Document 72536

Transcrição

Document 72536
Título
Inhotim e sensorialidade: um estudo do corpo na arte contemporânea
Autor
Adriana Camargo Pereira
Instituição
Unicamp – instituto de artes visuais
Resumo
Este estudo pretende abordar a problematização de três obras de arte contemporânea e
sua relação com o corpo, através da memória, diálogo, e apropriação com algumas
manifestações artísticas precedentes. A proposta é fazer um estudo teórico bibliográfico
das obras selecionadas, que mesclam técnicas e linguagens distintas como escultura,
instalação e o vídeo. São obras elaboradas a partir dos mais diversos materiais culturais,
e artísticos, num amplo espectro de regimes semióticos - do senso comum às
singularidades. O estudo pretende fazer uma análise comparativa das obras
selecionadas: como cada uma aborda a questão do corpo em suas proposições.
Palavras-chave
Arte contemporânea, corpo, sensorialidade.
Informações do autor
Eu, Adriana Camargo Pereira, sou formada em Comunicação Social Jornalismo,
professora universitária desde 2001 ministrando disciplinas como fotografia,
fotojornalismo, comunicação e contemporaneidade, cinema e vídeo, história da arte,
moda e identidade, moda e mídia, elementos e teoria da comunicação audiovisual. De
1
abril de 2010 até a presente data sou professora auxiliar na UESB em Vitória da
Conquista – BA. Na UESB tenho dedicação exclusiva, atuo como professora do curso
de Jornalismo e vice coordenadora do curso de comunicação. Coordeno o projeto de
extensão intitulado: Interdisciplinaridade: seis conferências sensoriais e o projeto de
pesquisa aprovado agora em dezembro intitulado: Outras poéticas: corpo e tecnologia
na arte contemporânea.
Sempre me interessei pelo estudo das artes visuais e corpo na arte. Minhas
pesquisas mais abrangentes tangenciam a temáticas como corpo e a identidade.
Esses dois projetos (pesquisa e extensão) em andamento trabalham diretamente
com temas que eu pretendo desenvolver no projeto de mestrado aprovado no 2°
semestre de 2011 no instituto de artes visuais da Unicamp: sensorialidade, corpo e arte
contemporânea. Esse projeto de mestrado pode-se dizer que reflete alguns
desdobramentos desses projetos que desenvolvo na UESB e que revelam o meu
interesse e pesquisa acerca do tema abordado na pesquisa aqui apresentada:
- Projeto de extensão: Interdisciplinaridade: seis conferências sensoriais.
Esse projeto pretende promover uma experiência cognitiva e interativa de caráter
interdisciplinar mesclando áreas do conhecimento: literatura, cinema e comunicação. A
proposta de trabalho será norteada a partir de uma obra literária: “Seis propostas para o
próximo milênio”, de Ítalo Calvino, que narra seis conferências: leveza, rapidez,
exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Para que a interdisciplinaridade,
característica fundante dessa proposição, aconteça como desejado contaremos com três
bolsistas sendo um de cada área do saber, que dialoga com a finalidade: letras, cinema,
comunicação. Esses bolsistas, orientados pelo coordenador e colaboradores do projeto
farão um estudo detalhado da obra onde serão apresentadas reflexões no que tange a
especificidade de cada área e ao enfrentamento do diálogo no coletivo. Após esse
momento cada bolsista trabalhará com duas das conferências citadas pela obra e ficarão
encarregados de ministrar oficinas sobre as impressões já discutidas e as reflexões terão
como suporte teórico/prático a aplicação fotográfica, para adolescentes, nas escolas
selecionadas no projeto. Como resultado de cognição e fruição estética do projeto
efetuado, cada uma dessas conferências se transformará em um espaço sensorial. Os
participantes farão uma Instalação, com caráter público e interativo; criada e ordenada
pelos: bolsistas, adolescentes, professores, comunidade etc. O evento será filmado e
2
depois analisado (a experiência do espectador) e ainda serão aplicados questionários nos
visitantes para um estudo de caso.
- Projeto de pesquisa: Outras poéticas: corpo e tecnologia na arte contemporânea.
Esse projeto tem o mesmo propósito e estudo do projeto de mestrado aqui
apresentado, porém com enfoque maior no corpo e na tecnologia: corporalidades
visuais, o homem pós-orgânico, a arte enquanto prótese do humano.
Introdução
O projeto aqui apresentado pretende abordar a problematização de três obras de
arte contemporânea e sua relação com o corpo, através da memória, diálogo, e
apropriação com algumas manifestações artísticas precedentes. A proposta é fazer um
estudo teórico bibliográfico, um lineamento comparativo das obras selecionadas para
essa pesquisa, que mesclam técnicas e linguagens distintas como escultura, instalação e
o vídeo.
O recorte foi feito pretendendo explorar o instituto de arte contemporânea
Inhotim1 que se encontra em Brumadinho – MG, como berço da seleção aqui pretendida
para o estudo, pois acreditamos que Inhotim compreende um espaço que abrange um
extenso acervo cultural e ambiental, e por se manifestar como um ponto, hoje, de
discussão teórico-prático acerca dos artistas e obras contemporâneas brasileiras e
internacionais dividido entre galerias permanentes e transitórias.
Devido à abrangência do instituto e a diversidade de obras, para tornar possível a
viabilidade e o aprofundamento do estudo pretendido, foi necessário fazer um recorte
1
"Inhotim é um complexo museológico com sede em um campus de 97 ha, pontuado por uma série de
pavilhões que abrigam obras de arte e por esculturas ao ar livre. O surgimento do Inhotim no cenário das
instituições culturais brasileiras tem, desde o início, a missão de criar um acervo artístico e de definir
estratégias museológicas que possibilitem o acesso da comunidade aos bens culturais. Nesse sentido,
trata-se de aproximar o público de um relevante conjunto de obras, produzidas por artistas de diferentes
partes do mundo, refletindo de forma atual sobre as questões da contemporaneidade. Hoje, Inhotim é a
única instituição brasileira que exibe continuamente um acervo de excelência internacional de arte
contemporânea. Graças a uma série de contextos específicos, Inhotim oferece um novo modelo distante
daquele dos museus urbanos. A experiência do Inhotim está em grande parte associada ao
desenvolvimento de uma relação espacial entre arte e paisagem, que possibilita aos artistas criarem e
exibirem suas obras em condições únicas. O espectador é convidado a percorrer jardins, paisagens de
florestas e ambientes rurais, perdendo-se entre lagos, trilhas, montanhas e vales, estabelecendo uma
vivência ativa do espaço”. In:INSTITUTO DE ARTE CONTEMPORÂNEA E JARDIM BOTÂNICO INHOTIM. Disponível em: <http://www.inhotim.org.br/index.php/p/v/172>. Acesso em: 10 dez. 2011.
3
mais detalhado e focado em obras que apresentassem a temática do corpo, de alguma
forma contida em sua abordagem, sendo assim, selecionamos três artistas das galerias
permanentes do complexo e uma obra de cada um deles.
A eleição dos artistas foi priorizada a partir da obra de arte e a sua relação
particular na abordagem da temática do corpo: “Seja o corpo torturado, seja em
metamorfose, a arte promove o encontro entre o que já foi e o que será, em um presente
único, em um acontecimento singular. Alguns artistas são capazes de perfurar seus
corpos, fazendo vazar a memória ali acumulada, em secreções nem sempre amenas ao
olhar do observador”.2
Nesse viés selecionamos uma artista brasileira e dois artistas internacionais:
Valeska Soares nasceu em Belo Horizonte- MG, 1957; vive em Nova York,
Estados Unidos e já esteve presente em exposições internacionais, tais como a Bienal de
São Paulo, em 1994, 1998 e 2008, e a Bienal de Liverpool, em 2004.
Nos jardins do Inhotim, Valeska Soares criou uma estrutura arquitetônica de
pequena escala, obra permanente, inaugurada em 2009, que apresenta a instalação
“Folly” (Loucura): na parte externa, uma espécie de “coreto” octogonal com os lados
cobertos por espelhos refletindo o que está ao redor, dialogando com a paisagem do
entorno; Já na parte detrás do pavilhão, nos deparamos com uma porta que fornece
acesso à sala interna de projeção, também com espelhos em todas as paredes. Ao entrar,
o espectador se depara com uma projeção refletida infinitamente pelos espelhos. Um
vídeo chamado “Tonight” (esta noite) realizado na antiga boate do cassino da
Pampulha, atual MAP, o vídeo mostra dançarinos bailando pela pista de dança desta
obra arquitetônica dos anos 40 elaborada por Niemeyer e, através da sobreposição de
várias imagens, os “bailarinos” se encontram e se afastam. O vídeo foi inicialmente
instalado na própria pista do museu onde as seqüências tinham sido filmadas. A trilha
sonora é uma versão remixada da música The Look of Love (1967), de Burt Bacharach,
alterada pelos artistas de som O Grivo, de Belo Horizonte.
Os corpos dos dançarinos são refletidos em todas as paredes também espelhadas,
criando uma obra onde o corpo do espectador parece também tomar parte da dança. A
faixa, que aparece na trilha sonora do filme de espionagem "Casino Royale" (1967),
evoca uma era de glamour, hoje revestida de certa decadência.
2
KEIL, Ivete; TIBURI, Marcia. O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004, p. 188.
4
A artista trabalha diversos suportes em suas obras, contudo podemos perceber
que o tema central da arte de Valeska é a presença ou a ausência do corpo, a
memória e a imaginação, amor e dança.
Para a apresentação permanente desta obra no Inhotim, foi criado em seu
entorno um projeto paisagístico, desenvolvido em colaboração conjunta entre a artista e
a equipe botânica, que se distingue do tipo de paisagismo aplicado à maior parte do
instituto e traz características de um jardim doméstico, com árvores frutíferas e flores. O
interesse pelo jardim e pelo aspecto multisensorial da arte - além da visão, o tato e o
olfato - é recorrente na obra de Soares, assim como a memória e a ficção.
Janet Cardiff é uma artista canadense que nasceu em 1957, vive e trabalha
atualmente em Berlim na Alemanha. A artista cria algumas obras em colaboração com
seu parceiro George Bures Miller, o trabalho artístico de Cardiff é dedicado as
instalações, muitas vezes, baseadas em áudio.
Desde a década de 1990, a arte experimental dos canadenses Janet Cardiff e
George Bures Miller foi uma exploração atípica de como o som afeta e molda a nossa
experiência. “The Murder of Crows” (O Assassinato dos Corvos), obra permanente,
pode ser considerada uma das expressões mais impressionantes do Inhotim, imponente
instalação sonora com 98 caixas de som que são montados, em um espaço, colocadas
em assentos, no entorno e no centro. Apresenta ama sonoridade trágica e emocionante,
criando assim um ambiente de orquestra. Os visitantes são convidados a sentar-se no
centro, em cadeiras demarcadas. O trabalho de áudio, que provém das caixas de som e é
gerado por gravações polifônicas especiais e técnicas de replay, versa sons e músicas.
A instalação é idealizada como um filme ou uma peça de teatro, contudo as
imagens e a narrativa são construídas apenas pelo som. Inspirada na gravura “O Sono da
Razão Produz Monstros” (1799) da série Caprichos de Goya, seu título faz referência ao
comportamento dos corvos, que vivem, caçam e grasnam em bandos. A voz do artista
ocasionalmente surge na caixa de som alocada no centro, contando séries de sonhos
apocalípticos. "O Assassinato dos Corvos" é a maior instalação de som até hoje
produzida pelos artistas. A obra tem duração de 30 minutos.
A obra faz referências a temas narrativos enquanto a trilha sonora
tridimensional, além de envolver o espectador nos eventos da história, faz dele parte de
uma realidade simulada provocando sensações no espectador.
Matthew Barney nasceu em São Francisco, Estados Unidos em 1967; vive em
Nova York, Estados Unidos. “De Lama Lâmina” (2004-2009) pode ser considerada o
5
último desdobramento de um projeto que teve origem na performance realizada em
parceria com o músico Arto Lindsay durante o carnaval de Salvador, em 2004. A obra é
composta de dois momentos: o vídeo e a instalação. O vídeo realizado pelo artista no
percurso Barra-Ondina, no carnaval de Salvador, aborda referências à carnavalização e
ao corpo do “green man”, que movimenta as estruturas de um enorme trator a partir da
própria masturbação. Esse vídeo fica no espaço conhecido como Marcenaria do Inhotim
e é apresentado duas vezes ao dia e tem cerca de 45 minutos e em local distante da
instalação.
A obra é a primeira instalação permanente desenvolvida por Matthew Barney
para uma instituição museológica. O artista com a obra permanente no Inhotim
escolheu situar a obra em meio a uma floresta de eucaliptos, considerando a experiência
de deslocamento como parte integrante do projeto.
A experiência para o espectador é densa, pois ele percorre um caminho sinuoso
para chegar até a obra e quando se depara com a mesma entrevê um cenário
aparentemente inacabado: dois domos geodésicos de aço e vidro, acoplados um ao
outro, em meio a morros de minério de ferro e árvores derrubadas. Os domos
geodésicos de aço e vidro oferecem um contraste futurista à paisagem ancestral de
morros de minério e árvores abatidas. Do lado de dentro, o espaço é tomado pela
máquina, construção humana que ergue uma escultura que representa uma árvore.
Usado na performance e nas filmagens, o trator, aqui desprovido de todas as suas
funções, é transformado numa grande escultura "congelada" num instante de
instabilidade. A tensão é gerada na aproximação de pólos opostos que constituem o
princípio organizador da obra, evocando o dualismo entre destruição e criação,
progresso e conservação, fecundidade e morte.
Fazendo alusão ao candomblé baiano como fonte de referência, Matthew Barney
tece nesse projeto uma complexa narrativa sobre o conflito entre Ogum, orixá do ferro,
da guerra e da tecnologia, e Ossanha, orixá das florestas, das plantas e das forças da
natureza.
O longa abriga uma guerra com influência do candomblé: de um lado, um trator
ainda sujo de lama, símbolo da força e ferro como o orixá Ogum; do outro, uma árvore
branca pendente do braço do trator, como Ossanha, orixá das florestas, plantas e
natureza. Essa narrativa idealizada por Barney, em forma de uma grande estrutura, foi
posicionada entre os eucaliptos para criar uma ambiência, completando a experiência do
visitante.
6
Narrativas mitológicas são uma constante na obra de Barney, que encontrou no
sincretismo afro-brasileiro um campo fértil para explorar seu interesse pela natureza
dialética das coisas. Criada especialmente para o contexto de Inhotim, a localização da
instalação é parte importante de sua concepção. A escolha pela mata afastada do núcleo
do parque abre a leitura da obra para o campo da ecologia e reflete a preocupação
ambiental do artista, mas também coloca em evidência elementos naturais que aludem
aos orixás - o minério de ferro do solo e as árvores de eucalipto da mata.
A coexistência entre um plano exterior e um interior é elemento fundamental da
obra.
Justificativa
Acreditamos na relevância do recorte, pois os artistas selecionados operam com
a obra de arte em constante diálogo com o passado e com as questões contemporâneas
como espacialidade, sensorialidade, corpo, religião e sociedade, em caráter relacional
com o espectador.
Nosso critério foi o de selecionar artistas cujas obras mostrassem força e
criatividade próprias, mas que, no entanto, realizassem um diálogo apropriativo com
artistas precedentes. Conforme afirma Canton (2001), ao contrário do pessoal das
décadas de 60 e 70, os artistas contemporâneos não buscam uma originalidade radical.
“Não existe a procura desenfreada pelo novo. Os artistas preferem fazer parte de uma
memória”3.
Deixado de lado o afã modernista de procurar sempre o novo pode ser
constatado, que a arte contemporânea vem seguindo um percurso, no qual os próprios
artistas se colocam no universo da continuidade e do diálogo.
Para a possibilidade de êxito da pesquisa, o recorte foi inicialmente elaborado a
partir da escolha de três galerias permanentes do Inhotim – por promover uma maior
proximidade com o objeto de estudo – seguido da escolha de três artistas entre nacionais
e internacionais que, em suas instalações, lançam um olhar particular para o corpo e
seus desdobramentos. Esses artistas têm em comum o fato de serem sintonizados com
procedimentos estético-artísticos que mesclam matérias de expressão e de rejeitarem
3
CANTON, Kátia. MAC pinta a história da geração 90. Jornal da USP. Disponível em:
<http://www.usp.br/jorusp/arquivo/1999/jusp482/manchet/rep_res/especial.html>. Acesso em: 10 dez.
2011.
7
uma visão pré-estabelecida da realidade em cujas obras, existe uma tentativa expressiva
anti-realista e mimética. Além de enfatizarem a “desmesura”: multiplicidade de signos
que é irredutível à conformação de uma mesma lei ou de uma realidade dominante4.
O conceito de dialogismo de Mikhail Bakhtin pode ser uma ferramenta para a
compreensão da relação dos artistas escolhidos, com as respectivas obras. A visão de
Bakhtin acerca da linguagem (e aqui no caso a arte), a compreende como uma expressão
essencialmente condicionada pela presença do "outro", que desencadeia uma relação de
diálogo entre inúmeros signos. Segundo Barros (1999;04), uma das categorias que
fazem parte desse conceito de dialogismo desenvolvido por Bakhtin seria o princípio da
intertextualidade. Definido como a incorporação de um texto em outro, seja
reproduzindo o sentido incorporado ou transformando-o.
A profusão de referências intertextuais apesar das obras aqui privilegiadas,
operarem sua expressividade por meio da instalação; pode funcionar como um processo
poético, múltiplo no qual a obra de arte passa a ser entendida, essencialmente, através
dessa abertura histórica.
A proposta então é procurar compreender os artistas com o seu traço e as obras
delimitados em "diálogo" com a sua particularidade e especificidade ao tocar o
espectador, pois na seleção dos artistas tivemos o cuidado de priorizar obras que
engendrassem essa discussão relacional. Entretanto, diante da extensão e dimensão da
proposta, foi necessário delimitar um pouco mais o recorte analítico proposto. Assim
utilizaremos o corpo, como operador conceitual que nos permitirá lançar um olhar mais
delimitado e dirigido para nosso objeto.
Marcell Mauss (2004), já em 1934, ressaltava a construção social do corpo que
promove, por exemplo, a valorização de certos atributos em detrimento de outros. Para
Mauss, o corpo é o primeiro objeto técnico, ou melhor, meio técnico do homem.
Mediação entre nós e o mundo.
Atualmente tem sido fundamental o papel atribuído ao corpo nas mais diversas
áreas do saber. O corpo, que à época das narrativas legitimadoras ocupava o pólo
negativo da dicotomia classificatória, agora se libera e se inventa em discussões, em
produções que reconfiguram os estatutos de real e irreal, privado e público, natureza e
cultura. A discussão leva a pensar os limites do corpo e suas formas de significar e as
possibilidades da percepção do corpo.
4
PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenções urbanas: arte/cidade. São Paulo: Sesc, 2002. p. 237.
8
Nas obras selecionadas temos, de fato, um olhar ainda incipiente, todavia
podemos salientar vários engendramentos nessa forma de entender os limites do corpo e
as suas formas de percepção a partir da fruição estética.
O corpo: as obras e os artistas selecionados.
No trabalho de Valeska Soares nos deparamos com um misto de arte e
tecnologia em sua obra: uma projeção em vídeo “infinitamente”, promovida pelo jogo de
espelhos nas paredes do espaço octogonal, agencia imagens corporais múltiplas que
desestabilizam as representações convencionais do corpo no espaço. Na ruptura
mimética do tempo e do espaço nesta instalação, nas anamorfoses 5 imagéticas do corpo
refletido no espelho ao som dançante da música, o espectador interage com as mais
improváveis imagens corporais gerando ao mesmo tempo um efeito ora de instabilidade
com a possibilidade de náusea na diferenciação dos lados representados pelo espelho no
movimento do corpo, ora de estabilidade representativa devido aos seus códigos
culturais que por outro lado ordena as representações do corpo: a sensação do espectador
acontece de maneira consciente e ao mesmo tempo inconsciente; as imagens corporais
são ordenadas pela experiência:
Os jogos de espelho revelam o quanto a vertigem do especular conduz
mesmo à impossibilidade de captar uma imagem fixa de nosso próprio
corpo. Em 1965, Piotr Kowalski efetuou uma montagem especular de
tal sorte que o espectador contornava um espelho giratório. Sua
imagem lhe era devolvida, tal como seria vista por ele e, se ele mexia
sua mão direita, era no lado esquerdo que ela aprecia. Era-lhe
impossível recompor seu rosto sem ser imediatamente tomado pela
vertigem. Essa ruptura da relação especular é uma convincente
colocação à prova da desestruturação perpétua dos modos do modos de
apreensão do corpo6.
Podemos, aqui, imediatamente fazer uma alusão ao quadro “as meninas” de
Velásquez já que estamos tratando do diálogo e apropriação com o passado, entretanto, a
reflexão especular nessa instalação não se faz com o modelo exterior ao quadro (o rei e a
rainha), mas sim o próprio espectador que no lugar de modelo real, promove uma
imagem virtual, simulacro, instituindo uma prótese substitutiva do real. Na
5
Conceito de Arlindo Machado. In: MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense,
1985.
6
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 51.
9
experimentação direta do espaço octogonal pelo espectador, em cada posição tomada
pelo mesmo percebemos que as imagens do seu corpo podem submeter-se aos múltiplos
efeitos de desestabilização instaurando-se, devido a impossibilidade de uma posição do
corpo ou do olhar, uma angústia, pois a própria especularidade é fragilizada.
Com um olhar contemporâneo e tirano sobre o corpo e os padrões dominantes de
representação do mesmo, por outro lado, não podemos nos esquecer que nós somos
aquilo que nós vemos: “o espelho não engana, ele lhe diz o estado presente de seu corpo.
O espelho é comparável a um quadro vivo na superfície da qual surge o auto-retrato”.7
Entre realidades e ficções podemos pensar na duplicidade e contradição do corpo
que se instauram nessa obra, pelos discursos acerca do corpo (belo) na atualidade e pela
obra: a projeção e a trilha sonora, atrelada ao movimento do corpo que o auto-afeta na
relação de aproximação e distanciamento dos corpos. O corpo em repouso do espectador
imerso ao movimento da projeção incita apontamentos quanto á idealização de beleza
corporal, em sua maioria, representados pelo corpo imóvel, como a escultura que inspira
a apreensão estética mais bela que o próprio movimento.
Deparamos-nos, aqui, com um intrigante paradoxo entre a imagem em repouso
do espectador inserido fisicamente no espaço da obra -“coreto” - imerso ao movimento
do corpo dançante impresso no vídeo, atrelado à projeção especular do espaço
intensificam uma sensação de corpo fragmentado e ausente na experiência do
espectador: “a dança liga o corpo ao mundo das possibilidades na única expressão de
“ausência do ser”. “O desejo de dançar visa não ao corpo ideal, mas ao ato de dar-se
corpo, de restituir-se vida”8.
Na obra da artista canadense Janet Cardiff o som intercepta e adentra o
ambiente e a audição é o indicador privilegiado na percepção do corpo pelo espectador.
A dimensão sonora na obra é a mola propulsora para a materialização da linguagem
visual que é experienciada por meio do imaginário, vivência e história: a memória do
espectador nessa instalação “audiovisual”. 9
Diferentemente da obra de Valeska Soares que se faz pertinente e oportuno o
espectador percorrer o espaço sensório, nessa instalação o espectador é convidado a se
posicionar, preferencialmente, dentro de um espaço delimitado: no centro acomodado
7
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 55.
Ibidem.
9
Apesar de a instalação ser de qualidade apenas sonora e não visual, usamos o conceito “audiovisual,”
aqui , para ampliar a caracterização do mesmo pela possibilidade de extensão no que se refere à formação
de imagens pelo imaginário do espectador.
8
10
em cadeiras numeradas. O espectador, nessa obra, se dedica quase que inteiramente a
experiência de ouvir, pois ele se acomoda em um “galpão,” com cadeiras para se sentar e
outras para amparar alguns auto-falantes e, por fim, o som. Entendemos que essa
experiência altera completamente os mecanismos de apreensão do corpo, já que somos
habituados, viciados em ver, mesmo sem enxergar, pois sempre cultuamos a experiência
tirana da visão: apesar dos meios de comunicação de massa, desde 1920 nos fornecer as
potencialidades do som, com o rádio, sabemos ainda assim que a visão se configura um
sentido predominante na nossa experiência: “imagine se o Romeu tivesse os olhos de um
falcão, certamente ele não se apaixonaria pela Julieta, pois a tez que ele veria não seria
agradável aos olhos”.10
No entanto Cardiff a partir da instalação “O Assassinato dos Corvos” tenta lançar
um olhar para a experiência corporal além da visão, mediando, provocando os outros
sentidos e o contato entre visível e invisível na obra vivida pelo espectador: “[...] eu não
acho que é pelo olho que eu vejo as coisas, o olho vê, mas a imaginação transvê [...]”.11
Nessa experiência sonora, o que está velado pela ausência da imagem visual é
revelado para o espectador por meio de uma construção narrativa via imaginário,
elaborada por ele mesmo, em contato direto com os sons (soldados marchando, ruído de
pássaros), músicas (cantigas de ninar) e falas isoladas. A artista opera com a
tridimensionalidade do som com cada uma das 98 caixas espalhadas propositalmente
pelo galpão emitindo um som diferente e em um determinado momento, o que oferece
ao espectador a impressão de estar realmente dentro da história e isso ocasiona uma total
imersão no universo da obra, mas mais intrinsecamente no seu universo particular, o
espectador é conduzido a adentrar nos seus próprios “porões”, por isso a obra se faz tão
significativa e inquietante ao espectador, pois o seu corpo é tomado de memória: “não se
trata de figurar o corpo, e sim e evocá-lo e recarregá-lo de história”12.
O corpo do espectador é estimulado pela ilusão, este, ingressa na história por
meio dos jogos sonoros tocantes e quase reais e ainda experiencia universos paralelos
ora história da sua narrativa particular ora a história narrada aos ouvidos que provocam
sensações e aguçam os outros sentidos como tato e olfato, o que enriquece a vivencia
individual e a imaginação de cada espectador.
10
Fala de José Saramargo no documentário “Janelas da Alma”.
Fala de Manoel de Barros no documentário “Janelas da Alma”.
12
KEIL, Ivete; TIBURI, Marcia. O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 188.
11
11
Em uma relação de diálogo com o passado a artista inspirou-se na gravura “O
Sono da Razão Produz Monstros” (1799) de Goya que faz parte das oitenta placas que
constituem a série Os Caprichos, publicada em 1799, no Diário de Madrid, divulgada no
anúncio da sua publicação a “condenação dos erros e vícios humanos”, bem como “dos
exageros e loucuras comuns a todas as sociedades civilizadas” 13.
Vale ressaltar a história que precede essa obra Goya, pois o artista após 1792
ensurdece em decorrência de uma grave doença e desde então quase não se dedica a
pintura, “procurava apenas meios para se libertar das imagens criadas pelo seu
pensamento e que o oprimiam”
14
. Após a lesão se instaurar em seu corpo, o artista
transforma a sua visão de mundo, refletindo diretamente em sua obra, que antes trazia
temas amenos, transforma-se numa crítica feroz da sociedade acompanhado de uma
violência imaginária expressa.
Temos então, aqui, a alusão a um corpo atormentado que cria as suas imagens a
partir do seu imaginário. A gravura de Goya aborda o artista adormecido, ameaçado por
“fantasmas noturnos”. Cardiff a partir de uma obra visual, de um artista surdo, cria uma
instalação sonora onde a imagem criada pelo corpo acontece apenas a partir da fruição
estética de ouvir e criar o visual pelo imaginário, desatrelando, assim, o espectador da
experiência cultuada e mais reconhecida a priori.
A obra de Matthew Barney apresenta uma instalação seguida de dois momentos
que se interpolam: um vídeo e uma escultura em total proposição com o espaço
paisagístico. Nesse trabalho o corpo tangencia um longo debate permitindo vários
desdobramentos, pois temos o corpo de passagem (corpo físico que sede o seu
“aparelho” para receber uma entidade - candomblé), o corpo em fluxo de construção e
destruição, fecundidade e morte, o movimento de deslocamento do corpo e a sensação
defronte o cenário de “devastação” ocasionado pelo artista.
Como já foi explicitado anteriormente na apresentação desse projeto, o trabalho
Matthew Barney promove uma narrativa sobre o conflito entre Ogum e Ossanha, orixás
cultuados na religião intitulada candomblé. Os orixás são forças imateriais que só se
tornam perceptíveis aos olhares humanos se houver uma materialização corporal
humana, de um desses orixás, ou seja: um corpo humano sede “passagem”, “espaço” em
seu próprio corpo, para que essa força, energia não humana, possa se manifestar: “Ao
receber o orixá, o elégún (ser humano – grifo meu) faz uma espécie de doação do seu
13
14
In: http://falando-de.blogspot.com/2009/02/pintura-revolucionaria-de-goya-e-sua.html
Ibidem.
12
corpo. Ser possuído implica ofertar o corpo para a entidade divina. Melhor dizendo,
trata-se de encarnar uma entidade, tornar-se veículo de suas forças”.15A prática da
possessão é desempenhada em diversas religiões, ela acontece no momento quando o
corpo humano recebe a presença do divino. No momento o corpo se torna um canal de
comunicação entre nós humanos com as forças não humanas, tudo acontece como uma
unicidade entre o corpo mergulhado no tempo e no espaço: “podemos dizer que o corpo
humano é um microcosmo que reproduz as dimensões do tempo e do espaço, dotado de
poder para atuar no mundo e transformar as coisas”. 16
No vídeo Barney elabora uma narrativa que promove um conflito entre dois
orixás distintos, sendo um representando o ferro, a guerra e a tecnologia, e o outro as
florestas, as plantas e as forças da natureza. Nesse momento da obra temos a presença
do corpo enquanto “aparelho” (veículo de passagem) para a manifestação dos orixás.
Cada orixá faz alusão ao construto da obra, um pelos domos geodésicos de aço e
vidro, acoplados um ao outro, com arquitetura moderna, tecnológica em meio a morros
de minério de ferro representado pelo orixá Ogum e do lado externo visualizamos uma
floresta de eucaliptos, com parte sugestionando um devastamento que representada pelo
orixá Ossanha. Ainda no interior, uma escultura de um trator que é retirado de seu lugar
de utilidade, da sua funcionalidade – podemos fazer uma referência, de diálogo e
apropriação com Duchamp na obra intitulada “Fonte” onde um mictório é retirado do
seu local e funcionalidade e se coloca enquanto obra de arte em um museu pelo artista –
que ergue uma árvore de resina. Essa escultura é também utilizada no vídeo reiterando o
conflito entre os orixás.
Propositado e intencionado pelo artista, o espectador percorre um longo trajeto
até a obra, que requer grande disposição e esforço físico para a chegada, como se não
bastasse à fadiga ao chegar ao local, o espectador encontra um lugar devastado e
aparentemente inacabado causando uma sensação de descontentamento e ao mesmo
tempo tristeza com o cenário varrido por árvores abatidas.
No interior da obra, a enorme escultura também inquieta, pois muitos
dos espectadores ficam sem entender a proposição. A obra acarreta
um turbilhão de sensações desconcertantes; uma mescla de receio,
descontentamento, apreensão e indagações. O espectador parece,
também, estar “possuído”, tomado por vários sentimentos:
“Provavelmente, muito do que se passa é o devir, que, como disse
15
SANT’ANNA, Denise Bertuzzi de. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade humana. São
Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 103.
16
Ibidem, p. 104.
13
Nietzsche, é informulável. Na longa repetição de gestos e sons
constituintes da possessão em cada culto, há a intervenção do
diferente: este não é apenas uma sensação nova, ou um conjunto de
sensações inusitadas. É também uma maneira desconhecida de
sentir”17.
Objetivo geral

Elaborar um estudo comparativo entre as três obras selecionadas, de cunho
apenas bibliográfico no que tange a questão do corpo e a arte contemporânea.
Objetivos específicos

Elaborar uma pesquisa dissertativa enfatizando o estudo do corpo, nas três obras
selecionadas, e seus possíveis desdobramentos como operador conceitual no
estudo das obras e artistas elemento estético que irá influir na produção poética
da pesquisa.

Fazer um estudo comparativo das obras dos artistas selecionados: Valeska
Soares, Janet Cardiff e Matthew Barney e entender as obras em citação e
apropriação com artistas precedentes, a sua relação direta com o corpo e a arte
contemporânea nas suas especificidades.

Promover no processo de criação teórica, um diálogo com o trabalho dos artistas
envolvidos no projeto e como as obras dialogam sensorialmente.

Realizar um trabalho teórico, que mescle técnicas e linguagens utilizadas em
diversas matérias de expressão: imagens extraídas dos múltiplos regimes
semióticos - do senso comum às singularidades. A ideia é estabelecer uma
interlocução das expressões artísticas das obras selecionadas e a partir das suas
abordagens artísticas e relacionais e discutir a questão do corpo e seus
desdobramentos.
Método e delineamento da pesquisa
Essa pesquisa é de ordem qualitativa, pois estudos anteriores acerca do tema e a
necessidade de ampliar o repertório em arte, artes visuais e corpo se fizeram necessários
não somente no âmbito profissional, mas também suscitaram indagações e aspiração
pessoais. Essa pesquisa já faz parte de algumas investigações precedentes e artigos
17
Ibidem, p. 105.
14
elaborados sobre o tema. Esse projeto é o ponto inicial para um grupo de pesquisa (que
já existe) desenvolver estudos sobre o corpo na arte e a arte contemporânea. Os
desvelamentos das observações promovidas por projeto contribuirão efetivamente para
o nosso aprofundamento e mais propriedade envolvendo os temas.
Nessa pesquisa será aplicado o método científico com base classificatória em
procedimentos técnicos, pois como foi pontuado acima, nos objetivos, faremos um
estudo comparativo entre as obras que, dará início a partir de visitas regulares ao museu
Inhotim em Brumadinho – MG, local este, onde se encontram as obras selecionadas
para essa pesquisa. Essas obras e artistas escolhidos compõem as galerias permanentes
do museu, o que possibilita uma maior proximidade e contato com as mesmas.
Posteriormente será elaborado um estudo bibliográfico de cada um dos artistas
selecionados entendendo melhor as suas obras, proposições e a sua trajetória na arte
contemporânea.
Após esse estudo partiremos para a pesquisa bibliográfica acerca do corpo
inserido na arte contemporânea. É importante salientar que não estamos, aqui,
trabalhando o corpo somente enquanto humano, mas enquanto sensações, prótese e
extensão, pós-orgânico. Interessa-nos a relação do corpo não somente nas obras, mas
também na relação com o espectador, ou seja, o relacional que as obras apresentam nas
suas proposições.18
Dentro dos procedimentos técnicos aqui abordados é de suma importância o
trabalho de observação durante a pesquisa, pois essas visitas regulares as obras
permitirá lançar um olhar mais aprofundado para os objetivos almejados na pesquisa e
ainda subsidiará um estudo mais clínico: promovendo uma relação de estreitamento e
proximidade com os artistas e as suas respectivas obras em diálogo facilitando, assim,
as análises. A investigação observacional vai balizar as especificidades dos artistas
selecionados: Valeska Soares, Janet Cardiff e de Matthew Barney e as suas respectivas
obras serão elencadas e avaliadas como formação da pesquisa e a investigação clínica
permitirá uma retroalimentação constante entre o objeto de estudo e o pesquisador.
A pesquisa pretendida é explicativa, pois com base nos estudos bibliográficos
acerca da arte contemporânea, do corpo na arte e no estudo dos artistas e das suas
18
Para mais esclarecimentos é importante salientar que esse estudo acontecerá apenas no âmbito
bibliográfico. Faremos análises das obras e posteriormente um estudo comparativo. A partir das
apreciações suscitadas nessa pesquisa talvez tenhamos mais subsídios para no doutorado desenvolver um
trabalho onde o espectador seja, também, avaliado e analisado por meio de questionários e vídeos para as
avaliações serem agregadas ao corpo da pesquisa.
15
respectivas obras será possível aperfeiçoar uma avaliação e análises mais aprofundadas
do
objeto
de
estudo
para o
desenvolvimento
dissertativo
envolvendo
os
desdobramentos.
Procedimentos metodológicos
Atualmente, o corpo se encontra confinado por discursos hegemônicos,
distribuídos em geral, pelos meios de comunicação de massa, que oferecem aos sujeitos
um leque de recursos simbólicos, dentre os quais um “modelo” corporal, que interfere
de forma processual na constituição identitária desses sujeitos.19 O corpo pensado hoje,
como construção social, é amplamente constituído pelas representações que provêem
dos meios de comunicação de massa. Assim, o corpo, parte integrante de nossos
processos de subjetivação (já que media nossa relação com o mundo), também tem sido
construído de forma padronizada e homogeneizada pelos agenciamentos da mídia. Ou
seja: a representação do corpo promove uma interface direta com os processos de
subjetivação.
Os
processos
midiáticos
contemporâneos
ao
produzirem
uma
subjetividade descrita por Guattari como “capitalística” 20 nos oferecem um padrão
dominante do que seria o corpo.
A problemática gerada a partir do confronto com as obras selecionadas, a relação
com suas referências, possibilita pensar que, apesar da hegemonia desse corpo-ideal,
“outros” corpos, não homogeneizados e massificados são possíveis principalmente ao
observarmos, em um olhar incipiente, os trabalhos de Valeska Soares e Mattew Barney.
Buscaremos compreender como esses "outros" corpos e os processos identitários
que envolvem o discurso sobre o corpo, na arte atual, bem como as relações com suas
referências serão compreendidos como formas de alteridade a esse corpo ideal
difundido pela mídia.
Assim, as obras selecionadas, em seu diálogo com a vanguarda artística e com
uma vitalidade própria do período contemporâneo, podem promover (re)configurações
corporais que rompem com essa padronização reconhecida e adotada pelos indivíduos e
que questionam os padrões de corpo hoje.
19
Os meios de comunicação de massa constroem um discurso sobre o corpo, que deve ser jovem, ideal,
belo, saudável, e produzem uma espécie de “padrão dominante de representação corporal”, que passa a
ser almejado e seguido.
20
Rolnik e Guatarri (1996) acrescentam o sufixo “istico” a “capitalista” como forma de não priorizar
somente o primeiro mundo, mas também o capitalismo periférico e salientar que a produção de
subjetividade atua de forma analógica nessas sociedades.
16
Nesse sentido é fundamental criar e estudar poéticas que proporcionem uma (re)
significação do corpo que possibilite uma abertura, para a invenção de relações, ritmos e
distâncias resistentes à “desertificação da vida” que promove uma “engenharia capaz de
religar o corpo às suas potências e as suas virtualidades, abri-lo ao imponderável”. 21
Segundo Sandra Rey22 a pesquisa em artes plásticas pressupõe parâmetros
metodológicos que se diferenciam da pesquisa científica, pelas especificidades de seu
próprio campo. Um processo de criação, por essência, é “visivelmente” inexprimível
tanto a priori quanto a posteriori, sendo por natureza paradoxal e pré-discursivo.
“O processo de trabalho principalmente na pesquisa artística, é permeado por
inúmeros fatores não racionais [...] e portanto pode necessitar de caminhos menos
diretos para que se dê a maturação necessária das soluções objetivadas pelo artista”.
23
Se, como afirma Alliez, cabe à arte não a função de tornar visível o não-visto ou o
invisível e sim a tarefa de tornar sensível (grifo meu) a Vida em suas “zonas de
indeterminação”
24
, a pesquisa da sensação não tem outra finalidade a não ser a de
“fazer virem à luz perceptos e afectos desconhecidos.25 A arte sendo, portanto, menos
uma questão de mimeses do que de aeisthesis.
O perfil do artista que se propõe a essa tarefa é o de um criador capaz de se
recolher até o núcleo gerador das sensações artísticas, por meio da experimentação e
expressão nas mais diversas matérias e linguagens disponíveis.
É importante ressaltar que a obra não pode ser considerada como um mero
produto final. Para compreender a experiência estética proporcionada por esse
movimento, de compreensão do processo de criação como processo, nos apropriaremos
das idéias de Deleuze sobre “jogo ideal” desenvolvidas na "Lógica do Sentido": nossos
jogos conhecidos têm as regras categóricas pré-existentes, as hipóteses distribuintes, as
distribuições fixas e numericamente distintas e os resultados conseqüentes, funcionando
como operadores do acaso.
21
SANT’ANNA, Denise Bertuzzi de. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade humana. São
Paulo: Estação Liberdade, 2001.
22
REY, Sandra. Notas sobre metodologia em artes plásticas. indisponível em:
<http://www.arte.unb.br/anpap/rey.htm 04/2004>. Acesso em: 10 dez. 2011.
23
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte, um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores
Associados, 2001. p. 44.
24
ALLIEZ, Eric. A assinatura do mundo: o que é a filosofia de Deleuze e Guattari. São Paulo: Editora
34, 1994. p. 59.
25
Ibidem. p. 60.
17
Estes jogos são, segundo Deleuze26, parciais, porque não ocupam a não ser uma
parte da atividade dos homens e porque, mesmo que os levemos ao absoluto, eles retêm
o acaso somente em certos pontos e abandonam o resto ao desenvolvimento mecânico
das conseqüências ou à destreza como arte da causalidade.
O jogo ideal é um jogo sem regras, sem vencidos nem vencedores,
sem responsabilidade, jogo de inocência e corrida à Caucus, onde o
endereço e o acaso não se distinguem mais, parecem não ter nenhuma
realidade (...)um jogo reservado ao pensamento e a arte, lá onde não
há apenas vitórias para aqueles que souberam jogar, isto é afirmar e
ramificar o acaso, no lugar de dividí-lo para dominá-lo, para apostar,
para ganhar. 27
Para Deleuze e Guattari, o artista ergue monumentos com a força da sensação: a
obra de arte é um bloco de sensações e as figuras estéticas da arte são os afectos e os
perceptos. O objetivo da arte é arrancar blocos de sensações do objeto e dos estados de
um sujeito - cada linguagem artística utilizando seu material e repertório específico.
Desse modo, os métodos são diferentes, não somente segundo as artes, mas também
segundo cada artista. O método varia de autor para autor e faz parte da obra, sendo que
cada nova pesquisa da sensação inventa seus procedimentos.28
Conforme afirmado acima, enfatizaremos a noção de processo, no qual segundo
Rey existe um ponto de cegueira para o artista, e parece que é aí que a obra "se
processa" e conseqüentemente "me processa". Assim, a partir do diálogo com o
orientador e com as obras em estudo, estabeleceremos um plano de trabalho (sempre
provisório) da criação poética.
Processo de pesquisa conceitual:
- O plano de trabalho inicialmente, se dividirá em três partes: leitura, pesquisa
bibliográfica e visitação às obras que poderá desdobrar-se da seguinte forma:
- relação entre corpo e arte (contexto de produção e recepção);
- corpo e arte no século XX;
- a reivindicação da participação do espectador;
- arte contemporânea;
- o corpo nas artes pós 1950;
26
DELEUZE, GUATTARRI. Gilles, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1994. p. 74.
Ibidem. p. 63.
28
Ibidem. p. 213-279.
27
18
- estudo da construção das obras dos artistas escolhidos bem como sua relação
com o corpo;
- estudo da inserção histórica dos artistas;
- mapeamento de referências e estabelecimento de possíveis ligações dos artistas
escolhidos como objeto estudo;
- estudo sobre as relações entre os artistas escolhidos e o dialogismo ou
intertextualidade e sua contextualização como "parte de uma tradição ou
memória";
- estudo da construção discursiva em cada um dos artistas selecionados;
- estudo da construção das poéticas, dos artistas escolhidos como bem como sua
relação com o corpo.
Cronograma
01
02
03
04
BIMESTRES
1. Levantamento
bibliográfico e
estudos teóricos
sobre campo
temático.
2. Pesquisa e
captação de
imagens –
organização do
repertório.
3. Pesquisa e
análises: visitas
regulares ao museu
e obras dos artistas
selecionados.
4. Realização de
estudos de obras
em Artes Visuais.
5. Análise e
catalogação da
produção das
obras.
6. Redação da
dissertação
19
05
06
07
08
09
10
11
12
REFERÊNCIAS
ALLIEZ, Eric. A assinatura do mundo: o que é a filosofia de Deleuze e Guattari. São
Paulo: Editora 34, 1994.
CANTON, Kátia. MAC pinta a história da geração 90. Jornal da USP. Disponível em:
<http://www.usp.br/jorusp/arquivo/1999/jusp482/manchet/rep_res/especial.html>.
Acesso em: 10 dez. 2011.
DELEUZE, Gilles; GUATTARRI, Félix. O que é a filosofia?. São Paulo: Editora 34,
1994.
http://falando-de.blogspot.com/2009/02/pintura-revolucionaria-de-goya-e-sua.html
INSTITUTO DE ARTE CONTEMPORÂNEA E JARDIM BOTÂNICO - INHOTIM.
Disponível em: <http://www.inhotim.org.br/index.php/p/v/172>. Acesso em: 10 dez.
2011.
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade,
2002.
KEIL, Ivete; TIBURI, Marcia. O corpo Torturado. Porto Alegre: escritos editora, 2004.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: brasiliense, 1985.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenções Urbanas: arte/cidade. São Paulo: Sesc, 2002.
SANT’ANNA, Denise Bertuzzi de. Corpos de Passagem: ensaios sobre a subjetividade
humana. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
REY, Sandra. Notas Sobre Metodologia em Artes Plásticas. Disponível em:
<http://www.arte.unb.br/anpap/rey.htm 04/2004>. Acesso em: 10 dez. 2011.
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte, um paralelo entre arte e ciência. Campinas:
Autores associados, 2001.
REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES
ALLIEZ, Eric. A assinatura do mundo: o que é a filosofia de Deleuze e Guattari. São
Paulo: Editora 34, 1994.
AMARAL, Aracy. Arte para que? São Paulo: Studio Nobel, 2003.
______. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Editora 34, 1998.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: Do iluminismo aos movimentos
contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
20
ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma historia concisa. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
BASBAUM, Ricardo (Org.) Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções,
estratégias. Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 2001.
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo; Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro.
SP: Cosac & Naify, 1999.
CANTON, Kátia. Novíssima arte brasileira. São Paulo: Iluminuras, 2000.
CHIPP, Herschel Browing. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2001.
FREIRE, Cristina. Poéticas do processo. Arte conceitual no museu. São Paulo:
Iluminuras,1999.
GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea: do cubismo ao neoconcretismo.
São Paulo: Nobel, 1985.
INSTITUTO DE ARTE CONTEMPORÂNEA E JARDIM BOTÂNICO – INHOTIM.
Obras. Disponível em: <http://www.inhotim.org.br/arte/obra>. Acesso em: 10 dez.
2011.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
ROLNIK, Suely; GUATARRI, Félix. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:
Vozes, 1996.
STANGOS, Nikos. Conceitos fundamentais da arte moderna. Rio de Janeiro: Zahar,
1991.
ZANINI, Walter. História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira
Salles; Fundação Djalma Guimarães, 1983.
21
ANEXOS
Figura 1 - Valeska Soares - “Folly” (Loucura) - Parte interna da obra
http://www.inhotim.org.br/novenovosdestinos/pt/obras_valeska-soares.html Acesso em: 10 dez.
2011.
Figura 2 - Valeska Soares - “Folly” (Loucura) - Parte externa da obra
http://www.inhotim.org.br/arte/obra/view/318 Acesso em: 10 dez. 2011.
22
Figura 3 – Janet Cardiff - “The Murder of Crows” (O Assassinato dos Corvos)
http://brunacferreira.blogspot.com/2010/10/escolha-do-grupo-janet-cardiff.html Acesso em: 10 dez.
2011.
Figura 4 - Goya. “O sonho da razão produz monstros” – Imagem da gravura que inspirou a artista Janet
Cardiff a fazer a instalação.
http://fichagas.blogspot.com/2011/04/os-caprichos-de-goya.html Acesso em: 10 dez. 2011.
23
Figura 5 – Matthew Barney - “De Lama Lâmina” - Parte externa da obra
http://www.inhotim.org.br/novenovosdestinos/pt/obras_matthew-barney.html Acesso em: 10 dez.
2011.
Figura 6 – Matthew Barney - “De Lama Lâmina” - Parte interna da obra
http://www.theinertia.com/travel/inhotim-a-museum-unlike-any-other/ Acesso em: 10 dez. 2011.
24

Documentos relacionados