Esqui No Fim Do Mundo II

Transcrição

Esqui No Fim Do Mundo II
Esqui no fim do mundo – Julho 2014
II - Primeiro dia em Cerro Castor.
Primeiro de agosto. Acordamos de um sono pesado e insuficiente com o
som do celular do Gui. Um preguiçoso ficou esperando pelo outro
enquanto o instrumento berrava um som altamente incômodo. Finalmente
o proprietário se levantou pesadamente, tropeçando em tudo quanto era
objeto que nós caprichosamente colocamos em seu caminho, malas,
botas, esquis, e desligou o alarme. Quarto de hotel com três homens a
bordo é sempre uma pista de obstáculos, guardam os pertences sempre no
Guilherme posa de esquiador em preparação, botas na neve, elmo com máscara na
cabeça, logo depois de descer do ônibus.
lugar onde caem, e celulares são como crianças, quando começam a
berrar exigem atenção, seja de madrugada, seja durante o dia. E, quanto
mais mal criado for o seu dono, mais ele incomoda; pessoas de pouco
respeito por seus pares permitem que gritem como moleques mimados em
igrejas, cinemas, teatros, salas de aula; a lista continua...
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Sentei-me na cama pesadamente, fazia um calor infernal naquele quarto
superaquecido, e levantei a cortina. A vista era um pátio nevado e vazio,
depois algumas casas e, cerca de dois quilômetros depois, o porto. E ainda
noite fechada.
Sabíamos que o dia estaria frio pela previsão meteorológica e nos
agasalhamos adequadamente: cuecas, ceroulas, camisetas, segundaspeles, enfim, todo o arsenal que levávamos para enfrentar o ambiente.
Depois subimos para o café.
Há que se aprender sobre o local antes de se lançar ao garfo, com tanta
roupa no corpo, mais o
aquecimento a sala de
refeições, tínhamos
sensação de uma
sauna seca. Mas pobre
é assim mesmo, nem
liga e sempre reclama
independente de ser
bom ou ruim, já que
não tem parâmetro de
comparação, e come
muito. Claro, era de
Eu (pode crer), na primeira subida para conhecer o Cerro
Castor. Pesado de tanta roupa.
graça, ou melhor, já
estava na diária. Eu
almocei café da manhã ingerindo comida junto com as reclamações de
meus companheiros pela minha capacidade de roncar no sono.
- “Moacir, tu és magro, não deverias roncar tanto.”
- “Imagina se eu estivesse acima do peso.”
- “Com minha experiência de médico legista eu te afogaria com o
travesseiro e depois diria que morreste de apneia do sono.”
Mui amigo esse Felipe... Tão amigo que avisa antes.
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A moça apareceu na portaria perguntando por mim (o chefe) e nos
encaminhou para o latão, eram 08h45’, literalmente madrugada porque
nenhum sinal de alvorada ainda se via no céu negro. Depois fizemos uma
volta completa pela cidade catando brazucas em tudo quanto era
espelunca fueguina. Todos os passageiros eram tupiniquins, a maioria
Eu na esteira de principiantes fotografado por Felipe. Fomos apenas testar a
memória muscular em uma única descida.
extremamente excitada e apreensiva por ser primeira vez na neve.
Fazia um frio antártico na Terra do Fogo. Não é um nome inadequado?
Deveriam dizer terra do gelo, do vento gelado, dos pinguins, qualquer coisa
que lembre um frio escandinavo. Quando chegamos nossa guia nos
mandou aguardar no saguão do prédio principal para nos entregar os
ingressos e depois alugarmos os equipamentos. Foram vinte minutos em que
a fila cresceu dois quilômetros. O conselho dela era uma fria pior do que a
da temperatura. Permanecemos confortáveis duas horas e meia na espera,
suando em bicas, pois aquele ambiente climatizado parecia um ônibus
carioca sem ar-condicionado numa tarde de verão, e nós vestidos para
uma incursão ao polo sul. Aquele saguão estava ainda mais quente que o
refeitório do hotel.
Liberei Guilherme (tinha seus próprio equipamento) para subir a montanha
e abrir a temporada enquanto permanecíamos naquela bicha que
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andava a passo de Fred em dia de jogo da seleção. Só chegamos ao alto
da montanha para iniciar a brincadeira ao meio-dia e meia. Fazendo as
contas do custo total da viagem dividindo por seis dias de esqui de sete
horas cada, aquelas duas horas e trinta custaram um absurdo. O Fred
também ganhou uma nota por cada minuto em campo sem correr na
copa. Só que ele ganhava, eu pagava.
Então comecei minha temporada de tombos, sorrisos e dores. Felipe foi pior,
acreditando que ainda sabia tudo de seu tempo de adolescente
californiano, há vinte anos, levou estabacos memoráveis e espetaculares
que não foram registrados em filmes, contudo ao final do dia reclamaria de
dores e cansaço.
Dei início pela pista
de principiantes
junto com o doutor
e numa única
descida vimos que
era insuficiente
para aquecer.
Subimos para as
pistas maiores. Lá
em cima Felipe
teve um entrevero
com sua prancha
Felipe em colóquio com sua prancha cuja fixação não queria se
deixar apertar. Coisa de equipamento alugado e ruim.
porque a fixação
estava travada e a
bota esquerda
ficara frouxa. Depois de muito tentar inutilmente desistiu e atirou a prancha
na neve num misto de revolta e frustração. Então o milagre se deu, a
fixação emperrada se abriu. E tem gente que não crê em milagres. Basta
uma boa porrada.
Como nossas velocidades de descida eram diferentes nos separamos. Eu
fiquei descendo azuis e vermelhas, Guilherme encarava tudo como um
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bólido, Felipe se adaptava à prancha novamente. Vinte anos é muito
tempo. Para mim no primeiro dia não foram muitos tombos, acho que dois
ou três, mas as botas, sempre elas, me apertavam os tornozelos e a dor ia
crescendo a cada
descida.
A neve era fresca, havia
caído nos últimos quatro
dias, o que era uma sorte.
Se tivéssemos viajado uma
semana antes não teríamos
esquiado por falta dela. E
naquele sábado ainda
nevava.
Fomos informados de que
haveria uma festa da
abertura da temporada
com esquiadores
descendo o morro com
tochas no escuro, disseram
que era um barato. Então
nos programamos para
ficar e assistir, mas Felipe
Depois de um dia de esqui, algumas copas de vinho, a
aparência que deixo é de um velho acabado e
alcoolizado.
Não é o paraíso?
viajou para o centro mais
cedo, tomando a
condução no meio da
tarde, para alugar equipamento na cidade e evitar filas.
Outra fria. A tal da festa era uma droga, não vimos nada retidos na fila para
comer alguma coisa na única lanchonete aberta na base da estação.
Depois de mais de uma hora de espera chegamos ao balcão do boteco
para ordenar nossos pedidos e descobrir que já não havia mais o que
comer.
Em seguida, felizmente, entramos no ônibus para a viagem de volta.
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Felipe já havia alugado prancha e botas quando chegamos ao hotel, ato
contínuo saí em busca de um par de esquis. Por sorte a loja era ao lado do
albergue. Ele foi o único certo, teve tempo de passear pela cidade,
comprou vinhos e lanches enquanto nós ficávamos naquela fila idiota para
comer vento.
Os esquis que aluguei eram ditos
pelo atendente como de alto
desempenho. Tudo bem, a
graduação deles é diferente da
que conheço, mas o
equipamento dava para o gasto.
Na loja de esquis não tinha fila,
mas tardou para me atender
quase uma hora, demorou tanto
que quando cheguei ao nosso
apartamento no hotel os dois me
deram uma mijada:
Antes de começar o exagero no prato Felipe
exibe fisionomia serena.
- “Onde andasse? Esqueceste de
nós? Estamos morrendo de fome
e tu não apareces!”
Dadas as explicações pertinentes à demora, já estávamos ficando
acostumados, fomos jantar.
Sob recomendação das guias invadimos uma churrascaria que tinha uma
vitrine com o assador e umas carcaças abertas de cordeiros em torno a um
fogo de chão. Só que a casa estava lotada e tinha fila. De novo.
Enquanto aguardávamos, nosso médico de bordo foi escolher um vinho
para abrir os trabalhos etílicos noturnos. Sob recomendação do escanção
local surgiu com uma garrafa de Trumpeter e três copas.
- “O cara disse que este é um dos melhores que ele tem.”
Estávamos ali sorvendo polidamente nosso suco de uva enquanto
observávamos o churrasqueiro trabalhar. Usava uma faca pesada e
cortava a ovelha com porradas precisas e fortes que ribombavam pelo
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ambiente. Era cheiro de bom churrasco misturado com as marteladas
sonoras do parrillaman.
Tenedor libre! Isso quer dizer que não importava o quanto comeríamos,
pagaríamos o mesmo. Novamente digo que pobre é dose. Eu jantei três
vezes, Felipe quatro, Guilherme cinco. Ao fim o garçom já nos olhava com
ar de desprezo, deve ser um desses que puxa o saco do patrão. À nossa
volta a aristocracia argentina também nos mirava com reprovação, talvez
com inveja de podermos comer tanto e sermos todos magrinhos. Você que
me lê agora e tem uma certa rusga com as balanças da vida não faça o
mesmo que eles, use a inveja como arma positiva, compre uma bicicleta.
Ou arranje uma
mulher novinha,
ambas fazem
emagrecer. As duas
coisas juntas, então,
podem lhe dar
aspecto de um tísico
(termo arcaico, vá
ao dicionário, se for
jovem, ou burro).
Voltamos
Guilherme de boca cheia mascando um naco de cordeiro
patagônico.
caminhando pelas
ruas da cidade
escorregando em gelo e brincando com uma dupla canina que nos
saudava à porta do restaurante. Aqui em Tupiniquínia o povo fica
preocupado com cães abandonados, mas lá a cachorrada fica na rua,
dorme sobre o gelo e nem se incomoda com o frio de -20º C.
Depois voltamos para o hotel, era hora de banho, lavar roupas de baixo e
descansar. Isto só para os que pudessem suportar o barulho da minha
motosserra. Às vezes nem eu mesmo, acordo com meu ronco.
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