forma mais fervorosa: a vontade, o espírito e o Eu. Ele tomou o conceito de Ser daquele de Eu, ele imprimiu nas coisas sua própria imagem, baseado no conceito de Eu como causa. Será mesmo surpreendente que o homem depois tenha redescoberto nas coisas tão somente aquilo que nelas foi anteriormente posto? - Mesmo 71 Ibidem, p. 319. 110 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado a “coisa”, vale repetir, o conceito de coisa é apenas um reflexo da crença no Eu enquanto causa... e mesmo seu átomo, meus caros senhores mecanicistas e físicos, quanto erro, quanta rudimentar psicologia ainda existe em seu átomo! Para não mencionar a “coisa-em-si” (...)! O erro de pensar que o espírito causa a realidade! E fazer disso a medida da realidade! E chamá-la Deus! O fato de estarmos enganados em pensar que a vontade consciente é causal em relação às ações - o que coincide com a visão de Nietzsche, como argumentei em outro lugar72 – evidentemente não acarreta nenhum ceticismo sobre a realidade da causação, o que supostamente está em questão na crítica de Acampora à minha leitura do Naturalismo-M de Nietzsche. Aquilo que, nesta passagem, supostamente motivaria o ceticismo acerca da causação é esclarecido por Acampora da seguinte maneira: “o mundo empírico do cientista é povoado por uma série de ‘sujeitos-fantasma’ na forma de ‘fazedores’ ou agentes. Este é o quadro no qual o conceito de causação opera”73. Suponha que seja verdade que nossa crença em “átomos” resultou de nossa (falsa) crença de que nossas vontades são causais. De que modo isso poderia conduzir ao ceticismo acerca da causação? Isso poderia autorizar o ceticismo acerca da metafísica atomística da física, mas a causação parece intocada. De fato, na seção seguinte do Crepúsculo, Nietzsche retorna imediatamente à sua distinção segura entre causas reais e imaginárias, de modo coerente com o teor do capítulo como um todo. A própria Acampora, ao que tudo indica, percebe que há um problema com sua leitura, já que - escondido em uma estranha nota de pé de página - ela admite: “Isto não quer dizer que Nietzsche 72 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15, 2007. 73 ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. AnsellPearson (ed.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006, p. 320. cadernos Nietzche 29, 2011 111 Leiter, B. rejeite a causação como um todo, mas apenas que nosso modo corrente de considerá-la é emperrado por estas outras pressuposições conceituais ou ‘erros’ como [Nietzsche] as chama”74; e ela continua observando que as passagens no Crepúsculo que dizem respeito à critica das noções “falsas” ou “imaginárias” de causação “sugerem que Nietzsche endossa algum tipo de nexo causal”, porém rejeita “a estrutura organizada em torno de várias abstrações metafísicas tais como sujeitos e agentes”75. Eu tomo disso, pela admissão da própria Acampora, que Nietzsche, de fato, acredita em nexos causais, mas simplesmente nega que algumas supostas causas - por exemplo, “sujeitos” ou uma vontade consciente - sejam, de fato, causais. Entretanto, isso nunca esteve em questão em minha leitura do naturalismo de Nietzsche, a qual gasta tempo considerável examinando justamente essa sua crítica76. O que Acampora prometeu, mas não conseguiu cumprir, foi fornecer alguma evidência de que seja “simplesmente equivocado” salientar que Nietzsche acredita em causação em seus trabalhos de maturidade. Ao invés de ser “equivocado”, Acampora, em sua nota de pé de página, admite que isso é correto! A confusa crítica de Acampora, no entanto, traz à tona uma importante questão: ou seja, Nietzsche não seria cético em relação ao que ele julga ser a base metafísica da ciência moderna? E, se isso for verdade, como ele poderia então ser um naturalista que leva a ciência a sério? É a uma versão mais preocupante dessa crítica que agora nos voltamos. 74 Ibidem, p. 330, no. 8. 75 Ibidem. 76 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 87-101. 112 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado C. A metafísica da vontade de potência. Uma vez mais, é Janaway quem propõe uma versão mais afiada da crítica considerada relevante. Ele escreve: O compromisso de Nietzsche em relação à continuidade de resultados com as ciências é posto em questão por conta de algumas de suas asserções acerca da capital noção explicativa da vontade de potência, a qual pode fundamentalmente importar noções de dominação e interpretação para dentro do âmbito biológico77. De fato, algumas das discussões de Nietzsche sobre a vontade de potência - especialmente GM/GM II, 12, KSA 5.313 - fazem surgir dúvidas até mesmo acerca da atribuição de um Naturalismo-M a Nietzsche. Como escreve Janaway: O problema é que Nietzsche apresenta a vontade de potência como uma resposta àquilo que vê como o paradigma dominante na ciência, a “idiossincrasia democrática contra tudo o que domina ou deseja dominar”, um preconceito sobre o método que se “tornou senhor sobre toda a fisiologia e doutrina da vida - para seu próprio prejuízo, removendo sorrateiramente um de seus conceitos fundamentais, o de atividade” (GM/GM II, §12). Nietzsche diz que a explicação científica do comportamento dos organismos em termos de adaptação reativa ao ambiente deve ser rejeitada em favor de uma visão que, em todos os níveis do mundo orgânico, há espontaneidade, apropriação ativa, interpretação e a imposição de formas e sentidos (...)78. 77 JANAWAY, C. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 52. 78 Ibidem, p. 38. cadernos Nietzche 29, 2011 113 Leiter, B. A seção 12 da segunda dissertação da Genealogia de fato se mostra como uma passagem muito estranha para ter sido escrita por um naturalista filosófico, isso pelas razões apontadas por Janaway. De que modo ela poderia se alinhar à leitura de Nietzsche como um Naturalista-M, por sua vez tão bem fundamentada pelos textos? Maudemarie Clark apresentou um forte argumento, parcialmente seguindo Walter Kaufmann, de que “a teoria da vontade de potência se originou como tentativa de explicar comportamentos humanos variados”79 e certamente seu mais importante papel na Genealogia se dá por meio do princípio psicológico articulado em GM/GM III, 7, KSA 5.349, segundo o qual “todo animal (...) instintivamente se esforça em alcançar seu maximum de sentimento de poder”, que por sua vez figura na explicação de Nietzsche para o apelo do ideal ascético, como já argumentei80. Como Clark também mostrou81, os argumentos publicados para versões mais ambiciosas e metafísicas da doutrina da vontade de potência - de acordo com 79 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 210. 80 LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, p. 255-263. Não estou, entretanto, de acordo com a crítica que Clark dirige à vontade de potência enquanto hipótese empírica, segundo a qual ela estaria no mesmo nível do hedonismo psicológico (CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, p. 210-211). É obviamente verdadeiro que para que a ânsia pelo sentimento de poder possa ser explanatoriamente elucidativa nós precisamos de uma descrição desse sentimento que seja tanto concreta quanto conceitualmente distinta daquela de outros sentimentos que poderiam ser pensados como exercendo um papel motivacional (por exemplo, o prazer). Mas a necessidade de discriminação e distinção conceitual é compatível com a tese empírica de que outras motivações aparentes são realmente instâncias motivadoras por meio de uma ânsia pelo sentimento de poder. Dito isso, a tese de que todo comportamento é motivado por uma ânsia pelo sentimento de poder é tão improvável quanto o hedonismo psicológico, porém é compatível com a importante tese de que o sentimento de poder é uma motivação significativa para os seres humanos e figura como a melhor explicação para aspectos centrais das ações e dos valores humanos. 81 CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 212-218; 114 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado a qual toda matéria, ou ao menos toda matéria orgânica, é “vontade de potência - depende de premissas (por exemplo, a causalidade da vontade) que Nietzsche na verdade rejeita explicitamente, de modo que ele não pode tomá-los como argumentos sérios ou convincentes. De fato, os argumentos ruins que Nietzsche oferece para a doutrina metafísica da vontade de potência são, segundo Clark (a partir de JGB/BM 5, 6 e 9), uma ilustração irônica de uma tendência dos filósofos que Nietzsche usualmente critica, ou seja, que eles apresentam suas doutrinas metafísicas como descobertas racionais, ao invés de “tentativas de construir o mundo, ou uma imagem do mundo, em termos dos valores do filósofo”82. Contra este pano de fundo, devemos nos lembrar que GM/GM II, 12, KSA 5.313 - a passagem na qual Janaway se concentra - tem como seu verdadeiro foco o modo correto de fazer uma genealogia, por exemplo, do castigo. Nietzsche argumenta83 que uma genealogia deve distinguir entre “a causa da gênese de uma coisa e sua utilidade final”, uma vez que a primeira não garante qualquer inferência confiável acerca da última. Nietzsche escreve: ...enfatizo ainda mais este ponto central a respeito da metodologia histórica porque ele basicamente vai contra os instintos atualmente dominantes e o gosto da época, os quais prefeririam antes aprender a conviver com a absoluta aleatoriedade, assim como com a falta de sentido mecanicista de todo acontecimento, do que com uma teoria de uma vontade de potência que atua em todo acontecimento. (GM/ GM II, 12, KSA 5.313) Isto reflete, diz Nietzsche, “a idiossincrasia democrática contra tudo o que domina ou deseja dominar” (GM/GM II, 12, KSA 5.313), observação que se faz acompanhar de uma breve polêmica 82 Ibidem, p. 221. 83 Cf. LEITER, B. Nietzsche on Morality. Londres: Routledge, 2002, cap. 5. cadernos Nietzche 29, 2011 115 Leiter, B. contra essa idiossincrasia, que conclui com sua afirmação de que “a essência da vida” é “sua vontade de potência”, envolvendo fundamentalmente “forças espontâneas, agressivas, subversivas, reinterpretantes, reordenadoras e criativas” (idem). A seção seguinte se inicia, “para retomar nosso tópico” - ou seja, a prática genealógica conforme ilustrada por meio do estudo de caso do castigo - e nenhuma palavra a mais é dita no livro a respeito da metafísica da vontade de potência, em oposição à vontade de potência como hipótese psicológica84. Observe então que a aparente metafísica da vontade de potência de Nietzsche surge apenas para reiterar um ponto acerca do correto método histórico, um que se mantém quase independente da verdade da metafísica: em outras palavras, ela se parece justamente com uma tentativa de utilizar as reivindicações metafísicas para fins retóricos, isto é, como estratégia que busca persuadir seus leitores da correção de sua abordagem genealógica a partir da sua associação com um sistema de valores diferente, mais “nobre”. E uma vez cumprido seu propósito retórico, a metafísica então desaparece do livro, dando lugar à versão psicológica da doutrina, explicitada em GM/GM III 7, KSA 5.349. É tentadora a conclusão de que - dado este contexto e aquilo que Clark demonstrou sobre o papel da vontade de potência na obra publicada - GM/GM II 12, KSA 5.313-6 não deve ser levada assim tão a sério. 84 Uma terceira possibilidade é de que a vontade de potência seja entendida como um tipo de hipótese biológica, como procura fazer Richardson (cf. RICHARDSON, J. Nietzsche’s New Darwinism. Oxford: Oxford University Press, 2004). Esta leitura me parece repleta de dificuldades, tanto interpretativas quanto científicas. Conforme demonstra Forber (FORBER, P. Nietzsche Was No Darwinian. In: Philosophy & Phenomenological Research, 75, p. 369-382, 2007), é pouco provável que a versão de Richardson de uma biologia do poder nietzschiana seja compatível com Darwin, o que significa dizer que tal leitura não é compatível com a real biologia, o que a coloca no mesmo barco do que chamo mais à frente de metafísica “maluca” da vontade de potência. Veja a discussão no parágrafo de conclusão desta seção. 116 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Neste contexto, talvez valha a pena lembrar o quão irrelevante o próprio Nietzsche considerou a ideia de vontade de potência, no final das contas. Nos dois principais momentos de autorreflexão presentes no corpus nietzschiano - Ecce homo, onde Nietzsche revê e avalia sua vida e seu trabalho, incluindo aí especificamente todos os seus principais livros, e a série de novos prefácios sinóticos que ele escreveu, em 1886, para todos os seus livros anteriores à Assim falava Zaratustra - em momento algum Nietzsche defende a centralidade da vontade de potência - ou de uma metafísica da vontade de potência - para o seu o trabalho. À luz da avaliação que o próprio Nietzsche faz de sua filosofia, parece particularmente enganoso ler passagens como GM/GM II 12, KSA 5.313-6 de maneira tão literal. De qualquer maneira, uma reflexão conclusiva sobre questões de método interpretativo pode estar sendo requisitada aqui. Meu próprio interesse em Nietzsche não se restringe ao de um antiquário, já que, ao menos em parte, o interesse permanente em qualquer naturalista filosófico como Nietzsche deve se dar em função do quanto consegue tomar a natureza e os fatos corretamente, e deste modo ensinar-nos coisas importantes. Se for comprovado que Nietzsche, o indivíduo, está realmente comprometido com aquilo que parece decorrer do mais surpreendente literalismo sobre um punhado insignificante de passagens publicadas a respeito da “vontade de potência” (tais como GM/GM II 12, KSA 5.313), tanto pior para Nietzsche, pode-se dizer. De todo modo, podemos fazer um favor a Nietzsche, o filósofo, se reconstruirmos seu projeto humiano em termos que sejam em maior parte reconhecidamente seus, e ainda, ao mesmo tempo, bem mais plausíveis, isso na medida em que a metafísica maluca da vontade de potência (segundo a qual toda matéria orgânica “é vontade de potência”) é eliminada. Eu estou inclinado à perspectiva esperançosa de Clark de que a metafísica maluca é realmente apresentada em um tom irônico, e que Nietzsche, o naturalista, bem o sabe. O fato de que nada em sua real psicologia moral depende da metafísica maluca, e que ele não cadernos Nietzche 29, 2011 117 Leiter, B. atribui nenhuma importância à metafísica maluca em sua própria avaliação do seu corpus, é uma razão adicional para ser esperançoso a esse respeito. Mas Nietzsche foi um mero mortal assim como o restante de nós, e mesmo o fato de ser um gênio não pode compensar os perigos de ser autodidata sobre tanta coisa. Talvez Nietzsche tenha realmente acreditado que ele dispunha de alguma intuição profunda sobre a correta metafísica da natureza, uma intuição que teria sido deixada de lado pelas ciências empíricas. Se ele teve este pensamento - algo completamente inconsistente com o resto de seu naturalismo - tanto pior para ele. Aqueles de nós que lemos Nietzsche mais de um século depois devemos nos concentrar em suas ideias produtivas, e não nas bobas, especialmente quando elas não são centrais para seu importante trabalho em psicologia moral. IV. Será Nietzsche um naturalista bem sucedido... e como ele poderia ser? Os filósofos naturalistas incorrem em um ônus de prova diferente daquele da maioria dos filósofos: suas reivindicações devem responder aos fatos conforme se desenrolam no curso da investigação empírica sistemática. Kantianos podem construir sua psicologia moral de suas poltronas santarronas, invocando um interesse limitado ao “conceito” ou à “possibilidade” da motivação moral; já os naturalistas de fato se importam com o modo como os seres humanos realmente funcionam. Obviamente Hume não se sai tão bem em relação a esse padrão mais exigente de prova, já que algumas de suas especulações acerca da natureza humana parecem envolver ilusões sobre as propensões morais humanas. Nietzsche certamente não é propenso a ilusões, mas será que ele realmente se sai melhor? Como se mostra seu Naturalismo-M especulativo mais de um século depois? 118 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Como eu argumentei em um trabalho recente85, uma importante razão para que os filósofos devam levar Nietzsche a sério é porque ele parece ter entendido, ao menos em seus contornos mais amplos, muitos pontos acerca da psicologia moral humana corretamente. Considere que: (1)Nietzsche afirma que os fatos relativos ao tipo hereditário são determinantes fundamentais da personalidade e dos comportamentos moralmente significantes, uma alegação bem fundamentada em vastas descobertas empíricas sobre genética comportamental86. (2)Nietzsche alega que a consciência é algo “superficial” e que “a grande maioria dos pensamentos conscientes devem ser ainda atribuídos à atividade instintiva [inconsciente]” (JGB/BM 3, KSA 5.17), teses amplamente corroboradas por recentes trabalhos de psicólogos sobre o papel do inconsciente87 e de filósofos que produziram metaanálises sintéticas de trabalhos sobre a consciência na psicologia e na neurociência88. (3)Nietzsche afirma que os julgamentos morais são racionalizações post-hoc de sentimentos que têm origem anterior, e que, portanto, não são resultado da reflexão racional ou da discursividade, uma conclusão em sintonia com descobertas do ascendente “intuicionismo social” em psicologia moral empírica de Jonathan Haidt89 e outros. 85 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15, 2007; KNOBE, J.; LEITER, B. The Case for Nietzschean Moral Psychology. In LEITER, B.; SINHABABU, N., 2007. 86 KNOBE, J.; LEITER, B. The Case for Nietzschean Moral Psychology. In LEITER, B.; SINHABABU, N., 2007. 87Por exemplo, WILSON, T. Strangers to Ourselves: Discovering the Adaptive Unconscious. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002. 88 Por exemplo, ROSENTHAL, D. Consciousness and Its Function. In: Neuropsychologia, 46, p. 829-840, 2008. 89 HAIDT, J. The Emotional Dog and Its Rational Tail: A Social Intuitionist Approach to Moral Judgment. In: Psychological Review, 108, p. 814-834, 2001. cadernos Nietzche 29, 2011 119 Leiter, B. (4)Nietzsche argumenta que o livre arbítrio90 é uma “ilusão”, que nossa experiência consciente de vontade é ela mesma um produto causal de forças inconscientes, uma posição recentemente defendida pelo psicólogo Daniel Wegner91, que, por sua vez, sintetiza um amplo conjunto de resultados empíricos, incluindo os famosos dados neurofísicos acerca da “vontade” coletados por Benjamin Libet. Se Nietzsche fosse mais amplamente lido por psicólogos acadêmicos – anos a fio de leituras equivocadas de Heidegger e Derrida parece tê-los afastado de Nietzsche – então ele seria reconhecido como uma figura verdadeiramente presciente na história da psicologia empírica. Os naturalistas são, certamente, reféns da fortuna empírica, e a notável trajetória de Nietzsche pode se tornar menos impressionante em cinquenta ou cem anos. De todo modo, fazer profecias acerca das ciências empíricas não é o meu interesse aqui. Pois a notável perspicácia psicológica de Nietzsche faz surgir um novo e diferente tipo de enigma a respeito do Naturalismo-M que atribuí a ele e que aqui defendi de várias críticas. Para dizer de forma simples: Nietzsche parece estar correto a respeito de grande parte da psicologia moral humana, não obstante sua incapacidade de empregar qualquer um dos métodos da psicologia empírica que confirmou muito do seu trabalho. Que tipo de naturalismo metodológico é este? Scott Jenkins propõe uma versão sucinta dessa objeção ao comentar a evidência empírica que Joshua Knobe e eu aduzimos em apoio à psicologia moral de Nietzsche. Jenkins escreve: 90 LEITER, B. Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15, 2007. 91 WEGNER, D. The Illusion of Conscious Will. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002. 120 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado Knobe e Leiter examinam um vasto conjunto de estudos psicológicos (incluindo estudos sobre o comportamento de gêmeos, os efeitos da educação infantil na personalidade e a relação entre o comportamento moral e os relatos de atitudes morais) e argumentam que o comportamento de uma pessoa, em contexto moral, pode ser explicado primariamente através do recurso a “fatos relativos ao tipo” de caráter hereditário, enquanto a educação moral (a perspectiva aristotélica) e a tomada de decisão consciente (a perspectiva kantiana) surpreendentemente quase não desempenham papel algum em tais explicações. Esta evidência empírica, argumentam, demonstra que a teoria nietzschiana de diferentes tipos psicológicos, com seus característicos compromissos morais e teoréticos, merece, ao final, uma séria consideração por parte dos filósofos interessados em psicologia moral. Knobe e Leiter fazem um trabalho muito bom na defesa de sua posição, e seu trabalho sugere uma interessante questão envolvendo o trabalho de Nietzsche – Como exatamente ele chega a uma teoria que é confirmada por investigações empíricas atuais, se não por meio da consideração destes dados que dariam suporte a tal teoria? Neste contexto, precisamos fazer a distinção entre aquilo que conta como confirmação de uma teoria e aquilo que pode ter levado um gênio como Nietzsche a perceber uma possível verdade sobre a psicologia moral humana. A psicologia empírica tem desenvolvido métodos para testar e confirmar hipóteses que não estavam disponíveis no século XIX – daí a indispensável especulação peculiar a filósofos de viés naturalista como Nietzsche. Mas, pela mesma razão, não é o caso de se pensar que Nietzsche não tenha evidências sobre as quais sua psicologia moral especulativa possa se apoiar. Estas evidências parecem ser de três tipos básicos: primeiro, sua própria observação, tanto introspectiva quanto do comportamento alheio; segundo, as observações pessoais relatadas por outras pessoas, recolhidas ao longo do tempo em uma ampla variedade de cadernos Nietzche 29, 2011 121 Leiter, B. textos históricos, literários e filosóficos, que por algum motivo tendiam a reiterar umas às outras (considere, por exemplo, o realismo acerca das motivações humanas, pormenorizadas por Tucídides na antiguidade e pelos aforismos de La Rochefoucauld na modernidade, ambos autores admirados por Nietzsche); e terceiro, suas leituras acerca dos desenvolvimentos científicos de sua época, muitos dos quais - ainda que de forma amadora ou simplesmente errada segundo os padrões atuais - representaram tentativas sistemáticas de aplicar os métodos científicos ao estudo dos seres humanos e que, em linhas gerais, vem sendo confirmada por subsequentes desenvolvimentos. Pelos parâmetros contemporâneos dos métodos das ciências humanas, não chegaríamos a considerar as intuições [insights] baseadas nessas evidências como bem confirmadas, mas isso certamente não quer dizer que não sejam adequadas, nas mãos de um gênio como Nietzsche, aquelas que sobrevivem ao escrutínio de nossos métodos atuais. Esta é precisamente uma das razões de Nietzsche ser um grande Naturalista-M especulativo na história da filosofia: valendo-se de dados e métodos nada sistemáticos, ele pôde, assim mesmo, chegar a hipóteses que vieram a ser fundamentadas por dados e métodos mais sistemáticos. É evidente que Nietzsche, ao contrário de nossos atuais cientistas sociais, não é apenas um humiano, mas um terapeuta, e assim entrelaça essas hipóteses formando um poderoso projeto crítico que visa a transformar a consciência acerca da moralidade. Alguns de nossos atuais naturalistas da psicologia moral92 talvez tenham objetivos parecidos, mas nada do talento retórico de Nietzsche, ou de sua temerária prontidão a abandonar a convencional sabedoria acerca da moralidade. A ciência cognitiva contemporânea deve nos le- 92Por exemplo, PRINZ, J. The Emotional Construction of Morals. Oxford: Oxford University Press, 2007 e HAIDT, J. The Emotional Dog and Its Rational Tail: A Social Intuitionist Approach to Moral Judgment. In: Psychological Review, 108, p. 814-834, 2001. 122 cadernos Nietzche 29, 2011 O naturalismo de Nietzsche reconsiderado var a uma apreciação renovada sobre as profundas intuições do Naturalismo-M Especulativo de Nietzsche, mas a ciência cognitiva não é páreo para o poder retórico do Nietzsche terapêutico, que vê não apenas como os seres humanos realmente funcionam, mas também como explorar esse fato de maneira que transtorne a complacente consciência moral de alguns de seus leitores93. Abstract: In Nietzsche on Morality (2002), the author set out a systematic reading of Nietzsche as a philosophical naturalist, one which has attracted considerable critical comment, including from some generally sympathetic to reading Nietzsche as a philosophical naturalist. In this paper, the author revisits that reading and respond to various objections. Topics covered include the role of “speculation” in Nietzsche’s naturalism; the difference between the Humean and Therapeutic Nietzsches; the role of culture in naturalistic explanations; the status of claims about causation in Nietzsche’s naturalism; whether the apparent metaphysics of the will to power is compatible with naturalism; and how Nietzsche’s speculative naturalism fares in light of subsequent work in empirical psychology. Keywords: Nietzsche – Naturalism – Moral philosophy – Moral psychology 93 As discussões com os estudantes, no meu seminário da primavera de 2008 sobre “Nietzsche, Naturalismo e Psicologia Moral” na Universidade do Texas em Austin, me foram extremamente proveitosas na elaboração deste artigo; eu sou especialmente grato a Christopher Raymond por muitas ideias importantes. Eu também fui ajudado pelas discussões na conferência sobre “Nietzsche, Naturalismo e Normatividade” na Universidade de Southampton, em julho de 2008; eu posso me lembrar particularmente de comentários e questões vindos de Ken Gemes, Christopher Janaway, Peter Kail e David Owen. Eu também gostaria de agradecer às pessoas que fizeram comentários sobre o artigo em meu blog (www.brainleiternietzsche.blogspot.com) pelos muitos pontos úteis. Finalmente, obrigado a John Richardson pelos comentários à penúltima versão. cadernos Nietzche 29, 2011 123 Leiter, B. referências bibliográficas 1. ACAMPORA, C. D. “Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology,” in K. Ansell-Pearson (ed.), A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006. 2. BITTNER, R. “Introduction,” to Nietzsche’s Writings from the Last Notebooks. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. 3. BROBJER, T. Nietzsche’s Philosophical Context: An Intellectual Biography. Urbana: University of Illinois Press, 2008. 4. BÜCHNER, L. Force and Matter, trad. de J.G. Collingwood. London: Trubner, 1870. 5. CARTWRIGHT, N. From Causation to Explanation and Back Again. In: Leiter, B. (org.). The Future for Philosophy Oxford: Oxford University Press, 2004. 6. CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 7. FORBER, P. Nietzsche Was No Darwinian. In: Philosophy & Phenomenological Research, 75, p. 369-382, 2007. 8. GEMES, K.; JANAWAY, C. Naturalism and Value in Nietzsche. In: Philosophy & Phenomenological Research, 71, p. 729-740, 2005. 9. Gregory, F. 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Nietzsche’s Theory of the Will. In: Philosopher’s Imprint, 7, p. 1-15, 2007. 19. LEITER, B.; Sinhababu, N. (orgs.). Nietzsche and Morality. Oxford: Oxford University Press, 2007. 20. PRINZ, J. The Emotional Construction of Morals. Oxford: Oxford University Press, 2007. 21. RICHARDSON, J. Nietzsche’s New Darwinism. Oxford: Oxford University Press, 2004. 22. ROSENTHAL, D. Consciousness and Its Function. In: Neuropsychologia, 46, p. 829-840, 2008. 23. SCHACHT, R. Nietzsche’s Gay Science, or, How to Naturalize Cheerfully. In: Solomon, R.C.; Higgins, K.M. (orgs.). Reading Nietzsche. New York: Oxford University Press, 1988. 24. SCHNÄDELBACH, H. Philosophy in Germany: 18311933, trans. E. Matthews. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. 25. STACK, G. Lange and Nietzsche. Berlim: de Gruyter, 1983. 26. STROUD, B. Hume. Londres: Routledge, 1977. 27. VITZTHUM, R. C. Materialism: An Affirmative History. Amherst, NY: Prometheus Books, 1995. cadernos Nietzche 29, 2011 125 Leiter, B. 28. WEGNER, D. The Illusion of Conscious Will. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002. 29. WILSON, T. Strangers to Ourselves: Discovering the Adaptive Unconscious. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002. Artigo recebido em 25/05/2011. Artigo aceito para publicação em 05/06/2011. 126 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação* P. J. E. Kail** Resumo: O objetivo deste ensaio é oferecer uma caracterização geral do naturalismo compartilhado por Hume e Nietzsche e tratar de dois temas a ele relacionados. O primeiro deles diz respeito ao ceticismo acerca da causação. Aqui há à primeira vista uma dificuldade. Um aspecto comum ao naturalismo de ambos é o fato de que ele envolve tentativas de explicar, e explicar em termos causais, todo um leque de fenômenos recorrendo a elementos mais básicos. Ambos, entretanto, parecem ser céticos quanto à própria causação, questionando suas pretensões explicativas. O autor pretende mostrar que para ambos os pensadores não há nenhuma tensão genuína quanto a este aspecto. O segundo tema abordado no artigo diz respeito tanto à natureza das explicações que ambos oferecem para diversos tipos de fenômenos quanto às implicações filosóficas destas explicações. Palavras-chave: naturalismo – explicação - causação * Tradução de Eduardo André Rodrigues de Lima. Revisão da tradução de Rogério Lopes. Este artigo foi publicado originalmente no Journal of Nietzsche Studies, New York, n.37, 2009, p. 5-22. Agradecimentos do autor: agradeço a Christa Acampora, Bamford Rebecca e ao Conselho Editorial do JNS por sua valiosa ajuda na escrita deste artigo. Parte deste material foi apresentado em versões anteriores nas universidades de Oxford, Cambridge e Southampton. Sou grato a todos os presentes, e particularmente a Ken Gemes, Brian Leiter, Simon Blackburn, Arif Ahmed, Hallvard Lillehammer, David Owen, Manuel Dries, Richard Schacht, Maudemarie Clark, Christopher Janaway, Dan Came, Aaron Ridley e Olivia Bailey. Agradeço também a E.M.P. Kail e S.M.S. Pearsall. Agradecemos ao professor Peter Kail por ter acolhido com entusiasmo nosso convite para publicar neste número especial dos Cadernos Nietzsche, por ter cedido os direitos de tradução para a língua portuguesa e por ter negociado pessoalmente a permissão para a tradução junto aos editores do Journal of Nietzsche Studies. Aos editores do JNS, agradecemos pela cessão dos direitos de publicação em língua portuguesa (Nota do colaborador). ** Professor da Universidade de Oxford, Oxford, Inglaterra. E-mail: Peter.kail@ philosophy.ox.ac.uk. cadernos Nietzche 29, 2011 127 Kail, P. J. E. Para aqueles que pensam através de estereótipos desinformados, Nietzsche e Hume são os polos opostos da filosofia; Nietzsche é o anticientífico, um “pós-moderno” e decano da filosofia “Continental”; Hume é um protopositivista lógico intransigente e herói da filosofia “analítica”. Ambos os estereótipos são tão equivocados que fica difícil saber por onde começar sua refutação. Entretanto, para aqueles que decididamente lêem Nietzsche como um filósofo naturalista, Hume é um ponto de comparação, e isso pela simples razão de que, graças a Norman Kemp Smith e Barry Stroud, o naturalismo está no cerne de sua filosofia1. A questão é, portanto, o quanto esses pensadores se parecem. Há um número muito pequeno de estudos comparativos dedicados a Nietzsche e Hume, seja sobre temas pontuais, seja em uma perspectiva panorâmica2, e me parece que há ainda muita coisa a 1 Ver, p. ex., LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, 3-11; Schacht, R. Nietzsche and Philosophical Anthropology. In: A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006. 2 Craig Beam (1996, 2001) escreveu dois artigos panorâmicos muito úteis. Hoy (1994) compara a genealogia de Hume e Nietzsche, embora não esteja de modo algum claro que Hoy tenha compreendido Hume (ver em BEAM, C. Hume and Nietzsche: Naturalists, Ethicists, Anti-Christians. In: Hume Studies 22, 1996 comentários bastante precisos sobre Hoy). Davey (1987) compara a noção de Eu em Hume e Nietzsche. Poellner (Poellner, P. Nietzsche and Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 1995, 33 e segs.) discute a causação em Hume e Nietzsche. Christopher Williams (Williams, C. A. Cultivated Reason: An Essay on Hume and Humeanism. University Park: Pennsylvania State University Press, 1999, p. 124) refere-se a Nietzsche no contexto da crítica de Hume ao ascetismo na moralidade. Swanton compara a noção humiana de simpatia com a visão de Nietzsche sobre a compaixão, na tentativa de mostrar que “Hume tem respostas para as objeções que Nietzsche formula contra o status de virtude atribuído à compaixão ou piedade” (Swanton, C. Compassion as a Virtue in Hume. In: Feminist Interpretations of David Hume, University Park: Pennsylvania State University Press, 2000, p. 157). Danford (1990) vê uma proximidade entre Nietzsche e Hume, mas considera o primeiro como um “pós-moderno”. Bernard Williams (2000, 2002) aproxima Hume e Nietzsche em suas discussões acerca do naturalismo e da genealogia. Para uma boa discussão sobre Williams, que se apoia na 128 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação ser dita; nesse sentido, este artigo é um programa para estudos posteriores. O objetivo deste ensaio é oferecer uma caracterização geral do naturalismo compartilhado por ambos e tratar de dois temas a ele relacionados. O primeiro deles diz respeito ao ceticismo acerca da causação. Aqui há à primeira vista uma dificuldade. Um aspecto comum ao naturalismo de ambos é o fato de que ele envolve tentativas de explicar, e explicar em termos causais, todo um leque de fenômenos recorrendo a elementos mais básicos. Ambos, entretanto, parecem ser céticos quanto à própria causação, questionando suas pretensões explicativas. Procuro mostrar que para ambos os pensadores não há aqui nenhuma tensão genuína. O segundo tema tratado por mim diz respeito tanto à natureza das explicações que ambos oferecem para diversos tipos de fenômenos quanto a quais poderiam ser as implicações filosóficas destas explicações. Antes de dar prosseguimento, duas advertências devem ser mencionadas. Em primeiro lugar, não me interessa no momento estabelecer linhas de influência entre Hume e Nietzsche. Segundo, por razões de espaço, terei que renunciar a alguns pormenores que são necessários a uma investigação adequada e, a fortiori, não estarei em condições de defender plenamente as teses atribuídas a cada filósofo. Em vez disso, meu objetivo principal é esclarecer o que há de comum em suas estratégias. Naturalismo, fisiologia e método. Tanto Hume como Nietzsche são “naturalistas”. Entretanto, como filósofos tão diversos quanto Spinoza, Quine, Aristóteles e John Mc Dowell são considerados “naturalistas”, este título, The Natural History of Religion de Hume, consultar Craig, E. J. Genealogies and the State of Nature. In: Contemporary Philosophy in Focus. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 181-200. cadernos Nietzche 29, 2011 129 Kail, P. J. E. embora legítimo, é relativamente trivial. Para fazer algum progresso, comecemos com aquilo que Kant disse sobre Locke. Ele afirmou que Locke propôs uma “fisiologia do entendimento” que, “ao traçar sua origem vulgar a partir da experiência comum”, equivale “a uma tentativa de lançar dúvidas sobre as pretensões da suposta rainha”. Felizmente, diz Kant, essa “genealogia” é uma “ficção”3. A referência à noção de “ficção”, nesse contexto, é mais interessante do que pode parecer, mas não vou tratar desse tema controverso aqui. Em vez disso, pondo de lado a ficção, vou sugerir que a descrição que Kant nos propõe corresponde ao núcleo do naturalismo de Hume e Nietzsche4. Eles propõem “fisiologias do entendimento” e “genealogias” de conceitos que têm origem na experiência. Essas explicações, além disso, às vezes “suscitam dúvidas” sobre as pretensões do que é explicado. O que ofereço na sequência é uma tentativa de desdobramento dessa tese. De acordo com Brian Leiter, Hume e Nietzsche estão comprometidos com um naturalismo metodológico de cunho especulativo, que propõem descrições da natureza humana “a fim de explicar vários fenômenos humanos”5. Essas teorias gerais recorrem a elementos e a princípios empiricamente determináveis que constituem suas respectivas “fisiologias”. Obviamente, seus pontos de partida são diferentes. Hume recorre a noções como “impressões”, “associação”, “simpatia”, “sentimento”, “imaginação” e outras semelhantes, enquanto Nietzsche se vale de noções como “impulso”, “ressentimento”, “vontade de potência” e de “afetos”. Apesar de 3 Kant, Critique of Pure Reason, prefácio, IX-X. 4 O tema controverso que tenho em mente diz respeito à tese de Bernard Williams segundo a qual a genealogia deve ser entendida como uma demanda por algo que é essencialmente uma explicação ficcional. Um bom exame, assim como uma crítica bastante pertinente da leitura de Williams encontra-se em Craig, E. J. Genealogies and the State of Nature. In: Contemporary Philosophy in Focus. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 181-200. 5 LEITER, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002, p. 4-5. 130 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação diferentes em substância, esses elementos básicos são concebidos tanto por Hume quanto por Nietzsche em continuidade com o restante do mundo natural. No caso de Hume, o vocabulário do Tratado da Natureza Humana deixa entrever a psicofisiologia da época, que recebe um realce mecanicista e é utilizada nas explicações sobre o comportamento animal.6 Assim, a Cyclopaedia, ou Dicionário Universal de Artes e Ciências, monumental obra de referência de Ephraim Chambers, datada de 1728, contém verbetes dedicados a termos como imaginação e associação, termos que nos são familiares em função de nossa leitura de Hume. A associação, noção sobre a qual é construída a teoria do Tratado, era considerada um dispositivo mecânico e literalmente estúpido que, de acordo com pensadores como Hobbes, Descartes, Malebranche, Leibniz e muitos outros, regulava os mecanismos de inferência dos animais irracionais. Do mesmo modo, boa parte do vocabulário de Nietzsche é extraída da fisiologia e biologia (materialistas) de sua época, ciências que Nietzsche estudou cuidadosamente.7 Isso é particularmente significativo no que diz respeito à noção de “vontade de potência” que, como mostrou Gregory Moore, estava em sintonia com certas tendências da biologia alemã, na qual era comum a ocorrência de termos como “apropriação”, “impulso” e “dominação”. Portanto, embora os elementos aos quais eles recorram 6 Sobre o pano de fundo neurofisiológico e mecanicista do vocabulário de Hume, ver Buckle, S. Hume’s Enlightenment Tract. Oxford: Oxford University Press, 2001, Hume’s Sceptical Materialism. In: Philosophy 82, 2007, p. 553-78, Wright, J. P. The Skeptical Realism of David Hume. Manchester: Manchester University Press, 1983. Para uma discussão sobre o vocabulário de Hume e as teorias da cognição animal, ver o meu Leibniz’s Dog and Humean Reason. In: New Essays on David Hume, Rome: FrancoAngeli, 2007a., § 2.4.2, e Projection and Realism in Hume’s Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2007b. 7 Sobre a fisiologia, ver Moore, G. Nietzsche, Biology, Metaphor. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Nietzsche and Evolutionary Theory. In: A Companion to Nietzsche , Oxford: Blackwell, 2006, p. 517–31 . As influências da biologia incluem ainda a História do materialismo de Friedrich Lange. Para uma discussão e referências adicionais, ver Leiter, B. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002., 63ff. cadernos Nietzche 29, 2011 131 Kail, P. J. E. sejam diferentes, seu caráter naturalista não o é. Esses elementos básicos são pontos de partida fisiológicos na medida em que não são concebidos como elementos radicalmente distintos em gênero daqueles elementos básicos que se supõe atuarem no mundo natural e, mais particularmente, no mundo animal. A teoria de Hume da natureza humana e a tentativa de Nietzsche de “traduzir a humanidade de volta na natureza” (JGB/ BM 230, KSA 5.167,) compartilham do pressuposto de que a natureza humana não difere em gênero do resto da natureza. Eles rejeitam a hipótese de que “Você [humanidade] é mais! Mais elevada! E tem uma origem distinta!” (JGB/BM 230, KSA 5.167). Nietzsche identifica como um dos “quatro erros” GC 115 a colocação dos homens “em uma falsa hierarquia em relação aos animais e ao restante da natureza” (FW/GC 115, KSA 3.474,) (cf. A 31; HH 11), e, de forma célebre, ele descreve a psicologia da vontade de potência na GM como a afirmação de que “cada animal... instintivamente, esforça-se para um optimum de condições favoráveis nas quais ele pode expandir seu poder completamente” (GM/GM III 7, KSA 5.350). Não obstante, tal posicionamento não deve ser confundido com a idéia de que não há distinção real entre os seres humanos e os outros animais. Para Nietzsche, os seres humanos, ao mesmo tempo em que são animais “doentes” (GM/GM III 7, KSA 5.350), se tornaram também animais interessantes (GM/GM I 6, KSA 5.264) permanecendo cheios de potencial. Para Hume, existem grandes diferenças entre seres humanos e animais, diferenças que são reforçadas através da formação da cultura e da convenção. Entretanto, aquilo que para os outros era uma razão para estabelecer uma diferença de gênero – a alma cartesiana na bête machine ou um eu numenal contracausal – é explicado apelando-se a um elemento animal mais maleável. Esses aspectos das filosofias de Hume e Nietzsche representam seu naturalismo substantivo, uma tese ontológica segundo a qual os seres humanos são parte da natureza. O naturalismo de ambos também é metodológico, pois Hume e Nietzsche compartilham 132 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação da rejeição de que existem rotas a priori para o conhecimento. A alegação de Hume de que ele seria o “Newton da mente” deve ser entendida à luz da significação da famosa frase newtoniana “hypotheses non fingo”. Tal sentença, quando aplicada à física, significa uma recusa em manter os resultados experimentais presos a uma concepção apriorística da matéria. Ao contrário disso, qualquer teoria deve ser determinada unicamente através dos resultados obtidos por experimentação e observação.8 Essa visão de Newton é uma resposta direta à física cartesiana, cujas teorias são limitadas pela afirmação de que temos conhecimento a priori da matéria como pura extensão. Nós não “honraremos menos o nosso país natal”, afirma Hume, se aplicarmos os métodos da filosofia natural à ciência do homem, comparando nossa ignorância sobre a essência da mente com o nosso desconhecimento da essência do corpo.9 Para ele, “parece evidente que, se a essência da mente é igualmente desconhecida para nós como a dos corpos externos, então deve ser igualmente impossível formar qualquer noção das suas forças e qualidades, exceto a partir de experimentos cuidadosos e exatos” (TNH, xvii ). Assim, o método de Hume é naturalista no sentido de que ele é contínuo com a observação e a abordagem experimental que havia triunfado na física mecânica, e é contínuo também no sentido de que ele rejeita qualquer concepção a priori da mente que constranja seus resultados. Tal ponto de vista é sem dúvida favorável ao empirismo. Nietzsche, como Hume, é cético em relação a um supostoconhecimento a priori e enaltece o empirismo a partir de Para além de bem e mal. Desse modo, ele escreve que toda “credibilidade, boa consciência e evidência de verdade se originam primeiramente dos sentidos” (JGB/BM 134, KSA 5. 96. 8 Sobre esta discussão, ver o meu Newton. In: The Blackwell Companion to Early Modern Philosophy, Oxford: Blackwell, 2002. 9 Hume, D. A Treatise Concerning Human Nature, Oxford: Oxford University Press, 1978, p. xvii. Todas as outras referências a A Treatise Concerning Human Nature são feitas entre parênteses no texto pela sigla TNH. cadernos Nietzche 29, 2011 133 Kail, P. J. E. Cf. tb. JGB/BM 15, KSA 5.29 e CD/CI, Razão na Filosofia 3, KSA 6.75-6). Isso não significa que Nietzsche tenha sido acrítico acerca dos resultados da ciência (veja abaixo); isso tampouco o impediu de questionar o valor da verdade, ou de sustentar que a ciência por si mesma não pode criar valores, algo que seria a obrigação dos filósofos (ver, p. ex., a GM/GM III; JGB/BM 211, KSA 5.144-5). Mas essas características da filosofia de Nietzsche dependem da sua crença de que ele está compreendendo a natureza humana mais ou menos corretamente – ou seja, de que ele está correto sobre quais tipos de criaturas são os seres humanos – e de que o estudo empírico é a fonte de tais conhecimentos.10 Ceticismo sobre a causação? O naturalismo praticado por Nietzsche e Hume não é um naturalismo de tipo semanticamente redutivo (no sentido de reduzir os conceitos a postulados relativos à experiência), mas tem, ao invés disto, uma pretensão explicativa11. Há uma série de diferentes aspectos nessas aspirações compartilhadas que requerem exame. A alegação de Kant de que uma “genealogia” pode ser uma “tentativa de pôr em dúvida” é um desses aspectos; um segundo aspecto é a significativa sobreposição daquilo que é visto tanto por Nietzsche quanto por Hume como carecendo de explicação, uma sobreposi- 10 Isso tampouco descarta o fato de que a filosofia de Nietzsche tenha uma intenção terapêutica. Ver: Nietzsche’s Naturalism Reconsidered. In: The Oxford Handbook of Nietzsche,Oxford University Press, (no prelo). 11 É um fato óbvio e notório que Hume oferece “definições” de “causa”, mas é um erro vê-las como reduções semânticas (mesmo porque elas não são nem intensional, nem extensionalmente equivalentes). Para uma discussão sobre a natureza e o papel de um juízo causal, consulte Garrett, D. Cognition and Commitment in Hume’s Philosophy, New York: Oxford University Press, 1997, cap. 5. 134 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação ção que inclui os conceitos de causalidade, substância, eu, crença religiosa, valorização ascética e avaliações morais em geral. As explicações também são explicações causais. Entretanto, ambos os pensadores não são céticos em relação à causação? Se este é o caso, como eles podem oferecer explicações causais? É inegável que Hume e Nietzsche são “céticos” em relação a causa e efeito. Entretanto, é preciso distinguir entre um ceticismo que afirma que não há nada semelhante a uma relação causal e um ceticismo concernente a teorias metafísicas específicas acerca destas relações e de sua epistemologia. Nietzsche e Hume pertencem à segunda espécie de céticos , mas não à primeira. Um primeiro argumento que apoia tal afirmação é o fato de que ambos se valem das explicações causais e da linguagem causal. Deste modo, Hume procura entender “quais as causas que nos induzem a acreditar na existência do corpo” (TNH, 187) e as “causas” da crença religiosa12. Nietzsche critica a “moral e a religião” cristã por não manterem “qualquer contato com a realidade”, pois elas, entre outras coisas, põem em circulação “causas imaginárias”, sem “qualquer conceito de causa natural” (M/A 15, KSA 3.28). Nietzsche então passa a fornecer uma explicação causal dessa má interpretação da realidade (M/A 15, KSA 3.28-9). Essas declarações podem ser tomadas ao pé da letra, porque quando nos voltamos para as evidências textuais em favor do ceticismo causal, elas apoiam o segundo e não o primeiro tipo de ceticismo sobre a causação. Comecemos com Hume ou, mais precisamente, com uma das influências de Hume, ou seja, Newton. Newton, de forma óbvia, se preocupa com o mundo natural e com explicações naturalistas. Mas sua própria posição surge em parte como resultado de uma crítica empirista da metafísica mecanicista então dominante e, em particular, a metafísica da causalidade. A metafísica mecanicista 12 Veja The Natural History of Religion. In: Dialogues and Natural History of Religion, Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 134. cadernos Nietzche 29, 2011 135 Kail, P. J. E. da causalidade pretendia oferecer um modelo geométrico perfeitamente claro para as operações de causalidade, de tal forma que se podia ver por que tal e tal efeito deve acontecer. O modelo de causação supostamente se ajustaria à concepção de matéria como pura extensão determinada a priorique foi mencionada acima. Entretanto, Newton abandonou esse modelo, uma vez que ele não se adequava aos resultados experimentais e a fenômenos evidentes tais como ação à distância e a coesão. Além disso, esse modelo era incapaz de oferecer qualquer concepção genuína de atividade, já que nele a matéria é definida como algo passivo. Nada disso fez Newton duvidar da existência de relações causais, mas o levou a desenvolver uma filosofia experimental que funciona sem qualquer compromisso com um modelo claro de metafísica. Assim, no escólio geral dos Principia, Newton escreve: “Mas até agora eu não fui capaz de descobrir a causa das propriedades da gravidade a partir dos fenômenos, e eu não fabrico hipóteses. O que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado de hipótese, e hipóteses, quer sejam metafísicas ou físicas, quer de ocultismo ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental”13. Hume escreveu em sua History of England que “Newton pareceu tirar o véu de alguns dos mistérios da natureza, ele mostrou ao mesmo tempo as imperfeições da filosofia mecânica”14. A crítica de Hume àrelação causal é newtoniana na medida em que tem como alvo a idéia de que as relações causais podem ser claramente compreensíveis para nós, mas esta crítica alarga a modéstia de Newton. Como se sabe, Newton propõe especulações sobre a natureza da gravidade e sobre a existência do éter, apesar de considerá-las empiricamente inadequadas (não tendo “lugar na filosofia experimental”). Hume ataca a própria possibilidade de apreensão de qualquer relação de causa 13 Em Thayer, H. S., Newton’s Philosophy of Nature. New York: Hafner, 1953, p. 46. 14 Hume, D. The History of England from the Invasion of Julius Caesar to the Revolution in 1688, Indianapolis: Liberty Classics, 1983, 6: 542. 136 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação e efeito para além da mera regularidade, com base no argumento de que uma tal apreensão implicaria necessariamente que podemos ver porque justamente tal e tal efeito precisa se seguir a tal e tal causa, o que tornaria impossível para nós conceber qualquer outro efeito se seguindo a uma causa determinada. Mas dado que os nossos conceitos são limitados pelas impressões da experiência sensível, é impossível para nós apreender essa relação. Os poderes e as forças na especulação newtoniana são “totalmente vedados para a curiosidade e a investigação humanas”.15 Uma vez que o conceito que temos de forças que excedem as regularidades não pode ser detectado na experiência, nós somos privados de qualquer concepção de forças subjacentes às ocorrências causais. Não obstante, isso não significa que Hume rejeita a relação de causa e efeito: em vez disso, ele sustenta que a relação entre o que são genuínamente as causas e seus efeitos não é algo do qual podemos ter uma compreensão clara16. Tendo em mente essa distinção entre a relação de causa e efeito e a possibilidade de uma compreensão clara acerca do que está envolvido nessa relação, voltemo-nos agora para Nietzsche. Ele escreve que “não temos ‘sentidos para as causa efficiens’: aqui Hume estava certo” (VP 530). A natureza da relação causal não é dada na experiência. Agora, é bem verdade que nas obras anteriores Nietzsche parece rejeitar a idéia de que existem relações causais. Assim, em Para além de bem e mal 21 ele argumenta que “não devemos objetificar erroneamente ‘causa’ e ‘efeito’: ... Devemos usar 15 Hume, D. Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of Morals, Oxford: Oxford University Press, 1975, p. 30. 16 Muitos lêem Hume, ao contrário, como um metafísico reducionista quanto à relação causal: relações causais são apenas exemplos de regularidades. Note-se que essa posição não é uma rejeição da relação de causa e efeito, mas, sim, uma visão metafisicamente austera sobre no que consiste essa relação. Hume, nessa leitura, não é cético em relação à causação, mas em relação a certas visões filosóficas da causação. cadernos Nietzche 29, 2011 137 Kail, P. J. E. ‘causa’ e ‘efeito’ apenas como puros conceitos. No ‘em si’ não há nada como ‘associação causal”’. De acordo com Maudemarie Clark essas observações revelam uma adesão ao neo-kantismo que Nietzsche, posteriormente, veio a rejeitar.17 O ceticismo prévio sobre a causação é, nesta leitura, um caso particular da tese mais geral conhecida como “tese da falsificação”. Grosso modo, uma vez que (a) o “mundo real” deve ser identificado com o mundo numenal e que (b) como Schopenhauer e outros, Nietzsche considerava ilegítima a aplicação de conceitos empíricos à coisa-em-si, incluindo o de “causa” e “efeito”, qualquer afirmação que façamos deve falsificar o “mundo verdadeiro”, devendo ser ela mesma falsa. No entanto, de acordo com Clark, Nietzsche posteriormente abandonou a distinção, de efeitos deletérios,entre o mundo numenal e o fenomênico (cf. CD/CI, Como o “verdadeiro mundo” tornou-se uma fábula), e, assim, “a tese de falsificação” também é deixada de lado. As obras posteriores de Nietzsche devem ser lidas de forma que o mundo real é identificado com o mundo empírico, e a aplicação de conceitos causais não gera erros. Esta tese de Clark não é inconteste, embora não seja possível fornecer aqui uma discussão detalhada dessa questão, é preciso dizer que o tratamento que Nietzsche oferece da causação nas obras posteriores tem sido usado algumas vezes contra esse tipo de leitura18. Pois algumas das declarações mais tardias apresentam, de fato, um teor cético. Parece-me, contudo, que quando Nietzsche soa como um cético nas obras tardias, deveríamos entendê-lo como cético em relação à nossa compreensão da 17 Veja Clark, M. Nietzsche on Truth and Philosophy, Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 103-5; LEITER, B. Nietzsche on Morality, London: Routledge, 2002, p. 22-23. Em uma palestra proferida recentemente em Southampton, Clark se afastou desta leitura. 18 Ver, p. ex., ACAMPORA, C. D. Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology. In: A Companion to Nietzsche , Oxford: Blackwell, 2006, p. 314 - 33 ; Hussain, N. Nietzsche’s Positivism. In: European Journal for Philosophy 12, 2004, p. 326-68 ; POELLNER, P. Nietzsche and Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 22-24. 138 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação causação e em relação às tentativas de articulação da metafísica da causação, ao invés de considerá-lo cético em relação à existência da própria causação. Em Crepúsculo dos ídolos, “Os Quatro Grandes Erros” (intitulado o “erro de uma falsa causalidade”) Nietzsche escreve: “As pessoas sempre acreditaram que sabiam o que era uma causa... mas como chegamos a crença de que temos tal conhecimento?”. Nietzsche ensaia uma resposta, ou seja, que nós “projetamos a partir de nós mesmos... três ‘fatos interiores’ no mundo” (GD/CI, Os quatro grandes erros 3, KSA 6. 90): a vontade, a mente e o Eu. Nós pensamos erroneamente que existe um eu substancial que está por trás da eficácia causal da vontade, que é o que constitui a causação mental. Nosso querer supostamente nos fornece uma maneira de capturar a “causalidade no ato”, juntamente com a idéia de que o Eu e a causação mental estão demonstrados “como algo dado, como algo empírico” (GD/CI, Os quatro grandes erros 3, KSA 6.90). Mas recapitulando um ponto abordado em Para além de bem e mal 19, a eficácia da vontade não é “empiricamente dada”. O erro desta idéia leva a um outro: a projeção do eu e da vontade no mundo na medida em que sustentamos que a eficácia causal natural é perfeitamente inteligível e envolve operações causais (como “empurrar” e “puxar”) entre substâncias discretas. E a noção de substância é emprestada da equivocada concepção de si mesmo como substância simples. Nietzsche repreende o “Sr. Mecanicista e sr. Físico” por promoverem uma metafísica mecânica atomista, modelada inconscientemente sobre a visão equivocada de um eu transparente dotado de uma vontade causalmente eficaz. Isso ecoa a denúncia de Para além de bem e mal 21 da “estupidez mecanicista dominante de que obteríamos uma causa empurrando e forçando algo até que isto ‘afete’ alguma coisa”. A diferença aqui é que Nietzsche não está sugerindo que não há algo como a causação, mas em vez disso, ele tenta explicar a crença de que nós compreendemos a relação cadernos Nietzche 29, 2011 139 Kail, P. J. E. causal. A afirmação de que “A é causa de B” pode ser verdadeira, embora a afirmação de que podemos compreender inteiramente o processo causal a partir de um modelo mecânico seja falsa. Essa linha de interpretação permite explicar também por que Nietzsche parece disposto a recorrer à causação e a uma distinção entre causação real e imaginária, por um lado e, por outro, fazer algumas observações mordazes sobre a explicação causal. Parte da justificativa para a descrição mecanicista é que as suas supostas explicações não se limitam a identificar os fatos causalmente relevantes para alguns efeitos, mas prometem igualmente uma forma clara de compreensão de por que justamente tal e tal causa produz tal e tal efeito. Newton rejeitou tais modelos como absolutamente insuficientes para a uma explicação genuína, sem renunciar à idéia de que existem relações causais. Parece-me que isso ecoa inconscientemente em Nietzsche: “Causa e Efeito . – Nós chamamos isso de ‘explicação’, mas ‘descrição’ é o que nos distingue dos estágios mais antigos do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos melhor – nós explicamos tão pouco quanto todos os nossos antecessores... A série de ‘causas’ se apresenta mais completamente diante de nós em cada caso; nós raciocinamos que ‘isto e aquilo deve vir antes para que algo se siga’, mas com isso não compreendemos nada de nada. Por exemplo, o aspecto especificamente qualitativo de todos os processos químicos ainda parece ser um ‘milagre’, do mesmo modo que todo deslocamento; ninguém ‘explicou’ o empurrão” (FW/GC 112, KSA 3.472). Agora, é bem verdade que nessa passagem Nietzsche continua a exibir um ceticismo em relação a causa e efeito em geral, mas isto não é uma surpresa, já que a A Gaia Ciência é um texto de transição que mostra preocupação quanto à legitimidade da aplicação de conceitos à coisa-em-si (cf. FW/GC 374, KSA 3.626)19. Mas a passagem expressa claramente 19 Ao afirmar que se trata de uma obra “de transição”, quero dizer que Nietzsche na GC está começando a rejeitar a idéia da coisa-em-si, mas ainda não tomou 140 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação um ceticismo sobre a possibilidade de alcançar uma compreensão clara da relação de causa e efeito (e, portanto, uma “explicação”) da maneira como venho discutindo. Uma vez que a distinção entre o mundo numênico e fenomênico tenha sido abolida, pode-se manter o ceticismo sobre a nossa compreensão de tal relação, sem que seja ilegítimo pensar o mundo em termos causais. Deste modo, tanto Hume quanto Nietzsche podem oferecer o que nós hoje reconhecemos como explicações causais na medida em que eles identificam traços causalmente relevantes na tentativa de mostrar como certos fenômenos emergem. No entanto, uma dificuldade pode surgir quando não podemos responder à questão de por que exatamente este ou aquele fenômeno precisam ocorrer. A ciência, que Nietzsche identifica com “os conceitos sadios de causa e efeito” (M/A 49 KSA 3.53), é sadia na medida em que pode oferecer identificações empíricas de eventos que estão relacionados por dependência causal, sem ser necessariamente capaz de oferecer um modelo de porque exatamamente eles têm essa dependência. Uma última observação: o ceticismo de Newton sobre o alcance do mecanicismo não o impediu de especular sobre a metafísica subjacente às forças em jogo no que diz respeito à gravidade e a coesão. Com isso em mente, poderíamos interpretar as indicações ocasionais de Nietzsche concernentes a uma metafísica da vontade de potência em seus trabalhos publicados (p. ex., em GM/GM II 12, KSA 5.313-6) numa chave similar, ainda que tais indicações sejam muito menos sustentadas por evidências e mais especulativas. Gostaria de ressaltar que não desejome estender muito sobre esse ponto. Pois embora a vontade de potência seja relevante para a psicologia de Nietzsche, sua extensão e sua importância além deste domínio psicológico é muito limitada nos trabalhos publicados. consciência de suas implicações para a tese da falsificação. Para esta discussão, ver CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, 95 e segs. cadernos Nietzche 29, 2011 141 Kail, P. J. E. Além disso, Nietzsche não faz nenhuma menção à vontade de potência ao passar em revista a sua obra no Ecce homo, fato para o qual Leiter tem chamado a nossa atenção. Contudo, especular sobre a metafísica da causação na suposição deque o paradigma dominante é inadequado do ponto de vista explicativo não configura uma atitude antinaturalista. Como Gregory Moore demonstrou, a doutrina da vontade de potência foi profundamente influenciada pelo modo como Nietzsche interpretou tendências de pensamento da biologia do século XIX,20 e seus trabalhos não publicados conectam a noção de eficácia per si com a da vontade de potência (por exemplo, VP 689).21 Seja como for, que a noção de vontade de potência nos proporciona uma genuína metafísica da eficácia não é algo que tenha influência sobre as explicações naturalistas que Nietzsche realmente oferece. Explicações naturalistas e suas consequências Como já foi mencionado acima, Leiter considera que tanto Hume quanto Nietzsche propõem uma teoria geral da natureza humana com o intuito de “fornecer uma base para explicar tudo o que diz respeito aos sereshumanos”22. Mas é claro que eles não apenas tentam fornecer uma base para as explicações. Eles também oferecem explicações de alguns fenômenos. E mais ainda, há uma significativa sobreposição daquilo que eles pretendem 20 Veja MOORE, G. Nietzsche, Biology, Metaphor. Cambridge: Cambridge University Press, 2002; Nietzsche and Evolutionary Theory. In: A Companion to Nietzsche , Oxford: Blackwell, 2006, p. 517-31. 21 Veja POELLNER, P. Nietzsche and Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 45-46. 22 LEITER, B. Nietzsche on Morality, London: Routledge, 2002, p. 5. 142 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação explicar. O que é que Nietzsche e Hume procuram explicar em termos naturalistas? E quais são as conseqüências e a implicação de suas estratégias? Começo com uma breve lista das áreas comuns de explicação. Ambos tentam explicar o surgimento de alguns conceitos centrais, dentre eles o de um eu substancial e o de eficácia causal, bem como explicar a crença religiosa e os conceitos morais, o que inclui uma certa versão ascética da moralidade. Quando eles diferem nos tipos de explicações que eles oferecem, essa divergência se deve, em parte, às diferenças em suas considerações básicas sobre a natureza humana, diferenças que já foram expostas sucintamente neste artigo. Eles também diferem em detalhe e foco. Por exemplo, Hume oferece explicações mais detalhadas sobre as idéias de Eu e de causação que Nietzsche, ao passo que Nietzsche, ao contrário de Hume, oferece uma rica análise da consciência e da culpa. É evidente que, para eles, a dimensão explicativa de suas filosofias é importante. No que se segue, terei que ser um tanto esquemático acerca dos pormenores de algumas dessas explicações (omitindo outros), mas espero poder fornecer detalhes suficientes para chamar a atenção para a nossa segunda questão. Recordemos a idéia de Kant de que uma “fisiologia do entendimento” pode ser vista como uma “tentativa de pôr em dúvida.” Como assim? Muita coisa depende das explicações particulares oferecidas, mas comecemos com algumas distinções esquemáticas que ajudarão a conduzir a discussão subsequente. Primeiramente, é importante notar que nem toda forma de explicação naturalista precisa necessariamente lançar alguma dúvida sobre os explananda em questão. Considerações naturalistas da arquitetura cognitiva ou de processos (por exemplo, o conexionismo ou a concepção de Marr sobre a visão) não lançam nenhuma dúvida sobre os fenômenos da inferência e da visão. Em segundo lugar, as bem sucedidas pesquisas naturalistas podem lançar dúvidas não sobre os explananda eles mesmos, mas sobre as interpretações ou atitudes concernentes a tais fenômenos e que os veem como fundamentalmente diferentes da “mera” natureza. cadernos Nietzche 29, 2011 143 Kail, P. J. E. Considere a explicação de Nietzsche sobre a consciência ou a explicação de Hume sobre nossos processos de raciocínio. Ambas as explicações são articuladas contra as interpretações não naturalistas concorrentes desses fenômenos. Consciência para Nietzsche “não é a voz de Deus no homem” (EH/EH, Genealogia da moral, KSA 6.352), e a razão, para Hume, não é uma inveterada faculdade cartesiana de percepção racional.23 Ao contrário, estes fenômenos são explicados em termos naturalisticamente aceitáveis e sem envolver nenhuma transação com termos metafisicamente duvidosos. Portanto, é a interpretação não naturalista daqueles fenômenos que é posta em dúvida, e não os próprios fenômenos. Dessa forma, “explicar” em termos naturalistas não é o mesmo que “eliminar mediante a explicação”. Aqui não vou me preocupar muito com essa estratégia, mas vou me concentrar, em vez disso, nas explicações de Nietzsche que estão relacionadas com o “pôr em dúvida”. Um aspecto dessa estratégia é que as afirmações alternativas sobre a extensão e a natureza do nosso conhecimento podem ser postas em dúvida justamente porque não há nenhuma descrição disponível, e que seja verdadeiramente informativa, de como poderíamos compreender este suposto domínio. Assim, Nietzsche desaprova a preocupação de Kant em provar o nosso “direito” de usar certos conceitos como sendo uma preocupação inócua do ponto de vista explicativo: o conhecimento síntetico a priori é possível “por uma faculdade... embora infelizmente não em tão poucas palavras, mas de forma tão laboriosa, tão venerável, e com... um esbanjamento de profundidade e afetação alemãs” (JGB/ BM 11, KSA 5.24). Em segundo lugar, pode-se argumentar (como Nietzsche e Hume fazem) que certas crenças fundamentais são falsas. Aqui uma explicação da posse de tais crenças desempenha um 23 Veja HATFIELD, G. The Natural and the Normative: Theories of Spatial Perception from Kant to Helmholtz, Cambridge: MIT Press, 1990., cap. 1; OWEN, D. Hume’s Reason. New York: Oxford University Press, 1999. 144 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação papel, pois para defender essa posição plenamente é preciso ser capaz de mostrar exatamente porque nós temos tais crenças. Em terceiro lugar, há uma linha de pensamento, familiar nas discussões sobre o realismo moral de Gilbert Harman, segundo a qual se podemos explicar plenamente o fato de termos certo tipo de crenças sem precisar fazer referência aos objetos que concernem a tais crenças, tal explicação torna esses objetos desnecessários.24 Em quarto lugar, uma explicação pode pôr em dúvida uma crença ao colocar em dúvida a confiabilidade das origens dessa crença. Com essas distinções em mente, retomemos o texto. Para Kant, os conceitos centrais de força, de Eu e de substância são condições de possibilidade da experiência: para Hume e Nietzsche, o esforço consiste em mostrar como tais conceitos poderiam surgir, considerando-se dados mais básicos, caracterizados em termos naturalistas. Às vezes, isso é motivado por uma alegação de que a crença a ser explicada é falsa. Como já foi mencionado, somente argumentar que tal e tal crença é falsa pode não convencer, a menos que se possa explicar por que exatamente nós temos tal crença. Essa exigência está presente no exame que Hume oferece das noções de Eu, substância, e certas concepções da causação, assim como no exame que Nietzsche oferece de tópicos semelhantes em diversas ocasiões (por exemplo, Para além de bem e mal “Sobre os preconceitos dos Filósofos”, FW/GC 110, 112, 121; assim como em outras partes). Como se sabe, ambos rejeitam a noção de um Eu substancial como sede da atividade mental. Nietzsche chama essa posição de “atomismo da alma” e propõe, em vez disso, que consideremos o ego como “uma sociedade construída a partir de impulsos e afetos” (JGB/BM 12, KSA 5. 26). Hume afirma que nós não podemos encontrar uma comparação “mais adequada” para a alma do que “uma república ou comunidade na qual os diversos membros [percepções] 24 Ver, p. ex., Harman, G. The Nature of Morality: An Introduction to Ethics, New York: Oxford University Press, 1977. cadernos Nietzche 29, 2011 145 Kail, P. J. E. são unidos por laços de governo e de subordinação, dando origem a pessoas que propagam a mesma república pela transformação incessante das suas partes” (TNH, 261). A conclusão negativa de Hume é, em parte, impulsionada pela alegação de que nenhum eu substancial é dado introspectivamente. Existem elementos que apontam nessa direção também em Nietzsche. Ele escreve: “‘O sujeito’ não é dado, é algo acrescentado, inventado e projetado por trás do que existe” (VP 481; cf 477). Apesar de compartilharem essa conclusão negativa, suas respectivas explicações sobre a falsa crença em um eu substancial diferem. Hume oferece uma explicação que recorre à relação associativa de semelhança, que segundo ele engana a mente e a faz pensar que as percepções semelhantes estão ligadas por alguma coisa simples (TNH, 254). Nietzsche pensa que essa crença é fomentada pelo “hábito gramatical” concernente ao uso do pronome de primeira pessoa, que se apóia na (falsa) distinção entre o agente e o ato (VP 484; GM/GM I 13, KSA 5. 316-8). Eles concordam que existe uma falsa visão do eu como uma unidade substancial, uma visão que demanda explicação. Essas considerações são parte integrante de um ceticismo comum acerca das substâncias enquanto tal. Para Nietzsche nossas crenças em substâncias, no eu e na inteligibilidade da causação estão ligadas. Recordemos que em CI “Os Quatro Grandes Erros”, Nietzsche argumenta que nós “projetamos... três ‘fatos internos’ para fora de nós mesmos e no mundo” (GD/CI, Os quatro grandes erros 3, KSA 6.90), e esta projeção consiste na transformação da falsa crença em um eu substancial na crença na substância enquanto tal. Para Hume, a crença geral na substância emerge das operações da imaginação sobre as percepções semelhantes, conforme mencionamos acima de forma sucinta. Como também já assinalado, para Nietzsche a idéia de que temos um claro entendimento da causalidade natural deve-se a uma projeção antropomórfica da (supostamente conhecida) eficácia causal da vontade. Hume, assim como 146 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação Nietzsche, não toma a eficácia da vontade como um dado empírico.25 No entanto, novamente como Nietzsche, Hume sustenta que nós nos comprometemos com uma projeção dessa falsa suposição para podermos dispor de antemão de uma concepção de causação natural. Ele sustenta – novamente, como Nietzsche (cf. MA/HH I 111, KSA 2.112-6) – que a crença religiosa surge porque nossa incapacidade de compreender o nexo de causalidade natural desencadeia uma disposição para antropomorfizar a natureza que oferece um modelo duplamente falso de uma natureza governada pela vontade ativa de uma força inteligente e invisível.26 Essa mesma disposição projetiva, de acordo com Hume, está por trás da ficção da forma substancial e da substância estimada na filosofia aristotélica. Para Hume, essa “ficção” é uma reação psicológica à nossa incapacidade de compreender a eficácia genuína, o que gera noções antropomórficas como “simpatias, antipatias e medo do vazio” (THN, 224)27. 25 Locke está para Hume assim como Schopenhauer está para Nietzsche, pois é Locke que afirma que é através da atividade da vontade que obtemos nossa compreensão da causação. Hume objeta que nenhuma noção genuína de eficácia é revelada: em vez disso, há um evento que identificamos como uma “vontade” que é simplesmente seguido de movimento (ver, p. ex., o apêndice do Tratado de Hume). 26 Ver HUME, D. The Natural History of Religion . In: Dialogues and Natural History of Religion. Oxford: Oxford University Press, 1993, 134-96. Para esta discussão, ver o meu Projection and Realism in Hume’s Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2007b, cap. 1, e meu Understanding Hume’s Natural History of Religion. In: Philosophical Quarterly 57, 2007c, p. 190–211. 27 Há uma questão prévia que Hume, ao contrário de Nietzsche, tenta respon- der. Dado que não temos “nenhum sentido para a causa eficiente,” qual é a origem de nossa concepção de eficácia em geral? Hume, é claro, oferece uma resposta associativa. Repetidas experiências de conjunções constantes produzem uma “determinação da mente”, que depois é projetada para o mundo. Nietzsche é cético em relação a essas explicações. Não “é o hábito de ver uma ocorrência se seguir a outra” que determina a nossa noção de poder, “mas a nossa incapacidade de interpretar tais eventos de outro modo que não como eventos causados por intenções” (WP 550). Mas isso ainda deixa sem resposta a questão relativa à noção anterior de eficácia ,e não é claro que Nietzsche tenha alguma resposta a oferecer. Para um exame mais sólido desta questão, ver POELLNER, P. Nietzsche and Metaphysics. Oxford: Oxford cadernos Nietzche 29, 2011 147 Kail, P. J. E. Temos então um padrão comum de explicação: identificar uma falsa crença, e recorrer a um expediente psicológico para explicá-la. Novamente, para ambos, existe uma falsa crença em jogo – uma certa concepção de poder modelada por vontades humanas – para a qual eles oferecem uma explicação. Obviamente, as explicações que eles oferecem são consistentes com a falsidade dessas crenças, mas as crenças são consideradas falsas por razões independentes. Uma segunda estratégia consiste em uma linha de pensamento inspirada em Harman, que procurapôr em dúvida as crenças, mostrando simplesmente que seus supostos objetos são redundantes em termos explicativos. Essa estratégia é comum a Hume e Nietzsche, mas sua implementação é complicada. Por exemplo, no caso de Hume, tanto a crença em conexões causais quanto a crença mais geral no mundo exterior recebem explicações que são compatíveis com sua falsidade. Isso coloca a questão se estamos autorizados a manter essas crenças. A respeito da explicação que Hume oferece de nossa crença em um mundo externo, Barry Stroud afirma o seguinte: “Ainda que não sejamos obrigados a considerá-la explicitamente como falsa, nós a veremos como algo em que nós acreditaríamos, exatamente como fazemos, quer exista realmente um mundo como este ou não. Nós veríamos que seríamos inevitavelmente levados a acreditar nele, independentemente da apaarência que o mundo à nossa volta venha a ter, se algum de fato existe... Mas eu posso ver minhas próprias crenças como ‘ficções’ dessa maneira?”28 Algo que preocupa particularmente Strouddiz a respeito da crença que está sendo agora considerada, ou seja, a crença no mundo externo, e isto é parte incontornável do questionamento de Stroud aos limites muito estritos do empirismo naturalista de Hume. Mas devemos ter cuidado no sentido de evitar que dificuldades envolvendo University Press, 1995, 30 ss. 28 STROUD, B. The Constraints of Hume’s Naturalism. In: Synthese 152, 2006, p. 349. 148 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação essa crença particular (p. ex, se podemos realmente conceber as pessoas em um mundo sem “objeto externo”) não obscureçam o problema geral. A questão relevante é: se nós podemos explicar a presença de um certo tipo de crenças de um modo que seja consistente com a falsidade destas crenças, que impacto isto teria? E uma resposta seria: se temos razões independentes para acreditar nos objetos dessas crenças, então isso não teria qualquer impacto significativo. Pois embora possamos oferecer uma explicação de como viemos a acreditar em algo que seja ao mesmo tempo consistente com a falsidade da crença que é objeto de nossa explicação, isso não exclui a possibilidade de nos certificarmos desses objetos por outras vias. Considere as outrora populares explicações das ciências sociais para crenças científicas particulares, que pretenderam mostrar como certas crenças científicas se impuseram devido a meros fatores sociais, como a estima dos colegas, favoritismo, moda, etc. Podemos tomar isso como uma possibilidade, ou até mesmo como uma hipótese historicamente convincente, mas semelhante história da emergência da teoria é perfeitamente compatível com a existência de meios de verificar a correção da teoria em questão. Podemos aprender algo da natureza humana, demasiado humana da atividade científica, mas isso, por si só, não serve para minar tais crenças (a menos que alguém aceite a visão extravagente de Rorty de que toda a nossa situação “epistêmica” é assim). O ponto básico é que o modo como chegamos a acreditar em algo que não elimina a possibilidade de uma ação (atividade) subsequente na qual a crença é verificada. Pois se é verdade que podemos explicar nossas crenças sem tais postulados, estes postulados podem posteriormente explicar outra coisa. Uma das peculiaridades da crença no mundo externo na qual se concentra Stroud é que ela refere-se exclusivamente à ordem de nossa experiência e não a como as características do mundo atuam de uma maneira independente dela. Se não podemos ter uma noção clara de algo externo à nossa experiência, então não podemos distinguir entre a explicação de como cadernos Nietzche 29, 2011 149 Kail, P. J. E. adquirimos nossas crenças e a postulação de coisas que explicam como coisas que independem de crenças atuam sobre outras coisas que independem de crenças. Isso explica porque as propriedades morais são, no entanto, vulneráveis à objecção de Harman. Dito de forma direta, tudo o que os fatos ou propriedades morais podem fazer – se é que eles devem fazer algo – é explicar nossas crenças e percepções sobre eles. Moralidade só tem algum efeito sobre o mundo por meio das crenças morais das pessoas e, se pudermos explicar essas crenças sem recorrer a essas supostas propriedades morais, então essas propriedades serão redundantes. Vou tomar como certo que nem Hume, nem Nietzsche aceitariam um realismo não naturalista acerca dos valores. Hume, p, ex., procura explicar a peculiaridade de nossas ideias e experiências valorativas através do recurso a um mecanismo de projeção, pelo qual “damos brilho” e “coloração” a objetos naturais através de nossas respostas afetivas.29 Não se mencionam propriedades morais na explicação das crenças morais. Mas precisamos ser cautelosos em relação à questão de em que medida para Hume tais explicações “colocam em dúvida”. Pois ele não considera que esta “descoberta” (THN, 469) sugira que a prática da moralidade deva ser abandonada. Ele vê o erro como uma característica pensamento comum que pode ser superada, e que não põe em causa a “realidade da virtude” (THN, 469), do mesmo modo que a nossa experiência das cores envolve uma resposta projetiva que não compromete a realidade da cor. Na verdade, a maior parte das explicações de Hume sobre os fenômenos da moralidade não objetiva atentar contra a moralidade, mas visa antes a dar uma explicação em termos naturalistas de modo que as considerações teóricas concorrentes que recorrem a 29 HUME, D. Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of Morals. Oxford University Press, 1975, p. 269. 150 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação elementos não naturais fiquem comprometidas. Tal descrição da moralidade baseia-se em uma psicologia que inclui respostas afetivas, um mecanismo de simpatia e uma série de paixões, dentre elas a benevolência limitada e a preocupação com a própria prole. Todos esses elementos se situam no arcabouço mais básico de seu associativismo. Essa psicologia é reforçada por algumas conjecturas sobre os tipos de situações nas quais os seres humanos podem se encontrar. Isso inclui, de forma decisiva, suposições sobre a escassez de recursos. Essa descrição procura explicar como, a partir desses recursos limitados, instituições como a justiça podem surgir. Trata-se de um tipo de descrição que é formulado contra uma posição antagônica que inclui tanto o “quase-platonismo” da moral racionalista e quanto o estoicismo providencial. Neste contexto, explicar não é uma questão de eliminar (através da explicação) a moralidade, mas de eliminar (através da explicação) a necessidade de elementos que transcendam a natureza humana. As considerações de Nietzsche sobre a moral também são naturalistas e explicativas. Sua atitude em relação à moralidade é um pouco diferente, e sua Genealogia é calculada para fomentar a dúvida. Então, qual é a diferença? Há evidências de que Nietzsche explora algo parecido com o argumento explicativo contra um realismo não naturalista, ao estilo de Harman. Assim, em Aurora, ele nos diz que “na medida em que aumenta o sentido de causalidade o domínio da moral diminui... [chegamos a] destruir um número incontável de causalidades imaginárias que até então se acreditava ser a base para os costumes – o mundo real é muito menor do que o imaginário” (M/A 10, KSA 3.24)30. Entretanto, essa passagem parece oscilar entre uma reprovação 30 Para uma discussão sobre esta passagem em conexão com o argumen- to de Harman, consulte SINHABABU, N. Vengeful Thinking and Moral Epistemology. In: Nietzsche and Morality. Oxford: Clarendon Press, 2007, p. 273. cadernos Nietzche 29, 2011 151 Kail, P. J. E. do pensamento comum, concebido em termos de seu compromisso com uma metafísica insustentável, e uma aceitação acrítica de determinadas interpretações teóricas impostas a uma prática ordinária de primeira ordem. Recordemos que foi dito que algumas explicações naturalistas “põem em dúvida” não o que é explicado, mas as interpretações não naturalistas disso que é objeto da explicação. Desse modo, nessa passagem Nietzsche pode tanto estar censurando o pensamento ordinário como pode, em vez disso, ter em mira uma certa interpretação desse pensamento, que lhe foi imposta pelos filósofos ou pelos religiosos. É difícil decidir sobre qual caminho seguir aqui, e não apenas porque me falta espaço para rever os textos e a literatura pertinentes. Eu havia introduzido a distinção entre fenômenos morais e as interpretações destes através do exemplo do fenômeno genuíno da consciência e sua contrapartida teorizada, ou seja, “a voz de Deus no homem”. É relativamente fácil tomar os dois separadamente de modo que podemos identificar o fenômeno da consciência, independentemente do nosso compromisso para com Deus. Entretanto, as coisas se tornam muito mais complexas quando nos lembramos de que uma boa parte da discussão em Nietzsche diz respeito ao jogo sutil de disposições comportamentais categorizadas pelos tipos “mestre”, “escravo” e “padre”, assim como às mudanças interpretativas ou os Sinne que lhes são impostas. Assim, a divisão clara entre pensamento comum e “teórico” é problemática, e um dos objetivos da Genealogia da moral é obviamente o de identificar alguns dos diferentes significados desses tipos. Ao invés de focar esta questão, devemos tomar nota de outra. Falar de “moral” é significa se servir de um instrumento muito obtuso, já que para Nietzsche há muitas moralidades distintas, sendo que a diferença mais notável entre os diversos tipos de moralidade é expressa por meio da divisão entre senhor e escravo. Na Genealogia da moral, Nietzsche parece visar a uma moralidade ascética particular (que Leiter denominou de “moral no sentido pejorativo”). Mas se Nietzsche coloca em dúvida a moralidade 152 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação baseando-se apenas no tipo da alegação de redundância causal, como foi sugerido acima, então algo mais seria necessário para explicar o porquê da moral ascética ser o seu objeto específico de preocupação. É óbvio que a crítica de Nietzsche à moralidade envolve inúmeros aspectos, mas o aspecto que nos interessa é saber como, caso isso de fato ocorra, uma determinada explicação pode “colocar em dúvida” o que é explicado. Uma série de respostas diferentes a essa pergunta tem sido oferecida, mas ao invés de discuti-las irei esboçar uma resposta que tem algumas afinidades com a estratégia adotada por Hume em sua discussão acerca da crença religiosa. O aspecto da Genealogia da moral o que me interessa diz respeito ao surgimento dos compromissos essenciais da moral de escravos. As linhas gerais são familiares: antes da revolta de escravos, os escravos reconhecem a hierarquia definida pelo padrão de avaliação dos senhores e o seu lugar na parte inferior da mesma. Este reconhecimento é acompanhado pela atitude reativa de ressentiment em face da impossibilidade de dominar os mestres. O ressentiment torna-se criativo ao produzir uma “vingança imaginária” (GM/GM I 10, KSA 5.270). Produzem-se conceitos valorativos, crenças com aspectos valorativos, que incorporam uma inversão do modo nobre de avaliação. O que é importante notar é que o processo psicológico pelo qual este modelo de avaliação surge deve ser de modo que se isole das provas ou razões epistêmicas que falam a favor ou contra suas crenças. Para que as crenças tenham o efeito de amenizar o desconforto psíquico gerado pelo ressentiment, seus adeptos devem considerá-las como reflexo da realidade (daí a crença “falsificar” o mundo [GM/GM I 10, KSA 5.270]). No entanto, os processos pelos quais essas crenças emergem estão ajustados de modo a eliminar o desconforto dos escravos: e a fixação de uma crença com o objetivo de remover desconforto é uma fonte epistêmicamente não confiável de crença, pois ela não está ligada de um modo compreensível ao objetivo da crença, ou seja, a verdade. Tomar conhecimento de que as crenças têm essa fonte “suscita dúvidas” sobre elas na medida em que é preciso reconhecer que tais crenças exigem agora novas cadernos Nietzche 29, 2011 153 Kail, P. J. E. justificativas. Isso ocorre porque suas causas não estão de forma alguma relacionadas com a verdade da crença. Essa descoberta não mostra que as crenças são falsas, nem demonstra que, para tais crenças, não pode ser dada alguma justificação adicional, mas ela demonstra que as crenças devem ser reavaliadas. Hume desenvolve uma estratégia semelhante em suas considerações sobre o surgimento da crença religiosa. A crença religiosa surge porque os primeiros seres humanos estão em um estado de ignorância a respeito do mundo natural e são totalmente dependentes das vicissitudes da natureza para sua sobrevivência e prosperidade. Não sendo possível prever ou manipular a natureza, os seres humanos estão em um estado permanente de ansiedade que, por sua vez, aciona e mantém uma disposição permanente para antropomorfizar a natureza sob a forma de politeísmo. A crença é fixada, não por causa de qualquer apreciação das razões epistêmicas a seu favor, mas porque alivia a ansiedade ao franquear uma interpretação das causas desconhecidas dos eventos naturais e, o que é mais importante, ao oferecer um modelo de como manipulá-los. Novamente, os processos de formação de crença não são algo que podemos ver de forma inteligível como conectado com a verdade. Em ambos os casos, as crenças são desestabilizadas por suas histórias causais. Dado que os mecanismos que as produziram não estão relacionados com a verdade, a consciência sobre suas origens fornece uma razão para o pensador procurar motivos para essas crenças. As consequências são diferentes em cada caso. Para Nietzsche, a explicação não apenas mostra que a moral ascética não é a única moral possível, mas ela também apela aos valores ascéticos que são problemáticos na medida em que esses valores exigem algum apoio adicional, fora do sistema de moralidade, devido às suas origens31. Dessa forma, a “transvaloração do valores” 31 Cf. M/A 103. Nessa passagem, Nietzsche escreve que “é desnecessário di- zer que eu não nego – a menos que eu seja um idiota – que muitas ações 154 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação é facilitada na medida em que a moral ascética é colocada na situação de ter nesse momento que defender esses valores.32 Para Hume, a posição fideísta pela qual a crença religiosa não exige razões em seu favor se mostra insustentável. Muito mais pode (e deve) ser dito sobre isso, mas o que já foi dito sugere um sentido em que uma explicação pode lançar dúvidas sobre uma classe de crenças mediante a exposição do caráter não confiável das causas dessas crenças. O que foi dito sugere igualmente que essa é uma estratégia comum a Hume e Nietzsche. Conclusão Este ensaio mal tocou a superfície dos paralelos entre Hume e Nietzsche. Expus os paralelos no que diz respeito aos seus naturalismos substantivo e metodológico e procurei responder a uma objeção às suas explicações naturalistas que têm como base o ceticismo de ambos em relação à causação. Identifiquei ainda alguns dos tipos de explicações comuns a ambos, assim como suas distintas ramificações. Porém, seria preciso um exame muito mais detalhado para tornar convincente as teses apresentadas. Sendo assim, chamadas imorais devem ser evitadas e combatidas, ou que muitas consideradas morais devem ser feitas e incentivadas, mas eu penso que umas devem ser encorajadas e outras evitadas por razões distintas das razões até agora apresentadas” (KSA 3. 91, M/A, § 103, grifo no original). Pode-se presumir que há determinadas práticas que devem ser seguidas, mas para essas práticas estão disponíveis outras interpretações. 32 Cf. OWEN, D. Nietzsche, Re-evaluation, and the Turn to Genealogy. In: Nietzsche’s “On the Genealogy of Morals”: Critical Essays , Lanham, Md.: Rowman and Littlefield, 2006, p. 39–56 ; Ridley, A. Nietzsche and the Reevaluation of Values. In: Nietzsche’s “On the Genealogy of Morals”: Critical Essays, Lanham, Md.: Rowman and Littlefield, 2006, p. 771-92. cadernos Nietzche 29, 2011 155 Kail, P. J. E. o aprimoramento dessas teses em seus pormenores poderia constituir um campo para futuros trabalhos. Com efeito, alguns campos para futuras discussões são: 1. Quais são os elementos naturalistas que aparecem nos projetos explicativos de Hume e Nietzsche, e em que sentido esses elementos são naturalistas? 2. Em que medida estas divergências de posição podem ser explicadas pelas diferenças nestes pontos de partida? 3. Dado, porém, que há uma significativa sobreposição, podemos explicar a existência dessa sobreposição pelas inquietações que são comuns a ambos? 4. O que são precisamente as explicações relevantes e como elas são plausíveis? 5. Quais consequências normativas têm estas explicações e por quê? No entanto, há um número muito maior de sobreposições entre os dois pensadores que requer exame ou refinamento. Por exemplo, as consideraçõe de Nietzsche e Hume acerca da origem das crenças religiosas coincidem em forma e conteúdo. Ambos, além disso, avaliam que essas considerações têm uma relevância normativa para tais crenças religiosas. Isso, naturalmente, é um caso particular das questões gerais (4) e (5), mas é um tópico particularmente interessante pelo fato de que uma abordagem naturalista das crenças religiosas tem ocupado o primeiro plano da discussão filosófica,33 e as considerações que Nietzsche e Hume têm a oferecer não dependem essencialmente de nenhum aspecto controverso em suas filosofias da mente. Em ambos os casos, no entanto, a preocupação com a religião não é uma preocupação teórica, mas diz respeito a sua importância 33 Tenho em mente DENNETT, D. Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon. London: Penguin, 2007. 156 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Hume: naturalismo e explicação para as concepções éticas da humanidade. Para ambos os pensadores, a religião está emaranhada a uma gama de valores ascéticos que eles consideram inimigos da prosperidade humana. Portanto, aqui há outra possibilidade a explorar, 6. Em que medida as concepções de Nietzsche e Hume sobre a relação entre a religião e a moral ascética são coincidentes? As diferenças são uma questão de grau, ou elas indicam um desacordo fundamental entre os dois pensadores? Em que sentido eles vêem o ascetismo como uma ameaça para a prosperidade humana? Existe alguma sobreposição em suas concepções de florescimento humano? Essa preocupação comum coincide – de alguma forma – com o método “genealógico”. Tal tema foi ligeiramente discutido nesse artigo. Em sua investigação recente sobre a genealogia, Bernard Williams sugeriu um modelo que vê alguma sobreposição entre as explicações genealógicas de Nietzsche e de Hume sobre a moralidade. Contudo, por razões que não posso desenvolver aqui, eu duvido que tal seja o modelo correto. Assim, precisamos investigar: 7. Em que sentido as abordagens de Hume e Nietzsche sobre a moralidade podem ser pensadas como “genealógicas”? Quais são as implicações disso? Tudo isso vai exigir reflexões e estudos consideráveis. Espero ter pelo menos estimulado o apetite do leitor. Abstract: The aim of this essay is to sketch the character of the naturalism shared by both Hume and Nietzsche and address two issues regarding it. One is their skepticism about causation. There is a prima facie problem here. A shared aspect of their naturalism involves attempts to explain, and explain causally, a whole host of phenomena by appeal to more minimal materials. Both, however, appear skeptical about causation itself, putting pressure on their explanatory aspirations. It shall be shown cadernos Nietzche 29, 2011 157 Kail, P. J. E. that there is no genuine tension for either thinker. The second issue explored in this paper is the character of the explanations that they offer of different kinds of phenomena and what the philosophical ramifications might be. Keywords: naturalism - explanation - causation referências bibliográficas ACAMPORA, C.D. Naturalism and Nietzsche’s Moral Psychology. In: PEARSON, A. (org.) A Companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell, 2006, p. 314–33. BEAM, C. Hume and Nietzsche: Naturalists, Ethicists, AntiChristians. In: Hume Studies 22, 1996, p. 299-324. ———. Ethical Affinities: Nietzsche in the Tradition of Hume. In: International Studies in Philosophy 33, 2001, p. 87–98. BUCKLE, S. Hume’s Enlightenment Tract, Oxford: Oxford University Press, 2001. ———. Hume’s Sceptical Materialism. In: Philosophy 82, 2007, p. 553-78. 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Enquanto as duas primeiras compartilham um compromisso com a possibilidade de uma verdade objetiva, a terceira leitura nega isso, ao enfatizar as afirmações de Nietzsche sobre o caráter necessariamente falsificador do conhecimento humano (a chamada teoria do erro). Este artigo examina as maneiras pelas quais sua obra pode ser reconstruída como a procura de formas de superar a oposição estrita entre naturalismo e filosofia transcendental, mesmo levando inteiramente em consideração a teoria do erro (interpretada de forma não-literal, como uma advertência hiperbólica contra formas acríticas de realismo). Fazendo isso, o artigo esclarece a natureza dos compromissos ontológicos de Nietzsche, tanto na obra jovem quanto na madura, e mostra que sua relação com o idealismo transcendental é mais sutil do que admitem os intérpretes naturalistas, enquanto, por outro lado, explica a impossibilidade de conceber as condições de possibilidade de conhecimento como genuinamente a priori. Palavras-chave: filosofia transcendental – naturalismo – ontologia – epistemologia * Texto publicado em Inquiry, Routledge, n.52,v.2,2009, p.179-214. Os direitos foram cedidos aos Cadernos Nietzsche pela Taylor & Francis, a quem agradecemos a colaboração (NE). Tradução: André Luís Mota Itaparica. ** Professora da Universidade de Essex, Essex, Reino Unido. E-mail: beatrice@essex. ac.uk. cadernos Nietzche 29, 2011 163 Han-Pile, B. I. No que segue, enfocarei as concepções de Nietzsche sobre o conhecimento, deixando de lado questões como, por exemplo, se seu entendimento da moralidade deve ser considerado naturalista ou não. Mesmo desta perspectiva restrita, o que é interessante em Nietzsche é que ele é um caso particularmente complicado: ele foi caracterizado como um filósofo da tradição transcendental (Green 11) e mais frequentemente como um naturalista e empirista (Leiter 16; Clark 4,5; Richardson 31; e de uma forma mais nuançada, Cox 6)1. Prima facie (e talvez de forma preocupante), há justificativas para ambas as concepções, apesar de sua aparente incompatibilidade. Assim, Nietzsche afirmou que a experiência humana é necessariamente estruturada segundo “formas a priori” (NIETZSCHE 28, p. 87)2. Ele defendeu uma forma de idealismo transcendental, fazendo igualmente a assunção ontológica de que há uma maneira pela qual as coisas são em si mesmas e a afirmação epistemológica de que tais coisas são um “misterioso X” (idem, p. 83), por definição fora do alcance do conhecimento humano. Ainda em um feitio mais naturalista, ele sugeriu que a filosofia deveria ter as ciências como modelo de investigação e método, levando em consideração seus resultados. Apesar de suas discordâncias com Darwin sobre a questão da preservação da vida, ele defendeu uma concepção da natureza humana como determinada por princípios evolucionistas. Mais ainda, ele rejeitou tanto a ideia de um Hinterwelt quanto a 1 Ao contrário de Clark e Leiter, Cox leva em conta os recorrentes ataques de Nietzsche à ciência: assim, Nietzsche “revela uma teologia residual na afirmação do projeto científico moderno de descrever o mundo como ele é realmente” (COX 6, p.6). Cox argumenta que a ciência deve “superar a si mesma” em um discurso estético, e assim essa “autossuperação” é “mais rigorosamente naturalista” (provavelmente no sentido de que ela é mais inteiramente não-metafísica) do que o projeto científico – uma posição que presumivelmente nem Clark nem Leiter endossariam facilmente. 2 Neste artigo, as referências às obras de Nietzsche seguirão em parte as edições utilizadas pela autora e, por esta razão, terão um trato por vezes convencional (NE). 164 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche distinção entre fenômeno/coisa em si, de uma forma que parece impedir o dualismo inerente ao idealismo transcendental. E como se endossar elementos centrais do naturalismo e da filosofia transcendental não fosse complicado o suficiente, Nietzsche também parece manter uma concepção que nega um aspecto central compartilhado por essas duas correntes: ele aparentemente rejeita a possibilidade de conhecimento objetivo (sua chamada teoria do erro). Isso levou alguns (em particular DERRIDA 9; DE MAN 8; e KOFMAN 15) a pensar que ele é um protodesconstrucionista, que tem como propósito destruir o ideal de conhecimento seguro que subjaz aos projetos naturalista e transcendental. A principal maneira de pelo menos reduzir a confusão é ver as coisas cronologicamente. A esse respeito, a interpretação dominante (capitaneada por intérpretes pró-naturalistas como M. Clark e B. Leiter) é que o primeiro Nietzsche, sob influência de Kant e Schopenhauer, era um idealista transcendental, que ele logo renunciou aos equívocos da juventude e tornou-se um naturalista. Para colocar de forma simples, o Nietzsche de “Verdade e mentira” acreditava tanto na existência de coisas em si mesmas além do âmbito empírico quanto na sua incognoscibilidade. Do mesmo modo, seu compromisso anterior com o idealismo transcendental é visto como o principal fundamento de sua teoria do erro: já que a natureza empírica de todo conhecimento humano impede-o de capturar a essência das próprias coisas, ele é por definição errôneo. Contudo, a partir de Humano, demasiado humano, Nietzsche teria começado a ter dúvidas sobre a existência das coisas em si, tendo por fim rejeitado essa noção e a teoria do erro que a sustentava. Isso teria pavimentado o caminho para uma epistemologia naturalística caracterizada por seu alegado entusiasmo com as ciências3, sua ênfase 3 Há muitas outras passagens, tanto na obra publicada quanto nos póstumos, que sugerem (contra Clark e Leiter) que a ciência não desfruta, para Nietzsche, de nenhum privilégio epistêmico particular: Assim, “a ciência, no melhor dos casos, procura na cadernos Nietzche 29, 2011 165 Han-Pile, B. na continuidade entre filosofia e ciência e um compromisso “não-metafísico” com aquilo que Clark chama “realismo do senso comum”, isto é, a crença na existência de objetos empíricos independentes da mente (CLARK 4, p. 61. Cf. o Capítulo 2 em geral). Para mim, o problema com essa reconstrução harmônica é que ela simplifica tanto a posição inicial de Nietzsche quanto o seu desenvolvimento filosófico4. A principal razão disso é que ela implicitamente repousa sobre duas assunções não asseguradas: primeiro, que o idealismo transcendental pode, de forma incontroversa, ser identificado com uma teoria dos dois mundos e com o compromisso ontológico forte para com a existência de coisas em si que ela acarreta; em segundo lugar, que ser um idealista transcendental nesse sentido forte é a única maneira de emitir afirmações transcendentais5. Contudo, como é bem conhecido, interpretações maioria das vezes nos manter em um mundo simplificado, completamente artificial construído apropriadamente e apropriadamente falsificado (...) ela ama o erro porque, sendo viva, ama a vida (JGB/BM 25, KSA 5.42-3). Ou ainda: “os físicos acreditam em um ‘mundo verdadeiro’ em seu próprio estilo: uma sistematização firme de átomos em movimento necessário (...). Mas eles estão errados. O átomo que eles postulam é inferido de acordo com a lógica do perspectivismo da consciência” (Nachlass/FP 188, 14[186], KSA 13.373-4). Talvez a fórmula mais lapidar é a seguinte: “em última instância, o homem nada descobre nas coisas que não tenha colocado nelas; essa descoberta é chamada ciência” (Nachlass/FP 1855/1886, 2[174], KSA 12.153-4). 4 Outra dificuldade, notada por muitos comentadores (em particular Poellner, Cox e Green) é que essa reconstrução não é sustentada por provas textuais incontroversas, e deixa de lado todo o Nachlass. Dito isso, devo dizer que, em outros aspectos, nutro simpatia pela posição de Clark e Leiter, que sempre considerei esclarecedora. Em particular, concordo inteiramente com as críticas de Leiter às interpretações de Nietzsche que o veem como precursor do pós-modernismo, ao procurar negar a possibilidade de qualquer verdade e objetividade (Cf. LEITER 17). 5 Há outros problemas relacionados com a linha naturalista de argumentação. De particular relevância é o fato de que ela repousa em uma definição equivocada da filosofia transcendental, vista como “a busca por formas a priori de conhecimento que possam permitir o conhecimento da coisa em si” (CLARK 4, p. 68) – seguindo a mesma linha, outra passagem define “conhecimento metafísico ou a priori como o acesso não-empírico à realidade e uma base para rejeitar o testemunho dos sentidos” (idem, p.71). Contudo, a ambição de Kant não era rejeitar o testemunho dos sentidos, mas 166 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche deflacionárias como as de Bird (BIRD 3) ou Allison (ALLINSON 1) rejeitam uma teoria dos dois mundos em favor de uma leitura de dois aspectos que minimiza radicalmente os compromissos ontológicos do idealismo transcendental, a fim de enfatizar seu âmbito epistemológico, isto é, sua tentativa de assegurar a possibilidade de conhecimento empírico objetivo, ao identificar suas condições necessárias a priori. Interpretações tais como as de Strawson (STRAWSON 35) vão adiante nessa direção, ao argumentar que a melhor forma de aprimorar esse núcleo epistemológico é extirpar inteiramente compromissos ontológicos. Neste artigo, sugiro que, mostrar que ele não pode, por si, ser contado para a possibilidade de conhecimento. Além disso, definir conhecimento transcendental dessa forma é quase retroceder a um entendimento pré-kantiano do a priori: para Descartes e Leibniz, de fato, possuir um conhecimento a priori é equivalente a possuir ideias inatas que nos fornecem informação adquirida não-empiricamente sobre questões metafísicas como a natureza da alma ou a existência de Deus. Mas, como bem se sabe, Kant estava tão disposto quanto Hume (embora por razões diferentes) a rejeitar a ideia de que poderíamos possuir conhecimento a priori de essências metafísicas. De forma geral, muitos dos intérpretes de Nietzsche de inclinação naturalista frequentemente não definem nem o que eles entendem por “filosofia transcendental” nem de que forma eles pensam que ela se opõe ao naturalismo. Como resultado, os critérios que eles utilizam para argumentar a favor do “naturalismo” de Nietzsche são frequentemente indecisivos, porque eles poderiam igualmente se aplicar a um filósofo transcendental e/ou repousam em uma concepção pouco sutil da filosofia transcendental. As razões para isso, penso eu, são parcialmente históricas e parcialmente dependentes do contexto dos estudos sobre Nietzsche. Assim, o surgimento do naturalismo (e de movimentos protonaturalistas como o materialismo no século XVIII e o positivismo no século XIX) direcionava-se mais contra a metafísica do que contra a filosofia transcendental. Há traços disso, por exemplo, na frequentemente citada definição de naturalismo de Quine como rejeição da “filosofia primeira”. Consequentemente, muitos dos argumentos apresentados em favor das leituras naturalísticas de Nietzsche se baseiam em sua rejeição da metafísica. Do mesmo modo, seu pendor antimetafísico é acentuado pela necessidade de se opor a interpretações – uma das primeiras e mais famosas é a de Heidegger – que enfatizam o ressurgimento de aspectos metafísicos no pensamento de Nietzsche. Contudo, como foi indicado acima, Kant também nutria desconfiança para com aquilo que ele chamou de metafísica “dogmática”. Por não levar isso em conta frequentemente, os leitores de Nietzsche inclinados ao naturalismo, enquanto têm pouco problema em mostrar que ele não quer ser um metafísico, malogram em argumentar convincentemente que ele não é um filósofo transcendental. cadernos Nietzche 29, 2011 167 Han-Pile, B. semelhantemente, Nietzsche tem uma concepção muito mais nuançada do idealismo transcendental do que lhe é atribuído por esses leitores pró-naturalistas, e que ele também estava preocupado em reservar-se de suas dimensões ontológicas e epistemológicas. Por meio de um reexame apurado de um texto central para a própria interpretação de Clark, qual seja, “Verdade e mentira”, defenderei que suas concepções iniciais sobre a existência de coisas em si são acompanhadas por uma análise separada da percepção que conclui que nossa experiência possui o que se assemelha a condições6 transcendentais, por meio das quais ela se estrutura necessariamente através de “formas a priori” (NIETZSCHE 28, p. 87), entre as quais tempo, espaço, sucessão e coexistência. Essas condições são identificadas independentemente de qualquer compromisso ontológico, por meio de um estudo protogenealógico da evolução da percepção humana. Dado esse ponto de vista duplo, não é mais possível concluir, como Leiter e Clark o fazem, que a revisão posterior de Nietzsche de suas antigas concepções sobre as coisas em si seja o mesmo que rejeitar o idealismo transcendental simpliciter, nem que isso resulte na eliminação de todos possíveis aspectos transcendentais em seu pensamento7. De fato, suas reflexões sobre seus compromissos ontológicos prévios são mais sutis do que se presume: 6 Com isso quero dizer, de forma mais geral possível, condições que a) são condições de possibilidade não-empíricas, não-causais; b) são modalmente necessárias e pressupõem uma concepção normativa de conhecimento, prescrevendo o que deve ser o caso (antes que simplesmente descrever o que é o caso) para que possamos conhecer algo; c) consequentemente, envolvem uma investida em direção à universalidade e são governadas por uma ambição claramente fundacionista (fundamentar, e assim garantir, contra o ceticismo, a possibilidade de conhecimento objetivo). Discutirei a noção mais extensamente no artigo, em particular quando examinar a naturalização de Nietzsche do transcendental. 7 Clark 4, p. 61. “De fato, não há nada de transcendental nessa posição que atribuo a Nietzsche. Nada que atribuo a ele está em desacordo com a concepção de Rorty de que ‘a filosofia não terá o que oferecer senão o senso comum (suplementado pela biologia, história, etc.) sobre o conhecimento e a verdade’”. 168 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche como veremos, ele garante a passagem de uma posição forte para uma ultradeflacionária, que estabelece a necessidade de permanecer agnóstico em relação a compromissos ontológicos (antes de rejeitá-los, o que per se é uma outra forma de compromisso forte). Do mesmo modo, o itinerário filosófico de Nietzsche pode ser interpretado frutiferamente como um aprofundamento de seus antigos pensamentos sobre a natureza das condições de possibilidade da experiência, e assim como um desenvolvimento da herança epistemológica do idealismo transcendental. Similarmente, a chamada teoria do erro não é explicada tão facilmente pelo abandono de Nietzsche de suas crenças antigas na existência das coisas em si. Como foi visto por Clark, ele remove um de seus fundamentos, ou seja, a demanda impossível de uma adequação metafísica entre o conhecimento humano e a essência das coisas consideradas em si mesmas. Contudo, “Verdade e mentira” oferece um segundo argumento independente para a teoria do erro: sem considerar qualquer compromisso ontológico, ele infere, por contraste entre nossa experiência perceptiva corrente e uma forma diferente, mais primordial, de experiência (relegada a um passado mítico), que a estruturação da primeira, por meio de elementos a priori, é ela mesma uma falsificação. Como veremos, essa afirmação anterior será desenvolvida pela reflexão posterior de Nietzsche sobre as condições perspectivas da vida em sua relação com o fluxo primordial de nossas impressões e o que ele chama “o mundo do vir-a-ser”. A não ser que uma interpretação alternativa seja proposta, que não repouse simplesmente sobre a rejeição de Nietzsche de seus antigos compromissos ontológicos fortes, a teoria do erro permanecerá, do mesmo modo, um sério obstáculo para todos os intérpretes (inclinados ao naturalismo e ao transcendentalismo) que procurem encontrar no pensamento de Nietzsche um fundamento para a possibilidade de conhecimento objetivo. Uma vez inteiramente reconhecida a complexidade da relação entre compromissos ontológicos, aspectos transcendentais e elementos naturalistas na obra de Nietzsche, novas questões surgem, cadernos Nietzche 29, 2011 169 Han-Pile, B. as quais enfocarei na segunda parte deste artigo: é claro que a ideia central da análise de Nietzsche em “Verdade e mentira” é tanto asserir a existência de condições “transcendentais” quanto mostrar que elas têm uma gênese empírica, a qual, evidentemente, coloca seu estatuto transcendental em questão (por isso meu uso das aspas) e atesta a presença de fortes elementos naturalistas em seu pensamento (em particular por causa de sua insistência humiana no papel desempenhado pela crença, pelo hábito e pelas práticas sociais na gênese de nossas formas a priori). Como devemos então reconstruir a chamada “naturalização” de Nietzsche do transcendental8 e quais são suas consequências para a ideia de condições transcendentais (em particular no que diz respeito a sua modalidade e objetivo)? Em segundo lugar, como se darão as dimensões ontológicas e epistemológicas do idealismo transcendental na obra madura de Nietzsche? Finalmente, e mais importante, é possível interpretar sua teoria do erro de uma maneira que não ameace radicalmente a possibilidade de ele ter concepções coerentes sobre o conhecimento (seja ele transcendental ou naturalista)? Permitam-se mais uma consideração antes que eu me volte ao exame acurado dessas questões: deve estar claro, a partir do já dito, que o objetivo de meu artigo não é convencer que Nietzsche é um naturalista ou um filósofo transcendental. Não penso que se possa decidir sobre isso dessa forma, e muito menos identificar, como o fazem Clark e Leiter, uma evolução de uma primeira posição, de inclinação transcendental, para uma mais madura, naturalista. Por razões que aparecerão progressivamente, sequer penso que se deva decidir sobre isso dessa forma. A ideia aqui é antes examinar a interação de elementos naturalistas e transcendentais no pensamento 8 A expressão foi cunhada por Stack. Contudo, ele estava mais interessado em mostrar a extensão da influência da Lange no pensamento de Nietzsche; meu interesse não é tanto com a história das ideias, mas com as implicações teóricas de tal guinada para a filosofia transcendental e para o naturalismo. 170 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche de Nietzsche, com uma visada que identifica pontos de tensão e as formas como eles se revelam em sua obra. Como veremos, essas tensões incidem na maioria das vezes: a) na questão se a experiência é ativamente construída pela mente ou passivamente recebida pelos sentidos; b) no estatuto das formas e conceitos constitutivos (a priori ou não); c) no problema se tal concepção de experiência requer a existência de uma realidade independente da mente (e se assim o for, como a experiência se relaciona com essa última) e d) dependendo da resposta a essas três questões, o propósito e validade do conhecimento humano. No curso do exame dessas tensões, eu sugerirei que talvez a hipótese hermenêutica mais promissora é ver a luta de Nietzsche com elas como uma tentativa de superar a oposição entre naturalismo e filosofia transcendental. É essa terceira via, com seus custos e benefícios, que pretendo explorar neste artigo. II. O que faz de “Verdade e mentira” particularmente interessante é o fato de que ele pode ser visto como a matriz na qual a maioria dos componentes das concepções de Nietzsche sobre o conhecimento já está presente. O texto é reconhecidamente complexo, tendo sido objeto de inúmeras interpretações9. Embora seja obviamente um ataque contra a possibilidade de uma verdade universal e de um conhecimento objetivo, o que é muito menos claro é a estratégia de Nietzsche. A principal razão para essa complicação é que “Verdade e mentira” imbrica constantemente duas linhas 9 Em particular De Man, Kofman e Clark. Enquanto De Man e Kofman leem “Verdade e mentira” como uma análise desconstrucionista da linguagem (como metafórica), Clark sustenta que principal objetivo do texto é fornecer uma crítica schopenhaueriana da representação como fundamentalmente inadequada para a coisa em si. Embora eu concorde com Clark que o texto deveria ser lido como engajado ao idealismo transcendental, não penso que essa seja sua única dimensão (Cf. corpo do texto). cadernos Nietzche 29, 2011 171 Han-Pile, B. principais de argumentação, que têm sua fonte em uma reflexão sobre o idealismo transcendental. De um lado, e mais obviamente, Nietzsche infere, da ausência de correspondência metafísica entre o conhecimento empírico e as coisas em si mesmas, que nosso conhecimento é “antropomórfico” e portanto inválido de um ponto de vista transcendental. Como veremos, per se essa não é uma posição particularmente boa. Contudo, há, por outro lado, um argumento mais sutil: Nietzsche não trata aqui somente daquilo que ele vê como uma falha do conhecimento humano em capturar adequadamente o em si, mas também da descrição das condições de possibilidade da experiência, de uma maneira que ele permanece agnóstico em relação a suas possíveis implicações ontológicas. Fazendo isso, ele primeiro apresenta uma concepção antirracionalista da percepção como “metafórica”: tal concepção pode ser interpretada tanto como antikantiana (ela rejeita a afirmação de que a experiência seja constituída por meio de juízos objetivos) quanto anti-empirista (ela nega que haja qualquer dado sensível bruto). Isso conduz, contudo, à ideia de que essa concepção descreveria a forma pela qual as coisas seriam experimentadas em um passado mítico e esquecido, não refletindo mais a forma com que nós percebemos. Para explicar as mudanças nas condições perceptuais, Nietzsche oferece uma descrição claramente humiana das maneiras pelas quais a conceptualização fez-se necessária para o desenvolvimento de novas práticas sociais (a necessidade de veracidade) e hábitos. Esse procedimento protogenealógico, contudo, culmina, inesperadamente, em uma visão quase kantiana da experiência, como determinada agora por “formas a priori” (NIETZSCHE 28, p. 87). Antes de analisar as mudanças substanciais que o segundo procedimento traz para a ideia de condições transcendentais, tentarei substanciar e clarificar os sucessivos passos desse argumento, bastante vertiginoso, com uma concepção que trará seus elementos tanto transcendentais quanto naturalistas, em suas mútuas tensões. Como foi visto por Clark, o ataque de “Verdade e mentira” à objetividade não repousa em uma análise da linguagem, mas da 172 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche percepção (assim, as metáforas que Nietzsche descreve são “perceptuais” (NIETZSCHE 28, p. 84) e, como veremos, pré-verbais e pré-linguísticas). O processo perceptual é detalhado da seguinte maneira: “um estímulo nervoso é transposto em uma imagem: primeira metáfora. A imagem, em contrapartida, é copiada em som: segunda metáfora” (ibidem)10. Per se, não há nada aqui que sugere o endossamento do idealismo transcendental. Prima facie, a descrição é feita no nível empírico e diz respeito à gênese de representações. Como isso está muito condensado, vale a pena observar em maior detalhe. Segundo Aristóteles (Poética 1457b), uma metáfora é “a aplicação de um termo estranho, transferido do gênero e aplicado à espécie, ou da espécie e aplicado ao gênero, ou de uma espécie a outra, ou a qualquer coisa por analogia”11. Nenhuma regra ou condição é especificada para essa transferência (meta-phorein). No caso da transferência de espécie a gênero (ou vice-versa), há claramente uma relação de familiaridade entre os dois termos considerados, mas esse não é o caso quando a metáfora liga duas espécies “ou qualquer coisa”. Em virtude de sua natureza analógica, a metáfora indica uma similaridade entre dois termos considerados (embora falando estritamente uma analogia envolva quatro elementos, dizendo respeito à relação entre dois pares, e não aos próprios termos). Mas tal similaridade não se baseia em uma consideração objetiva da natureza dos objetos ligados: a conexão é subjetiva, e o juízo resultante, tomado literalmente, poderia ser falso. O propósito de tal conexão não é formar qualquer conhecimento dos objetos, mas estimular a imaginação, de sorte que ela elimine o fosso entre dois termos que, per se, têm pouco em comum, e engajar-se num 10 O processo é detalhado em termos quase similares em uma passagem posterior: “primeiro imagens – para explicar como imagens surgem no espírito. Então palavras aplicadas às imagens. Finalmente conceitos, possíveis somente onde há palavras – a coleção de muitas imagens em algo não visível mas audível (palavras)” (XI, 25[168]). 11 Tradução de Fyfe, H. (Aristotle. Poetics. Cambridge: Harvard University Press, 1973). cadernos Nietzche 29, 2011 173 Han-Pile, B. jogo livre de significações. Assim, o verso de Paul Eluard, “a Terra é azul como uma laranja” não descortina nenhum fato objetivo sobre a Terra e laranjas. Contudo, a metáfora traz à mente aspectos por meio dos quais elas poderiam ser pensadas como similares (tal como a redondeza, o caráter natural, a fertilidade, a superfície irregular, etc.); ela faz isso promovendo uma visão imaginativa, quase imediata, antes de fazer-nos refletir sobre a natureza dos objetos (Embora seja possível, como já comecei a fazer, articular posteriormente algumas das conexões estabelecidas). Como isso se aplica à percepção? A ideia de Nietzsche parece ser que, assim como as metáforas envolvem a transferência de significado de um termo para um outro que não reflete suas características objetivas, como os procedimentos da imaginação, da mesma forma, no caso da percepção, não há conexão objetiva, necessária ou racional entre os estímulos nervosos, imagens e sons. Eles são todos diferentes em natureza, e a passagem de um para o outro é possível apenas pela capacidade subjetiva de nossa imaginação, vista como um poder artístico primordial sobre o qual não há, originalmente, restrições conceptuais12. Ela “não tem necessidade [de conceitos], esses paliativos da indigência” (NIETZSCHE 28, p. 90). Assim, somos “indivíduos artisticamente criativos” (idem, p. 86) e sons são “a solidificação de uma massa de imagens que fluem originalmente da faculdade primordial da imaginação como um líquido flamejante” (idem, p. 86). Seguindo as mesmas linhas, Nietzsche fala do “impulso para a formação de metáforas” como “o impulso humano fundamental” (idem, p. 88): somos animados por “um desejo ardente de recriação do mundo (...) de um tal modo que ele será (...) tão colorido, sedutor e eternamente novo como um mundo de sonhos” (idem, p. 89). Como isso depende somente das idiossincrasias do 12 Posteriormente no texto, Nietzsche oferecerá uma protogenealogia das razões empíricas por que esse poder criativo primordial sofreu restrições, em particular pela necessidade de encontrar semelhanças. 174 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche indivíduo perceptual, cada “metáfora individual” é singular e “sem igual”. Isso também se aplica às “palavras” usadas para expressar as imagens: sua assimilação a meros sons e o fato de que eles são distintos de conceitos (e não dependem dos últimos para sua formação) sugerem que essa protolinguagem é extremamente rudimentar. Ela claramente não possui gramática, nem conectores lógicos, nem verbos, etc. Cada “palavra” provavelmente funciona, de forma onomatopeica, como um nome próprio, associado por transferência metafórica ulterior para uma imagem individual, depois que a última foi formada independentemente pela imaginação. Por não haver restrições conceptuais na capacidade da imaginação, nem as imagens nem as palavras aglutinam-se em um mundo ordenado de representações, sendo “irregulares, isentas de resultado e coerência” (ibidem). Do mesmo modo, como não há estruturas comuns para sua formação, e como todas as metáforas perceptivas são privadas, não há um mundo intersubjetivamente compartilhado. Embora problemática13, essa concepção é interessante na medida em que ela procura alvejar tanto aspectos transcendentais quanto empiristas da experiência. É um claro ataque ao entendimento kantiano da experiência como dependente de juízos que unem intuições em representações objetivas. Em um caso, a formação das imagens, tal como descrita aqui, não envolve nenhum conceito (como veremos, para Nietzsche o último surge da igualação de diferenças perceptuais preexistentes), o que exclui a possibilidade do juízo como a unificação de um múltiplo por meio de uma regra. Do mesmo modo, a ideia de que representações são metáforas perceptuais que, de qualquer modo, não têm necessidade alguma de tal possibilidade: o processo pode ser pensado como 13 Entre outras coisas, poder-se-ia argumentar que é difícil entender como “imagens” poderiam ser formadas sem nenhum insumo conceptual. Além disso, seria difícil distinguir entre duas imagens diferentes se não se dispusesse de conceitos tais como coexistência, sucessão, etc. Retornarei posteriormente a essas questões. cadernos Nietzche 29, 2011 175 Han-Pile, B. puramente associativo. Em um momento, Nietzsche afirma explicitamente que “a metonímia repousa na essência do juízo sintético” (NIETZSCHE 25, p. 152). Na mesma linha, sua insistência no papel exclusivo desempenhado pela imaginação na formação de representações pode ser entendido como um ataque indireto à noção de esquematismo. Na primeira Crítica, o papel da imaginação é restrito à eliminação do fosso existente entre sensibilidade e entendimento, para assegurar que nossa estrutura categorial possa aplicar-se a intuições14. Assim, a finalidade dos esquemas da imaginação (como intuições puras determinadas) é possibilitar a unificação das impressões sensíveis sob a regra dos conceitos puros do entendimento. Aqui, Nietzsche elimina tais limitações, ao retirar a necessidade de qualquer tipo de conceptualização15. Contudo, há também fortes elementos anti-empiristas nessas considerações. Em um caso, a maioria dos empiristas, embora negue que a experiência seja unida conceptualmente, ainda sustenta que ela possui regularidade. Assim, para Hume, nossas associações mentais não são livres: elas são reguladas, não por conceitos ou formas a priori, mas por princípios psicológicos tais como semelhança, contiguidade ou causalidade. Contudo, isso é rejeitado pela insistência de Nietzsche na “arbitrariedade” (Nietzsche 28, p. 82) da imaginação e na irregularidade e ausência de coerência de nossas metáforas perceptuais. Em segundo lugar, tanto a própria noção de metáfora quanto a ideia de que a atividade da imaginação seja “primordial” sugerem que não existe nada que possa ser considerado como o dado sensível bruto, passivamente impresso na mente. Ao contrário, para que 14 Cf. A136/B175: o esquematismo fornece as “condições sensíveis [os esquemas] unicamente sob as quais os conceitos do entendimento podem ser empregados”. 15 Pode-se ficar tentado a dizer que Nietzsche está mudando para uma perspectiva estética, de acordo com a qual a imaginação esquematiza sem conceitos. Contudo, mesmo a Terceira Crítica requer a existência de um sensus communis, e a postulação de que juízos reflexionantes podem ser universais, duas exigências que claramente não são endossadas aqui pela posição de Nietzsche a respeito das metáforas perceptuais. 176 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche algo seja considerado como um conteúdo perceptual é necessário que haja a atividade interpretativa da imaginação (o que explica por que a relação entre estímulo nervoso e imagem não seja meramente causal). A própria disjunção das esferas do estímulo nervoso e da imagem sugere que um estímulo nervoso puro não poderia nem registrar-se na mente nem tornar-se significativo para nós, a não ser que fosse interpretado pela imaginação. Como Nietzsche assevera, um estímulo tem de “ser visto como vermelho, um outro como azul” ou “ouvido como um som” (NIETZSCHE 28, p. 87, grifos meus). Per se, ele não é nem azul nem vermelho; ele não é nada para nós. O poder artístico da imaginação repousa assim em sua habilidade de transpor estímulos nervosos em imagens que são significativas para nós16. Assim, a primeira maneira de compreender os breves comentários de Nietzsche sobre a natureza metafórica da percepção é concebê-los como uma descrição independente, que não repousa em assunções ontológicas: ela está baseada inteiramente na análise interna da gênese de representações, que nega a possibilidade de juízos sintéticos a priori sem, contudo, endossar uma concepção empirista da experiência. Contudo, imediatamente (e de forma bastante desnorteadora) Nietzsche muda a discussão para uma outra, mais carregada metafisicamente: sua própria análise da percepção é tomada agora como uma metáfora que ilustra a relação inescrutável do conhecimento humano com aquilo que é visto como a essência das coisas. O foco altera-se imperceptivelmente da ideia 16 Como veremos, esse espírito anti-empirista permanece até o fim da obra de Nietzsche: assim, “tudo o que se torna consciente é totalmente arranjado, simplificado, esquematizado, interpretado” (Nachlass/FP 1887/1888, 11[113], KSA 13.53-4), ou ainda: “tudo o que entra na consciência como ‘unidade’ já é tremendamente complexo” (Nachlass/FP 1886/1887, 5[56], KSA 12.205). Contudo, deve-se notar que isso não condiz bem com o anticonceptualismo de Nietzsche no seu primeiro tratamento das metáforas perceptuais. No decorrer de “Verdade e mentira” e em sua obra madura, Nietzsche mantém que o juízo desempenha um papel inferior na experiência. cadernos Nietzche 29, 2011 177 Han-Pile, B. de que a gênese da experiência perceptual não assegura a possibilidade de conhecimento empírico objetivo para a afirmação de que, de qualquer modo, é impossível para nossas representações corresponder à natureza essencial das coisas. O argumento não é o de que objetividade é a priori impossível: é o de que, mesmo que ela fosse possível (e assim tivéssemos um conhecimento verdadeiro do mundo empírico), nossas representações ainda falhariam em descrever o mundo tal como ele é. Estaríamos em uma situação análoga à de um surdo contemplando as figuras de Chladni: ver as ondas produzidas pelos sons na areia não nos aproximaria do entendimento do que seja o som e nos deixaria perplexos17. Assim, “um pintor sem mãos que quisesse expressar em música a figura presente em sua mente, por meio da substituição das esferas, ainda revelaria mais sobre a essência das coisas do que o mundo empírico” (idem, p. 87). Nietzsche parece tender em direção a uma concepção fenomenalística do idealismo transcendental18, e afirmar que há uma desconexão radical entre o mundo das representações empíricas e mundo numênico das essências. Ele sugere duas razões para isso: primeiramente, ele rejeita a ideia (schopenhaueriana) de que poderia haver uma relação causal entre a coisa em si e os estímulos que recebemos: “a inferência ulterior de um estímulo nervoso de uma causa fora de nós já é resultado de uma aplicação falsa e injustificável do princípio de razão” (idem, p. 82). Entre fenômenos e coisas em si, como entre estímulo e imagem, há apenas uma relação metafórica, estabelecida subjetivamente: “da mesma forma como um som aparece como uma figura na areia, o misterioso X da coisa em si aparece primeiro como um estímulo 17 “Talvez tal pessoa [totalmente surda] olhasse com espanto para as figuras sonoras de Chladni: talvez ela descobrisse suas causas na vibração das cordas e então jurasse que deve saber o que os homens querem dizer por ‘som’” (NIETZSCHE 28, p. 82). 18 Assim, “desde início vemos as imagens visuais apenas no interior de nós mesmos, ouvimos o som apenas no interior de nós mesmos. É um passo largo, a partir disso, postular um mundo externo” (Nietzsche 25, p. 144). 178 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche nervoso, depois como imagem e enfim como som” (idem, p. 83). Em segundo lugar, mesmo que houvesse uma relação entre coisa em si e fenômeno, ainda assim isso não nos daria um entendimento da coisa em si: se pensássemos assim, seríamos como um surdo que “tendo descoberto a causa [das ondas na areia] na vibração das cordas” poderia “jurar que devia saber o que os homens querem dizer por ‘som’” (ibidem). Nietzsche conclui, portanto, que “a natureza não conhece nenhuma forma e nenhum conceito, mas somente um X que permanece inacessível e indefinível para nós” (ibidem). A segunda linha de argumentação, bem mais conhecida, que é baseada na impossibilidade do conhecimento humano de aplicar-se ao mundo numênico, é ao mesmo tempo próxima e substancialmente diferente da própria posição de Kant. É claro que Nietzsche está compromissado com a tese ontológica de que há uma forma pela qual as coisas são em si mesmas, independentemente de nós, e com a afirmação epistemológica de que tais coisas, consideradas de uma perspectiva transcendental (isto é, aquela que identifica as condições epistêmicas) são por definição incognoscíveis para nós. Contudo, a última não era um problema para a epistemologia de Kant: o fato de não conhecermos nada da essência das coisas consideradas independentemente das condições epistêmicas é uma consequência do idealismo transcendental, não um argumento contra a possibilidade de conhecimento objetivo do mundo empírico. Contudo, Nietzsche introduz mais uma exigência, aquela da correspondência metafísica: ele pensa que, para contar como conhecimento, nossas sentenças devem refletir adequadamente as coisas como são independentemente de nós. Como isso é, por definição, impossível, Nietzsche conclui que o conhecimento humano é necessariamente falso (a chamada teoria do erro). Como Kant, ele é o que chamarei um realista ontológico metafísico, na medida em que ele pensa que faz sentido falar de coisas que possuem uma essência independentemente da forma como elas aparecem para nós. Mas, diferentemente de Kant, ele é um realista metafísico epistemológico desapontado: ele pensa que o conhecimento humano deveria cadernos Nietzche 29, 2011 179 Han-Pile, B. ser capaz de captar a essência das coisas em si, e defende, da incapacidade de fazer isso, a radical impossibilidade de qualquer tipo de conhecimento, seja empírico ou numênico. A forma como ele argumenta contra Kant na seguinte citação é particularmente indicativa dos compromissos com uma concepção (não-kantiana) da verdade como adequação metafísica: “Há aqui, para ser preciso, um círculo vicioso: se as ciências estão corretas, então não estamos sustentados pelos fundamentos kantianos. Se Kant estiver certo, então as ciências estão erradas” (NIETZSCHE 25, p. 84). O argumento pressupõe a assunção de que, para que as ciências estejam certas, elas têm de captar a essência das coisas consideradas em si mesmas. Assim, se elas estiverem certas, sua certeza se baseia diretamente numa correspondência metafísica. Pode-se ser um realista metafísico feliz sem qualquer necessidade do idealismo transcendental ou “fundamentos kantianos”. Se Kant estiver certo, isto é, se as coisas em si estiverem fora do alcance do conhecimento humano, então as ciências estão “erradas”, porque elas falham em capturar a essência da realidade. É claro que Kant diria que só se ele estiver certo está assegurado que as ciências também estão certas. O fato de Nietzsche não ver isso é indicativo do seu compromisso implícito com a correspondência metafísica, que é a primeira base de sua teoria do erro. Como se pode vislumbrar, essa segunda linha de argumentação não parece particularmente forte. Uma razão para isso é que ela repousa sobre uma leitura equivocada das intenções de Kant na Crítica da razão pura, e consequentemente no acréscimo de uma premissa (a exigência de correspondência metafísica) que uma construção correta do projeto crítico consideraria indesejável. Do mesmo modo, ela pressupõe uma generalização desnecessária da impossibilidade do conhecimento empírico de representar o em si em uma impossibilidade do conhecimento empírico tout court. Mas não se segue do fato de que o conhecimento humano não consiga satisfazer a exigência de correspondência metafísica que ele não consiga refletir adequadamente estados de coisas empíricos. 180 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche Além disso, mesmo que se garanta a aplicabilidade da exigência metafísica a todas as formas de conhecimento, ainda não se seguiria obviamente, da afirmação do idealista transcendental de que coisas ou estados de coisas são incognoscíveis de uma perspectiva transcendental, que o conhecimento empírico não poderia corresponder às coisas como elas são em si mesmas, embora seja claro que não haveria como poder saber se tal correspondência existe, e muito menos fundamentá-la. Em outras palavras, poderia acontecer que nosso conhecimento fosse metafisicamente verdadeiro (no sentido da adequação), embora não pudéssemos justificar o porquê de ele ser verdadeiro. Como é bem conhecido, essa é uma questão bastante intricada nos estudos kantianos (a chamada alternativa negligenciada de Trendelenburg). Nietzsche estava ciente dessa possibilidade e de fato critica Kant duas vezes por tê-la excluído: assim, “contra Kant, pode ser além disso objetado que mesmo se garantíssemos todas as suas proposições, ainda permanece inteiramente possível que o mundo seja como ele parece ser para nós” (NIETZSCHE 25, p. 84). Do mesmo modo, “não ousamos afirmar que esse contraste [entre indivíduo e espécie] não corresponde à essência das coisas: isso certamente seria uma asserção dogmática e, com tal, tão indemonstrável quanto o seu oposto” (NIETZSCHE 28, pp. 83-84). Nietzsche assim repreende Kant por não ter sido crítico o suficiente: ele deveria ter visto que a afirmação de que o conhecimento empírico não corresponde a estados de coisas metafísicos é um juízo sintético a priori não assegurado19. Contudo, é bastante estranho que ele pareça não estar ciente de que essa 19 Há formas de, pelo menos, tentar que essa afirmação se sustente, em particular o argumento de Allison de que se segue analiticamente das considerações de Nietzsche sobre tempo e espaço serem condições de possibilidade da representação que eles não podem ser aplicados a coisas em si, e que portanto a afirmação de que as coisas em si não são espaço-temporais não é sintética mas analítica. Mas como o próprio Nietzsche não considera a questão, e parece endossar a alternativa de Trendelenburg, deixarei essa questão de lado. cadernos Nietzche 29, 2011 181 Han-Pile, B. crítica se aplicaria igualmente bem a sua própria tese da falsificação, e que pela mesma medida ela é injustificada, em sua afirmação de que nosso conhecimento não consegue necessariamente capturar qualquer aspecto das coisas em si20. Nesse momento, pode ser útil sumarizar nossas descobertas, com a concepção que identifica o papel de elementos transcendentais e naturalísticos na primeira fase do pensamento de Nietzsche. Eu sugeri que ele possui dois argumentos distintos contra a possibilidade de objetividade: o primeiro diz respeito à gênese de representações e é altamente ambíguo, por combinar aspectos antitranscendentalistas e anti-empiristas. O segundo repousa no seu endossamento de uma forma forte de idealismo transcendental e de uma exigência não-kantiana de correspondência metafísica. Contudo, não estamos, no momento, em posse de uma imagem completa; devemos, portanto, considerar argumentos adicionais oferecidos por Nietzsche em “Verdade e mentira” antes de traçar conclusões definitivas. Deixando temporariamente de lado a questão da correspondência metafísica, Nietzsche retorna a sua análise da gênese das representações, mas agora a partir de uma perspectiva diacrônica. 20 Poder-se-ia talvez dizer, em defesa de Nietzsche, que mesmo se nossos enunciados viessem a corresponder ao em si, as próprias condições sob as quais o problema está colocado impediriam que eles contassem como conhecimento. É interessante que a situação aqui evocada parece antecipar o problema de Gettier: como se sabe, um dos exemplos de Gettier é aquele de alguém que, vendo um cachorro-robô no gramado, diz: “Há um cachorro ali”. Como o cachorro percebido não é um cachorro real, o enunciado é falso (embora justificado), e assim não pode contar como conhecimento. Gettier então introduz a premissa adicional de que há um cachorro real atrás do cachorro-robô, escondido do falante por um arbusto. A conclusão de Gettier é que, embora o enunciado se torne agora verdadeiro, ele ainda não conta como conhecimento. Da mesma forma, poder-se-ia talvez argumentar (embora Nietzsche não o faça) que se nossos enunciados, que são considerados por Nietzsche empiricamente falsos devido à ausência de correspondência metafísica e assim não são considerados como itens do conhecimento, tornassem-se metafisicamente verdadeiros, mas por razões que não nos são acessíveis, eles ainda não contariam como conhecimento. Seria apenas um caso de sorte epistêmica. 182 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche O elemento novo e importante é que sua primeira análise da percepção é agora recontextualizada em uma genealogia que reconhece que a conceptualização é necessária. Nietzsche ocupa-se em mostrar as formas em que nossa imaginação, originalmente irrestrita, foi progressivamente forçada a operar de uma forma fixa. Essa posição pré-genealógica é evidentemente humiana, na medida em que insiste no papel desempenhado pelas necessidade sociais e pelos hábitos no processo, providenciando assim razões naturalísticas para a domesticação (e esquecimento) de nosso poder metafórico primordial. Partindo da premissa implícita de que é necessário para os homens viver em sociedade (presumivelmente por razões rousseaunísticas de escassez de recursos naturais e da vulnerabilidade natural da espécie), a posição de Nietzsche desenvolve-se com os seguintes passos: a) para ser possível a ordem social, há a necessidade de que seus membros possam ser verazes. É um “dever que a sociedade impõe para existir”21 (idem, p. 84), caso contrário ela seria ameaçada pelo caos e não conseguiria se manter; b) “ser veraz significa empregar as metáforas usuais” (ibidem), isto é, (para Nietzsche) empregar conceitos de tal forma que enunciados sejam comunicáveis22, verificáveis e justificáveis. Se não houvesse referência comum ou nenhuma estabilidade na relação entre sentido e referência, então nenhuma vida social seria possível; c) entretanto, esses próprios conceitos são considerados falsos, em virtude do processo de abstração através do qual são obtidos; 21 A referência ao “dever” nesse contexto poderia ser vista como ironicamente remanescente dos argumentos de Kant tanto na Fundamentação quanto no “Do suposto direito de mentir”. Polemicamente, Nietzsche vê a origem empírica, como a necessidade de ordem social e de coesão, daquilo que Kant entende como um dever moral a priori. 22 Cf. Nachlass/FP 1887, 9[106], KSA 12.395-6: “A comunicação é necessária, e para haver comunicação algo precisa estar fixo, simplificado, capaz de exatidão (sobretudo nos chamados casos idênticos). Para algo ser comunicado, contudo, ele deve ser experimentado como adaptado, ‘reconhecível’. A matéria dos sentidos [é] adaptada pelo entendimento, reduzida a grossos contornos, feita similar”. cadernos Nietzche 29, 2011 183 Han-Pile, B. d) consequentemente, temos o “dever de mentir segundo uma convenção fixada, mentir com o rebanho e de uma maneira vinculada a todos” (ibidem). É claro que muita coisa está pendente em c). Qual é a base para se afirmar que a conceptualização é necessariamente uma forma de falsificação? E o que é exatamente é chamado de falsificação? Duas razões principais podem ser inferidas do texto de Nietzsche. A primeira é que o conhecimento conceptual não consegue satisfazer a exigência de correspondência metafísica. Este é provavelmente o argumento mais fraco de Nietzsche, na medida em que é o menos específico (ele se aplicaria também ao fluxo primitivo de metáforas): dessa perspectiva, é difícil ver por que metáforas fixas seriam, como Nietzsche claramente pensa que elas são, pior do que as não-fixas. A segunda é remanescente da crítica empirista da formação de ideias abstratas: é a afirmação de que conceitos são formados a posteriori, através do empobrecimento das metáforas perceptuais originais. O processo pode ser detalhado em dois passos: primeiro, as imagens originais, singulares, são universalizadas “(...) em conceitos desbotados, frios, de tal forma que ele [o homem] possa lhes dar a condução de sua vida e ação” (ibidem). Tal universalização, em contrapartida, tornou-se possível por meio de uma igualação forçada de diferenças individuais. Assim, “enquanto toda metáfora é individual e sem igual e portanto escapa de toda classificação” (idem, pp. 84-5), “todo conceito surge da igualação de coisas desiguais: exatamente como é certo que nenhuma folha é totalmente idêntica a outra, do mesmo modo é certo que o conceito ‘folha’ é formado pela desconsideração arbitrária dessas diferenças 184 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche individuais” (idem, p. 83)23. Em segundo lugar, esquecemos sua gênese e tomamos os conceitos como se eles se referissem a entidades reais no mundo. Assim, a formação de universais, conjuntamente com o destaque arbitrário (a “transposição arbitrária”; idem, p. 82) de propriedades como “verde”, que são implicitamente referidas a substâncias como seus suportes, faz surgir a ilusão de um mundo de entidades empíricas independentes da mente: assim, “procedemos a partir do erro de acreditar que temos essas coisas imediatamente diante de nós como meros objetos. Esquecemos que nossas metáforas perceptuais são metáforas e as tomamos como se fossem as coisas elas mesmas” (idem, p. 86). Há portanto uma dupla falsificação em jogo: primeiro, as metáforas perceptuais originárias, singulares, são solidificadas em conceitos; depois, esse processo é esquecido e nos tornamos realistas ingênuos, acreditando na existência independente de entidades capturadas por esses conceitos. Embora não o diga explicitamente, isso permite, presumivelmente, a atribuição de valor de verdade aos nossos enunciados, já que essas entidades podem então servir de referência e assim fazem possibilitar que verifiquemos nossos enunciados. Esta é a primeira aparição de um tema (qual seja, o de que conceitos, e portanto conhecimento conceptual, são necessariamente falsificadores) que oferece um segundo fundamento para a teoria do erro de Nietzsche. Note-se que, assim como as primeiras concepções sobre o caráter metafórico da percepção, ele é independente do compromisso com o idealismo transcendental, e que portanto não será afetado pela sua rejeição ulterior da coisa em si. Em virtude de sua importância, vale a pena examinar essa primeira versão da tese da falsificação conceptual um pouco mais detalhadamente. 23 Nietzsche pressupõe que nossa habilidade de reconhecer objetos diferentes é não-conceptual: contudo, poder-se-ia argumentar que, para identificar uma folha como tal inicialmente (e assim ser capaz de indenticar duas folhas distintas), já é necessário o conceito de folha, e portanto ele já é pressuposto pelo próprio processo que é descrito como resultado. cadernos Nietzche 29, 2011 185 Han-Pile, B. Talvez a primeira coisa a dizer é que apesar de sua aparente simplicidade, ela é profundamente ambígua, na medida em que a natureza do que é falsificado varia implicitamente: na citação acima, Nietzsche o identifica com “toda metáfora perceptual originária”, então avança e diz que “todo conceito surge da igualação de coisas desiguais” (grifo meu). O exemplo da folha confirma que ele agora está falando da igualação de diferenças entre várias entidades, e não metáforas perceptuais (assim que fala sobre ser certo que “uma folha [não uma folha percebida] nunca é totalmente idêntica a outra”). Da mesma forma, sua crítica à arbitrariedade de nossa captação de propriedades pressupõe uma concepção realista similar daquilo que é falsificado: assim, “falamos de uma ‘serpente’: essa designação toca apenas na sua habilidade em contorcer-se e poderia caber também ao verme” (idem, p. 82). Isso sugeriria que o próprio Nietzsche ocasionalmente é capturado pela ilusão que ele critica, ou seja, a da existência de entidades independentes da mente que preexistem à nossa percepção delas24. Como o foco geral desse argumento em “Verdade e mentira” recai sobre as metáforas perceptuais, podemos assumir que o que Nietzsche realmente quer dizer aqui é que os conceitos falsificam as metáforas originais de nossa imaginação. Nesse caso, a tese da falsificação assume que temos, desde início, não somente a habilidade de formar muitas metáforas perceptuais, como também que podemos dizer que essas metáforas diferem uma das outras. Caso contrário, a ideia de imagens originais “singulares” não faria sentido, nem a de que uma conceptualização subsequente seria a igualação de diferenças no conteúdo perceptual – tudo o que teríamos seria um fluxo de percepções indiferenciadas que não seriam individualizadas o suficiente para que fossem falsificáveis. 24 Retornarei a esse ponto, sugerindo uma interpretação do desenvolvimento da teoria do erro mais como uma advertência contra precisamente essa ilusão do que contra a possibilidade de conhecimento em geral. 186 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche Mas Nietzsche deixa claro que toda metáfora perceptual é “uma experiência única e original” (idem, p. 83). Então surge a questão se estamos originalmente cientes de que essas metáforas perceptuais são diferentes umas das outras (em oposição a ter apenas diferentes metáforas perceptuais). Nietzsche não é claro nessa questão, mas parece haver duas possibilidades. Primeiro, se o processo igualador de conceptualização é visto como consciente e intencional, então ele requer que toda metáfora perceptual deva, desde o início, ser percebida como diferente umas das outras. Caso contrário não seria simplesmente possível compará-las para formar um mínimo denominador comum possível (o conceito). Nesse caso, a existência de tal consciência reforça o aspecto anti-empirista do trato de Nietzsche com a percepção, no sentido de que a percepção da diferença como tal não pode ser explicada meramente pela posse de metáforas perceptuais diferentes25. Contudo, por essa medida, poder-se-ia argumentar (em linhas kantianas) que a ideia de que seja possível diferenciar entre particularidades perceptuais sem qualquer interferência conceptual seria duvidosa. Parece que, para que haja um sentido de diferença, é necessário uma estrutura conceptual mínima, incluindo conceitos gerais, por exemplo, quantidade, unidade e sucessão. Caso contrário metáforas perceptuais emergiriam de outras e seriam indistinguíveis. Isso toca em um problema que indiquei anteriormente, qual seja, a ideia de que é difícil entender como a imaginação poderia, sem o uso de qualquer conceito, ter a atividade formadora e individualizadora que Nietzsche lhe atribui. Embora seu conteúdo não possa ser totalmente articulado, as metáforas perceptuais originais não poderiam sustentar-se como “imagens” sem o uso, pelo menos, de conceitos categoriais. 25 Como se sabe, Kant fez uma objeção similar a Hume a respeito da sucessão: ter a percepção da sucessão, como claramente a temos, não é redutível a ter sucessivas percepções. cadernos Nietzche 29, 2011 187 Han-Pile, B. Uma forma de escapar desse problema é passar para a segunda possibilidade aludida acima, e conceber o processo igualador que resulta na formação de conceitos como inconsciente. Nesse caso não haveria a exigência de estar consciente das diferenças entre metáforas perceptuais. Motivados pela necessidade social, poderíamos simplesmente reagir inconscientemente a tais diferenças de uma maneira que progressivamente elas fossem reduzidas, de sorte que terminaríamos com representações estruturadas conceptualmente e assim comunicáveis. Esta pode ser uma visão completamente naturalística da formação de conceitos, em consonância com a insistência de Nietzsche no papel do hábito e da necessidade em sua gênese. Contudo, ela não se concilia facilmente com sua visão não empirista do papel desempenhado pela imaginação na formação de metáfora perceptuais, e também com outras afirmações que sugerem que a formação do edifício conceptual seria intencional, deliberada e consciente26. Além disso, se não houvesse consciência da diferença nas percepções por parte daquele que percebe, então é difícil determinar a perspectiva a partir da qual se poderia legitimamente dizer que elas são diferentes. A afirmação só poderia ser feita por uma terceira pessoa, do ponto de vista do filósofo (Nietzsche) que identifica, retrospectivamente, as diferenças na percepção e diagnostica a igualação. Mas como ele pode estar seguro de que essa identificação é legítima, e de que haveria realmente diferenças no início? Ele não está apenas descrevendo um passado longíquo, mítico, que ele diz ter sido “esquecido” (idem, pp. 84,86); ele está também assumindo que é possível descrever uma experiência em primeira pessoa (de possuir diferentes percepções, sem ser contudo consciente de suas diferenças) a partir de 26 “O homem agora se comporta sob o controle de abstrações. Ele não mais tolerará ser desviado por repentinas (...) intuições. Primeiro, ele universaliza essas impressões em conceitos desbotados, frios, de tal forma que ele possa lhes dar a condução de sua vida e ação” (NIETZSCHE 28, p. 84. Grifos meus). 188 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche uma perspectiva em terceira pessoa, o que torna problemático o caráter privado de tais percepções27. Poder-se-ia argumentar que ele está se apoiando numa analogia entre suas percepções correntes e aquelas atribuídas a homens originários, pré-conceptuais. Mas ele está claramente ciente das diferenças perceptuais. Mais ainda, o simples ato de descrever o processo transformaria a experiência original, se houvesse alguma. Assim, tanto a linguagem da descrição quanto a forma pela qual Nietzsche experiencia o mundo são agora incompatíveis com a experiência primitiva que ele está tentando descrever. Nesse caso, torna-se difícil fornecer qualquer argumento em favor da afirmação de que havia uma diferença no conteúdo perceptual que teria sido igualada inconscientemente, pois é impossível estabelecer a verdade da premissa. Na melhor das opções, todo o raciocínio pode ser visto como hipotético, o que não é a modalidade do discurso nietzschiano (ele é assertórico). Apesar dessas dificuldades, as duas linhas originais de argumentação de Nietzsche, ou seja, sua caracterização da experiência como “metáfora perceptiva” e seu endossamento do idealismo transcendental, unida à exigência não-kantiana de correspondência metafísica, são agora complementados por uma investigação protogenealógica das maneiras pelas quais o uso conceptual tornou-se necessário. Isso parece culminar em uma concepção bastante humiana da experiência: “mesmo a relação de um estímulo nervoso e a imagem gerada não é necessária. Mas quando a mesma imagem foi gerada milhões de vezes e transmitida por muitas gerações e finalmente aparece na mesma ocasião toda vez para toda a humanidade, então ela, no mínimo, adquire o mesmo sentido para os homens que ela teria se fosse a única imagem necessária e se a relação do estímulo nervoso original com a imagem gerada fosse estritamente causal” (idem, p. 87). Tendo esquecido tanto o papel 27 Lembrar que nessa hipótese não há elemento conceptual na percepção e nenhuma linguagem comum que pudesse fornecer a tais percepções um caráter público. cadernos Nietzche 29, 2011 189 Han-Pile, B. originalmente desempenhado pela imaginação na formação de metáforas perceptuais quanto o processo redutor por meio dos quais os conceitos são adquiridos, “convencemo-nos da eterna consistência, onipresença e infalibilidade das leis da natureza (ibidem). Prima facie, tanto a genealogia quanto sua conclusão parecem reforçar os elementos naturalísticos do pensamento de Nietzsche. De forma inesperada, contudo, elas resultam em uma visão substancialmente diferente e muito mais inclinada transcendentalmente da forma pela qual a experiência é experimentada agora, isto é, no final do processo descrito em “Verdade e mentira”. A principal diferença é esta: enquanto Nietzsche negava anteriormente a necessidade de qualquer espécie de estrutura a priori que obrigasse a formação de metáforas perceptuais, ele agora considera que “o processo artístico de formação de metáforas com que toda sensação começa em nós já pressupõe [essas] formas e assim ocorre no interior delas” (idem, p. 87, grifos meus). Essas formas são identificadas como “tempo, espaço e em consequência relações de sucessão e número” 28(ibidem). Outras passagens especificam que “espaço, tempo e o sentimento de causalidade parecem ter sido dados no decorrer da primeira sensação” (Nietzsche 25, p. 80. Grifos meus), ou ainda que “o múltiplo percebido já pressupõe espaço e tempo, sucessão e coexistência” (idem, p. 140. Grifos meus). Vale a pena atentar para duas coisas: primeiro, essas afirmações colocam Nietzsche ainda mais distante de uma posição empirista quanto à formação da experiência, na medida em que elas implicitamente rejeitam a ideia de tabula rasa. Enquanto a experiência repousar sobre alguma forma de estímulo sensorial, ela também requererá a existência de elementos a priori. Em todo momento em que experimentamos algo, as formas “já” estão lá, “dadas no decorrer da primeira sensação”. As formas não causam 28 (Possivelmente uma referência implícita aos axiomas da intuição, as antecipações da percepção e as analogias). 190 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche as sensações (como vimos, para Nietzsche, não se pode sequer dizer que os estímulos nervosos o façam). Do mesmo modo, sua anterioridade não é cronológica (não faria sentido dizer que as formas existiriam antes da experiência, já que relações de anterioridade e posterioridade só podem ser definidas a partir da perspectiva da experiência, isto é, de dentro da estrutura fornecida por tais formas). Embora elas não possam ser definidas isoladamente, elas não existem antes da experiência ou independentemente dela. Nietzsche parece pensar que elas dão forma a essa experiência (ao invés de a experiência meramente conformar-se a elas): assim, por causa delas, “transmitimos às coisas” suas propriedades (NIETZSCHE 28, p. 87). Isso pode motivar implicitamente (ou ao menos reforçar) sua afirmação de que o mundo tal como o percebemos não pode ser o mundo das coisas em si, e assim que o conhecimento humano, por definição, não consegue satisfazer a exigência de correspondência metafísica. Em segundo lugar, Nietzsche não parece distinguir fortemente, como Kant o faz, entre formas a priori da sensibilidade e conceitos puros do entendimento: tempo, espaço, causalidade, coexistência e sucessão (nenhuma das duas últimas são, estritamente falando, categorias) são colocados em um mesmo nível. Isso pode ser parcialmente causado pela influência de Schopenhauer (já que este incluía a causalidade, juntamente com o tempo e o espaço, em sua definição do princípio de razão suficiente). Isso também indica que, de fato, Nietzsche não pensa que seja possível considerar o conteúdo sensorial independentemente de alguma forma de conceptualização (havíamos visto que isso era um problema para sua concepção de que as metáforas perceptuais repousavam unicamente na imaginação). Contudo, tal conceptualização não deve ser vista como requisitando um uso de conceitos acabado, articulado verbal e conscientemente. Ao colocar causalidade, existência e sucessão no mesmo nível do tempo e espaço, Nietzsche parece sustentar que a percepção requer um mínimo de ordenamento, que não pode ser fornecido apenas pelo cadernos Nietzche 29, 2011 191 Han-Pile, B. tempo e pelo espaço. Temos de ser capazes de julgar que algumas impressões acontecem depois de outras no tempo. Como veremos, esse aspecto anti-empirista é reforçado na obra madura. Entretanto, embora pareçam transcendentais em sentido kantiano, as condições identificadas por Nietzsche não as são verdadeiramente. O cerne do procedimento genealógico é mostrar como elas foram adquiridas e como a forma com que percebemos o mundo consequentemente se modifica. Assim, em oposição à época em que a imaginação corria livre, “somos agora forçados a compreender todas as coisas unicamente por meio dessas formas” (NIETZSCHE 28, p. 87. Grifo meu). Além disso, a protogenealogia de Nietzsche indica que, já que a conceptualização surge de necessidades e foi fortalecida pelo hábito e pelo esquecimento (tanto da singularidade das metáforas perceptuais originais quanto do papel desempenhado pela imaginação), não há validação racional para a necessidade dessas formas: “produzimos essas representações [do tempo e do espaço] em e a partir de nós com a mesma necessidade [isto é, presume-se, a necessidade natural] com que a aranha tece” (NIETZSCHE 28, p. 87). Os elementos “transcendentais” da percepção possuem uma gênese empírica: eles têm sua condição de possibilidade causais no surgimento de novas práticas (tais como a vida social) e sua necessidade é apenas relativa a essas práticas. Assim, embora a posição de Nietzsche em relação à forma corrente com que experienciamos o mundo não seja certamente empirista, ela não é verdadeiramente transcendental. Para mostrar sua especificidade, pode ser útil remeter à distinção de Mark Sacks entre restrições (constraints) transcendentais e características (features) transcendentais (SACKS 32, pp. 211-18). As primeiras indicam a “dependência de possibilidades empíricas para com uma estrutura não-empírica” (idem, 213). Neste caso, as condições de constituição da experiência são definidas isolada e antecipadamente em relação àquilo que elas determinam (como a organização transcendental das faculdades pode, em Kant, ser estabelecida por completo independentemente da experiência, e como essa experiência deve 192 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche se conformar a elas). Isso torna possível, ao menos em teoria, assegurar inteiramente a possibilidade de conhecimento objetivo, isto é, de forma universal. Não teria sentido pensar em uma mudança nas restrições transcendentais, o que resultaria em uma mudança da experiência; ao contrário, são elas que nos permitem pensar na possibilidade da sucessão (e assim de mudança) e identificá-la na experiência. Em contraste, características transcendentais “indicam limitações implicitamente determinadas por opções de práticas disponíveis (...) para as quais outras alternativas não podem ser inteligíveis para aqueles nelas engajados” (ibidem). Afirmar que existem tais características é rejeitar a concepção empirista (ou naturalista) de que a experiência é resultado de processos inteiramente associativos que, em última instância, dependem de causas físicas (como mudanças no meio ambiente ou na neurofisiologia do cérebro). Isso contribui para o seu aspecto transcendental: elas operam como restrições transcendentais na medida em que elas delimitam a estrutura com que a experiência tem de conformar para que conte como experiência. Contudo, elas só podem ser consideradas a priori a partir de uma perspectiva sincrônica, induzida artificialmente, se se olha para a experiência no instante T e se pesquisa, de forma descontextualizada, sobre a estrutura necessária dessa experiência. Em última instância, elas têm de ser relocadas para o interior de uma posição diacrônica (no caso, o projeto protogenealógico de Nietzsche) que mostre que sua gênese é dependente de mudanças nas práticas empíricas (tais como o aparecimento da necessidade de veracidade em “Verdade e mentira”). Assim, contrariamente às restrições, as características transcendentais podem garantir a possibilidade de objetividade apenas de forma limitada, no interior do contexto de opções de práticas. Se as práticas se modificam, o mesmo ocorrerá com as características transcendentais, que, no final das contas, nada mais são “que uma sombra de necessidade iluminada por quaisquer práticas que sejam correntes” (ibidem). Parece que isso capta muito mais o espírito da concepção de Nietzsche: há algumas condições de conhecimento aparentemente cadernos Nietzche 29, 2011 193 Han-Pile, B. não-empíricas, mas que são, no final das contas, dependentes de circunstâncias empíricas. De um lado, a filosofia tem de “revelar as precondições que determinam o processo da razão” (Nachlass/FP 1886, 7[63], KSA 12.317-8), tais como as “categorias”, “o espaço euclidiano” (XIII, 14[152]) ou “a lei a priori da causalidade” (Nachlass/FP 1884, 26[74], KSA 11.168)29. Essas precondições operam de uma forma transcendental na medida em que sua validade não pode ser verificada por meios empíricos (já que tal prova pressuporia seu uso), e porque é impossível identificá-las com qualquer conjunto de práticas (Assim, embora “Verdade e mentira” sugira que elas apareceram no decorrer de novas práticas, elas não são idênticas a essas práticas). No entanto, por outro lado, “o modo pelo qual conhecemos e formamos conhecimento é ele mesmo parte de nossas condições de existência: mas (...) essa condição factual de existência pode ser apenas fortuita e de maneira nenhuma necessária” (Nachlass/FP 1884, 26[127], KSA 11.183-4). Os primeiros grifos são meus). Do mesmo modo, essas condições não são racionalmente justificáveis, mas fundadas na crença: sua necessidade é psicológica, e as verdade que elas propiciam são apenas “condicionais” (Nachlass/FP 1888, 14[152], KSA 13.333-5). Assim, enquanto tanto Nietzsche quanto Kant são inclinados transcendentalmente, na medida em que eles possuem uma concepção não-empírica da experiência e concordam que ela necessariamente pressupõe a utilização de uma estrutura espaço-temporal, Kant vê esta como uma restrição, e Nietzsche como uma característica. Isso tem duas consequências: primeiro, isso torna ainda mais difícil dizer se Nietzsche deve ser visto como um naturalista ou como um filósofo transcendentalista. A razão disso é que há uma instabilidade (ou reversibilidade) intrínseca na noção de características transcendentais: sua existência pode ser vista igualmente como um argumento para o filósofo transcendental (na medida em 29 Todas as traduções do Nachlass são minhas. 194 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche que a constituição da experiência se conforma a elementos a priori que não são determinados pela psicologia empírica e pela neurofisiologia) e para o naturalista (na medida em que esses elementos não são a priori no sentido forte de restrições, já que eles dependem, no final das contas, de práticas contingentes que poderiam, elas mesmas, ser determinadas de uma forma naturalística, especialmente se se for um naturalista “suave”). Pode-se insistir ou no intuito anti-empirista de tal consideração da experiência, ou no fato de que o a priori, sendo enraizado empiricamente, não é nem universal nem necessário, da maneira não-causal, não-psicológica, requerida pelas restrições transcendentais. Além disso, a protogenealogia de Nietzsche sugere tanto que a possibilidade de conhecimento é contingente em relação à existência de uma estrutura específica quanto que essa estrutura pode ser revista se as condições de experiência se modificam (e, de fato, ela já foi revista), algo que um verdadeiro filósofo transcendental não aceita. Em segundo lugar (e de forma correlata), uma ambiguidade similar é transferida para a relação entre características transcendentais e objetividade. A vantagem do ponto de vista transcendental em relação a um inteiramente empirista ou naturalista é que, se ele alcança sucesso, ele pode garantir a priori a possibilidade de concordância entre a experiência e seus objetos. Em tal posição, a experiência pode cessar (ou não acontecer), mas não deixa de se conformar às suas condições a priori. A possibilidade de tal conformidade é preservada pela noção de características transcendentais, mas de uma maneira mais limitada: elas garantem que, em um dado momento, e sob certas condições empíricas, haverá harmonia entre as condições sob as quais conhecemos e a estrutura dos objetos que podemos conhecer. Mas caso o contexto empírico se modifique, outras formas de conhecimento e outros objetos aparecerão (como, em “Verdade e mentira”, objetos espaço-temporais relacionados causalmente se opõem às metáforas perceptuais originais). Conhecimento objetivo é agora possível, mas ele não é universal. Enquanto o caráter singular e aleatoriamente formado das metáforas perceptuais tornou cadernos Nietzche 29, 2011 195 Han-Pile, B. impossível que nossas representações fossem reguladas por qualquer regra e que nós tivéssemos um mundo perceptivo compartilhado, agora a utilização de formas e conceitos a priori pode, em princípio, garantir a possibilidade de uma concordância entre as condições sob as quais percebemos e o mundo percebido. Nietzsche está bastante ciente disso: “toda aquela conformidade à lei, que tanto nos impressiona no movimento dos astros e nos processos químicos, coincide no fundo com aquelas propriedades que nós colocamos nas coisas” (NIETZSCHE 28, p. 87). Ou ainda: “em todas as coisas nada compreendemos senão essas formas. Pois elas podem sustentar, no interior delas mesmas, as leis do número” (idem). Contudo, devido ao seu compromisso, de um lado, com o idealismo transcendental e sua exigência de correspondência metafísica e, de outro, com a sua tese da falsificação, essa tentativa aberta para a objetividade aborta imediatamente: Assim, “nós pressupomos que a natureza se comporta de acordo com tal conceito. Mas, nesse caso, primeiro a natureza e depois os conceitos são antropomórficos (...). A isso não corresponde a essência das coisas: é um processo de conhecimento que não toca na essência das coisas” (NIETZSCHE 25, p. 150). Mas, caso esse compromisso com o realismo metafísico ontológico e com sua teoria do erro desaparecesse, isso deixaria, em princípio, espaço para uma forma relativizada de objetividade no interior de uma estrutura de traços transcendentais naturalizados. III. Agora eu gostaria de observar as formas pelas quais os temas que tiveram lugar em “Verdade e mentira” se desenvolvem nos períodos intermediário e final de Nietzsche. Como antes, o que mais me interessa é a relação entre elementos naturalistas, aspectos transcendentais e suas assunções ontológicas. Eu enfocarei portanto três questões principais: a) a alegada rejeição de Nietzsche do idealismo transcendental e dos tipos de compromissos ontológicos 196 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche (se há algum) que se seguem dele, b) sua interpretação das características transcendentais como “condições de vida” perspectivas, e c) se ele pode ser resgatado da ameaça posta pela teoria do erro. Como foi apontado por Clark e Leiter, a partir de Humano, demasiado humano Nietzsche parece crescentemente incrédulo para com afirmações ontológicas, apresentando dois argumentos distintos: primeiro, de uma forma quase allisoniana, ele identifica a possibilidade de um reino numênico como o correlato analítico da noção de condições perspectivas. Assim, “é verdade que poderia haver um mundo metafísico: sua possibilidade absoluta é difícil de ser questionada. Nós enxergamos o mundo através da cabeça humana e não podemos decepá-la; contudo, ainda permanece a questão de que mundo poderia restar, se ela fosse decepada [isto é, se colocássemos em parênteses nossas condições epistêmicas] (MAI/ HHI 9, KSA 2.29-30. Grifos meus). Contudo, Nietzsche argumenta que, embora tal existência possa ser legitimamente concebida, ela não é de importância alguma para nós, porque, por definição, não podemos conhecer nada de tal mundo que fizesse diferença para nossas vidas: “Nada se pode afirmar do mundo metafísico, exceto que ele seria um ser outro, um inacessível e incompreensível ser outro; ele seria uma coisa com qualidades negativas (...). Seu conhecimento seria ainda mais inútil do que o conhecimento químico da água deve ser para um marinheiro em risco de naufrágio” (idem). Assim, Nietzsche parece passar implicitamente de uma interpretação forte do idealismo transcendental para uma mais deflacionária, baseada no númeno como um conceito puramente negativo, para apontar em seguida, pragmaticamente, que essa possibilidade não deveria nos dizer respeito, por ser irrelevante para nós. A ideia subjacente parece ser que, enquanto a interpretação forte do idealismo transcendental é relevante por suas nefastas implicações morais (e por isso deve ser rejeitada), essa concepção deflacionada pode se sustentar, por ser tão vazia quanto inofensiva. A esse argumento, Nietzsche acrescenta um segundo, mais ambíguo: “como se aqui o conhecimento apreendesse o objeto de forma pura e nua cadernos Nietzche 29, 2011 197 Han-Pile, B. como a ‘coisa em si’, sem qualquer falsificação por parte do sujeito ou do objeto! (...) Mas a ‘coisa em si’ envolve uma contradictio in adjecto” (JGB/BM 16, KSA 5.29.30). A primeira parte da citação sugere que a ideia de que podemos conhecer a coisa em si é contraditória (o que certamente se segue do seu conceito, a não ser que esse conhecimento seja inferido analiticamente da definição de tal coisa); mas a conclusão sugere que é a própria noção de uma coisa em si é contraditória. Clark expõe essa contradição da seguinte maneira: “não podemos ter conceito algum, ou somente um contraditório, de algo que seria independente de todo aquele que conhece, e consequentemente de toda conceptualização, porque conceber algo é concebê-lo como satisfazendo uma descrição ou outra, o que é pensar nele como sendo concebível de uma maneira ou outra” (CLARK 5, pp. 46-7). Contudo, esse comentário só funciona ao preço de introduzir implicitamente uma concepção diferente de coisa em si daquela presente em Humano, demasiado humano. Lá Nietzsche sugere que o mundo metafísico é apenas o correlato da colocação entre parênteses das características transcendentais que são relevantes para nós (o que permanece se “nossa cabeça for decepada”), não a colocação entre parênteses de qualquer condição epistêmica. Para remodelar isso no vocabulário último do perspectivismo, a primeira ideia é a de que as coisas em si são coisas consideradas independentemente de nossa perspectiva; mas uma contradictio in adjecto só pode ocorrer se as coisas em si forem pensadas como inteiramente extraperspectivas. Somente assim se torna possível argumentar, como Clark o faz, que a própria existência da definição pressupõe uma perspectiva da qual ela se origina, e que portanto há uma contradição latente entre o definiens e a natureza do definiendum. Prima facie, posteriormente Nietzsche faz um movimento nessa direção, quando ele afirma que uma “coisa” (tanto em sentido tradicional, como substância, quanto no sentido mais kantiano de uma coisa em si) nada mais é que “a soma de seus efeitos” (Nachlass/FP 1888, 14[98], KSA 13.274-6). De acordo com essa lógica, “a ‘coisa 198 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche em si’ é de fato um contrassenso, Se removermos todas as relações, todas as propriedades, todas as atividades de uma coisa, nada resta da coisa” (Nachlass/FP 1887, 10[202], KSA 12.580). Como apontou Poellner, pode-se duvidar que esse argumento se aplicaria realmente a Kant30; em todo o caso, ele foi claramente elaborado para negar a possibilidade de um realismo metafísico ontológico forte, por invalidar a afirmação de que haja uma maneira pela qual as coisas são em si mesmas. Assim, “a ‘coisa em si’ é mesmo uma concepção absurda: uma ‘constituição em si’, um contrassenso: possuímos os conceitos de ‘ser’, ‘coisa’, apenas como conceitos relacionais” (Nachlass/FP 1888, 14[103], KSA 13.280). Contudo, não se segue disso que não teria sentido perguntar, como o próprio Nietzsche o fez em Humano, demasiado humano, se algum X permaneceria se nossas condições perspectivas fossem colocadas entre parênteses. Embora tenha sido rejeitada a ideia de que tal X pudesse possuir uma essência autossubsistente, definível independentemente de qualquer perspectiva, e embora nós não pudéssemos dizer nada de positivo sobre ela, poderia haver outras perspectivas a partir das quais esse X pudesse ser considerado. É muito interessante que esta própria possibilidade seja considerada por uma passagem da Gaia ciência, em termos estritamente similares àquela de Humano, demasiado humano: “Até onde se estende o caráter perspectivo de nossa existência ou mesmo se a existência possua outro caráter que este (...) – isso não pode ser decidido nem pela análise e pelo auto-exame do intelecto mais industriosos e escrupulosamente conscienciosos: (...) pois não podemos olhar em volta de nossa própria esquina (...). Mas posso pensar que hoje estamos pelo menos distantes da ridícula imodéstia de decretar da nossa esquina que só são permitidas perspectivas desta esquina” (FW/GC 374, KSA 3.626). Assim, o projeto crítico (o “auto-exame do intelecto escrupulosamente consciencioso”) pode apenas nos levar aos limites de 30 (POELLNER 30, p. 96n20). cadernos Nietzche 29, 2011 199 Han-Pile, B. nossa própria perspectiva: não podemos transcender as condições por meio das quais nossa experiência é estruturada. Contudo, essa crítica também revela que nossa perspectiva não é a única possível, embora seja a única que podemos entender. Assim, “Permita-nos dizer que [o que ‘nós mais acreditamos, todo a priori’] apresenta-se ele mesmo como uma condição de existência para a nossa espécie – um tipo de hipótese fundamental. Por isso outros seres poderiam formular outras hipóteses, de quatro dimensões, por exemplo” (Nachlass/FP 1884, 25[307], KSA 11.89). É concebível que poderia haver uma pluralidade de perspectivas, cada uma com sua própria espécie de condições a priori (assim, “alguns seres poderiam experimentar o tempo de trás para frente, ou alternadamente para frente e para trás” (FW/GC 374, KSA 3.626-7)), que fossem incomensuráveis: “é provável que haja numerosos tipos de inteligência, mas cada uma possui suas próprias leis que tornam impossível para elas representar uma outra lei” (Nachlass/FP 1881, 11[291], KSA 9.553). A existência dessas outras perspectivas é o que basta para garantir um compromisso ontológico mínimo com a possibilidade de haver algum X considerado independentemente de nós, mas não de qualquer perspectiva. O mais importante, contudo, é que Nietzsche não diz que há tal X, mas somente que o perspectivismo permite-nos conceber tal possibilidade. Assim, sua posição na obra madura é mais sutil do que usualmente se considera: embora ele rejeite a noção de coisas em si mesmas como sobredeterminada, ele não faz a afirmação (igualmente forte) de que se as condições que estruturam nossa experiência fossem colocadas entre parênteses, nada restaria. Por contraste, sua crítica às coisas em si mesmas e ao fato de ele reconhecer a possibilidade de uma pluralidade de condições perspectivas (em oposição a restrições únicas, universais) o conduz a permanecer agnóstico em relação a compromissos ontológicos. É importante o fato de que isso remove uma das bases de sua teoria do erro: se, ao colocarmos entre parênteses nossas 200 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche condições epistêmicas, o que restar não “terá nenhuma constituição em si mesma”, então a correspondência metafísica não pode ser uma exigência31. Essa reflexão sutil sobre os compromissos ontológicos do idealismo transcendental é acompanhada por um aprofundamento do entendimento de Nietzsche das características transcendentais, agora interpretadas como parte de condições perspectivas que tornam possíveis a experiência humana e a vida32. Assim, “a crença na verdade [dos juízos sintéticos a priori] é necessária, como uma crença de fachada e uma evidência visual pertencentes à ótica perspectiva da vida” (JGB/BM 11, KSA 5.24-6). A existência de características transcendentais é o motivo pelo qual, embora toda perspectiva particular de um indivíduo empírico possa variar a depender de suas idiossincrasias, seus interesses e sua situação, todos os objetos que são destacados pelas perspectivas humanas compartilham alguns poucos traços comuns – em particular, ser espaço-temporais, ter uma ordem objetiva de sucessão, ser interconectados pela lei da causalidade33. Contudo, justamente como 31 Em virtude da incomensurabilidade entre as perspectivas, não faria sentido sequer requerer que o conhecimento empírico que formamos devesse ser válido interperspectivamente. O correlato implícito do multiperspectivismo de Nietzsche parece ser uma forma de plurirrealismo empírico, no qual diferentes entidades seriam destacadas de acordo com diferentes conjuntos de características transcendentais. Assim, ao invés do “mundo (metafísico) verdadeiro”, deveríamos “asserir a existência de ‘x’ mundos (...). Mas isso nunca foi asserido” (Nachlass/FP 1888, 14[168], KSA 13.350-1). 32 Embora nenhuma perspectiva humana fosse possível sem o uso de características transcendentais, há mais na noção de perspectiva do que esse uso. Como foi indicado por Poellner (seguindo Leiter), conhecer um objeto de uma perspectiva também significa conhecê-lo “do ponto de vista de interesses e necessidades particulares” (POELLNER 30, p. 99). Assim, embora cada perspectiva específica pressuporá, por definição, o uso de características transcendentais prevalecentes em um momento particular, o tipo de objeto que ela enfatiza a depende dos interesses do indivíduo que representa. 33 Cf. POELLNER 30, pp.88-98. Todos os objetos espaço-temporais têm características que os assinalam como representados (“o que ele chama tese da dependência da representação”). cadernos Nietzche 29, 2011 201 Han-Pile, B. na sua obra anterior, Nietzsche parece desconfortável com essa ideia. Esse descontentamento é expresso por várias asserções que sugerem que nosso conhecimento, embora baseado em crenças inevitáveis, poderia, apesar disso, ser, ou mesmo seja, um ‘erro’”34. Tal afirmação é tanto ambígua quanto problemática. Se lida literalmente, ela ameaça a própria posição de Nietzsche de três diferentes formas: primeiro, como foi visto pela maioria dos comentadores, ela cria um problema de autorreferência potencialmente fatal. Em segundo lugar, ela parece tornar inútil a reinterpretação de Nietzsche de Kant e sua naturalização das restrições transcendentais em características transcendentais, na medida em que ela torna a epistemologia resultante incapaz de dar conta até da possibilidade de representações objetivas limitadas. Em terceiro lugar (como veremos em seguida), a interpretação literal da teoria do erro nos exigiria a reintrodução justamente do tipo de compromissos ontológicos substantivos dos quais Nietzsche tentou se distanciar. Em virtude dessas dificuldades, é forte a tentação de ou desconsiderá-la, como o faz Clark e Leiter sugere, ou minimizá-la, como o faz Nehamas (NEHAMAS 19, p.51)35. Resistirei, contudo, a ambas as tentações e sugerirei que a teoria do erro não deve ser tomada literalmente, mas sim vista como uma advertência deliberadamente hiperbólica 34 Para a versão mais fraca da teoria do erro, ver, por exemplo, FW/GC 121, KSA 3.115 (“a vida não é argumento. As condições da vida podem incluir o erro”). Nachlass/FP 1885, 38[3], KSA 11.597-8 (“Uma crença pode ser condição da vida e apesar disso ser falsa”), Nachlass/FP 1886/1887I, 7[63], KSA 12.317-8 (“uma crença, apesar de ser necessária para preservação de uma espécie, nada tem a ver com a verdade”), Nachlass/FP 1884, 26[12], KSA 11.152-3 (ver corpo do texto), Nachlass/FP 1888, 14[152], KSA 13.333-5 (idem). Para uma versão mais forte, ver: MAI/HHI 11, KSA 42-3, JGB/BM 24, KSA 5.41-2, GD/CI: A “razão” na filosofia 5, Nachlass/FP 1885, 34[253], KSA 11.506 (“a verdade é um tipo de erro sem o qual certas espécies não poderiam viver”, Nachlass/FP 1885, 40[13], KSA 11.633-4 (“a vontade de verdade lógica só pode ser satisfeita depois de uma falsificação fundamental de todos os eventos”, Nachlass/FP 1887, 9[89]), KSA 9.39. 35 Assim, a teoria do erro expressaria justamente a ausência de uma perspectiva do olho de Deus. 202 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche contra formas ingênuas de realismo e transcendentalismo, a qual, em contrapartida, serve para reforçar a importância da própria naturalização de Nietzsche do transcendental. Antes de desenvolver esse argumento, olhemos com maior detalhe a interpretação literal da teoria do erro: ela é alimentada por dois argumentos distintos que aprofundam a naturalização de Nietzsche do transcendental. Como foi visto por Stack, o primeiro repousa em seu uso da psicologia evolucionista. Enquanto ele admite que nossa experiência pressupõe certas condições a priori sem as quais ela não poderia ser a experiência que é, Nietzsche agora dá uma guinada darwiniana36 nessas condições: elas são “condições de vida”, no duplo sentido de que elas evoluíram com nossas formas de vida e de que são requeridas para que essa vida se mantenha e se desenvolva. Assim, “se estabelecermos o que é necessário de acordo com a nossa forma corrente de pensar, teremos provado (...) somente o que ‘torna possível’ nossa existência em virtude da experiência – e esse processo está tão arraigado que tentar se livrar dele é impossível. Qualquer a priori se localiza nele” (Nachlass/ FP IX, 11[286]). Então, enquanto Kant começava pela experiência e perguntava pelas condições não-empíricas que a “tornavam possível” em sentido transcendental, Nietzsche recontextualiza tais condições no interior de uma perceptiva evolucionista e sugere ironicamente que ter uma certa forma de experiência (o que pressupõe essas condições “a priori”) é o que “torna possível” (em sentido causal, dessa vez) a vida humana, e portanto evoluiu (juntamente com suas condições a priori) para preservar e promover essa vida. Em termos simples, tornamo-nos programados para usar conceitos e formas “a priori’ e para acreditar na realidade dos objetos resultantes; mas a existência da tal programação não é garantia para a verdade do juízo resultante. Assim, “já é tempo de recolocar 36 Como foi argumentado por Richardson 31, na maioria das vezes Nietzsche está de fato de acordo com Darwin, rejeitando apenas versões vulgares do darwinismo. cadernos Nietzche 29, 2011 203 Han-Pile, B. a questão kantiana, ‘como são possíveis os juízos sintéticos a priori’ por outra questão, ‘por que é necessária a crença em tais juízos’, – e compreender que temos de acreditar na verdade de tais juízos, para a preservação de criaturas como nós; embora eles pudessem, é claro, ser totalmente falsos!” (JGB/BM 11, KSA 5.24-6). Outra passagem desenvolve uma ideia similar: “a lei da causalidade a priori – que se creia nela pode ser uma condição de existência para nossa espécie; pois ela não é provada” (Nachlass/FP 1884, 26[74], KSA 11.168)37. As condições de possibilidade da experiência são, no final das contas, “condições de existência”: sua necessidade é apenas relativa à nossa necessidade de nelas crer, e sua “verdade” reflete apenas as condições empíricas das quais elas resultam. Contudo, tal argumento não é decisivo: não se segue dessa naturalização darwiniana do transcendental que nosso conhecimento seja falso – e, em muitas passagens, incluindo a citação acima, o próprio Nietzsche é cuidadoso em sugerir apenas que poderia ser o caso. Disso tudo se segue que não é a verdade em sentido absoluto, universal, que seria garantida por restrições transcendentais. O segundo argumento para a interpretação literal da teoria do erro se baseia em uma outra naturalização do transcendental, dessa vez através de uma análise da linguagem que naturaliza as categorias kantianas. Nietzsche não contesta que tais conceitos como “substancia” e “causalidade” são pressupostos na forma com que experienciamos o mundo. Contudo, contrariamente a Kant (e em uma linha no espírito ao argumento anterior presente em “Verdade e mentira”), ele não vê tais conceitos como verdadeiramente a priori: ele traça sua gênese na existência de aspectos gramaticais específicos presentes em todas as línguas indo-europeias, em particular 37 Cf. também Nachlass/FP 1884, 26[12], KSA 11.152-3: “as verdades a priori mais fortemente acreditadas são para mim – assunções provisórias, isto é, a lei da causalidade (...), tanto que uma parte de nós que não acreditasse nela destruiria a raça. Mas elas são verdadeiras por essas razões? Como se a preservação do homem fosse prova da verdade”. 204 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche nas estruturas sujeito/objeto e voz ativa/passiva (das quais derivariam respectivamente as noções de sujeito e substância, de um lado, e de causalidade, de outro). Assim, “postular como ‘verdade a priori’ nossa crença no conceito de substância (...) é simplesmente a formulação de nosso hábito gramatical que adiciona um agente para cada ação” (Nachlass/FP 1887, 10[158], KSA 12.549); em outras palavras, “o conceito de substância é consequência da noção de sujeito [gramatical]” (Nachlass/FP 1887, 10[19] KSA 12.465)38. De forma mais geral, somos governados por nossa “fé na gramática” (GD/CI, Os quatro grandes erros 5, KSA 6.93; cf. GD/CI, A “razão” na filosofia 5, KSA 6.77-8). O que Nietzsche aponta aqui não é simplesmente que quando nós falamos de “coisas”, “sujeitos” ou “causas”, nós projetamos na realidade estruturas gramaticais que são estranhas a ela. A ideia é a de que a própria forma através da qual experienciamos o mundo e individualizamos objetos (anteriormente a qualquer articulação verbal), sendo estruturada por categorias, é, em última instância, confirmada por uma gramática de um conjunto específico e contingente de línguas. “Nosso próprio pensamento já envolve essa crença (com sua distinção de substância, acidente; agente, ato, etc.). Avançar para além disso significa não mais poder pensar” (Nachlass/FP 1887, 7[63], KSA 12.317-8). De uma maneira que antecipa a virada linguística na filosofia analítica, Nietzsche argumenta que a estrutura de nossa língua conforma nossa percepção do mundo. Percebemos o que tomamos por “coisas” existindo independentemente, interagindo causalmente umas com as outras; mas tal percepção reflete apenas o fato de que nossa experiência torna-se possível através de conceitos que, 38 Cf. também 631; “a separação da ‘ação’ do ‘agente’, (...) do processo de algo que não é processo, mas uma substância que permanece, coisas, corpo, alma, etc. – a tentativa de compreender um evento como uma espécie de mudança e lugar – modificação a partir de um ‘ser’, de algo constante: essa antiga mitologia estabeleceu a crença em ‘causa e efeito’, depois de ter encontrado uma forma firme nas funções da linguagem e da gramática”. cadernos Nietzche 29, 2011 205 Han-Pile, B. eles mesmos, resultam da reificação inconsciente de estruturas gramaticais. Assim, “arranjamos um mundo em que podemos viver – ao postular corpos (...), causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem esses artigos de fé ninguém poderia manter-se na existência” (FW/GC 121, KSA 3.115). Dois pontos são dignos de nota: primeiramente, como acima, a naturalização das categorias não leva per se à conclusão de que nosso conhecimento é errôneo, mas apenas que sua natureza e propósito são dependentes das espécies de condições linguísticas que o determinam. O fato de só podermos perceber as coisas interagindo causalmente entre si não significa per se que nossa percepção esteja errada: significa apenas que ela depende de nosso uso da causalidade como categoria, que ela mesma se deve à característica específica de nossa gramática. Em segundo lugar, em muitas citações o que Nietzsche parece mais objetar não é tanto nosso uso da gramática (e assim a existência de características transcendentais), mas o fato de não estarmos cônscios das admissões e consequências da tal uso. Como veremos, isso aponta para uma forma mais frutífera de interpretar a teoria do erro. Ainda assim, não há dúvida de que a naturalização de Nietzsche do transcendental o conduz a expressar um ceticismo a respeito do conhecimento humano. Contudo, como foi acima indicado, nenhum dos argumentos oferecidos leva per se à conclusão de que todo conhecimento é errôneo. Para a interpretação literal da teoria do erro validar tal conclusão, duas premissas adicionais são necessárias, quais sejam: a) que o mundo seja de outra forma daquela que o constituímos e b) que nosso conhecimento não consegue corresponder a ele. Se isso pode dar bons resultados depende, em contrapartida, de como a premissa a) é concebida, isto é, da natureza desse alegado mundo falsificado: os próprios textos de Nietzsche conduzem a duas interpretações possíveis – fenomenológica e ontológica. Antes de apresentar minha própria conclusão da leitura não-literal da teoria do erro, eu oferecerei agora uma breve reductio ad absurdum dessas duas possibilidades, mostrando que nenhuma delas pode ser aceita sem deixar Nietzsche comprometido com inconsistências grosseiras. 206 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche A primeira candidata, a fenomenológica, é o que Nietzsche chama de “confusão e caos das impressões sensíveis” (Nachlass/ FP 1887, 9[106], KSA 12.395-6): Assim, “há em nós um poder de ordenar, simplificar, falsificar, distinguir artificialmente. ‘Verdade’ é a vontade de se assenhorar de uma multiplicidade de sensações” (Nachlass/FP 1887, 9[89]), KSA 12.38239. Como foi acima indicado, a ideia é a de que só podemos perceber um mundo que foi ordenado com objetos espaço-temporais, idênticos a si mesmos e relacionados causalmente. Esse “mundo de ‘fenômenos’ é um mundo adaptado, que sentimos como real” (Nachlass/FP1887, 9[106], KSA 12.395-6). Mas tal realidade é uma mera ilusão. Em contraste, “a antítese desse mundo não é o ‘mundo verdadeiro’, mas o amorfo e informulável mundo do caos das sensações” (idem, grifos meus). Essa interpretação da teoria do erro não repousa em assunções metafísicas sobre uma realidade independente da mente, a qual nossa percepção não consegue conformar. Ela parece ser uma nova versão da ideia já presente em “Verdade e mentira”, segundo a qual o uso de conceitos é, per se, falsificador. Em “Verdade e mentira”, a concepção era a de que os conceitos resultam da igualação das diferenças entre várias metáforas perceptuais, formadas não-conceptualmente. Aqui Nietzsche oferece uma afirmação contrária: o uso a priori de conceitos simplifica o fluxo primitivo de dados sensíveis rudimentares que subjaz à percepção sensível. Talvez a melhor maneira de dar sentido a essa ideia é pensar nela em termos husserlianos e sugerir que tal fluxo primitivo de impressões pode ser entendido como a “hyle” da percepção, os “conteúdos sensíveis” (HUSSERL 14, § 85), que são associados por meio de sínteses temporais e espaciais (síntese passiva em Experiência e juízo), e unidos ativamente em objetos intencionais por meio dos atos “doadores de sentido” da mente. Contudo, na concepção de 39Tal leitura fenomenológica é evocada, por exemplo, por GRANIER 10, p. 137; WILCOX 36, pp. 133, 149; e STACK 34, p. 35. cadernos Nietzche 29, 2011 207 Han-Pile, B. Husserl, esses conteúdos sensíveis não são dados sensíveis no sentido de que eles não são objetos da consciência (isto requereria uma função noética); além disso, eles nunca são dados por eles mesmos (já que, para Husserl, só nos apercebemos de um todo intencional). Eles são aspectos dependentes da experiência consciente, dos quais só se pode aproximar retrospectivamente, através da introspecção e por meio de procedimentos técnicos como a epoché e a redução transcendental. Contudo, tanto quanto podemos tentar, tais procedimentos reflexivos só são capazes de nos dar acesso a unidades sintéticas. Assim, mesmo que possam existir tais coisas como uma camada hílica, ela não possui existência independente e não pode ser descrita adequadamente, mas apenas evocada por contraste com níveis intencionais superiores, de uma forma abstrata. As concepções de Nietzsche parecem próximas às de Husserl no sentido de que, como já vimos, ele rejeita que possamos estar conscientes de dados sensíveis brutos registrados de forma passiva pela mente. Assim, “a experiência interior só entra na consciência depois de ter encontrado uma linguagem que o indivíduo entende” (Nachlass/FP 1888, 15[90], KSA 13.458-9). Como em Husserl, tal processo possui camadas de níveis superiores: para nós experienciarmos alguma coisa, “ela tem de ser experimentada como adaptada, como ‘reconhecível’. A matéria dos sentidos [é] adaptada pelo entendimento, reduzida a rudes contornos, feita similar” (Nachlass/ FP 1887, 9[106], KSA 12.395-6). Mas há também camadas inferiores, que parecem próximas da síntese passiva de homogeneidade husserliana: “não haveria juízo algum se uma espécie de igualação não fosse exercida no interior da sensação” (Nachlass/FP 1885, 40[15], KSA 11.634-5). Novamente, assim como em Husserl (e presumivelmente pela mesma razão), tal camada primária é inacessível à consciência: é “uma outra espécie de mundo fenomênico, uma espécie para nós ‘incognoscível’” (Nachlass/FP 1887, 9[106], KSA 12.295-6). Contudo, se essa posição for correta, então é difícil entender como a tese da falsificação pode se manter (e Husserl certamente não deriva essa conclusão de seu estudo da percepção). 208 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche A razão disso é que presumivelmente algo só pode ser falsificado se dele puder ser dito que existe independentemente e possui características intrínsecas identificáveis, que são posteriormente distorcidas de um tal modo que, em comparação como o original, podemos apontar a falsificação. Contudo, nem do ponto de vista de Nietzsche nem do de Husserl, camadas primárias da percepção existem por si mesmas: além disso, devido à forma pela qual nossa mente opera, seria impossível para nós saber como elas seriam, e portanto julgar se e como elas teriam sido falsificadas. O segundo candidato, ontológico, para aquilo que se alega ser falsificado pelo conhecimento é o ‘mundo do vir-a-ser”40. Segundo Nietzsche, esse mundo “não poderia, em sentido estrito, ser ‘compreendido’ ou ‘apreendido’ ou ‘conhecido’; somente à medida que o intelecto que ‘compreende’ e ‘conhece’ encontra um mundo grosseiro, já criado, fabricado a partir de meras aparências, mas que se torna firme na medida em que essa espécie de aparência preservou a vida, somente nessa medida há ‘conhecimento’” (XI, 36[23]). Essa segunda versão da tese da falsificação tanto difere como complementa a anterior. Ela compartilha a ideia de que a experiência nos apresenta um mundo de idealidades, cuja estabilidade se faz necessária para nossas necessidades práticas: assim, “nossas necessidades fizeram nossos sentidos tão precisos que ‘o mesmo mundo aparente’ sempre reaparece, adquirindo assim a aparência de realidade” (Nachlass/FP 1887, 9[144], KSA 12.417-8). O novo elemento é que, desta vez, o objeto de falsificação não é mais imanente à experiência, da maneira como o ‘caos das sensações’ parecia ser. O que é falsificado é um mundo independente da mente, um mundo heraclitiano do fluxo perpétuo, que muda tão rapidamente que não pode ser dito de algo sequer que ele seja idêntico 40 Para leituras ontológicas do “mundo do vir-a-ser”, ver DANTO 7, pp.89, 96-97; GRIMM 12, pp. 30-32; e MAGNUS 18, pp. 25, 169. cadernos Nietzche 29, 2011 209 Han-Pile, B. a si mesmo41: “o caráter do mundo, contudo, é o caos por toda a eternidade” (FW/GC 109, KSA 3.969). Assim, a ideia agora é que há uma incompatibilidade fundamental entre, de um lado, nosso aparato sensorial e conceptual, e, de outro, o mundo “real”. Assim, “a lógica também depende de pressuposições que a nada corresponde no mundo real, por exemplo a pressuposição de que existam coisas idênticas, de que a mesma coisa é idêntica em diferentes pontos do tempo”42 (MAI/HH I 11, KSA 2.31). O resultado dessa falsificação é um mundo imaginário de objetos espaço-temporais, causas e efeitos, que nós erroneamente acreditamos ser real: “‘realidade’ é sempre uma simplificação para fins práticos, ou um engano devido à grosseria de nossos órgãos” (Nachlass/FP 1887, 9[62], KSA 12.3689). Contudo, o problema com essa leitura é que seu dualismo intrínseco (que contrasta o mundo das aparências estáveis com o mundo “real” do vir-a-ser) parece repousar justamente na espécie de compromisso ontológico rejeitado por Nietzsche. É difícil ver como tal mundo, que supostamente possui uma existência independente e só pode aparecer para nós através da simplificação de nossas mentes, e assim considerado, por definição, “incognoscível”, seja diferente da coisa em si criticada por Nietzsche. Nessa interpretação, então, o último Nietzsche terminaria em uma posição pior do que seu eu mais jovem, já que, na época de “Verdade e mentira”, ele evitou fazer 41 (Pode-se argumentar, em uma linha kantiana, que, em tal construto, seria impossível para nós notar qualquer mudança, ou mesmo possuir o conceito de mudança). 42 Ver tamém: “sem uma constante falsificação do mundo por meio de número, o homem não poderia viver (JGB/BM 4, KSA 5.18), ou ainda: “a vontade de verdade lógica só pode ser satisfeita depois de uma falsificação fundamental de todos os eventos” (Nachlass/FP XII, 9[89]). Alguns insights interessantes sobre as concepções de Nietzsche sobre a lógica podem ser encontrados em Hales & Welshon 13, p.43. Os autores argumentam que, enquanto a lógica sintática, que fornece as regras para a manipulação de operadores, conectores, quantificados, etc. do sistema formal, não precisa de tais pressuposições, a lógica semântica, que especifica domínios de entidades, precisa delas. Assim, “para que os símbolos e as fórmulas da lógica possam ter algum sentido ou aplicabilidade, deve haver um conjunto de coisas a que eles se referem” (HALES & WELSHON 13, p.43). 210 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche qualquer admissão sobre a natureza do “misterioso X”, e assinalou, contra Schopenhauer, que nenhum dos conceitos ou categorias utilizados na estrutura da experiência empírica pode ser aplicado a ele. Contudo, se o mundo “real” for identificado com o mundo do vir-a-ser (isto é, um conceito de origem empírica), Nietzsche estaria incorrendo nesses dois erros, o que parece estranho, dado o cuidado que ele tomou de se afastar das admissões ontológicas do idealismo transcendental. A única maneira de sair desse dilema é afastar-se de compromissos ontológicos e entender o mundo do vir-a-ser como um mundo empírico independente da mente. Assim, Cox afirma que o mundo do vir-a-ser é “o mundo em que habitamos e que conhecemos: o mundo natural, físico, o mundo da ‘aparência’” (COX 6, p.184). Ele assevera que esse mundo é “evidente empiricamente” (idem, p.188), que é o “mundo físico, natural em que habitamos e com que nos familiarizamos” (idem, p.193) e que deve ser entendido com referência a Heráclito. Contudo, essa opção parece muito contra-intuitiva, para não dizer implausível: poder-se-ia dizer que o propósito das afirmações de Nietzsche sobre como o mundo do vir-a-ser é caótico e incompreensível é revelar o fato de que nada é “evidente empiricamente” ou familiar em relação a ele. O que é evidente empiricamente é justamente o seu oposto, isto é, o mundo de objetos estáveis que encontramos na experiência, o qual Nietzsche contrasta com o mundo “real”. IV Assim, a leitura literal da teoria do erro, seja construída fenomenologicamente ou ontologicamente, encontra dificuldades insuperáveis. Contudo, alguma coisa talvez pode ser obtida dessa falha: pode ser um indicativo de que o problema, nesse caso, repousa na própria literalidade. Eu me voltarei, portanto, para uma reconstrução não-literal, que, devo apressar-me em dizer, é proposta apenas cadernos Nietzche 29, 2011 211 Han-Pile, B. como uma tentativa de resposta: a incompatibilidade de algumas passagens citadas afasta a possibilidade de uma solução unívoca para o dilema epistemológico resultante da teoria do erro. Minha hipótese é a de que o alvo real do ceticismo de Nietzsche sobre o conhecimento pode não ser tanto a possibilidade da objetividade limitada resultante do uso de condições perspectivas, mas duas formas de ilusão: de um lado, nossa inclinação, motivada pelo impulso de sobrevivência, a ignorar que nossa experiência é determinada por características transcendentais, o que resulta ou em um realismo metafísico ou em um realismo empírico ingênuo; de outro lado, a tendência de alguns filósofos (em particular Kant) de tomar o que são meras características em restrições, e pensar que conhecimento universal e necessário seja possível, quando de fato apenas formas relativas de objetividade são legítimas. Para usar o vocabulário das citações acima, o problema não pode ser tanto o fato de possuirmos uma gramática, ou com o mundo que experienciamos de acordo com ela, mas com nossa falta de consciência de tal gramática e nossa “fé” cega na realidade independente da mente de entidades que nos cercam e que nós, instintivamente, “sentimos como reais” (Nachlass/FP 1887, 9[106], 12.395-6). Nesse caso, não devemos ler o “mundo do vir-a-ser” literalmente, como uma expressão que descreve o verdadeiro estado do mundo, mas metaforicamente, como assinalando um objeto irrepresentável. A função desse objeto não seria servir como um referente problemático para a tese da falsificação, mas para fazer que reflitamos tanto sobre as obras de nossas próprias mentes e quanto sobre nossas admissões sobre o mundo empírico: a irrepresentabilidade do “mundo do vir-a-ser” direciona nossa atenção (a contrario) para o fato de que tanto a percepção quanto os objetos percebidos são estruturados por algumas características transcendentais naturalizadas, sem as quais nenhuma representação é possível. Apontando os limites da representação humana, ele permite que suas condições estruturais emerjam para a reflexão. 212 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche Essa sugestão tem a vantagem de minimizar o problema de autorreferência e de combinar as principais linhas do pensamento de Nietzsche, previamente identificadas: seu endossamento qualificado da determinação transcendental, sua naturalização das restrições transcendentais em características transcendentais, e seu agnosticismo em relação a compromissos ontológicos. Isso é claramente compatível com formulações mitigadas da teoria do erro e ajuda a lhes dar sentido; quanto às formulações mais fortes, elas podem ser vistas, de modo mais frutífero, como um recurso retórico deliberadamente hiperbólico para dar sinal de que o que é problemático não é tanto a existência de tais características transcendentais (elas são, no final das contas, apenas expressão de nossa finitude), mas o fato de que temos uma tendência natural a não ser cônscios de sua existência. Tendemos a nos comportar ou como realistas metafísicos, isto é, como se nosso conhecimento fosse incondicionado e tivéssemos acesso direto à coisa em si, ou realistas ingênuos do senso comum, isto é, como se pudéssemos encontrar objetos preexistentes, independentes da mente, sem perceber que há uma concordância a priori (no sentido revisado de Nietzsche) entre a estrutura desses objetos e as condições sob as quais os conhecemos, e que portanto esses objetos são constituídos, não achados. Em outras palavras, o alvo real da teoria do erro não seria a própria possibilidade de um conhecimento (limitado), mas uma certa ingenuidade a respeito de seu propósito e objetos. Essa advertência é expressa claramente na seguinte passagem: “nosso conhecimento não é conhecimento em si (...). São nossas leis que projetamos no mundo – mesmo que a aparência ensine o contrário e pareça apontar para nós como consequências desse mundo, e apontar para essas leis em sua relação conosco” (Nachlass/FP 1881, 15[9], KSA 9.636-7. Grifos meus). Em virtude da inelutabilidade e da força do “ensinamento das aparências”, precisamos da formulação forte da teoria do erro para nos ajudar a resistir a nossa tendência natural de acreditar tanto na preexistência quanto na cadernos Nietzche 29, 2011 213 Han-Pile, B. independência do mundo empírico (do qual parecemos ser “consequências”) e suas leis. A esse respeito, devemos tomar cuidado não tanto com o caráter condicional de nosso conhecimento, mas com nossa ignorância do “poder lógico-poético” do qual ele resulta e “em virtude do qual nós permanecemos vivos” (idem): “somos nós que inventamos causa, sucessão (...) e quando projetamos e misturamos esse mundo simbólico nas coisas, como se ele existisse ‘em si’, agimos como sempre o fizemos – mitologicamente” (JGB/ BM 21, KSA 5.35-6). Na leitura que sugiro, a teoria do erro indica que o problema não é tanto a projeção, já que ela é constitutiva da forma pela qual a experiência humana se realiza, mas nossa falta de consciência de nossa própria atividade, e nossa crença correspondente na existência independente daquilo que projetamos. Se isso estiver correto, então torna-se possível interpretar as concepções de Nietzsche sobre o conhecimento de uma forma que elas não venham a solapar a si mesmas, mas que, ao contrário, revelem dois aspectos interessantes: primeiro, a imbricação de aspectos naturalistas e transcendentais na sua consideração sobre a formação da experiência humana, que culmina com sua noção de condição a priori naturalizada (características transcendentais) e torna impossível (tanto contra Green, de um lado, quanto Clark, Cox e Leiter, de outro) defini-lo como um filósofo transcendental ou naturalista. Nisso Nietzsche antecipa filósofos continentais posteriores, como Foucault, que compartilha tanto suas admissões anti-empiristas sobre a constituição da experiência quanto seu ceticismo sobre a possibilidade de verdadeiras restrições necessárias, universais a priori. A noção foucaultiana de um a priori histórico, enraizado nas práticas históricas contingentes, e contudo delas distinto, apresenta uma ambiguidade (e interesse) similar à própria naturalização de Nietzsche do transcendental, na medida em que a necessidade e o propósito desse a priori dependem de práticas às quais ele não é redutível, e essas práticas pressupõem a existência dele para serem inteligíveis. O segundo aspecto reside na dimensão altamente crítica do pensamento de Nietzsche, 214 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche que se manifesta em dois níveis distintos: falando ontologicamente, através da rejeição da versão forte, dualista, do idealismo transcendental, endossada anteriormente, em favor de uma ontologia minimalista, perspectivista, segundo a qual não faz sentido falar de coisas em si, muito menos lhes atribuir uma essência autossubsistente. De tudo isso pode ser dito que, caso nossas próprias condições perspectivas sejam colocadas entre parênteses, é possível que outros apliquem as suas, a partir das quais mundos diferentes, incomensuráveis, seriam constituídos. Mas o que eles aplicam não poderia ser definido independentemente dessas outras perspectivas, e assim não se poderia dizer que haja alguma essência em si: a realidade é inteiramente perspectiva. Além disso, sendo essa possibilidade reconhecida, deve-se ser mais cauteloso que o próprio Kant foi e permanecer agnóstico em relação à existência efetiva de tais condições e mundos. Em termos kantianos, o impacto crítico do pensamento de Nietzsche aqui é que o estatuto dos compromissos ontológicos do idealismo transcendental deve ser considerado como problemático, e não assertórico (muito menos apodítico). Falando epistemologicamente, essa dimensão crítica é expressa pelo papel desempenhado por sua chamada teoria do erro. Como vimos, parte do objetivo de sua naturalização do transcendental é enfatizar o fato de que condições a priori não possuem qualquer validação racional, mas são acarretadas por práticas que são necessárias para a sobrevivência de nossa espécie. Assim, para preservar e desenvolver suas vidas, os seres humanos têm de acreditar na existência de um mundo ordenado, relativamente estável, de entidades independentes da mente, com que eles podem interagir causalmente, e no qual eles possam agir e obter resultados com um grau suficiente de capacidade preditiva. Do mesmo modo, tendemos instintivamente a conceber o conhecimento como a identificação não-perspectiva de propriedades de tais entidades preexistentes. Nesse pano de fundo, argumentei que a função da teoria do erro não é sugerir que há algo errado com a percepção, ou que o mundo percebido é fictício, mas nos atentar para a dependência de ambos para com as cadernos Nietzche 29, 2011 215 Han-Pile, B. condições transcendentais naturalizadas. Não é tanto uma teoria do erro stricto sensu, mas uma advertência hiperbólica contra formas acríticas de realismo. Ela não é direcionada contra a possibilidade de um enunciado ser verdadeiro no interior de condições perspectivas, mas sim contra um conjunto de crenças implícitas: de que não há tais condições (realismo ingênuo), ou de que nossos enunciados podem ser verdadeiros em todas as perspectivas possíveis (o que requereria a existência de restrições transcendentais universais), ou, pior, extraperspectivos (em virtude da correspondência metafísica). Assim, a teoria do erro pretende contrabalançar nossa tendência programada a ser realistas ingênuos a respeito de mundo e do conhecimento43. Enquanto essa tendência não puder ser erradicada (precisamente por causa da espécie de razões naturalísticas apontadas anteriormente), é possível limitar seus efeitos de duas formas: de um lado, expondo-a, embora, ao fazer isso, tenha-se de lutar constantemente com nossa natureza – por isso o caráter deliberadamente hiperbólico da teoria do erro. De outro lado, atrelando os próprios enunciados de alguém às suas condições de possibilidade (por isso a ênfase constante de Nietzsche no aspecto perspectivo 43 Assim, isso é pensado para evitar que adotemos precisamente essa espécie de “realismo do senso comum”, advogado tanto por Clark quanto por Leiter. Nesse aspecto, o intuito do argumento de Nietzsche é sugerir que tal realismo está distante de estar isento de admissões metafísicas sobre a natureza da realidade. Ele repousa implicitamente na afirmação de que objetos empíricos são independentes da mente e possuem propriedades intrínsecas que podem ser definidas independentemente da forma pela qual as acessamos. O comentário de Leiter da conhecida passagem sobre o perspectivismo em GM/GM III 12, KSA 5.363-5 é ilustrativo dessa crença: “consideremos uma analogia útil. Se quiséssemos o conhecimento de uma determinada área geográfica fazendo um mapa dela, o tipo de mapa que faríamos seria necessariamente determinado por nossos interesses (...). O mapa correspondente a cada conjunto de interesses nos daria um conhecimento genuíno da área, e quando mais interesses incorporados ao mapa, mais conheceríamos a área” (LEITER 16, pp. 273-4). A coisa mais patente nessa analogia é que ela pressupõe que a área a ser cartografada por vários mapas perspetivos (isto é, o real) preexiste e independe do próprio cartografar, o que é exatamente a espécie de crença ingênua de que Nietzsche nos adverte por meio da teoria do erro. 216 cadernos Nietzche 29, 2011 Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche de suas afirmações). Assim, o que torna as concepções de Nietzsche sobre o conhecimento particularmente interessantes, em minha opinião, é que, enquanto elas são claramente muito influenciadas por preocupações tanto transcendentais quanto naturalistas, elas apresentam uma posição que tende a superar a oposição entre as duas tendências, quando aproveita um dos insights mais valiosos do legado kantiano, qual seja, o seu espírito crítico. Abstract: Nietzsche’s views on knowledge have been interpreted in at least three incompatible ways – as transcendental, naturalistic or proto-deconstructionist. While the first two share a commitment to the possibility of objective truth, the third reading denies this by highlighting Nietzsche’s claims about the necessarily falsifying character of human knowledge (his so-called error theory). This paper examines the ways in which his work can be construed as seeking ways of overcoming the strict opposition between naturalism and transcendental philosophy whilst fully taking into account the error theory (interpreted non-literally, as a hyperbolic warning against uncritical forms of realism). In doing so, it clarifies the nature of Nietzsche’s ontological commitments, both in the early and the later work, and shows that his relation to transcendental idealism is more subtle than is allowed by naturalistic interpreters while conversely accounting for the impossibility of conceiving the conditions of the possibility of knowledge as genuinely a priori. Keywords: transcendental philosophy – naturalism – ontology - epistemology referências bibliográficas 1. ALLISON, H. Kant’s Transcendental Idealism: An Interpretation and Defense. New Haven & London: Yale University Press, 1983. 2. ARISTOTLE. Poetics. Trans. Fyfe, H. Cambridge: Harvard University Press, 1973. cadernos Nietzche 29, 2011 217 Han-Pile, B. 3. BIRD, G. Kant’s Theory of Knowledge. London: Routledge. 1962. 4. CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 5._________. ‘‘The development of Nietzsche’s later position on truth”. In: RICHARDSON, J. and LEITER, B. (Eds.). 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Artigo aceito para publicação em 05/06/2011. 220 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo Do idealismo transcendental ao naturalismo: um salto ontológico no tempo a partir de uma fenomenologia da representação William Mattioli* Resumo: O presente artigo oferece uma interpretação da noção de tempo em Nietzsche, a partir de um diálogo com a tradição transcendental, que vê o naturalismo presente sobretudo em sua obra intermediária e madura como uma forma moderada de realismo científico fundada no seu abandono da tese kantiana da idealidade transcendental do tempo. Assim, diferentemente de uma interpretação puramente fenomenológica da tese do vir-a-ser, que o considera somente no sentido de um “caos das sensações”, e em oposição a uma interpretação meramente metafórica do mesmo, pretendemos mostrar que há em Nietzsche uma aposta ontológica efetiva em um mundo do vir-a-ser. Um dos pontos centrais deste trabalho será, nesse sentido, tentar justificar essa aposta ontológica a partir de uma análise da compreensão nietzschiana da temporalidade. Palavras-chave: tempo – devir – idealismo – realismo – ontologia * Mestre em filosofia pelas universidades Carolina de Praga, Université de Toulouse le Mirail e Bergische Universität Wuppertal, no quadro do programa Master-Mundus EuroPhilosophie: Philosophies allemande et française dans l’espace européen/ Deutsche und französische Philosophie in Europa. E-mail: mattioli_filosofia@yahoo. com.br. cadernos Nietzche 29, 2011 221 Mattioli, W. 1. O transcendentalismo naturalizado e seus paradoxos Em seu artigo “From Kantian Temporality to Nietzschean Naturalism”, Kevin Hill sugere que o naturalismo de Nietzsche pode ser mais bem compreendido se o considerarmos como uma tese acerca da natureza do espaço e do tempo, um problema herdado da tradição transcendental de Kant e Schopenhauer (Hill 8, p. 75). Como o título de seu artigo já permite entrever, é sobretudo a partir de uma análise do tempo que, segundo o autor, devemos situar o naturalismo de Nietzsche – neste caso, do Nietzsche maduro – em um tipo de realismo científico. Ao que tudo indica, o jovem Nietzsche, sobretudo em “Verdade e mentira” e em alguns fragmentos da mesma época, influenciado pela filosofia de Schopenhauer e ainda cúmplice de seu idealismo transcendental, compreende o problema em questão a partir da tese, presente na estética transcendental kantiana, da idealidade do tempo e do espaço. Estes são considerados como formas a priori, porém não puras em sentido kantiano, mas como condições de possibilidade psicofisiológicas, que poderiam ser analisadas e estudadas empiricamente1. Trata-se, portanto, de uma perspectiva transcendental naturalizada, o que testemunha sua adesão às teses de caráter naturalista e fisiologista de Lange, mas também, em certo sentido, de Schopenhauer. No que concerne o caso particular de Schopenhauer, entretanto, nos deparamos com um paradoxo para o qual o jovem Nietzsche já havia chamado atenção2 e que concerne o estatuto ou a legitimidade de sua naturalização do transcendental. Schopenhauer defende a tese de caráter naturalista/evolucionista segundo a qual as funções epistêmicas do sujeito (transcendental) devem ser reconduzidas às funções orgânicas do cérebro. Ou seja, ele concebe o intelecto 1 Cf. a esse respeito HAN-PILE 7, p. 140-141. 2 Ver o fragmento do outono de 1867 / início de 1868 intitulado Sobre Schopenhauer em KGW II 4, pp. 418-427. 222 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo como uma função do cérebro, inserindo-o no desenvolvimento do orgânico segundo etapas de objetivação da Vontade. Esta, aparecendo como natureza, se serviria de seus meios para criar formas cada vez mais complexas no interior do mundo orgânico até atingir o grau mais alto de complexidade, que corresponderia ao intelecto humano e à consciência. Essa tese concernente às etapas de objetivação da Vontade pressupõe, portanto, que a individuação e suas formas: tempo, espaço e causalidade, já estejam presentes antes do surgimento do intelecto, já que sem elas não é possível pensar qualquer forma de desenvolvimento e evolução do orgânico. Porém, Schopenhauer mantém a tese kantiana da idealidade transcendental do tempo, espaço e da causalidade como formas da individuação, o que significa que é preciso haver primeiro um intelecto que perceba o mundo segundo essas formas e que, portanto, estabeleça a individuação, para que o mundo como representação que conhecemos tenha origem, uma vez que a Vontade, enquanto coisa em si, é absolutamente livre das formas do fenômeno. Nietzsche observa a esse respeito: “Em uma tal concepção, um mundo fenomênico é colocado antes do mundo fenomênico: caso queiramos manter os termos schopenhaurianos acerca da coisa em si. Já anteriormente ao aparecimento do intelecto vemos o principium individiationis, a lei da causalidade, em plena atividade” (Nachlass/FP KGW II 4.425). Como observa Kevin Hill (HILL 8, p. 75), este paradoxo nos deixa com duas opções: ou abandonamos a identificação feita por Schopenhauer entre o intelecto e o cérebro, e recaímos na concepção kantiana do transcendental que localiza o intelecto numa esfera atemporal fora da natureza, ou preservamos a naturalização do intelecto e somos obrigados a abandonar a tese transcendental segundo a qual as formas da individuação dele dependem, já que o mundo orgânico anterior ao seu surgimento já as pressupõe. O jovem Nietzsche parece lidar com esse problema inicialmente através da hipótese de um intelecto originário que é em certa medida identificado com o uno primordial e com a Vontade (Nachlass/ FP 1870, 5[79], KSA 7.111 e 5[81], KSA 7.114-5). Segundo essa cadernos Nietzche 29, 2011 223 Mattioli, W. hipótese, as formas do tempo e do espaço pertenceriam não ao intelecto humano, mas a um intelecto primordial, uma espécie de princípio originário de ordenação da natureza. Como já foi mencionado, porém, em “Verdade e mentira” Nietzsche sustenta a tese de que tempo e espaço são formas antropomórficas que produzimos em nós e projetamos no mundo exterior concedendo-lhe a forma segundo a qual o percebemos (WL/VM, KSA 1.885-886.). Nesse sentido, essas formas seriam dependentes do sujeito e constitutivas da experiência num sentido transcendental e crítico, e não no sentido metafísico implícito na hipótese de um suposto intelecto originário. Com efeito, tal hipótese possui um teor por demais metafísico que é totalmente estranho ao caráter cético de “Verdade e mentira”. Através dessa hipótese, que é apresentada em alguns fragmentos de 1870/71, Nietzsche parece ensaiar uma solução para o problema no interior de um vocabulário ainda coerente com a metafísica de Schopenhauer. Contudo, uma vez que o ensaio de 1873 desenvolve um modelo muito mais próximo de um ceticismo fenomenista e de um transcendentalismo naturalizado sem comprometimentos ontológicos fortes, esse vocabulário metafísico não poderia encontrar ali nenhum espaço. Mas há aqui um problema. Mesmo que aceitemos que as teses de Nietzsche em “Verdade e mentira” acerca da gênese das representações não implicam nenhum comprometimento ontológico forte3, a motivação naturalista/evolucionista ali presente pressupõe o conceito de uma natureza estruturada de tal forma que torne possível o surgimento de um intelecto como fruto de um processo de desenvolvimento orgânico. Ou seja, o naturalismo implícito nesse texto, na medida em que localiza o intelecto no interior de uma 3 Ver a esse respeito o interessante comentário de Han-Pile neste volume (HANPILE 7, p. 144) acerca de duas teses básicas presentes neste ensaio: uma de caráter mais fenomenista e focada na análise da gênese das representações, e outra mais carregada metafisicamente, que confronta nossas representações com a idéia de um “em-si” das coisas. 224 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo natureza compreendida a partir de uma perspectiva darwinista, sendo ao mesmo tempo conciliado com a tese da idealidade transcendental do tempo e do espaço, é marcado pela mesma contradição em razão da qual Nietzsche havia criticado o conceito schopenhauriano de Vontade poucos anos antes. Se tempo e espaço são formas subjetivas (antropomórficas), cuja origem depende de nossa configuração orgânica, fica difícil de entender como essa configuração orgânica pôde ter se originado no interior de uma natureza na qual não há espaço ou tempo. O próprio conceito de uma natureza sem tempo ou espaço nos parece contraditório, assim como a noção de que algo possa surgir ou se originar numa dimensão atemporal. A solução apresentada por Kevin Hill para este problema consiste em afirmar que, segundo Nietzsche, “há duas naturezas distintas: a natureza que é o objeto da ciência natural e a natureza que contém o cérebro, a natureza como ela parece ser a natureza como ela é.” (HILL 8, p. 76) A natureza “como ela é”, ou seja, a natureza “em si”, já seria estruturada espaço-temporalmente, e é nela que ocorreria todo desenvolvimento do orgânico que precederia e possibilitaria o surgimento do intelecto. Porém, a estrutura espaço-temporal dessa natureza em si, na qual nós e nossos cérebros estaríamos imersos, nos seria totalmente desconhecida. Apenas a estrutura espaço-temporal que representamo-nos a partir de nossas formas subjetivas poderia ser conhecida e, nesse sentido, é a ela que nossas teorias científicas se refeririam. Entretanto, essa distinção entre duas naturezas estruturadas espaço-temporalmente, uma como fenômeno, outra como coisa em si, não é em nenhum momento formulada no texto. É de fato estranho que esse problema não seja explicitamente tratado por Nietzsche neste ensaio, já que ele havia sido um dos pontos centrais de sua crítica à Schopenhauer. O próprio Schopenhauer, por sua vez, estava consciente do caráter problemático de sua análise bilateral do intelecto. Ele o considera, por um lado, a partir de dentro, isto é, de uma perspectiva subjetiva; por outro, porém, a partir de fora, isto é, de uma perspectiva objetiva. Essas duas perspectivas cadernos Nietzche 29, 2011 225 Mattioli, W. correspondem respectivamente às considerações transcendental-idealista e empírico-materialista4 , e a antinomia epistêmica que daí se segue é apresentada por Schopenhauer da seguinte maneira: Assim, por um lado, vemos necessariamente a existência do mundo inteiro dependente do primeiro ente cognoscente […]; por outro lado, vemos de forma igualmente necessária esse primeiro animal cognoscente totalmente dependente de uma longa cadeia de causas e efeitos que o precede e na qual ele surge como um membro diminuto. Poderíamos contudo designar esses dois aspectos contraditórios, aos quais somos de fato conduzidos com igual necessidade, como uma antinomia na nossa faculdade de conhecimento (SCHOPENHAUER 21, p. 76 – tradução modificada). Schopenhauer parece querer dissolver esse paradoxo reforçando a tese de que “tempo, espaço e causalidade não pertencem à coisa em si, mas somente ao fenômeno” (idem.). Ao reforçar essa tese, porém, apenas reforçamos a própria antinomia, uma vez que o primeiro ente cognoscente, que deve pela primeira vez fazer surgir o mundo fenomênico e com ele suas formas, já é de antemão “totalmente dependente de uma longa cadeia de causas e efeitos que o precede”. Qual poderia ter sido a posição de Nietzsche com relação a esse problema em “Verdade e mentira”? Podemos ensaiar uma resposta a essa pergunta através de uma contraposição de suas posições com a posição de Schopenhauer. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para o fato de que, no que concerne à naturalização do transcendental e à recondução do idealismo a um tipo de fenomenismo, Nietzsche parece se situar muito mais ao lado de Lange do que de Schopenhauer. 4 Ver a esse respeito KALB 9, p. 61-68. 226 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo Em Schopenhauer, a tese acerca do desenvolvimento do orgânico na natureza possui um estatuto claramente metafísico. Ela se funda na idéia de uma gradação nos fenômenos da Vontade e depende, portanto, de uma concepção positiva da coisa em si. Dentre as caracterizações que encontramos nessa concepção positiva está a definição (kantiana) segundo a qual a coisa em si é necessariamente livre das formas do mundo fenomênico. Há aqui claramente um compromisso ontológico forte. Em Nietzsche, temos um outro modelo. “Verdade e mentira” é um ensaio de princípio cético inspirado em teses naturalistas, isto é, sua linha central de argumentação é sustentada por uma concepção científica (evolucionista) segundo a qual o homem e seu intelecto, assim como qualquer outro animal, são partes pertencentes a um todo natural em movimento, podendo ser examinados de um ponto de vista essencialmente empírico (fisiológico). Nesse sentido, a consciência e o intelecto são apenas meios para a conservação do indivíduo. De fato, até aqui, não parece haver muitas diferenças entre as posições de Nietzsche e de Schopenhauer. Porém, para Nietzsche, em virtude do caráter instrumental do intelecto, não podemos fazer nenhuma afirmação epistemicamente justificada acerca da coisa em si. Além disso, ao que tudo indica, Nietzsche parece ser mais conivente com uma descrição empírico-materialista (isto é, fisiológica) do que com uma consideração transcendental-idealista do sujeito (apesar de haver claros aspectos transcendentais em sua adaptação da tese do apriorismo das formas da intuição). Como já foi indicado, trata-se de um transcendentalismo naturalizado e, nesse sentido, mitigado. Traduzido em uma forma de darwinismo e na terminologia naturalista de Lange, o a priori é esvaziado de sua necessidade e universalidade e trazido ao plano fisiológico da evolução dos organismos. O mundo como representação se torna assim, para utilizar uma expressão de Lange, produto de nossa organização. Enquanto tal, porém, o mundo como representação, isto é, o mundo que é objeto das ciências naturais, se mostra como resultado cadernos Nietzche 29, 2011 227 Mattioli, W. do funcionamento daquelas estruturas fisiológicas a priori, isto é, se mostra, no fim das contas, como algo “ideal”. E aqui nos deparamos com o aparentemente inevitável ponto de conversão do materialismo em idealismo, ou de uma consideração materialista em uma consideração idealista. Esta pode ser uma das razões fundamentais que levaram Nietzsche a considerar nossas representações do tempo e do espaço como formas pertencentes ao sujeito, as quais não poderiam ser atribuídas de forma consequente às coisas em si. A utilização que Nietzsche faz do conceito de coisa em si neste ensaio parece, portanto, estar essencialmente associada à necessidade inerente à posição transcendental de estabelecer um limite à aplicação de nossas formas cognitivas, limite que só pode ser estabelecido através do conceito (-limite) de coisa em si. Ao tomarmos consciência de que os órgãos visíveis que são objeto da fisiologia, assim como as estruturas orgânicas em desenvolvimento na natureza em geral, que constituem o objeto da biologia, e as leis mecânicas que subjazem a todas essas estruturas e que são explicadas pela física, são resultados de nossa organização mental (psicofísica), estamos imediatamente no terreno do idealismo. Lange apresenta essa reviravolta do materialismo ao idealismo como se segue: O que é um corpo? O que é a matéria? O que é o físico? […] a fisiologia de hoje, assim como a filosofia, deve nos dar a seguinte a resposta a essas questões: que isso tudo são apenas nossas representações; representações necessárias, representações resultantes de leis naturais, mas ainda assim elas não são coisas em si mesmas. A consideração materialista consequente se converte assim imediatamente em uma consideração idealista consequente. […] Obviamente resta investigar, nesse caso, em que medida é provável que o mundo dos fenômenos seja tão diferente assim do mundo das coisas que o produzem, como quis Kant ao ver espaço e tempo como meras formas humanas da intuição, ou se estamos autorizados a pensar que ao menos a matéria com seu movimento seja o fundamento objetivamente existente de todos outros fenômenos, 228 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo por mais que esses fenômenos possam diferir das verdadeiras formas as coisas (LANGE 11, p. 496-497). Nada nos impede de supor que o que está na base do naturalismo de Nietzsche em “Verdade e mentira” seja um pensamento desse gênero. Isto é, sua tese naturalista e a concepção a ela relacionada de uma natureza “em si” estruturada espaço-temporalmente parecem estar associadas a uma espécie de princípio probabilístico5, e não se funda em uma teoria metafísica sobre a coisa em si, como é o caso de Schopenhauer. Nesse sentido, a posição de Nietzsche seria muito mais fenomenista. De acordo com Rogério Lopes, ela estaria baseada, seguindo uma forte influência de Lange, numa “compreensão fenomenista, ficcionalista e falibilista das ciências naturais e históricas, que detêm entretanto os melhores métodos para descrever da forma mais exaustiva e econômica possível as regularidades do mundo fenomênico” (LOPES 13, p. 164). Poderíamos dizer, portanto, que, diferentemente de Schopenhauer (e de Kant), o jovem Nietzsche não nega a possibilidade de que o mundo, independentemente das faculdades cognitivas de seres percipientes, possa ser estruturado espaço-temporalmente. 5 Uma outra passagem da obra de Lange que concerne a esta problemática e que pode ter exercido um papel importante nas considerações de Nietzsche a esse respeito é a seguinte: “Os conhecimentos a priori, longe de serem revelações absolutamente objetivas do mundo das coisas reais, são verdadeiras quimeras na medida em que atribui-se a eles, para além da experiência, a mesma validade incondicional que eles possuem no interior da experiência; nada nos impede porém de supor que seu terreno estenda-se além dos limites de nossas representações. A realidade transcendente do espaço e do tempo talvez possa, portanto, ser elevada a um alto grau de probabilidade.” (LANGE 11, p. 254) O ponto central do argumento em questão consiste em mostrar que Kant, injustamente, não concedeu a possibilidade de que o mundo seja efetivamente como ele nos aparece. Nietzsche apresenta esse argumento em “Verdade e mentira” (cf. WL/VM, KSA 1.880) e num fragmento da mesma época, onde ele escreve: “Contra Kant pode-se ainda objetar que, concedidas todas suas proposições, ainda assim resta a possibilidade de que o mundo seja assim como ele nos aparece” (Nachlass/FP 1872-3,19[125], KSA 7.459). cadernos Nietzche 29, 2011 229 Mattioli, W. Neste “poder ser estruturado de tal forma” se basearia então aquela compreensão científica falibilista acerca da origem do intelecto, uma vez que os métodos e modelos científicos se mostram epistemicamente mais dignos de ocupar o lugar de modelos explicativos do que as suposições metafísicas. Pode-se notar, contudo, já nos textos de juventude, uma tentativa de Nietzsche de romper de forma ainda mais consistente com as teses da estética transcendental, particularmente com a tese da idealidade transcendental do tempo. Ou seja, a posição que acabamos de apresentar como uma compreensão probabilística acerca da possibilidade de uma natureza “em si” estruturada espaço-temporalmente parece se converter numa aposta ontológica mais robusta que sustenta a existência objetiva do tempo e serve de base para uma teoria realista do devir. Esta aposta ontológica no devir, por sua vez, parece ser o que motivou nosso filósofo a uma teoria do erro ainda mais radical que o ceticismo presente em “Verdade e mentira”. 2. O devir e a teoria do erro Não parece haver consenso entre os comentadores sobre o estatuto da teoria do erro de Nietzsche, assim como de sua teoria do devir. De modo geral, porém, podemos dizer que a aposta ontológica que parece estar envolvida nessas teses implica que o caráter essencial do mundo e da vida é a mudança constante. Segundo essa posição, a realidade é um fluxo absoluto que não comporta nenhuma tipo de fixidez, permanência ou repouso. Identificada por Nietzsche à tese de Heráclito, essa teoria sustenta que o que instaura fixidez no devir são as categorias do pensamento, o qual, por sua vez, só é possível por meio de um princípio que age normativamente sobre todo conteúdo cognitivo fixando-o como identidade 230 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo e unidade6. Isso significa que, para que possa haver pensamento e consciência, é necessário que uma ficção de permanência seja instaurada no devir, tornando possível o surgimento da noção fundamental de “sujeito”, da qual resultariam então nossos conceitos de “coisa”, “ser”, assim como as leis lógicas e os números. Segundo Nietzsche, é preciso que criemos descontinuidades no fluxo para que possamos perceber objetos, substâncias, relações causais; é preciso que sejamos capazes de reconhecer o mesmo frente ao não-idêntico, de abstrair da particularidade, da pluralidade e da mudança para identificarmos fenômenos e nos acomodarmos ao mundo, tornando assim nossa sobrevivência possível7. Eis aqui uma exigência de conservação da vida8. Nesse sentido, o pensamento e a consciência, com suas categorias cognitivas, ao fixar necessariamente como identidade aquilo que em verdade está em constante fluxo, seria uma falsificação do real. Assim 6 Este princípio é o princípio de identidade, o qual, segundo Nietzsche, corresponde ao nosso conceito de Ser e à noção de incondicionado. Essa tese é tomada emprestada de Afrikan Spir (cf. por exemplo SPIR 23, p. 198-199 e pp. 330-337). Spir propõe uma releitura da filosofia crítica que considera como único elemento realmente a priori do pensamento, no sentido transcendental, o princípio lógico da identidade. Ele seria o princípio de base de organização da experiência, a partir do qual seríamos capazes de estabelecer e identificar objetos empíricos estáveis, compreendidos como substâncias, a partir dos dados sempre instáveis das sensações. Esta tese terá um impacto imenso sobre a teoria do erro de Nietzsche, na medida em que ele interpretará este princípio também como princípio de base de nossa experiência mas, diferentemente de Spir, que lhe atribui validade objetiva, ele lhe atribuirá um estatuto ficcional, compreendendo-o como o erro fundamental sobre qual se baseia o desenvolvimento da vida orgânica até suas formas mais complexas. Para uma análise aprofundada da relação de Nietzsche com Spir, ver GREEN 6, D’IORIO 4, SCHLECHTA & ANDERS 19, p. 118-122. 7 Ver a esse respeito, por exemplo: FW/GC 109, KSA 3.96-9, § 111 e § 112, GD/CI Os quatro grandes erros 3, e os fragmentos: Nachlass/FP KSA 1881 6[349], KSA 9.286; 11[330], KSA 9.569-70; 11[162], KSA 9. 503-4. 8 Em Nietzsche, portanto, as condições transcendentais se tornam condições perspectivas relativas à ótica da vida (cf. JGB/BM 11, KSA 5.24-6). cadernos Nietzche 29, 2011 231 Mattioli, W. poderíamos resumir o argumento de base da teoria nietzscheana do erro, mesmo que de modo precário e geral, e já assumindo uma interpretação literal da tese do devir. Essa interpretação literal, porém, é extremamente problemática. Ao caracterizar a posição de Nietzsche como uma aposta ontológica, buscamos chamar atenção exatamente para o fato de que se trata de uma hipótese quase axiomática mas de caráter fortemente especulativo e que, pelo menos à primeira vista, não pode ser justificada fenomenologicamente. Uma vez que todo nosso conhecimento e toda nossa representação do mundo é geneticamente configurada segundo a normatividade epistêmica do princípio de identidade, que é o princípio estruturante da experiência, torna-se claro que não somos capazes de perceber ou de acessar fenomenologicamente o devir absoluto, quanto menos de conhecê-lo9. Sendo assim, de onde deveríamos deduzir a idéia de um devir absoluto como caráter ontológico do mundo? Seria ela justificável a partir de uma fenomenologia da experiência? E mesmo que ela o fosse, estaríamos então autorizados a deduzir daí uma ontologia? Devemos finalmente entender a tese do devir realmente em um sentido ontológico forte? Como observa Beatrice Han-Pile em seu artigo “Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche” (HAN-PILE 7, p. 161-164), há duas maneiras básicas de interpretar literalmente a tese do devir e a teoria do erro a ela associada: uma interpretação fenomenológica e uma ontológica. A interpretação fenomenológica parte da idéia de que há uma dimensão originária da experiência ainda não 9 Cf. KSA IX, 11[330]: “o pensamento seria impossível se ele não desconhecesse fundamentalmente a essência da esse: ele precisa afirmar a substância e o idêntico, pois um conhecimento daquilo que está absolutamente em fluxo é impossível”; Nachlass/ FP 1887, 9[89], KSA 12.382 : “O caráter do mundo como informulável, como “falso”, como “contrandizendo a si mesmo” / conhecimento e devir se excluem”. 232 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo categorizada por nossos conceitos reificantes: trata-se daquilo que Nietzsche chama de “caos das sensações”. Nesse nível primitivo, estaríamos longe da divisão e fixação do mundo empírico em objetos estáveis interagindo uns com os outros segundo leis causais. Ao ser categorizado por nossos conceitos e fragmentado em substâncias, esse mundo originário e caótico das sensações seria então falsificado. Segundo a autora, essa interpretação não implica um comprometimento ontológico com – ou uma tese metafísica sobre – “uma realidade independente da mente, a qual nossa percepção não consegue conformar” (idem, p. 161). O primeiro problema de uma tal interpretação, porém, é que esse “caos das sensações” não pode ser efetivamente experienciado. Tudo que se encontra na esfera da experiência e, nesse sentido, da consciência, só tem lugar ali na medida em que se conforma à normatividade que a rege, isto é, à normatividade do princípio de identidade. Nesse sentido, um tal mundo caótico das sensações só poderia ser postulado retrospectivamente como o oposto do mundo da experiência organizado pelo princípio de identidade. Além disso, uma vez que não podemos identificar as qualidades daquilo que é “dado” nessa dimensão sensível originária, não estaríamos autorizados a afirmar que a categorização conceitual desses “dados” tem como resultado sua falsificação. A segunda interpretação, isto é, a interpretação ontológica, é aquela com cuja descrição iniciamos esta segunda parte do nosso trabalho. Trata-se da tese segundo a qual o caráter essencial do mundo é um fluxo eterno que não comporta nenhuma permanência ou repouso, ao passo que o mundo fenomenal de nossa experiência se apresenta como um mundo de objetos ideais estáveis fixados por uma necessidade vital. Mas sustentar a tese de que o caráter essencial do mundo para além de nossas representações é um devir absoluto seria, nesse sentido, recair em um tipo de dualismo entre essência e aparência que Nietzsche critica como sendo o contrassenso básico de toda metafísica. cadernos Nietzche 29, 2011 233 Mattioli, W. Frente a essas dificuldades, Han-Pile procura lidar com as aporias envolvidas na teoria do erro interpretando-a não literalmente, como “uma advertência deliberadamente hiperbólica contra formas ingênuas de realismo e transcendentalismo” (idem, p. 159). Nesse mesmo sentido, ela procura resolver o problema evolvido na aposta ontológica que parece sustentar a teoria do erro – uma vez que esta aposta implicaria um dualismo “que contrasta o mundo das aparências estáveis com o mundo “real” do vir-a-ser”, repousando assim num dualismo ontológico rejeitado por Nietzsche (idem, p. 163) – interpretando a tese do devir também de forma não literal. Ou seja, segundo a autora, deveríamos entender a expressão “mundo do vir-a-ser” não como pretendendo descrever o verdadeiro estado do mundo, “mas metaforicamente, como assinalando um objeto irrepresentável” cuja função seria não de servir como referente para a tese da falsificação, mas de chamar nossa atenção para o fato de que nosso conhecimento do mundo é estruturado por características transcendentais naturalizadas (idem). A nosso ver, porém, essa interpretação não literal não faz jus à radicalidade da maioria das afirmações de Nietzsche que concernem sua teoria do erro e a tese do devir. Pretendemos mostrar que há um tipo de realismo em Nietzsche que se desdobra como consequência de seu abandono da tese kantiana e schopenhauriana da idealidade transcendental do tempo. 3. Tempo e devir: idealismo ou realismo? Em seu artigo “Nietzsche on Time and Becoming”, John Richardson distingue quatro formas de interpretar a posição de Nietzsche com relação às noções de tempo e de devir a partir de uma perspectiva kantiana, focando assim nos aspectos idealistas e/ou realistas de suas teses. As duas primeiras interpretações, que atribuem a ele um tipo de realismo, correspondem respectivamente à compreensão do devir como uma espécie de coisa em si inacessível e indeterminável (realismo negativo), ou determinável a 234 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo partir de certas teorias científicas (realismo positivo). Em ambos os casos, porém, o devir é compreendido como tendo um caráter noumenal, independentemente de nossas perspectivas cognitivas (RICHARDSON 18, p. 212-213). No caso da primeira interpretação, o problema básico é que Nietzsche ultrapassaria aqui os limites de um realismo negativo legítimo ao determinar a coisa em si positivamente, a partir de seu caráter temporal, como fluxo eterno. A segunda objeção, que toca ambas as interpretações e que já foi mencionada na segunda parte deste trabalho, é que Nietzsche estaria estabelecendo aqui um dualismo ontológico que contradiz seu perspectivismo e sua crítica à metafísica. As duas outras interpretações apresentadas por Richardson consideram o devir como algo relativo às nossas perspectivas cognitivas, ou seja, como algo “ideal”. A primeira delas, designada pelo autor como idealismo de conteúdo, vê o devir como a estrutura básica de tudo aquilo que nos é dado empirica e fenomenalmente. Nesse sentido, a posição de Nietzsche com relação ao tempo seria análoga à concepção kantiana do tempo como “forma da intuição” (idem, p. 213-214). O problema dessa interpretação é que ela desconsideraria as afirmações de Nietzsche que apresentam o devir exatamente como aquilo que é falsificado ao ser conformado à norma de nossas perspectivas epistêmicas. O mundo fenomenal é um mundo de objetos estáveis, não um mundo caótico em fluxo constante. Nesse sentido, seria necessário distinguir níveis de fenomenalidade, caso queiramos manter a tese da falsificação, e aceitar a existência de uma dimensão originária da experiência sensível anterior à reificação e que seria então falsificada. Mas aqui nos deparamos novamente com os problemas da interpretação fenomenológica apresentados na segunda parte deste trabalho, quando discutíamos as teses de Han-Pile. A última e mais promissora interpretação apresentada por Richardson considera o devir não como fenômeno no sentido daquilo que é dado empiricamente numa perspectiva, mas como um aspecto real das perspectivas elas mesmas. Trata-se daquilo que o autor cadernos Nietzche 29, 2011 235 Mattioli, W. chama de idealismo perspectivo ou idealismo formal, no sentido de que o tempo é “a forma ou estrutura das perspectivas, segundo a qual um conteúdo aparece a elas.” (idem, p. 214) Assim, o tempo não é simplesmente uma aparência (ou uma forma da aparência), já que para que haja um tempo fenomenal dado numa perspectiva é preciso que este tempo seja em certo sentido constituído pela intencionalidade da perspectiva, um processo que já ocorre temporalmente, pois a perspectiva ela mesma possui uma estrutura intencional-temporal10. Deixando de lado aqui, por questões de tempo, o interessantíssimo tratamento dado por Richardson à temporalidade constitutiva da intencionalidade das vontades de poder, queremos simplesmente chamar atenção ao fato de que, apesar de designar essa última interpretação como idealista, ele reconhece por fim que a concepção de Nietzsche acerca das perspectivas e de sua temporalidade imanente o compromete com um realismo temporal. Esta é também 10 Trata-se de uma questão análoga ao problema que encontramos em Kant, e que discutiremos mais profundamente na quinta parte deste trabalho, no que concerne à temporalidade das sínteses da intuição e da imaginação, as quais são responsáveis pela construção de nossa representação do tempo. A síntese da intuição é aquilo que, segundo Kant, deve imprimir as formas do tempo e do espaço ao material bruto dado à sensibilidade. Ao que tudo indica, porém, a síntese é ela mesma um processo temporal, o que implicaria que deve existir um tempo que é anterior ao tempo compreendido como forma dos fenômenos percebidos empiricamente. Essas reflexões nos conduzem a um realismo temporal. No caso de Nietzsche, podemos dizer que se as perspectivas se desenrolam num tempo que é imanente a elas mesmas, mas que não coincide com o tempo que é dado como seu conteúdo, é porque existe uma temporalidade ontologicamente anterior à temporalidade fenomenal e que não pode ser apreendida empiricamente. Como afirma Stegmaier em seu artigo “Zeit der Vorstellung. Nietzsches Vorstellung der Zeit”, “a representação do tempo ocorre em um tempo que condiciona a representação e que, por isso, não pode mais ser ele mesmo representado, não pode mais ser fenômeno.” (STEGMAIER 26, p. 203) Cf. a esse respeito sobretudo os fragmentos onde Nietzsche aborda a questão da “inversão do tempo” no processo de representação: GD/CI, Os quatro grandes erros 4, KSA, Nachlass/FP 26[35], KSA 11.156-7 e 26[44], KSA 11.159. Dessa forma, somos igualmente conduzidos, a partir daquilo que Richardson chama de “idealismo formal”, a um realismo temporal. 236 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo nossa posição. Além disso, pretendemos ver na interpretação literal da tese nietzscheana do devir, no sentido de uma ontologia, não uma recaída numa espécie de dualismo metafísico, mas a radicalização de um elemento essencial da imanência da experiência. Para tanto, nos serviremos de uma interpretação do conceito de tempo em Nietzsche a partir de um diálogo com algumas das teses kantianas da estética transcendental e com a crítica de Afrikan Spir a estas teses. 4. Afrikan Spir e o argumento fenomenológico acerca da realidade do tempo Além de Lange e Schopenhauer, um outro autor que desempenhou um papel fundamental na recepção da filosofia transcendental por Nietzsche foi Afrikan Spir. Em sua obra principal, Denken und Wirklichkeit (Pensamento e realidade), encontra-se uma crítica perspicaz à concepção kantiana do tempo que parece ter influenciado de maneira essencial a compreensão que Nietzsche teve do problema e o seu esforço por romper consistentemente com a tese do idealismo transcendental do tempo. O problema é tratado por Nietzsche no contexto de suas reflexões sobre os pré-socráticos, particularmente sobre Parmênides, no escrito sobre a filosofia na época trágica dos gregos. A leitura que Nietzsche faz da filosofia de Parmênides se sustenta no quadro teórico que ele toma emprestado da obra de Spir, segundo o qual a realidade do devir, sustentada por Heráclito e à qual a filosofia de Parmênides virá se opor, implica a não-inteligibilidade do real. Spir defende que a atividade cognitiva que está na base de nossa apreensão do mundo empírico é marcada por uma contradição. Segundo ele, o mundo empírico, na medida em que encerra pluralidade e mudança, não se deixa subsumir em sentido estrito ao princípio de identidade (que supõe a identidade absoluta de um objeto consigo mesmo). Contudo, conhecer não é outra coisa que cadernos Nietzche 29, 2011 237 Mattioli, W. forçar a pluralidade e a mudança do mundo da experiência na unidade de princípio do pensamento. Esta contradição teria como consequência uma aporia insuperável no que concerne à possibilidade de uma apreensão verdadeira dos objetos da experiência11. Para Nietzsche, este seria o ponto chave para a compreensão da negação do movimento e da mudança na filosofia de Parmênides. O pensamento e sua lei lógica fundamental implicam o Ser, idêntico a si mesmo. A experiência sensível, ao contrário, nos confronta a todo momento com a mudança, o que contradiz o princípio fundamental da identidade. Ora, a mudança implica o não-ser; mas o não-ser – não é! Conclusão: não há mudança, nem movimento, nem tempo, pois o tempo e a sucessão implicam a mudança. O Ser, ao contrário, é eterno, imutável e idêntico a si mesmo, como o quer a lei lógica fundamental do pensamento (cf. KSA 1. 841-844). A vantagem da concepção de Parmênides frente às de seus contemporâneos seria, segundo Nietzsche, que ela nos permite evitar as contradições nascidas da aceitação de um espaço e de um tempo infinitos, preenchidos por uma infinidade de substâncias (átomos). Um dos pontos centrais do pensamento de Parmênides poderia, assim, ser resumido da seguinte forma: “não pode haver nenhum tempo, nenhum movimento, nenhum espaço, pois só podemos pensá-los como infinitos, a saber, infinitamente grandes e, em seguida, infinitamente divisíveis; tudo que é infinito, porém, não possui Ser, não existe” (idem, p. 856). E é aqui que Nietzsche recorre aos argumentos de Kant e Spir para confrontá-los entre si. Segundo ele, os adversários de Pardêmides poderiam lhe objetar que há sucessão no próprio pensamento, que as idéias e as representações ocorrem de acordo com uma estrutura temporal. Nesse sentido, o próprio pensamento não conteria nada de real e, portanto, nada poderia provar. A uma tal objeção, Parmênides poderia responder, como Kant, 11 Ver a esse respeito Green 6, p. 48. 238 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo da seguinte forma: “é verdade que eu posso dizer que minhas representações se sucedem umas às outras: mas isso significa apenas que somos conscientes delas numa sequência temporal, isto é, segundo a forma do sentido interno. Assim, o tempo não é algo em si, tampouco uma determinação objetivamente inerente às coisas.” (idem, p. 857) Nietzsche observa então a esse respeito que seria necessário “distinguir entre o pensamento puro, que seria atemporal como o ser parmenídico, e a consciência desse pensamento, e esta última já traduziria o pensamento na forma da aparência, ou seja, da sucessão, da pluralidade e do movimento” (idem). O que temos aqui não é nada mais nada menos que o argumento kantiano a favor do fenomenismo da experiência interna, o qual se funda no conceito de autoafecção que, por sua vez, está essencialmente associado à tese da idealidade transcendental do tempo. Segundo este argumento, a experiência interna, isto é, a consciência que temos de nós mesmos no fluxo de nossas representações, nos oferece apenas um fenômeno do mesmo gênero daqueles do mundo externo, o que significa que ela não corresponde à realidade do sujeito. Uma vez que essa consciência emerge sob a forma do sentido interno (o tempo), ela não pode nos dar senão um fenômeno do sujeito, já que o sujeito ele mesmo, o sujeito transcendental, deve ser atemporal e independente de todas as formas da sensibilidade12. Nesse sentido, Parmênides poderia recorrer à tese kantiana a afirmar que a sucessão de nossas representações na consciência é apenas um fenômeno que não corresponde à verdadeira natureza do pensamento, do pensamento puro, idêntico a si mesmo e localizado num dimensão atemporal assim como o próprio Ser. Nietzsche prossegue, então, e apresenta o argumento de Spir contra a tese kantiana: 12 Retornaremos a esse argumento na sequência. cadernos Nietzche 29, 2011 239 Mattioli, W. É provável que Parmênides tivesse se servido dessa saída: aliás, deveria-se objetar contra ele o mesmo que A. Spir (Pensamento e realidade, p. 264) objeta contra Kant. “Agora, porém, é claro primeiramente que eu não posso saber nada de uma sucessão enquanto tal se eu não tiver ao mesmo tempo em minha consciência as partes que se sucedem. A representação de uma sucessão, portanto, não é ela mesma sucessiva; por conseguinte, ela é também totalmente distinta da sucessão de nossas representações. […] O fato é que não podemos de modo algum negar a realidade da mudança. Se a jogarmos pela janela, ela surge novamente pelo buraco da fechadura. Que se diga: “simplesmente me parece que os estados e as representações mudam” – entretanto, essa aparência mesma é algo objetivamente existente e nela a sucessão possui, sem dúvida alguma, realidade objetiva; nela, as coisas realmente se seguem umas às outras. […] Ora, está fora de dúvida que nossas próprias representações nos aparecem como sucessivas (idem, p. 857-858). Este argumento é fundamental para a compreensão da temporalidade imanente à experiência proposta aqui como ponto de partida para a afirmação da realidade do devir. O argumento decisivo desta passagem é o seguinte: ao dizer que meus estados de consciência e minhas representações me aparecem como sucessivos e mutáveis, sou obrigado a aceitar que essa aparência mesma possui uma realidade objetiva enquanto estado de consciência – realidade da qual não podemos abstrair a temporalidade sem contradizer radicalmente a evidência fenomenológica mais elementar do processo do representar. A estrutura da argumentação em questão é análoga à estrutura do cogito cartesiano, mesmo que ela não implique necessariamente uma adesão à tese do cogito propriamente dito (pelo menos não no sentido em que Nietzsche o compreende). Há aqui um apelo à fenomenalidade radical da consciência representacional, que é levada a seus limites, e à evidência de sua forma constitutiva. O que é 240 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo considerado aqui, porém, não é o cogito como o compreenderá Nietzsche mais tarde, isto é, o conteúdo de um ato de consciência enquanto consciência pensante, mas sim a forma da cogitatio, a saber, sua forma temporal enquanto estrutura imanente a toda representação possível. De acordo com este argumento, o modo temporal das representações, o fluxo da consciência, implica a realidade objetiva do tempo. Trata-se aqui, portanto, de uma constatação em certo sentido fenomenológica de que à essência de toda cogitatio pertence um tempo que é constitutivo da cogitatio ela mesma e que não pode ser dela abstraído. Assim, a temporalidade não é um atributo acidental do pensamento e da representação, mas, antes, uma de suas determinações mais essenciais. O aparecer sucessivo e em constante mudança de dados sensíveis imanentes na atividade do representar é fenomenologicamente indubitável. Por conseguinte, na medida em que a sucessão e a mudança das representações possuem realidade objetiva; na medida em que, no próprio aparecer das representações, uma coisa se segue realmente à outra, não estamos autorizados a negar a realidade do tempo. Com isso, a tese kantiana da idealidade transcendental do tempo estaria refutada13. 13 A concepção kantiana segundo a qual os conteúdos da mente, dos quais somos conscientes no tempo e através dos quais chegamos à consciência de nós mesmos, são produtos de atividades intelectuais atemporais de um sujeito localizado fora do tempo, está envolvida por contradições. A teoria de Kant da autoafecção, sobre a qual ainda falaremos, implica que aquilo que corresponde ao conteúdo da consciência-de-si empírica é apenas o fenômeno de uma faculdade intelectual transcendental e atemporal que afeta o sentido interno (KANT 15, B153-154). Os atos transcendentais do pensamento apareceriam, assim, para Kant, como conteúdos representacionais determinados numa consciência temporal; contudo, em si, eles seriam atemporais. Como observa Henry Allison, porém, resumindo assim uma das críticas de Strawson a Kant: “qualquer tentativa de imputar uma construção não-temporal no verbo “aparecer” nos lança imediatamente na ininteligibilidade. Por razões similares, não faz nenhum sentido falar na sucessão de estados no sujeito empírico como o aparecer do sujeito supra-sensível” (ALLISON 2, p. 289) Voltaremos a este ponto na sequência. cadernos Nietzche 29, 2011 241 Mattioli, W. 5. Kant e as aporias concernentes ao problema do tempo na Crítica da razão pura Não é por acaso que a filosofia transcendental kantiana se depara com problemas concretos e quase insuperáveis no que diz respeito à sua tese do idealismo transcendental do tempo, o que talvez justifique a maior parte das contradições e aporias a esse respeito na primeira crítica. Inicialmente, podemos dizer que o próprio Kant não permaneceu absolutamente fiel à teoria do tempo apresentada por ele na estética transcendental14, de forma que o tempo adquire um papel muito mais constitutivo na dedução transcendental que ele não possuía a princípio. Em primeiro lugar, Kant diferencia dois tipos totalmente diversos de consciência, que correspondem a duas “faces” do sujeito: a empírica e a transcendental. À consciência empírica corresponde o sujeito na medida em que este é compreendido como objeto de uma apercepção temporal que ocorre segundo a forma do sentido interno através de uma autoafecção. A consciência transcendental, por sua vez, também chamada apercepção pura, tem como objeto a unidade formal e sem conteúdo de um sujeito localizado fora do tempo, e é compreendida com um puro “eu penso”, tendo lugar numa dimensão totalmente independente das formas das sensibilidade. Essa consciência, contudo, uma vez que ela não possui 14 Ver por exemplo o capítulo sobre o esquematismo dos conceitos puros do entendimento, onde Kant compreende o esquema como uma determinação transcendental do tempo que deve ser homogênea à categoria, isto é, ao entendimento (B177-178) Alexander Schnell, em seu livro En deçà du sujet. Du temps dans la philosophie transcendantale allemande, observa a esse respeito que “é necessário deduzir daí que o tempo – mesmo que Kant não o diga explicitamente – possui uma dimensão intelectual” (SCHNELL 20, p. 61); o que significa, por sua vez, que o próprio entendimento possui também um caráter temporal. Podemos dizer, portanto, que Kant abdica aqui da tese apresentada na introdução, e que é pressuposta na estética, segundo a qual há uma irredutibilidade radical do entendimento à sensibilidade e da sensibilidade ao entendimento. 242 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo nenhum conteúdo determinado e seu “objeto” não é dado na intuição, não possui um estatuto cognitivo em sentido estrito e não pode ser considerada uma forma de conhecimento. Antes, ela é a condição formal de todo conhecimento possível. O único conhecimento propriamente dito que o sujeito tem de si mesmo é resultado da apercepção empírica, através da qual ele não apreende a si mesmo como ele é em si, mas somente segundo ele aparece a si mesmo sob a forma do fluxo temporal da consciência. A tese da idealidade do tempo enquanto simples forma da intuição é, assim, o pressuposto fundamental da tese do fenomenismo da experiência interna. Tudo isso é apresentado de forma mais ou menos clara na estética transcendental, cuja passagem central para a questão do fenomenismo se encontra na segunda parte do parágrafo 8, onde o conceito de autoafecção é discutido pela primeira vez (B67-68). Por autoafecção, Kant entende aqui a afecção do espírito por ele mesmo, através de sua própria atividade de representar. Uma vez que o conceito de afecção é em Kant sempre ligado à intuição sensível, o objeto dado nessa representação, a saber, o próprio sujeito, só é dado como fenômeno, e não em sua realidade própria, como ele poderia julgar caso sua intuição fosse intelectual. Sabemos, porém, que para Kant não há intuição intelectual. É por isso que a apercepção transcendental, na qual o sujeito transcendental e atemporal é de certa forma “representado” em sua unidade, não é de modo algum uma intuição e, portanto, não tem nenhum conteúdo determinado. Kant discute mais uma vez o conceito de autoafecção no contexto das reflexões sobre o entendimento e as categorias, no parágrafo 24 da “Dedução transcendental”. Aqui, porém, o conceito é definido de forma mais exata como determinação ou ação do entendimento (a parte ativa do sujeito), sobre a sensibilidade (sua parte passiva) (B152-154). Kant designa essa ação do entendimento sobre a sensibilidade como uma síntese transcendental da imaginação, considerando aqui a faculdade da imaginação como uma função do entendimento. cadernos Nietzche 29, 2011 243 Mattioli, W. Contudo, é exatamente no que concerne ao conceito de síntese transcendental, na medida em que ele determina o que Kant chama de “unidade sintética originária da apercepção” (B157), que nos deparamos com aporias e contradições que colocam em evidência o caráter ambíguo da concepção kantiana do tempo. Notemos primeiramente que a representação formal que constitui a apercepção transcendental, isto é, o puro “eu penso”, deve corresponder à unidade do próprio sujeito transcendental (noumenal) enquanto localizado fora do tempo15. Nesse sentido, Kant diz que “esta representação […] é um ato da espontaneidade, isto é, não pode 15 Na verdade, a tese que apresentamos aqui, segundo a qual a apercepção transcendental corresponde ao sujeito noumenal, em oposição ao sujeito fenomenal que é o objeto da apercepção empírica, não é de modo algum evidente, principalmente se considerarmos que o eu da apercepção pura é uma unidade meramente formal. Porém, se partimos do pressuposto de que também no que diz respeito ao conhecimento de si devemos conceber uma distinção transcendental – o que resulta da noção de autoafecção e que exige uma análise bilateral e dualista do sujeito – devemos nos perguntar então o que nos permite diferenciar um eu empírico de um eu puro (transcendental), isto é, de onde inferimos a noção de um eu noumenal, se ele não deve ser entendido como aquilo que constitui o fundamento dessa afecção. Com efeito, na passagem onde Kant apresenta pela primeira vez o argumento da autoafecção, ele diz que “a consciência de si mesmo (a apercepção) é a representação simples do eu e se, por ela só, nos fosse dada, espontaneamente, todo o diverso que se encontra no sujeito, a intuição interna seria então intelectual.” (B68) Isso significa que, se na apercepção todo o diverso pertencente ao sujeito fosse dado imediatamente através de uma intuição intelectual, um conhecimento noumenal deste seria possível. Ademais, na passagem do parágrafo 24 onde Kant apresenta o argumento da autoafecção pela segunda vez, ele a designa como uma ação do entendimento que é exercida sobre a sensibilidade e a qual ele dá o nome de síntese transcendental (B153-154). Ora, o fundamento último dessa síntese não é outra coisa senão a apercepção pura. Kant a compreende como uma função ou faculdade do entendimento puro através da qual um diverso dado e parcialmente sintetizado é trazido à unidade categorial da consciência transcendental, do “eu penso”, que é a representação simples de sua unidade. Esta consciência transcendental é exatamente o que Kant opõe à consciência temporal e empírica que corresponde à autoafecção e que constitui seu fundamento. Dada a forma como Kant apresenta essa oposição, não nos resta outra saída senão concluir que a apercepção transcendental corresponde ao sujeito noumenal, em oposição ao sujeito fenomenal que corresponde à autoafecção. Ver a esse respeito as seguintes passagens da Crítica: B68, B153, B154, A118 (nota 1), A346/404, A492/520, A546/B575. 244 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo considerar-se pertencente à sensibilidade.” (B132) Isso implica necessariamente a exclusão de toda temporalidade possível. Ele prossegue: “Dou-lhe o nome de apercepção pura, para a distinguir da empírica, ou ainda o de apercepção originária” (idem). Porém, essa compreensão do objeto da apercepção transcendental, isto é, da unidade originária do “eu penso”, como livre de toda determinação da sensibilidade, é contradita em várias passagens da Crítica. Acreditamos que a razão dessa contradição repouse na tensão indissolúvel que resulta da compreensão kantiana da apercepção pura, por um lado, como uma unidade sintética, por outro, porém, como uma identidade atemporal16. 16 A questão que se coloca aqui diz respeito à possibilidade de se pensar uma síntese que não seja temporal. E isso porquê o próprio conceito de síntese parece implicar sua dependência estrutural com relação à determinação temporal da sensibilidade. Se tomarmos, por exemplo, a explicação que Kant oferece acerca da possibilidade de julgamentos sintéticos a priori, vemos que a síntese aí implicada só é possível na medida em que um conceito puro é referido a uma intuição pura a priori: “Tem de recorrer-se à intuição, mediante a qual unicamente a síntese é possível.” (B16) Ora, o tempo, como forma do sentido interno, é a forma mais geral de toda intuição, enquanto o espaço diz respeito somente ao sentido externo. Sendo assim, tudo aquilo que pode ser designado como sintético deve necessariamente ser temporal. No que concerne a temporalidade dessa função do espírito, a exposição de seus três modos na “Dedução transcendental” de 1781 desempenha um papel decisivo. A síntese da apreensão na intuição é temporal no sentido em que o diverso ao qual ela se refere só pode ser representado na medida em que o espírito é capaz de distinguir o tempo na série de impressões que se sucedem e de apreender assim as representações umas após as outras. A afirmação de que todas as representações, enquanto modificações do espírito, pertencem ao sentido interno e enquanto tal estão submetidas ao tempo, é estabelecida por Kant como base de toda sua exposição acerca das sínteses das faculdades (A99). Além disso, a síntese da apreensão, em sua relação com a síntese da reprodução, é, para Kant, constitutiva dos modos de representação do tempo, isto é, sucessão e simultaneidade (A99-100) (cf. SCHNELL 20, p. 48). Ademais, sem a reprodução na imaginação daquilo que foi apreendido na intuição, o que torna possível a permanência na consciência do diverso intuído, “não poderia jamais reproduzir-se nenhuma representação completa, nem nenhum dos pensamentos mencionados precedentemente, nem mesmo as representações fundamentais, mais puras e primeiras, do espaço e do tempo. A síntese da apreensão está, portanto, inseparavelmente ligada à síntese da reprodução.” (A102) Ora, mas se a síntese é o que produz pela primeira vez a representação do tempo, e se o tempo não é outra coisa que uma forma ou cadernos Nietzche 29, 2011 245 Mattioli, W. Enquanto unidade sintética, a apercepção deve ser referida à sensibilidade e ser condicionada por ela, a saber, pela temporalidade do ato sintetizante, já que a apercepção só tem suas raízes nas sínteses da intuição e da imaginação. Com efeito, Kant diz que a unidade sintética do diverso da intuição é “o princípio da identidade da própria apercepção” (B134). A identificação da função da unidade originária da apercepção com a função da síntese do diverso é feita por Kant em diversas passagens17. No fundo, o argumento é que a unidade originária da apercepção transcendental corresponde à unidade do sujeito que é responsável pela síntese do diverso da intuição. Mas a síntese do diverso, notemos mais uma vez, é sempre temporal. Como observa Michel Green, “uma vez que aquilo com que a síntese transcendental opera se encon- representação pura, como pode a síntese ser ela mesma temporal? No capítulo sobre as antecipações da experiência, contudo, Kant afirma claramente que “a síntese […] na sua produção, é uma progressão no tempo” (A170/B211). A única forma de conceder inteligibilidade a essas afirmações é aceitar que existe um tempo originariamente anterior às nossas representações ou aos modos de nossa consciência do tempo, o qual não pode ser apreendido, ao passo que aquilo que é produzido pela síntese sãos os modos da sucessão e da simultaneidade segundo os quais percebemos a temporalidade. Com efeito, em algumas passagens Kant afirma que o tempo não pode, em si, ser percebido (A183/B226, A199/B233). Ao que tudo indica, trata-se aqui de uma forma originária do tempo ao qual não podemos atribuir sucessão ou mudança, já que estes últimos dizem respeito somente aos fenômenos percebidos no tempo, e não ao tempo ele mesmo (A183/B226). Kant parece sugerir que é nesse tempo originário que a unidade sintética das relações temporais tem lugar, e isso, em última instância, através da apercepção originária (A177/B220). Esta última, porém, é, para Kant, atemporal. Ela corresponde, no contexto da exposição das três sínteses na “Dedução” de 1781, à síntese da recognição no conceito, que é responsável pela unificação categorial de toda representação em um sujeito numericamente idêntico. Entretanto, devemos notar que essa unidade da apercepção pura só é possível através do ato de síntese do diverso, e este só pode ter lugar num horizonte temporal. Assim, a apercepção deve ser temporal no sentido em que ela tem suas raízes propriamente nas sínteses da intuição e da imaginação. Como diz Alexander Schnell: “isso significa que a unidade da apercepção transcendental não é nada de substancial, mas que ela só se constitui nas sínteses que unificam o diverso da apreensão e da reprodução.” (SCHNELL 20, p. 55) 17 Cf. por exemplo B135 e B157. 246 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo tra no tempo, não podemos concebê-la como outra coisa senão um processo temporal, algo ocorrendo no tempo. Mas, assim entendido, é impossível enxergar como esse processo pode ser vinculado a algo […] que se encontra fora do tempo” (Green 6, p. 50). Frente a esse paradoxo, só nos resta reconhecer que, apesar dos esforços de Kant para distinguir radicalmente a apercepção transcendental da apercepção empírica, desvinculando o “eu penso” de toda determinação sensível, este só pode ser compreendido, no fim das contas, como um eu temporal. Se aceitarmos a sugestão de Strawson a esse respeito, de que a apercepção transcendental tem como objetivo estabelecer uma autoconsciência que revele ao sujeito empírico (temporal) sua identidade essencial com o sujeito transcendental (suprassensível), vemos o mesmo problema se desdobrando a partir de uma outra perspectiva. Pois o eu transcendental diz respeito claramente a um sujeito totalmente atemporal e ahistórico, enquanto o eu empírico, assim como a consciência empírica, pertencem naturalmente a um sujeito que tem uma história e que se encontra sujeito às vicissitudes do tempo. Como afirma Strawson, tudo que pode ser atribuído a um homem como um estado de consciência-de-si constitui algo temporal, algo que ocorre no tempo. Mesmo seu engajamento intelectual enquanto ente pensante, através do qual ele deve se tornar consciente de sua essência transcendental, pertence à sua história: “qualquer consciência-de-si desse gênero, ao que parece, deve pertencer à história de – e deve ser a consciência de um episódio pertencente à história de – um ente que tem uma história e que, portanto, não é um ente suprassensível, não é “o sujeito no qual se funda a representação do tempo” (STRAWSON 27, p. 248). Essas considerações têm consequências fundamentais para a transição do idealismo transcendental ao naturalismo exatamente ao subverter por dentro a tese da idealidade transcendental do tempo, afirmando a historicidade de todo ente. Além disso, a rejeição da tese em questão nos coloca em posição de negar a tese cadernos Nietzche 29, 2011 247 Mattioli, W. do fenomenismo da experiência interna em sua versão kantiana. Uma vez que o tempo não pode mais ser visto simplesmente como uma forma sensível a priori através da qual o sujeito apreende fenomenalmente o mundo e a si mesmo, mas deve ser considerado como pertencendo à realidade essencial desse sujeito, o fato de que a experiência interna se dá num modo temporal não serve mais como argumento a favor de seu caráter fenomenal. E aqui nos deparamos novamente com o argumento de Spir contra Kant citado por Nietzsche por ocasião de sua crítica à concepção parmenídica de um pensamento puro, atemporal e imutável. Ao contrário do que ocorre em Kant, segundo este argumento, o caráter temporal da consciência representacional atesta a essência temporal do sujeito e, assim, a realidade objetiva do tempo. Não podemos pensar o fluxo do tempo de forma consequente como algo que é apenas representado por um sujeito que é em essência atemporal, pois o fato de que as representações aparecem no tempo, que as idéias parecem ocorrer em uma sucessão temporal, já implica que há algo que se dá efetivamente no tempo: esta aparência mesma é algo objetivamente dado e a sucessão tem nela uma realidade objetiva indubitável. Há aqui, portanto, uma inversão do argumento kantiano que pretende provar o caráter fenomenal da experiência interna a partir de sua determinação temporal. Para Nietzsche, seguindo o argumento de Spir, esta determinação temporal é exatamente o núcleo fenomenológico da experiência a partir do qual chegamos a uma determinação real do sujeito e, por conseguinte, a uma premissa ontológica. 6. A temporalidade e o devir da representação como certeza fundamental do Ser Nos fragmentos póstumos de 1881 encontramos uma reflexão que, apesar do grande espaço de tempo que as separa, parece tocar o mesmo tema das reflexões presentes no texto sobre Parmênides do qual tratamos na quarta parte deste trabalho. Trata-se de 248 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo um fragmento bastante problemático, no qual uma versão alternativa do cogito é apresentada, através da qual Nietzsche procura provar o caráter ontológico da mudança a partir da evidência do fluxo imanente da consciência representacional. Antes de analisar o fragmento, porém, é importante chamar a atenção para uma sutileza na posição de Spir no que concerne à realidade da mudança, e isso porque o fragmento em questão também se insere num diálogo com seu pensamento. Como já foi mencionado, para Spir, o princípio de identidade nos oferece um conceito da essência incondicionada do mundo, uma vez que a noção de identidade-a-si coincide com a noção de incondicionado. Isso quer dizer que, com relação à sua realidade última, cada objeto, cada substância, é absolutamente idêntica a si mesma, o que implica a exclusão de toda pluralidade, de toda mudança e, por conseguinte, de toda temporalidade. Assim, para Spir, se por um lado a realidade objetiva do tempo não pode ser negada, devemos, por outro lado, considerar o incondicionado, a coisa em si, como livre das vicissitudes do tempo. Podemos deduzir daí que, ao contrário dos modelos dualistas de Kant e Schopenhauer, Spir estabelece três níveis ontológicos, dos quais o primeiro, ao qual pertence a verdadeira essência das coisas, está localizado numa dimensão atemporal. Com efeito, ele afirma que “além das coisas em si e das coisas para nós, as quais existem na mera representação, há ainda um terceiro tipo de objetos que não são nem um nem outro, que existem realmente, porém não como “coisas em si”, – a saber, nós mesmos, os sujeitos cognoscentes ao menos, e nossas representações.” (SPIR 23 I, p. 266)18 Portanto, é a este último nível que pertencem ontologicamente a temporalidade e a mudança nas quais o sujeito e suas representações estão imersos, enquanto no nível ontológico da coisa em si elas estão ausentes. 18 Cf. a esse respeito D’Iorio 4, p. 268. cadernos Nietzche 29, 2011 249 Mattioli, W. Desse modo, em seu diálogo com a filosofia de Spir, Nietzsche faz uso de sua argumentação perspicaz contra a tese kantiana da irrealidade do tempo, mas ele não acata de modo algum sua ontologia. No fim das contas, parece que o intuito de Spir ao afirmar a realidade efetiva do tempo e da mudança não é outro senão o de contrapô-la à lei originária do pensamento, o princípio de identidade, a fim de provar assim seu caráter absolutamente a priori e sua validade objetiva (SPIR 23 I, p. 269). De acordo com ele, a essência incondicionada das coisas tem a mesma natureza do Ser de Parmênides. Nesse sentido, para Nietzsche, Spir estaria tão próximo da superstição básica da filosofia transcendental (de cunho parmenídico) quanto Kant. Nietzsche vê o conceito de incondicionado como uma ficcção da representação; uma ficção necessária, tanto para o pensamento quanto para a vida em geral, na medida em que ela torna possível o (re)conhecimento do “idêntico” – mas ela não é nada mais que uma ficção19. Voltemos então agora nossa atenção para algumas das passagens mais importantes do fragmento de 1881 mencionado acima: O que é próprio ao processo do representar é a mudança, […] assim como o esvaecimento e o surgimento, e, no processo mesmo do representar, não há nada de permanente; contrariamente a isso, porém, ele postula duas permanências, ele acredita na permanência 1) de um eu 2) de um conteúdo: esta crença na permanência da substância, isto é, no permanecer-idêntico de algo consigo mesmo, é o oposto do processo mesmo da representação. […] É claro em si, porém, que o representar não é nada em repouso, nada idêntico a si mesmo, imutável: portanto, o único ser que nos é assegurado é mutável, não-idêntico-a-si-mesmo, tem relações (é condicionado, o pensamento tem que ter um conteúdo para ser pensamento). – Eis a certeza fundamental do ser. Mas o representar 19 Ver a esse respeito, por exemplo, Nachlass/FP 1883, 8[25], KSA 10.342-3 e 40[12], KSA 11.633-4. 250 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo afirma precisamente o contrário do ser! O que nem por isso precisa ser verdade! Antes, talvez essa afirmação do contrário seja apenas uma condição de existência deste tipo de ser, do tipo representacional! Isso significa que o pensamento seria impossível se ele não desconhecesse fundamentalmente a essência da esse: ele precisa afirmar a substância e o idêntico, pois um conhecimento daquilo que está absolutamente em fluxo é impossível; ele precisa atribuir qualidades ficcionais ao ser, para poder ele mesmo existir. […] Em suma: o que o pensamento apreende como o real, o que ele tem que apreender como real, pode ser o oposto do ente! (Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70). Como já indicou Karl-Heinz Dickopp (DICKOPP 3, p. 56), a principal fonte para o desenvolvimento dessas reflexões é o primeiro capítulo do primeiro livro da segunda edição da obra principal de Spir, Denken und Wirklichkeit, que trata da certeza imediata. O título do fragmento é certeza fundamental (Grundgewissheit), e nele encontramos, como abertura da argumentação, uma versão alternativa do cogito como ponto de partida para uma determinação ontológica do Ser. A versão nietzscheana da fórmula cartesiana é a seguinte: ““represento, logo há ser” (Ich stelle vor, also giebt es Sein), cogito, ergo est” (Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70). Que Descartes, contudo, não é realmente o filósofo visado aqui, fica claro ao compararmos o fragmento com o texto de Spir que encontramos no primeiro capítulo de sua obra. No mesmo sentido que Descartes, Spir afirma que a certeza é o fim da filosofia, e que há fundamentalmente dois tipos de certezas: as mediatas e as imediatas. À filosofia é atribuído o papel de encontrar uma certeza imediata sobre a qual todo conhecimento digno do nome deve ser fundado. Para Spir, Descartes teria sido o primeiro a lidar com essa questão de forma essencial, ao considerar o pensamento e a consciência como imediatamente certos (SPIR 24 I, p. 26). Na sequência do texto, Spir se desloca então do campo semântico aberto pelo termo “pensamento”, considerado como certeza imediata, para o cadernos Nietzche 29, 2011 251 Mattioli, W. campo semântico do termo “representação”, mais geral, mas por isso mesmo mais preciso no contexto em questão. Ele diz então que “em todo saber, ou dito de forma mais geral, em toda representação, deve-se distinguir duas coisas: o que a representação mesma é, e o que ela representa; em outras palavras: o que é dado numa representação e o que nela é afirmado (acerca dos objetos).” (idem, p. 27) Segundo Spir, só estamos imediatamente certos com relação ao que a representação mesma é, ao passo que aquilo que é afirmado acerca do conteúdo da representação permanece duvidoso. A sequência da argumentação nos apresenta então um novo elemento. Após sustentar a necessidade de investigar a natureza da representação enquanto tal, uma vez que a certeza fundamental só pode ser encontrada nas próprias representações, Spir afirma que, além da facticidade irrefutável daquilo que é imediatamente dado na representação e que possui um caráter individual e particular, há ainda princípios do conhecimento em geral que possuem o mesmo grau de certeza que os conteúdos imediatos da representação. Contudo, contrariamente a estes últimos, de natureza factual e particular (eles são designados como uma certa impressão dos sentidos, um som, um gosto ou um odor particulares), os princípios gerais do saber se referem ao universal e abstrato. Assim, eles seriam a fonte de toda certeza racional, “diferentemente da certeza factual, a qual pertence aos dados e fatos da consciência” (idem, p. 29). E a certeza fundamental que pertence a este nível é precisamente o princípio de identidade, o qual, para Spir, nos dá o conceito do incondicionado, que corresponde à verdadeira essência das coisas. Esta retomada das teses de Spir é necessária se quisermos compreender o argumento central apresentado por Nietzsche no fragmento que estamos analisando. Em seu comentário deste texto, Karl-Heinz Dickopp parece ter se enganado com relação a um ponto central do argumento. Ele sugere que na segunda parte do aforismo Nietzsche sustenta a tese de que o ser, no sentido em que o compreende Spir, isto é, o ser como incondicionado, nos é desconhecido, e que não haveria nenhuma ponte que pudesse nos conduzir 252 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo da certeza fundamental do ser que representa, o ser condicionado, ao verdadeiro ser incondicionado, o qual, segundo Dickopp, estaria designado no texto de Nietzsche pelo termo “esse” (DICKOPP 3, p. 57-58). Acreditamos haver aqui um sério mal-entendido no que diz respeito à compreensão do Ser desenvolvida por Nietzsche neste texto. De fato, a utilização do termo “Ser” é aqui ambígua. Em Nietzsche, ele designa geralmente o Ser no sentido parmenídico (assim como Spir o compreende), ou seja, como identidade absoluta, permanência, em suma, como o incondicionado atemporal. É por essa razão que ele afirma com frequência que o Ser é uma ilusão, referindo-se aqui ao sentido original do termo. No fragmento em questão, porém, o termo designa exatamente o contrário daquilo que está originalmente nele implicado; “Ser”, aqui, como aquilo que nos é dado no processo do representar enquanto certeza fundamental, significa devir, não-identidade, mudança e relacionalidade. O mesmo vale para o termo “esse”. A afirmação que o pensamento deve desconhecer a essência do “esse” significa que não haveria pensamento ou representação, e portanto tampouco experiência, sem uma ficção de permanência que tornasse o representar possível a partir de uma normatividade epistêmica segundo a qual o devir é fragmentado em objetos ideais estáveis: “o pensamento seria impossível se ele não desconhecesse fundamentalmente a essência da esse: ele precisa afirmar a substância e o idêntico, pois um conhecimento daquilo que está absolutamente em fluxo é impossível” (Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70). Se retomarmos o texto de Spir, veremos que se trata aqui de uma estratégia argumentativa bastante sofisticada de Nietzsche contra sua ontologia do incondicionado. Como vimos, na sua análise da certeza imediata, Spir distingue entre o que a representação mesma é, e o que é afirmado acerca do conteúdo da representação, considerando como certo somente o primeiro. Contudo, na sequência da argumentação, ele afirma que o princípio de identidade, como princípio geral da representação, é tão certo quanto seu dado factual (cf. SPIR 24 I, p. 29). Enquanto elemento constitutivo cadernos Nietzche 29, 2011 253 Mattioli, W. da representação, o princípio de indentidade, ao estabelecer a norma a priori para a determinação do conteúdo da representação enquanto objeto empírico, garante objetividade à experiência, atuando como discriminante ontológico. Do valor a priori desse princípio, Spir deduz então sua validade objetiva, afirmando que a partir dele estamos autorizados a determinar a essência incondicionada das coisas. É exatamente com relação a este aspecto de discriminante ontológico do princípio de identidade que Nietzsche dirá que o representar afirma o contrário do Ser. Acompanhando Spir em seu argumento segundo o qual somente o dado factual da representação é certo, ao passo que aquilo que é afirmado acerca dele permanece incerto, Nietzsche escreve: “É claro em si, porém, que o representar não é nada em repouso, nada idêntico a si mesmo, imutável: portanto, o único ser que nos é assegurado é mutável, não-idêntico-a-si-mesmo […] Eis a certeza fundamental do ser. Mas o representar afirma precisamente o contrário do ser!” (Nachlass/FP 1881, 11[330], KSA 9.569-70). Ou seja, ao passo que o fluxo, a mudança e a não-identidade são dados de modo imanente no processo da representação, este conteúdo factual imanente é julgado e interpretado de modo a se adequar à norma epistêmica que rege a constituição da experiência e, assim, a representação afirma o contrário do devir. Contudo, como havia indicado Spir, o que é afirmado acerca do conteúdo da representação não possui o estatuto de certeza fundamental e, por conseguinte, não pode servir de base para a construção de um conhecimento ontológico seguro. Para Nietzsche, isso implica na negação do estatuto ontológico do Ser como o compreende Spir e Parmênides. Se estamos em algum grau autorizados a falar numa “identidade entre Ser e pensamento”, essa identidade deve ser buscada não na ficção de permanência exigida pela representação como sua condição de existência, mas na evidência de seu caráter mutável e temporal. O Ser de Nietzsche é, portanto, visto a partir de uma fenomenologia do processo de representação, o devir. 254 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo 7. Temporalidade, força e devir absoluto A partir do que foi dito até agora, podemos concluir que a negação da tese do idealismo transcendental do tempo implica a afirmação do caráter ontológico da mudança e, portanto, do devir. É o que podemos ver também em um fragmento de 1885, onde Nietzsche escreve: “Rejeitar o “atemporal”. Em um momento determinado da força, a condição absoluta de uma nova distribuição de todas suas forças está dada: ela não pode permanecer em repouso. A “mudança” pertence à essência, por conseguinte, a temporalidade também: com o que apenas estabelecemos mais uma vez, conceitualmente, a necessidade da mudança” (Nachlass/FP , 35[55], KSA 9.537). Os três conceitos centrais deste fragmento são: temporalidade, mudança e força. Para Nietzsche, mudança e temporalidade são termos praticamente intercambiáveis, uma vez que a temporalidade implica necessariamente a mudança e a mudança pressupõe necessariamente a temporalidade. O novo conceito com o qual nos deparamos aqui é o conceito de força, o qual concede uma determinação mais positiva à noção nietzscheana do devir. Além disso, ele faz uma ponte entre a perspectiva essencialmente “subjetiva/ internalista” (de primeira pessoa), a partir da qual estabelecemos a realidade do tempo através de uma fenomenologia do processo de representação, e uma perspectiva “objetiva/externalista” (de terceira pessoa), baseada em modelos explicativos das ciências naturais que servirão para a confirmação e elaboração logicamente ulteriores da tese do devir. Com efeito, é somente por meio do conceito de força que podemos deduzir, partindo do caráter ontológico do tempo e da mudança, o caráter absoluto do vir-a-ser. Assim, para Nietzsche, em toda mudança está implicada a ação de uma força que age no tempo, e a qual não pode um só instante permanecer em repouso, já que sua essência consiste precisamente em agir. cadernos Nietzche 29, 2011 255 Mattioli, W. Além disso, ao rejeitar o atemporal, Nietzsche nega toda ontologia de cunho parmenídico, inclusive a de Spir, sustentando que a temporalidade e a mudança pertencem à essência. A compreensão da mudança como consequência das variações de condição da força no tempo já havia sido elaborada por Nietzsche num fragmento de 1873, onde ele desenvolve sua teoria dos átomos temporais (Zeitatomlehre): “se tomarmos aquilo que age no tempo, então aquilo que age é, em cada momento mais ínfimo do tempo, algo diverso. Isto é: o tempo atesta a não-permanência absoluta de uma força.” (Nachlass/FP 1873, 26[12], KSA 7.575-6)20 Isto significa que toda relação de força implica sempre uma perda ou diminuição e um ganho ou aumento de força. A ação entre as forças engendra, assim, uma mudança necessária em termos de quantidade nos estados da energia dada num momento determinado. A força não pode jamais permanecer imóvel, pois caso contrário ela seria “não-força” (Unkraft) (Nachlass/FP 1881,11[281], KSA 9.549). Sua natureza mais essencial consiste precisamente em sua capacidade de agir e produzir uma mudança quantitativa dos estados de energia no tempo. O principal modelo científico sobre o qual jovem Nietzsche se baseia para a construção de sua Zeitatomlehre é o modelo dinâmico do físico Roger Bocovich (1711-1787), que abdica do conceito de matéria e procura construir uma teoria fundada na noção de pontos inextensos compreendidos como centros dinâmicos de força21. Porém, Boscovich não é o único pensador que ofereceu a Nietzsche 20 Ver ainda no mesmo fragmento: “Normalmente, na física atomística, aceitamos a existência de átomos de força imutáveis no tempo, ou seja, ὄντα em sentido parmenídico. Estes, porém, não podem agir. Apenas forças absolutamente mutáveis podem agir; forças que em nenhum instante são as mesmas. Todas as forças são apenas função do tempo” (idem). 21 Para uma análise mais detalhada da relação entre Nietzsche e Boscovich, ver, por exemplo, SCHLECHTA& ANDERS 19, pp. 127-153, WHILOCK 28 (sobretudo sobre a influência de Boscovich na Zeitatomlehre) e WHITLOCK 29. 256 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo alguns elementos científicos para pensar a relação entre tempo e devir, nem a física é a única ciência natural da qual Nietzsche retirou inspiração. No texto que serviu de base para suas lições sobre os filósofos pré-platônicos, particularmente no parágrafo sobre Heráclito, Nietzsche recorre a algumas observações do fisiólogo Ernst von Bär22 para ilustrar a concepção heraclítica do devir e conceder-lhe assim uma maior credibilidade. Ele comenta que Bär se serve de uma ficção notável para apresentar sua tese acerca do tempo biológico. De acordo com a tese em questão, cada organismo perceberia as mudanças no tempo segundo a estrutura fisiológica que determina sua pulsação. Mas antes de apresentar a tese de Bär, Nietzsche introduz o conceito de força, sugerindo que algo estritamente permanente não pode ser encontrado em lugar algum, já que toda ação de forças implica uma variação e, portanto, uma perda de força. Por conseguinte, é apenas em virtude de nossa pequena unidade de medida subjetiva que o homem acredita reconhecer repouso e estabilidade na natureza. Com efeito, segundo Bär, “a velocidade da sensação e dos movimentos voluntários, da vida mental, portanto, parece ser, em diferentes animais, proporcional à velocidade de sua pulsação.” (KGW II 4.267-268) Nesse sentido, um animal que possui uma pulsação quatro vezes mais rápida que um outro poderá sentir, experienciar e viver, num mesmo intervalo de tempo, quatro vezes mais que este último. A vida interior das diversas espécies animais (inclusive do homem) decorre no mesmo espaço de tempo astronômico com uma velocidade especificamente diversa: e é de acordo com ela que se 22 Como demonstrou Paolo D’Iorio (cf. D’IORIO 5, pp. 398-400), Nietzsche retira essas observações do artigo de Otto Liebmann: “Über subjective, objective und absolute Zeit”, publicado no Philosophisches Monatsheft do inverno de 1871/72. O artigo de Liebmann foi publicado também em seu livro Zur Analysis der Wirklichkeit. Philosophische Untersuchungen. A passagem em questão se encontra nas páginas 8385 da edição de 1876. cadernos Nietzche 29, 2011 257 Mattioli, W. orienta a medida subjetiva do tempo. É somente porquê em nós essa medida é proporcionalmente pequena que um indivíduo orgânico, uma planta, um animal nos aparece como estável em termos de grandeza e forma: pois podemos vê-lo, em um minuto, cem vezes ou mais, sem notar exteriormente nenhuma mudança. […] apenas para um certo grau de percepção existem formas. A natureza é tão infinita para dentro quanto para fora: chegamos, no momento, até a célula e as partes da célula: mas não há um limite onde pudéssemos dizer: aqui é o último ponto para dentro; o devir nunca cessa, nem no infinitamente pequeno. Mas tampouco há algo absolutamente imutável naquilo que é da maior grandeza (idem, pp. 268-270). A tese de que a percepção da mudança depende de uma unidade de medida absolutamente subjetiva, encontramo-la mais uma vez em alguns fragmentos dos anos 80, onde Nietzsche diz, por exemplo, que o tempo real é provavelmente muito mais lento que a velocidade segundo a qual o percebemos: “percebemos tão pouco, ainda que, para nós, um dia pareça muito longo, ao contrário do mesmo dia no sentimento de um inseto. Em verdade, porém, nossa circulação sanguínea poderia ter a duração de um ciclo da terra e do sol” (Nachlass/FP 1881, 11[184], KSA 9.512). Nosso mundo fenomenal depende integralmente dessa unidade de medida orgânica. Segundo as considerações de Bär citadas por Nietzsche em seu texto sobre Heráclito, uma alteração na intensidade de nossa pulsação teria um efeito direto sobre nossa percepção da mudança. Poderíamos, por exemplo, imaginar nossa pulsação enormemente desacelerada, como se vivêssemos centenas de milhares de anos, de modo que nossa estrutura sensível seria incapaz de perceber formas ou coisas permanentes; tudo o que nos aparece agora como estável se fundiria num fluxo eterno: “todas as formas que nos parecem permanentes se diluiriam na precipitação dos acontecimentos e seriam tragadas pela tormenta selvagem do devir” (KGW II 4.269). Em um outro fragmento dos anos 80, Nietzsche escreve: 258 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo “o mundo, para nós, não é ele apenas uma soma de relações sob uma medida? Tão logo essa medida aleatória desapareça, nosso mundo se dilui!” (Nachlass/FP 1881, 11[36], KSA 9.454). A conclusão que emerge da argumentação em questão é a seguinte: a realidade do tempo implica a realidade da mudança; esta, por sua vez, deve ser compreendida como uma variação dos estados de energia como resultado da ação das forças no tempo; entendida como alteração nos estados das forças, a mudança deve ser vista como contínua e absoluta, pois a força não pode permanecer um só instante imóvel. Tudo que percebemos como imóvel é apenas o resultado de nossa incapacidade de perceber a mudança num tempo que não pode ser apreendido por nossa unidade de medida temporal. Assim, no fundo, os movimentos e mudanças dos estados do mundo considerados por nós como lentos ou rápidos não se deixam medir segundo uma unidade supostamente absoluta. Nesse sentido, “lento” ou “rápido” seriam apenas determinações relativas a uma estrutura particular de percepção da mudança. O “absolutamente lento” para uma certa configuração perceptiva equivaleria então à permanência e à imobilidade. Na verdade, segundo Nietzsche, se houvesse realmente, no mundo do devir, um só instante de imobilidade da força em sentido estrito, isso engendraria uma aniquilação sistemática do movimento total do mundo do vir-a-ser. Se a energia dinâmica que constitui os estados da força em constante alteração encontrasse uma estabilidade, chegaríamos no fim das contas a um estado de repouso ou equilíbrio absoluto que Nietzsche, seguindo alguns outros pensadores e cientistas da época, chamou de Gleichgewichtszustand23. Uma vez alcançado esse estado, não se poderia mais 23 Para uma análise da discussão da época sobre a tese de um estado de equilíbrio no universo, sobretudo com relação ao princípio de conservação da energia, e sobre a recepção de Nietzsche dessa discussão através de diferentes fontes científicas de seu tempo, cf. MITTASCH 14, p. 113-114, ABEL1, pp. 381-395, ZITTEL 30, p. 408-409. cadernos Nietzche 29, 2011 259 Mattioli, W. sair dele24. Contudo, já que não chegamos a um tal estado de coisas – e a existência do próprio pensamento enquanto um devir é, para Nietzsche, uma evidência fenomenológica para tal afirmação25 – devemos concluir que este estado não é possível. Em suas reflexões sobre o eterno retorno, encontramos uma justificativa para tal conclusão. Trata-se da tese segundo a qual o tempo é infinito. Esta tese implica que se um tal estado não ocorreu no passado (considerado aqui como um tempo passado infinito), pois, se tivesse ocorrido, não se poderia ter dele saído, tampouco pode ele ocorrer no futuro: Se o mundo tivesse um fim, ele deveria ter sido alcançado. Se houvesse, para ele, um estado final involuntário, este também deveria ter sido alcançado. Se ele estivesse, em algum grau, sujeito à permanência e ao enregelamento, ao “Ser”; se ele tivesse, em apenas um momento de todo seu devir, essa capacidade para do “Ser”, todo o devir, por sua vez, já teria encontrado seu fim, assim como todo pensamento, toda “mente”. A existência da “mente” como um devir prova que o mundo não tem um fim, um estado final, e que ele é incapaz do Ser (Nachlass/FP 1885, 36[15], KSA 11.556-7). Não entraremos aqui em uma análise mais detalhada desta tese, o que demandaria um tratamento mais profundo da teoria do eterno retorno. Nos limitaremos, portanto, à conclusão de que, uma vez que a temporalidade implica a mudança e que a força aí atuante não pode um só instante permanecer em repouso, a existência objetiva do tempo nos conduz à tese do devir absoluto. 24 A esse respeito, ver ainda a correspondência entre Nietzsche e Peter Gast de julho de 1885 (cf. respectivamente KGB III 4.34, KGB III 3, p. 69 e KWB III 4, p. 42) acerca do recém lançado livro de Paul Widemann, Erkennen und Sein (Conhecimento e Ser), na qual encontramos reflexões interessantes sobre o tema em questão e sobre as noções de tempo, espaço, matéria e força. Infelizmente não há espaço aqui para uma discussão dessa correspondência. 25 Cf. KSA XI, 36[15]. A esse respeito, ver ainda SMALL 22, p. 100. 260 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo 8. Tempo, espaço e força: fenomenologia e naturalismo É possível notar, finalmente, que a consequência da tese da realidade objetiva do tempo é, para Nietzsche, uma forma de realismo que se apoiará nas ciências naturais para o desenvolvimento do modelo mais adequado para a compreensão do real. É sobretudo a partir de Humano, demasiado Humano que vemos essa tendência naturalista se desenvolver de forma mais clara, associada fundamentalmente àquilo que Nietzsche chama de filosofar histórico (MA/HH I 2, KSA 2.24-5). De acordo com ele, o erro básico comum aos filósofos (seu alvo parece ser sobretudo os filósofos transcendentais) é sua falta de sentido histórico, na medida em que eles não compreendem ou não querem compreender que o homem, assim como o mundo em geral, veio a ser, e que também nossas faculdades cognitivas vieram a ser. Ou seja, aquilo que os filósofos transcendentais como Kant e Spir consideram como uma estrutura cognitiva a priori fixa e imutável, que seria comum a todos os homens independentemente do desenvolvimento histórico e dos processos evolutivos, é posto por Nietzsche em movimento. Essas estruturas a priori e, por conseguinte, o mundo como representação que delas emerge, encontram-se assim em um lento e gradual vir-a-ser que poderia ser progressicamente desvelado a partir de uma investigação genealógica, uma investigação que nos colocaria diante da história natural do surgimento do pensamento (MA/HH I 18, KSA 2.38-40). Essa radicalização da tendência naturalista que já estava presente em “Verdade e mentira” está claramente vinculada ao abandono definitivo da tese do idealismo transcendental do tempo por parte de Nietzsche e ao seu comprometimento com uma forma de realismo temporal. Contudo, devemos observar que a recusa de Nietzsche da idealidade do tempo não toca a idealidade do espaço. Pode parecer estranho, à primeira vista, que possamos conceber um naturalismo que negue a existência do espaço, já que a cadernos Nietzche 29, 2011 261 Mattioli, W. natureza da qual tratam as teorias científicas que o sustentam, sobretudo as teorias evolutivas, é estruturada espaço-temporalmente. Apesar disso, Nietzsche parece se direcionar cada vez mais a um modelo puramente dinâmico de explicação da natureza que abdica do conceito de espaço ao abandonar o conceito de matéria. Desde suas reflexões de juventude, mesmo antes de romper com a tese da idealidade do tempo, ele parece considerar o espaço como uma intuição ou representação de segundo grau26. De acordo com ele, o espaço é o resultado da aplicação de nossas estruturas perceptivas e de nossas categorias de representação à multiplicidade das sensações, e não corresponde a nada de ontologicamente real na esfera do devir27. “Nossos sentidos nunca nos mostram uma contiguidade, mas sempre uma sucessão. O espaço e as leis humanas do espaço pressupõem a realidade de figuras, formas, substâncias, e sua durabilidade, isto é, nosso espaço só é válido para um mundo imaginário. Nada sabemos do espaço que pertence ao fluxo eterno 26 Cf. por exemplo o seguinte fragmento de 1872: “Devemos deduzir a sensação do espaço por metáfora a partir da sensação do tempo – ou o contrário?” (Nachlass/FP, 19[210], KSA 7.484), e também o fragmento 26[12] de 1873, já mencionado aqui, onde Nietzsche apresenta sua teoria dos átomos temporais (Zeitatomlehre). Trata-se de um modelo dinâmico, inspirado pela física de Boscovich, que reduz o mundo existente a pontos temporais discontínuos e sem extensão, afim de superar as dificuldades e paradoxos ligados à noção de movimento no quadro espaço-temporal do mecanicismo clássico. Segundo esse modelo, o mundo das forças teria uma dimensão puramente temporal, constituída por pontos e linhas temporais que interagem umas com as outras formando figuras provisórias, as quais, por sua vez, seriam traduzidas pela representação em uma dimensão espacial: “A essência da sensação consistiria em sentir e medir de forma cada vez mais sutil essas figuras temporais; a representação as constrói em termos de justaposição e esclarece então a marcha do mundo segundo essa justaposição espacial.” (Nachlass/FP, 26[12], KSA 7.575-6) Ou seja, a representação do espaço é o mero resultado de um ser reprodutor que mantém os momentos anteriores das linhas temporais ao lado dos momentos presentes através de uma espécie de “retenção”. “Nisso, nossos corpos são imaginados. Assim, só há contiguidade na representação. […] As leis do espaço seriam, em sua totalidade, construídas, e não garantiriam a existência do espaço.” (idem) 27 Cf. LOPES 18, p. 251-252 e p. 276. 262 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo das coisas” (Nachlass/FP 1881, 11[155], KSA 9.500) não tem uma estrutura espacial. A sugestão de Nietzsche parece ser, aqui, que a realidade seria puramente temporal. Como vimos, esta idéia já estava presente no jovem Nietzsche, particularmente em sua tentativa de desenvolver um modelo dinâmico, inspirado pelas teorias físicas de Bocovich, que reduz o mundo existente a pontos temporais inextensos. Estes, por sua vez, coincidiriam com instantes pontuais da sensação, de forma que seria possível reconduzir a atomística do tempo a uma teoria da sensação. Seguindo uma indicação que parece provir de Spir (cf. SPIR 23 II, p. 19), Nietzsche pressupõe uma espécie de disposição da representação para reter os dados sucessivos da sensação – pois, segundo Nietzsche e Spir, não pode haver simultaneidade real no âmbito das sensações – num presente contínuo, criando assim nossa intuição do espaço. A referência a essas reflexões do jovem Nietzsche tem por fim chamar atenção para o fato de que, para nosso filósofo, desde suas reflexões de juventude, o tempo e a experiência da temporalidade parecem gozar de uma prioridade respectivamente “ontológica” e “fenomenológica” face à experiência do espaço e às intuições a ela associadas. É nesse sentido que devemos compreender sua simpatia pelos modelos puramente dinâmicos de explicação da realidade, como o modelo de Boscovich. Além de ter desempenhado um papel fundamental para o desenvolvimento da noção de pontos temporais em sua Zeitatomlehre, este modelo inspirou profundamente a crítica madura de Nietzsche aos conceitos de base do mecanicismo, sobretudo ao conceito de matéria. No aforismo 12 de Além do bem e do mal, ele menciona o físico e o reconhece como o primeiro a abjurar a idéia de um substrato último do mundo corporal, de uma substância material fixa que estaria na base de todo fenômeno: “Boscovich ensinou a abjurar a crença na última parte da terra que “permanecia firme”, a crença na “substância”, na “matéria”, cadernos Nietzche 29, 2011 263 Mattioli, W. nesse resíduo e partícula da terra, o átomo: foi o maior triunfo sobre os sentidos que até então se obteve na terra” (JGB/BM 12, KSA 5.26-7). Os sentidos aos quais Nietzsche se refere no final dessa passagem parecem ser principalmente os sentidos da visão e do tato, que são os responsáveis por nossa representação do espaço e dos corpos que o preenchem. Através da audição, por exemplo, cujas sensações nos são dadas num modo puramente temporal, nunca chegaríamos à representação do espaço, a qual é primariamente tributária da visão: “A partir do olho, nunca chegaríamos à representação do tempo; a partir do ouvido, nunca à representação do espaço. A sensação do tato corresponde à sensação da causalidade” (KSA VII, 19[217])28. Nesse sentido, Nietzsche sugere que as concepções e noções básicas do mecanicismo são prisioneiras de uma ontologia substancialista cujas raízes fenomenológicas podem ser explicadas pela tirania exercida pelos sentidos da visão e do tato na nossa representação ordinária do mundo29. Assim, ao abandonar os conceitos fundadores desta ontologia, Boscovich se insere na história do pensamento como “o maior e mais vitorioso adversário da evidência sensível” (JGB/BM 12, KSA 5.26-7). Como indicado, dentro desse contexto, o abandono do conceito de matéria do mecanicismo e a opção por uma interpretação puramente dinâmica do mundo parecem trazer consigo um tipo de realismo científico moderado comprometido com uma ontologia sem espaço: “O espaço é, assim como a matéria, uma forma subjeitva. O 28 Encontramos algumas considerações semelhantes no artigo de Otto Liebmann: “Über die Phänomenalität des Raumes” (cf. LIEBMANN 12, p. 47-48 e p. 68). 29 A esse respeito, ver os seguintes fragmentos: Nachlass/FP 1885, 43[2], KSA 11.7012: “Negação do espaço vazio e redução da mecânica à tirania do olho e do tato”; KSA XI, 34[247]: “a concepção mecanicista de pressão e impacto, apenas uma hipótese baseada na evidência visual e no sentido do tato”; KSA XIII, 14[79]: “O mundo mecanicista é imaginado da mesma forma que o olho e o tato se representam um mundo”. A esse respeito, ver ainda LOPES 13, p. 251, nota 210. 264 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo tempo não.” (Nachlass/FP 1880, 1[3], KSA 9.9) Nietzsche acredita que nosso conceito de espaço está intimamente associado à nossa representação da matéria. É somente através da representação de um espaço vazio que construímos nosso conceito de espaço, isto é, o espaço é algo que só pode ser concebido e compreendido com relação à sua capacidade de ser preenchido por uma matéria extensa. “Não há matéria – não há átomo […] Não há espaço. (A noção pré-concebida de um “vazio de matéria” é que engendrou a suposição de espaços.)” (Nachlass/FP 1883-4, 24[36], KSA 10.663-4) Por outro lado, e de forma análoga, assim como o espaço é indissociável da matéria, o tempo é indissociável da força30. Assim, um modelo ontológico, no qual tudo o que existe essencialmente são forças interagindo entre si e produzindo um devir constante e absoluto, implica uma dimensão puramente temporal31. Portanto, se o espaço é, ao contrário do tempo, uma simples forma subjetiva à qual nada corresponde no mundo do devir, a única experiência que poderia nos apresentar fenomenologicamente algo de real seria um tipo de experiência pura do tempo, não reificada pelas relações espaciais; uma experiência íntima da temporalidade imanente ao devir de nossas representações e 30 Ver, a esse respeito, o comentário de Stambaugh em seu livro: Untersuchungen zum Problem der Zeit bei Nietzsche (Stambaugh 25, p. 84-85), onde ele argumenta que a concepção nietzscheana do tempo como essência íntima da força – em oposição ao tempo da esfera perspectiva, o qual, enquanto representação do tempo, é sempre o produto de uma certa unidade temporal orgânica – não pressupõe um universo temporal “no qual a força desdobra suas qualidades; antes, esse tempo se encontra na própria força e deve de algum modo ali se desdobrar.” Isto significa que “o tempo não é uma sequência sucessiva na qual as forças se efetivam, mas, antes, que o tempo repousa unitariamente na força, isto é, ele deve se realizar como a unidade pertencente a essa força.” Por fim, “a força não está no tempo; antes, é o tempo que está “na” força, isto é, ele faz parte essencial da constituição da força.” 31 Nesse sentido, seguindo uma sugestão de Stegmaier, podemos arriscar a suposição de que, “se Nietzsche determinou “o mundo visto de dentro” como “vontade de poder e nada mais” (JGB/BM 36, KSA 5.54-5), da mesma forma pode-se agora determinar a vontade de poder, “vista de dentro”, como tempo.” (STEGMAIER 26, p. 226) cadernos Nietzche 29, 2011 265 Mattioli, W. conteúdos psíquicos, já que esta temporalidade, apesar de não corresponder estritamente ao caráter absoluto do devir universal, está nele imerso32. Trata-se aqui de uma perspectiva essencialmente internalista, já que a intuição do mundo exterior está sempre necessariamente adequada à forma reificante do espaço. O argumento geral apresentado neste trabalho pode então ser resumido da seguinte forma: 1) ao contrário da realidade do espaço, a realidade do tempo não pode ser negada, pois ela é evidente nos processos de representação, e o argumento a favor da idealidade do sentido interno e da existência de um pensamento puro fora do tempo é insustentável33; 2) com a realidade objetiva do tempo, afirmamos assim a realidade objetiva da mudança, isto é, temporalidade e mudança se implicam mutuamente em função da ação temporal das forças; 3) dada a realidade da mudança, é preciso concluir que o devir é constante e absoluto, não comportando nenhum repouso, pois a força que engendra a mudança não pode permanecer um só instante em repouso; 4) isso significa que o que percebemos como permanente é apenas o resultado de uma unidade subjetiva de medida e percepção do tempo e da aplicação de nossas categorias de permanência, por meio das quais a experiência se torna possível em sua integralidade; ou seja, a permanência é uma mera ilusão: heraclitismo / teoria do erro. Para concluir, notemos que o fio condutor da interpretação proposta aqui se funda primeiramente na evidência fenomenológica da temporalidade imanente aos conteúdos da consciência. A partir de uma inversão do argumento kantiano acerca do fenomenismo da 32 “Nós pertencemos ao caráter do mundo, não há dúvida! Só temos acesso a ele através de nós” (Nachlass/FP 1885-6, I[89], KSA 12.33). 33 Cf. ainda o seguinte fragmento: “O que nos separa tanto de Kant quanto de Platão e Leibnitz: acreditamos apenas no devir também no mental e espiritual, somos históricos de cima a baixo. […] O modo de pensar de Heráclito e Empédocles ressurgiu. Tampouco Kant superou a contradictio in adjecto do “espírito puro”: nós, porém - - -” (Nachlass/FP 1885, 34[73], KSA 11.442). 266 cadernos Nietzche 29, 2011 Do idealismo transcendental ao naturalismo experiência interna, acreditamos poder encontrar um ponto cervical para uma análise imanente do devir em Nietzsche. Ao contrário de Kant, que, por sua vez, não parece ter sido capaz de sustentar de maneira consequente a tese da idealidade transcendental do tempo e, assim, sua versão da tese do fenomenismo da experiência interna, em Nietzsche, a temporalidade dessa experiência desempenhará um papel decisivo na elaboração de uma teoria do devir. Uma vez que o devir enquanto tal não pode, em sentido estrito, ser experienciado ou representado empiricamente, já que nossas faculdades de percepção e representação são regidas por uma normatividade epistêmica que o falsifica, falar do devir sem recair numa metafísica dualista implica em encontrar, na imanência da própria experiência, o elemento que seja capaz de justificar fenomenologicamente uma tal concepção. Este elemento é, a nosso ver, a temporalidade. Entretanto, essa abordagem em certo sentido fenomenológica não pressupõe de modo algum a noção de uma transparência plena da consciência a si mesma, noção presente nas abordagens clássicas da fenomenologia. Na verdade, Nietzsche mantém ainda a tese do fenomenismo da consciência, mas através de argumentos bastante distintos daqueles utilizados por Kant e que se baseiam numa noção de inconsciente associada a uma teoria dos afetos. Esta noção desvincula Nietzsche de forma definitiva da tradição fenomenológica clássica. Neste sentido, a temporalidade seria o único elemento que, no interior da tese do fenomenismo, adquire um estatuto particular enquanto evidência fenomenológica a favor do caráter ontológico da mudança, a partir da qual a tese do devir poderia ser justificada sem estar condenada a recair numa forma de metafísica dualista. Abstract: This article offers an interpretation of Nietzsche’s notion of time on the basis of a dialogue with the transcendental tradition. The interpretation offered here sees his naturalism present especially in his intermediary and mature work as a mild form of scientific realism which is founded in his abandonment of the Kantian thesis of the transcendental cadernos Nietzche 29, 2011 267 Mattioli, W. ideality of time. Thus, unlike a purely phenomenological theory of becoming, which considers it only in the sense of a “chaos of sensations”, and as opposed to a merely metaphorical interpretation of it, we intend to show that what is peculiar to Nietzsche´s position should be described as an effective ontological commitment with a world of becoming. In this sense, one of the central points of this work will be the attempt to justify this ontological commitment on the basis of an analysis of Nietzsche›s understanding of temporality. Keywords: time – becoming – idealism – realism – ontology referências bibliográficas: 1. ABEL, G. Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr. 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Artigo aceito para publicação em 05/08/2011. 270 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa Naturalismo descritivo e ficção normativa: a questão dos valores sob a perspectiva do espírito livre nietzschiano Oscar Augusto Rocha Santos* Resumo: O artigo busca propor uma resposta para o aparente desacordo entre certas demandas descritivas provenientes do naturalismo presentes na psicologia moral formulada por Nietzsche e seu engajamento em prol de um específico conjunto de valores notadamente vinculados ao ideal de vida do espírito livre. Palavras-chave: naturalismo - espírito livre – valor - psicologia moral - normatividade Neste artigo buscaremos apresentar algumas considerações acerca do naturalismo moral de Nietzsche, tendo como pano de fundo certa articulação entre sua teoria de valores e o conceito de espírito livre, aqui tomado como ideia central de sua filosofia intermediária1. De maneira mais específica, trata-se de fornecer algum tipo de resposta ao suposto descompasso existente entre certas * Professor da Fundação Cultural Campanha da Princesa (FCCP) vinculada a Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Minas Gerais, Brasil. E-mail: [email protected] 1 Segundo nota do tradutor Paulo César de Souza, “na contracapa da primeira edição [de A gaia ciência] havia o seguinte texto, redigido pelo próprio autor: ‘Este livro conclui uma série de obras de Friedrich Nietzsche, cujo objetivo comum é estabelecer uma nova imagem e novo ideal do espírito livre. A esta série pertencem: / Humano, demasiado humano. Com apêndice: Opiniões e sentenças variadas./ O andarilho e sua sombra./ Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais./ A gaia ciência”. (NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 318). cadernos Nietzche 29, 2011 271 Santos, O. A. R. características descritivas da psicologia moral de Nietzsche e seu manifesto empenho na defesa de valores ligados ao ideal de vida do espírito livre. Assim, tomamos a axiologia nietzschiana como um modelo biológico-historicista de interpretação, ou seja, uma teoria de valores que se sustenta, por um lado, no senso histórico e sua capacidade de proporcionar uma perspectiva mais ampla e realista do fenômeno moral, e por outro, em certo naturalismo metodológico, cujo foco se atém à pluralidade constitutiva do agente e os aspectos fisiológicos envolvidos em suas valorações. Esta perspectiva implica por sua vez em uma psicologia moral de cunho naturalista que tende a descrever a estrutura das ações humanas a partir de fatos fisiológicos relativos aos diferentes tipos de indivíduos, de modo que seus valores sejam determinados segundo critérios de ajustamento entre estes valores e seus impulsos e afetos predominantes, sendo, de todo modo, algo decididamente não universalizável. Ora, o que de imediato se espera de alguém que adote este tipo de perspectiva naturalista para a descrição da estrutura da ação humana é que também assuma ou uma posição de indiferença com relação à contrapartida normativa para tal tese, ou que acate as consequências de um possível relativismo axiológico. De qualquer maneira, como acreditamos que a posição nietzschiana não se reduz nem a uma nem a outra das alternativas, pretendemos, a partir destes pressupostos, apontar de que modo seria possível buscar a conciliação entre esta descrição naturalista da psicologia moral e o inegável engajamento do filósofo em prol dos espíritos livres, ou seja, determinando certos limites para seu naturalismo moral, de maneira que fique reservado o devido espaço para algum nível de intervenção normativa, mesmo que edificada a partir de ficções conceituais por sua vez fundadas em uma relação honesta de aceitação de certos erros e ilusões regulativas. 272 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa Naturalismo descritivo Brian Leiter inicia um de seus estudos sobre o naturalismo moral nietzschiano partindo da seguinte distinção: por um lado teríamos o que ele chama de naturalismo substantivo – preferencialmente tomado como a crença no caráter estritamente natural de tudo aquilo que existe, inclusive as manifestações humanas ditas mais espirituais como a arte e a moral – e por outro um naturalismo metodológico – este por sua vez relacionado à continuidade, tanto de métodos quanto de resultados, entre a atividade filosófica e as ciências empíricas2. Quanto ao primeiro sentido do naturalismo, salvo casos específicos de estudos dedicados a Nietzsche3, parece haver certa concordância em se dizer que o filósofo alemão assume uma posição abertamente contrária a toda forma de ontologia metafísica4, considerando toda a realidade como determinantemente natural. De todo modo, é preciso que haja clareza quanto a esta questão para que não se radicalize sua perspectiva ao ponto de fazer da filosofia moral nietzschiana algum tipo de fisicalismo reducionista, a partir do qual a moralidade pudesse ser explicada por 2 Cf. LEITER, B. Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002, p. 3-5. 3 Talvez possamos afirmar que Heidegger seja hoje considerado como representante quase isolado desta leitura que toma a filosofia nietzschiana a partir de algum sentido metafísico. Sem a menor pretensão de entrar aqui nos méritos da leitura heideggeriana, apenas mencionamos suas conferências sobre Nietzsche como tentativa paradigmática de caracterizar seu pensamento como uma espécie de encerramento da filosofia metafísica, mas ainda assim nela circunscrito (cf. HEIDEGGER, M. Nietzsche. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, 2v.). 4 É importante aqui ter em vista a existência de diferentes sentidos para a crítica do conceito de metafísica no contexto da filosofia nietzschiana, mesmo que ele não se ocupe tanto em esclarecer seu leitor quanto aos modos de discerni-los: por um lado, pode-se pensar em uma oposição mais abrangente direcionada a toda metafísica substancialista (o que resolveria parcialmente o problema, já que o naturalismo não exclui necessariamente toda forma de metafísica) e, por outro, uma crítica à metafísica como doutrina normativa, onde o dualismo ontológico desempenha o papel de fundamento “objetivo” dos valores. cadernos Nietzche 29, 2011 273 Santos, O. A. R. meio de meras reações físico-químicas desenroladas no organismo do indivíduo5; é necessário antes que se considere, em última instância, o caráter inapreensível dos reais motivos e mecanismos envolvidos na ação humana, sobretudo com relação à impossibilidade de se fazer um discurso epistemicamente válido, que seja fundamentado na lógica e na inteligibilidade dos fatos objetivos acerca dos valores e valorações. Por outro lado, quando se trata do referido naturalismo metodológico, ou seja, quando a questão se dirige à continuidade entre a atividade filosófica nietzschiana e os métodos e resultados das ciências empíricas, a situação se torna menos consensual e, portanto, demanda maior atenção. Todavia, antes de avançarmos em direção a estes problemas de continuidade, gostaríamos de acrescentar à discussão uma segunda perspectiva concorrente acerca do naturalismo moral de Nietzsche que ao invés de tomá-lo por este duplo viés, prefere descrevê-lo como um naturalismo em sentido amplo. Assim, Christopher Janaway irá defini-lo fundamentalmente como uma atitude de oposição a todo tipo de metafísica transcendente – seja aos moldes de Platão, do cristianismo ou mesmo de Schopenhauer6 – o que, segundo Leiter, seria uma correta descrição do naturalismo nietzschiano, mas que em todo caso não apresenta 5 “Nietzsche não pretende reduzir complexos afetivos a seus constituintes ontológicos elementares, sejam eles químicos ou físicos, mas simplesmente mostrar que a reivindicação metafísica de uma origem transcendente para determinados afetos ignora que eles resultaram de um processo de sublimação de um mesmo fenômeno demasiado humano” (LOPES, R. Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008, p. 274 (Tese de doutorado)). 6 Derivados deste primeiro aspecto central, Janaway indica ainda outras caracteísticas do naturalismo nietzschiano como: a rejeição de noções tais como alma imaterial, vontade livre ou intelecto puro e autotransparente; a ênfase no corpo e na natureza animal dos seres humanos; a tentativa de explicar diversos fenômenos recorrendo aos impulsos, instintos e afetos, localizados por ele na nossa existência física e corpórea; e por fim, a tarefa de tradução do homem de volta à natureza (cf. JANAWAY, C. Naturalism and genealogy. In: PEARSON, K. A. (org.). A companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 337). 274 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa qualquer elemento capaz de unificar suas diferentes características de modo coerente, papel que caberia ao sentido de continuidade de métodos e resultados com as ciências. Este naturalismo metodológico de Nietzsche, afirma Leiter, seria evidenciado pelo modo recorrente segundo o qual “visa oferecer teorias que expliquem diversos fenômenos humanos (especialmente o fenômeno da moralidade), a partir dos atuais resultados científicos” – isso somado à prática de “modelar suas teorias a partir das ciências, no sentido de se buscar revelar as determinantes causais destes fenômenos partindo de fatos psicológicos e fisiológicos sobre as pessoas”7. Entretanto, conforme destaca Janaway, ambas as teses de continuidade apresentam problemas, principalmente se tomadas como expressão daquilo que definiríamos como sendo a atividade filosófica nietzschiana propriamente dita: primeiro e de forma mais dura, ele discorda da continuidade de métodos, pois, se basta emular a ciência, se basta tomá-la como modelo descritivo firmado em explicações causais dos fenômenos em geral para daí concluir que Nietzsche oferece uma visão naturalista da moralidade, então teríamos que admitir que qualquer sistema de crenças como o cristianismo ou mesmo a astrologia sejam formas de naturalismo, já que também estes se valem de certas cadeias causais em suas explicações para a ação humana8. Por conseguinte, se buscamos salvar a tese de Leiter evocando a continuidade de resultados, resta ainda outra crítica, ainda que mais amena, de que certos resultados científicos serviriam não como fundamento ou justificação para o naturalismo moral, mas apenas como um pano de fundo que garantiria 7LEITER, op. cit., p.8. 8 Pensamos aqui em formulações “causais” do tipo: “Se ele age assim é porque sucumbe à tentação do Mal” ou ainda, “ele age desta forma porque é do signo de gêmeos”. Em ambos os casos, mesmo que aceitemos a banalidade dos argumentos, ainda assim são formulações causais, no sentido de que certos comportamentos são explicados como efeitos de causas específicas (a influência de um demônio, ou o alinhamento dos astros). cadernos Nietzche 29, 2011 275 Santos, O. A. R. certo critério de qualidade às suposições causais. Em outras palavras, Janaway concede uma forma mais fraca de continuidade de resultados, no sentido de que as explicações filosóficas devam apenas não ser falseadas por meio do apelo aos resultados da melhor ciência disponível9. A resposta de Leiter às críticas será de que não passam de meros mal-entendidos: primeiramente, por desconsiderar que o naturalismo metodológico de Nietzsche é de viés essencialmente especulativo10; e, além disso, por não considerar que a única continuidade de resultados relevante ao caso diz respeito ao materialismo alemão do século XIX, mais especificamente com relação aos avanços da fisiologia11. Dito isto, vejamos os dois casos em separado e suas consequências para nossa problemática. 9 Cf. JANAWAY, op. cit., p. 338-339. 10 “First, I claimed that Nietzsche is what I called a Speculative M-Naturalist, that is, a philosopher, like Hume, who wants to ‘construct theories that are modeled on the sciences…in that they take over from science the idea that natural phenomena have deterministic causes’ (Cf. LEITER, B. Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002, p. 5). Speculative M-Naturalists do not, of course, appeal to actual causal mechanisms that have been well-confirmed by the sciences: if they did, they would not need to speculate! Rather, the idea is that their speculative theories of human nature are informed by the sciences and a scientific picture of how things work” (LEITER, B. Nietzsche’s naturalism reconsidered. In: GEMES, K.; RICHARDSON, J. (Orgs.). The Oxford handbook of Nietzsche. Chicago, 2008, p. 3). A tradução para o português deste artigo se inclui neste número dos Cadernos Nietzsche sob o título de O naturalismo de Nietzsche reconsiderado. 11 “But I also emphasized a second aspect of Nietzsche’s M-Naturalism. As I noted, some M-Naturalists demand a kind of ‘results continuity’ with existing science: ‘philosophical theories’ should, they believe, ‘be supported or justified by the results of the sciences’ (Cf. LEITER, Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002, p. 4). I argued, however, there is only one kind of ‘results continuity’ at work in Nietzsche, namely, the result that the German Materialists of his day thought followed from advances in physiology, namely, ‘that man is not of a higher…[or] different origin than the rest of nature’ (LEITER, op. cit., p. 7). Arguably, Nietzsche’s main bit of Substantive Naturalism – meaning ‘the (ontological) view that the only things that exist are natural’ (LEITER, op. cit., p. 5) – is a consequence of this results continuity.” (LEITER, op. cit., p. 3-4). 276 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa Quando Leiter afirma que o naturalismo metodológico nietzschiano é essencialmente especulativo, ele pretende deixar claro que não se trata efetivamente de fazer ciência, mas antes de se valer dela como modelo a partir do qual seria possível a emulação da atividade mesma, buscando dela se aproximar o máximo possível; deste modo, ele irá vincular o procedimento nietzschiano ao de David Hume, por exemplo, aproximando ambos das consequências metodológicas da ciência newtoniana12. De todo modo, com relação ao que diz Leiter sobre a emulação da ciência por meio de especulações acerca das determinantes causais dos fenômenos morais, pensamos que seja mais acertado dizer que se trata, sobretudo, de aderir a certo princípio de economia conceitual próprio à atividade científica, de forma que se busque dar conta da tarefa de descrever a estrutura da ação humana a partir de conceitos mínimos e abrangentes – o que manteria válida a comparação com a especulação humeana e, consequentemente, com a ciência newtoniana. Além disso, é preciso ter em conta que a postura própria da atividade científica, devido às suas condições de moderação e realismo, se mostraria mais adequada a uma proposta que se almeja poder contrapor e mesmo ocupar a lacuna deixada pelo abandono do discurso 12 “[Hume] quer fazer pela esfera humana o que ele acredita que a filosofia natural, principalmente na pessoa de Newton, fez pelo restante da natureza. A teoria newtoniana proporcionou uma explicação completamente geral acerca do porque das coisas no mundo acontecerem como acontecem. Ela explica eventos físicos numerosos e complexos por meio de princípios que, comparativamente, são poucos, extremamente gerais, talvez mesmo universais. De modo similar, Hume quer uma teoria completamente geral da natureza humana para explicar por que os seres humanos agem, pensam, percebem e sentem do modo como em geral o fazem (...). [A] chave para compreender a filosofia de Hume é vê-lo como proponente de uma teoria geral da natureza humana da mesma maneira que, por exemplo, Freud e Marx foram. Todos eles buscaram um tipo de explicação geral dos vários modos segundo os quais os homens pensam, agem, sentem e vivem (...). O objetivo de todos os três é completamente geral – eles tentam propor uma base para explicar tudo acerca das questões humanas. E as teorias que eles propuseram são todas, grosso modo, deterministas.” (STROUD, 1977, p. 3-4. Apud. LEITER, op. cit., p. 3). cadernos Nietzche 29, 2011 277 Santos, O. A. R. metafísico a respeito dos valores e da moral. Portanto, poderíamos dizer que a continuidade de métodos entre a filosofia e a ciência fundamenta o naturalismo moral de Nietzsche se considerada como uma relação de aprendizado a partir da qual o filósofo pode adquirir a virtude e o rigor necessários para “alcançar um fim de modo pertinente”, o que equivale a dizer que a ciência proporciona à filosofia um incremento da habilidade ou capacidade metodológica, porém não um saber propriamente dito. Deste modo, afirma Nietzsche, ter sido um homem de ciência é valioso “em vista de tudo o que se fará depois” (MA I/HH I § 256, KSA 2.212)13, indicando assim o papel preparatório da ciência em relação a outras atividades humanas como, por exemplo, a filosofia e a psicologia moral. Ora, segundo nos parece, estas primeiras observações sobre a continuidade metodológica nos permitem extrair também algumas consequências com relação à continuidade de resultados, na medida em que evidencia que o interesse de Nietzsche em aproximar sua filosofia moral das ciências naturais está antes voltado aos ganhos práticos, o que seria suficiente para pôr os resultados da ciência em segundo plano, em um sentido mais fraco como sugerido por Janaway. Entretanto, como Leiter destaca que estes devem ser limitados aos resultados relativos ao Materialismo alemão do século XIX, mais especificamente aos resultados referentes à fisiologia e às ciências biológicas, pensamos que seja importante uma palavra a mais sobre o assunto. Segundo Leiter, a única continuidade de resultados significativa para a filosofia moral de Nietzsche seria aquela exposta pela prédica materialista de sua época de que “o homem não é de uma origem superior ou diferente em relação ao restante da natureza”14, 13 Todas as referências diretas ao texto de Nietzsche presentes neste trabalho seguem as traduções de Paulo César de Souza para a Coleção das obras de Nietzsche, editada pela Companhia das Letras. 14 LEITER, B. Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002, p. 7. 278 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa e aponta como exemplo máximo desta linha de pensamento o livro Força e matéria do médico alemão Ludwig Büchner, onde se encontrariam as principais teses do materialismo da época. Destacamos em seguida uma passagem do livro que nos parece ilustrar bem a linha geral de suas formulações: As leis que regem o macrocosmo ou o Universo (...) são também as que regem na natureza, o microcosmo ou o homem, no ser e no pensamento do qual elas de qualquer sorte se reflectem, ou se contemplam. Que o homem com todas as suas vantagens e todas as suas faculdades seja, não obra da divindade, mas produto da natureza, resultando, como todas as criaturas que o rodeiam, de um desenvolvimento sucessivo e natural e de evolução espontânea, é essa uma grande e brilhante verdade que não pode por forma alguma ser contestada hoje senão pela ignorância ou pela obstinação do caso pensado15. Sem dúvida que o pensamento nietzschiano parece também se ater a esta relação de pertencimento entre as coisas humanas e a natureza; porém, quando se trata de dizer que Nietzsche estabelece uma relação de continuidade entre sua filosofia e os resultados do materialismo, existem certos fatores a serem considerados que indicam antes um distanciamento significativo entre uma posição e outra. Mesmo na argumentação de Leiter, a questão dos resultados propriamente ditos fica em segundo plano na relação de Nietzsche com o materialismo, sendo este antes uma espécie de inspiração metodológica – algo que fica bastante claro se tivermos em mente a fundamental importância e influência do pensamento de Friedrich Albert Lange sobre Nietzsche desde sua primeira leitura, no ano de 1866. Desta maneira, como Leiter mesmo ressalta, é antes por 15 BÜCHNER, L. Força e matéria: ou princípios da ordem natural ao alcance de todos. Porto: Lello e Irmãos Editores, 1958, p. 206-207. cadernos Nietzche 29, 2011 279 Santos, O. A. R. meio da leitura que faz da obra de Lange que Nietzsche entrará em contato com todo o aparato conceitual do materialismo, o que nos permite considerar que a recepção deste aparato seja também mediada pela posição crítica do autor – algo que não é sequer considerado no comentário de Leiter. Mesmo que chegue a apontar a posição crítica do autor em relação ao materialismo16, Leiter não parece concordar com a tese de que haja um alinhamento mais abrangente entre a filosofia de Nietzsche e a perspectiva crítica de Lange17. Quando o comentador inglês fala em continuidade de resultados entre a filosofia nietzschiana e o materialismo alemão do século XIX, ele toma o naturalismo substantivo de Nietzsche como sendo uma consequência desta continuidade, no sentido de que os resultados do materialismo da época propiciaram ao filósofo o “pressuposto (ontológico) de que as únicas coisas que existem são naturais”18. Fica assim claro que Leiter não parece considerar a possibilidade de atrelarmos a filosofia nietzschiana à posição crítica de Lange com relação ao materialismo, ou seja, ele não parece endossar a tese de que Nietzsche assuma de forma mais programática as conclusões de Lange quanto à discrepância entre o inegável 16 “Lange, himself, was one of a number of ‘neo-Kantian’ critics of Materialism who held, first, that modern physiology vindicated Kantianism by demonstrating the dependence of knowledge on the peculiarly human sensory apparatus and, second, that the Materialists were naive in believing science gives us knowledge of the thing-initself rather than the merely phenomenal world” (LEITER, op. cit., p. 66). 17 “See generally, Salaquarda (1978) and Stack (1983). Stack, in my view, overstates Nietzsche’s debt to Lange, and fails to note their many differences, e.g., Nietzsche was less critical of materialism than Lange, and Nietzsche plainly repudiated Lange’s Kantianism (e.g., Lange’s view that ‘[w]e must therefore recognize the existence of a transcendent order of things . . .’ (1865: 230)). Stack’s book does usefully demonstrate that an influence on Nietzsche can be profound (as evidenced by the views he would later express) without Nietzsche acknowledging that fact. Thus, for example, his Nachlass references to Büchner tend to be rather dismissive and rude. Cf. KSA 7: 596, 740. The similarities, however, between Materialist thought and Nietzsche’s own turn out to be striking” (LEITER, op. cit., p. 65, nota 32). 18LEITER, op. cit., p. 5. 280 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa valor metodológico do materialismo e sua improvável aceitação enquanto tese ontológica. Deste modo, devemos antes ter em conta, como afirma Rogério Lopes, que “Lange atribui à tendência materialista o mérito de ter fornecido as condições conceituais para a formação da disciplina metódica, considerada por ele como o traço essencial de uma cultura científica”, cultura esta capaz de “redirecionar para o objeto da investigação os impulsos subjetivos cultivados na tradição idealista”19. Ora, se Lange reserva um papel ao menos edificante para o idealismo prático em sua perspectiva crítica, isto segundo a tese antropológica de uma necessidade metafísica inerente ao homem que precisa ser satisfeita, uma afirmação como a de Leiter, de que Lange demonstraria uma “simpatia intelectual” pelo materialismo justamente por conta de sua oposição ao idealismo20, fica um pouco despropositada, ou mesmo superficial. Deste modo, pensamos ser mais apropriada a leitura que restringe o mérito do materialismo ao âmbito metodológico – como “uma concepção sóbria e econômica da natureza” que permite “o cultivo das virtudes epistêmicas necessárias para a criação de uma cultura verdadeiramente científica, na qual a aquisição do método é a única conquista definitiva”21. Inclusive, se levarmos um pouco mais adiante a questão do alcance e influência da obra de Lange sobre o pensamento de Nietzsche, podemos ainda encontrar outra maneira de pensarmos o sentido especulativo do naturalismo moral nietzschiano, um que fosse além da mera emulação reclamada por Leiter. Se dermos por certo que a intenção de Lange em sua História do Materialismo é antes a de indicar um caminho de reconciliação entre o método materialista e a dimensão edificante do idealismo22, 19LOPES, op. cit., p. 51. 20 “At the same time, Lange’s general intellectual sympathies were clearly with the Materialists as against the idealists, theologians, and others who resisted the blossoming scientific picture of the world and of human beings” (LEITER, op. cit., p. 66). 21LOPES, op. cit., p. 52. 22 Ainda sobre este ponto: “O materialismo é a tendência que melhor promove nossos cadernos Nietzche 29, 2011 281 Santos, O. A. R. de modo que o dogmatismo23 consequente da exacerbação de um dos pólos seja evitado justamente por conta desta contraposição, então teremos uma indicação mais acurada do que seria o caráter especulativo do naturalismo moral de Nietzsche. Neste sentido, ressalta Rogério Lopes, para Lange “a especulação deve ser interpretada como o produto dos impulsos estético, arquitetônico, sintético e ideal da humanidade”, não cabendo à filosofia o papel de “reprimir tais impulsos, mas de direcionar sua satisfação para o âmbito apropriado, qual seja, o da ficção conceitual”24. Entretanto, tendo em vista nossa intenção de tomar o espírito livre como conceito central deste trabalho – o que implica em considerar o posicionamento geral de Nietzsche durante o período intermediário de sua obra, onde fica marcada precisamente sua tentativa de estabelecer um discurso filosófico que fosse independente das ficções conceituais da metafísica – é preciso atenção para que não se perca de foco os limites e continuidades entre os pensamentos de Nietzsche e Lange, ou ao menos para não ponderarmos de forma apressada seus entrelaçamentos; de qualquer modo, estas discussões abrem espaço para retomarmos o debate sobre o naturalismo moral de Nietzsche, porém agora apontando uma segunda frente crítica, mais orientada a entender de que maneira se conciliam este viés metodológico do naturalismo nietzschiano e o modo retórico e quase-artístico por ele adotado para expor suas ideias. valores epistêmicos, o idealismo a tendência que melhor promove nossos valores não epistêmicos. A história crítica do materialismo concebida por Lange pode ser lida como um esforço de reconciliar formalmente esta dupla tendência da cultura ocidental, reconhecendo seus respectivos méritos” (LOPES, op. cit., p. 76). 23 “Esta reconciliação formal aponta por sua vez para uma superação do caráter parcial de ambas as perspectivas, parcialidade esta decorrente de seu dogmatismo. O idealista dogmatiza na medida em que desconhece o caráter ficcional de seus conceitos e a dimensão edificante de toda atividade especulativa. O materialista o faz na medida em que desconhece o caráter puramente fenomênico do discurso científico” (LOPES, op. cit., p. 76). 24LOPES, op. cit., p. 76. 282 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa Ficção conceitual e normatividade O problema de conciliação entre o materialismo metodológico e a forma como Nietzsche expressa sua filosofia moral fica bastante evidente a partir da contraposição de duas afirmações concorrentes quanto à sua atividade filosófica: Leiter diz que se olharmos “a efetiva prática filosófica de Nietzsche, i.e., aquilo que mais toma seu tempo na feitura de seus livros”, encontraremos um naturalismo “fundamentalmente metodológico”25; para Janaway, ao contrário, o que caracteriza o efetivo método filosófico de Nietzsche é antes o “uso de recursos artísticos e retóricos, a incitação dos afetos do indivíduo, além da exploração das reações pessoais do leitor”26 – de qualquer maneira, um método onde as ciências teriam papel bastante limitado, já que Nietzsche toma o método científico como uma busca impessoal pela verdade, algo livre de afetos e paixões, eliminando justamente a possibilidade de identificação dos afetos em seu papel causal na criação dos valores, por meio de sua experimentação pessoal. Deste modo, seria indiscutível a existência de certo descompasso entre o realismo moderado da perspectiva metodológica do naturalismo moral e o que às vezes parece ser o verdadeiro foco da atividade nietzschiana, ou seja, estimular propensões afetivas de modo a propiciar verdadeiras transformações valorativas – sendo apenas outra forma de expor a dificuldade anteriormente detectada de adequação entre uma visão naturalista da moral e o engajamento de Nietzsche em prol de uma hierarquia de valores específica. A partir desta discussão, Leiter propõe uma solução que nos parece aceitável, porém somente enquanto estratégia elucidativa, algo que ele próprio chega a confirmar: é sugerido que se pense em dois “Nietzsches” – um Nietzsche humeano que busca estabelecer 25 LEITER, op. cit., p. 6. 26 JANAWAY, op. cit., p. 350. cadernos Nietzche 29, 2011 283 Santos, O. A. R. um discurso acerca da moralidade segundo a perspectiva do naturalismo metodológico, ou seja, por meio da especulação causal fundamentada nos resultados da ciência; e um Nietzsche terapêutico, preocupado em fazer com que indivíduos que já possuam certa propensão valorativa se libertem das imposições da moralidade tradicional27. Desta forma, a tarefa de estipular valores – ou a apologia do tipo de vida do espírito livre – envolveria o alistamento do Nietzsche humeano em prol dos fins do Nietzsche terapêutico, mesmo que este último se valha de uma variedade de outros recursos artísticos, retóricos e passionais que estão a seu dispor e que evidentemente vão além do mero escrutínio da moralidade. É como se houvesse duas tarefas distintas a serem consideradas, porém decididamente inseparáveis na prática. O projeto naturalista de Nietzsche seria, portanto, descrever a moralidade em termos seguramente naturais, sem abrir mão do engajamento em prol de valores específicos, como tarefa de libertação dos novos espíritos livres com relação à sua falsa consciência moral, sua falsa crença de que a moralidade dominante é de fato boa para eles. Este segundo aspecto, que não faz parte propriamente do projeto naturalista de Nietzsche, seria a tarefa a qual o filósofo se entregaria de forma mais incisiva e proeminente em seus livros. Feitas estas primeiras observações, haja vista os caminhos promissores que nos foram abertos pela aproximação entre a teoria de valores de Nietzsche e a filosofia crítica de Lange, buscaremos explorar um pouco mais esta estratégia de abordagem, retomando aquilo que dizíamos sobre o sentido especulativo da filosofia formulado por este último em sua História do materialismo. Ressaltamos anteriormente que, como Lange assume a tese antropológica de uma necessidade metafísica, ele irá entender que cabe à especulação um papel legítimo e fundamental de proporcionar 27 Cf. LEITER, B. Nietzsche’s naturalism reconsidered. In: GEMES, K.; RICHARDSON, J. (Orgs.). The Oxford handbook of Nietzsche. Chicago, 2008, p. 11-16. 284 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa ficcionalmente um sentido geral ou uma finalidade para a existência humana. Entretanto, destacamos também que graças ao cultivo de certas virtudes epistêmicas proporcionado pela inspiração metodológica do materialismo, a especulação adquire condições de se precaver em relação às pretensões da metafísica imaginativa de “penetrar a essência da natureza e determinar a partir de noções puras o que somente a experiência pode ensinar”28. Por conseguinte, conclui Lange, “uma coisa é certa, que o homem necessita suplementar a realidade com um mundo ideal de sua própria criação, e que as mais altas e nobres funções da sua mente cooperam em tais criações”29. Ora, se concedermos que a influência de Lange possa ter se estendido até este ponto, talvez fosse o caso de tomarmos a posição de Nietzsche como sendo justamente uma tentativa de conciliar ciência e criatividade a partir deste “ponto de vista do ideal”. Hans Vaihinger, por exemplo, irá aproximar as perspectivas de Lange e Nietzsche justamente por concluir que ambos endossam a tese de que “vida e ciência não são possíveis sem concepções imaginárias ou falsas”30. Desta maneira, deixando de lado a questão do engajamento do jovem Nietzsche em um uso edificante de sua metafísica de artista, devemos nos perguntar aqui se há como pensar estas continuidades mesmo no período do espírito livre, haja vista que um de seus núcleos – como parte do objetivo geral de se construir uma “nova imagem e novo ideal do espírito livre” – seja a tentativa de se formular uma proposta de vida possível em um cenário pós-metafísco; de qualquer modo, poderíamos dizer que o que Nietzsche se propõe no período intermediário é pensar até que ponto seria possível abrir mão dos erros fundamentais da vida em 28 LANGE, F. A. The history of materialism and criticism of its present importance. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD, 1925, p. 340. 29LANGE, op. cit., p. 342. 30 VAIHINGER, H. The philosophy of “as if”: a system of the theoretical, practical and religious fictions of mankind. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD, 1935, p. 341. cadernos Nietzche 29, 2011 285 Santos, O. A. R. nome da busca pelo conhecimento científico (FW/GC 110, KSA 3.469) – ou trazendo a questão para nosso caso específico, poderíamos dizer que o problema é entender até que ponto seria possível conciliar, por um lado, o conhecimento (histórico-naturalista) de que os valores são uma criação afetiva prudencialmente determinada e, por outro, a própria vida, uma vez que esta só foi possível graças a erros e ilusões relativas à natureza dos valores e avaliações – como por exemplo, que eram eternos e imutáveis (FW/GC 115, KSA 3.474), ou justos e lógicos (MA I/HH I 31-32, KSA 2.51)31. Assim sendo, nossa questão se encaminharia da seguinte maneira: tendo em vista que os livros que compõem o período intermediário da filosofia nietzschiana têm como objetivo de grupo oferecer uma nova imagem e um novo ideal do espírito livre, temos que admitir como primeira premissa que Nietzsche esteja, ainda neste momento de sua obra, preocupado em criar ou propor certo sentido ou valor para a vida, porém de modo limitado, selecionando um grupo específico de indivíduos aos quais se dirigir; assim, ao invés de falarmos em um ideal de humanidade, talvez fosse o caso de falarmos em um ideal do tipo espírito livre. De qualquer modo, mesmo que se aceite essa premissa, ainda assim o problema de conciliação entre o conhecimento histórico-naturalista e a criação de valores permanece. Nadeen Hussain, por exemplo, irá formular a questão da seguinte maneira: se por um lado Nietzsche parece claramente propor certo niilismo teórico, no sentido de negar ao mundo qualquer valor senão o que lhe foi doado pelos homens, por outro, podemos notar uma concomitante preocupação em evitar o niilismo prático, ou 31 Ainda sobre este ponto: “O conhecimento só pode admitir como motivos o prazer e o desprazer, o proveitoso e o nocivo: mas como se arrumarão esses motivos com o senso da verdade? Pois eles também se ligam a erros (na medida em que, como foi dito, a inclinação e a aversão, e suas injustas medições, determinam essencialmente nosso prazer e desprazer). Toda a vida humana está profundamente embebida na inverdade” (MA I/HH I 34, KSA 2.54). 286 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa seja, as consequências práticas da crença na ausência total de valor no mundo32. Tendo como base uma incontornável inflexão do erro em nossas valorações, a solução apontada por Hussain vai em direção da tese de que Nietzsche (enquanto espírito livre ele mesmo) partiria de certa ilusão honesta – algo semelhante ao que pensa Hans Vaihinger ao discorrer sobre aquilo que denomina “doutrina nietzschiana da ilusão consciente”33. Deste modo, em uma linguagem bastante apropriada à contraposição com Vaihinger, Nadeen Hussain irá ressaltar que Nietzsche sem dúvida está atento ao fato de que as “coisas nos aparecem como se fossem valorosas nelas mesmas, mas que esta aparência é gerada por nós”34, o que implicaria na aceitação de que o ideal de vida proposto por Nietzsche deve contemplar esta peculiaridade de que seus valores pareçam valorosos em si mesmos, sem que se perca, contudo, a consciência desta sua natureza de criação – ou em outras palavras, o espírito livre teria tanto que se manter fiel a sua integridade intelectual, que lhe mostra o fundo ilógico e injusto de todas as valorações, quanto aderir a certa atitude criativa em âmbito valorativo. Ora, se tivermos em conta que, de maneira geral, a criação dos valores se vincula ao sentido avaliativo proveniente das orientações afetivas referentes aos impulsos predominantes no indivíduo, então temos ao menos a indicação de duas coisas: primeiro, que os valores que compõem este ideal do espírito livre têm que atender ao pressuposto prudencial anteriormente ressaltado, de forma que 32 “Theoretical nihilism is the belief in valuelessness, or as Nietzsche often puts it, goallessness. Practical nihilism is the practical consequence in most agents of the belief, usually only a tacit belief, in valuelessness or goallessness. Practical nihilism consists of a range of psychological and sociological phenomena. Now it is certainly true that Nietzsche is extremely concerned about the rise of practical nihilism, but theoretical nihilism is something that he does indeed seem to endorse.” (HUSSAIN, N. Honest illusion: valuing for Nietzsche’s free spirits. In: LEITER, B.; SINHABABU, N. (Orgs.). Nietzsche and morality. New York: Oxford University Press, 2007, p. 161) 33 Cf. VAIHINGER, op. cit., p. 341-362. 34HUSSAIN, op. cit., p. 163 (grifo nosso). cadernos Nietzche 29, 2011 287 Santos, O. A. R. respondam a certa relação de adequação com impulsos e afetos predominantes no “candidato” a espírito livre; além disso, nos parece iminente que, se ao menos dois impulsos ou afetos específicos estiverem presentes de modo determinante no indivíduo, os valores do ideal nietzschiano do espírito livre lhe parecerão como se fossem valorosos em si mesmos: certa paixão pelo conhecimento, fruto de sua integridade intelectual, somada a um impulso estético que lhe garanta a boa vontade para com o erro e a aparência, de modo que funcione como contrapeso para a primeira. Dito isto, fica a indicação de que ao se dedicar à formulação de um novo ideal do espírito livre, Nietzsche pretende, antes de qualquer outra coisa, promover ou incentivar um tipo de vida onde haja a convivência moderada entre, por um lado, impulsos e afetos próprios do homem da ciência (sua integridade intelectual e sua paixão pelo conhecimento) e, por outro, certa boa vontade para com a falsidade própria à atividade artística, haja vista a proeminente ameaça de que uma excessiva influência dos valores epistêmicos pode implicar justamente na inércia ou na negação e inviabilização da própria vida (cf. FW/GC 107, KSA 3.464). No entanto, mesmo estas observações não nos parecem ser suficientes para justificar o engajamento de Nietzsche em prol deste modo de vida específico – ou posto de maneira definitiva: ainda não fica claro como seria viável manter os resultados descritivos da psicologia moral e do naturalismo metodológico, e ao mesmo tempo se empenhar na formulação de um ideal normativo – mesmo que limitado a um grupo restrito de indivíduos. Segundo nos parece, a chave para compreendermos a questão está em uma peculiaridade da filosofia intermediária de Nietzsche: enquanto nos livros do período de maturidade Nietzsche se entrega com muito mais vigor à defesa dos “homens superiores”, evitando reconhecer qualquer mérito ao “homem de rebanho”, nas obras intermediárias, sua posição é mais moderada ao conceber a sociedade como bem fundamentada na contraposição e enfrentamento entre indivíduos inovadores e mantenedores da tradição. 288 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa O pensamento de Nietzsche neste momento de sua obra reconhece méritos tanto nos homens “bons” quanto nos “maus” (cf. FW/GC 1, KSA 3.369), ressaltando apenas que cada um tem seu papel na economia total da vida (cf. FW/GC 4, KSA 3.376). Entretanto, de forma conjunta a esta visão equilibrada de sociedade, Nietzsche parece também estar especialmente preocupado tanto com possíveis tiranias ou exacerbações por parte de qualquer um dos pólos de força35, quanto com a limitada capacidade da ciência de oferecer novos objetivos ou ideais de vida. Deste modo, cremos que se Nietzsche apresenta o espírito livre de modo a desempenhar certo papel de tipo normativo em seus livros, assim o faz com total conhecimento de que este tipo de vida não é o melhor para todos os indivíduos; porém, se ainda assim fala como se este fosse o melhor tipo de vida dentre as vidas possíveis, é porque se dirige preferencialmente a quem os valores a ela correspondentes serão recebidos parecendo valores-em-si – mesmo que não haja critérios epistêmicos de verdade envolvidos nesta percepção, ainda assim poderíamos conceder algum tipo de critério psicofisiológico de reconhecimento, o que em outras palavras equivale a dizer que, mesmo que este critério permaneça invariavelmente desconhecido para nós, ainda assim ele pode ser sentido justamente naqueles onde prevalece previamente certo gosto ou temperamento. Assim, uma vez encontrada a forma de conciliar estas características diversas, teríamos uma boa imagem do que Nietzsche pretende e espera dos espíritos livres: que por meio de uma gaia ciência eles não só preservem a natureza dinâmica dos valores e valorações, mas que também compreendam seu papel inalienável nessa “nova lei de fluxo e refluxo” (FW/GC 1, KSA 3.372). 35 Vale ressaltar que, neste momento de sua obra, Nietzsche se mostra atento não só à ameaça da imposição dos valores tradicionais de modo massificante, mas também a uma possível e indesejada “vulgarização” do caráter de exceção: “Bem, algo pode ser dito em favor da exceção, desde que ela nunca deseje se tornar regra” (FW/GC § 76, KSA 3.432). cadernos Nietzche 29, 2011 289 Santos, O. A. R. Abstract: The paper aims to propose an answer to the seeming disagreement between specific demands from the descriptive naturalism present in the moral psychology developed by Nietzsche and his efforts on behalf of a specific set of values notably linked to the ideal of the free spirit’s life. Keywords: naturalism - free spirit – value - moral psychology normativity referências bibliográficas BÜCHNER, L. Força e matéria: ou princípios da ordem natural ao alcance de todos. Porto: Lello e Irmãos Editores, 1958. HEIDEGGER, M. Nietzsche. 2 Vol. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. HUSSAIN, N. Honest illusion: valuing for Nietzsche’s free spirits. In: LEITER, B.; SINHABABU, N. (Orgs.). Nietzsche and morality. New York: Oxford University Press, 2007. p. 157-191. JANAWAY, C. Naturalism and genealogy. In: PEARSON, K. A. (Org.). A companion to Nietzsche. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. LANGE, F. A. The history of materialism and criticism of its present importance. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD, 1925. LEITER, B. Guidebook of Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002. ____________. Nietzsche’s naturalism reconsidered. In: K. Gemes & J. Richardson (Orgs.) The Oxford handbook of Nietzsche. Chicago: 2008. LOPES, R. A. Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008 (Tese de doutorado). 290 cadernos Nietzche 29, 2011 Naturalismo descritivo e ficção normativa NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 _______. Humano, demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. VAIHINGER, H. The philosophy of “as if”: a system of the theoretical, practical and religious fictions of mankind. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & CO. LTD, 1935. Artigo recebido em 10/08/2011. Artigo aceito para publicação em 15/08/2011. cadernos Nietzche 29, 2011 291 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano Alice Medrado* Resumo: Neste artigo, analisamos brevemente as inovações trazidas à tona por Humano, demasiado humano no que diz respeito ao papel da arte e da ciência na cultura, buscando uma melhor compreensão da afirmação nietzschiana de que “o homem científico é a continuação do homem artístico” (MA I/HH I § 222, KSA 2.185). Palavras-chave: arte - ciência - Humano, demasiado humano Humano, demasiado humano é conhecido entre os comentadores como obra inaugural do chamado “período intermediário” ou “período do positivismo cético” por trazer uma série de rupturas em relação às principais disposições que formam o ambiente filosófico da metafísica de artista desenvolvida em O nascimento da tragédia – ambiente este caracterizado pela crença na necessidade da metafísica enquanto propulsora da cultura, e pelo temor de que o investimento em impulsos teóricos solapassem as fontes de criatividade da cultura. Seguindo a tese proposta por Rogério Lopes, entendemos que os motivos mais fortes para que Humano seja visto como um livro de ruptura em relação à obra anterior de Nietzsche dizem respeito a uma nova concepção sobre as condições de florescimento cultural * Mestranda em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais/MG, Brasil. E-mail: [email protected] cadernos Nietzche 29, 2011 293 Medrado, A. e a uma reelaboração do lugar da filosofia na cultura. É em vista desse novo lugar da filosofia que Nietzsche enfatiza a necessidade de aproximação com o método científico, pelo qual nutria forte admiração desde seus anos de formação1. Em Humano, a ciência entra em cena como uma aliada estratégica contra, principalmente, o apriorismo transcendental kantiano, em que o lugar sui generis do filósofo se caracteriza pelo trabalho de dedução por introspecção das categorias formatadoras do conhecimento. Nietzsche estaria de acordo com a intuição central da “revolução copernicana” promovida pela filosofia kantiana, isto é, a ideia de que o objeto é formatado pelas disposições internas do sujeito, mas seguiria ainda a tendência de naturalização daquilo que Kant chamou de “condições transcendentais do conhecimento”. Essa tendência de naturalização das condições do conhecimento caracteriza certa linha do neokantismo no século XIX a que Nietzsche teve acesso principalmente através do trabalho de Friedrich Albert Lange. Assim como Lange, Nietzsche desenvolverá a ideia de que as formas condicionantes do conhecimento não são expressão de um esquematismo mental transcendental, mas da organização psicofísica do sujeito cognoscente, o que implica que o método mais adequado para conhecer essas condições do conhecimento não seria a dedução por introspecção, mas o método e abordagem próprios às ciências naturais. Essa herança langiana de Nietzsche é assim explicada por Lopes: 1 Ver LOPES, R., Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche. Tese de doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, 2008. Vários estudiosos têm notado que ao referir-se ao método científico, Nietzsche não parece designar um procedimento em particular, mas uma certa disposição de espírito voltada à cautelosa pesquisa empírica e à observação dos princípios de economia, simplicidade, coerência. Ver LOPES, R. (2008); LEITER, B. (2002). 294 cadernos Nietzche 29, 2011 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano Lange nega que o filósofo disponha de um método específico para o estabelecimento de suas teses epistemológicas. Embora tome o partido de Kant contra Mill ao defender a tese de que existem determinados elementos a priori que não apenas antecedem, mas condicionam a experiência – estes elementos são por sua vez interpretados em termos de um a priori de nossa organização psicofísica –, Lange recorrerá a um argumento do filósofo inglês para contestar que o método transcendental adotado por Kant possa ter êxito na identificação e fixação destes elementos da cognição. Tais elementos devem ser descobertos pelas vias usuais do método científico, método que ele identifica com a indução, que permite a formulação de proposições com graus variados de generalização (…)2. Apesar de o contato de Nietzsche com Lange datar de seus anos de formação, e de ter sido entusiasticamente comunicado a seus colegas, a discussão só ganha destaque na obra nietzschiana publicada a partir de Humano, demasiado humano. Nesse livro, Nietzsche radicaliza algumas das ideias do neokantiano. Para Lange, a investigação empírica seria capaz de revelar quais formas, dentre aquelas constitutivas da organização psicofísica do sujeito, contariam como meramente acidentais e transitórias na história cognitiva da espécie, e quais delas poderiam ser encontradas como constantes necessárias, de forma que estas últimas estabeleceriam padrões de objetividade do conhecimento. No entanto, Nietzsche insistirá em que todas as formas que funcionam como a prioris do conhecimento se encontram igualmente sujeitas a um devir radical, assim como o restante do mundo natural, e que seu caráter circunstancial viria à tona ao se considerar o desenvolvimento da espécie em perspectivas de longa duração. Esse mesmo caráter circunstancial de nossa formatação cognitiva faria com que nenhuma das formas a priori pudesse se habilitar ao posto de grandeza fixa do 2 LOPES, R. Op. cit., p. 60. cadernos Nietzche 29, 2011 295 Medrado, A. conhecimento. Todas essas categorias formatadoras seriam construídas segundo a necessidade dos organismos de simplificar e estabilizar um mundo em absoluto devir; a história natural mostraria como diferentes arranjos de categorias puderam cumprir de forma eficaz esse papel adaptativo. A este respeito, Béatrice Han-Pile3 comenta que, ao partir da ideia de que as condições “transcendentais” teriam uma gênese empírica, Nietzsche coloca em questão o próprio estatuto “transcendental” dessas condições. Se é possível dizer que Nietzsche reconhece certos “a prioris” do conhecimento, deve-se entender o sentido preciso a eles conferidos, isto é, o sentido de formas que antecedem e condicionam a experiência, mas não o sentido estritamente kantiano segundo o qual esses a prioris seriam universais, a-históricos, necessários. Han-Pile chama atenção ainda para o tom humeano da naturalização proposta por Nietzsche, que insiste no papel do hábito, da crença, das práticas sociais, na formação das categorias formatadoras do conhecimento. Vale lembrar, no entanto, que Nietzsche difere de Hume justamente por propor uma visão historicizada não só das construções culturais, mas também das disposições biológicas atuantes no processo cognitivo. Ao investir em uma visão historicizada do mundo biológico, Nietzsche na verdade não faz mais do que seguir o caminho que, após o trabalho seminal de Charles Darwin, seria a rota de confluência dos naturalistas do século XIX (o século da História) em diante. A ideia de que o mundo natural, também, tem sua história aparece como um grande acontecimento desse século, e logo ecoará de forma estrondosa por toda Europa, envolvendo uma miríade de pensadores sob o rótulo de “evolucionistas”4, pensadores com 3 HAN-PILE, B. “Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos natu ralistas no pensamento de Nietzsche”. In: Cadernos Nietzsche, n. 29, São Paulo, 2011. 4 Sobre as fontes e diálogo de Nietzsche com seus contemporâneos evolucionistas ver o trabalho precioso de Wilson A. Frezatti Jr. (Nietzsche contra Darwin. São Paulo: GEN/ Discurso Editorial/Editora UNIJUÍ, 2001 (Coleção Sendas & Veredas). 296 cadernos Nietzche 29, 2011 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano os quais Nietzsche travou um diálogo mais intenso do que com o próprio Darwin. Mas Nietzsche deixará clara sua diferença em relação a algumas das ideias que circulavam entre os evolucionistas de então; o filósofo alemão se mostrará um crítico particularmente feroz das teorias de Herbert Spencer. A contenda de Nietzsche com Spencer gira em torno do fato de este último entender que o sucesso adaptativo de certas crenças serve como indício da correção dessas crenças. A ideia de Spencer é que se uma crença se mostrou útil à adaptação, temos razões para acreditar que ela seja também verdadeira. Contra Spencer, Nietzsche repetirá a ideia de que a vida se favorece do erro, do autoengano, acima de tudo, algo que seria mostrado pelo desenvolvimento da ciência, que dissolveu até mesmo os artigos de fé mais celebrados, como o conceito de matéria, átomo, etc.5 Uma vez que esses artigos de fé, cujo valor instrumental para uma certa a época é inquestionável, eventualmente tiveram seu caráter fictício revelado, a conclusão nietzschiana é de que “a crença forte prova apenas a sua força, não a verdade daquilo em que se crê” (MA I/HH I §15, KSA 2.35-6). Se a utilidade de uma crença, que faz com que ela seja fortemente aceita, não prova sua verdade, a conclusão reversa também é válida, isto é, a falsidade de uma crença não prova sua inutilidade. Ciente disto, Nietzsche apontará, com muito alarde, o papel fundante desempenhado pelo erro na organização da vida. 5 O modelo atomista entra em crise a partir das descobertas de Newton sobre a gravidade, que levou à conclusão de que esse modelo não se aplicava aos fenômenos de “ação à distância”. A crise do atomismo levou vários teóricos a formular modelos alternativos; o modelo proposto pelo matemático croata Boscovich sugeria que se substituísse o conceito de “matéria” pelo conceito de “força”. O trabalho de Boscovich teve um enorme impacto sobre Nietzsche, que tem sido notado pela tradição de comentadores. Ver, por exemplo, Keith Ansell Pearson, “Nietzsche’s Brave New World of Force”, In: Pli: Warwick Journal of Philosophy, University of Warwick, 2000, v. 9, p. 6-35. cadernos Nietzche 29, 2011 297 Medrado, A. Se as formas com que categorizamos o mundo cumprem meramente uma função adaptativa, se seu sucesso não significa qualquer indício de correção, se essas formas estão num processo de deriva radical, o resultado é que todo o conjunto de nossas crenças passa a contar como erros. O erro é a consequência necessária de um intelecto cujo modo operacional mesmo se dá pela criação de ficções instrumentais, ficções que no entanto devem ser tomadas como verdades para que cumpram o efeito organizador esperado. Caberia às ciências da história natural e cultural o papel de trazer à luz os fatores condicionantes do conhecimento, e portanto atribui-se às ciências o papel de depuração desses erros que atuam na fundação dos processos cognitivos. A aposta de Nietzsche em que uma filosofia cientificamente informada se encarregará de prover uma nova compreensão das condições do conhecimento e da cultura em geral – essa aposta é apresentada já no primeiro aforismo de Humano, demasiado humano e dá o tom programático do “filosofar histórico”, que para Nietzsche se apresenta então como uma necessidade. A moral em devir – o papel da ciência na superação das “necessidades metafísicas” Defender uma visão do mundo natural em devir absoluto é importante para que Nietzsche deixe aberta a possibilidade de que as categorias que condicionam nosso conhecimento e percepção tanto no plano da epistemologia, quanto da moral e da estética, sejam ocasionalmente revistas, relativizadas, reavaliadas, reinventadas. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche estará especialmente 298 cadernos Nietzche 29, 2011 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano interessado em mostrar como as chamadas “necessidades metafísicas” não mais se apresentam como necessárias, podendo agora ser vistas como um dado do passado cultural da espécie6. A tese de que o homem invariavelmente tem “necessidades metafísicas” – isto é, disposições especulativas que não podem ser satisfeitas no campo da ciência, mas de cuja satisfação, buscada no campo da arte ou da religião, provêm ganhos éticos imprescindíveis – é encontrada, com ligeiras variações, em três grandes interlocutores de Nietzsche: Kant, Lange e Schopenhauer. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche buscará subsídios nas ciências naturais e históricas que permitam circunscrever o advento de tais necessidades a um momento específico da história biológica e cultural da espécie e, em contrapartida, promover a visão de que a superação dessas necessidades abriria o caminho para uma renovada compreensão do homem enquanto ser natural e cultural. O pensamento metafísico, que Nietzsche identifica com o pensamento mitológico ou supersticioso, teria sido favorecido por uma época que ainda não havia desenvolvido um método rigoroso para a busca de conhecimento, um método que finalmente se cultivou no interior da ciência moderna. Ou seja, segundo a visão nietzschiana, no ambiente cultural que deu ensejo às “necessidades metafísicas”, imperam “os piores, e não os melhores métodos cognitivos”7. Que tais necessidades encontrem defensores ainda à sua época é visto pelo filósofo como um sinal de atavismo. Em MA I/HH I §108, KSA 2.107-9, Nietzsche apresenta a ideia de que o desenvolvimento da ciência permitiria que se identificassem as causas do sofrimento, ao invés de simplesmente conferir uma significação positiva para o sofrimento, o que seria a função da 6 Ver MA I/HH I § 27/KSA 2.48 dentre outros. Todas as citações de Humano, demasiado humano neste artigo feitas conforme a tradução de Paulo César de Souza (Companhia das Letras: São Paulo, 2005). 7 Ver MA I/HH I § 9/KSA 2.29-30. cadernos Nietzche 29, 2011 299 Medrado, A. arte e da religião. Dada a possibilidade de agir diretamente sobre essas fontes psicofisiológicas e culturais de uma série de mazelas humanas, os expedientes de consolação metafísica se tornariam cada vez mais obsoletos. Além disto, segundo o diagnóstico apresentado em MA I/HH I §109, KSA 2.108-9, o homem moderno, ambientado numa cultura científica, padeceria de sofrimentos outros, para os quais não há consolo metafísico que se aplique. Conta o pensamento metafísico, ainda, o fato de que este foi responsável por promover uma visão do homem que estabelece entre ele e o restante do mundo natural uma falsa hierarquia, uma vez que as “necessidades metafísicas”, vistas como a única fonte de motivação da arte, da ética, e de tudo aquilo a que sempre se conferiu o maior valor no mundo humano, foram tratadas como o signo de distinção do homem em relação ao restante do mundo natural. Segundo o diagnóstico nietzschiano apresentado já no primeiro aforismo de Humano, demasiado humano, o pensamento metafísico supôs assim um solo “miraculoso” para os mais valiosos artigos humanos, impedindo que tais artigos fossem abordados pelo mesmo método empregado no estudo de outras áreas da experiência humana, o que contribuiu para uma má compreensão do homem e de suas criações. A atitude de indiferença em relação às necessidades metafísicas seria especialmente salutar para o modo de vida do espírito livre, personagem conceitual a que Nietzsche dedica o livro. Esse modo de vida se caracteriza por uma prática intelectual informada nos métodos e resultados das ciências, e dedicado ao cultivo das “coisas próximas”, que como Nietzsche deixa entrever ao longo do livro, são aquelas coisas mundanas que fazem o cotidiano de uma vida simples e particular, coisas relativas à alimentação, ao humor, ao trato das amizades e outros tipos de convívio social, à escolha dos livros, ao cultivo do gosto, aos sentimentos de inveja, vaidade, empatia, etc. – coisas estas que, diferentemente dos artigos metafísicos, seriam passíveis de uma abordagem científica. 300 cadernos Nietzche 29, 2011 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano Por fim, a dispensabilidade das necessidades metafísicas se justifica pela visão de que a criação de novos elementos edificantes, orientadores das práticas éticas e estéticas, depende de um pensamento informado sobre as “condições da cultura” (MA I/HH I § 25, KSA 2.46). Com isto, Nietzsche parece sugerir que o filósofo, em sua atividade de fomentador cultural e criador de valores, tem muito de que se beneficiar com o conhecimento sobre a gênese das necessidades culturais e as diferentes soluções encontradas por diferentes povos, em diversas configurações espaço-temporais. Trata-se de um tipo de conhecimento fornecido, é claro, pela história das ideias, pela história política e econômica dos povos, pela arqueologia, pela antropologia, etc. Tentamos reconstituir, até aqui, dois pontos de inflexão da aproximação entre filosofia e ciência segundo o programa de Humano, demasiado humano: no plano epistemológico, a ciência aparece como aliada na tarefa de tomar pé das condições do conhecimento humano, apontando o caráter provisório, simplificador, falsificador das categorias que formatam nossa visão do mundo e de nós mesmos, e ainda, a ciência proveria um método para se abordar a gênese e o funcionamento dos valores e das ficções culturais em geral; no plano ético, a ciência aparece como instrumento próprio a um modo de vida voltado ao conhecimento das coisas próximas. Tentamos mostrar também que, em Humano, demasiado humano, a ênfase na investigação histórico-filosófica das condições do conhecimento se liga às investidas nietzschianas no sentido de pensar um novo lugar para o filósofo, diferente do lugar sui generis definido pela filosofia transcendental. A aposta num “filosofar histórico”, e portanto num fazer filosófico informado pela ciência, se justifica, então enquanto opção metodológica que permitiria uma melhor abordagem dos fenômenos cognitivos envolvidos na formação de crenças sobre o mundo, a ética e a estética. Poderíamos acrescentar, ainda, que Nietzsche credita um efeito terapêutico aos conhecimentos científicos, uma vez que eles cadernos Nietzche 29, 2011 301 Medrado, A. seriam capazes de combater os danos causados pelo apregoamento das “necessidades científicas”. Vale lembrar, é claro, que Nietzsche não vê na ciência um meio de acesso a algo como a “constituição última” da realidade; no discurso científico, como nos demais, está-se sempre no domínio dos fenômenos humanos, o que equivale a dizer – considerando-se o que foi dito sobre o caráter circunstancial, adaptativo, instrumental dos a prioris que formatam o conhecimento humano – que se está sempre no domínio da ficção. “O homem científico é a continuação do homem artístico” A vantagem da ciência sobre outras formas de percepção e organização do mundo está exatamente em ver a ficção como ficção, em assumir uma posição de distanciamento frente aos erros que regem nossa organização cotidiana do mundo. Nietzsche valoriza a ciência enquanto espaço onde se cultiva a desconfiança frente a seus próprios instrumentos conceituais, e consequentemente entende que também os instrumentos conceituais da ciência, como todos os outros, são forjados por projeção de nosso aparato perceptivo e intelectual. A fiar-se na descrição nietzschiana, seria característico desse aparato perceptual e intelectual cumprir uma função adaptativa que depende da simplificação, da transfiguração do mundo segundo nossas necessidades circunstanciais. Ou seja, o modo de funcionamento mesmo de nosso aparato cognitivo faz com que ele esteja destinado a nutrir-se, acima de tudo, da ilusão e do autoengano. Se na gênese de nossos conceitos atua essa função simplificadora, ficcionalista, tampouco os conceitos científicos escaparão ao título de ficção. É essa origem ficcional e criativa dos mecanismos utilizados pela ciência o que fará com que ela seja vista em íntima analogia com a arte. Béatrice Han-Pile analisou, de forma primorosa, como Nietzsche concebia a analogia entre arte e ciência no artigo inacabado de 302 cadernos Nietzche 29, 2011 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano juventude, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. O que temos tentado mostrar é que os traços fundamentais dessa analogia são reiterados em Humano, o que provavelmente é ofuscado pelo tom de ruptura desse livro, tom que salta aos olhos do leitor anteriormente familiarizado com O nascimento da tragédia. Segundo nossa interpretação, o fundamental dessa ruptura aparece na desvalorização da arte enquanto instrumento de propulsão da cultura metafísica. A partir dessa mudança na avaliação nietzschiana podemos compreender seus esforços no sentido de afastar-se da metafísica de gênio schopenhaueriana, substituindo-a por uma visão naturalizada do fazer artístico. O que é posto em xeque em Humano é a ideia de que o artista teria acesso imediato à constituição última da existência, seja ela pensada como “vontade” ou “coisa em si”. Questiona-se a ideia de que o artista seria o sujeito de uma “inspiração” miraculosa. Na visão naturalizada do artista, este é caracterizado como um trabalhador perseverante, observador, como alguém cujos esforços estão em continuidade com a tradição, alguém portador de boas qualidades humanas, ao invés de dons divinos. Essa visão é construída por Nietzsche de forma muito nuançada e penetrante ao longo de todo o capítulo “Da alma dos artistas e escritores”, mas pode ser sintetizada na fórmula que conclui o aforismo 155, sob o título A crença na inspiração, que analisa o fazer artístico (cf. MA I/ HH I §155, KSA 2.146-7). A conclusão do aforismo é que “Todos os grandes foram grandes trabalhadores, incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar.” Note-se que essa descrição do fazer artístico contribui enormemente para a aproximação entre o artista e o cientista. Poderíamos lembrar também que, ao pensar “o grau superior da cultura, que se coloca sob o domínio (se não sob a tirania) do conhecimento” – isto é, o tipo de cultura que Nietzsche acreditava estar em ascensão em seu tempo – o filósofo identificará como os valores distintivos dessa cultura a “reflexão severa, concisão, frieza, simplicidade cadernos Nietzche 29, 2011 303 Medrado, A. deliberada levada ao extremo; em suma, restrição do sentimento e laconismo”. É notável que esses princípios que Nietzsche aplica à arte de seu tempo em muito se assemelham às “virtudes epistêmicas” que ele havia creditado à ciência. O passo final da naturalização da arte será mostrar que o artista se beneficiou da má compreensão que o interpretou em termos metafísicos – a mesma má compreensão que atuou na origem das concepções que associam a imagem do artista àquela do louco e do santo – e acabou por acreditar ele mesmo nessa interpretação. Como resultado, a arte foi fortemente atrelada à tradição de pensamento metafísico. Podemos supor, com bastante segurança, que é justamente por isso que a arte recebe um papel menor no programa filosófico de Humano, e que o papel de destaque conferido à ciência tem uma razão estratégica, uma vez que haveria uma intolerância recíproca entre ciência e metafísica. Tendo em vista o intuito nietzschiano de pensar as condições de uma cultura pós-metafísica, podemos compreender melhor as afirmações, um tanto polêmicas, de que a arte representaria um estágio específico do pensamento humano, um estágio em vias de desaparecimento, ou ainda, de que a arte seria ultrapassada pela ciência. Há aqui, é claro, uma ressonância das ideias de Auguste Comte, segundo as quais o pensamento humano se desenvolveu em três estágios: teológico, metafísico e positivo8. Nos momentos do livro em que Nietzsche ressalta a oposição entre ciência e arte, esta é pintada com as cores da metafísica, isto é, nesses momentos Nietzsche a associa com as ideias de grandeza, intensidade, obscuridade, por contraste com a modéstia, leveza e clareza que caracterizariam o pensamento científico9. Por outro 8 Ver COMTE, A. Opúsculos de filosofia social. Trad. de Ivan Lins e João Francisco de Souza. Porto Alegre: Editora Globo, 1972. 9 Ver MA I/HH I §150, KSA 2.144. 304 cadernos Nietzche 29, 2011 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano lado, nos momentos em que o que está em questão não é a inserção da arte na cultura metafísica, mas a compreensão naturalista do fazer artístico ele mesmo, vimos como arte e ciência são aproximadas. Na ideia de que “o homem científico é a continuação do homem artístico” (MA I/HH I § 222, KSA 2.185-6) está contida tanto essa visão (comtiana) progressista do pensamento humano, quanto a analogia genética entre arte e ciência. O fator comum entre arte e ciência segundo este aforismo, ao que tudo indica, é que ambas seriam meios pelos quais se aprende a “olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer, e a elevar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos: ‘Seja como for, é boa a vida’”. Ou seja, arte e ciência seriam formas de conhecimento, formas de “olhar a vida”, bem como motivadores de uma atitude que afirma a vida. Que não passe despercebida tampouco a “lição” que Nietzsche então credita à arte, a lição de “ter prazer na existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza, sem excessivo envolvimento, como objeto de uma evolução regida por leis – esta lição se arraigou em nós, ela agora vem novamente à luz como necessidade todo-poderosa de conhecimento”. O notável aqui é que esta é uma lição a ser recebida pelo espírito livre, caracterizado por um modo de vida voltado ao conhecimento, ao cuidado das coisas próximas, à percepção de si mesmo como nem mais nem menos que natural10. Seguindo uma pista dada já no primeiro aforismo do livro, poderíamos pensar que arte e ciência têm em comum o fato de serem ambas formas sublimadas de lidar com as percepções e organizações conceituais humanas, entendendo que com a metáfora da sublimação, tomada da química, Nietzsche refere-se à capacidade de tornar mais refinados materiais originalmente grosseiros, como seriam nossas representações triviais. É interessante notar, afinal, que o tom comtiano de Nietzsche no que concerne à arte tende a desaparecer nas obras subsequentes; 10 Ver MA I/HH I § 34, KSA 2.53-55. cadernos Nietzche 29, 2011 305 Medrado, A. aliás, Nietzsche posteriormente se esforçará bastante para purgar de sua visão evolutiva do mundo qualquer resíduo da ideia de progresso. Já no chamado período intermediário, de forma mais emblemática em A gaia ciência, Nietzsche passará a enfatizar sua aposta na arte e na ciência enquanto meios para a sublimação que estaria na base de toda grande obra cultural. Ganhará espaço também uma linha de pensamento que Nietzsche deixa apenas entrever em Humano, demasiado humano, segundo a qual arte e ciência seriam as formas por excelência de lidar com o caráter ilusório, errôneo das formas com que organizamos o mundo. Neste sentido, arte e ciência trariam contribuições opostas e complementares a um modo de vida voltado ao conhecimento – caberia à ciência o cultivo das exigências de “integridade intelectual”, firmando uma atitude de desconfiança frente ao mundo humanizado, radicalmente construído sobre o erro; por outro lado, caberia à arte o papel de cultivar a boa consciência na ilusão, um papel reconciliador caracterizado por Nietzsche como “suspensão da descrença”. Como dissemos, essa última consideração sobre arte e ciência está apenas sugerida em Humano, aparece em suas entrelinhas, sendo completamente desenvolvida apenas nas obras posteriores, razão por que dela trataremos em outro lugar. Abstract: In this article, we shortly analyse the innovations raised by Human, All Too Human, regarding to the role of art and science in culture, looking for a better understanding of Nietzschean statement that “the scientific man is the continuation of the artistic man” (MA I/HH I § 222, KSA 2.185). Keywords: art – science – Human, All Too Human 306 cadernos Nietzche 29, 2011 Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano referências bibliográficas 1. COMTE, A. Opúsculos de filosofia social. Trad. Ivan Lins e João Francisco de Souza. Porto Alegre: Editora Globo, 1972. 2. FREZATTI JR., W. A. Nietzsche contra Darwin. São Paulo: GEN/Discurso Editorial/Editora UNIJUÍ, 2001 (Coleção Sendas & Veredas). 3. 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A. “Nietzsche’s Brave New World of Force”. In: Pli: Warwick Journal of Philosophy, University of Warwick, 2000, v. 9, p. 6-35. cadernos Nietzche 29, 2011 307 Medrado, A. 11. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005. Artigo recebido em 09/08/2011. Artigo aceito para publicação em 20/08/2011. 308 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” “A ambicionada assimilação do materialismo”: Nietzsche e o debate naturalista na filosofia alemã da segunda metade do século XIX Rogério Lopes* Resumo: Este artigo procura caracterizar o modo como Nietzsche pensa a relação entre filosofia e ciências empíricas em termos de uma concepção naturalista liberal, a partir de uma confrontação de sua posição e as de alguns de seus contemporâneos. Começa-se por mostrar que havia na filosofia alemã da segunda metade do século XIX algo similar ao debate contemporâneo em torno do naturalismo metodológico. Em seguida são apresentadas as teses históricas de F. A. Lange referentes à emergência de uma disciplina metódica no interior da tradição materialista, o acolhimento destas teses por Nietzsche e, finalmente, os argumentos de Spir contra os programas de naturalização de sua época, assim como a réplica nietzschiana. Na última seção discuto o significado da orientação especulativa da filosofia tardia de Nietzsche e sua possível compatibilidade com uma concepção mais liberal de naturalismo. Palavras-chave: naturalismo - filosofia transcendental - virtudes epistêmicas - princípio de economia O que caracteriza o século XIX não é a vitória da ciência, mas a vitória do método científico sobre a ciência (Nachlass/FP 1888, 15[51], KSA 13.442). * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais/MG, Brasil. E-mail: [email protected]. cadernos Nietzche 29, 2011 309 Lopes, R. 1. Considerações introdutórias A filosofia contemporânea de língua inglesa é fortemente marcada pelo debate em torno do naturalismo. Pode-se dizer que a maior parte dos filósofos que pertencem a esta tradição está, de um modo ou outro e em diferentes níveis de radicalidade, comprometida com alguma versão da tese naturalista, enquanto a minoria divergente se esforça para formular uma tese alternativa que não a faça parecer adepta de alguma entidade sobrenatural ou disposta a menosprezar o enorme sucesso e prestígio acumulado pelas ciências empíricas ao longo da modernidade. Os diversos programas de naturalização em filosofia vão desde a naturalização da mente, do conhecimento, da moralidade e dos valores em geral, passando pelas categorias abstratas da lógica e da matemática, até atingir a noção geral de significado, com a proposta de eliminar, ou pelo menos reduzir toda e qualquer entidade ou propriedade abstrata, intencional ou normativa a alguma entidade ou propriedade que possa receber um tratamento estritamente naturalista (cf. DE CARO & MACARTHUR 3). Este cenário é em alguma medida surpreendente se nós pensarmos nas origens do que se convencionou denominar de “tradição analítica”, um rótulo com o qual não devemos nos comprometer muito seriamente em função de sua alta carga polêmica, inversamente proporcional à sua força descritiva, quase nula. Nas origens desta tradição, mas também das grandes escolas da chamada “filosofia continental” (se quisermos continuar a nos servir de rótulos pouco confiáveis), tais como a fenomenologia e a hermenêutica, encontra-se a recusa do que poderíamos chamar de atitude naturalista, assim como o movimento contrário de reivindicação de uma especificidade metodológica para a reflexão filosófica. Um modo simples e esquemático de organizar a história da filosofia no século XX seria dizer que ela foi preponderantemente avessa a todo projeto de naturalização durante a primeira metade do século, procurando afirmar sua própria identidade tanto pela defesa de sua especificidade metodológica quanto de um domínio 310 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” de objetos e questões que lhe seriam próprias: objetos abstratos e intencionais, como conceitos, significados, proposições, assim como a elucidação das questões normativas. Esta estratégia de autoafirmação começou a ruir tanto no interior da tradição analítica, fortemente marcada em seus inícios pela utopia logicista e pela análise dos significados e usos linguísticos, quanto nos movimentos do estruturalismo e pós-estruturalismo, que se estabeleceram contra a tradição fenomenológica e existencialista e seu apriorismo subjetivista. Enquanto a tradição analítica pós-quineana investiu pesadamente no diálogo com as ciências naturais e adotou programaticamente a tese da continuidade entre análise conceitual e investigação empírica, o estruturalismo e pós-estruturalismo pretenderam recorrer às diversas ciências sociais como forma de denunciar as ilusões totalizantes do sujeito consciente. Ambas as tradições realizaram na segunda metade do século XX um movimento inverso ao que prevaleceu na sua primeira metade: elas não apenas desistiram de reivindicar qualquer especificidade metodológica para a filosofia (que em termos concretos se traduziu na recusa do apriorismo até então hegemônico em ambas as tradições), como em certa medida denunciaram esta reivindicação como uma tentativa ilegítima de estabelecer uma relação imperialista com as ciências empíricas, cujo resultado teria sido o reforço das antigas ilusões identitárias e substancialistas do discurso metafísico. Esta última conclusão encontra-se de forma mais explícita na chamada tradição continental, dado o seu maior gosto pela autoestilização e pela dramatização dos embates intelectuais. Esta guinada naturalista da filosofia contemporânea, especialmente visível no cenário acadêmico de língua inglesa, poderia ser apontada como a causa mais imediata do enorme interesse que este tema tem despertado entre os intérpretes de Nietzsche, conforme podemos perceber pelos artigos publicados neste número dos Cadernos Nietzsche. Apontar esta causa imediata poderia, por sua vez, alimentar a suspeita de que estas tentativas de aproximação entre Nietzsche e os programas de naturalização em voga no cadernos Nietzche 29, 2011 311 Lopes, R. debate contemporâneo teriam sido motivadas menos pelas questões que foram de fato cruciais para o filósofo alemão do que por uma agenda imposta de fora. Esta agenda, por sua vez, teria resultado de uma pressão cada vez maior por explicação que, no limite, ameaça a autonomia da filosofia, ao sugerir sua subordinação aos métodos e resultados das ciências. Neste artigo pretendo combater esta suspeita, ao argumentar mediante uma rápida reconstrução histórica que algo similar ao debate naturalista esteve presente no contexto intelectual alemão no qual Nietzsche se formou, e que este debate influiu decisivamente no rumo de suas preocupações filosóficas. Em resumo, se por um lado julgo pertinente que se estabeleçam paralelos entre o debate contemporâneo e as preocupações de Nietzsche, por outro lado considero recomendável que este exercício comparativo não se limite ao espaço rarefeito das razões, mas se arrisque no palco da história efetiva, que é o espaço no qual se desenrola o confronto efetivo dos argumentos. Isso exigirá do intérprete um esforço no sentido de conceder a palavra aos reais interlocutores de Nietzsche (que não são Quine, Davidson e McDowell, ou Heidegger, Foucault e Derrida, mas Schopenhauer, Lange e Spir, para citar os menos esquecidos). O que move este esforço de reconstrução do contexto histórico não é necessariamente um impulso de antiquário, mas a expectativa de que este pequeno desvio pelo passado nos permita surpreender algum resíduo de extemporaneidade em Nietzsche. O teste para saber se este desvio foi cognitivamente bem-sucedido não é dado pelo que ele permite confirmar de nossas expectativas teóricas contemporâneas, mas por sua capacidade de produzir um estranhamento, ainda que leve, em relação às teses que se converteram em moeda corrente e que constituem o conforto indispensável para que a mente cumpra as suas funções cognitivas rotineiras. Com o intuito de mostrar que tal desvio pode ser cognitivamente produtivo, argumento que Nietzsche está comprometido com uma versão do naturalismo que não tem paralelos nas diversas tentativas filosóficas contemporâneas de se 312 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” chegar a uma formulação adequada do que seria o tão almejado compromisso liberal e não cientificista com o naturalismo (cf. DE CARO & MACARTHUR 4). 2. A crise de legitimação da filosofia e as disputas intelectuais no contexto de formação do jovem Nietzsche. Inspirado em Mark Sacks (SACKS 19), Paul Redding (REDDING 18) aponta, em seu artigo intitulado “Duas direções para o kantismo analítico: naturalismo e idealismo”, duas dificuldades a serem enfrentadas pelos diversos programas de naturalização da filosofia transcendental: a primeira dificuldade é denominada por ele de “o problema da identidade disciplinar” (REDDING, idem, p. 265) e diz respeito às condições de legitimação da atividade filosófica a partir do momento em que nos dispomos a negar, inspirados pelo programa de naturalização, a existência de verdades a priori que seriam acessíveis mediante análise conceitual e método reflexivo. Segundo esta leitura, a tese naturalista da continuidade entre reflexão filosófica e ciências empíricas é menos uma resposta ao problema do que uma desistência ou uma capitulação face às ciências empíricas; a segunda dificuldade é mais genérica e diz respeito aos efeitos niilistas da tese naturalista: segundo Redding, a tentativa de naturalização da perspectiva transcendental agrava o problema da legitimação da normatividade iniciado com a recusa, por parte de Kant, de uma fundamentação teocrática do discurso filosófico. Esta acusação foi formulada pela primeira vez por Jacobi na recepção imediata da Crítica da razão pura; segundo Jacobi, niilismo e relativismo seriam as consequências naturais da tentativa kantiana de emancipar a filosofia da religião natural e revelada. O projeto de naturalização do transcendental seria um passo adiante neste processo de dissolução de uma instância fundacionista das reivindicações normativas (REDDING, ibidem, p. 266). cadernos Nietzche 29, 2011 313 Lopes, R. O primeiro programa sistemático de naturalização do transcendental foi formulado na segunda metade do século XIX, durante os anos de formação de Nietzsche, a princípio como uma resposta moderada a um movimento radical de naturalização, cujo objetivo era a divulgação e vulgarização dos resultados das ciências naturais com o intuito de fomentar e difundir uma visão de mundo estritamente materialista. Uma resposta complexa e nuançada a este movimento radical de naturalização foi formulada pelo filósofo Friedrich Albert Lange em sua História do materialismo, cuja primeira edição data de 1866 e que exerceu profunda influência sobre o modo como Nietzsche recepcionou o debate (cf. LOPES, 13, cap. I). Esta polêmica dominou parte do público esclarecido alemão na década de 50 e teve como principais protagonistas do lado do materialismo Karl Vogt, Jacob Moleschott e Ludwig Büchner, autores que praticavam um tipo de literatura filosófica de amplo apelo popular e que encontrou seu solo propício no contexto das lutas que marcaram a recomposição das relações de forças no ambiente intelectual alemão após a derrocada dos grandes sistemas filosóficos do Idealismo, em especial do sistema hegeliano. Klaus Christian Köhnke (KÖHNKE 10) narrou em detalhes a reestruturação da filosofia acadêmica alemã a partir desta derrocada, que teve início imediatamente após a morte de Hegel, como um esforço titânico empreendido pela mesma para recuperar seu prestígio intelectual através da árdua tarefa de determinar seu objeto específico de reflexão e assegurar com isso sua própria identidade face ao avanço das ciências naturais e históricas, determinado em boa parte pelo processo de industrialização relativamente tardio na Alemanha dos anos 40. Este movimento de reestruturação, que conduziu ao estabelecimento do Neokantismo como a filosofia acadêmica oficial de língua alemã, adotou uma dupla estratégia para promover o resgate da dignidade da filosofia: identificou na reflexão acerca do método científico a principal tarefa filosófica e procurou manter o máximo de discrição possível nas disputas em torno das visões de mundo. Uma das causas do colapso das chamadas filosofias da identidade foi justamente o fosso criado 314 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” por estes sistemas entre reflexão filosófica e atividade científica. As disputas cada vez mais acirradas no campo das ideias políticas e a virulência da crítica à religião entre os herdeiros do hegelianismo, juntamente com a repressão política que se seguiu aos movimentos de insurreição de 1848, contribuíram para consolidar de vez entre os filósofos acadêmicos aquele sentimento de insatisfação que originalmente estava fundado em razões de ordem teórica e que terminou por se converter numa atitude de franca hostilidade em relação a toda variante de filosofia especulativa. Aos poucos se impôs entre os ditos filósofos de profissão um profundo ceticismo quanto à possibilidade de encontrar critérios racionais para orientar a escolha entre visões de mundo concorrentes1. Duas vias alternativas começaram a se impor a partir da década de 50, ou seja, após um primeiro esgotamento das disputas no interior do hegelianismo: 1) a via de conversão da ciência em visão de mundo e de absolutização do discurso científico, que desencadeou a polêmica em torno do materialismo; 2) o lento caminho de retorno a Kant como o filósofo capaz ao mesmo tempo de apaziguar o conflito entre filosofia e ciência e de neutralizar as disputas entre visões de mundo concorrentes. No que diz respeito a esta segunda via, 1 Cf. KÖHNKE, 10, em especial o capítulo 3, “Die skeptische Generation der 1850er Jahre”. O livro de Köhnke reconstrói de forma minuciosa um lado pouco conhecido da filosofia alemã do século XIX, ou seja, a filosofia universitária. Sua leitura funciona como um corretivo primoroso à crença amplamente difundida de que no século XIX alemão só se fez filosofia digna do nome fora dos muros da academia. Esta crença é ela mesma fruto de uma opção historiográfica. O amplo cenário intelectual reconstruído por Köhnke contribui também, ainda que indiretamente, para o árduo desafio de situar Nietzsche em sua própria época. Embora Nietzsche tenha abusado menos da retórica antiacadêmica do que seu mestre Schopenhauer, alguns traços de seu estilo filosófico, somados a certas vicissitudes na recepção de sua obra contribuíram para forjar a imagem de um autor imune às inquietações filosóficas que moveram o debate universitário de sua época. Hoje estamos mais bem informados tanto destas inquietações como dos hábitos de leitura de Nietzsche, o que nos obriga como intérpretes a rever certos traços da imagem do filósofo como outsider. O livro de Köhnke pode ser visto como um complemento essencial ao estudo clássico de Löwith (LÖWITH 14). cadernos Nietzche 29, 2011 315 Lopes, R. cabe observar que a decisão de percorrê-la não partiu exclusivamente dos filósofos, mas também de alguns dos mais eminentes cientistas naturais da época, que se mostravam insatisfeitos com a interpretação dogmática dos resultados de sua própria atividade e que não gostariam de ver excluída a possibilidade de que outra visão de mundo que não a materialista fosse compatível com estes mesmos resultados. Hermann Helmholtz contribuiu duplamente neste sentido: ele reinseriu Kant no debate epistemológico da época, ao interpretar os resultados empíricos de sua investigação no âmbito da fisiologia dos órgãos sensoriais como uma confirmação das teses kantianas (sem tomar conhecimento do caráter problemático de tal reivindicação), definindo com isso a estratégia de reatualização do kantismo que mais tarde seria adotada pelo próprio Lange; Helmholtz destacou ainda os méritos de Kant como cientista natural em uma conferência que se tornou imediatamente célebre. Os dois movimentos conjugados tinham por finalidade mostrar que entre filosofia e ciência, pelo menos no período heroico de formação da cultura alemã, não reinava a discórdia, mas uma afinidade e cooperação íntimas. O recurso a Kant evidenciava que o conflito entre filosofia e ciência não era de princípio, mas fruto de uma contingência histórica2: 2 Segundo Köhnke a conferência em homenagem a Kant pronunciada por Helmholtz em Königsberg no início de 1855 teve ampla repercussão justamente por mobilizar contra o materialismo um argumento idealista que vinha acompanhado da chancela das ciências naturais. Cf. KÖHNKE 10, p. 153. O historiador refere-se à conferência intitulada “Über das Sehen des Menschen”, na qual Helmholtz introduz a tese de que os resultados recentes da fisiologia dos órgãos sensoriais representam uma confirmação empírica de algumas teses epistemológicas de Kant. Helmholtz refere-se neste contexto à lei da energia específica dos órgãos sensoriais proposta por seu professor, o médico e fisiologista Johannes Mülller. Parte importante do debate em teoria do conhecimento das primeiras três décadas da segunda metade do Século XIX gira em torno das implicações epistemológicas deste princípio, que reza que as diferenças qualitativas entre as diversas sensações dependem em primeira instância da energia específica relacionada a determinado órgão sensorial e apenas indiretamente da natureza do estímulo nervoso. Uma mesma sensação pode resultar de estímulos nervosos distintos, assim como um mesmo estímulo nervoso pode ocasionar sensações 316 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” A cisão fundamental que atualmente separa a filosofia e as ciências naturais ainda não vigorava no tempo de Kant [...]. A filosofia de Kant não visava a aumentar nossos conhecimentos através do pensamento puro, pois o seu princípio supremo era que todo conhecimento da realidade tinha que ser extraído da experiência. Ela visava apenas a investigar as fontes do nosso saber e seu grau de justificação, uma ocupação que estará sempre reservada à filosofia, e da qual nenhuma época poderá se eximir impunemente (HELMHOLTZ 7, p. 5). Vinte e cinco anos mais tarde o filósofo Otto Caspari, na Introdução à sua coletânea de ensaios intitulada Der Zusammenhang der Dinge, referia-se a esta cisão fundamental entre filosofia e ciências naturais como se se tratasse de um fantasma do passado: Um dos resultados mais satisfatórios dos movimentos que estamos presenciando na época atual, marcada pela ciência, é sem dúvida o fato de que a filosofia pôde se reaproximar das ciências da natureza [...]. No que diz respeito a esta nova reunificação da filosofia e das ciências naturais é, contudo, de suma importância considerar mais atentamente o seguinte: qual deve ser a natureza desta aliança que se firmou e contra quais erros precisamos estar alertas para que uma nova ruptura não venha a acontecer, o que sem dúvida alguma conduziria ambas as ciências, que se pertencem mutuamente, a direções opostas e a novos extravios (CASPARI 1, p. 1). qualitativamente distintas conforme o órgão sensorial afetado. O ensaio inacabado e póstumo de Nietzsche, intitulado Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, não é de modo algum indiferente ao impacto desta tese em sua primeira tentativa de articular, de um ponto de vista genealógico, uma visão minimamente coerente das diversas dimensões envolvidas na pesquisa da verdade através da incorporação do conjunto heterogêneo de leituras empreendidas pelo filósofo nestes anos de formação e que abarcam diversos tópicos da filosofia teórica. cadernos Nietzche 29, 2011 317 Lopes, R. Embora Caspari afirme que a possibilidade de uma recaída nos velhos erros do idealismo alemão não possa ser descartada de princípio e exija um exame cuidadoso da natureza da nova aliança firmada entre a filosofia e as ciências naturais para exorcizar de vez esta ameaça, a mudança na percepção do cenário intelectual não é por isso menos notável. O que ocorreu de tão significativo no ambiente intelectual alemão em menos de um quarto de século que levou a uma mudança tão radical nos termos do debate? Minha hipótese é que entre as polêmicas em torno do materialismo que marcaram a década de cinquenta e a hegemonia do Neokantismo a partir da segunda metade da década de oitenta a filosofia acadêmica alemã viveu uma espécie de interregno naturalista sob a liderança intelectual de Friedrich Albert Lange e de sua influente História do materialismo. Embora sua obra tenha sido concebida como um manifesto programático em defesa do retorno a Kant, o desenvolvimento posterior do neokantismo conferiu ao movimento um rumo inteiramente diverso daquele sugerido por Lange. O combate ao psicologismo, ao antropomorfismo, ao positivismo, ao materialismo, ao empirismo, a defesa intransigente da especificidade da reflexão filosófica face às ciências empíricas, a valorização unilateral da tendência idealista e do aspecto construtivo do conhecimento em suas diversas manifestações representam uma inversão quase que completa das posições de Lange. Se com isso o neokantismo se tornou um movimento mais genuinamente kantiano é outra questão, que não deve nos ocupar aqui. O fato é que, sob a liderança intelectual de Lange e devido à sua inclinação naturalista, os temas que dominaram a paisagem filosófica de língua alemã nas décadas de sessenta e setenta do século XIX apresentam notáveis similaridades com aqueles que encontramos na tradição analítica pós-quineana. Dada a incontestável influência de Lange sobre Nietzsche, uma investigação sobre suas eventuais contribuições para o tema do naturalismo se justifica também de um ponto vista histórico. 318 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” 3. A “ambicionada assimilação do materialismo”: Lange, Nietzsche e uma possível versão liberal dos compromissos naturalistas do filósofo. Um diagnóstico preciso da disposição de espírito que dominou a filosofia alemã nas décadas de sessenta e setenta do século XIX foi formulado por Hans Vaihinger (em uma obra destinada justamente à defesa da posição de Lange) doze anos após a publicação da primeira edição (1866), e três anos após a publicação da segunda edição, revista e consideravelmente ampliada, da História do materialismo (1873-1875): A filosofia, dizia-se, precisa se orientar pelas ciências naturais; ela precisa se afastar das especulações estéreis e das querelas escolásticas e retornar ao verdadeiro solo das ciências positivas. Nenhum sistema que seja incapaz de cumprir estas exigências, em especial a ambicionada assimilação do materialismo, poderá reivindicar uma validade universal; nenhum filósofo que não ‘tenha sido ungido com uma gota de óleo do materialismo’ será erguido ao trono [...]. Tal era a palavra de ordem da filosofia e das ciências naturais a uma ou duas décadas atrás (VAIHINGER 23, p. 2). Não há dúvida de que pelo menos sob este aspecto Nietzsche pode ser visto como um filho de seu tempo. Também ele quis em alguma medida ser ungido com ‘uma gota de óleo do materialismo’, conforme ele mesmo admite em um fragmento póstumo de 1884: Quando penso em minha genealogia filosófica, eu me sinto ligado ao movimento antiteleológico, isto é, espinozista de nossa época, com a diferença, entretanto, que eu considero também ‘o fim’ e ‘a vontade’ em nós uma ilusão; assim como me sinto ligado ao movimento mecanicista (redução de todas as questões morais e estéticas a questões fisiológicas, de todas as questões fisiológicas a químicas, de todas as questões químicas a mecânicas), com a diferença, cadernos Nietzche 29, 2011 319 Lopes, R. entretanto, que eu não acredito em ‘matéria’ e considero Boscovich, assim como Copérnico, um dos grandes pontos de inflexão; que eu considero o autoespelhamento do espírito como um ponto de partida estéril e não acredito em nenhuma investigação séria que não tome o corpo como fio condutor. Não uma filosofia como dogma, mas como um regulativo provisório da investigação (Nachlass/FP 1884, 26[432], KSA 11.266-7). Que tipo de compromisso ou concessão ao materialismo pode ser extraído da passagem acima? E que tipo de paralelo pode ser estabelecido entre o materialismo do século XIX e o naturalismo da segunda metade do século XX? Penso que o modo como Lange tratou do problema pode nos auxiliar a responder as duas questões que acabo de formular. No que se refere ao materialismo, podemos resumir a tese central de Lange nos seguintes termos: enquanto método ou estratégia cognitiva o materialismo deve ser cultivado, enquanto posição epistemológica ele está refutado, enquanto tese ontológica é indemonstrável e enquanto visão de mundo ele deve ser moderadamente combatido. O mérito do materialismo consiste, segundo Lange, em ter se estabelecido historicamente como uma escola do rigor metódico, definida pela sobriedade e economia de seu vocabulário e pelo controle de suas hipóteses. A estratégia reducionista que acompanha toda ocorrência histórica do materialismo é justificada também na perspectiva do método e na medida em que serve ao objetivo da ciência, que é o de fornecer uma descrição a mais exaustiva e econômica possível da regularidade do mundo fenomênico. Ao determinar o saldo final da especulação filosófica dos antigos, Lange aponta como principal mérito da tendência materialista, cujos expoentes máximos seriam Demócrito e Epicuro, o fato de ter elaborado uma visão de mundo na qual regularidade e legalidade valiam como axiomas. A condição sine qua non para tanto foi a exclusão de todo elemento arbitrário, de toda intervenção miraculosa no mundo, 320 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” de todo acaso e de toda consideração teleológica dos fenômenos naturais. Em outros termos, o materialismo estabeleceu o axioma da inteligibilidade do mundo da experiência mediante a recondução de sua diversidade fenomênica à simplicidade de seus elementos constitutivos (os átomos) e à regularidade de seu comportamento (as leis que governam seus movimentos e determinam a diversidade de suas formas fenomênicas)3. A visão de mundo expressa na tendência materialista criou deste modo as condições para uma transição histórica natural da especulação filosófica acerca dos princípios para uma cultura caracterizada por um notável progresso no campo das ciências positivas (LANGE 11, p. 32). Esta cultura é a Alexandrina, e seu feito histórico mais significativo foi o de consolidar no âmbito das mais diversas disciplinas científicas as diretrizes metódicas derivadas da especulação atomística. A formação do ethos científico, a aquisição de um conjunto de virtudes epistêmicas e o estabelecimento de uma série de procedimentos metódicos no interior das respectivas disciplinas científicas são eventos históricos que permitem estabelecer certa continuidade entre a ciência moderna e a especulação materialista dos gregos pela mediação da cultura Alexandrina. Esta tese acerca do significado histórico 3 Os axiomas da visão de mundo democritiana são apresentados por Lange nas pp. 7-8 da primeira edição da História do materialismo. Eles antecipam o essencial da visão científica moderna do mundo. Nietzsche adota em suas preleções sobre os filósofos pré-platônicos a mesma estratégia de confrontação das hipóteses antigas com os resultados da ciência moderna. Lange traduz nos seguintes termos sua impressão da atualidade do sistema de Demócrito: “Ao lançarmos um olhar retrospectivo ao sistema de Demócrito descobrimos nele aquela hipótese científica que ainda hoje a ciência empírica considera como a hipótese, no mínimo, mais cômoda [...]. Nós encontramos neste sistema o princípio da equivalência de todo ente pressuposto de forma axiomática, um princípio que nossa época ainda está ocupada em provar; encontramos finalmente neste sistema uma resoluta tomada de posição em favor da causalidade contra a teleologia, a primeira condição fundamental para todo estudo bem-sucedido da natureza” (LANGE 11: p. 9). cadernos Nietzche 29, 2011 321 Lopes, R. da cultura Alexandrina comparece também em Nietzsche e parece corresponder a um lugar comum da filologia alemã representada por Ritschl (LANGE, idem, p. 32-33)4. Embora no Nascimento da Tragédia Nietzsche acate a identificação da cultura científica com a cultura Alexandrina, ele parece recusar a tese de Lange segundo a qual esta cultura seria um desdobramento natural da especulação atomística. Ao associar a cultura Alexandrina à tendência socrática, Nietzsche parece adotar uma tese histórica oposta à sugerida por Lange, pois esta associação nos induz a pensar que a formação da disciplina metódica incorporada na prática das ciências positivas teve como seu pressuposto essencial a visão de mundo representada pelo otimismo teórico socrático. Aos olhos de Nietzsche, entretanto, Sócrates teve um papel decisivo ao fornecer uma justificação metafísica para a atividade teórica, evitando assim as consequências destrutivas do pessimismo prático. Nietzsche parece ter chegado a esta tese robusta acerca dos pressupostos necessários para a formação de uma cultura científica a partir de uma segunda grande intuição de Lange. 4 Lange, assim como Nietzsche, recebeu o essencial de sua formação científica sob a supervisão e o aconselhamento de Friedrich Ritschl na Universidade de Bonn. Em Bonn Lange frequentou o curso de Filologia Clássica, obtendo seu título de doutor pela mesma Universidade no ano de 1851 com uma tese sobre métrica grega. Em algumas de suas cartas, Lange confessa seu débito para com a Escola de Filologia de Bonn e para com seu mestre Ritschl, que teria cultivado nele as virtudes do método científico. Esta é provavelmente a raiz mais remota e comum da convicção, expressa mais tarde por ambos os autores, de que uma cultura científica se caracteriza em última instância por seus métodos, ou seja, não tanto pelos resultados de suas investigações (sempre provisórios e sujeitos à revisão), mas tampouco pela aquisição de um conjunto de procedimentos ou regras formais a serem aplicadas no contexto da prática científica, mas pela formação de uma tradição no interior da qual se torna possível transmitir de geração a geração o que podemos chamar de virtudes epistêmicas. Neste sentido, Ritschl e a tradição filológica representada pela Escola de Bonn seriam os verdadeiros antídotos contra o sono dogmático que costuma acometer os filósofos. Esta tradição retoma, no contexto de consolidação das ciências históricas na Alemanha do século XIX, os preceitos do ceticismo metódico que pautaram a Revolução Científica no início da Modernidade. 322 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” Esta intuição permite a ele explicar o fato aparentemente paradoxal de que as principais descobertas científicas da antiguidade foram feitas por adeptos da tendência idealista. Na medida em que se entrega livremente à fabulação conceitual, esta tendência deveria ser considerada um obstáculo ao desenvolvimento científico. Entretanto, prossegue Lange, quando investigamos a filiação dos maiores cientistas naturais e matemáticos da antiguidade, descobrimos que todos, à exceção de Demócrito, provinham ou da escola idealista platônica, ou da escola formalista aristotélica ou mesmo seguiam orientações filosóficas ainda mais delirantes, como a pitagórica (LANGE, ibidem, p. 65). Esta constatação parece contradizer a tese de Lange de que o principal mérito da tendência materialista teria consistido na promoção dos valores cognitivos. No entanto, a consideração do problema do ponto de vista da psicologia da descoberta científica permite a Lange não só contornar esta aparente contradição, como reconhecer que a orientação idealista, ainda que por vias indiretas, colaborou de forma decisiva para o progresso do conhecimento científico. Ao infundir na alma entusiasmo pela investigação da verdade, a tendência idealista mobilizou as energias do homem como um todo e as colocou a serviço do conhecimento. Ao vincular valores morais, estéticos e religiosos à busca da verdade, ela conferiu um impulso subjetivo à pesquisa e uma intensidade ao engajamento na investigação do mundo fenomênico que jamais poderiam provir da sóbria visão de mundo característica do materialismo5. 5 “Aqui não podemos deixar escapar a chance de nos aprofundarmos na grande verdade de que o que é objetivamente correto e conforme ao entendimento não é o que na maioria das vezes promove o homem, não é sequer aquilo que o conduz à maior profusão de conhecimentos objetivamente corretos” (LANGE 11, p. 66). Poderíamos ver nesta passagem uma antecipação da distinção popperiana entre contexto de descoberta e contexto de justificativa, mas creio que Lange chama a atenção para um aspecto ainda mais singular da “lógica” da descoberta científica: o papel produtivo do erro e da ilusão na psicologia do conhecimento. Este tema langeano, como tantos outros, será retomado e radicalizado por Nietzsche. cadernos Nietzche 29, 2011 323 Lopes, R. A presença do materialismo como um contrapeso é vista, entretanto, como uma condição necessária para que o entusiasmo idealista pela busca da verdade possa ser canalizado para a investigação no âmbito das ciências empíricas, ao invés de degenerar em um mero fantasiar arbitrário. O materialismo, na medida em que exerce influência sobre os espíritos, cultiva neles uma “moralidade do pensamento” que, segundo Lange, lhes obriga a ater-se às exigências do objeto. A explicação oferecida por Lange parece sugerir que as exigências da consciência metódica, cultivadas na tradição materialista, permitem redirecionar para o objeto da investigação os impulsos subjetivos cultivados na tradição idealista (LANGE, ibidem, p. 68). Nietzsche propõe no Nascimento da tragédia a figura de Sócrates como o modelo para o homem teórico e associa explicitamente a cultura Alexandrina ao predomínio da tendência expressa no otimismo teórico. Todas as declarações posteriores de Nietzsche nos fazem crer que ele compartilha a convicção de Lange de que a essência de uma cultura científica consiste na formação da disciplina metódica. De Humano, demasiado Humano até o Anticristo, Nietzsche vê a formação desta disciplina como um capítulo da história dos efeitos do ceticismo6, mas em alguns momentos esta hipótese é substituída por uma que lhe parece mais plausível do ponto de vista psicológico: convicções metafísicas, religiosas e morais precisam ter estado na origem da formação do ethos científico. Este movimento retoma uma tese que Nietzsche desenvolve pela primeira vez no Nascimento da tragédia. Segundo minha interpretação, esta tese corresponde a uma expansão, também para o âmbito da aquisição dos métodos, da explicação fornecida por Lange de como suposições idealistas atuam como um elemento motivador da pesquisa científica e, portanto, 6 E não do materialismo. Mas aqui não há nenhuma divergência significativa em relação a Lange, pois também para ele o materialismo que toma consciência de si enquanto método não se diferencia do ceticismo metódico e disciplinado. 324 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” como um fator subjetivo do progresso científico. Nietzsche expande esta intuição de Lange ao defender que a decisão de se impor uma disciplina metódica tem como condição subjetiva o compromisso prévio com algum tipo de postulado metafísico, ou seja, pressupõe a aceitação de algum tipo de convicção última. O principal mérito do materialismo é, portanto, metodológico: aos olhos de Lange, ao se apresentar como uma concepção sóbria e econômica da natureza ele permitiu a alguns espíritos o cultivo das virtudes epistêmicas necessárias para a criação de uma cultura verdadeiramente científica, na qual a aquisição do método é a única conquista definitiva. Por outro lado, o materialismo compreendido como posição ontológica padece desde suas origens gregas de algumas fragilidades e inconsistências que nunca puderam ser contornadas. Três grandes dificuldades teóricas acompanham o materialismo desde sua primeira formulação cabal por Demócrito: a aparente irredutibilidade das sensações às leis dos átomos, o enigma da consciência (como a matéria pode agir sobre o pensamento e vice-versa) e a dificuldade de derivar a totalidade orgânica (a vida em suas diferentes manifestações) da unidade do átomo. Aqui também haveria pontos de contato entre Nietzsche e Lange que poderiam ser explorados de forma muito produtiva e esclarecedora para o debate acerca do naturalismo substancial de Nietzsche, tais como o seu compromisso com o sensualismo, sua adesão a uma concepção essencialmente dinâmica da natureza e os diversos aspectos de sua crítica ao mecanicismo. Ao invés de perseguir este caminho, vou me concentrar na tensão entre naturalismo e normatividade epistêmica no contexto nos diversos programas de reformulação da filosofia transcendental de Kant na segunda metade do século XIX. cadernos Nietzche 29, 2011 325 Lopes, R. 4. Nietzsche e a tradição transcendental: aspectos normativos e naturalistas na abordagem da cognição. No século XIX há inúmeras variantes de filosofia transcendental, e Nietzsche estava bem familiarizado com pelo menos três delas: a variante de Schopenhauer, a de Lange e a de Spir. Todas elas são versões relativamente heterodoxas da filosofia transcendental. Schopenhauer e Lange, por exemplo, defendem que certos elementos de nossa cognição são transcendentais, no sentido de que são condições de possibilidade para a experiência empírica em geral, mas esta defesa não se faz acompanhar pela reivindicação kantiana de que haveria um método propriamente transcendental para a identificação e fixação destes elementos, ou para a sua dedução, no sentido técnico que Kant associa à noção. Schopenhauer entende que por serem condições de possibilidade, estes elementos não podem resultar de nenhum procedimento de prova: são itens aos quais eu tenho acesso imediato ao consultar a intuição (cf. GUYER 6). Lange entende, por sua vez, que estes elementos são obtidos através de uma investigação empírica convencional. É muito provável que a versão mais fiel ao espírito antinaturalista que está na origem da resposta kantiana a Hume seja a oferecida por Spir. Mas de todos os modelos de filosofia transcendental com os quais Nietzsche teve contato, este é o que ele recusa de forma mais veemente. Por outro lado, o confronto com algumas teses de Spir fornece uma ilustração paradigmática do modo como Nietzsche transforma certas reivindicações transcendentais em hipóteses genealógicas e mantém, ao mesmo tempo, certa fidelidade à visão normativa dos conceitos epistêmicos, que é uma das motivações originais do projeto kantiano. Esta combinação de descrição naturalista das condições da cognição e interpretação normativa dos conceitos epistêmicos resulta numa modalidade de ceticismo ou fideísmo naturalista que pode ser encontrada tanto em Pascal quanto em Hume. Ao lado de Lange, Afrikan Spir (1837-1990) é reconhecidamente uma das principais fontes de Nietzsche para discussões no 326 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” domínio da epistemologia. Seu principal livro, Denken und Wirklichkeit (SPIR, 22), discute pormenorizadamente as posições do empirismo inglês e da tradição kantiana. O diálogo de Nietzsche com Spir é igualmente decisivo para a compreensão de suas posições no interior do debate metafísico. Spir é o responsável pela formulação da tese de que aqueles que pretendem abraçar a visão de que a realidade se caracteriza pelo devir absoluto devem estar dispostos a abandonar o axioma da inteligibilidade do real. Ao aceitar este desafio, Nietzsche se mantém fiel à tese de Spir de que conceitos epistêmicos (tais como ‘objetividade’, ‘verdade’, ‘justificação racional’) têm implicações normativas, mas sua opção pelo devir absoluto o obriga a se afastar da perspectiva transcendental defendida por este filósofo e a compor uma narrativa naturalista e pragmática acerca dos mecanismos que atuaram tanto na formação e fixação quanto na transmissão e transformação de nossas crenças básicas e padrões de inferência, ou seja, naqueles itens de nossa vida mental que dificilmente estão sujeitos a revisão. Tais itens são, por exemplo, nossa crença no mundo exterior, na existência de objetos que subsistem ao longo do tempo, na liberdade da vontade e na correção de nossas inferências causais. Nenhum daqueles conceitos epistemicamente normativos comparece nesta narrativa, pois se participassem efetivamente dos processos de formação e fixação de nossas crenças básicas, seja via percepção, seja via inferência, suas elevadas exigências de fundamentação teriam um efeito deletério sobre a espécie humana (cf. FW/GC110, KSA 3.469-71). O caminho que leva Nietzsche a esta conclusão só pode ser compreendido a partir de um rápido resumo da filosofia de Spir. Spir divide os filósofos em dois grupos: o dos dogmáticos e o dos filósofos críticos. Os filósofos dogmáticos, também denominados de metafísicos, são caracterizados em termos kantianos como aqueles que pretendem avançar no conhecimento do absoluto sem uma crítica prévia dos limites de nossas faculdades cognitivas: cadernos Nietzche 29, 2011 327 Lopes, R. A metafísica pretende ser a doutrina do próprio incondicionado; a filosofia crítica, por sua vez, na medida em que ela se eleva sobre a experiência, não pode ser nada mais do que a doutrina do conceito do incondicionado, da origem, do significado e da validade objetiva deste conceito (SPIR 22, I, p. 2). Nietzsche considera legítima a pergunta pela origem e pelo significado das representações e dos afetos metafísicos, mas ele entende que esta não é uma investigação de natureza lógico-transcendental (nos termos de Spir) ou genético-transcendental (nos termos de Schopenhauer), mas empírico-genealógica. Ao optar pelo devir absoluto, ele precisa recusar de antemão a pergunta pela validade objetiva do conceito de incondicionado. Em seu lugar ele coloca a pergunta pela função vital da crença na validade objetiva de tal conceito (a utilidade vital da crença na existência, por exemplo, de substâncias, que tanto Spir quanto Nietzsche interpretam como uma aplicação da noção de incondicionado). Este programa alternativo contesta as duas vertentes da metafísica: a crítica ou pós-kantiana, que tem como ambição definir a priori as condições de possibilidade do conhecimento do mundo empírico (pela substituição da desacreditada ontologia por uma doutrina das categorias); e a dogmática, que pretende nos fornecer um conhecimento do conteúdo do incondicionado. Os intérpretes de Nietzsche têm dado muita atenção à sua crítica à metafísica dogmática, mas nem sempre têm investigado com a devida atenção sua crítica à metafísica da experiência, ou doutrina das categorias. De acordo com Spir, os sensualistas, que são avessos à metafísica no sentido dogmático, ignoram, contudo, a especificidade lógica da representação e tentam inutilmente derivá-la das leis empíricas que regem as sensações, reduzindo-a a processos fisiológicos que podem ser descritos em termos fisicalistas (SPIR, idem, p. 66). Segundo Spir, o domínio da representação é regido por leis lógicas do sujeito do conhecimento que são irredutíveis às leis que regem o domínio dos fenômenos físicos: 328 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” As leis próprias do sujeito cognoscente são de uma espécie inteiramente distinta, pois elas se referem à concepção de objetos que estão fora da representação; elas são normas originárias do conhecimento, princípios de afirmações de natureza lógica e não física7. A lei a priori do sujeito do conhecimento é o princípio de Identidade. Este princípio não tem apenas a função de uma proposição de identidade, mas é também uma proposição sintética a priori, pois desempenha um papel constitutivo na experiência. Portanto, ele deve funcionar como um discriminante ontológico8. Spir propõe diversas vias para comprovar que as leis gerais do conhecimento empírico (o princípio de causalidade e o princípio de indução) pressupõem a validade objetiva desta lei puramente lógica do sujeito do conhecimento. As leis de associação destacadas pela tradição empirista se aplicariam somente ao conteúdo da representação, 7 Cf. SPIR, 22, I, p. 79. A nota que acompanha esta passagem talvez traduza com ainda maior clareza a sofisticada percepção de Afrikan Spir de que há uma ordem lógica e normativa das razões, que faz parte da dimensão da justificativa do conhecimento, que não se confunde com a ordem das causas: “Uma lei física é uma forma imutável da simultaneidade ou sucessão de fenômenos ou processos reais. Uma lei lógica é, por sua vez, a disposição interna de acreditar em algo sobre os objetos. As leis físicas regem a sucessão real dos eventos em uma ordem temporal, as leis lógicas regem a sucessão lógica dos pensamentos na ordem das justificações. Percebe-se claramente como ambas são inteiramente distintas por natureza”. Spir protesta contra a redução da mente ao cérebro e da teoria do conhecimento a um ramo da fisiologia. Seu protesto antecipa em alguns anos uma tendência que se tornará hegemônica (com a consolidação no neokantismo), mas na década de 1870 ele ainda é uma voz claramente dissonante: “Chegou-se agora a um consenso de que a ciência do espírito é um ramo da fisiologia. Para investigar as leis do pensamento é preciso seccionar o cérebro e submetê-lo aos mais variados experimentos. Por mais úteis e frutíferos que estes experimentos possam ser para a psicologia, para a lógica e a epistemologia propriamente eles em nada contribuem“. (SPIR, idem, I, p. 107-108). 8 Cf. o § 3 do segundo capítulo do livro dois do volume I, intitulado “Uebergang von der Logik zur Ontologie” (p. 178-184) e o §3 do sexto capítulo do mesmo livro, intitulado “Der den ursprünglichen Begriff a priori ausdrückende Satz muss zugleich ein identischer und ein synthetischer sein” (p. 237-239). cadernos Nietzche 29, 2011 329 Lopes, R. ou seja, às sensações. A forma lógica da mesma só pode ser compreendida a partir da lei fundamental do sujeito do conhecimento. A tese transcendental de Spir, segundo a qual a certeza originária de que existem casos idênticos na natureza está racionalmente fundada na lei lógica do sujeito transcendental e de que apenas a sua admissão torna a ciência possível (no sentido de epistemicamente fundada) é transformada por Nietzsche em uma hipótese genealógica acerca das condições fisiológicas, psicológicas e históricas do surgimento da ciência. Segundo Nietzsche, para explicar como a ciência se tornou facticamente possível não é necessário supor a validade lógico-transcendental do princípio de Identidade, a partir do qual se podem derivar os princípios do conhecimento empírico e fundamentar sua convicção básica de que existem casos idênticos na natureza; para tanto basta a simples ilusão psicológica de que tais casos existem. A crença na validade objetiva das ficções é condição suficiente (do ponto de vista histórico e psicológico) para o surgimento da ciência. O erro da filosofia transcendental consiste em inferir da existência fática da ciência (que é descrita por Nietzsche como um conjunto de estratégias de assimilação do devir mediante categorias ficcionais) sua validade epistêmica. Nietzsche transforma a pergunta pela validade objetiva das proposições sintéticas a priori na pergunta pelos mecanismos naturais e históricos que atuaram na formação da crença na validade objetiva de tais proposições. Esta crença remete a uma função orgânica primitiva, que por sua vez é reforçada pelas ficções linguísticas. Nietzsche retoma neste contexto as sugestões de Lange acerca da contribuição do erro para o progresso científico e as radicaliza ao remeter esta contribuição à pré-história dos organismos. A linguagem, a lógica, a matemática, que juntas fornecem o órganon para toda assimilação teórica da realidade, são descritas como um sistema de ficções cuja eficácia histórica e psicológica repousa justamente na ignorância, por parte dos agentes cognitivos, de seu estatuto ficcional (cf. MAI/HH I 11 e 19, KSA 2.30-1 e 40-1). Esta ignorância só é possível por estar fundada em uma 330 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” forma de erro muito mais primitiva, que tem suas raízes em funções orgânicas elementares (cf. MAI/HH I 18, KSA 2.38-40). Nietzsche explica a tese central de Spir, segundo a qual o conhecimento do mundo empírico pressupõe a validade objetiva do princípio de Identidade e do conceito de substância, com o auxílio da teoria evolucionista de Spencer acerca dos mecanismos de formação e transmissão de nossas convicções de base e de nossos padrões de inferência, e insere este conjunto em sua teoria do erro, que é por um lado uma radicalização da sugestão que ele encontra em Lange e, por outro lado, um corolário de sua adesão à tese do devir absoluto. Nietzsche não se compromete com o critério de verdade proposto pela tese evolucionista, segundo o qual estas convicções de base são verdadeiras e os padrões de inferência são corretos porque eles teriam sido testados ao longo da história natural da espécie e teriam garantido a sua sobrevivência. Nietzsche sem dúvida concorda que estas convicções e estes padrões de inferência permitiram a conservação da espécie, mas ele se recusa a identificar sucesso e eficácia biológica com verdade e correção epistêmica. Nietzsche parece aludir diretamente a Spencer e aos primeiros proponentes de um critério pragmático de verdade de coloração biologizante no aforismo 30 de Humano, demasiado humano, intitulado Maus hábitos de raciocínio: Os erros de raciocínio mais habituais dos homens são estes: uma coisa existe, portanto é legítima. Aqui se deduz a conformidade a fins a partir da capacidade de viver, e a legitimidade a partir da conformidade a fins. Em seguida: uma opinião faz feliz, portanto é verdadeira; seu efeito é bom, portanto ela mesma é boa e verdadeira. Aí se atribui ao efeito o predicado de fazer feliz, de bom, no sentido de útil, e se dota a causa com o mesmo predicado de bom, mas no sentido de logicamente válido (NIETZSCHE 17, p. 37; MA I/HH I 30, KSA 2.50; com pequenas correções na tradução)9. 9 Um fragmento póstumo de 1880 reforça a tese de que um dos alvos de Nietzsche neste aforismo era Spencer: “aquilo que segundo conceitos causais 331 cadernos Nietzche 29, cientificamente 2011 Lopes, R. Embora recuse o núcleo normativo da epistemologia evolucionista, Nietzsche adota, no entanto, o seu núcleo descritivo, e o utiliza para contestar a pretensão de Spir de ter demonstrado a validade objetiva das leis a priori do pensamento. Assim, o princípio de Identidade e a lei originária do sujeito do conhecimento são reinterpretados como funções vitais dos organismos, que surgiram em estágios bastante inferiores de desenvolvimento. Nietzsche prevê um grau de desenvolvimento futuro da ciência em que a história da gênese do mundo como representação terá sido concluída, e então as leis lógicas de Spir se revelarão aquilo que de fato são: ficções regulativas, erros necessários a determinadas formas de vida, funções orgânicas. Nietzsche propõe este cenário no aforismo 18 de Humano, demasiado humano, intitulado “Questões fundamentais da metafísica”: Quando algum dia se escrever a história da gênese do pensamento, nela também se encontrará, sob uma nova luz, a seguinte frase de um lógico eminente: “A originária lei universal do sujeito cognoscente consiste na necessidade interior de reconhecer cada objeto em si, em sua própria essência, como um objeto idêntico a si mesmo, portanto existente por si mesmo e, no fundo, sempre igual e imutável, em suma, como uma substância”. Também essa lei, aí denominada “originária”, veio a ser – um dia será mostrado como gradualmente surge essa tendência nos organismos inferiores [...] (NIETZSCHE 17, p. 27-28; MA I/HH I 18, KSA 2.38-40)10. rigorosos nos é realmente bom (p. ex. crença incondicional, etc.), justamente isso talvez não nos seja mais possível em função do rigor do espírito científico! (contra a fé inócua de Spencer na harmonia entre saber e utilidade)” (Nachlass/FP 1880, 7[56], KSA 9.328). 10 Nietzsche retoma acima a seguinte passagem de Spir: “Das ursprüngliche allgemeine Gesetz des erkennenden Subjects besteht, [wie schon ausführlich nachgewiesen worden: frase ignorada por Nietzsche, por razões óbvias], in der inneren Nothwendigkeit, jeden Gegenstand an sich, in seinem eigenen Wesen als einen mit sich selbst identischen, also selbstexistirenden und im Grunde stets gleichbleibenden oder unwandelbaren, kurz als eine Substanz zu erkennen“ (SPIR 22, II, p. 177). 332 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” A princípio este programa pode ser entendido como um desdobramento da parte negativa do programa de Lange. Embora reivindique a herança kantiana, a concepção langeana da tarefa negativa da filosofia entendida como crítica dos conceitos e teoria do conhecimento diverge em alguns aspectos da formulação original de Kant. Em primeiro lugar, Lange nega que o filósofo disponha de um método específico para o estabelecimento de suas teses epistemológicas. Embora tome o partido de Kant contra Mill ao defender a tese de que existem determinados elementos a priori que antecedem a experiência e a tornam possível – estes elementos são por sua vez interpretados em termos de um a priori de nossa organização psicofísica –, Lange recorrerá a um argumento do filósofo inglês para contestar que o método transcendental adotado por Kant possa ter êxito na identificação e fixação destes elementos da cognição. Tais elementos devem ser descobertos pelas vias usuais do método científico, método este que ele identifica com a indução, que permite a formulação de proposições com graus variados de generalização e cuja certeza é definida em termos meramente probabilísticos: Que os conceitos primitivos de nosso conhecimento a priori precisem ser descobertos também a priori, ou seja, mediante dedução a partir de conceitos necessários, é algo que pode parecer muito evidente. Isto é, contudo, uma falsa suposição. Devemos distinguir claramente entre uma proposição necessária e a prova de uma proposição necessária. Nada é mais facilmente concebível do que o fato de que as proposições válidas a priori devam ser descobertas somente pela via da experiência (LANGE, 11, p. 248)11. 11 Ainda na mesma direção: “Para a exposição e exame das proposições uni- versais que não são derivadas da experiência, nós estamos reduzidos aos recursos usuais da ciência; só podemos enunciar proposições prováveis acerca da questão se conceitos e formas do pensamento, que nós precisamos assumir momentaneamente como verdadeiros sem nenhuma prova, provêm da natureza permanente do homem ou não; em outros termos, se eles são os cadernos Nietzche 29, 2011 333 Lopes, R. Enquanto Lange entende que a tarefa da filosofia crítica, cujo método ele não diferencia dos métodos usuais das ciências empíricas, consiste em discriminar, sempre de forma aproximativa, dentre as inúmeras proposições a priori aquelas que valem somente para um determinado estágio de desenvolvimento de nosso organismo e que devem, portanto, ter sua pretensão de validade universal negada, Nietzsche entende que esta tarefa consiste em mostrar que todas as supostas proposições sintéticas a priori pertencem de fato a esta última classe, descrita pelo filósofo como a classe dos erros fundamentais necessários à conservação de certo tipo de vida. Embora Nietzsche tenha combinado outras influências para a elaboração de seu programa filosófico, podemos discernir claramente os ecos de Lange tanto nas páginas programáticas que abrem Humano, demasiado humano como na reformulação tardia destas mesmas páginas em Para além de bem e mal (cf. os aforismos programáticos de número 4 e 11). Nietzsche permanece fiel à convicção de Lange de que os métodos filosóficos não diferem dos métodos científicos convencionais. Assim como Lange, ele entende que esta convicção não está em choque com a manutenção da pretensão normativa da filosofia (esta afirmação pode parecer duvidosa, ou mesmo altamente problemática, mas penso que apenas para aqueles que identificam erroneamente a recusa da concepção moral ou metafísica da normatividade (fundada no dualismo dos dois mundos) com uma recusa da normatividade em geral, que não faz parte das intenções do filósofo, mesmo porque ele a considera um traço inerradicável do humano). A partir de Humano, demasiado humano Nietzsche dará um passo decisivo para além das posições fundamentais de Lange. Este passo acentua ainda mais as consequências céticas da reforma promovida por Lange na tradição da filosofia transcendental. O caráter normativo de conceitos epistêmicos tais como ‘conhecimento’, autênticos conceitos primitivos de todo conhecimento humano ou se eles se mostrarão em algum momento como ‘erros’” (LANGE 11, p. 249). 334 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” ‘verdade’, ‘justificação racional’, ‘objetividade’, entre outros, nos proíbe reivindicar para quaisquer de nossas convicções fundamentais um estatuto de validade objetiva (as ditas proposições sintéticas a priori). O fato de não podermos organizar nossa experiência sem recorrermos a estes proposições de base, o fato de elas serem incontornáveis será interpretado por Nietzsche como expressão de uma necessidade fisiológica a ser explicada através de uma história genética do pensamento, cuja tarefa será justamente narrar a gênese do mundo como representação sem apelar para hipóteses metafísicas nem tampouco para uma teoria do entendimento puro no sentido de Schopenhauer. Mas ao identificar indiscriminadamente estas convicções de base que determinam nossa experiência a erros fundamentais do organismo em estágios rudimentares de desenvolvimento, seja da vida animal como um todo, seja da espécie humana em particular, sem introduzir com isso qualquer menção ao corpo e suas estruturas como um candidato alternativo a ocupar o lugar do sujeito transcendental kantiano, Nietzsche está se recusando a reconhecer validade objetiva às proposições que traduzem estas convicções e transformando em uma gigantesca teoria do erro o que em Lange era uma mera reserva falibilista no âmbito da investigação transcendental das condições de possibilidade da experiência. Seria um equívoco supor que Nietzsche com isso está defendendo uma reforma pragmática de nossos conceitos epistêmicos. O que ele está propondo é uma teoria descritiva, segundo a qual as nossas crenças básicas (as proposições sintéticas a priori) são formadas a partir de critérios pragmáticos. Considere-se, por exemplo, a seguinte passagem de Para além de bem e mal: A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; [...]. A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais os juízos sintéticos a priori) nos são os mais indispensáveis, que, cadernos Nietzche 29, 2011 335 Lopes, R. sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver – que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida, negar a vida. [...] (NIETZSCHE 16, p. 11-12; JGB/BM 4, KSA 5.18). Defender uma teoria pragmática dos processos que atuam na formação de nossas crenças básicas é algo muito diferente de sustentar uma concepção pragmática de verdade. A primeira nos diz que considerações pragmáticas atuam na formação das nossas crenças; a segunda afirma que nós estamos justificados epistemicamente ao nos deixarmos conduzir por tais considerações. Nietzsche recusa esta conclusão em quase todas as suas considerações sobre o tema, e ele só pode fazê-lo na medida em que pressupõe uma compreensão normativa do funcionamento de nossos conceitos epistêmicos, como fica evidente nesta outra passagem célebre de Para além de bem e mal: [...] é tempo, finalmente, de substituir a pergunta kantiana, “como são possíveis juízos sintéticos a priori?”, por uma outra pergunta: “por que é necessária a crença em tais juízos?” – isto é, de compreender que, para o fim da conservação de seres como nós, é preciso acreditar que tais juízos são verdadeiros, com o que, naturalmente, eles também poderiam ser falsos! Ou, dito de maneira clara e crua: juízos sintéticos a priori não deveriam absolutamente “ser possíveis”: não temos direito a eles, em nossa boca são somente juízos falsos. Mas é claro que temos que crer em sua verdade, uma crença de fachada e evidência que pertence à ótica-de-perspectivas da vida. [...] (NIETZSCHE 16, p.18; KSA JGB/BM 11). 336 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” 5. O corpo como fio condutor: uma interpretação heterodoxa do que significa para um filósofo emular os métodos científicos. Em um artigo de 1994, Salaquarda defende a tese de que as reiteradas reivindicações do corpo como fio condutor feitas por Nietzsche nos póstumos de 1884 a 1885 teriam por finalidade primeira rivalizar com o materialismo metodológico e com o mecanicismo das ciências naturais de sua época. Gostaria de sugerir que esta tese não é inteiramente verdadeira12. A necessidade de se posicionar filosoficamente face ao desafio posto pelo sucesso da estratégia cognitiva reducionista do materialismo metodológico já está presente no início do período intermediário, quando Nietzsche comunica aos leitores a sua resolução de estabelecer uma nova aliança entre a tarefa normativa da filosofia e a investigação empírica (cf. o aforismo programático de M I/HH I 1, KSA 2.234). Neste momento de seu percurso, o corpo não é reivindicado 12 Cf. SALAQUARDA 20, p. 40-41. Eu digo que a tese não é inteiramente verdadeira porque ela carece de uma qualificação que não se encontra no texto de Salaquarda. É necessário distinguir com muita clareza entre o materialismo enquanto posição ontológica (que Salaquarda chama de materialismo mecanicista) do materialismo metodológico (que designa uma estratégia cognitiva específica, caracterizada pelo reducionismo e pela sobriedade no vocabulário e nas hipóteses). Enquanto a primeira posição não tinha nenhum representante entre os cientistas naturais com boa reputação na época, a segunda posição era aceita tanto por cientistas naturais quanto por filósofos interessados em retomar o diálogo com as ciências. Esta última posição era defendida tanto por Schopenhauer quanto por Lange. Mas a tese de uma continuidade de método entre ciência empírica e reflexão filosófica era defendida apenas por Lange, e recusada por Schopenhauer, que entendia a continuidade muito mais em termos de resultados (principalmente se os resultados empíricos iam ao encontro de suas teses especulativas) do que de método. Nietzsche adota a posição de Lange e a radicaliza a partir de Humano, demasiado humano. Portanto, não é inteiramente correta a afirmação de que o recurso ao corpo próprio tem como finalidade primeira competir com o materialismo metodológico. Como Nietzsche defende uma versão relativamente forte da tese da continuidade de método, o seu esforço é mostrar que o retorno à especulação não irá comprometer os valores epistêmicos cuja promoção está associada a esta posição. cadernos Nietzche 29, 2011 337 Lopes, R. como fio condutor; e esta reivindicação não está presente porque ela é desnecessária para os propósitos filosóficos do momento, que excluem como ilegítimo qualquer tipo de impulso especulativo. As reiteradas reivindicações do corpo próprio surgem, por sua vez, no momento em que Nietzsche passa a se ocupar mais intensamente com o projeto especulativo da vontade de potência. Esta coincidência favorece a hipótese, à primeira vista paradoxal, de que é justamente nos textos de maturidade que Nietzsche mais se aproxima de Schopenhauer, no sentido de buscar nele inspiração metodológica para a retomada da especulação. Isso não significa que encontraremos nos dois autores o mesmo padrão de argumentação, nem tampouco que o projeto especulativo da vontade de potência coincida em termos de conteúdo com a metafísica da Vontade. Este último ponto já foi exaustivamente discutido pelos melhores intérpretes de Nietzsche, não havendo muito mais que dizer a este respeito. Mas em relação ao primeiro aspecto, que concerne à inspiração metodológica, creio que há entre os dois filósofos afinidades e contrastes que mereceriam um exame mais detido. Deste modo, para que possamos entender o significado das reiteradas reivindicações do corpo próprio como fio condutor nos póstumos da segunda metade da década de 80 penso que seria instrutivo situar estas reivindicações no contexto argumentativo mais amplo de defesa da legitimidade da vocação especulativa da filosofia, interpretada não mais no sentido da função exclusivamente prática que Nietzsche lhe conferia na juventude, à luz da tese langeana da função edificante da fabulação conceitual (cf. LOPES 13, cap. I), mas no sentido de um projeto mais ambicioso de conciliação da totalidade de nossos interesses e impulsos (para fins de simplificação, vamos chamá-los de epistêmicos, práticos e estéticos). O que há de ambição há igualmente de tensão neste novo projeto. A prova cabal de que Nietzsche estava ciente destas tensões é a sua persistente hesitação no que diz respeito aos diversos projetos literários para uma obra sistemática. Parte importante destas tensões 338 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” decorre do compromisso com premissas céticas e naturalistas que denunciam uma continuada adesão de Nietzsche ao modelo epistemológico proposto por Lange. No meu entendimento, a via pela qual o filósofo procura minimizar estas tensões consiste fundamentalmente na revisão e relativização de uma posição que ocupava lugar central em sua crítica do conhecimento e da metafísica no período intermediário: a denúncia do caráter antropomórfico de nossos constructos teóricos e especulativos. A reivindicação do corpo como fio condutor da especulação pressupõe uma surpreendente tolerância epistêmica em relação ao método de projeção antropomórfica. Em um famoso apontamento de 1885, que eu cito apenas em parte, o filósofo se pronuncia sobre este recuo nos seguintes termos: Não há nada a fazer: é preciso conceber todos os movimentos, todos os “fenômenos”, todas as “leis” como meros sintomas de um acontecer interior e se servir até o fim da analogia com o homem (Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563). Nietzsche argumenta que esta tolerância epistêmica em relação ao procedimento analógico é legítima desde que se eliminem previamente os inúmeros acréscimos introduzidos na imagem do homem por milênios de interpretação moral. O que compromete nossos constructos teóricos e especulativos não é tanto o método de projeção em si (e no fim das contas não dispomos de outro recurso), mas o conteúdo daquilo que é projetado. Para que o corpo possa servir de fio condutor para a reflexão é necessário, portanto, restituir o homem à natureza e à história, tarefa que exige, por sua vez, a contribuição de todas as ciências empíricas. Nietzsche é explícito quanto a este ponto em uma célebre passagem do aforismo 230 de Para além de bem e mal: cadernos Nietzche 29, 2011 339 Lopes, R. Traduzir o homem de volta à natureza; tornar-se senhor das muitas interpretações e conotações vaidosas e exaltadas, que até o momento foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura; fazer com que no futuro o homem se coloque frente ao homem tal como hoje, endurecido na disciplina da ciência, já se coloca frente à outra natureza, com destemidos olhos de Édipo e ouvidos tapados de Ulisses, surdo às seduções dos velhos, metafísicos apanhadores de pássaros, que por muito tempo lhe sussurraram docemente: “Você é mais! É superior! Tem outra origem!” (NIETZSCHE 16, p. 138, com alterações na tradução; JGB/BM 230, KSA 5.169). O que está implícito neste recorte do aforismo 230 é menos um programa filosófico original do que um diagnóstico de porque o programa schopenhaueriano de uma metafísica pós-kantiana não pôde obter êxito: somente após uma depuração de tudo o que é acréscimo moralizante o corpo se tornará um guia seguro para a especulação. Para isso é necessário abrir mão de todo intuito edificante, pois sob a tirania deste intuito projetamos na natureza muito mais as nossas aspirações e expectativas morais do que aquilo que uma genuína experiência do corpo próprio poderia nos ensinar. Nietzsche se volta aqui contra a tradição na qual ele se formou e que definiu a sua militância filosófica de juventude: a tradição do idealismo prático, que entende a metafísica como um ramo da filosofia moral, responsável por um discurso edificante que se dirige essencialmente aos nossos afetos morais para seduzi-los. Só faremos um uso adequado do corpo próprio se o reinserirmos na história e na natureza, fazendo dele o lugar de atravessamento de uma pluralidade de forças em conflito e de difícil nomeação. A solução de Nietzsche é pensar o corpo e seus processos a partir da metáfora política das relações de poder; segundo este modelo, o que chamamos de bom funcionamento do organismo dispensa a postulação de uma instância dirigente suprafisiológica, sendo antes o signo mais visível de que no interior do devir certo complexo 340 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” pulsional alcançou um equilíbrio de poder. Não podemos dizer que este equilíbrio seja uma meta conscientemente fixada pelo complexo pulsional, pois tal complexo não preexiste ao equilíbrio, muito menos uma instância que lhe fosse exterior. Como não faria sentido falarmos em ‘equilíbrio de forças’ no devir, mas apenas em ‘equilíbrio de poder’ (dado que a incomensurabilidade entre as forças acompanha a hipótese do devir absoluto como uma sombra), segue-se que este ‘equilíbrio de poder’ é o resultado de um artifício ou de um contrato, ou seja, de um acordo fundado na disposição e na capacidade de cada impulso de fazer concessões e assumir compromissos. Estas características, essenciais à metáfora política básica da vontade de potência, pressupõem por sua vez a tese de que cada impulso dispõe de uma perspectiva sobre os demais impulsos, ou seja, que interpretar e avaliar sejam atividades constitutivas da vida pulsional. Observe como esta rápida caracterização do modelo político já nos conduz para bem longe do modelo volitivo da corporeidade que é tão familiar à filosofia de Schopenhauer e que o compromete com a tese de uma irracionalidade constitutiva do real (e com a negação ascética como a única resposta eticamente cabível a esta irracionalidade constitutiva). Mas por outro lado, ela também parece nos conduzir para bem longe de qualquer programa habitualmente caracterizado como naturalista, não apenas no sentido fisicalista, mas mesmo em suas versões mais liberais. Vejamos o que Nietzsche pode dizer a favor de sua posição. Para um bom uso do corpo a regra fundamental nos foi ensinada por Bernard Williams: recorrer a um vocabulário que pressuponha minimamente categorias morais, e que seja maximamente realista13. 13 É importante notar que a adoção de um vocabulário realista (no sentido de Tucídides e de Maquiavel) não significa de modo algum a exclusão do vocabulário intencionalista. Antes pelo contrário, o vocabulário realista, na medida em que é um vocabulário extraído da metáfora política das relações de poder, é um vocabulário inteiramente dominado pelo léxico da intencionalidade e totalmente estranho à linguagem do fisicalismo. Com isso fica claro que o compromisso de Nietzsche com o naturalismo cadernos Nietzche 29, 2011 341 Lopes, R. Desde que esta cláusula possa ser observada, Nietzsche acredita que o corpo tomado como fio condutor da investigação teórica e da especulação estaria em condições de atender aos preceitos da consciência metódica de forma mais satisfatória do que o paradigma mecanicista. É importante notar que a consciência metódica foi cultivada historicamente no interior da tradição materialista, conforme demonstrou Lange, e muito mais pelas ciências empíricas do que pela filosofia, conforme insistiu Nietzsche. Não será a referência ao corpo na expressão “o corpo como fio condutor” que garantirá a fidelidade de Nietzsche ao naturalismo metodológico, pois é quase desnecessário dizer que o corpo não pode ser concebido nos termos de um vocabulário mecanicista, uma possibilidade que já havia sido teoricamente descartada tanto por Schopenhauer quanto por Lange, ainda que por vias distintas. Em ambos os autores o conceito de corpo jamais remete a uma substância extensa, nos moldes clássicos do cartesianismo. Enquanto Lange o deixa ontologicamente indeterminado, cunhando para tanto o neologismo ‘organização psicofísica’ e antecipando com isso a posição que mais tarde seria identificada como monismo neutro, Schopenhauer metodológico não implica de modo algum o compromisso com uma ontologia fisicalista, como poderíamos ser levados a crer se nos deixássemos guiar pela comparação com as tendências naturalistas contemporâneas. Estar atento aos métodos e aos resultados das ciências empíricas não é o mesmo que abraçar suas convicções metafísicas ou ontológicas. Que aqui haja um non sequitur nem sempre é aceito pelos defensores e adversários do naturalismo. Um bom exemplo desta recusa é Keil (cf. KEIL 9) que nega que haja qualquer distinção relevante entre naturalismo metodológico e naturalismo substantivo. Esta recusa se funda, segundo eu posso supor, numa compreensão muito particular do que estaria envolvido na tese da continuidade de métodos: que apenas as ciências naturais estariam autorizadas a se pronunciar sobre a questão de quais são as coisas que existem. Bernard Williams (WILLIAMS, 24) apresenta uma defesa lúcida e convincente da necessidade de um naturalismo moderado, cuja finalidade não é tornar a filosofia subserviente às ciências naturais e ao chamado fisicalismo reducionista, mas cultivar na reflexão as virtudes da sobriedade e da cautela cognitivas. Esta defesa é menos uma exegese de Nietzsche do que um desdobramento de suas inúmeras intuições acerca do tema. 342 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” opta por identificar o corpo com a totalidade de nossa vida afetiva, remetendo-o em última instância ao seu monismo voluntarista. O primado que Nietzsche confere ao corpo tampouco pode ser confundido com a defesa de algum tipo de fisicalismo, conforme já foi sobejamente demonstrado pela literatura secundária sobre o tema. Nietzsche considera o vocabulário fisicalista uma linguagem figurada para os sentidos da visão e do tato (seguindo nisso uma indicação de Teichmüller; cf. Nachlass/FP 1883, 24[17], KSA 10.656); e assume que o vocabulário intencionalista é primitivo em relação ao vocabulário fisicalista, sem se comprometer com a tese de que ele seria por isso um vocabulário logicamente primitivo ou transparente ou explicativo por si só. Tendo em vista o que acabamos de expor, podemos concluir que a reivindicação do corpo como fio condutor coincide com um movimento de retomada da especulação, enquanto seu compromisso com o cultivo da disciplina metódica é anterior a esta reivindicação e, como ocorre algumas vezes no período intermediário, pode parecer incompatível com um engajamento especulativo. Neste sentido, creio que é necessário distinguir entre o compromisso de Nietzsche com o que contemporaneamente chamamos de naturalismo metodológico, e que no século XIX era imprecisamente denominado de materialismo metodológico, e sua reivindicação tardia do corpo como fio condutor para a especulação. Nietzsche tenta nos convencer de que o seu novo paradigma acolhe de forma mais satisfatória os preceitos da consciência metódica e que, além disso, ele o autoriza a avançar hipóteses de natureza especulativa. Cabe a nós, seus leitores, avaliar em que medida seus argumentos são convincentes. Devemos destacar aqui três aspectos essenciais que Nietzsche (seguindo mais uma vez o exemplo de Lange) associa ao materialismo metodológico, e que interessa a ele preservar em sua confrontação com o mesmo. É justamente a atenção a estes elementos que pode contribuir para dirimir certas polêmicas atuais em torno da filiação de Nietzsche a alguma versão do chamado naturalismo metodológico (que está no centro do debate entre Leiter (LEITER, 12) cadernos Nietzche 29, 2011 343 Lopes, R. e seus críticos: Schacht (SCHACHT, 21), Janaway (JANAWAY 8), Maudemarie Clark & Dudrick (CLARK & DUDRIC 2)). Se este naturalismo deve ser descrito em termos de seu compromisso com um programa filosófico que se entende em continuidade de método e de resultados com as ciências empíricas, e se Nietzsche, ao mesmo tempo, tem reservas consideráveis ao modelo explicativo de tipo causal ou mesmo monocausal que ele identifica na prática científica de sua época, então nós devemos nos perguntar o que justifica a sua filiação programática a este tipo de naturalismo. Penso que há três boas razões para insistirmos nesta filiação: (1) Nietzsche considera que a atividade científica, ou a prática de um método científico, isto é, a submissão a uma coerção e disciplina metódica por um determinado período, sob o policiamento da comunidade científica e dos pares, oferece as condições optimais para a aquisição e o cultivo das virtudes epistêmicas que serão necessárias para a reflexão filosófica, cuja principal tarefa é normativa, no sentido mais ambicioso da legislação e hierarquização de valores que definem uma cultura. Tais virtudes são eminentemente céticas e Nietzsche as associa às disposições necessárias para o exercício da suspeita. O que é valioso na cultura científica são os métodos, mas os métodos não são valiosos por se constituírem em um conjunto de regras ou procedimentos abstratos, mas pela disciplina dos impulsos que uma longa subordinação a eles acaba por produzir, combatendo assim os vícios epistêmicos que são incompatíveis com a responsabilidade filosófica14. 14 “O valor de se praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa não está propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão uma gota ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento de energia, de capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a alcançar um fim de modo pertinente. Neste sentido é valioso, em vista de tudo o que se fará depois, ter sido homem de ciência” (NIETZSCHE 17, p. 175; MAI/HH I 256, KSA 2.212). “No conjunto, os métodos científicos são um produto da pesquisa ao menos tão importante quanto qualquer outro resultado: pois o espírito científico 344 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” (2) O compromisso de Nietzsche com o naturalismo metodológico inclui a defesa da estratégia reducionista. Mesmo que Nietzsche seja cético em relação à possibilidade de compreendermos algo do suposto nexo causal entre os eventos e tenha reservas quanto à legitimidade (e principalmente contra as pretensões de exclusividade) do modelo explicativo causal, ele reconhece que a sobriedade e a economia de hipóteses e princípios são responsáveis pelo êxito descritivo das ciências naturais. Esta estratégia é bem-vinda e o filósofo deve se submeter a esta exigência ao propor hipóteses genealógicas e ao avançar teses normativas. Mas é importante adiantar que a estratégia reducionista não implica o compromisso com uma ontologia particular, fisicalista ou mentalista. Permanece em aberto a questão de qual vocabulário se apresenta como o mais econômico no final das contas. Nietzsche sugere que o vocabulário das vontades de potência é o que melhor atende ao princípio pragmático de economia15, além de ser o mais repousa na compreensão do método, e os resultados todos da ciência não poderiam impedir um novo triunfo da superstição e do contrassenso, caso esses métodos se perdessem. Pessoas de espírito podem aprender o quanto quiserem sobre os resultados da ciência: em suas conversas, particularmente nas hipóteses que nelas surgem, nota-se que lhes falta o espírito científico: elas não possuem a instintiva desconfiança em relação aos descaminhos do pensar, que após prolongado exercício deitou raízes na alma de todo homem científico. [...] Por isso cada um, atualmente, deveria chegar a conhecer no mínimo uma ciência a fundo: então saberia o que é método e como é necessária uma extrema circunspecção.” (NIETZSCHE 17, p. 304; MAI/ HH I 635, KSA 2.360-1). 15Em Para Além de Bem e Mal são duas as ocorrências em que Nietzsche faz esta reivindicação para o princípio da vontade de potência; a primeira delas ocorre no aforismo 13, em um contexto no qual Nietzsche se posiciona contra o princípio de autoconservação no domínio das ciências empíricas, em especial na fisiologia; e a segunda no crucial aforismo 36, no qual Nietzsche se envolve com disputas no campo das teorias metafísicas: “Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico. Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão à sua força – a própria vida é vontade de potência –: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso. – Em suma: nisso, como em tudo, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos cadernos Nietzche 29, 2011 345 Lopes, R. intuitivamente acessível. A questão da acessibilidade intuitiva do vocabulário comparece no famoso aforismo 36 de Para além de bem e mal. Aqui há uma premissa histórica importante que subjaz ao argumento de Nietzsche. A força do modelo mecanicista clássico residia em duas virtudes: sua sobriedade e economia e o caráter intuitivamente acessível de seu modelo explicativo, baseado na noção de causação por impacto ou contato. Esta segunda virtude desaparece com Newton, na medida em que ele é obrigado a acolher a noção contra-intuitiva de uma ação à distância para tornar compreensível o modo de atuação da força gravitacional. A suposição de uma ação à distância permitiu descrever de forma unificada e econômica os fenômenos naturais, mas introduziu uma grande dúvida em relação à capacidade explicativa do modelo corpuscular clássico. Os físicos passaram paulatinamente a considerar este modelo um dispositivo heurístico e uma ficção tolerável para fins descritivos. Nietzsche argumenta no aforismo 36 que o tipo de atuação que nós atribuímos à vontade (fundada numa relação de mando e obediência que não pressupõe contato entre uma instância e outra) permite uma apreensão intuitiva daquilo que seria a ação à distância, comprovando assim a superioridade (do ponto de vista da acessibilidade intuitiva) do modelo baseado nas vontades de potência. A grande dificuldade consiste no fato de que nós não temos [...]. Assim pede o método, que deve ser essencialmente economia de princípios.” (NIETZSCHE 16, p. 20; JGB/BM 13, KSA 5.27-8); “Supondo que nada seja “dado” como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer ou subir a nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é apenas a relação desses impulsos entre si –: não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou “material”)? [...] Afinal, não é apenas lícito fazer essa tentativa: é algo imposto pela consciência de método. Não admitir várias espécies de causalidade enquanto não se leva ao limite extremo (– até ao absurdo, diria mesmo) a tentativa de se contentar com uma só: eis uma moral de método, à qual ninguém se pode subtrair hoje; – ela se dá “por definição”, como diria um matemático.” (NIETZSCHE 16, p. 42; JGB/BM 36, KSA 5.54-5). 346 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” nenhuma clareza acerca do modo como uma vontade age sobre outra vontade, ou do que seja propriamente uma vontade. Mas segundo Nietzsche não se pode negar que a nossa crença mais primitiva é a crença na causalidade da vontade, e que toda concepção de causalidade que não a da vontade é uma construção posterior que tem aquela como modelo principal16. De todo modo, a argumentação presente neste aforismo mostra que Nietzsche está inegavelmente distante do chamado “princípio do fechamento causal do mundo físico”, que é o princípio ao qual todo defensor de um naturalismo de tipo fisicalista, e mesmo os defensores de versões mais moderadas e não redutivas do monismo fisicalista apelam. (3) Por fim, Nietzsche é um adversário de toda forma de apriorismo e de formalismo, o que o impede de conceber a reflexão filosófica como uma atividade distanciada da experiência. As ciências empíricas não são as únicas, mas são boas informantes do que se passa no âmbito da experiência. 6. Conclusões Há muitos aspectos interessantes no debate sobre o naturalismo que não foram mencionados neste estudo. Um deles diz respeito ao melhor modo de descrever a pretensão explicativa que Nietzsche associa à sua prática genealógica sem o comprometer 16 Eis o argumento de Nietzsche: “A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo – e no fundo a crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma –, temos então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como única. “Vontade”, é claro, só pode atuar sobre “vontade” – e não sobre “matéria” (sobre “nervos”, por exemplo –): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem “efeitos”, vontade atua sobre vontade – e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito de vontade.” (NIETZSCHE 16, p. 43; JGB/BM 36, KSA 5.54-5). cadernos Nietzche 29, 2011 347 Lopes, R. com um modelo causal que sua filosofia da ciência parece recusar com muita determinação. Aqui seria o caso de pensarmos em explicações que envolvem um procedimento de tipo narrativo e ficcional, numa direção sugerida por Bernard Williams, mas também nas inúmeras sugestões presentes no artigo de Peter Kail publicado neste volume dos Cadernos Nietzsche. Outro tema interessantíssimo diz respeito à crítica de Nietzsche à moralidade e ao papel que o naturalismo desempenha em sua contestação da solução moral para a normatividade. Parte significativa do esforço filosófico de Nietzsche consistiu em romper com o que ele supunha ser a estratégia de imunização das crenças morais montada pelas filosofias de Kant e Schopenhauer. Nietzsche reivindicou para o pensamento filosófico e científico o direito de submeter este domínio da experiência humana aos mesmos padrões de exame crítico que vigoram em outros domínios. É preciso avaliar cuidadosamente os argumentos que ele tem a nos apresentar a favor desta reivindicação, mas uma vez que ela possa ser atendida, parte substancial de nossa autocompreensão estará sujeita a drásticas revisões, como as suas rápidas incursões pelo terreno da moralidade permitem antecipar. Um rápido balanço de nosso percurso permite afirmar que se há um naturalismo em Nietzsche, ele não se identifica com a defesa de nenhum tipo de concepção essencialista da natureza; não opõe as ciências naturais duras às ciências históricas; não insiste na definição de um método científico único; não é um fisicalismo nem se apoia em algo vagamente similar ao princípio do fechamento causal do mundo físico; insiste na tese de que a tarefa propriamente filosófica é de natureza normativa, mas não funda esta tese na reivindicação de uma especificidade metodológica para a filosofia; tampouco exclui que a filosofia tenha uma tarefa também explicativa, e não meramente elucidativa de conceitos; recusa toda forma de apriorismo; é uma forma de reducionismo, pois prescreve que as teorias filosóficas, sejam elas normativas ou explicações genealógicas sobre os processos de formação, fixação, transmissão e transformação de crenças, práticas, instituições e conceitos devem ser eminentemente 348 cadernos Nietzche 29, 2011 “A ambicionada assimilação do materialismo” econômicas; por fim, não é uma modalidade de naturalismo que por definição seja avesso à especulação filosófica, pois ele reconhece de forma liberal que há outros valores a serem promovidos além dos valores puramente cognitivos ou epistêmicos. Na perspectiva deste naturalismo, o que um filósofo deve emular nas teorias científicas é menos o modelo explicativo de tipo causal do que a sobriedade do vocabulário e a economia de princípios. Por fim, o combate incessante à nossa tendência natural à credulidade mediante o cultivo da suspeita e sua associação com a boa consciência. Abstract: This paper compares Nietzsche´s views on the rela- tionship between philosophy and empirical sciences against the background of some of the debates in the so-called transcendental tradition, in order to characterize his position in terms of a liberal one. Initially it will be shown that there are some similarities between the debates in the German academic philosophy of the second half of the nineteenth century and the contemporary debates on methodological naturalism. I discuss subsequently F. A. Lange´s historical views concerning the emergence of methodical discipline within the materialistic tradition, as well as Nietzsche´s reception of them. Next I present Spir´s arguments against the naturalizing programs of his time, as well as Nietzsche´s response to him. In the last section I discuss the meaning of Nietzsche´s orientation to a speculative philosophy of the will to power in his late works and whether it is compatible or not with one more liberal conception of naturalism. Keywords: Naturalism - transcendental philosophy - epistemic virtues - principle of economy referências bibliográficas 1. CASPARI, O. Der Zusammenhang der Dinge. Gesammelte philosophische Aufsätze. Breslau: Trewendt, 1881. cadernos Nietzche 29, 2011 349 Lopes, R. 2. CLARK, M. & DUDRICK, D. “The Naturalisms of Beyond Good and Evil.” In: A Companion to Nietzsche. Ansell Pearson, K. (org.). Oxford: Blackwell, 2006, p. 148-167. 3. DE CARO, M. & MACARTHUR, D. Naturalism in Question. 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O artigo sustenta, então, que as críticas explícitas de Nietzsche à ética kantiana não são convincentes, mas que ele também desenvolveu uma ética “kantiana” a seu modo. Assim, o artigo pretende mostrar que elementos negligenciados das abordagens de Nietzsche acerca de Kant são mais proveitosos do que aqueles comumente enfatizados. Palavras-chaves: Nietzsche – Kant – neokantismo – idealismo – ética - vontade Introdução Talvez seja compreensível que Nietzsche seja frequentemente tomado como tendo tido pouco interesse em Kant e nas questões * Tradução de André Luiz Fávero. As adaptações das citações e referências, conforme a convenção proposta pela edição Colli/Montinari das Obras Completas de Nietzsche, foram feitas por Braian Sanchez Matilde. Revisão da tradução por Vinícius Andrade, Éder Corbanezi e Braian Sanchez Matilde. ** Agradecimento do autor: este artigo é uma tradução de uma versão abreviada de “Nietzsche the Kantian?”, no prelo para Ken Gemes e John Richardson (Ed.), Oxford Handbook of Nietzsche, Oxford: Oxford University Press, 2012. Ele é publicado com a gentil permissão da Oxford University Press. ***Professor da John Cabot University e LUISS “Guido Carli”, Roma. E-mail: tbailey@ johncabot.edu. cadernos Nietzche 29, 2011 353 Bailey, T. kantianas, ou, no máximo, como tendo tratado noções kantianas como a “coisa em si” e o “imperativo categórico” a seu modo, de forma não-kantiana, pois ele reserva alguns de seus comentários mais desdenhosos a Kant – em Crepúsculo dos Ídolos, por exemplo, ele chama Kant de o “mais deformado conceito-coxo que tenha existido” (GD/CI, O que falta aos alemães 7, KSA 6. 109)1 – e não há evidência forte de que ele já tivesse lido quaisquer textos de Kant.2 Contudo, numa inspeção mais próxima, Nietzsche parece ter desenvolvido uma série de interesses e compromissos kantianos através de abordagens intensas, senão diretamente dos textos kantianos, ao menos de numerosos comentários sobre Kant e trabalhos no neo-kantismo. E essas abrodagens não só se desenvolveram substancialmente ao longo do tempo, desde seus primeiros aos últimos escritos, como também foram frequentemente desenvolvidas mais sofisticadamente sem referência explícita tanto a Kant quanto às fontes kantianas. Além disso, as conclusões finais de Nietzsche não são nem decisivas nem tão aplicáveis a Kant quanto sugeririam seus comentários desdenhosos a respeito de Kant. Mais do que mera indiferença ou desdém, a ligação de Nietzsche com Kant foi larga e dinâmica, mediada por fontes e frequentemente deixada implícita e irresoluta, e nem sempre justa para com o próprio Kant. 1 São utilizadas as traduções de Rubens Rodrigues Torres Filho e de Paulo César de Souza para as traduções de passagens das obras de Nietzsche, salvo quando estas inexistem ou se encontram indisponíveis – pelo que então se traduziu diretamente da transcrição do autor (Nota do Tradutor). 2 Thomas Brobjer sustenta que Nietzsche leu a Crítica do Juízo de Kant em 1868, enquanto planejava uma dissertação a ser intitulada “Über den Begriff des Organischen seit Kant”, e que as referências em suas anotações, cartas e aulas do final da década de 1860 e começo da de 1870 também sugerem uma leitura de Kant durante aquele período. Todavia, Brobjer admite não haver forte evidência de que Nietzsche possuísse ou tivesse emprestado qualquer texto de Kant nesse período, e eu sugeriria que o comentário de Kuno Fischer sobre Kant, Immanuel Kant und seine Lehre, fosse uma fonte mais provável de referências feitas no plano da dissertação. Ver Brobjer 2008: 36-39, 48, 195, 202 e 226-7 e nn. 86, 87, 89 e 90, p.38. 354 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche Este artigo explora dois temas principais nessa ligação intensa e complexa com Kant. A primeira parte se concentra no idealismo kantiano e em como Nietzsche desenvolveu um tratamento crítico acerca de alguns de seus pressupostos mais básicos. A segunda parte considera sua relação com a ética kantiana, e mostra que, enquanto a critica, ele também afirma uma nítida ética “kantiana” a seu modo.3 I. Nietzsche e o idealismo kantiano Uma formação inicial A abordagem, por Nietzsche, das questões kantianas começou em meados da década de 1860 e, particularmente, com sua descoberta entusiasmada de uma cópia de Die Welt als Wille und Vorstellung, de Arthur Schopenhauer, num sebo em Leipzig, em 1865, quando ele tinha vinte e um anos. Isso foi seguido de um periodo de extensas leituras ulteriores do neo-kantismo, durando cerca de dez anos ou mais. Esses textos propuseram várias linhas de idealismos inspirados em Kant, de acordo com os quais as capacidades humanas perceptivas e conceituais impõem certas condições sobre seus objetos, de tal forma que os seres humanos não são capazes de conhecer os objetos como eles devem ser “em si mesmos”, independentemente dessas condições. Essas posições foram com frequência apresentadas como meios para ajustar a filosofia ao desafio de desenvolver as ciências naturais e à rejeição da metafísica e da teleologia em particular – visto que elas se prestavam a explicar as 3 Por razões de espaço, não considerarei aqui os tratamentos menos extensivos de Nietzsche sobre a estética de Kant. Para uma discussão deste aspecto de sua relação com Kant, ver Rampley 2000: esp. 156-165, 174-183 e 190-214. cadernos Nietzche 29, 2011 355 Bailey, T. ciências como aplicáveis aos objetos cognoscíveis, enquanto também admitiam um papel para a filosofia na análise de noções científicas básicas e na orientação prática da vida humana. Fora particularmente significativa para Nietzsche a distinção de Schopenhauer entre o mundo como ele aparece a nós, sujeito às condições do espaço, do tempo e da causalidade, e o mundo como ele é “em si mesmo”, aquele da vontade cegamente empenhada, ao qual temos um certo acesso em nossa experiência volitiva e em algumas experiências morais e estéticas.4 Nietzsche também abordou o pessimismo metafísico de Eduard von Hartmann, de acordo com o qual a cognição e a vontade são manifestações de uma substância inconsciente singular, que conduz o mundo a um estado de não-vontade consciente, e com o postulado de Afrikan Spir de um objeto de juízo não-empírico singular, em razão de que o caráter temporal e múltiplo da experiência sensível contradiz as exigências de aplicação conceitual.5 Mas igualmente importante para Nietzsche foram as posições menos metafisicamente extravagantes adotadas por Friedrich Lange e atribuídas a Kant nos comentários de Kuno Fischer e Friedrich Überweg. De particular importância neste ponto foi a consideração de Lange acerca de como a fisiologia e a 4 Nietzsche primeiramente leu Die Welt als Wille und Vorstellung, de Schopenhauer, em sua segunda edição, ou no final de outubro ou no começo de novembro de 1865, e o releu, junto com Parerga und Paralipomena e possivelmente outras obras de Schopenhauer nos anos imediatamente seguintes. Ele também leu vários comentários sobre Schopenhauer e obras de schopenhauerianos entre o final da década de 1860 e meados da de 1870. Ver Janz 1979: v.1, 180 e Brobjer 2008: 29, 31-32, 47-49, 55, 66-70, 72, 191-198 e 211-212. 5 Nietzsche faz referência à Philosophie des Unbewußten. Versuch einer Weltanschauun, de Hartmann, em numerosas notas de 1869 até meados de 1870 e estudou a Forschung nach der Gewissheit in der Erkenntniss der Wirklichkeit, de Spir, e a primeira edição de Denken und Wirklichkeit. Versuch einer Erneuerung der kritischen Philosophie particular e intensivamente entre o verão de 1872 e a primavera de 1873. Sobre Hartmann, ver Campioni et al 2003: 284 e Brobjer 2008: 51-55, 196, 198, 206 e 208; e, sobre Spir, ver D’Iorio 1993: esp. 257-258 e 259-270, Crescenzi 1994: 420, 421, 425 e 428, Campioni et al 2003: 582 e Brobjer 2008: 71-72, 203 e 207. 356 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche psicologia humanas impõem certas condições idealistas, incluindo a noção de um objeto independentemente-existente, de tal modo que nosso conhecimento não se estende para além dessas condições e a metafísica seja mera “poesia conceitual”, valiosa apenas como um meio de criar mitos edificantes.6 Os comentários de Fischer e Überweg forneceram a Nietzsche leituras idealistas ulteriores dos tratamentos de Kant acerca do espaço, do tempo, da imaginação, das “categorias” e das “ideias”, e atraíram as consequentes conclusões céticas acerca do conhecimento da “coisa em si”.7 À primeira vista, essas leituras neokantianas podem parecer ter levado Nietzsche a endossar o idealismo kantiano em seus primeiros escritos. Em O Nascimento da Tragédia, por exemplo, ele afirma a demonstração de Kant que, ao invés de “leis totalmente incondicionais, dotadas da mais universal das validades”, espaço, tempo e causalidade erigem “o mero fenômeno [...] em única e suprema realidade”, como se ele fosse a “essência íntima e verdadeira das coisas e, com isso, tornar impossível o conhecimento efetivo desta”. Lá ele também apresenta a experiência dionisíaca como revelando ser a “realidade empírica” uma mera “aparência [Schein]” ou “o não-ser verdadeiro” e apenas uma manifestação d’ “o verdadeiro ser e da unidade primordial [Ur-Eine]” que reside para além dela(GT/NT 18, 4, KSA 1. 115).8 6 Nietzsche leu a primeira edição de Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart, de Lange, por volta de agosto de 1866 e a releu em 1868 e 1873. Ver Brobjer 2008: 33-35, 192, 195 e 206 7 Nietzsche se refere a Immanuel Kant und seine Lehre, de Fischer, em seu plano de dissertação de abril-maio de 1868 e comprou uma cópia de Grundriß der Geschichte der Philosophie von Thales bis auf die Gegenwart, de Überweg, em outubro de 1867. Sobre Fischer, ver Brobjer 2008: 37 e 49 e, sobre Überweg, ver Campioni et al 2003: 641-642 e Brobjer 2008: 37, 49, 194-195 e 205. 8 Ver também GT/NT 15, 17 e 19, KSA 1. 97, e, sobre a experiência dionisíaca, GT/ NT 1, 5-8, 15-19, 21, 24 e 25, KSA 1.25. Alegações idealistas similares podem ser encontradas em DS/Co. Ext. I, 6, KSA 1. 188 e SE/Co. Ext. III, 3, KSA 1. 350. Alguns comentadores, como Stack 1980: 37-39, 1987: 7-11 e 1991: 33 e Clark 1990: 63-93 e 1998: 40-47, consideram que as alegações de Nietzsche sobre a cadernos Nietzche 29, 2011 357 Bailey, T. Mas uma inspeção mais próxima de O Nascimento da Tragédia sugere que Nietzsche endossa e emprega posições idealistas apenas por razões terapêuticas ou culturais, mais do que por razões estritamente teóricas. Ao apresentar sua consideração acerca da experiência dionisíaca, ele descreve a noção de uma “unidade primordial” como uma “suposição metafísica” e um “conforto metafísico”, uma “ilusão” que faz a natureza efêmera do mundo que conhecemos suportável a nós, tratando o mundo como o “jogo artístico” de um “artista primordial do mundo” para além dele (GT/ NT 4, 18, 24, 5, KSA 1. 38).9 E mais do que prover qualquer exame teórico ou defesa de posições idealistas, ele as endossa no contexto de uma discussão crítica do efeito deletério sobre a “arte” da crença moderna na possibilidade de conhecimento genuíno, na esperança de que, ao reduzir o conhecimento humano mesmo a um tipo de “arte”, essas posições possam resultar em reverter essa prioridade cultural (GT/NT 18, KSA 1.115).10 Ademais, em seus escritos não publicados desse período, Nietzsche desenvolve dois tipos substanciais de crítica teórica ao idealismo kantiano. Primeiro, sua obstrução das alegações positivas sobre os objetos, de como eles devem ser independentemente das condições idealistas, leva-o a duvidar de que a “coisa em si” tenha qualquer importância epistemológica e de que seja mesmo legítimo pressupor sua existência. Segundo, ele considera incoerente a ideia de que os próprios conhecedores humanos sejam tanto as origens quanto os produtos de condições idealistas do conhecimento humano, sendo essa incoerência uma razão para deixar pra trás as posições idealistas kantianas.11 experiência dionisíaca contradizem seu idealismo, enquanto outros, como Brown 1980: 40-45, leem sua consideração sobre a experiência dionisíaca como almejando precisamente justificá-lo. 9 Ver também GT/NT 1, 16 e 17, KSA 1.25. 10 Ver também DS/Co. Ext. I, 6, KSA 1. 188 e SE/Co. Ext. III, 3, KSA 1.350. 11Ver KGW I:4 57 [51, 52 e 55] (outono de 1867 - primavera de 1868), II:4, 358 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche Pode ser tentador supor que o jovem Nietzsche desenvolveu uma linha mais nuançada de idealismo kantiano à luz dessas preocupações teóricas e terapêuticas ou culturais.12 Porém, talvez até isso seja subestimar a natureza experimental e inconclusiva de suas abordagens iniciais acerca de tal idealismo, pois seu insucesso em se comprometer com qualquer posição em seus primeiros textos publicados – nos quais ele está, acima de tudo, preocupado principalmente com outros assuntos – e por que suas críticas a tais posições em seus escritos não publicados desse período sugerem fortemente que ele se encontrava longe de estar convencido por elas. E enquanto seus escritos não publicados expõem a intensidade de seu interesse pelas posições idealistas kantianas, nesses escritos ele estava também livre para explorar essas posições e os problemas que elas suscitavam, sem estar limitado por exigências de coerência, argumento ou comprometimento. De fato, lá suas críticas são acompanhadas por numerosos endossos ao idealismo. Portanto, mais do que adotar ou desenvolver qualquer posição particular, parece mais plausível considerar as abordagens iniciais de Nietzsche acerca do idealismo kantiano como uma “formação” preliminar e experimental em certas posições e assuntos neokantianos contemporâneos. A rejeição de Nietzsche ao idealismo kantiano Diferentemente de seus textos juvenis, os textos de Nietzsche, de Humano, Demasiado Humano em diante, manifestam uma pp.241-242, 291-296 e 339-340 (verão de 1872), PHG/FT, 1, 4, 10, 11 e 13, KSA 1. 804 e WL/VM 1, KSA 1.875 e KSA 7.459, Nachlass/FP 19 [125] e [153], do verão de 1872 – começo 1873. 12 Ver, por exemplo, Stack 1980, 1983: esp. cap. 8 e 1987: 7-23, Crawford 1988 e 1997, Hill 2003: pt. 1 e Doyle 2009: cap. 3. Outros comentadores, tais como Fazio 1986-1989, D’Iorio 1993: 259-270, Sánchez 1999: 66-90 e 2000b e Green 2002: esp. cap. 2 e 3, enfatizam o endosso inicial de Nietzsche acerca do ceticismo de Spir sobre o juízo empírico, o qual considero a seguir. cadernos Nietzche 29, 2011 359 Bailey, T. atitude consistentemente crítica em relação ao idealismo kantiano, e em seus últimos textos ele o rejeita terminantemente. Talvez ele seja mais naturalmente lido como reivindicando ou que as capacidades humanas perceptivas e conceituais inevitavelmente “simplificam” ou “falseiam” a natureza real das coisas, ou que a noção de uma natureza objetivamente “real” das coisas seja em si mesma incoerente, e ainda como criticando o idealismo kantiano por reivindicar o oposto – a saber, que temos algum acesso à realidade, uma vez que isso subjaza para além de nossas capacidades perceptivas e conceituais, ou que possamos ao menos concebê-la, embora não lhe tenhamos acesso.13 Mas atribuir tal posição a Nietzsche suscita notórios problemas. Em particular, é paradoxal alegar que se sabe que não podemos ter conhecimento autêntico, e é também difícil ver como Nietzsche poderia fazer tal alegação enquanto também afirmando a importância do conhecimento empírico, fazendo numerosas alegações de conhecimento de si próprio. É auspicioso, então, que, ao rejeitar a noção de uma realidade para além de nossas capacidades perceptivas e conceituais, a interpretação e a crítica de Nietzsche acerca do idealismo kantiano seja, na verdade, precisamente o oposto do que inicialmente possa parecer. Ou seja, ele defende, contra o idealismo kantiano, a ideia de que a realidade seja acessível às nossas capacidades perceptivas e conceituais, e está assim preocupado não com que o idealismo kantiano reivindique que possamos ter algum acesso à/ou concepção da verdadeira natureza das coisas, mas, pelo contrário, com que ele negue isso. Além do mais, as passagens relevantes revelam uma segunda preocupação, relacionada menos à acessibilidade da realidade do que a como fazemos juízos acerca de qualquer realidade. Essa preocupação revela Nietzsche ainda 13 Ver, por exemplo, Danto 1965: esp. cap. 3 e Nehamas 1985: cap. 2, esp. 48-52. Tais leituras permitem considerar a posição de Nietzsche como um tipo de idealismo “kantiano”. Ver, por exemplo, Stack 1983: esp. cap. 8 e Crowell 1999. 360 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche menos resoluto: ele alterna entre negar que possamos autenticamente fazer juízos acerca da realidade acessível a nós e aceitar esta possibilidade, enquanto simultaneamente explorando a ideia de que os juízos possam nos dar um acesso a priori a outros aspectos de nós mesmos e do mundo. A acessibilidade da realidade Em seus últimos escritos Nietzsche faz três críticas à noção kantiana de uma realidade inacessível às capacidades humanas perceptivas e conceituais – a saber, que esta noção é contraditória, que é epistemologicamente supérflua e ainda moralmente suspeita. Cada crítica sugere que ele não sustenta que essas capacidades “simplifiquem” ou “falseiem” a realidade ou que a noção de realidade seja incoerente, mas, ao contrário, ao rejeitar a noção de uma realidade inacessível, também admite uma realidade que seja, ao menos em princípio, acessível às nossas capacidades perceptivas e conceituais, ainda que ontologicamente independente delas.14 A primeira crítica de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível, de que ela seja contraditória, é particularmente clara numa seção de Para uma genealogia da moral, na qual ele rejeita “o conceito kantiano de ‘caráter inteligível das coisas’”. Observando que este conceito faz da realidade “absolutamente incompreensível” a nós, ele a rejeita em razão de que não há “‘observação desinteressada’ (um absurdo sem sentido)”, mas “apenas uma 14 Nietzsche continuou a estudar as noções idealistas kantianas de uma realidade inacessível na década de 1880, com particular atenção para com Lange e, notavelmente, também Zur Analysis der Wirklichkeit. Eine Erörterung der Grundprobleme der Philosophie e Die Arten der Nothwendigkeit – Die mechanische Naturerklärung – Idee und Entelechie, de Otto Liebmann. Liebmann fora, como Lange, um dos primeiros a propor um “retorno” ao idealismo kantiano, entendido como uma negação cética de nosso conhecimento da realidade. Sobre Lange, ver Campioni et al 2003: 346 e Brobjer 2008: 33-36, 221, 226-227 e n. 68 a 34; e, sobre Liebmann, ver Campioni et al 2003: 364-367 e Brobjer 2008: 76, 104, 221-222 e 229. cadernos Nietzche 29, 2011 361 Bailey, T. visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo”. O que é signficativo aqui é como Nietzsche também chama o conceito kantiano de realidade de um “conceito contraditório” e insiste que o “ ‘conhecer’ perspectivo” possa chegar a uma certa “ ‘objetividade’ ”, a qual ele descreve como a capacidade de “de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas” (GM/GM III 12, KSA 5.363). Ao rejeitar o conhecimento não-perspectivístico ou “desinteressado” da realidade, Nietzsche não está alegando, assim, que nossa “perspectiva” das particulares capacidades perceptivas e conceituais inevitavelmente “simplifica” ou “falseia” a realidade, ou que ela confira incoerência à noção de realidade. Ele está simplesmente negando que a alegação kantiana de que essa perspectiva impede o conhecimento, de tal modo que a realidade deve ser inacessível ou “completa e absolutamente incompreensível” a conhecedores perspectivísticos como nós – uma alegação que ele presumivelmente considera “contraditória” porque ela torna o conhecimento da realidade impossível para nós. Sua rejeição à noção de uma realidade inacessível como contraditória envolve, assim, sua afirmação, em vez de negação, da acessibilidade da realidade às nossas particulares capacidades perceptivas e conceituais.15 A segunda crítica de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível é que ela é epistemologicamente supérflua. Em particular, em sua consideração de “Como o ‘Verdadeiro Mundo’ acaba por se tornar em Fábula”, em Crepúsculo dos ídolos, o passo “königsbergiano” (uma referência à cidade natal de Kant) afirma uma realidade “inalcancável, indemonstrável, imprometível” e é seguido pela compreensão originária de que tal realidade deva ser 15 Leituras anti-céticas desse tipo têm sido desenvolvidas por vários comentadores. Para a leitura especialmente influente de Maudemarie Clark, ver Clark 1990: cap. 1-5, Clark 1998 e Clark e Dudrick 2004. Para outras, ver Anderson 1996, 1998, 1999, 2002 e 2005: 187-192, Hill 2003: pt. 2 e Doyle 2009: cap. 1-2, esp. 56-65. 362 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche “inalcançada, também desconhecida”, e, portanto, por sua rejeição como “uma Ideia que se tornou inútil, supérflua, consequentemente uma Ideia refutada” (GD/CI, Como o “Verdadeiro Mundo” Acabou por se Tornar em Fábula 3, KSA 6.80).16 Nietzsche conclui que a realidade à qual temos acesso não poderia mais ser considerada como meramente “aparente”, mas, ao contrário, ser considerada como real, uma vez que o padrão de uma realidade ulterior e inacessível é supérfluo. Assim, ao dar o passo final, ele insiste que “com o verdadeiro mundo expulsamos também aparente”. No capítulo precedente de Crepúsculo dos Ídolos, “A ‘Razão’ na Filosofia”, ele também se refere a Kant ao afirmar “a evidência dos sentidos” e nosso conhecimento do “mundo verdadeiro”, o mundo “aparente” do “tornar-se”, contra a postulação de um “mundo real”, e concluindo que “os fundamentos, em vista dos quais ‘este’ mundo foi designado como aparente, fundam, em vez disso, sua realidade – uma outra espécie de realidade é absolutamente indemonstrável” (GD/CI, A “Razão na Filosofia” 2 e 6, KSA 6.75). Como sua primeira crítica, então, a segunda crítica de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível afirma, em vez de negar, nosso conhecimento da realidade. A crítica final de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível consiste nas hipóteses relativas às funções psico-físicas e culturais da crença numa tal realidade. Estas hipóteses pretendem sugerir que, mais do que exercerem um papel teórico necessário em nosso conhecimento do mundo, esta crença pode ser explicada por outros propósitos, decididamente mais suspeitos, aos quais ela serve. Nietzsche se refere particularmente a um tipo de enojamento ou frustração com o mundo acessível e à expectativa de defender a moral tradicional e as idéias teológicas contra as dúvidas empíricas. Em “Como o Verdadeiro Mundo acaba por se tornar em Fábula”, por exemplo, ele descreve o passo “königsbergiano” como 16 Ver também MA I/HH I, 9, 16, 20 e 21, KSA 2. 29 e AC/AC 10, KSA 6. 176. cadernos Nietzche 29, 2011 363 Bailey, T. postulando uma realidade que pretende ser “pensada um consolo, uma obrigação, um imperativo”, e em “A ‘Razão’ na Filosofia” ele escreve que “forjar histórias sobre “um outro” mundo que não este é completamente sem sentido, assim como não há instinto forte para difamar, depreciar e suspeitar da vida em nós: no último caso nós nos vingamos a nós mesmo em vida através da fantasmagoria de “uma outra” e “melhor” vida (GD/CI, A “Razão na Filosofia”, 6, Como o “Verdadeiro Mundo” Acabou por se Tornar em Fábula, 3, KSA 6.80).17 Novamente, então, ao criticar a noção de uma realidade inacessível, Nietzsche afirma, em vez de negar, o conhecimento humano possível da realidade – neste caso, o conhecimento daquela realidade que pode nos enojar ou nos frustrar, ou ameaçar nossa moral tradicional e nossas ideias teológicas. O Nietzsche tardio, por conseguinte, critica a noção kantiana de uma realidade inacessível não porque ela alega que temos acesso à realidade ou que podemos ao menos concebê-la, mas precisamente porque ela nega isto: ela torna a realidade inacessível a nós de uma forma contraditória, epistemologicamente supérflua e moralmente suspeita, e deve ser rejeitada em nome da realidade que podemos perceber e conceber. Vale notar, contudo, que essas críticas pareceriam mais aplicáveis a Schopenhauer, Lange ou Fischer do que ao próprio Kant. Isso porque é altamente debatível se Kant afirma uma realidade inacessível ou, se ele o faz, ainda se argumenta das formas que 17 Para as hipóteses de Nietzsche’s relativas às funções psico-físicas e culturais de crença numa realidade inacessível, frequetemente com referência a Kant, ver também MA I/HH I, 17, KSA 2.38, GT/NT, Ensaio de Autocrítica, 5, KSA 1. 17, JGB/BM 2, 5, 6, 10, 59, 210 e 211, KSA 5. 16, GM/GM, III, 25, KSA 5. 402, FW/GC, Prólogo 2, 346, 347 e 370, KSA 3. 347, GD/CI, Incursões de um Extemporâneo, 34, KSA 6. 132, AC/ AC 10, 15, 24, 38, 50 e 58, KSA 6. 176, EH/EH, Por que Sou Tão Esperto, 10, KSA 6. 295, O Nascimento da Tragédia, 2, KSA 6.311 e Por que Eu Sou um Destino, 3-8, KSA 6. 367. Ver também MA I/HH I, 9, 10 e 16, KSA 2. 29 e Za/ZA I, Dos trasmundanos, KSA 4. 35 para declarações sobre os objetivos deflacionários de tais hipóteses e referências na nota 30 a seguir. 364 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche Nietzsche critica.18 Kant se esforça para distinguir seu idealismo “transcendental” do ceticismo, de tal modo que as condições “transcendentais” do conhecimento são visadas como garantias de um realismo “empírico” e, para evitar problemas tais como aqueles identificados por Nietzsche, alguns comentadores de Kant até argumentam que ele pretende que a “coisa em si” seja o que expresse a ausência de comprometimentos com a realidade do objeto considerado independentemente das condições a priori do conhecimento.19 Além disso, mesmo se sua “coisa em si” for igualada à realidade inacessível que Nietzsche rejeita, as críticas de Nietzsche têm pouco a “dizer”, por exemplo, à insistência de Kant sobre sermos afetados por objetos que venhamos a conhecer ou à necessidade de uma “Revolução Copernicana” idealista para evitar as impropriedades do realismo. A este respeito, pois, a abordagem de Nietzsche acerca do idealismo kantiano não é particularmente promissora como uma abordagem acerca de Kant mesmo. Juízos da realidade Outras discussões acerca do idealismo kantiano nos textos tardios de Nietzsche estão preocupadas com outras noções kantianas, contudo mais distintas. Isso é particularmente evidente no capítulo “ ‘A ‘Razão’ na Filosofia’, em Crepúsculo dos Ídolos, no qual Nietzsche se concentra nas posições de Spir e Gustav Teichmüller. Ele estudou particularmente essas posições de modo intenso no final dos anos 1870 e 1880 e elas o levaram a tratar do idealismo 18 Admitidamente, comentadores de Nietzsche, com frequência, tomam Kant como afirmando uma realidade inacessível e Nietzsche como bem sucedidamente utilizando-se disso. Além das obras a isso relativas na nota 18 acima, ver, por exemplo, Brown 1980: 42-45, Stack 1991: esp. 30-33, Houlgate 1993: esp. 128-157, Conrad 2001: 25-33 e Ibáñez-Noé 2002: 132-134 e 144-147. 19 Ver, em particular, Allison 1983/2004 e, sobre a importância de tais interpretações para Nietzsche, Mosser 1993: esp. 73-76 e Weiss 1993. cadernos Nietzche 29, 2011 365 Bailey, T. kantiano menos em termos de sua noção de uma realidade inacessível do que em termos de como ele nos considera para fazermos juízos sobre a realidade. A abordagem de Nietzsche acerca de Spir é notável por sua preocupação com uma certa noção do objeto de juízo e por sua transformação radical em “A ‘Razão’ na Filosofia”. Em seus escritos inéditos iniciais e em suas obras publicadas de Humano, demasiado humano até Para além de bem e mal, Nietzsche endossa o argumento de Spir da impossibilidade de juízos empíricos, de acordo com o qual um conceito pode ser aplicado apenas a um objeto autoidêntico e tal objeto não é manifestado na experiência sensível, ao mesmo tempo em que, entretanto, não segue Spir em postular um objeto de juízo ulterior, não-empírico. Como ele coloca em Para Além de Bem e Mal, embora “que sem um deixar-valer as ficções da lógica, sem um medir a efetividade pelo mundo puramente inventado do incondicionado, do igual-a-si-mesmo, sem uma constante falsificação do mundo pelo número, o homem não poderia viver”, esses são, todavia, “os mais falsos juízos” (JGB/BM 4, KSA 5.18).20 Em “A ‘Razão’ na Filosofia”, entretanto, Nietzsche abandona o argumento de Spir da impossibilidade de juízos empíricos. Sua preocupação principal neste capítulo é criticar as alegações de que a “razão” nos dá as bases para postular “unidade, identidade, duração, substância, causa, coisidade, ser” dos objetos, apesar do fato de que nossa experiência sensível desses objetos não exemplifica esses conceitos. Spir claramente faz uma alegação a priori 20 Sobre esta posição, ver também MA I/HH I, 1, 11, 16, 18 e 19, KSA 2. 23, WS/AS 11 e 12, KSA 2. 546, FW/GC 107, 110 e 111, KSA 3. 464, JGB/BM 2 e 36, KSA 5. 16 e, nos cadernos iniciais, PHG/FT 5, 7, 10 e 15, KSA 1. 822, WL/VM 1, KSA 1. 875, KSA 7. 493, Nachlass/FP 19 [235, 236 e 242] do verão de 1872 – começo de 1873 e KSA 7. 542, Nachlass/FP 23 [11] e [39], do inverno de 1872 – 1873. D’Iorio argumenta que Nietzsche abordou intensivamente a segunda edição revisada de Denken und Wirklichkeit em 1877, no verão de 1881 e no verão de 1885. Ver D’Iorio 1993: esp. 257-259 e também Campioni et al 2003: 567-570 e Brobjer 2003: 222. 366 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche precisamente desse tipo, com sua premissa a respeito da autoidentidade do objeto de juízo. O que é notável no capítulo é que, ao criticar tais alegações, Nietzsche não apenas rejeita a postulação de objetos e características não-empíricos, como ele havia feito anteriormente, mas também nega que a realidade possa ser determinada sobre bases lógicas e afirma a possibilidade de juízos empíricos. Assim, na passagem seguinte ele afirma a “ciência” empírica e enfatiza que isso não é apenas porque rejeita postulações não-empíricas, mas também porque não considera “lógico” ser a medida da realidade. Nós possuímos ciência hoje precisamente à medida que decidimos aceitar a eviência dos sentidos, – à medida que aprendemos a aguçá-los, a fortalecê-los, a pensá-los em vista de suas conclusões. O resto é deformação e ainda-não-ciência: ou seja, metafísica, teologia, psicologia, epistemologia. Ou ciência formal, teoria de signos: como a lógica e aquela lógica aplicada, a matemática. Nisso a realidade não aparece mesmo, nem como um problema; apenas tão pouco como aparece a questão de qual valor podem ter tanto uma convenção de signos quanto a de uma lógica (GD/CI, A “Razão” na Filosofia 3, KSA 6.75).21 Noutras palavras, somente em Crepúsculo dos ídolos Nietzsche realmente rejeita as bases spirianas sobre as quais anteriormente havia negado que possamos realizar juízos empíricos – ou seja, as bases “lógicas” de que um conceito possa ser aplicado apenas a um objeto autoidêntico. Antes de Crepúsculo dos Ídolos, essas bases o 21 Aqueles comentadores que enfatizam a abordagem tardia de Nietzsche com Spir geralmente consideram que ele endossa o argumento de Spir contra a possibilidade do juízo empírico ao longo de seus escritos tardios. Ver D’Iorio 1993: 277-294, Sánchez 2000a e Green 2002: esp. cap. 2 e 3. Critico Green a esse respeito e ofereço uma discussão ulterior sobre as passagens relativas ao texto acima em Bailey 2006: 242-249. Ver também Clark 2005, Clark e Dudrick 2006 e Green 2005: 55-72. cadernos Nietzche 29, 2011 367 Bailey, T. haviam colocado na estranha posição de rejeitar a noção de uma realidade inacessível em nome da realidade que nos é acessível, enquanto também de negar que podemos realizar juízos autênticos da realidade. Ao rejeitar essas bases em Crepúsculo dos ídolos, ele vem a aceitar que podemos fazer juízos da realidade acessível a nós. “A ‘Razão’ na Filosofia” também é importante por sua expressão da abordagem de Nietzsche acerca de Teichmüller. Tendo insistido que a lógica não é a medida da realidade, Nietzsche procede explicando a ideia de que a “razão” nos dá as bases para postular “unidade, identidade, duração, substância, causa, coisidade, ser” dos objetos como uma reflexão acerca do que ele chama “as pressuposições fundamentais da metafísica da linguagem”, as quais, ele alega, originam-se no “tempo da mais rudimentar forma de psicologia”. Acerca dessa psicologia, ele escreve “esse vê por toda parte agente e ato: esse acredita em vontade como causa em geral; esse acredita no “eu”, no eu como ser, no eu como substância, e projeta a crença na substância-eu sobre todas as coisas – somente com isso cria o conceito “coisa” […] somente da concepção “eu” se segue, como derivado, o conceito “ser” (GD/CI, A “Razão” na Filosofia 5, KSA 6.78).22 Embora este diagnóstico seja aplicável à postulação de Spir de um objeto de juízo autoidêntico, ele se aplica mais de perto à postulação de Teichmüller do objeto de juízo como uma substância, pois Teichmüller sustenta que o sujeito tem “experiência imediata” de si mesmo como um ser substancial que une a pluralidade de suas sensações, afetos e vontades, e que esta atividade unificadora é refletida na gramática sujeito-predicado e que o sujeito pode conhecer um objeto apenas ao estender a ele esse conceito de ser substancial.23 Assim, em Em “A ‘Razão’ na Filosofia”, 22 Sobre ataques similares à “metafísica da linguagem”, ver JGB/BM, Prefácio, 16, 17, 19, 20, 34 e 54, KSA 5. 11 e GM/GM, I, 13, KSA 5. 278. 23 Nietzsche se refere às alegações e argumentos de Teichmüller, em Die wirkliche und die scheinbare Welt. Neue Grundlegung der Metaphysik , em numerosas notas de 368 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche Nietzsche rejeita não apenas sua própria alegação spiriana anterior acerca da autoidentidade do objeto de juízo, mas também a consideração de Teichmüller de como o sujeito mesmo postula o objeto de juízo como uma substância. Surpreendentemente, contudo, o Nietzsche mais maduro também se encarrega de reformular precisamente o tipo de argumento das premissas psicológicas primitivas que ele diagnostica em Spir e Teichmüller. Ou seja, enquanto afirma uma realidade empiricamente acessível e passível de juízo, ele também deriva uma ontologia de causação como “vontade de potência” a priori da potência causal que a psicologia primitiva atribui à escolha consciente, ou “a vontade”, e que ele consistentemente nega. Em particular, numa seção de Para além de bem e mal, ele argumenta a favor daquilo que chama de “direito de determiner toda força eficiente univocamente como: vontade de potência”, com base em três premissas hipotéticas: primeiramente, que “nada outro está ‘dado’ como real, a não ser nosso mundo dos apetites e paixões”; em segundo, que “reconhecemos efetivamente a vontade como eficiente”; e, em terceiro lugar, que esclarecemos nossa experiência psicológica em termos de “uma forma fundamental da vontade – ou seja, da vontade de potência” (JGB/BM 36, KSA 5.54). Fossem estas premissas aceitas, ele insiste, o princípio de parcimônia requeriria que explicações não somente de eventos psicológicos, mas também de eventos orgânicos e inorgânicos fossem dadas em termos de “vontade de potência”. E ele prossegue com esse argumento de modo entusiasmado em seus escritos não publicados, enfatizando lá que, embora o argumento apele à potência causal da volição, ele não atribui a volição a um sujeito substancial – ele assim segue a psicologia primitiva no primeiro sentido, mas não no último. Suas explicações dos eventos em meados da década de 1880 em diante. Sobre as interpretações acerca da importância de Teichmüller para Nietzsche, ver D’Iorio 1993: 283-294, Orsucci 1997: esp. 53-56 e 2001: 212-219 e Small 2001: 43-56. cadernos Nietzche 29, 2011 369 Bailey, T. termos de “vontade de potência” consequentemente concernem não às relações causais entre “coisas” substanciais, mas antes às meras “vontades” ou “potências”, ou, quando muito, às suas combinações hierarquicamente organizadas – que, em uma nota de 1888, ele chama de “quanta dinâmicos numa relação de tensão com todos os outros quanta dinâmicos: cuja essência consiste em sua relação com todos os outros quanta, em seus ‘efeitos’ sobre estes” (KSA 13.257, Nachlass/FP 14 [79], da primavera de 1888).24 Certamente, à medida que Nietzsche deriva sua ontologia causal a priori da potência causal da volição, ele intencionalmente fornece precisamente o que noutro lugar nega que possa ser fornecido – isto é, uma determinação a priori da realidade – precisamente da forma em que noutro lugar ele rejeita – ou seja, ao estender à realidade uma pressuposição psicológica primitiva acerca da atividade que ele considera errônea. De fato, como indica com seu comentário parentético sobre a segunda premissa de seu argumento em Para Além de Bem e Mal ser “justamente nossa crença na própria causalidade”, ele consistentemente alega que qualquer “explicação” de um evento em termos de potências causais reflete a crença errada de que uma ação de um agente seja determinada pela potência causal de sua escolha consciente, assim como qualquer atribuição de potências causais a uma “coisa” substancial reflete a crença errada de que a escolha e sua potência possam ser atribuídas a 24 Dentre as muitas outras notas similares de meados ao final da década de 1880, ver KSA 12. 383, Nachlass/FP 9 [91], do outono de 1887 e KSA 13. 261, Nachlass/FP 14 [82] e [121], da primavera de 1888. Em GM/GM, II, 12, KSA 5. 313 Nietzsche afirma essa ontologia a respeito dos eventos orgânicos e estende o “orgânico” de modo a incluir as práticas sociais humanas, enquanto em GM/GM, III, 11 e 18, KSA 5. 361 ele esclarece os “ideais ascéticos” nesses termos. Ver também GM/GM, I, 13, KSA 5. 278 e as alegações gerais em JGB/BM 23, KSA 5. 38 e AC/AC 2, KSA 6. 170. 370 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche uma “vontade” substancial (JGB/BM 36, KSA 5. 54).25 Mesmo em suas abordagens posteriores acerca do idealismo kantiano, Nietzsche permanece indeciso – neste caso, entre sua afirmação de uma realidade acessível a e passível de juízo por nossas capacidades perceptivas e conceituais ordinárias e sua ontologia da causação como “vontade de potência”. Entretanto, essa abordagem hesitante acerca das concepções kantianas de juízo possibilita uma abordagem mais fecunda acerca de Kant do que das críticas de Nietzsche à noção de uma realidade inacessível, pois isso diz respeito a assuntos importantes relativos à própria consideração de juízo por Kant. Em particular, como Spir, Kant considera que um juízo consistir na aplicação normativa de um conceito a um objeto e, assim, suscita o problema de como a experiência sensível poderia ser admitida num juízo, uma vez que tal experiência pareceria ter um papel causal, mais do que normativo, na explicação de um juízo. A solução de Kant, alegar que a imaginação fornece critérios para a aplicação de conceitos à experiência sensível, é notoriamente insatisfatória. Assim como Teichmüller, Kant também alega que um juízo deve se referir a um “Eu”, entendido como um ser não-empírico, uma reivindicação que suscita questionamentos significativos sobre a natureza e o papel do sujeito no conhecimento de um objeto. A crítica de Nietzsche a Teichmüller e seus esforços para formular uma ontologia sem sujeitos substanciais pode ser tomada como resposta a tais questionamentos. Além disso, o tratamento de Nietzsche da coisidade e causalidade 25 Assim, Nietzsche não embasa sua ontologia da “vontade de potência” nem sobre evidência meramente empírica ou sobre compromissos normativos, nem sobre postulados metafísicos básicos, mas, antes, numa premissa empírica que considera falsa. Sobre uma leitura contrastante, ver Doyle 2004 e 2009: cap. 4-5, esp. 115-21. Nietzsche elabora sua crítica às “explicações” casuais em GD/CI, A “Razão” na Filosofia, 5, KSA 6. 77 e Os Quatro Grandes Erros, 3, KSA 6. 90 e também em FW/ GC 112 e 127, KSA 3. 472, JGB/BM 12, 14, 17 e 21-23, KSA 5. 26 e GM/GM, I, 13, KSA 5. 278, ecoando as alegações feitas por Teichmüller e Liebmann, dentre outros. Sobre essas alegações, ver Orsucci 1997: 57-63. cadernos Nietzche 29, 2011 371 Bailey, T. diz respeito a uma outra das preocupações primárias de Kant, a saber, defender contra as objeções empíricas a ideia de que os objetos de juízo consistem, no final das contas, em substâncias em relações causais. Ao igualmente criticar tal ideia como um erro de “razão” que reflete uma psicologia primitiva e ao oferecer uma alternativa nos termos da “vontade de potência”, Nietzsche discutivelmente responde a uma preocupação muito semelhante. Ao se dedicar mais rigorosamente a seu tratamento das concepções de juízo do que a suas críticas à noção de uma realidade inacessível, a abordagem posterior de Nietzsche acerca do idealismo kantiano poderia, então, ser apresentada como não apenas mais rica, mas também como mais impressionantemente relacionada ao idealismo do próprio Kant. II. Nietzsche e a ética kantiana As objeções não convincentes de Nietzsche As abordagens de Nietzsche acerca da ética kantiana estão concentradas quase exclusivamente em suas obras e notas dos anos 1880 e são menos marcadas pelas leituras secundárias particulares do que suas abordagens acerca do idealismo kantiano26. 26 Além das partes relevantes dos textos de Fischer, Hartmann, Lange, Schopenhauer e Überweg mencionada nas notas 4, 6-9 e 17 acima, as leituras de Nietzsche sobre a ética de Kant incluiram Über das Fundament der Moral / Über die Grundlage der Moral, de Schopenhauer, as quais ele leu em 1884. Ver Campioni et al 2003: 554 e Brobjer 2008: 32, 38 e 226 e n. 89, p.38. A série de citações, resumos e discussões de passagens de Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Kritik der praktischen Vernunft, Kritik der Urteilskraft, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, Die Metaphyik der Sitten and Der Streit der Fakultäten, de Kant, em KGW VIII:1 7 [4] (final de 1886 - primavera de 1887) derivam não de leituras de primeira-mão desses textos, mas de uma releitura de Immanuel Kant und seine Lehre, de Fischer. Ver Brobjer 2001: 421, 2003: 65 e n. 42 e 2008: 38 e n. 87, p. 38. 372 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche Ele geralmente trata da ética kantiana como sintomática de uma crise mais ampla da moral moderna e do valor moral de igualdade, em particular. De fato, suas alegações mais comuns a respeito da ética kantiana são que ela afirma acriticamente tais valores modernos e que explora a noção de uma realidade inacessível para os proteger da crítica empírica. Em Para Além de Bem e Mal, por exemplo, Kant é apresentado como um moralista acrítico que, com sua noção de um “imperativo categórico”, deseja mostrar que “o que é nobre sobre mim é que posso obedecer – e isso não deveria ser diferente para você do que é para mim”, enquanto no prefácio de 1886 em Aurora, Nietzsche escreve que Kant “para abrir espaço para seu ‘reino moral’, ele se viu obrigado a anexar um mundo indemonstrável, um ‘além lógico [...] tornar o ‘reino moral’ invulnerável, de preferência ainda, invulnerável à razão” (JGB/BM 187, KSA 5.107, M/A, P, 3, KSA 3.12)27. Contudo, não está claro que as críticas gerais de Nietzsche à moral moderna oferecem mais expectativa de uma abordagem fecunda acerca da ética kantiana. Pois mesmo se as noções kantianas de igualdade, liberdade e razão são “morais” no sentido pejorativo de Nietzsche, as críticas gerais de Nietzsche à moral – de seu “ressentiment” ou ascetismo, por exemplo, ou sua obstrução de indivíduos “superiores” – têm pouca relevância para os argumentos e preocupações de Kant.28 27 Ver também VM/OS 27, KSA 2. 391, WS/AS 216, KSA 2. 650, M/A 142, 197, 207 e 481, KSA 3. 133, FW/GC 193 e 335, KSA 3. 504, JGB/BM 5, 11, 186, 188 e 210212, KSA 5. 18, GM/GM, III, 12 e 25, KSA 5. 363, WA/CW 7, KSA 6. 26, GD/CI, A “Razão” na Filosofia, 6, Como o “Verdadeiro Mundo” Acabou por se Tornar em Fábula e Incursões de um Extemporâneo, 1, 16, 29 e 42, KSA 6.78, AC/AC 10, 12, 55 e 61, KSA 6. 176 e EH/EH, Considerações Extemporâneas, 3 e O caso Wagner, 2 e 3, KSA 6. 319. 28 Isso também vale para leituras que alegam que, com sua crítica às entidades e qualidades “ultra-mundanas”, Nietzsche supera os dualismos da filosofia moral de Kant e incita à afirmação do que supostamente permanece, um reino “este-mundano” de impulsos ou “vir-a-ser”. Ver, por exemplo, Deleuze 1962: 102-108, Ansell-Pearson 1987: 310-339, Müller-Lauter 1995: esp. 25-27 e Simon 2000. cadernos Nietzche 29, 2011 373 Bailey, T. Além disso, nas duas passagens publicadas em que Nietzsche procede para além de tais alegações gerais sobre a “moral” kantiana para fazer objeções específicas à ética kantiana, suas objeções não são convincentes. Na primeira, uma seção de A Gaia Ciência intitulada “Viva a física!”, ele insiste que requerer que todos façam a mesma coisa nas mesmas circunstâncias seja um tipo “cego, mesquinho e despretensioso” de “egoísmo” e que é impossível julgar nossas razões pela ação, uma vez que as ações e circunstâncias experimentadas são sempre mais singulares do que aquelas identificadas pelas razões. Na outra passagem, uma seção em O Anticristo, ele alega que um juízo moral kantiano considera “o prazer como uma objeção” e é, portanto, “prejudicial” ou “perigoso à vida”. E em ambas as passagens ele conclui que, em vez de realizar juízos morais kantianos, devemos cultivar nossas próprias particularidades e criatividade: em “Viva a física!”, ele alega que, diferentemente de Kant, “queremos tornar-nos aqueles que somos – os novos, os únicos, os incomparáveis, os legisladores de si mesmos, os criadores de si mesmos!”, enquanto em O Anticristo ele insiste que “(uma) virtude deve ser invenção nossa, nossa autodefesa e necessidade mais pessoal” e que “cada um deveria inventar sua virtude, seu imperativo categórico” (FW/GC 335, KSA 3. 560, AC/AC 11, KSA 6.177). Essas objeções entendem mal a natureza de um juízo moral kantiano. Primeiramente, Kant não tenciona que um juízo moral simplesmente sustente o que todo agente deve ou não fazer nas mesmas circunstâncias, um juízo que, de fato, poderia ser feito sobre bases “autocentradas” ou em prol de qualquer necessidade ou querer contingentes de qualquer agente. Pelo contrário, ele tenciona que um juízo moral seja “universal” num sentido mais forte, que excluiria tais bases particulares ao se referir especificamente às bases morais e incondicionais, àquelas que ele frequentemente 374 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche descreve como o objeto de um tipo moral distinto de “respeito”.29 Nietzsche aprecia melhor este senso de universalidade na seção de O anticristo, onde descreve as bases de um juízo moral kantiano não como “autocentrado”, mas como “‘o bom em si’, bom com o caráter de impessoalidade e universalidade” e como “um sentimento de respeito pelo conceito de ‘virtude’” (AC/AC 11, KSA 6.177). Mas ao insistir que o juízo moral kantiano assim considera “o prazer como uma objeção”, ele ainda é injusto com Kant, pois este concede que o que é moralmente bom pode coincidir com a satisfação de necessidades ou quereres contingentes, bem como que tais necessidades ou quereres sejam levados em conta à medida que são relevantes às questões morais e até considera que a conquista da própria bondade moral proporciona seu próprio tipo de “prazer”.30 Além do mais, em relação aos juízos de nossas razões para a ação, Kant admite que as razões sejam indeterminadas e que não possamos, consequentemente, julgar ações passadas pelas razões pelas quais elas pudessem ter sido realizadas. Mas ele insiste que essa indeterminação não impede a prescrição de ações futuras de acordo com as razões e que, nisso, um nível suficiente 29 A diferença entre estes dois sentidos de “universalidade” tem influenciado muito os comentadores de Kant, uma vez que Kant tem sido pensado por alguns como bem sucedido em justificar apenas o sentido mais fraco. Ver, por exemplo, Allison 1996b: 143-147 e 150-154 e Wood 1999: 48 e 81-82. A objeção de Nietzsche aqui ecoa aquela em Schopenhauer 1841: pt. II, §7 e 1844: App.. 30 Uma interpretação mais indulgente acerca da concepção da ação “por dever” em Kant é que agir “por dever” é fazer o que é moralmente exigido porque o é moralmente exigido e, assim, sem restrição a se fazer o que é moralmente exigido também coincide com a satisfação de inclinação. Ver, em particular, a discussão em Kant 1785: 397-399. O emprego, por Kant, de suas fórmulas para deduzir deveres, indica que ele considera a satisfação de necessidades ou quereres contingentes como moralmente significativas à medida que elas são relevantes para os problemas “universais” expressos por suas fórmulas. Ver, por exemplo, seu argumento para um dever de beneficência em Kant 1797/1798: 453. Finalmente, ao menos nos textos posteriores, ele distingue entre (des)prazer na (in)satisfação de uma inclinação e (des)prazer na (falta de) cumprimento de exigências morais. Ver Kant 1790: 178-179 e 207-209, 1793: 283-284 e 1797/1798: 211-213, 378 e 399-400. cadernos Nietzche 29, 2011 375 Bailey, T. de determinação possa ser atingido através da qualificação mútua de razões diferentes para a ação – uma possibilidade que Nietzsche não considera.31 Finalmente, a proposta de Nietzsche de que, em vez de realizar juízos morais kantianos, cultivamos nossas próprias particularidades e criatividade está de igual modo longe das preocupações de Kant. Por mais que a “autonomia” seja frequentemente considerada um problema caracteristicamente “kantiano”, propor que considerações de universalidade ou igualdade devam ser rejeitadas em nome de uma particularidade ou criatividade de um agente – em que, assim, “nos tornamo quem somos” – é claramente um bocado alheio à concepção de Kant de juízo moral.32 A ética kantiana de Nietzsche Para revelar bases mais persuasivas para a crítica de Nietzsche à ética kantiana, é necessário considerar algumas outras passagens nas quais, embora Kant não seja explicitamente mencionado, o próprio Nietzsche decididamente desenvolve as noções “kantianas” de autonomia e igualdade. Particularmente significativo a esse respeito é uma série de seções no começo do segundo ensaio de Genealoga da Moral. Lá Nietzsche apresenta o que chama de “indivíduo soberano” como um agente – ou seja, um ser capaz de “querer” 31 Ver, em particular, Kant 1785: 407-408 e 1797/1798: 390. Kant também admite que não agimos sempre por razões, em Kant 1790: 380 e 1789-1790: 196, 17921793/1794: n. para 29, 1797/1798: 407-408 e 1798b: 251-275. Sobre algumas discussões acerca da apresentação da objeção de Nietzsche na seção 355 de A Gaia Ciência, ver Bailey 2006: 256-260. 32 Entretanto, alega-se frequentemente que Nietzsche rejeita as noções kan- tianas de igualdade ou universalidade em nome do desigual ou particular, geralmente entendido nos termos da “autonomia” de um agir do indivíduo de acordo com impulsos ou desejos particulares ou singulares que ele mesmo tenha descoberto, organizado ou criado. Ver, em particular, Owen 1994: cap. 1-4, 1995: 87-90 e 1999: 3-11, Ridley 1998: 1-11 e 69-72, May 1999: 13 e Dudley 2002: 3-8, 123-212 e 227-230. 376 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche suas ações – cuja “medida de valor” é precisamente a habilidade de desejar, de tal forma que “olhando para os outros a partir de si, ele honra ou despreza” ao distinguir “seus iguais” em atividade daqueles de menor atividade e “afirma-se” como capaz de um certo grau de atividade . Assim, escreve Nietzsche, o “indivíduo soberano” é distintamente “autônomo” (GM/GM, II, 2, 3, KSA 5. 293). É plausível supor que com isso Nietzsche apresenta um exemplo particular da ética “nobre” que ele apresenta no primeiro tratado de Para uma Genealogia da Moral e em Para Além de Bem e Mal. Tal ética identifica as “boas” e as “más” ações com aquelas realizadas pelos exemplares agentes “bons” e “maus”, e identifica agentes “bons” e “maus” através de uma característica distintiva – tal como seu ser “aloirado”, um “guerreiro” ou “verídico” – o qual se supõe conceder “bondade” ou “maldade” a suas ações. Ações “boas” e “más” são determinadas, e agentes motivados a realizar “boas” ações e a não realizar “más” ações, por meio de uma demonstração e de uma medida constantes, criativas e mútuas da característica de concessão-de-“bondade” relevante, uma prática a que Nietzsche frequentemente se refere como “retribuição [Vergeltung]”33. Em sua consideração acerca do “indivíduo soberano”, Nietzsche então pareceria considerar a atividade mesma como uma característica-que-concede-bondade, que deve ser continuamente demonstrada em ações julgadas pelos outros como o correto a se fazer. 33 Sobre a abordagem de Nietzsche acerca da ética do “bom e mau”, ver, em particular, JGB/BM 259, 262, 263, 265, 272 e 287, KSA 5. 207 e GM/GM, I, 10 e 11, KSA 5. 270. Marcadamente, das dez seções de seus primeiros textos aos quais Nietzsche se refere em GM/GM, P, 4, KSA 5. 250 como prefigurando reivindicações feitas em Genealogia da Moral, seis apresentam sua noção de retribuição em algum detalhe e uma delas é uma de duas seções sucessivas de Aurora, a qual apresenta longas análises acerca da “retribuição”, precisamente nos termos da atividade. Ver MA I/ HH I, 45 e 92, KSA 2. 67, WS/AS 22, 26 e 33, KSA 2. 555 e M/A 112, KSA 3. 100 e também MA I/HH I, 44, KSA 2. 66 e M/A 133, KSA 3. 102. cadernos Nietzche 29, 2011 377 Bailey, T. Se assim é, então a “autonomia” que Nietzsche afirma contra a concepção de juízo moral de Kant não precisa se referir ao cultivo de particularidade ou criatividade proposto em “Viva a física!” e na seção de O Anticristo, um problema de insignificância moral fundamental para Kant. Antes, o “indivíduo soberano” de Nietzsche afirma a atividade como tal e em geral como o valor mais alto e incondicional, e assim um sentido da importância moral igual ou universal da atividade que nega qualquer importância moral fundamental às contingências dos agentes ou, certamente, a qualquer outro valor que a atividade. A esse respeito, pois, ele segue Kant, à medida que Kant também considera o valor moral como expressando a “autonomia” de vontade ao tratar a própria atividade como o valor mais alto e incondicional – nos termos de suas fórmulas, ele considera que o valor moral consiste em querer o que se pode querer que se torne “uma lei universal”, sempre tomando a vontade como um “fim” e não meramente como um “meio”, e a “autonomia” de uma vontade é, assim, “dar a lei a si mesma”.34 A autonomia e a igualdade expressas pelo “indivíduo soberano” de Nietzsche são, dessa forma, profundamente kantianas. Crucialmente, contudo, enquanto afirma a igual importância moral da atividade, o “indivíduo soberano” também é sensível às variações na atividade através dos agentes e ao longo do tempo. De fato, é isso que torna necessário sua demonstração e medida constantes da habilidade de querer, com base na qual ele distingue seus “iguais” dos outros. Enquanto compartilha com Kant a afirmação da atividade, pois, o “indivíduo soberano” não respeita a universalidade requisitada pelo juízo moral kantiano, uma vez que ao admitir graus diferentes de atividade ele admite graus diferentes de importância moral entre os agentes. Nietzsche enfatiza isso quando insiste que o “indivíduo soberano” é “autônomo supramoral 34 Kant 1785: 421, 429, 433, 431. 378 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche (pois ‘autônomo’ e ‘moral’ se excluem”, uma vez que lá ele iguala a “moral” com o tratar os agentes como “uniformes, de igual pra igual” (GM/GM II 2, KSA 5.293).35 Sua ética kantiana, portanto, difere da do próprio Kant ao admitir graus diferentes de atividade e, consequentemente, de importância moral entre os agentes.36 As seções sobre o “indivíduo soberano” fornecem, assim, uma explicação alternativa da rejeição de Nietzsche à ética kantiana àquela dada em “Viva a física!” e na seção de O Anticristo. Ou seja, por “indivíduo soberano” a ética kantiana acertadamente considera a própria atividade como o valor mais alto e incondicional, mas falha ao não considerar que a atividade mesma varia em graus. De fato, a proposta de Nietzsche de nos tornarmos “os legisladores de si mesmos”, em “Viva a física!” ou de que “cada um deveria inventar sua virtude, seu imperativo categórico”, em O anticristo, poderia ser relida sob esta luz – ou seja, como apelando não à particularidade ou criatividade como tais, mas às demonstrações de graus de atividade entre “iguais” na atividade. A isso pode ser objetado que Nietzsche queira dizer “atividade” num sentido substancialmente diferente de Kant. Pois ele nega que ações possam ser explicadas ou prescritas de acordo com razões, que um agente consiste numa “vontade” substancial e que suas ações são causadas por sua escolha consciente. Ele também rejeita a espontaneidade contra-causal do “livre-arbítrio” e o sentido super-inflado de responsabilidade com que a associa – a saber, 35 Que Nietzsche empregue a palavra ‘sittlich’, ao invés de ‘moralisch’, para “moral”, aqui, não implica que ele considere ser o “indivíduo soberano” livre apenas da primitiva “moral do costume [Sittlichkeit der Sitte]”, sob a qual ele alega que a atividade se desenvolve, e nem da moral moderna, à qual ele geralmente se refere como “Moral” ou “Moralität”. Pois ele considera o tratamento dos agentes como “uniforme, de igual pra igual” persistir na moral moderna e, na verdade, frequentemente se refere à igualdade kantiana como exemplificadora disso. Ver MA I/HH I, 96-99, KSA 2. 92, M/A 9, KSA 3. 21 e JGB/BM 187 e 188, KSA 5. 107, por exemplo. 36 Apresento uma discussão mais aprofundada acerca dessa ética “kantiana” em Bailey 2003: 14-21 e 2006: 254-256. cadernos Nietzche 29, 2011 379 Bailey, T. aquele que assegura o agente como único responsável não apenas por todo seu comportamento, mas também, como Nietzsche coloca em Crepúsculo dos Ídolos, “por em geral estar aí, por ser assim e assim, por estar sob essas circunstâncias, nesse meio” (GD/CI, Os Quatro Grandes Erros, 8, KSA 6.96).37 De fato, ele frequentemente se refere a Kant como afirmando tais sentidos de “livre-arbítrio” e responsabilidade. Mas Nietzsche, entretanto, compartilha da concepção básica kantiana da atividade como ação que não é determinada pelas experiências e desejos imediatos: enquanto Kant define a atividade como ação motivada que é “livre” no sentido de que “pode [...] ser afetada, mas não determinada por impulsos”, Nietzsche apresenta a atividade do “indivíduo soberano” como consistindo na habilidade de “esquecer” e, assim, “digerir” experiências e desejos, que confere “uma pequena tabula rasa de consciência” e uma habilidade oposta de fazer e manter uma promessa, ou “um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade”, a qual constitui uma “rara liberdade” e “o privilégio extraordinário da responsabilidade”.38 Ao afirmar essa concepção kantiana básica de atividade, Nietzsche não segue Kant em pensar que tal “liberdade” também requer a espontaneidade contra-causal ou assegura o “indivíduo soberano” responsável num sentido super-inflado – ele o considera ser “livre” simplesmente para querer sem ser determinado à ação por experiências e desejos imediatos, e “responsável” simplesmente pelas ações que quis. Ele também não segue Kant em se concentrar em razões ou contradizer suas próprias críticas 37 Sobre as críticas de Nietzsche à espontaneidade contra-causal e à responsabilidade super-inflada associadas ao “livre-arbítirio”, ver também JGB/BM 21, KSA 5. 35, GM/GM, I, 13 e II, 4, KSA 5. 278 e GD/CI, Os Quatro Grande Erros, 7 e 8, KSA 6. 95. 38 Kant 1797/1798: 213, GM/GM, II, 1 e 2, KSA 5. 291. Sobre a concepção de atividade em Nietzsche, ver também JGB/BM 19 e 230, KSA 5. 31 e GD/CI, O que falta aos alemães, 6, KSA 6. 108, e sobre este aspecto particular da concepção de atividade em Kant, ver também Kant 1797/1798: 211. 380 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche acerca da suficiência de razões ou “vontade” para prescrever ou explicar as ações, embora, enquanto estendendo a atividade ao não-racional e não-consciente, ele conserva um papel causal parcial para o raciocinar e o escolher conscientes – ou seja, para as várias habilidades auxiliares a que se refere coletivamente, como aquelas de ser “capaz de calcular, contar” (GM/GM II 1, KSA 5. 291). Também pode ser objetado que a ética kantiana que Nietzsche expressa com sua consideração do “indivíduo soberano” seja um caso isolado ou excepcional. Porém, isso informa bastante de sua ética noutros lugares. Isso é particularmente claro em seu tratamento da justiça, no segundo tratado de Para uma Genealogia da Moral, no qual, depois de apresentar a consciência do indivíduo soberano acerca da habilidade de querer como “uma verdadeira consciência de potência e de liberdade” e uma “consciência de [...] potência sobre si mesmo e o destino”, ele esclarece as origens da “justiça” em termos de “potência”, precisamente neste sentido. Em particular, ele escreve que a “justiça” se origina na “boa vontade, entre os que têm potência mais ou menos igual, de se acomodarem uns aos outros, de, por meio de um igualamento, voltarem a se ‘entender’ – e, em referência aos que têm menos potência, coagi-los, abaixo de si, a um igualamento” (GM/GM, II, 2 e 8, KSA 5. 293).39 Para Nietzsche, então, a justiça consiste nos “equilíbrios” que demonstram graus aproximadamente iguais da habilidade de querer entre “iguais” nesse sentido, e na desigualdade deles em relação àqueles de maior ou menor habilidade de querer. De fato, em Crepúsculo dos Ídolos, seus inúmeros comentários em louvor das distinções sociais “nobres” e contra o ideal político moderno de “igualdade” são acompanhados da seguinte explicação: 39 Além das três passagens referidas em GM/GM, Prólogo, 4, KSA 5. 250 a esse respeito, MA I/HH I, 92, KSA 2. 89, WS/AS 26, KSA 2. 560 e M/A 112, KSA 3. 100, ver também WS/AS 22 e 33, KSA 2. 555, JGB/BM, 259, KSA 5. 207, GM/GM, II, 4-7, 9-11, KSA 5. 297, e KSA 12. 221, Nachlass/FP 5 [82], do verão de 1886 – outono de 1887. cadernos Nietzche 29, 2011 381 Bailey, T. “A doutrina da igualdade! ... Mas não existe veneno mais venenoso: pois ela aparece ser louvada pela própria justiça, enquanto é o término da justiça... ‘Igual para os iguais, desigual para os desiguais’ – esta seria a verdadeira voz da justiça: e o que segue dela ‘Nunca nunca faz iguais os desiguais’” (GD/CI Incursões de um Extemporâneo 48, KSA 6.150).40 Um outro exemplo da ênfase de Nietzsche na demonstração da atividade é dado em seu tratamento sobre o amor. Por exemplo, duas seções sucessivas de A gaia ciência apresentam tipos diferentes de amor – benevolência, compaixão, cortesia, amor sexual e amizade – como indicadores de níveis relativos de dependência entre agentes e de suas diferentes preferências a respeito desses níveis. Em particular, tipos benevolentes de amor são apresentados como relações de dependência entre aqueles desiguais na independência, e, logo, como valorados [valued] por aqueles que dependem de outros ou desejam manter a dependência de outros em relação a si, enquanto outros tipos de amor são apresentados como relações de independência entre os aproximadamente iguais na independência. Daqueles que preferem os últimos tipos de amor, Nietzsche escreve aprobativamente que “para com aquele que sofre são frequentemente duras, pois este não é digno de seu esforço e de seu orgulho – mas se mostram tanto mais atenciosas para com os iguais, com os quais um combate e luta seriam, em todo caso, honrosos, se alguma vez se encontrasse uma ocasião para isso” (FW/GC 13, KSA 3.384).41 Que a independência e igualdade com as quais Nietzsche se preocupa aqui sejam questões de atividade é indicado por uma série de seções posteriores no livro, nas quais ele critica os relacionamentos amorosos tradicionais, por sua subordinação das 40 Ver também Za/ZA, II, Das Tarântulas, KSA 4. 128, JGB/BM 202 e 272, KSA 5. 124, FW/GC 356 e 377, KSA 3. 595, GD/CI, Incursões de um Extemporâneo, 37, KSA 6. 136 e AC/AC 43 e 57, KSA 6. 217. Para uma leitura da filosofia política de Nietzsche nestes termos, ver Bailey 2010b e 2011. 41 Ver também GS 14 FW/GC 14, KSA 3. 386. 382 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche “vontades” das mulheres. Em tais relacionamentos, escreve ele, “o jeito do homem é a vontade; o jeito da mulher é a disposição vontade”, ao passo que “a capacidade [... e] a boa vontade para a vingança” são necessárias se uma mulher “for capaz de nos segurar (ou de nos ‘subjugar’, como ele diz)”, e ser “capaz e pronta para o domínio sobre os homens” é necessário se as mulheres tiverem “almas altivas, heróicas e régias” (FW/GC 68-70, KSA 3. 427). Esses comentários sugerem fortemente que é a atividade que Nietzsche pensa ser aproxidamente igual e demonstrada em relacionamentos amorosos ideais, de forma a impedir formas dependentes de amor.42 As passagens sobre o “indivíduo soberano” em Para uma Genealogia da Moral fornecem, portanto, um indício para uma abordagem crítica mais fecunda da ética kantiana do que oferecem as objeções explícitas de Nietzsche, o que também informa muito de sua ética alhures. Em particular, essa abordagem implica que, em vez de rejeitar completamente a ética kantiana, Nietzsche partilha de sua afirmação sobre o valor da atividade como tal, mas insiste que ela concebe mal a igualdade entre agentes porque falha ao não considerar que a atividade mesma e, por conseguinte, a importância moral dos agentes são uma questão de grau. As melhores críticas de Nietzsche à ética kantiana confirmam-se, assim, igualmente implícitas e internas. Conclusão As observações reprovadoras de Nietzsche a Kant e sua falta de leitura dos próprios textos kantianos, consequentemente 42 Para uma apresentação mais detalhada dessa leitura dos tratamentos do amor em A Gaia Ciência, acompanhada de uma leitura correspondente dos encontros de Zarathustra com os “homens superiores” em Za/ZA, IV, Do Homem Superior, KSA 4. 356, ver Bailey 2010a. cadernos Nietzche 29, 2011 383 Bailey, T. obscurecem abordagens sofisticadas acerca de ambos o idealismo e a ética kantianos, abordagens que são dinâmicas e frequentemente implícitas, mediadas por fontes secundárias, por fim irresolutos e apenas problematicamente aplicáveis a Kant mesmo. Em particular, as abordagens profundas de Nietzsche acerca do idealismo kantiano, de meados dos anos 1860 a meados dos anos 1870, combinam um interesse em seu potencial terapêutico ou benefícios culturais, enfatizados em seus escritos publicados nesse período, com uma investigação das dificuldades teóricas, desenvolvida em seus escritos não publicados, não obstante sem chegar a conclusões definitivas. Em suas últimas obras publicadas, ele procede rejeitando explicitamente o idealismo kantiano, não apenas pela incoerência conceitual, insignificância epistemológica e funções psico-físicas e culturais suspeitas acerca de sua noção de uma realidade inacessível, mas também pela ontologia injustificada e psicologia primitiva de suas noções de juízo. Entretanto, ele também reformula com precisão tanto o argumento das noções kantianas de juízo que ele diagnostica, quanto esclarece sua própria ontologia da “vontade de potência”. De fato, em seus aspectos igualmente críticos e reformadores, seu tratamento das noções kantianas de juízos parece mais pertinente às preocupações do próprio Kant do que suas críticas à noção de uma realidade inacessível. Em suas obras tardias, ele também aborda a ética kantiana, não somente ao propalar algumas objeções não convincentes acerca dela, mas também ao desenvolver distantamente uma ética “kantiana” a seu próprio modo – a qual, enquanto partilhando o valor kantiano de atividade como tal, difere de Kant ao insistir em graus diferentes de atividade e, assim, de importância moral. Dessa maneira, ele oferece uma promissora crítica interna de Kant. A respeito de seu idealismo e sua ética, portanto, Nietzsche oferece uma série de abordagens críticas intensas, progressivas e sutis acerca de Kant. 384 cadernos Nietzche 29, 2011 A psicologia moral minimalista de Nietzsche Abstract: This article explores Nietzsche’s engagements with Kantian idealism and Kantian ethics. After considering his inconclusive early engagements with Kantian idealism, the paper argues that in later rejecting Kantian idealism Nietzsche affirms, rather than denies, that reality is accessible to us and also overcomes his previous Kantian denial that we can make judgments about this reality. The paper then argues that Nietzsche’s explicit criticisms of Kantian ethics are unconvincing, but that he also developed a ‘Kantian’ ethics of his own. The paper thus attempts to show that neglected elements of Nietzsche’s engagements with Kant are more fruitful than those commonly emphasised. Keywords: Nietzsche – Kant - neo-Kantianism – idealism – ethics - will referências bibliográficas ALLISON, H.E. Kant’s Transcendental Idealism: An Interpretation and Defense. 1st ed./2nd ed., London: Yale University Press, 1983/2004. ____________. ‘On a Presumed Gap in the Derivation of the Categorical Imperative’. 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Assim, enquanto na Segunda Consideração Intempestiva a vida é escamoteada pelo excesso de conhecimento histórico, na Genealogia da moral as forças que julgam e despotencializam a vida se expressam pelas figuras da má consciência e do ressentimento, doenças da memória. No entanto, em ambas as obras Nietzsche recorre a duas estratégias próximas para pensar a superação do niilismo: através do acesso ao elemento a-histórico e intempestivo que libera o conhecimento dos grilhões do passado, e pelo esquecimento ativo capaz de livrar a consciência das amarras do ressentimento e da culpa. Nestas obras, o signo da saúde de uma cultura e da potência elevada da vida consiste em que o homem possa se instalar no presente e projetar-se no porvir, isto é, no ponto em que a história e a memória se expressem ativamente como crença no futuro. Palavras-chave: História – Memória – Esquecimento – Niilismo Cultura A. Estava eu doente? Estou agora são? Quem foi o meu médico? Como pude esquecer tudo! B. Agora sim, creio que está são: Pois sadio é quem esquece (FW/CG 4, KSA 3.354). * Professor do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes – UCAM. E-mail: [email protected] cadernos Nietzche 29, 2011 395 Melo, D. A. S. Introdução O problema da memória e do esquecimento foi tratado explicitamente por Nietzsche em duas obras separadas no tempo por cerca de 14 anos. Na Segunda consideração intempestiva, este problema é tratado a partir das análises da história, aparecendo sob os termos do “histórico” e do “a-histórico”. Nesta obra, Nietzsche realiza uma crítica ao historicismo de sua época, dominado pelo racionalismo moderno, denunciando o excesso de conhecimento histórico como uma doença da modernidade. O homem moderno volta-se para o excesso de conhecimento histórico ao buscar compreender racionalmente o real, de modo a se afastar cada vez mais, da ação e da vida. Ou seja, ao tomar a Vida como o principal critério de avaliação, Nietzsche pensa a hegemonia da ciência histórica como uma negação do real, da vida. Na segunda dissertação da Genealogia da moral, Nietzsche trata da emergência da memória a partir de relações de forças dada a necessidade do convívio social. Neste livro, Nietzsche mostra como o homem era um animal esquecidiço e que, por meio da violência, foi adestrado para poder responder por suas ações no seio de suas relações sociais. Nietzsche localiza este processo na pré-história da cultura, pois o objetivo aí seria a constituição de um tipo ativo ou nobre de homem, de um homem capaz de fazer promessas e para isso, dotado de memória. No entanto, no decurso desse processo, ocorreu uma virada na qual Nietzsche denuncia um domínio de forças reativas. Esta inversão da força dará início ao que Nietzsche denominou como a miséria da humanidade, o niilismo. Sob o domínio deste, o homem desenvolve uma memória vinculada excessivamente ao passado, e passa a representar a fonte das duas grandes doenças da humanidade: a má consciência e o ressentimento. A nossa proposta aqui, portanto, será acompanhar o desenvolvimento que Nietzsche realiza na Genealogia da moral, articulando as noções de memória e esquecimento com as análises históricas de sua Segunda consideração intempestiva, pois acreditamos que 396 cadernos Nietzche 29, 2011 História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche nesta obra já se encontram, em forma embrionária, alguns conceitos que ganharão maior consistência naquela de 1887. Memória e esquecimento na pré-história da cultura A história da cultura ocidental irá coincidir, para Nietzsche, com o triunfo das forças reativas associadas à vontade de nada, cujo primeiro modelo foi o niilismo negativo, associado à emergência do cristianismo e dos valores do além-mundo. No entanto, para compreendermos como este triunfo foi possível, é preciso investigar o projeto pré-histórico da cultura que antecedeu o momento da “rebelião escrava da moral”, e cujo objetivo era a produção de um tipo nobre, de um tipo ativo de homem. Tal projeto, portanto, coincide com a necessidade da criação de uma memória como instrumento no processo de adestramento das forças reativas do animal-homem, produzindo um homem capaz de fazer promessas (GM/GM II 1, KSA 5.291). Pois, em sua pré-história, o homem era um animal a-histórico, que agia instintivamente em resposta às suas necessidades orgânicas (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.250). Em seu nomadismo, vagava como um ser esquecidiço e espontâneo, não possuindo qualquer necessidade de previsão, cálculo ou memorização: seus instintos lhe garantiam as condições de sua sobrevivência, era o que lhe bastava. Não havia qualquer necessidade de autocontrole ou autoconhecimento em sua vida errante, nada era retido ou julgado. Ele vivia a-historicamente, pois não possuía memória nem consciência, de modo que assimilava ou digeria ativamente as suas experiências. Esquecer era, portanto, sua condição natural. No entanto, como foi possível criar no bicho-homem uma memória? Por quais meios se produziu uma tal faculdade de reter as experiências? Como fazer desse animal esquecido um ser capaz de fazer promessas? Nietzsche nos diz que foram necessárias as tarefas mais violentas e cruéis para tornar este animal esquecido capaz de fazer e cumprir promessas. Para isso “é preciso ter boa cadernos Nietzche 29, 2011 397 Melo, D. A. S. memória, para poder cumprir as promessas feitas” (MA I/HH I 59, KSA 2.77). Foi por meio da dor, do sofrimento, do sangue, do fogo, do martírio, que se produziu um adestramento dos instintos errantes do homem: tal foi a mnemotécnica pela qual se produziu a interiorização de idéias fixas e inesquecíveis. A produção de hábitos sociais, de leis a que se deve obedecer, a partir da ação do homem sobre o homem, de um trabalho de si por si mesmo foi o meio pelo qual se produziu o processo de hominização. Assim, esse animal no qual o esquecimento é uma força, “desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve prometer” (GM/GM II 1, KSA 5.292). Lembrar é, portanto, a capacidade de resgatar uma experiência passada para agir no presente, para cumprir, no caso, uma promessa ou compromisso feito. Assim, a memória surge ao mesmo tempo que a história, servindo à vida e ao processo de socialização do homem. Ou seja, constituída no seio da necessidade de convívio social, a memória foi produzida como um instrumento por meio do qual se poderia prever as consequências negativas no conjunto social em que o homem está inserido. Com o adestramento dos instintos, a cultura irá se fundar a partir da formação da idéia de responsabilidade, que emerge da relação entre os homens e exige a produção de uma memória social. Esta produção, portanto, é pensada por Nietzsche a partir de uma interpretação de caráter econômico, onde se estabelecem relações contratuais entre aqueles que prometiam, ou seja, que contraiam uma dívida e aceitavam serem cobrados, e seus credores. Dessa forma, Nietzsche nos diz: Precisamente nelas (nas relações contratuais) fazem-se promessas; justamente nelas é preciso construir uma memória naquele que promete. O devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e santidade de sua promessa (...) por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de não pagar algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder, 398 cadernos Nietzche 29, 2011 História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida, (...) o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas (GM/GM II 5, KSA 5.298-299). Nesta relação entre credor e devedor o castigo é o meio de compensação a um dano sofrido, de modo que a qualidade e intensidade do castigo devem ser equivalentes ao dano causado, reforçando as lembranças de que cada um é responsável por suas forças reativas (esquecimento) e que o dano é pago com a dor e o sofrimento; ou seja, “qualquer dano encontra o seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor de seu causador” (GM/GM II 4, KSA 5.298). A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade, de modo que “a equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa – a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, a volúpia de ‘faire le mal pour le plaisir de le faire’, o prazer de ultrajar” (GM/GM II 5, KSA 5.299-300). Assim, a cultura se revela como o exercício de uma atividade formadora cujo produto é o homem livre e ativo, que pode prometer, gerir suas reações, suas forças, de modo que credor e devedor devem tornar-se soberanos e legisladores de si próprios no fim deste projeto. Por outro lado, o castigo representa apenas o meio pelo qual o homem pode medir progressivamente a aptidão das forças reativas de serem acionadas. Dessa forma, este projeto tinha como objetivo formar um tipo ativo de homem cuja atividade seria a de constituir valores que afirmassem a vida, que a exaltasse. No entanto, é preciso que compreendamos o que Nietzsche denominava como vida, que vida era essa que ele pregava a sua afirmação. Na Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche nos diz que a vida é um “poder obscuro, impulsionador, inesgotável que deseja a si mesmo” (HL/Co. Ext. II 3, KSA 1.269). Em outras cadernos Nietzche 29, 2011 399 Melo, D. A. S. palavras, vida significa instinto de dominação, desejo de expansão, vontade de agregação de mais poder, de exploração, enfim, a vida é vontade de potência, é força ativa e atuante, é vontade de perseverar, de repetir-se, criando, para isso, uma memória do futuro. “A vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração” (JGB/BM 259, KSA 5.207). Para Nietzsche, a exploração não é própria de uma vida corrompida, mas faz parte da essência do que vive, como uma função orgânica básica, pois é consequência da própria vontade de potência, que é precisamente vontade de vida. Esse ponto de vista em que se insere o conceito de vontade de potência pressupõe, entretanto, que o plano da realidade seja compreendido não como um conjunto de formas estratificadas, mas como uma pluralidade de forças em relação, cuja tendência seria a dominação, a sujeição de umas sobre as outras. Neste sentido, todo corpo, todo acontecimento que se constitui como fato, deriva de uma tal relação de dominação, que devemos pensar como temporária, já que as coisas existentes não param de mudar, de modo que a manutenção de um determinado domínio de forças é índice de um embate que continua, de uma tensão constante. Devemos, portanto, considerar este plano das forças como o meio microfísico a partir do qual emergem os valores morais, as composições as mais diversas, sejam elas de ordem física, biológica ou social. No entanto, o tipo das forças que dominam uma determinada composição pode ser avaliado como um elemento ativo ou afirmador da vontade, ou como um elemento reativo ou negador da vontade. Enfim, a vontade de potência representa precisamente o “verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação” (FW/CG 349, KSA 3.585). Assim, um corpo vivo, e não moribundo, deverá ter “a vontade de potência encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio – não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas por 400 cadernos Nietzche 29, 2011 História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche que vive, e vida é precisamente vontade de potência” (JGB/BM 259, KSA 5.208). Neste sentido, Nietzsche afirma que “seria preciso saber exatamente qual o tamanho da força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura; penso esta força crescendo singularmente a partir de si mesma, transformando e incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma as formas partidas” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.251). O advento do Niilismo Porém, o meio pelo qual este projeto se constituía foi degenerado, distorcido por forças negadoras da vida, dando origem à primeira forma do niilismo, o niilismo negativo, que se utilizou dos meios constituintes da cultura para criar uma domesticação, uma diminuição, um embotamento das forças transformadoras do homem, um envergonhamento do homem pelo próprio homem, por seus instintos, por seu poder criador. Ou seja, na medida em que uma vida se abstém de toda ofensa, da violência, da exploração mútua, equiparando sua vontade à do outro, sua vontade deixa de ser vontade de afirmação para se definir como vontade de negação da vida. É segundo este princípio, portanto, que tem início a história da humanidade, uma história produzida sob o domínio das forças reativas cuja atividade consiste em negar a própria força vital impulsiva. A vida, enquanto vontade de negação real e efetiva, não se limita a dizer Não, a querer Não, mas também a fazer o Não. É então neste sentido que Nietzsche nos fala desta degeneração da qualidade da vida como a última grande rebelião de escravos, “a grande revolta contra a dominação dos valores nobres”, como uma “tresvaloração de todos os valores em algo hostil à vida, daí a moral... Definição da moral: Moral – a idiossincrasia dos décadents, com o oculto desígnio de vingar-se da vida – e com êxito” (EH/EH, Por que sou um destino 7, KSA 6.373). Assim, no lugar da atividade cadernos Nietzche 29, 2011 401 Melo, D. A. S. que produz a cultura, vemos surgirem Morais, Igrejas e Estados, organizações sociais de caráter reativo cujo objetivo é conservar, produzir uma memória voltada tão somente para o passado. Ou seja, a tarefa da memória, quando dominada pelo niilismo, passa a ser a de organizar e propagar as forças reativas. Assim, quando as forças reativas se apoderam da cultura, os procedimentos de adestramento são utilizados com o objetivo de enfraquecer nos homens sua vontade de expansão da vida, de torná-los sofredores e escravos; enfim, de formar rebanhos. Sob este domínio, a relação credor-devedor ganha uma outra configuração, na qual o devedor recebe um estatuto de “infrator”. Dessa forma, não bastando apenas ser castigado para quitar sua divida finita, o devedor sofre um processo de “interiorização” do dano causado, transposto na forma de sentimento de culpa. De tal modo que, além de sua dívida material, o devedor passa agora a carregar consigo uma “dívida infinita”. O niilismo negativo representa o momento em que se instaura o poder religioso, pois ele inverte as relações e os valores dos meios de produção da cultura, cria o ressentimento e a má consciência, e instaura a vontade de um além-mundo. Na relação entre os homens, é colocada a falta no lugar da dívida, que faz o devedor se sentir culpado pelo dano cometido, torna o homem inapto a agir suas próprias forças, de modo que ele deve se envergonhar delas e escamoteá-las, deve ter nojo de sua crueldade e de seus instintos. Vemos, portanto, que a crueldade não se extinguiu nesta primeira forma do niilismo, mas tornou-se espiritualizada e divinizada, foi transposta para a consciência através das noções de culpa, pecado, juízo final etc. Dessa maneira, Nietzsche nos diz que “quase tudo a que chamamos ‘cultura superior’ é baseado na espiritualização e no aprofundamento da crueldade – eis a minha tese; esse ‘animal selvagem’ não foi abatido absolutamente, ele vive e prospera, ele apenas – se divinizou” (JGB/BM 229, KSA 5.166). Os seus frutos são o “ressentimento” e a “má consciência”: de um lado, o ressentimento representa uma forma de ativar a memória, 402 cadernos Nietzche 29, 2011 História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche de maneira que aquele que sofre um dano nunca esquece, sempre rumina e elabora seu plano de vingança contra o outro; de outro, a internalização do ressentimento cria uma mudança de sentido: o sentimento de vingança antes voltado para fora, para o outro, se volta agora para o próprio ressentido, transformando-se em sentimento de culpa. Portanto, aquele que antes colocava o motivo da sua dor nos outros, encontra agora em si mesmo o culpado, e a consciência de sua própria culpa se transforma em má consciência. Assim reduzida a vida terrena a este mar de culpa, de dor e de sofrimento, os valores predominantes deste período pregavam a anulação dos instintos do homem, a luta contra os impulsos humanos, a diminuição da vida terrestre como modo de alcançar uma vida melhor num mundo além deste, uma vida harmoniosa e livre de impurezas no reino dos céus. Niilismo e conhecimento histórico Na modernidade, um processo de crescente esvaziamento dos valores, denominado por Nietzsche como “a morte de Deus”, marca o momento da segunda transmutação do niilismo, o niilismo reativo. O homem matou Deus, numa reação a todos os valores divinos, e colocou-se em seu lugar, instalando a era humanista. No lugar de Deus é colocado o homem reativo, cuja marca é a negação de todos os valores extra-humanos, um homem que diz não, que se rebela contra todos os valores da velha tradição, que tenta quebrar as velhas tábuas do passado, “leão” destruidor dos valores divinos, negador de toda possibilidade de superioridade acima de seus próprios valores. No entanto, a vida do homem reativo é incapaz de criar novos valores, presa que está a tudo o que nega, de modo que a vontade deste homem reativo se configura como uma vontade de nada, uma vontade de negar. É, portanto, neste momento, que Nietzsche situa o problema da história, de modo que as categorias de memória e esquecimento cadernos Nietzche 29, 2011 403 Melo, D. A. S. aparecerão sob os termos do histórico e do a-histórico. Este momento corresponde ao auge do cientificismo no século XIX, da busca compulsiva pelo passado histórico dos fatos, por uma vontade de saber que afasta o homem cada vez mais da vida e da ação. Assim, o historicismo moderno é regido pelo dogma da ciência, tendo o racionalismo como critério hegemônico na construção do saber. É neste período que Nietzsche identifica a busca do homem por um excesso de história, por uma tentativa enlouquecida de querer compreender o real, dominar o real através do seu conhecimento mais profundo. Na busca desta profundidade, o homem escava até o mais longínquo a história de um fato, não deixando passar a menor informação possível. Com isto, o conhecimento passa a ser tomado como finalidade última de si mesmo, o conhecimento pelo conhecimento, cada vez mais afastado da ação e da vida. O homem moderno é apresentado por Nietzsche pela imagem do especialista que escava compulsivamente o passado, buscando aprofundar seus limites. Nesta operação, portanto, o passado (ou a história de um fato) é tomado como um dado acabado e, assim, passível de ser recuperado em sua verdadeira identidade. É neste sentido que Nietzsche irá considerar a história como uma teologia disfarçada, pois em sua tarefa arqueológica ela recria a identidade de um povo, de uma cultura e de uma época. Enfim, a historia é o que resgata a memória de um passado entendido como soterrado, mas que se conserva numa forma ideal e guarda em si a verdade que será desvelada pela luz da razão. Tal tarefa, para Nietzsche, é inesgotável, pois, por mais que se escave uma camada de fatos, sempre outras camadas irão surgir por baixo das outras. Assim, o conhecimento produzido pela história se afasta cada vez mais das necessidades do presente do historiador, de modo que o passado já não irá mais servir à vida e à ação. Este excesso de conhecimento histórico produz, segundo Nietzsche, uma cisão que dará origem a dois pólos: o interior e o exterior. Neste sentido, a compulsão pelo conhecimento preenche no homem a sua “interioridade”, de modo que ele se orgulha dela 404 cadernos Nietzche 29, 2011 História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche como o que ele possui de mais precioso. Do outro lado, a vida, o que ocorre no exterior, não terá a menor importância para este homem, de modo que seu conhecimento não se torna ação neste exterior. Tal é, portanto, a qualidade mais própria a este homem moderno, e que os povos antigos não conheciam: “a estranha oposição entre uma interioridade à qual não corresponde nenhuma exterioridade e uma exterioridade à qual não corresponde nenhuma interioridade” (HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.272). Em outras palavras Nietzsche nos diz que “o saber, consumido em excesso sem fome, sim, contra a necessidade, não atua mais como um agente transformador que impele para fora e permanece velado em um certo mundo interior caótico, que todo e qualquer homem moderno designa com um orgulho curioso como a ‘interioridade’ que lhe é característica” (HL/ Co. Ext. II 4, KSA 1.272-273). Com isso, produz-se uma indiferença generalizada na vida do homem moderno, pois a ânsia de conhecimento faz com que se perca a valorização hierárquica dos fatos, de maneira que qualquer fato, sendo passível de ser conhecido, não possui mais ou menos valor do que os outros, todos os momentos adquirindo o mesmo valor. Para Nietzsche, a perda da hierarquia dos valores irá criar um desgosto, uma apatia da existência. Tal perda de sentido da existência faz com que o homem passe a não levar nada a sério, de modo que ele parece não se afetar ou se impressionar muito pouco com o que ocorre no exterior, tornando-se um ser de “personalidade fraca” (HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.274). Em outros termos, esta fraqueza da personalidade será denominada por Nietzsche Vontade de nada. O que vemos na modernidade é, portanto, a expressão do niilismo sob um novo modo de existência, é mais uma vez o tipo reativo que se apresenta através da figura do homem de ciência. Sua vontade de negar se manifesta pela excessiva vontade de saber, negando qualquer fato, ou qualquer forma de pensamento que não tenha como critério primordial a razão. Sob o crivo da racionalidade, este homem se põe a negar todo e qualquer princípio que esteja apoiado em valores transcendentais cadernos Nietzche 29, 2011 405 Melo, D. A. S. ou extra-humanos. Além de serem demasiadamente humanos, os valores não podem fugir aos fundamentos da razão que, por isso mesmo, deve corrigir toda e qualquer existência conduzida por valores metafísicos. É o homem que aí se coloca como valor superior, substituindo o velho Deus da tradição metafísica. O excesso de conhecimento do homem moderno o torna reativo, já que ele, assim procedendo, nega a sua natureza a-histórica ou esquecidiça. O niilismo como modo predominante de existência impede o homem de sentir a-historicamente, de modo que o esquecimento é tomado como um erro que põe em risco a razão como princípio fundamental do conhecimento. O homem aí nada cria, não faz nascerem novos valores, porque não pode esquecer, porque está preso às grades da racionalidade que o impele apenas à compreensão imediata do real, à aplicação de um quadro de compreensão previamente construído sobre uma realidade inédita que não para de se constituir. Rebater todo presente e futuro sobre um passado já conhecido, esta é a função da memória e da história sob o domínio das forças reativas, ou seja, quando a vida está aprisionada pela suprema falta de valor, pelo niilismo. Daí o perigo da história para Nietzsche: mumificar a vida. A história “compreende a vida só para conservá-la, não gerá-la; por isto, ela sempre subestima o que devém porque não tem nenhum instinto para decifrá-lo” (HL/Co. Ext. II 3, KSA 1.268), e assim impede a emergência do novo enquanto tal, sem qualquer forma de recondução ao velho ou já conhecido. Esquecimento e superação do niilismo Quando Nietzsche nos diz que a vida padece da doença histórica, devemos entender tal doença como o sintoma decorrente do domínio do niilismo ou das forças reativas sobre as forças plásticas e criativas, degenerando e limitando a vida de sua potência de transmutação. 406 cadernos Nietzche 29, 2011 História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche Não se trata, portanto, de lutar contra a história para que se liberte a vida. Trata-se, antes, de fazer com que a história venha servir à vida, e não apenas sufocá-la com seu excesso degenerador. Desse modo, tanto o modo de sentir histórico quanto o a-histórico, são importantes à vida de uma época, ou seja, “o conhecimento do passado, em todas as épocas, só é desejado a serviço do futuro e do presente, não para o enfraquecimento do presente ou para o desenraizamento de um futuro vitalmente vigoroso” (HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.271). Nietzsche ainda complementa: “o histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um individuo, um povo e uma cultura” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.252). No entanto, a relação entre os sentidos histórico e a-histórico e a vida deve ser pensada a partir de limiares de intensidades. Pois não se trata de anular um pelo outro, mas tomá-los a partir de uma tensão que corresponde à variação de potência em que a vida se cria. É neste sentido, portanto, que Nietzsche nos diz que “há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo ou uma cultura” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.250). Este grau ou limiar corresponde, em sua denúncia, ao excesso que o sentido histórico ganhou na modernidade em função do domínio das forças reativas, impedindo, assim, que o elemento a-histórico desta cultura pudesse passar e impingir uma ameaça à sua garantia de conservação. Entretanto, “a cultura histórica só é efetivamente algo salutar e frutífero para o futuro em consequência de uma nova e poderosa corrente de vida, do vir a ser de uma nova cultura” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.257). Portanto, a história sempre estará a serviço da vida enquanto estiver articulada a um poder a-histórico. Assim, Nietzsche nos assegura da necessidade desta tensão criadora da vida proferindo que “a ação feliz, a confiança no que está por vir – tudo isso depende, tanto nos indivíduos como no povo (...) que se saiba tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo; cadernos Nietzche 29, 2011 407 Melo, D. A. S. que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.251-252). Dessa forma, a superação do niilismo no modo histórico de existência a partir do poder a-histórico vai operar um deslocamento na maneira de nos relacionarmos com o passado. A partir daí, não mais rebatemos o futuro sobre o passado, impedindo assim que a novidade venha produzir algum efeito sobre a vida e a ação, mas passamos a nos servir do passado ao modo de quem se serve de um alimento poderoso, cujo elemento nutritivo nos impele ao porvir, numa ação livre e criadora de um modo inédito de viver. A este alimento selecionado do passado, Nietzsche irá denominar de elemento supra-histórico, pois ele guarda em si tudo aquilo que é grandioso e imperecível em função de uma crença no futuro. Enfim, ao supra-histórico importam os tipos grandes e intensos que possam despertar a criação de uma nova possibilidade para o futuro a partir de sua recuperação no presente. Segundo Nietzsche, alguém que assumisse o ponto de vista supra-histórico “não poderia mais se sentir de maneira nenhuma seduzido para continuar vivendo e colaborando com o trabalho da história; (...) aquele alguém estaria curado do risco de tomar a partir de então a história exageradamente a sério” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.254). Neste modo de existência, onde o a-histórico e o supra-histórico comparecem como elementos predominantes, o esquecimento ganha um estatuto positivo, pois vem liberar a memória dos velhos grilhões que a aprisionavam ao passado e a impediam de compor com o futuro novos modos de existência, modos de vida não mais reativos, mas ativos. O esquecimento como atividade irá, portanto, produzir uma alteração na própria concepção de memória. Assim, a memória deixará de ser entendida como uma prisão de marcas de um passado que se conserva, como um simples e passivo “não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida”, passando a ser considerada como “um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir querendo o já querido, uma verdadeira memória da 408 cadernos Nietzche 29, 2011 História e memória como crença no futuro: esquecimento e superação do niilismo em Nietzsche vontade” (GM/GM II 1, KSA 5.292). Esta operação do esquecimento, para Nietzsche, coincide com o momento em que podemos nos instalar no pleno presente, onde possamos responder por nós próprios como futuro, projetando-nos no futuro. Neste instante, por fim, a memória configura-se como uma “crença no futuro”, vinculada ao esquecimento e aberta ao por vir. Abstract: The themes of memory and forgetfulness are approached more deeply by Nietzsche in two works that are separated by 14 years. Despite the temporal separation, these themes are related to a common problem: the coming of nihilism. While in the Second Untimely Meditations life is pilfered by the excess of historical knowledge, in the Genealogy of Morals the forces that judge and disable life are expressed by figures of bad conscience and of resentment, both diseases of memory. In both works, however, Nietzsche relies on two strategies to ponder the overcoming of nihilism: the access to an ahistorical and untimely element that liberates the knowledge of the metal chains of the past, and an active forgetfulness capable of liberating the conscience from the cables of resentment and of blame. In these works the sign of the health of a culture and of the high potency of life consist in the man that can settle in the present, yet be projected into the future; in other words, this is the point in which history and memory are active expressions of a faith in the future. Keywords: History – Memory – Forgetfulness – Nihilism - Culture referências bibliográficas 1. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & CO., 19671978, 15v. 2. NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. cadernos Nietzche 29, 2011 409 Melo, D. A. S. 3. _____________. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 4. _____________. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 5. _____________. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 6. _____________. A gaia ciência. Trad Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 7. _____________. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. Artigo recebido em 10/07/2011. Artigo aceito para publicação em 25/07/2011. 410 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade Marcelo S. Norberto* ** Resumo: Este ensaio pretende refletir sobre a peculiar relação entre Nietzsche e Sartre. Das acusações infames de Sartre sobre a pseudorelevância filosófica de Nietzsche aos pontos confluentes encontrados a partir da análise dos textos “David Strauss: sectário e escritor” e “O que é literatura?”, surge a possibilidade de uma nova compreensão desta afinidade existencial, para além dos aparatos conceituais de cada autor. Palavras-chave: cultura inautêntica - extemporaneidade - agir filosófico – espelho existencial É a nossa época que não tem estilo, ninguém ousa confessá-lo, mas a própria idéia de estilo tornou-se estranha, vai-se então para a linguagem pastiche, as combinações de empréstimo (Paul Válery). Nada mais temerário na filosofia do que tentar aproximar dois pensadores autônomos. O esforço de encontrar semelhanças em filosofias distintas quase sempre é recompensado com o enfraquecimento de ambas, transformando o que era antes vigoroso em uma massa disforme e sem viço. É preciso ter um grande objetivo, uma necessidade incontornável para que valha a pena o risco de perder a vitalidade do pensamento em questão. O perigo se torna maior quando um dos autores explicitamente desqualifica o outro. Como se já não bastasse a angústia de incorrer no problema citado, surge uma nova ameaça: ser flagrado em plena manobra intelectual de caráter grosseiro; o que só evidenciaria a incapacidade do pretenso mediador. * Este ensaio é dedicado à minha mãe in memoriam. ** Doutorando em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor convidado do curso de especialização em Filosofia Contemporânea (PUC-Rio/CCE). E-mail: [email protected]. cadernos Nietzche 29, 2011 411 Norberto, M. S. Em certa medida, esta é a situação de quem almeja aproximar Nietzsche de Sartre. Nas poucas referências produzidas pelo pensador francês, é claro o seu conhecimento da obra nietzschiana1, tanto quanto o desprezo por sua falsa relevância filosófica. De duas minguadas citações em “O ser e o nada”, sendo uma de natureza quase que literária2, à acusação contundente no ensaio sobre Brice Parain3, Sartre deixa claro sua opinião sobre Nietzsche4. Temos também os textos marginais. O mais simbólico é o ensaio perdido5 em que Sartre teria elevado Nietzsche ao Olimpo literário na companhia de Baudelaire, Genet e Flaubert. Além deste ensaio, há a novela “Une défaite”, na qual Sartre se inspira nas figuras de Wagner, Cosima e Nietzsche. O personagem do filósofo alemão reflete o temperamento do jovem Sartre. Ainda nas lembranças de 1 “Mais uma reviravolta se dá nos anos de 1920. O interesse pelo filósofo 2 3 4 5 então ressurge com jovens intelectuais, como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Paul Nizan, Henri Lefebvre, Georges Bataille. Eles se voltam para as suas obras, frustrados com as correntes kantiana e bergsoniana que dominavam a filosofia francesa” Cf. MARTON, S. Voltas e reviravoltas - acerca da recepção de Nietzsche na França. In: Nietzsche, um “francês” entre os franceses. São Paulo: Editora Barcarolla; Discurso Editorial. 2009, p.26. “Mas se nos desvencilharmos do que Nietzsche chamava ‘a ilusão dos trás-mundos’, e não acreditarmos mais no ser-detrás-da-aparição, esta se tornará, ao contrário, plena positividade, e sua essência um ‘aparecer’ que já não se opõe ao ser, mas, ao contrário, é a sua medida.” Cf. SARTRE, J-P. O ser e o nada - ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Editora Vozes. 2005, p.16. “Nietzsche não é filósofo”, “frivolidades”, referindo-se ao livro “Vontade de poder” Cf. SARTRE, J-P. Ida e volta. In: Situações I - críticas literárias. São Paulo: Editora CosacNaify. 2005, p.222. “(Nietzsche) terá sempre sucesso com aqueles que preconizam a forma à troca de idéias” Cf. SARTRE, J-P. Carnet Midy. In: Écrits de Jeunesse. Contat, Michel et Rybalka, Michel (org.). Paris: Éditions Gallimard. 1990, p.471 (minha tradução). Cf. RIDER, J. Nietzsche en France - De la fin du XIX siècle au temps présent. Paris: Presses Universitaires de France. 1999, p.137 e Cf. BEAUVOIR, S. A cerimônia do adeus - seguido de Entrevistas com Jean-Paul Sartre. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1982, p.251. 412 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade Raymond Aron6, há a influência de Nietzsche nos primeiros esboços sartrianos, nos tempos da École Normale, das noções de contingência e na distinção entre para-si e em-si7. Nenhuma destas menções elucidam o caso. Nietzsche é tomado como uma inspiração secundária8. É a influência da literatura na filosofia, e não da filosofia reverberando na própria filosofia, como, por exemplo, Sartre com Hegel, Husserl ou Heidegger. É preciso romper com rejeição externada pelo intelectual francês para que o obscuro, o inaudito possa emergir. Não adianta, por exemplo, analisar a passagem que Sartre recorre à noção do eterno retorno para explicar Jean Genet em “Saint Genet”, pois, novamente, seguiremos o rastro deixado em que o final já é previsível: a literatura fornecendo subsídios para que a filosofia brilhe. Não se trata de recriminar tal prática, mas, se almejamos encontrar uma afinidade filosófica entre os dois autores, não é cabível retroceder a esta inspiração literária. É necessário então buscar becos menos iluminados, trilhas mais abandonadas, confronto de textos inesperados, situações em que os autores possam parecer mais vulneráveis, menos protegidos com sua artilharia teórica, enfim, mais propícios a novos diálogos, sendo quase que obrigados a responderem no calor da aproximação inusitada. Este é o solo cobiçado para tal empreitada. Para este fim, ou seja, uma tentativa de encontrar uma abertura, uma possibilidade de repensar esta 6 Cf. LÉVY, B-H. O século de Sartre - inquérito filosófico. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 2001, p. 147. 7 Ainda há algumas citações em “Carnets de la drôle de guerre”, “Cahiers pour une morale” e no “Carnet Midy”, obras inacabadas e publicadas postumamente. 8 “Ele (Nietzsche) é um poeta que teve a infelicidade de ser confundido com um filósofo” Cf. SARTRE, J-P. Carnet Midy. In: Écrits de Jeunesse. Contat, Michel et Rybalka, Michel (org.). Paris: Éditions Gallimard. 1990, p.471 (minha tradução). cadernos Nietzche 29, 2011 413 Norberto, M. S. relação, utilizaremos como foro por mim privilegiado a primeira intempestiva de Nietzsche, “David Strauss: sectário e escritor”, de 1873, e o ensaio sartriano “O que é literatura?”, de 1947. * * * Num momento de euforia germânica, surge um jovem professor de filologia irritado com a pequenez de uma Alemanha que se contenta em ser grande. Para ele, vitórias militares, imposições territoriais ou mera diversidade cultural não constituem uma civilização invejável. É preciso uma cultura autêntica que dê unidade à multiplicidade da vida para que um povo se torne digno de júbilo e de triunfo. É a partir desta análise que Nietzsche resolve escrever ensaios de intervenção, as “Considerações Intempestivas”. Do projeto inicial, foram realizadas somente quatro “Considerações”, das quais iremos privilegiar a primeira extemporânea. Nesta primeira intervenção, Nietzsche se propõe a analisar o escritor David Strauss e sua obra “A antiga e a nova fé”. Porém, por meio desta proposta inicial, Nietzsche realiza uma dura crítica à cultura alemã contemporânea, especialmente ao erudito desta pseudo-civilização, chamado no texto pela alcunha de filisteu culto. Ao contrário do que a imprensa e os ilustrados da época pregavam9, Nietzsche identifica na Alemanha um enfraquecimento do pensamento, um esvaziamento da vitalidade cultural de seu país10. 9 “Depois da guerra, essa tropa é só felicidade, gravidade e confiança em si” (DS/Co. Ext. I, 1, KGW 3.157). 10 “Aí está o que deveríamos todos saber a nosso respeito; por isso um dos raros homens que tinha o direito de recriminar os alemães falou publicamente: ‘Nós, alemães - dizia um dia Goethe a Eckermann, somos de ontem’” (DS/Co. Ext. I 1, KGW 3.160). 414 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade A confusão feita entre uma vitória militar e uma superioridade artística já diz muito sobre a má-compreensão do que seja uma cultura admirável e altiva. Torna-se urgente, para Nietzsche, destruir a discutível sensação de plenitude que os alemães passaram a ter, a fim de salvar a sociedade germânica do empobrecimento completo. Ao se recusar a compartilhar desta excitação desmedida e injustificável, o filósofo alemão se coloca em uma posição privilegiada para repensar seu tempo e descortinar o véu que cegava seu povo. Em 1947, um outro pensador se depara com um cenário inquietante. Dois anos depois de criar a revista cujo o título já demostrava o seu comprometimento com uma nova era11, Sartre se sente impelido a se colocar à contracorrente, a ser aquele que polemiza com o status quo francês. O bem em perigo é a literatura e os “visigodos” em questão são os distintos escritores franceses. O anseio pela pureza na arte da escrita, homens desejosos de serem clérigos12, confusão entre poesia e prosa e a recusa de comprometimento no escrever são alguns dos equívocos que introduziram uma debilidade na força vital da linguagem. Em nome de valores eternos, de signos abstratos como a liberdade, justiça e razão, os eruditos renegam a vida, a sua época e produzem assim uma concepção desencarnada de literatura13. Esta desordem passa a ser introjetada pelo escritor ilustrado, que não sabe mais qual é o seu lugar no mundo: “o homem de letras escreve enquanto se batem; um dia, tem orgulho nisso, sente-se 11 “Les Temps Modernes” é uma evidente homenagem ao filme de Charles Chaplin. 12 Em francês, “clerc” significa tanto clérigo letrado medieval quanto um tipo de intelectual moderno. 13 Nietzsche já havia denunciado este escapismo erudito: “São palavras belas, solenes, reluzentes, tilintantes: honestidade, amor à verdade, amor à sabedoria, sacrifício pelo conhecimento, heroísmo do que é veraz (...) essa digna pompa verbal é parte do velho enfeite-mentira, poeira e purpurina da inconsciente vaidade humana” (JGB/BM 230, KGW 6.175). cadernos Nietzche 29, 2011 415 Norberto, M. S. depositário e guarda dos valores ideais; no dia seguinte, sente vergonha disso, pensa que a literatura se assemelha muito a um modo de afetação especial”14. Esta desorientação é um terrível risco para a literatura do século XX. O suposto erudito, crítico por profissão e por desespero15, contribui para que “se leia mal, afoitamente, e se julgue antes de se compreender”16, levando a um dilaceramento do nobre tecido que aproxima os homens no espetáculo literário. Em termos sartrianos, esta prática introduz uma opacidade no seio da arte literária, contaminando as palavras e adoecendo a linguagem. Era preciso reagir!17 Os dois autores possuem oponentes definidos: o filisteu culto e o crítico literário. Para a compreensão destas figuras apresentadas por Nietzsche e Sartre como aqueles que perpetraram práticas detestáveis em suas épocas, é preciso entender que são personagens criados (tipos) e, portanto, representantes de um conceito do que seja cultura. O filisteu culto não se trata de uma mera variação do filisteu historicamente entendido: não é o burguês ignorante, incapaz de reconhecer a sutileza da arte, mas, ao contrário, aquele tido como filho da cultura, intelectuais e artistas que se julgam superiores, porém incapazes de atribuir unidade de estilo ao seu fazer cultural (DS/Co. Ext. I, 2 KGW 3.160-165). Da mesma forma, o crítico 14 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.10. 15 “O crítico vive mal; sua mulher não o aprecia como seria de se desejar, seus filhos são ingratos, os fins de mês são difíceis. Mas ele ainda pode entrar na sua biblioteca, apanhar um livro na estante e abri-lo. Do livro escapa um leve odor de porão, e tem início então uma estranha operação que ele decidiu chamar de leitura” Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.24. 16 ibid., prefácio. 17 “Não queremos ter vergonha de escrever e não sentimos a necessidade de falar para não dizer nada” Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.11. 416 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade de Sartre não é simplesmente o representante da crítica literária, função esta exercida pelo próprio Sartre em diversos ensaios. É o homem erudito que renega a vida e se esconde atrás de um papel social respeitável para matar um pensamento potente. Em ambos os casos, do filisteu culto ao crítico literário, a cultura está entregue ao seu maior inimigo. Enquanto a cultura em geral, ou a literatura, deveria ser um espaço propício para que o novo surgisse, para que a vida adquirisse uma dimensão mais essencial, humana, seus detratores dissimulados acabam por silenciá-la e podá-la de qualquer fagulha de vitalidade. Para Nietzsche, aquilo que é produzido e fomentado pelo filisteu culto não se assemelha, nem vagamente, a uma cultura dita vigorosa, a não ser no vigor com que estes bárbaros “rejeitam todo estilo cultural e artístico rigoroso” (DS/Co.Ext.I 11, KGW 3.217). Um cenário cultural digno de orgulho não se caracteriza pelo acúmulo de informações nem pela variedade de técnicas artísticas18. É fundamental haver aquilo que o filósofo alemão denomina de unidade de estilo. Esta exigência máxima e necessária é um querer que dá forma às diferenças e imprime uma expressão à cultura. Este é o caráter plástico exigido por Nietzsche. A força plástica não se reduz a uma forma estética, mas abarca toda uma vontade que possua um enfoque criador, permitindo o surgimento de uma outra natureza para o homem: a cultura. Fora deste panorama, o que há é uma perda das distinções em favor de uma multiplicidade desconexa, de meros dados dissonantes que resultam 18 “O alemão acumula em torno de si as formas, as cores, os produtos e as curiosidades de todos os tempos e de todos os climas e cria assim essa carnavalesca confusão que seus intelectuais se encarregam em seguida de estudar e definir como a ‘essência do moderno’, enquanto que ele próprio permanece tranquilamente sentado no meio desse tumulto de todos os estilos” (DS/Co. Ext. I 1, KGW 3.159). cadernos Nietzche 29, 2011 417 Norberto, M. S. numa barbárie, em um caos de signos e gestos, sobre os quais o filisteu culto aproveita para gerar artificialmente uma marca de sofisticação e de modernidade19. No caso francês, a questão incontornável é o engajamento próprio da linguagem. Ao recorrer à linguagem, o escritor faz com que as palavras sejam engendradas de sentido no exato momento da nomeação, gerando um comprometimento inerente e imediato com o dizer. Quem escreve jamais será uma Vestal ou um Ariel, pois “todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe”20. A noção de engajamento tratada em “O que é literatura?” extrapola uma simples exigência política, adquirindo uma natureza metafísica. O pensador francês se refere a um caráter próprio da linguagem, uma habilidade singular da escrita que, ao se iniciar, produz “uma transmutação contínua do real em irreal e do irreal em real”21, atribuindo ao escritor um engajamento que se desprende até mesmo de suas intenções iniciais. Ao transformar as figuras do mundo, o autor está “metido no caso, faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento”22. Assim, negar o engajamento é negar a própria linguagem. Tentar escrever fora deste registro é agir como “uma criança, ao acaso, fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir tiros”23. 19 “De fato, essa marca uniforme que nos impressiona em todos os alemães instruídos de hoje não constitui uma unidade a não ser pela exclusão e negação consciente ou inconsciente de toda forma artística fecunda e de todas as exigências de um verdadeiro estilo” (DS/Co. Ext. I, 2, KGW 3.162). 20 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.11. 21 Cf. BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 1997, p. 188. 22 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.11. 23 Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.21. 418 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade Mas este não é o único intento do crítico literário. Ele deseja mais: quer não só esvaziar a escrita como também lavá-la até não sobrar um só grão de vida em sua prosa. Estes moradores de cemitérios24 buscam petrificar o pensamento dos autores mortos, lançando mão de classificações abstratas (pessimistas, idealistas, moralistas, etc.), quando não recorrem à empobrecedora análise estrita da dimensão histórica, amortecendo o impacto dos pecados do viver. É deste modo que os críticos constituem um novo “mundo desencarnado que o rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem mais, passaram à categoria de afeições exemplares, em suma, de valores”25. Tendo esmaecido a força dos verdadeiros textos clássicos26, os críticos passam a atacar os ainda vivos, pedindo para que eles “não se agitem demasiadamente, e que se empenhem desde já em se parecer com os mortos que futuramente serão”27. Esta ligação estreita com a morbidez, este fascínio pela necrofilia, é um traço marcante também nos filisteus cultos. Nada mais nutritivo para um filisteu da cultura do que digerir pensadores vigorosos. Sua alegria é evidente e seu prazer indisfarçável28. Até aqueles autores aparentemente eleitos por esta cultura bárbara como 24 “É preciso lembrar que a maioria dos críticos são homens que não tiveram muita sorte na vida, e que quando já estavam à beira do desespero, encontraram um lugarzinho tranquilo como guarda de cemitério» (ibid., p.24). 25 Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.25. 26 Nietzsche vislumbra na cultura filisteia esta tentativa de enfraquecer a grandeza dos autores clássico. Contra isso, reage contundentemente: “Fora as patas!” (DS/Co. Ext. I, 12, KGW 3.225). 27 Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.25. 28 “Um caráter é um belo pensamento para o verme e o verme é um pensamento horrível para todo ser vivo. Os vermes sonham com um reino celeste sob a forma de um corpo bem gordo, os professores de filosofia procuram o deles remexendo as entranhas de Schopenhauer (...) O filisteu à moda de Strauss se aloja nas obras de nossos grandes poetas e de nossos grandes músicos como um verme que vive destruindo, que admira devorando e que adora digerindo” (DS/Co. Ext. I, 6, KGW 3.184). cadernos Nietzche 29, 2011 419 Norberto, M. S. dignos de respeito sofrem rasgos e fissuras na vitalidade de suas obras quando tomados por clássicos ou merecedores de homenagem, pois “tudo isso não passa de pagamento em moeda corrente, ao que consente o filisteu instruído, a fim de poder ignorá-los no restante e acima de tudo, a fim de não ser forçado a seguir suas pegadas e a prosseguir suas pesquisas” (DS/Co. Ext. I 2, KGW 3.164). Este gosto pelo estável e seu prezar pela quietude evidenciam o incômodo do filisteu culto com as vicissitudes da vida, contra sua natureza contingente e seu caráter mutante. Nada mais marginal a uma cultura bárbara do que a desmedida. É preciso o decoro e a postura típica das belas almas. Por isso, “rejeitam (...) essa confusão de filósofos delirantes e incongruentes, com suas teorias históricas extravagantes e tendenciosas, (...) essas aberrações poéticas engendradas na embriaguez, pois o filisteu não pode realmente permitir-se um excesso” (ibid. ibidem). Portanto, estes bárbaros, no comando da cultura, atuam incessantemente na busca de aplacar qualquer tipo de abuso. Dentro dos seus escritórios de estudo, constroem novas interpretações a fim de suavizar formas do pensar que ainda insistam em romper com a harmonia da doçura do viver29. A tranquilidade é o ar que respira o crítico literário. Para Sartre, este andar compassado, esta prudência cultivada são frutos de um descaso proposital com o tempo presente. O erudito queria ser um homem do futuro e assim se ver livre de todas as exigências de sua época. Ele quer manter suas luvas limpas, tão puras quanto a arte a que ele se dedica30. Deste jeito, acabam por transformar suas 29 “Os mesmos filisteus satisfeitos se apoderaram também, sempre para salva- guardar sua quietude, da história e procuraram transformar todas as ciências que ainda ameaçavam perturbar sua satisfação, particularmente a filosofia e a filologia clássica, como disciplinas históricas. Pela consciência histórica, eles se garantem contra o entusiasmo” (DS/Co. Ext. I, 2, KGW 3.165). 30 “Nossos críticos são como hereges cátaros: não querem ter nada a ver com o mundo real, salvo comer e beber, e já que é imperiosamente necessário conviver com os nossos semelhantes, decidiram fazê-lo com os defuntos” Cf. SARTRE, J-P. O que é a literatura? São Paulo: Editora Ática. 2004, p.25. 420 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade bibliotecas em locais assépticos, protegidos da vida tanto quanto os cemitérios são avessos aos vivos (“Deus sabe o quanto os cemitérios são tranqüilos: os mortos estão lá!”31). * * * Só por leviandade é possível afirmar haver uma comunhão teórica entre as figuras do filisteu culto e o crítico literário. O primeiro personagem se refere a um tipo que se julga ser predileto das musas, um intelectual artista, produtor de variedades, miscelânea esta tomada irresponsavelmente por cultura. Já o crítico literário é um comentarista, um resenhista de obra alheia, atribuidor de valor do trabalho de outrem. É aquele que analisa e qualifica a produção artística em nome de valores desencarnados. Buscar também justapor a reivindicação de unidade de estilo na cultura à imposição de engajamento na linguagem só é possível através de vistas fracas por parte do moderador32. A unidade de estilo é uma tentativa de dar conta da multiplicidade das expressões artísticas sem que a cultura decaia para um relativismo populista ou uma sofisticação afetada. Enquanto o engajamento é um clamor por uma dimensão ética da linguagem, um apelo ao caráter plural da literatura. Posto tais ressalvas, não é admissível negar a percepção de uma afinidade nos textos expostos aqui. Este sentimento, em verdade, extrapola os ensaios escolhidos para análise. A utilização de outros escritos de Sartre e Nietzsche, como “O ser e o nada” 31 ibid., ibidem. 32 “Quem pretende servir de mediador entre dois pensadores resolutos con- dena-se à mediocridade: não tem olhos para distinguir o que é único; ver semelhanças em tudo é sinal de vista fraca” Cf. Nietzsche apud MURICY, K. Benjamin e Nietzsche: considerações sobre o conceito de história e a crítica da cultura. In: Revista Síntese Nova Fase, V.20, n.63. Belo Horizonte. 1993, p.663 (FW/GC 228, KGW 5.189). cadernos Nietzche 29, 2011 421 Norberto, M. S. e “Genealogia da Moral” ou ainda “Carnets de la drôle de guerre” e “Ecce homo”, por exemplo, em nada comprometeria esta sensação de simpatia intelectual. O que sugere, quanto a origem deste parentesco bastardo, algo para além do apartado conceitual de cada autor. Uma indicação promissora para esta questão é a tarefa que cada um destes filósofos se impôs de pensar o seu tempo. Para Sartre, pensar é se lançar no mundo, na vida. Como não há meios de fugir do presente, o homem deve abraçar sua época33. É desta forma que o filósofo francês crê ser capaz de intervir em seu tempo: pensar o presente em nome de um porvir, entretanto não um porvir em fuga, mas na afirmação de um agora34. Como não associar uma compreensão de pensamento encarnado, de uma filosofia do presente, com uma postura extemporânea? Nietzsche se faz inatual para ser um melhor crítico do seu tempo. O presente só floresce para a filosofia quando o pensador rompe a relação imediata e natural com o tempo. Do contrário, o homem descobre-se à imagem e semelhança de um fantoche guiado pelo destino. É através de uma atitude intempestiva, de um distanciamento interessado, que é possível vislumbrar um futuro capaz de fornecer instrumentos para atacar os equívocos do presente. Em “Schopenhauer educador”, Nietzsche define a implicação do futuro no presente em seu agir extemporâneo: Mas, ainda que o futuro não nos deixasse qualquer esperança, a singularidade da nossa existência neste momento preciso é o que nos encorajaria mais fortemente a viver segundo a nossa própria lei e conforme a nossa própria medida: quero falar sobre este fato 33 “(A nossa época) talvez não seja a melhor, mas é a nossa, temos apenas esta vida para viver” Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.12. 34 “É o futuro da nossa época que deve ser o motivo dos nossos cuidados: um futuro limitado que mal se distingue - porque uma época, como um homem, é antes de mais nada um futuro” (ibid., p.18). 422 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade inexplicável de vivermos justamente hoje, quando dispomos da extensão infinita do tempo para nascer, quando não possuímos senão o curto lapso de tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele, porque razões e para que fins, aparecemos exatamente agora. Temos de assumir diante de nós mesmos a responsabilidade por nossa existência, por conseguinte, queremos agir como verdadeiros timoneiros desta vida, e não permitir que nossa existência pareça uma contingência privada de pensamento (SE/Co.Ext.III 1, KGW 3.335). Os ecos deste testemunho parecem ressoar nas palavras de Sartre no “Les Temps Modernes”: Não queremos olhar o nosso mundo com os olhos do futuro, o que seria o meio mais seguro de o matar; queremos vê-lo com os nossos olhos de carne, com os nossos verdadeiros olhos perecíveis. Não queremos ganhar o nosso processo em apelo e não queremos uma reabilitação póstuma: é agora e ainda em vida que os processos se ganham ou se perdem (...) (porque) não é perseguindo a imortalidade que nos tornaremos eternos: não seremos absolutos por termos refletido nas nossas obras alguns princípios desencarnados, suficientemente vazios e nulos para passarem de um século ao outro, mas porque combatemos apaixonadamente na nossa época, porque amamos com paixão e porque decidimos perecer completamente com ela35. Enfim, a influência filosófica de Nietzsche em Sartre não é identificada por conceitos ou recuperação de temas tratados, mas sim por um agir, por uma maneira de se portar no mundo, atitude que acaba por condicionar todo um pensamento filosófico. Contudo, houve uma mudança. A multiplicidade se desgarrou da vida e se tornou um mérito em si mesma e uma nova ordem foi estabelecida. A prática de um jeito, de um fazer filosófico, 35 Cf. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968, p.14. cadernos Nietzche 29, 2011 423 Norberto, M. S. criticado por Nietzsche e Sartre, antes taxada de barbárie, criou raízes e tornou-se expressão dominante. Longe desta tragédia pôr fim às batalhas. Apenas os nossos autores foram obrigados a trocarem de trincheiras. Aquele agir não era mais cultuado, mas tido como marginal ao processo vigente. Aquilo que era degenerado assumiu a face do instituído e respeitado, e aqueles que desafiavam o seu poder, tornaram-se bárbaros. Perante sua contemporaneidade, tanto Nietzsche quanto Sartre incorporaram os valores bastardos com o intuito de confrontar seus iguais e de transformar suas épocas, civilizações empobrecidas pelo aviltamento da própria noção de homem e de cultura. Se, por ingenuidade, possa parecer pouco este agir filosófico ser o constitutivo desta relação filosófica entre Sartre e Nietzsche, é somente pelo leitor desconhecer o quanto sui generis é a empreitada intelectual destes bárbaros da modernidade. Nada poderia ser mais concreto do que esta influência existencial, esta aproximação quase que corpórea. Afinal, a única herança possível que um andarilho pode deixar a outro é o movimento do próprio corpo, sua inquietude frente à mesmice. O único espólio a ser reclamado por um bárbaro é o seu desejo por dilacerar o estabelecido sob bases ilusórias; é o martelo rumo àquilo cristalizado pela inércia. Entender o parentesco de Sartre com Nietzsche ganha relevo a partir deste cenário contemporâneo. O segredo do agir sartriano, o seu encanto é esta inspiração pouco consciente de Nietzsche, este ímpeto perante a vida deixado pelo filósofo alemão. De certa forma, Sartre é um nietzschiano pelo avesso, solto das amarras conceituais de sua inspiração, livre então para refletir, à sua maneira, o seu próprio tempo. Neste sentido, tentar encontrar rastros na obra sartriana de um Nietzsche mais conceitual ou, em outras palavras, tentar ver Sartre 424 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade como um intérprete tradicional de Nietzsche é afastar de vez qualquer possibilidade de vislumbrar a espetacular e decisiva contribuição nietzschiana no modo de se portar sartriano36. A falta de percepção de Sartre quanto à sua dívida com Nietzsche diz menos respeito à uma má compreensão dos preceitos filosóficos do pensador alemão e mais a própria natureza inesperada deste diálogo, ou seja, a este agir comum, a esta postura existencial. Esta semelhança sem igualdade é fruto de um espelho existencial. Sartre, ao criticar e menosprezar Nietzsche, acaba por evidenciar a si próprio. O pensador alemão traz à tona aquilo que o filósofo francês nunca soube aceitar pacificamente em sua história: sua obsessão pela palavra, seu desejo de se tornar um escritor, seu gosto pelo estilo, enfim, sua autointitulada “neurose burguesa”37. Nietzsche surge como imagem refletida daquilo que Sartre sempre tentou transformar ou superar, mas jamais conseguiu se desvencilhar: a ele próprio. 36 Por isso, apesar do corajoso título concedido a Sartre (“um nietzschiano inconsciente” – Cf. DAIGLE, C. Sartre and Nietzsche: Brothers in arms. In: Sartre’s Second Century. O’Donohoe, Benedict and Elveten, Roy (org.). Newcatle: Cambridge Scholars Publishing. 2009, p.57), Daigle trilha um caminho oposto do sugerido neste ensaio. Ainda presa a uma minuciosa pesquisa analítica, a autora de “Le nihilisme est-il un humanisme?” busca encontrar nas entranhas do corpo conceitual de cada autor um “DNA” que prove a ancestralidade em questão. De forma bem resumida, Daigle acredita ser possível aproximar o conceito de autenticidade sartriana à noção de super-homem nietzschiana (“Minha reinvindicação é de que o superhomem é, essencialmente, o homem autêntico sartriano e vice versa” Cf. DAIGLE, C. Sartre and Nietzsche: Brothers in arms. In: Sartre’s Second Century. O’Donohoe, Benedict and Elveten, Roy (org.). Newcatle: Cambridge Scholars Publishing. 2009, p.70), concluindo que “o autêntico humanismo é, antes de mais nada, um niilismo” Cf. DAIGLE, C. Le nihilisme est-il un humanisme? – Étude sur Nietzsche et Sartre. Québec: Les Presses de L’Université Laval. 2005, p.240. Para uma compreensão mais detalhada do percurso trilhado por Daigle, ver DAIGLE, C. Le nihilisme est-il un humanisme? – Étude sur Nietzsche et Sartre. Québec: Les Presses de L’Université Laval. 2005 37 Esta expressão passa a ser recorrente nas diversas entrevistas concedidas por Sartre a partir do lançamento do livro “As palavras” em 1964. cadernos Nietzche 29, 2011 425 Norberto, M. S. Sabemos de seu projeto declarado de utilizar cada análise existencial como possível rota para sua própria vida. Mas Baudelaire e Flaubert, apesar de geniais, eram impróprios para tal empreitada. A figura emblemática não podia ser unicamente um escritor. Era preciso que a filosofia e a escrita estivessem brilhantemente em exercício em um único ser. Sartre não percebeu que seu modelo mais talhado, sua batalha mais tortuosa teria sido o confronto com o “ser-no-mundo” nietzschiano. Talvez esta cegueira seja produto de sua insistente busca por se converter num homem radicalmente livre, solto das amarras culturais, sociais e políticas, abdicando de qualquer ilusão metafísica. Movimento este que se instaura imediatamente e, a despeito da vontade individual, em caráter irrevogável e inalienável da existência humana. Porém, como ele mesmo nos ensinou, Sartre deveria ter percebido quanto a sua “neurose”, que somos livres para sermos tudo, só não podemos não-ser. Aquele homem francês, educado pelo avô, que se refugiava nos livros, personalidade central do pós-guerra, referência original para as gerações seguintes, militante até o último suspiro de vida, só pôde se constituir como projeto a partir de si mesmo, de seus medos e anseios, do abismo insuperável entre o projeto e sua realização, entre ser o que não é e não ser o que é. Por causa disso, e não apesar disso, esta interlocução muda, uma peculiar e intensa afinidade, à revelia de uma mera ascendência teórica, vislumbra na definição de Lévy, ao analisar o caráter festivo do pensamento sartriano, a conclusão lapidar deste encontro: «Dizia Nietzsche não poder crer em um Deus que não soubesse dançar. Sartre não crê, dança!”38. 38 Cf. LÉVY, B-H. O século de Sartre - inquérito filosófico. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 2001, p.40. 426 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade Abstract: This essay intends to reflect on the singular relationship between Nietzsche and Sartre. Of the infamous accusations from Sartre about the Nietzsche’s pseudo-philosophical relevance to the confluent points found in the texts analyzed “David Strauss: the confessor and the writer” and “What’s literature?”, arises the possibility of a new understanding of this affinity existential beyond the conceptual apparatuses of each author. Keywords: inauthentic culture – untimeliness – philosophical act – existential mirror referências bibliográficas 1. BEAUVOIR, S. A cerimônia do adeus - seguido de Entrevistas com Jean-Paul Sartre. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1982. 2. BLANCHOT, M. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 1997. 3. DAIGLE, C. Le nihilisme est-il un humanisme? – Étude sur Nietzsche et Sartre. Québec: Les Presses de L’Université Laval. 2005. 4. __________ Sartre and Nietzsche: Brothers in arms. In: Sartre’s Second Century. O’Donohoe, Benedict and Elveten, Roy (org.). Newcatle: Cambridge Scholars Publishing. 2009. 5. LÉVY, B-H. O século de Sartre - inquérito filosófico. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 2001. 6. MARTON, S. Voltas e reviravoltas - acerca da recepção de Nietzsche na França. In: Nietzsche, um “francês” entre os franceses. São Paulo: Editora Barcarolla; Discurso Editorial. 2009. cadernos Nietzche 29, 2011 427 Norberto, M. S. 7. MURICY, K. Benjamin e Nietzsche: considerações sobre o conceito de história e a crítica da cultura. In: Revista Síntese Nova Fase, v.20, n.63. Belo Horizonte. 1993. 8. NIETZSCHE, F. Werke: Kritische Gesamtausgabe (KGW). Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter & CO., 1968-1978. 9. _____________ Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora Companhia das letras. 2005. 10. _____________ I consideração intempestiva: David Strauss, sectário e escritor. Trad. Antônio Carlos Braga. São Paulo: Editora Escala. 2008. 11. ____________ III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador in Escritos sobre educação. 4ª Edição. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo, Editora Loyola. 2009. 12. RIDER, J. Nietzsche en France - De la fin du XIX siècle au temps présent. Paris: Presses Universitaires de France. 1999. 13. SARTRE, J-P. Apresentação da revista “Les Temps Modernes”. In: Situações II. Trad. Rui Mário Gonçalves. Lisboa: Publicações Europa-América. 1968. 14. ___________ Carnet Midy. In: Écrits de Jeunesse. Contat, Michel et Rybalka, Michel (org.). Paris: Éditions Gallimard. 1990. 15. ___________ O que é a literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Editora Ática. 2004. 16. ____________ O ser e o nada - ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Editora Vozes. 2005. 428 cadernos Nietzche 29, 2011 Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade 17. ____________ Ida e volta. In: Situações I - críticas literárias. Trad. Cristina Prado. São Paulo: Editora CosacNaify. 2005. Artigo recebido em 16/05/2011. Artigo aceito para publicação em 28/05/2011. cadernos Nietzche 29, 2011 429 Instruções para os autores Informações gerais 1. Os artigos enviados para publicação devem ser inéditos em língua portuguesa. As idéias, posições e interpretações neles apresentadas são exclusivamente de responsabilidade dos autores. 2. Os artigos devem ser enviados por via eletrônica em formato PDF (caixa abaixo). 3. Os artigos devem conter no máximo 55.000 caracteres (incluindo espaços), sendo digitados em fonte Times New Roman, com parágrafos justificados e espaçamento 1,5. Para o corpo do texto, deve-se utilizar tamanho 12. 4. Citações de até 5 linhas entram no corpo do texto. Para citações em destaque, deve-se utilizar tamanho 10 e recuo de 1,5cm à esquerda e 0,5cm à direita; para notas de rodapé, tamanho 10 e números arábicos. 5. Os termos de alfabeto não-latinos devem ser transliterados. Todos os termos ou expressões em destaque deverão estar em itálico e não em negrito. 6. Não serão aceitos trabalhos com figuras, gravuras, ilustrações ou desenhos em geral. 7. Os trabalhos devem ser precedidos de resumo (no máximo, de cem palavras), seguido de palavras-chaves (no máximo, seis). A versão em inglês do resumo (abstract) e das palavras-chaves (keywords) deve vir na sequência. 8. Os originais devem ser acompanhados do nome completo do autor, instituição a que pertence (por extenso e sigla) e endereço eletrônico. cadernos Nietzche 29, 2011 431 9. Os Cadernos Nietzsche detêm os direitos autorais dos textos que publicam. Os autores têm, no entanto, sem a necessidade de autorização expressa, permissão para republicar seus textos desde que sejam mencionados os dados da publicação nos Cadernos Nietzsche. 10. Todos os trabalhos encaminhados serão submetidos à arbitragem cega (blind referee) de dois pareceristas, podendo ser reenviados para o autor com sugestões de mudanças. Contribuições recusadas não poderão ser reapresentadas. Preparação dos manuscritos 1. As referências bibliográficas devem ser incluídas no final do artigo, limitando-se aos títulos das obras nele citadas. Devem obedecer à ordem alfabética pelo sobrenome do autor (no caso do mesmo autor, as obras devem ser elencadas da mais antiga para a mais recente). Exemplos: Livros: MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1971. Capítulos de livros: BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O avesso da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57. Artigos: MÜLLER-LAUTER, W. Décadence. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.6, p.11-30, 1999. MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la philosophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris, t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006. 432 cadernos Nietzche 29, 2011 2. As referências às obras de Nietzsche deverão ser feitas no corpo do texto, como se segue: Obra ou Fragmento Póstumo (com o ano); seção; número do aforismo, do parágrafo ou do fragmento; número do volume da KSA ou KSB ou KGW ou KGB e (depois do ponto) número da página (no tocante às edições e às siglas, ver, abaixo, a “Convenção para a citação das obras de Nietzsche”). (As demais referências de comentadores ou outros autores às citações ou menções feitas no corpo do texto devem ir para nota de rodapé). Exemplos: ZA/ZA I, Da mordida da víbora, KSA 4.88 Nachlass/FP 1881, 11[143], KSA 9.496 EH/EH, Assim falava Zaratustra 6, KSA 6.343 s./f. EH/EH, Por que sou tão esperto 10, KSA 6.297 GD/CI, Moral como contra-natureza 6, KSA 6.87 GM/GM I, 13, KSA 5.278 cadernos Nietzche 29, 2011 433 Convenção para a citação das obras de Nietzsche Os Cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição Colli/ Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português acompanham, porém, as siglas em alemão, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais. I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche: I. 1. Textos editados pelo próprio Nietzsche: GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia) DS/Co. Ext. I - Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor) HL/Co. Ext. II - Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida) SE/Co. Ext. III - Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador) WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth) MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1)) MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2)) cadernos Nietzche 29, 2011 435 VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças) WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra) M/A - Morgenröte (Aurora) IM/IM - Idyllen aus Messina (Idílios de Messina) FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência) Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra) JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal) GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral) WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner) GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos) NW/NW – Nietzsche contra Wagner I. 2. Textos preparados por Nietzsche para edição: AC/AC - Der Antichrist (O anticristo) EH/EH - Ecce homo DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso) II. Siglas dos escritos inéditos inacabados: GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego) ST/ST - Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia) DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo) GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico) BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino) CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos) 436 cadernos Nietzche 29, 2011 PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos) WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral) III. Sigla dos fragmentos póstumos: Nachlass/FP IV. Edições: KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe KGW = Kritische Gesamtausgabe KSA = Werke: Kritische Studienausgabe KSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe V. Formas de citação Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará a seção; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remeterá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo, indicará a seção. Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano, conforme o caso, indicará a parte do texto. Para os fragmentos póstumos, os algarismos arábicos, que se seguem ao ano, indicarão o fragmento póstumo. cadernos Nietzche 29, 2011 437 Notes for contributors General Informations 1. Only articles unpublished in Portuguese will be accepted. The only responsible for the ideias, positions and interpretations in them are the authors. 2. The articles must be sent by e-mail, in a file attached in PDF format (Box below). 3. Articles should not exceed 55.000 characters (including spaces) and be typed in Times New Roman, letter size 12, with aligned paragraphs and spacing 1,5. 4. Quotations up to 5 lines may appear normally incorporated in text. For longer quotations use letter size 10. 5. Terms from non-latin alphabets must be transliterated. All terms or expressions in prominence shall appear in italics, not in bold. 6. Contributors with figures, carvings, illustrations and drawings will not be accepted. 7. Contributors should enclose an abstract (not exceeding 100 words) and key-words (not exceeding 6 words), both in the original language and in English. 8. The original articles must present the author´s full name, institution s/he belongs to (in full and in abbreviations) and e-mail. cadernos Nietzche 29, 2011 439 9. Cadernos Nietzsche retains the copyrights of its published texts. However, authors have permission to republish their own texts with no need of an explicit authorization, since they mention Cadernos Nietzsche publication data. 10. The Cadernos Nietzsche uses a double-blind review process. Contributions not accepted for publication will not be returned. Manuscript Preparation 1. Bibliographical references must come in the end of the text, limited to its cited titles. Number them all following an alphabetic order according to the author´s last name (in case of the same author, from the least to the most recent work). Examples of bibliographical references: Books: MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1971. Books chapters: BORHEIM, G. A medida da liberdade. In: NOVAES, A.(org.) O avesso da liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.41-57. Articles: MÜLLER-LAUTER, W. Décadence. Trad. Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.6, p. , 199. MÜLLER-LAUTER, W. Le problème de l’opposition dans la philosophie de Nietzsche. Trad. Blaise Benoit. Revue philosophique, Paris, t.CXCVI, n.4, p.455-478, out.-dez. 2006. 440 cadernos Nietzche 29, 2011 2.References to Nietzsche’s works should be made in the text, as follows: Work or Posthumous Fragment (with the year); section, number of the aphorism, paragraph or fragment, number or volume of KSA or KSB or KGW or KGB and (after the dot) page number (with respect to issues and acronyms, see below, the “Convetions for Nietzsche’s Works quotations). (The other references to other authors or reviewers citations or references made in the text should go to the footnote). Examples: Za/ZA I, Of the Adder’s Bite, KSA 4.88 Nachlass/PF 1881, 11[143], KSA 9.496 EH/EH, Thus spoke Zarathustra 6, KSA 6.343 s./f. EH/EH, Why I am So Wise 10, KSA 6.297 GD/CI, Morality as Anti-Nature 6, KSA 6.87 GM/GM I, 13, KSA 5.278 cadernos Nietzche 29, 2011 441 Conventions for Nietzsche’s Works quotations Cadernos Nietzsche adopt the convention proposed by Colli/ Montinari edition of Nietzsche´s Complete Works. The acronym in Portuguese should accompany the acronym in German, intending to facilitate the efforts of readers less familiarized with the original texts. I. Acronyms of texts published by Nietzsche: I. 1. Texts edited by Nietzsche himself: GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia) DS/Co. Ext. I - Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor) HL/Co. Ext. II - Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida) SE/Co. Ext. III - Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador) WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth) MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1)) cadernos Nietzche 29, 2011 443 MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2)) VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças) WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra) M/A - Morgenröte (Aurora) IM/IM - Idyllen aus Messina (Idílios de Messina) FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência) Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra) JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal) GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral) WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner) GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos) NW/NW – Nietzsche contra Wagner I. 2. Texts prepared by Nietzsche for edition: AC/AC - Der Antichrist (O anticristo) EH/EH - Ecce homo DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso) II. Acronyms of unfinished inedita writings: GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego) ST/ST - Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia) DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo) GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico) BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino) 444 cadernos Nietzche 29, 2011 CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos) PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos) WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral) III. Abbreviations and acronyms of posthumous fragments: Nachlass/FP IV. Editions: KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe KGW = Kritische Gesamtausgabe KSA = Werke: Kritische Studienausgabe KSB = Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe V. Forms of citation For texts published by Nietzsche, arabic cipher will indicate the section; in the case of GM/GM, the roman cipher right before the arabic will address to the part of the book; in the case of Za/ ZA, the roman cipher will address to the part of the book and will be succeeded by the discourse title; in the case of GD/CI and EH/ EH, the arabic cipher, which will succeed the chapter, will indicate the section. For the unfinished inedita writings, the arabic or roman cipher, according to each case, will indicate the part of the text. For the posthumous fragments, the arabic ciphers, which succeed the year, will indicate the posthumous fragment. cadernos Nietzche 29, 2011 445