MAIS UM EQUÍVOCO. Silvana Brunelli Zimmermann
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MAIS UM EQUÍVOCO. Silvana Brunelli Zimmermann
REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 A OPORTUNIDADE BRASILEIRA: MAIS UM EQUÍVOCO. Silvana Brunelli Zimmermann Com a introdução dos museus de arte moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro, bem como das Bienais, o artista brasileiro se vê à frente de novas situações: por um lado, rompia-se com o círculo fechado em que se desenvolviam nossas produções artísticas, colocando-nos a par do que se fazia de mais novo no mundo, através das exposições, encontros e interações com artistas estrangeiros; por outro, promovia-se uma apressada atualização da nossa arte. Os artistas eram impelidos a sentir a necessidade de inovar e de atualizar-se advinda da persistente dependência cultural e da imposição do mercado; desejavam se apropriar das técnicas e formas de expressão mais avançadas em uso nos centros culturais de ponta - para nós ainda o europeu seguido do norteamericano. Nesse contexto é que Max Bill, a convite de Pietro Maria Bardi expôs, em 1950 no Museu de Arte. No ano seguinte, quando da I Bienal de São Paulo, a sua obra Unidade Tripartida ganha o primeiro prêmio internacional de escultura. A partir daí inaugura-se um circuito de palestras dos mais destacados artistas e teóricos concretistas, entre eles o próprio Max Bill (1953), Tomás Maldonado (1956) e Alfredo Hlito (1957). No auge das pesquisas concretistas brasileiras e fazendo-lhes oposição, o pintor francês Georges Mathieu, defensor da abstração lírica1, foi convidado a expor no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (primeira instituição a comprar uma obra sua) em finais de outubro de 1959, seguindo para São Paulo, Bahia e Brasília. Georges Mathieu na sua conferência em São Paulo a 4 de dezembro de 1959, posteriormente publicada com o título “A Oportunidade Brasileira” na revista Senhor2, faz alguns questionamentos que merecem reflexões, pois, de certo modo, nos auxiliam a perceber, de maneira peculiar, o que se passava no nosso cenário artístico e o modo pelo quais nossos artistas se posicionavam. 1 Dada a confusão dos termos empregados para classificar a obra de Mathieu, principalmente da parte de nossos articulistas, opto pela categoria do informal gestual. O próprio artista fazia distinções entre tachismo, abstracionismo lírico, tachismo gráfico, e outras, não se considerando representante das mesmas. Tomás Maldonado serve-se dos termos action painting e action clowing para designar a obra do pintor francês. 2 Georges Mathieu, “A oportunidade brasileira”, Senhor, São Paulo, (5): 65-66, maio 1960. Esta palestra foi publicada na íntegra no livro do pintor Au-dela du Tachisme, Paris, Rene Julliard, 1963, pp. 215-222. Na versão francesa ainda constam considerações sobre a não participação dos artistas franceses na Bienal de São Paulo, assunto que não será abordado nesse estudo. 204 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 Em “A Oportunidade Brasileira”, podemos reconhecer três momentos: um em que o artista diz o que pensa sobre o Brasil, outro em que tece considerações sobre o concretismo e um último sobre a pintura informal. I Num tom de superioridade, paternalista, Mathieu revela-se ou quer se revelar um conhecedor da nossa história e dos nossos avanços artísticos. Suas colocações assumem-se sérias, não economizam elogios para dar conta da essência brasileira e do que temos de melhor. Contudo, à medida que a leitura prossegue, entre doses de ironia crítica e enganos, percebemos a teia que o artista constrói para atingir seu objetivo. Para Mathieu, o Brasil se mostra ao mundo como uma civilização total porque soube operar uma síntese magistral de elementos a priori disparatados: a pseudocultura européia positivista, de um lado, e, do outro, a contribuição, da maior originalidade, vividez e frescor, de povos abusivamente chamados primitivos.3 O artista, ao afirmar que sintetizamos o racionalismo europeu com as nossas características “primitivas”, demonstra que o conhecimento que tem da nossa civilização é bastante superficial e preconcebido. Estaria ele querendo dizer que realizamos um daqueles tantos projetos culturais que estavam na base das diversas fases e etapas do modernismo brasileiro. E a qual corresponderia? Torna-se necessário para avançarmos entender o uso que Mathieu faz do termo primitivo. Dentre as possibilidades, a que parece mais acertada é a conjugação de uma civilização ainda não aliciada pela sociedade e cultura ocidental européia - que se mantém em seus estados de pureza, liberdade e felicidade, valorizando suas características instintivas, mágicas e alógicas - e os apelos aos elementos exóticos e folclóricos. Mário de Andrade ao considerar o recorrente posicionamento dos europeus em relação à nossa arte, já observava: É uma coisa fatal: os europeus fatigados de sua civilização, só pedem para as artes americanas ‘um exotismo’, uma cor local que afinal das contas não é tão exótica assim. Se esquecem que a nossa civilização é fundamentalmente européia, e sonham com uma China e uma África de quinze séculos atrás.4 3 Idem, p.65. 205 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 Seguindo o raciocínio de Mathieu, as razões da oportunidade brasileira estariam atreladas à nossa história, psicologia, etnia e cultura. A história nos teria privilegiado por termos sido descobertos em 1500 e começarmos em pleno barroco: assim não sofremos “as influências maléficas da renascença”, escapando de “todo o racionalismo estreito de toda a tradição clássica”. Em suas justificativas, Mathieu faz uso daquele argumento tão comum: o da vantagem de possuirmos uma bela pátria, na qual prevalece a natureza generosa e exuberante a nos proteger dos perigos do Humanismo. Já a psicologia corresponde ao padrão do povo pleno de entusiasmo e otimismo, “fermentados pelo gosto da participação”. Acrescenta-se a generosidade, a contradição e o ilogismo, a confiança e a fé, o gosto pela aventura e pelo risco, e finalmente o improviso, este último exemplificado pela obra do arquiteto Oscar Niemeyer. A etnia, através da mistura das tradições índia e africana, dá o tom do divertimento, do sacro e da festa. A cultura é representada pela Semana de Arte Moderna de 22, pelo movimento antropofágico (premonição de que a cultura ocidental se esgotaria e que seria a vez do cultivo das contribuições afro-índias), pelas criações do Museu de Arte, do Museu de Arte Moderna e da Bienal de São Paulo. Parece-nos impossível levar a sério tal visão. Mathieu passou por cima da história das artes visuais brasileiras, principalmente a do período monárquico - caracterizada pelo neoclassicismo cultivado nas academias de belas-artes européias, e dos processos imigratórios que por si afastam a idéia de hegemonia primitiva brasileira. Mathieu parece ter-se colocado a serviço da nossa causa moderna. Retrocedendo para 1928, é possível estabelecer elos entre suas idéias e o manifesto antropófago de Oswald de Andrade. No artigo “A Oportunidade Brasileira” o artista parece conhecer o manifesto, pois além de mencioná-lo, titulou uma de suas obras realizadas no Brasil como Mort Antropophagique de l’Êveque Sardinha. As idéias antropofágicas gravitavam em torno da extirpação do que nos era estranho, imposto, antagônico e colonizador, visando reabilitar o índio não catequizado, promovendo ligações desse com os “pacíficos” estrangeiros que cá vinham. “Comendo todos emboabas” e os ídolos importados resgatávamos o que deveria ter sido o curso natural da nossa história, recuperando nossa verdadeira expressão. As palavras de Oswald de Andrade demonstram a grande proximidade das idéias de Mathieu: 4 Aracy A. Amaral, Arte pra quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970, São Paulo, Nobel, 1987, p.102. 206 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 Nós importamos, no bojo dos cargueiros e dos negreiros de ontem, no porão dos transatlânticos de hoje, toda a ciência e toda a arte errada, que a civilização da Europa criou. Importamos toda a produção dos prelos incoerentes de Além Atlântico. Vieram, para nos desviar, os Anchietas escolásticos, de sotaina e latinório; os livros indigestos e falsos. Que fizemos nós? Que devíamos ter feito? Comê-los todos. Sim, enquanto esses missionários falavam, pregando-nos uma crença civilizada, de humanidade cansada e triste, nós devíamos tê-los comido e continuar alegres. Devíamos assimilar todas as natimortas tendências estéticas da Europa, assimilá-las, elaborá-las em nosso subconsciente, e produzirmos coisa nova, coisa nossa.5 Mathieu vai mais longe em suas considerações. Após caracterizar o Brasil, a partir delas, discute a oportunidade da arte moderna brasileira, exemplo para a Europa que se debatia em encontrar saídas, pois o racionalismo incumbiu-se de aprisioná-los. Somos conduzidos a pensar que esta só sobreviveria se voltasse a relançar olhares para o primitivo. Em anos bem anteriores, o próprio Oswald de Andrade já havia sugerido que a Europa procurava se primitivizar: para tanto bastaria observar o interesse dos grandes movimentos pelas culturas pré-colombianas e africanas, pelo Caribe, pelos nativos não aculturados dos Estados Unidos, entre outras. II Para entender a operação de Mathieu, devem-se analisar os fundamentos da sua obra pictórica, na execução da qual se destacam três motivos: a velocidade, a não-premeditação, e a concentração. A velocidade e a rapidez libertariam o artista da realidade limitadora e das convenções estéticas, como também do modelo, levando-o a concentrar-se na criação e não no artesanato. Para o artista, a velocidade não despreza o controle de execução, não é criação cega: o pintor deve dar livre curso aos impulsos, desde que guarde o controle. A contraposição marinettiana velocidade/lentidão pode ser aplicada ao “fazer arte” de Mathieu: A velocidade, tendo por essência a síntese intuitiva de todas as forças em movimento, é naturalmente pura. A lentidão, tendo por essência a análise racional de todos os cansaços em repouso, é naturalmente imunda.6 5 Maria Eugênia Boaventura, Os dentes do dragão: entrevistas, São Paulo, Editora Globo/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990, p. 44. 6 Annateresa Fabris, F ut urismo: um a po é t i c a d a modernidade, S ã o P a u l o , E d i t o r a Perspectiva/Editora da Universidade de São Paulo, 1987, p. 81. 207 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 A não-premeditação, tanto das formas quanto dos gestos, nos parece impossível, pois quem pinta sabe o quanto é difícil liberar-se dos condicionamentos gestuais, já que se repetem inconscientemente. Ferreira Gullar, ao analisar o que considerava como as duas faces do tachismo uma representada pela arte-ação de Pollock e a outra a praticada pelos europeus, - define o que entende por Tachismo: Uma pintura que se nega a toda forma definida, à vontade da construção, de estrutura e a qualquer referência intencional ao mundo exterior tem que buscar apoio, fatalmente, ou nos impulsos desordenados da subjetividade ou no automatismo da ação. Num caso como noutro, o trabalho do pintor se resolve na expressão de um estado incontrolado e, por isso mesmo, confinado à sua desordem. Em outras palavras, uma tal pintura esta sempre aquém do trabalho efetivamente criador da arte; trabalho que decerto se alimenta daquele caos mas que, em lugar de deixá-lo verter-se fora, por si, sobrepõe-se a ele e lhe dá forma. Eis por que, em nossa opinião, o Tachismo, na melhor das hipóteses, tem que ser para cada pintor uma experiência efêmera no campo da expressão e que, para guardar a sua autenticidade, está condenada a descer para o vértice de sua negação e se apagar nele ou a romper o automatismo em busca da forma e da estrutura.7 Conseqüentemente a esses argumentos, Ferreira Gullar rebateria, em anos posteriores, os procedimentos do pintor indagando se a sua pintura não reduziria o homem ao seu automatismo corporal, ou ainda se as formas “tachistas” não seriam um mero efeito de uma ação material sobre uma tela. Não cairiam os tachistas em sua perseguição pela liberdade total na prisão dos limites físicos de sua ação? O último elemento seqüencial de sua execução pictórica é o estado de concentração que, para o artista, seria o encontro com o Oriente. Culminaria num êxtase fornecendo-lhe a energia primal para o seu trabalho criativo. No Brasil, por exigência do pintor, esse arrebatamento dialogou com os sons dos atabaques. Mathieu, antes de iniciar uma pintura, escolhe um assunto, exemplificando: Entrada de Luís XIII, Esquartejamento de Ravaillac, Noite de São Bartolomeu, A Macumba. Esse tipo de escolha assemelha-se às etapas iniciais de um processo meditativo, servindo de ponto focal para uma possível ligação com os planos superiores com a intenção de se harmonizar com a Criação e visualizar símbolos e signos, o que nos parece ir contra o seu postulado de não-premeditação. 7 Ver Ferreira Gullar, “Duas faces do Tachismo”, O Estado de S. Paulo, 28 set. 1957. Posteriormente reproduzido em Fernando Cocchiarale & Anna Bella Geiger, Abstracionismo geométrico e informal, Rio de Janeiro, Funarte/Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1987, pp. 241-243. 208 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 Baseando-se nas considerações do próprio pintor acerca de nossas influências primitivas, o seu “fazer pintura” gestual no Brasil deve ser compreendido à luz das manifestações psíquico-físicas presentes em alguns rituais religiosos afro-brasileiros, a exemplo do estado de transe que favorece os deslumbramentos, delírios e contemplações. Como curiosidade, alguns dos títulos das obras executadas em série e que foram expostas no MAM-RJ em novembro de 1959: Nanã, Oxum, Yemanjá, Dugay-Trouin Prend Rio de Janeiro, Hommage à Antonio Conselheiro, Hommage à Lampeão, 1922, Mort Antropophagique de l’Êveque Sardinha. Pelo esboço acima se percebe os pontos de contato que Mathieu tenta forçar e forjar para aproximar sua arte de nós. Teria ele encarnado o papel do nosso mais recente catequizador? Não estaria sendo incoerente frente às suas considerações antropofágicas? Argan assim qualifica o pintor francês e a sua obra: Mathieu é um cultor da “caligrafia“ oriental: o princípio poético é que o signo precede o significado. A pintura, para ele, é “pura manifestação do ser”: deve produzir-se no mundo, fazer-se na presença de todos. Mathieu foi o primeiro a conceber a operação pictórica como espetáculo; pintou grandes quadros em poucos minutos, sob os olhos do público. Sabe viver numa época tecnológica, em que a máquina é o modelo do agir humano. Com a exibição espetacular de seu fazer, propõe vencer o complexo de inferioridade do ser vivo em face do aparato mecânico. Supera a máquina em velocidade e precisão, fazendo o que nenhuma máquina pode fazer, isto é, revelando o dinamismo coordenado da mente e da mão.8 A descrição de Argan nos permite analisar Mathieu e a sua estratégia de ação desenvolvida no Brasil pela via futurista enquanto tentativa de despertar nossa consciência para um novo modo de fruição da obra. Por outro lado, também podemos verificar Mathieu se apropriando de certos procedimentos dadaístas: a transferência do valor estético da obra para o produtor do processo espetacular, o repúdio à lógica, o fazer pelas leis do acaso, e a ironia. Não teria Mathieu visto a situação brasileira como “dada”, fato este já percebido e comentado por Benjamin Costallat em 1922, como menciona Annateresa Fabris: Se o viés antiestético do dadaísmo, que coloca em xeque a autenticidade da arte, é reduzido a pura blague, a ironia de Costallat assume, porém, um tom crítico quando do chiste passa à análise da situação brasileira, intrinsecamente “dada” em seu modo de vida, em sua forma de governo. O Brasil, visto pelo prisma do absurdo, da falta de lógica, torna-se berço ideal do 8 Giulio Carlo Argan, Arte moderna, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 635. 209 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 dadaísmo, “instituição nacional”, profundamente arraigada “nos nossos costumes, nas nossas roupas e na nossa mentalidade”.9 Antes, o contato direto que fazíamos com a arte européia era através dos nossos artistas que lá iam para estudar, atualizar-se e revigorar a sua produção artística, ou então quando os artistas estrangeiros fixavam residência no Brasil, porém a situação européia havia mudado fazendo com que muitos de seus artistas se deslocassem dos seus centros, difundindo a sua arte. É nesse sentido que podemos compreender Mathieu: como aglutinador da tensão entre a cultura européia e americana, a primeira por perder seu lugar para a americana e esta que vê na arte uma mercadoria e, portanto, voltada para ação, produção, divulgação e consumo. Mathieu associa-se ao espírito da propaganda, fazedor de sua própria publicidade, peregrinando pelo mundo a executar e expor seus trabalhos. Esse modo de operar somado à sua destreza lógica, nada mais é do que uma estratégia para justificar e injetar sua pintura no Brasil, já que os brasileiros, por similitude, seriam os mais qualificados para aceitá-la e compreendê-la, via primitivo. Corrobora o fato a declaração que o pintor fez revelando que sua arte se aproxima das nossas coisas pela improvisação que possuímos como estilo de vida e o encontro do prazer. O aspecto das cerimônias religiosas, o jogo e as manifestações coletivas de alegria (o carnaval carioca) são fontes inesgotáveis de ritmo e cor, que ele procura transportar para as telas. Ao mesmo tempo em que Mathieu afirma que o potencial revolucionário da arte está entre nós, ele parece se apossar dessa possibilidade para inverter a situação a seu favor, fazendo-nos reconhecer nele e na sua obra um valor a ser seguido. Estariam em suas intenções ser o novo portador na Europa dessa busca do primitivo, dada suas afinidades pictóricas com esses elementos, e visto acreditar ter eliminando da sua obra todo o caráter intelectual e racional? Todavia, Mathieu permanece em situação ambígua, pois possui uma produção teórica significativa e que aborda diversos assuntos como a física quântica, filosofia, matemática, história, teoria da arte, e outros. Se Mathieu transmitia a imagem de um conhecedor de nossas raízes culturais e de nosso desenvolvimento artístico, parece, porém, desconhecer as diferenças que transitam entre as nossas culturas primitiva, popular e erudita. Os valores, que ele aponta como o tripé no qual se fundamentaria a nossa oportunidade brasileira, estariam de acordo com as nossas necessidades artísticas eruditas do período, já que a arte aqui era feita pela e para a elite? Na época começava a desenvolver-se 9 Annateresa Fabris, O futurismo paulista: hipóteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil, São Paulo, Escola de Comunicações e Artes /Universidade de São Paulo, v.2, p.499. Tese de Livre-Docência. 210 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 timidamente uma espécie de “socialização da arte”, aqui entendida como oportunidade de iniciação no fazer artístico e conseqüentemente na fruição e no prazer estético desta produção. Não estaria ele, ao nomear-nos um povo ilógico, nivelando todos dentro de uma mesma categoria que justificasse a absorção de sua obra em nosso meio? O pintor francês, lançando mão de técnicas publicitárias para promover sua obra, a transforma num produto, e ao estabelecer correspondências entre os seus fundamentos pictóricos e nossas características culturais - sobretudo o prazer, a espontaneidade e a improvisação - tenta nos induzir a assimilá-la por que nos é mais adequada. Mathieu, como uma espécie de catequizador moderno, apresentando essa nova arte a ser seguida, faria naufragar o sonho de Oswald de Andrade que, ao término das discussões modernistas, diz termos adquirido um “consciente ético resultante da luta contra a resistência exterior”. Mais uma vez vem à tona a questão da nossa identidade na qual nos reconhecemos sem heranças e, portanto, sem referências que nos assegurem participar de uma estética de importação de modo crítico, que garanta uma apreensão adaptada as nossas realidades. No seu discurso, não estaria subliminarmente sendo pensado que, pelo fato de sermos latinoamericanos, estaríamos fadados ao regionalismo e ao exótico, como se a nossa arte tivesse que ficar sempre enquadrada em limites prefixados de circulação e valor? Não podemos sair do nosso gueto e discutir a arte em termos mais amplos, construindo discursos internacionais, a partir de nós mesmos? Corrobora, ainda, o fato da história, da teoria e da crítica da arte terem sido construídas, em grande parte, com uma visão eurocêntrica, condicionando metodologicamente e axiologicamente o nosso discurso e o nosso “fazer arte”. Esses sistemas incorporaram-se em nós produzindo grandes confusões e dúvidas. Aracy Amaral chama a atenção para o fato de que, somente em 1969, do encontro de Quito patrocinado pela Unesco, é que se inaugura uma bibliografia artística latinoamericana feita a partir de uma ótica local. Para completar e validar sua estratégia, Mathieu, aponta os perigos a que estamos sujeitos por contrariarem nossas raízes e nossas conquistas. Nós deveríamos ser cautelosos com alguns dos nossos intelectuais - “inteligência primária” - “que acreditam estarem ordenando a nossa desordem e com isso nos fazendo um bem”. Mathieu acreditava que as experiências tachistas e concretistas estavam morrendo, estando surpreso de que Mário Pedrosa continuasse a defender um movimento que estava morto desde 1925.10 10 Hildebrando Giudici, “Lírico abstrato afirma: concretismo está morto”, Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30 out. 1959. 211 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 Mathieu considera-nos retardatários por estarmos mergulhados no concretismo ou neoconcretismo, pois para ele a arte abstrata geométrica data de 1908 e se utiliza de todas as leis de equilíbrio, de composição e regras de ouro herdadas da Renascença. Também vê na figura de Max Bill: o mais nefasto dos responsáveis pela instalação de uma pseudomorfose: e isto me penaliza porque o Brasil não é nenhuma Suíça ou Alemanha. O concretismo ou “neoconcretismo” constitui a mais estranha anomalia do Brasil.11 No momento, é interessante para Mathieu desmascarar e desmistificar Max Bill e a arte concreta, pois, como vimos, ele chamava a si a continuidade do nosso processo de arte moderna. Para que ele ocupasse esteticamente tal lugar era necessário nos afastar do jugo do artista suíço que há quase uma década permanecia entre nós. Max Bill em suas “Afirmações Sobre a Arte Concreta”12 acentua essa rivalidade: o dilúvio do tachismo invade todas as paredes. sobre imensas superfícies o desperdício de enormes quantidades de cores gesticulações e êxtases egocêntricos sem individualidade e sem fundamento. foi alguma vez diverso desde a eclosão? a erupção não é sempre mais fácil do que a construção? não são sempre poucos aqueles que procuram operar com valores universais enquanto outros através de efeitos aparentes se inflam como espantalhos? Outro perigo residiria na pintura informal que vigorava na Europa e nos Estados Unidos, Mathieu, nela, reconhece outra moda de intelectualização da arte. Longe de ser abstrata, marcada pela invenção de novas estruturas, essa pintura, segundo o pintor francês, apoia-se na pintura realista, com o único objetivo de tornar visível a natureza. III 11 Georges Mathieu, op cit., p.66. As afirmações de Max Bill constam do catálogo: Exposição de Arte concreta. Waldemar Cordeiro, Kazmer Fejer, Judith Luand, Maurício Nogueira Lima, Luis Sacilotto. Retrospectiva 1951-1959, Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, jul. 1960. 12 212 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 A crítica paulista e carioca olhou para o artista com desconfiança. Esta última, sobretudo, mostrou-se mais escandalizada com a personalidade excêntrica do pintor, com o número de telas pintadas em tão pouco tempo, e com o espetáculo que envolvia o seu fazer artístico. Uns poucos se deixaram levar pelo lado sedutor dos seus discursos e, entre esses, houve quem mencionasse a necessidade de nos colocarmos pari passu com esse artista. Todavia, foram raros os artigos que polemizavam verdadeiramente com a arte de Mathieu: Não acreditamos, pois, no automatismo instintivo do sr. Mathieu e apenas lhe percebemos uma ação bem bolada para alcançar uma notoriedade que a vulgaridade daquilo que alcança fazer não lhe garantiria por si só. Uma atitude portanto, perfeitamente intelectual.13 Quer Mathieu desligar a arte do figurativismo estéril que já não oferece mais esperanças de renovação. Quer reintegrar a pintura nos sinais. Não advoga originalidade para esta tese. Sabe que ela é velha como o mundo: a arte primitiva era assim desligada da referência. Arte pura. No caso da pintura, o que Mathieu chama, adequadamente: pintura indireta.14 Em São Paulo, Pietro Maria Bardi, na defesa do pintor, posiciona-se: [...] a arte moderna é completamente destacada do passado. Essa incompreensão e o aparecimento de artistas como Mathieu é um choque, mas um choque necessário. É ele um dos maiores representantes do “máximo de liberdade na arte”.15 Ferreira Gullar, interlocutor do movimento neoconcreto, parece ter sido o único a debater as idéias de Mathieu porque reconhece nelas a oportunidade de analisar alguns problemas da pintura do período. Atenta para a tendência no Brasil em confundir tachismo com pintura abstrata, e elege o primeiro como correspondente da arte do pintor francês. O que na realidade Ferreira Gullar deseja era demonstrar que o tachismo se aproxima do concretismo do grupo paulista, representando um e outro dois pólos extremos que terminam por se tocar. A posição neoconcreta, sem trair a situação do homem contemporâneo, confiava na capacidade criativa do artista: Onde os tachistas e os concretistas paulistas se encontram é exatamente nesse ceticismo radical quanto à possibilidade de um conhecimento, de uma ‘invenção’ fundada nas faculdades poéticas do homem. O tachismo, como aquele concretismo, são ambos prisioneiros do racionalismo científico: o tachismo tentam provar-lhe o seu fracasso; os concretistas exageram 13 Quirino Campofiorito, “Impulso e inconsciência”, O Jornal, Rio de Janeiro, 22 nov. 1959. Jayme. Maurício, “Recordação de Mathieu”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 dez. 1959. 15 Cf. em entrevista concedida ao articulista Moacyr Jorge, “Mathieu vai pintar em São Paulo travando polêmica com o público”, Diário da Noite, São Paulo, 9 nov. 1959. 14 213 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 o seu alcance. Já os concretistas paulistas não têm nenhum compromisso com esse tipo de cópia (do real): desligam-se inteiramente do fisionômico em qualquer grau que ele apresente. Confiantes das últimas conquistas da mecânica, do racionalismo ciberneticista, da lógica matemática, adotam princípios rígidos de composição e métodos combinatórios que, em sua experiência substituem a invenção poética. Estamos, como se vê, no pólo oposto ao do tachismo, mas aqui também o homem se demite para criar enquanto consciência total. Daí a importância da posição neoconcreta que reafirma a capacidade criadora do artista, a independência da arte como meio de conhecimento. Não conhecimento do mundo como abstração científica, como conjunto de leis físicas. Conhecimento do mundo como lugar do homem, com experiência existencial, como fonte, meio e objetivo da imaginação poética.16 O construtivismo brasileiro incluía-se no projeto nacional dos anos 50, tomando para si uma responsabilidade progressista e participante do processo industrial. Mathieu, ao colocá-lo em xeque, considerando-o ultrapassado, inadequado a nossa cultura e sociedade, e desprezando outras tendências aqui existentes deixa-nos confusos e com uma única alternativa: abraçar a sua própria pintura. No final da década de 50 a disputa que se estabeleceu entre os concretistas paulistas e os cariocas já indicava rachaduras em tal movimento. Todavia a ruptura oficializou-se com a I Exposição Neoconcreta, na qual os neoconcretos se posicionaram defendendo a não manutenção exclusiva da prática racionalista, reclamando a expressividade do artista. Não podemos desprezar o fato dos integrantes do grupo paulista, ao contrário dos neoconcretos cariocas, estarem na sua maioria comprometidos profissionalmente com a indústria e, conseqüentemente, com a produção, o que vem justificar o interesse em manter o concretismo ortodoxo. Ainda em relação ao concretismo, parece que o pintor francês, conseguiu prever a inadequação dessa arte para o Brasil, que somente em anos posteriores foi avaliada e assumida, até pelos seus próprios defensores. O esgotamento ou inviabilidade de um projeto construtivo dogmático pode ser entendido a partir das declarações de Ferreira Gullar e Geraldo de Barros: [...] tentar fazer uma escultura de Max Bill, é perder a noção da realidade: aquela arte é produto do alto desenvolvimento técnico e industrial. Prova disso é que o mais evidente defeito das esculturas concretas realizadas no Brasil era a sua péssima execução. E isso era um grave, gravíssimo defeito, pois o rigoroso acabamento das obras de Bill é propriedade inerente à precisão das suas formas escultóricas, matematicamente concebidas. A impossibilidade de realização material, no Brasil, de tais esculturas não é apenas uma limitação eventual mas um dado objetivo que revela o desligamento entre o artista concreto e a realidade do país. E por outro lado as transformações ocorridas quando em contato com nossa cultura.17 16 17 Ferreira Gullar, “Duas estéticas de demissão”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jun. 1959. Idem, Cultura posta em questão, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1965, pp. 17-18. 214 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 ou então, dito de outra forma: [...] adaptar à nossa realidade modelos suíços, impossíveis de aqui sobreviverem, em decorrência da própria precariedade do processo de industrialização e da instabilidade de um país economicamente satélite. Conforme afirmou Geraldo de Barros: não acredito em desenho industrial em países como o Brasil, porque acho que o desenho industrial vem com o desenvolvimento do povo e da cultura.18 O que está sendo colocado vai além da averiguação de Mathieu ter deixado seguidores da sua pintura gestual entre nós, e sim a impressão de sempre estarmos adiando ou levando para à frente o nosso projeto moderno e não termos uma cultura de resistência. Nossa modernidade não conseguiu se fazer por rupturas, mas sim por atualizações contínuas, de modo que estamos sempre a reproduzir culturas ao invés de produzir de acordo com as nossas necessidades, inventando identidades conforme o sincretismo próprio dos processos atuais. Não seria este também o caso das nossas correntes construtivistas, apesar da renovação estética que acreditamos ter proporcionado? IV As considerações e caracterizações que Mathieu faz da nossa arte e do povo brasileiro nos conduzem à complexa obra de Hélio Oiticica, mais especificamente aos Parangolés e à Tropicália. Sem pretender fazê-lo, Hélio Oiticica consegue de modo enraizado, profundo e crítico, fornecer respostas e exemplos para aquelas proposições artísticas que o pintor francês, através de sua própria obra pictórica, tentou implantar em nossa arte e em nossos artistas, sem, contudo, obter sucesso. No que a produção teórica de Hélio Oiticica encontraria ressonância nas idéias veiculadas por Mathieu? Suas obras possuem pontos de contato? Quando da visita do pintor francês, Oiticica ensaiava nas obras Bilateral e Relevo Espacial seus primeiros rompimentos com a linguagem tradicional. Entretanto Mathieu, apesar de toda miseen-scéne, ainda mantinha certos tradicionalismos pictóricos - o emprego da tela, a execução da pintura 18 Aureliano Menezes, A situação do móvel no Brasil: do projeto à implantação industrial (anos 40 aos dias atuais), São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/Universidade de São Paulo, jun. 1977, p. 30. Trabalho de Graduação Interdepartamental II. 215 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 na vertical, o uso dos pincéis e dos tubos de tintas, - tradicionalismos estes já rompidos pelos norteamericanos, como Pollock. Em relação à fruição das obras dos dois artistas em questão, verifica-se que em Hélio Oiticica já podemos prever a necessidade de movimentar-se ao redor da obra, era a tomada de consciência do espaço como elemento ativo. Ao contrário, Mathieu, mantinha o espectador num estado de contemplação passiva em relação à obra final. Foi a partir de sua vivência pictórica e teórica dentro da arte concreta e de uma contínua pesquisa, que Oiticica pode romper e evoluir sua obra, seqüencialmente, dos Metaesquemas, Relevos Espaciais, Relevos Bilaterias, Parangolés, aos Penetráveis. Assim procedendo, Oiticica havia dado uma resposta positiva a inquietação central de Ferreira Gullar - a falta de “continuidade de experiência” dos nossos artistas - a qual era determinante para uma posição mais crítica em relação aos modismos que aqui passavam e eram absorvidos, sem a devida adequação ao nosso meio cultural e sem apoiar-se numa temática nacional. Se não nos é possível estabelecer elos diretos entre a obra dos dois artistas, é possível reconhecer que Hélio Oiticica se preocupou em incorporar em suas obras questões que, de alguma maneira, foram problematizadas por Mathieu. Entre elas estariam as proposições antropofágicas, também amplamente expostas em seu texto “Brasil Diarréia”. Em Hélio Oiticica, arte e vida não se separam, daí, por um lado, o utilizar-se das manifestações da cultura popular como o samba, da alegria, da participação, da festa, do improviso; por outro, dos modelos das construções arquitetônicas, aparentemente precárias, das habitações das favelas cariocas, facilmente identificáveis já nos seus primeiros Penetravéis. Para o artista francês, nas referências à cultura popular, residiria a nossa oportunidade brasileira. Com os Parangolés, Oiticica reuniu em suas experiências o popular e o erudito, às vezes estabelecendo troca de papéis e confronto. Também lhe foi a oportunidade de reconhecer, por meio do samba, o elemento da improvisação: [...] quanto mais livre a improvisação, melhor; há como que uma imersão completa do gesto, do ato com o ritmo, uma fluência onde o intelecto permanece como que obscurecido por uma força mítica interna individual e coletiva (em verdade não se pode aí estabelecer a separação). As imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis - são o oposto do ícone, estático e característico das artes ditas plásticas. [...] A experiência da dança (o samba) deu-me portanto a exata idéia do que seja a criação pelo ato corporal, a continua transformabilidade.19 19 Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro, Rocco, 1986, p. 73. 216 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 Entretanto, Hélio Oiticica não desenvolveu essas formas artísticas de modo inconsciente e incontrolado, como Mathieu parecia propor ao estabelecer seus questionáveis fundamentos pictóricos. Ao contrário, Oiticica teve um cuidado rigoroso com a qualidade e coerência de seus projetos, sabendo afastar-se do que seria reconhecido apenas como exótico e folclórico. A questão da arte brasileira foi por ele analisada a partir do caráter da formação cultural brasileira, não somente no seu sentido de cultura e contexto social, mas também de modo mais amplo, englobando o ético-político-social, postura que difere da do pintor francês. Daí, que em “Brasil Diarréia” vê a questão da nossa falta de caráter e propõe: A questão da arte brasileira é ter caráter, isto é, entender e assumir que todo esse fenômeno, que nada deve excluir dessa posta em questão: a multivalência dos elementos culturais imediatos, desde os mais superficiais aos mais profundos (ambos essenciais); reconhecer que para se superar uma condição provinciana estagnatória, esses termos devem ser colocados universalmente, isto é, devem propor questões essenciais ao fenômeno construtivo do Brasil como um todo, no mundo, em que tudo isso possa significar e envolver.20 e, [...] como vimos, fugir ao consumo não é uma posição objetiva, é alienar-se. O mais certo seria consumir o consumo.21 O que Oiticica deseja é o reconhecimento do nosso caráter de subdesenvolvimento e a superação da dependência não pelo isolamento em si, mas pelo confronto crítico com estas culturas, já que ele compreende a arte brasileira como uma “tensão permanente criada por inúmeras variáveis”. Ele propõe o abandono dos modelos e dos idealismos, ou seja, daquilo que acreditamos que a nossa cultura seja, pela situação concreta - aquilo que ela é. Em Tropicália, Hélio Oiticica, na busca de uma “imagem-estrutura brasileira total”, desejou derrubar o “mito universalista da cultura brasileira”, calcado na Europa e América do Norte. Oiticica explica o que quis com Tropicália: [...] foi uma tentativa de criar o mito da miscigenação - somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo - nossa cultura nada tem a ver com a européia, apesar de estar até hoje a ela 20 Idem, “Brasil Diarréia”, em Ferreira Gullar, Arte brasileira hoje, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973, p. 150. 21 Carlos Zilio, “Da antropofagia à tropicália”, em et al. , O N a c i o n a l e o po p u l a r n a cultura brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1983, p.43. 217 REVISTA OHUN – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA Ano 2, nº 2, outubro 2005 ISSN: 18075479 submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disto que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva a o m e n o s , e s s a h e r a n ç a m a l d i t a e u r o p é i a e a m e r i c a n a t e r á d e s e r a b sorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é hibrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio.22 Tropicália foi um produto brasileiro que rompeu, naquele momento, com a produção internacional. Eram imagens que só poderiam ter sido pensadas e criadas dentro da cultura brasileira, caso contrário a proposta se esvaziaria. Em Mathieu, as suas idéias originam-se de um modo de nos olhar viciado, folclórico e fundamentado em modelos. Entretanto, em Oiticica isso não ocorre, suas preocupações com a arte brasileira e com a nossa cultura advêm de suas experiências e observações no seio em que elas se originam, convivem e se determinam. Talvez, os Parangolés e a Tropicália sejam os representantes daquela arte brasileira que Georges Mathieu acreditava que pudéssemos realizar, não tanto pela renovação da linguagem e pela obra em si, mas pelas proposições que elas encerram. Na realidade, apesar dos enganos e da superficialidade com que o artista francês tratou a arte brasileira e o momento artístico em que estávamos inseridos, indiretamente, esbarrou na questão da arte-identidade-brasileira. Hélio Oiticica tentou através de suas obras - teórica e prática - lançar luz, aguçar e tomar um rumo diferente para pensar e criar dentro de um estado de ser brasileiro: uma oportunidade brasileira. 22 Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, op cit, p. 108. 218
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