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Por direitos à queima-roupa: intervir para existir1
Janine Justen2
Orientador: Prof. Dr. Marcio Tavares d’Amaral3
Resumo: Este artigo discute a problemática da legitimação de discursos em conflitos
urbanos na América Latina. Em meio à disputa de interesses do mercado imobiliário,
envolvendo inciativa privada e manejo de políticas públicas, a arte do fazer-se visível
assume a linha de frente na luta pelo direito à cidade, seus usos e acessos. Como
estudo de caso, a proposta de intervenção artística do português Alexandre Farto
(Vhils), que descascando a superfície descasca também as barreiras sacras dos
privilégios da legitimação aristocrática. Do incômodo, o congelamento do tempo
presente – o único possível – como forma de existência dos indesejáveis, tratando a
arte como ferramenta potencialmente transformadora das narrativas de sofrimento
contemporâneas.
Palavras-chave: cidade, desigualdade, visibilidade, América Latina, Vhils
Da desigual matriz latino-americana
“Às vezes esses homenzarrões brincam como meninos, empurram-se pelos
ombros, correm uns atrás dos outros até o meio da rua, gritam como cães e depois,
novamente, recobram o ritmo de seu sigilo e continuam conversando.”4 Assim Beatriz
Sarlo (2014, p.93) dá o tom aos estranhos da cidade de Buenos Aires, juntando às
belas palavras de Robert Arlt, ensaios e fotografias próprios para montar uma espécie
de quebra-cabeça de um cenário em transformação permanente.
Ânimos se exaltam e se acalmam, posturas são excitadas e reprimidas, quase
como se estivessem postas em um gráfico ondulatório que se alterna em face do
coletivo e do individual. A ideia é, a partir dessas percepções e testemunhos,
entrecruzar duas urbes, a real e a imaginada, na intenção de descrever (e decifrar)
1
Trabalho apresentado no GT Comunicação e Política do IV Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em
Ciência Política. Realização: Universidade Federal Fluminense – UFF (agosto/2015).
2
Autora do trabalho. Mestranda em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]
3
Orientador. Professor emérito da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e coordenador-fundador do Laboratório de História dos Sistemas de Pensamento do IDEA (Programa
de Estudos Avançados – ECO/UFRJ). E-mail: [email protected]
4
ARLT, Robert. Sirio libaneses en el centro, 1933.
1 identidades culturais mapeadas – os fatores espaço-tempo assumem, portanto, função
ímpar na atividade narrativa: as tensões entre público e privado, os deslocamentos de
mercadorias, pessoas, demandas e serviços e, principalmente, as ressignificações das
práticas sociais, trazendo à tona forte carga simbólica dos processos de mediação.
O detalhe – que agora se sobrepõe ao contexto e ganha ar de moldura – se dá à
medida do calar-se, pois se calam em simultâneo as insatisfações, diminuem-se as
conquistas, saturam-se as organizações. Ao ciclo das interações urbanas
acrescentamos variáveis inconstantes, que induzem a separação da equação no campo
dos visíveis e dos invisíveis, dos legítimos e dos não legítimos. O único termo capaz
de inverter esta lógica, como veremos adiante, é o incômodo: alguns moradores da
cidade são invisíveis até o momento em que incomodam um dado projeto hegemônico
de apropriação do espaço urbano.
Ermínia Maricato (2003) prefere os temos legal e ilegal para se referir à
formalidade da configuração urbana: “A relação entre habitat e violência é dada pela
segregação territorial. Regiões inteiras são ocupadas ilegalmente. Ilegalidade
urbanística convive com a ilegalidade na resolução de conflitos: não há lei, não há
julgamentos formais, não há Estado.” Para ela, quem manda é o capital especulativo,
o mercado imobiliário, as empreiteiras e a indústria automobilística, que deixam à
margem da legalidade incríveis 50% da população das grandes metrópoles.
Materialmente, a cidade resulta de uma ocupação por sobreposição, por
agregação, por metástase. Monstruosa excrescência da planície, a cidade
foi produzida por uma inexorável causalidade geográfica que determinou
sua história e sua atualidade. (SARLO, 2014, p.146)
Somando cerca de três milhões de habitantes5, a capital das terras hermanas
não compartilha conosco apenas a alta densidade demográfica, o “parentesco” do
continente sulamericano ou os acordos aduaneiros. Assolada por um governo
autoritário, para muitos classificado como terrorista, após efusivas implementações de
políticas populistas com o peronismo, seguiu sob as rédeas da Junta Militar por sete
penosos anos de chumbo, de 1976 a 1983, e carrega até hoje fantasmas para lá de
conhecidos pelos brasileiros.
5
De acordo com o Instituto Nacional de Estadística y Censos da Argentina (Indec), a população total
da cidade de Buenos Aires era de aproximadamente três milhões de habitantes em 2010. Para efeitos de
comparação, a área metropolitana argentina é a segundo maior da América do Sul, ficando atrás apenas
da Grande São Paulo no ranking de concentração demográfica. Dados disponíveis em:
http://www.sig.indec.gov.ar/censo2010/. Último acesso: 07/01/15, às 22h09.
2 Nós tivemos Getúlio, sofremos o golpe para coibir quaisquer planos a respeito
da reforma agrária no mandato de Jango. Problemas de infraestrutura e saneamento
básico, assistência salutar, educação, distribuição de renda, moradia, despreparo
policial, elevados índices de inflação e migração, itens comuns às metrópoles de
mercado associadas a países em desenvolvimento nos parecem restar. Triste herança.
Depois de significativo período de repressão política e intelectual, chegam as
sanções libertariamente travestidas do Estado Mínimo, condenando a população à
ditadura do consumo, um novo estágio da violência urbana. O expansionismo
comunista, ameaça clara às intenções de controle comercial norte-americanas sobre a
América Latina durante a Guerra Fria, alastrou-se ao patamar de justificativa para
uma dominação cultural global, adotando como seus mais sensíveis aliados, os meios
de comunicação tradicionais6.
Pensar a exclusão não é mais suficiente. Faz-se necessário angariar
mecanismos eficazes que superem a resistência enquanto força contrária àquelas que a
segregam, existir de fato. “A cidade não oferece a todos a mesma coisa, mas a todos
oferece alguma coisa, mesmo aos marginais que recolhem as sobras produzidas pelos
incluídos” (SARLO, 2014, p.5). Para tal, os discursos, morada da (des)legitimação,
são a lei.
Bem salientado por Maricato (2003), as atenções das secretarias de habitação
em âmbitos municipal e estadual se voltam exclusivamente à cidade legal, dirigindose à parte ilegal somente em casos de articulação combativa – uma sólida guerra de
interesses, mas que se torna discrepante ao analisarmos as possibilidades de recursos
disponíveis a cada um dos lados do conflito. É a chamada burocracia conveniente da
máquina pública.
Vamos a um, ou a alguns, exemplos emblemáticos: Villa Rodrigo Bueno7,
comunidade da zona portuária argentina, vizinha de uma reserva ecológica recémdemarcada, Costanera Sur, do complexo esportivo do clube Boca Juniors e do projeto
6
Em Antropológica do Espelho – Uma teoria da comunicação linear e em rede (2002), Muniz Sodré
expõe, de maneira bastante embasada, a transformação da antiga cultura de massa para uma sociedade
de informação, apontando a circulação acelerada de um grande volume de dados como principal
diferencial entre os marcos. O historiador britânico Peter Burke, ao traçar um panorama para a história
social do conhecimento, da prensa de Gutemberg ao Wikipédia, partilha das mesmas motivações que o
pesquisador brasileiro: estaríamos em um momento de transição entre uma comunicação centralizada,
unidirecional e vertical para uma comunicação de relativa interatividade e multimidialismo.
7
A questão da segregação socioespacial de Villa Rodrigo Bueno vem sendo tratada com propriedade
pela pesquisadora María Carman, que integra o departamento de Antropologia e Ciências Sociais da
Universidade de Buenos Aires (UBA). Obra de referência: Las trampas de la naturaleza (2011). 3 de um condomínio de luxo da poderosa construtora IRSA. Localizada em uma área
enobrecida da cidade, valorizada a partir do início das obras de revitalização de
Puerto Madero, o maior símbolo da expansão imobiliária local, denuncia em larga
escala a falta de planejamento e o descaso de um poder público explicitamente elitista
e seletivo. A circunstância perfeita para redefinir os prestígios e o desfrute dos
direitos à cidade de Buenos Aires.
A região que reúne mais de 1.200 famílias surgiu ainda na década de 1980,
ironicamente ocupada por antigos operários responsáveis pela construção da zona
portuária e de seu entorno. Se o horror das remoções sem garantias financeiras
compensatórias ou de realocação próxima já indignam, acrescente às circunstâncias
adversas uma série de complicações ambientais de solo e lençol freático
contaminados catalisadas por redes de água e esgoto que nunca foram construídas –
neste patamar, soa-se capricho atentar para a ausência de vias de acesso e meios de
transporte, que dificultam a passagem dos moradores, a coleta de lixo, a entrada de
materiais de construção e até mesmo produtos para uso corrente.
Ameaças difusas, rumores, controles, formam parte dos intentos
cotidianos para fazer a vida na comunidade mais difícil. Estes mecanismos
a simples vista não são visíveis. São as botas no barro que permitem
percebê-los e ver como funcionam e que efeitos causam na população.
(PERELMAN, 2011, p.117)8
E na luta por visibilidade, uso e direito à cidade, María Carman (2011 apud
PERELMAN, 2011) vai além e direciona o debate para o campo do profano, cuja
densidade de sentidos nos permite perceber o sofrimento como valor constituinte,
intrínseco, conferido por um outro condenador: “Frente a tal conjuntura, o puro há de
ser posto à parte – vale dizer sagrado – como medida de segurança frente ao
percebido como contaminante” (p.254)9.
Para Maricato (2012), “a fronteira da expansão imobiliária precisa se deslocar
e você vê isso em qualquer cidade se expandindo. Em vez de aplicar onde é
necessário, por prioridade social, vamos aplicar para produzir a nova centralidade e é
8
Tradução livre. Do original: “Amenazas difusas, rumores, controles, formaron parte de los intentos
cotidianos para hacer la vida en la villa más difícil. Estos mecanismos a simple vista no son visibles.
Son las botas en el barro las que permiten percibirlos y ver cómo funcionan y qué efectos tienen en la
población.”
9
Tradução livre. Do original: “Frente a tal coyuntura, lo puro ha de ser puesto aparte – vale decir
sagrado – como medida de seguridade frente a lo percibido como contaminante.”
4 lá que o capital imobiliário está”10. Segundo a urbanista, “o povo não evapora”11, um
lamento profundo para aqueles que orquestram as finanças e os loteamentos
produtivos12.
Poderíamos citar Assunção, La Paz, Bogotá, Quito, Montevidéu, Tegucigalpa,
todos conglomerados imersos em conflitos urbanos de mesmo feitio, ou ainda Porto
Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, a fim de nos aproximar da discussão.
Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a América
Latina coleciona dez dos quinze países mais desiguais do mundo, trazendo consigo a
posição de primeiro lugar no ranking quanto ao quesito protestos sociais. Segundo o
último relatório publicado pela rede da ONU (2010)13, Peru, Bolívia e Argentina
contabilizaram mais de 200 protestos cada no período de um ano, sendo os de maior
número de manifestações – para efeitos comparativos, o Chile aparece em último
lugar na lista com 58.
Desta disputa saldamos duas deduções importantes: é inegável a conformação
de urbes partidas, de privilégios aristocráticos, cuja concentração de poder traduz-se
em oportunidades e na ausência delas; todavia, é impossível não ver a mobilização
dos descontentes, passam a ser inúteis os esforços dos condutores sociais em abafar as
demandas e reivindicações daqueles que por obra do próprio sistema foram postos à
margem do bios14.
David Harvey (2014) defende a ideia de cidades doentes. Para ele, é nos
grandes centros que se articulam multidões às quais o capital já não oferece
alternativas tradicionais. A cura estaria, então, ligada à dinâmica de embates, ou seja,
ações que explorem a essência fluida de movimentação das metrópoles entendendo-as
como lugares simbólicos de manifestações por e pelo poder e de construção de
imaginários sociais potencialmente transformadores: a cidade como antídoto da
própria cidade, injetando novos óleos lubrificantes em suas engrenagens.
10
Entrevista concedida à Revista Fórum, publicada em 25 de junho de 2012. Disponível em:
http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/06/15298/. Último acesso: 14/01/15, às 16h49.
11
Idem. Ver nota 8.
12
O jornal El Tribuno atesta que até o dia primeiro de dezembro do ano passado, nada havia sido feito
pelas autoridades. Texto disponível em: http://www.eltribuno.info/patch-adams-visito-la-villa-rodrigobueno-n475835. Último acesso: 08/01/15, às 3h03.
13
Relatório “O protesto social na América Latina”. Disponível em: http://www.pnud.org.br/. Último
acesso: 15/01/15, às 23h39.
14
Para nos aproximar das teorias foucaultianas, caem por terra as regulações sociais pautadas
exclusivamente nos mecanismos de hierarquia de verticalização de poder – em redes, percebemos nós
articulados: “O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam,
mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão” (FOUCAULT, 2012, p.283).
5 Mais do que reivindicar acesso, o direito à cidade reivindica um conjunto de
intervenções reais nos processos de configuração da urbe, como ocupações de prédios
abandonados, grafites ou reuniões em fóruns virtuais. Sem meias palavras, Maricato
(2012) afirma: “Olha, eu posso ser processada se disser que os movimentos devem
ocupar. Mas só queria dizer que, se os movimentos não ocupam, essa questão não tem
visibilidade. Não, se não ocupam áreas valorizadas.”15
A arte pode ser essa saída à barbárie, não por seus atributos estéticos apenas,
mas majoritariamente pela capacidade de produzir significados e agregar olhares. Eis
outra forma de se legitimar discursos, existir através da narrativa e do narrador: uma
cadeia de incômodos.
Dos olhos, os holofotes: o caso Vhils
Nascido em 1987, o artista de rua Alexandre Farto, mais conhecido como
Vhils, cresceu no subúrbio industrial de Seixal – uma das mais antigas periferias
lisboetas – sendo, portanto, profundamente influenciado pelas transformações urbanas
de uma Portugal em intenso desenvolvimento econômico nas últimas décadas do
século XX.
Ele define sua técnica de escavação como estética de vandalismo e busca na
poesia visual “falar diretamente às emoções humanas, expressando a luta entre as
aspirações do indivíduo e o ambiente saturado que habita, destacando e expondo a
dimensão sombria presente por trás do atual modelo de desenvolvimento que o engole
e seus anseios materiais”16. As plataformas são variadas: madeira, papel, chapas
metálicas, cortiça, outdoors entre outros, até mesmo explosivos já foram utilizados.
Concentremo-nos nas paredes.
Europa, Ásia, Oceania, América Latina. Muitas são as arenas de intervenções
de Vhils, todas urbanas. O artista escolhe fachadas de prédios abandonados, viadutos,
muros, escombros, vias subterrâneas para literalmente descascar a superfície, como o
15
Entrevista concedida à Revista Fórum, publicada em 25 de junho de 2012. Disponível em:
http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/06/15298/. Último acesso: 15/01/15, às 23h42.
16
Tradução livre, texto de autoria do artista disponível na página http://www.alexandrefarto.com/. Do
original: “This striking form of visual poetry, showcased around the world in both indoor and outdoor
settings, has been described as brutal and complex, yet imbued with a simplicity that speaks to the core
of human emotions, expressing the struggle between the aspirations of the individual and the
demanding, saturated environment of the urban spaces he lives in, highlighting and exposing the
sombre dimension that lies behind the current model of development and the material aspirations it
encompasses – unsustainable, yet inebriating.” Último acesso: 12/01/15, às 21h10.
6 nome do próprio projeto sugere, e desenhar rostos dos moradores locais17. Uma
apropriação por afeto, não por capital, que genuinamente nutre cenários em comum
estado de degradação com valores sensíveis às faculdades humanas. Emocionam.
Um manifesto de identidade cultural legitimador que invoca cidades para
cidadãos – cidadãos aqui plenos por sua existência e história, ambas amplamente
vinculadas ao meio dos quais comumente são expulsos ou, no mínimo, a eles são
ditos estranhos. “São o imprevisto e o não desejado da cidade, o que se quer apagar,
afastar, desalojar, transferir, transportar, tornar invisível” (SARLO, 2014, p.61). São
estes agora os protagonistas, que antes de resistir, existem, eternizados na dimensão
de um frame congelado (figura 1).
(Figura 1) No topo: Hong Kong, San Juan; Embaixo: Cidade do México, Medelin
Para Sarlo (2014), o presente é o único tempo possível na cidade – nele
correm juntos passado e futuro, presos ao instante. Na mesma lógica, seguem o
chamado regime presentista de François Hartog ou a ideia de tempo autista e
amnésico de Martín-Barbero, que procuram reinstalar a própria noção de processo
histórico e conceber uma nova condição de experiência de tempo ao contemporâneo,
cuja articulação e intervalo entre os seus três estágios clássicos não seja mais
17
O projeto intitulado Descascando a superfície (Scratching the surface) já circulou pelos quatro
cantos do globo. No Brasil, as intervenções se deram nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
7 evidente. Estaríamos vivendo uma contagem de presente alongado, sob a qual a noção
de risco parece nos afetar muito mais que a consciência de uma linha em retrospectiva
ou o compromisso de se resumir a planos e previsões estáticos.
(...) contra o passado, que é também a morte coloca-se na frente a
vida e o presente. (...) Passou-se, portanto, em nossa relação de
tempo, do futurismo para o presentismo: para um presente que é,
para si mesmo, seu próprio horizonte. Sem futuro e sem passado, ou
gerando, quase diariamente, o passado e o futuro de que necessita
cotidianamente. O slogan “Tudo, imediatamente!” pichado nos
muros de Paris, em 68, é um bom exemplo dessa “hipertrofia do
presente” (HARTOG, 1997, p.11-13).
Instaurado após a crise da Modernidade, período no qual o progresso ditava as
formas de ver, sentir e analisar o mundo, o presentismo, que começa a se formar ainda
nos anos 196018, tendo como marco a queda do Muro de Berlim, reitera a força da
lógica do consumo, conferindo-lhe a capacidade de produzir, além das identidades
socioculturais, o próprio tempo. “Com o regime moderno, o exemplar, como tal,
desaparece para dar lugar àquilo que não se repete. O passado está, por princípio,
ultrapassado” (HARTOG, 1997, p.9).
Para o pós-moderno Jean Baudrillard (1981), alia-se à conjuntura uma aposta
na eficácia dos simulacros como resposta à crise da representação, pois capazes de se
tornarem imagem de imagem de imagem, indicam, em alta potência, uma replicação
viral hiper-real, que os exime da necessidade de fundamento ou estímulo primário.
“A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da
negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento
de toda a referência” (BAUDRILLARD, 1981, p.13).
A arte de Vhils, então, cria uma memória virtual, individual e coletiva,
absolutamente pautada em simulacros que se reproduzem e se reafirmam, uma vez
postos na zona urbana de visibilidade, por interações sociais. Vamos a um exemplo
(figura 2):
18
Na década de 1960, eclode uma série de manifestações populares nas ruas, mundo a fora, em busca
de marcos para as minorias representativas. O ano de 1968 tornou-se emblemático com a conquista de
direitos civis, liberação sexual e reconhecimento dos movimentos estudantis. Na América Latina, as
vozes gritaram pelo fim da repressão política, conforme situamos na primeira parte deste artigo.
8 (Figura 2) Retrato de Edinho - Morro da Providência, Rio de Janeiro
Nos meses de setembro e outubro de 2012, como em resposta às manipulações
torpes do Estado brasileiro frente aos investimentos preparatórios para o Mundial de
Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, o artista português se instalou nas
dependências do Morro da Providência, a favela mais antiga do Brasil. À época, o
montante girava em torno de R$ 131 milhões e estava destinado, a priori, à
construção de um teleférico que interligasse a comunidade e de um plano inclinado,
um elevador que transportaria os moradores ao ponto mais alto do morro.
O projeto avançou, mas se transmutou em uma elaborada rota turística. Assim
como Villa Rodrigo Bueno, na Argentina, a comunidade carioca se viu vítima das
obras de revitalização do Porto Maravilha, compondo mais um processo de
gentrificação urbana 19 – estão previstas intervenções de capital misto em cinco
milhões de metros quadrados no centro do Rio, das quais espera-se um dramático
aumento das unidades de imóveis residenciais para classe média alta e de complexos
empresariais atrativos para o capital especulativo.
Junto à valorização fundiária, as políticas de ocupação policial em favelas
coordenam a demolição de cerca de mil casas – até janeiro de 2013, 140 delas já
19
“A palavra em português, gentrificação, é geralmente entendida como o processo de mudança no
estoque imobiliário, nos perfis residenciais e padrões culturais, de maneiras semelhantes aquelas bem
documentadas nas cidades da América do Norte, Europa e América Latina.” (GAFFNEY, 2013, p.7)
9 haviam sido destruídas20 –, atingindo aproximadamente 32 mil pessoas. Daquelas que
permanecem de pé, os aluguéis exorbitantes tratam de cuidar. Para Christopher
Gaffney (2013), é o maior projeto de privatização urbana das Américas a fim de criar
espaços de exceção.
Edinho (figura 2), morador da comunidade há 30 anos, teve sua casa
expropriada pelo governo e deu vida a um dos sete rostos esculpidos nas paredes por
Vhils. “Você me viu na parede? Você não disse que eu mudei daqui? Eu não mudei,
eu continuo morando no mesmo lugar.”21 Este é o seu relato, mais politicamente
simbólico do que a própria política. A coisa em si não está mais lá, no entanto, sua
representação faz as vezes do real de maneira assustadoramente intensa. Um outro
sistema e não um fora dele.
O despejo é real, a desapropriação também, mas Edinho nunca esteve tão
dissolvido e integrado à comunidade nas décadas em que circulou por suas vielas e
becos. Pode ser essa uma das facetas da febre de memória a que se refere Barbero
(2000), pontuando-a como uma das maiores demandas do homem contemporâneo.
Um produtor de presente com desejo de passado, com desejo de controlar o
tempo. Seriam os simulacros este lugar de memória? Ao menos quanto à arte,
podemos dizer que sim. Vhils não só retratou cidadãos à margem da sociedade de
mercado, mas devolveu-lhes suas auras assassinadas pela especulação imobiliária.
Considerações finais
“A cidade existe nos discursos tanto quanto em seus espaços concretos, e,
assim como a vontade de cidade a transformou num lugar desejável, o medo da cidade
pode transformá-la num deserto em que o receio prevaleça sobre a liberdade”
(SARLO, 2014, p.92). Começamos e terminamos com Sarlo.
O tal medo da cidade aparece em perfeito compasso com as recentes
demandas da iniciativa privada e das concessões públicas, que preferem abdicar-se do
posto de autoridade da regulação de direitos em benefício da regulação de recursos. O
deserto vem se estabelecendo, cerceando a liberdade daqueles que possivelmente
ainda não a conheceram por inteiro ou sequer pela metade.
20
Dados obtidos a partir do blog do jornalista Luis Nassif. Texto disponível em:
http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/copa-800-casas-do-morro-da-providencia-serao-demolidas.
Último acesso: 15/01/15, às 14h51.
21
Fala extraída de depoimento concedido a um mini-documentário sobre a intervenção artística no
Morro da Providência. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=I8MNwStj_58. Último
acesso: 15/01/15, às 12h05.
10 Quando a política de exclusão se torna política de Estado, a arte surge como
um eficaz mecanismo de legitimação e visibilidade e eterniza narrativas na dimensão
efêmera de um tempo presentista: a memória virtual faz do incômodo uma realidade e
possibilita aos indesejáveis, aos estranhos da cidade, a certeza de existirem.
Na conjuntura pós-moderna de uma vida fragmentada e sem referências, a
identidade cultural das urbes parece diluir-se junto aos seus habitantes, apostando na
questão dos simulacros a saída para a crise de representação vigente.
11 Referências de pesquisa
BARBERO, Jesus-Martin. Dislocaciones del tiempo y nueva topografia de la
memória. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; REZENDE, Beatriz (orgs.).
Artelatina: cultura, globalização e identidades. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1981.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2012.
GAFFNEY, Christopher. Forjando os anéis: A paisagem imobiliária pré-Olímpica no
Rio de Janeiro. E-Metrópoles: Revista eletrônica de estudos urbanos e regionais. Ano
4, n.15, dez. 2013, p.6-20.
HARVEY, David. Cidades Rebeldes – Do direito à cidade à revolução urbana. São
Paulo: Martins Fontes, 2014.
MARICATO, Ermínia. Conhecer para resolver a cidade ilegal. In: CASTRIOTA,
L.B. (org.) Urbanização Brasileira: Redescobertas. Belo Horizonte: Arte, 2003, p.7896.
PERELMAN, Mariano. Repensando la segregación urbana en la ciudad de Buenos
Aires. Revista del Área de Estudos Urbanos del Instituto de Investigaciones Gino
Germani de la Facultad de Ciencias Sociales (UBA). Quid 16, n.1., 2011, p.114-119.
SARLO, Beatriz. A cidade vista – Mercadorias e culturas urbana. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em
rede. Petrópolis: Vozes, 2002.
Websites:
http://www.pnud.org.br/
http://www.alexandrefarto.com
Entrevista:
MARICATO, Ermínia. O panorama das cidades doentes. Entrevista concedida à
Revista Fórum, publicada em 25 de junho de 2012. Disponível em:
http://www.revistaforum.com.br/blog/2012/06/15298/
Mini-Documentário:
https://www.youtube.com/watch?v=I8MNwStj_58
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