Sessenta mil palavras

Transcrição

Sessenta mil palavras
Sessenta mil palavras
FRANCISCO BILOU
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Quanto mais se chega a fim
do mundo, a todo andar,
tanto a gente é mais ruim!
Gil Vicente, Auto da Barca do Purgatório
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UM
Asas negras no céu azul que amanhece. São corvos, os negros corvos do coval
de Santa Ana. Pairam em voltas de abutre, a lembrar os sinais da morte. E pelo mistério
da mesma morte que no ar já se anuncia rodam, ressurgem, consomem-se no azul que
amanhece. E num repente acolhem-se aos melhores poisos terrenos. E aí ficam,
enfeitiçados, à espera da carreta da Misericórdia.
O Espinha diz que estes corvos do coval de Santa Ana têm tanto de cão no ouvir
como de águia no ver… Pode ser. Lá teimosos são eles, como mulas, e espertos como
raposas. Seja como for é nesta animalidade de bicho réprobo que se apoderam do azul
que amanhece, esperando como esfinges na fímbria do telhado da igreja. Agora para o
Espinha os expulsar do seu alto trono só se for à pedrada, ou de susto quando troarem os
sinos de Santa Ana. Se troarem.
Mas decerto voltarão. Diz-se que bichos destes de mau agoiro não morrem nem
invernam e por isso têm todo o tempo do mundo para esperar. Esperam e grasnam.
Grasnam e esperam. Até ao derradeiro sopro de vida dos homens. Nesta vigília
interminável ninguém sabe de que se alimentam. Mas diz-se que só pode ser da alma
dos mortos. Assim pensa o Espinha que é seu inimigo há muitos anos e por isso não lhe
sai da cabeça esta velha torvação: se ele continuar a enterrar tamanha cópia de bandidos,
apóstatas e hereges, concorrendo as suas almas enegrecidas para alimentar o corval de
Santa Ana, ainda um dia a negra maldade de tanto corvo assombrará o Céu-do-Bem
guardado pelas pombas do Paraíso…
– Corvos dum grandessíssimo cabrão! Deus me perdoe…
Deus perdoa, ocupado que está com a máquina do tempo. Perfeita e imutável
desde a sua divina criação. E porque o Criador assim o fez e assim o quis, a manhã
ressurge no seu passo de roda dentada, trazendo na mão a luz da vida. E veio vestida de
azul para dar aos homens mais um dia formoso. Daqueles de calor meigo e doce como
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só as manhãs de setembro sabem partilhar com os moços e com os pássaros que não são
corvos, porque aos corvos qualquer manhã serve.
Com tão generosa dádiva seria a manhã perfeita para correr à cidade velha, de
braços abertos como asas ao vento. Descer as rampas da vertigem como qualquer moço
que mora nas cimalhas de São Roque. Voar pelo Rossio até Ribeira, ao poço secreto dos
mergulhos. Quem sabe visitar as relíquias do santo patrono Vicente que tem dezasseis
tábuas insignes e dois corvos pintados na sua barca de tábua. Ou talvez espreitar Alfama
e daí subir ao Castelo que tem as melhores vistas para o rio. Com sorte ver surgir da
espuma do horizonte o desventurado rei-moço que há vinte anos é esperado.
Seria a manhã perfeita se fosse possível adoçá-la de desejos, daqueles roubados
à caixa do destino sem ninguém se importar de faltar algum.
Mas não.
Não decerto para o Espinha, que é o coveiro da Misericórdia e nunca a vida o
convidou a brincar às corridas de asa-à-solta. As suas asas de moço sempre as usou para
enterrar mortos. E como nunca provou esse beijo feliz da liberdade, leva agora a vida
enfadado com os moços e com os pássaros e corre à pedrada os corvos, que nem
pássaros são como os outros. Nem ele sabe que existe uma caixa do destino cheia de
desejos à espera de serem roubados. Para ele, que se fez homem a comer espinhas de
peixe lançadas à rua e por isso ficou Espinha de nome, o destino não é uma caixa. É um
livro. E já está escrito. Escrito, desde que o Criador o escreveu no início dos tempos.
Ainda antes de haver corvos e moços de asa-à-solta pelo mundo. A ele calhou-lhe à
nascença ser coveiro e órfão de pai e mãe, por assim estar escrito a letras de oiro no
livro do Criador. Nem ele sabe quem foram os seus pais e muito menos os avós. Mal
parido nos esconsos de uma viela, foi amparado pela irmandade de Nossa Senhora dos
Remédios que tem culto em Alfama. Desde então é Nossa Senhora a sua mãe adotiva e
Santo Antão o seu pai emprestado, por ser ele o patrono dos coveiros. Ninguém lhe
deixou um escrito de amor, um insignificante sinal que lhe alimentasse a esperança de,
um dia, alguém o surpreender com o contra-sinal do amor e por isso, até hoje, ninguém
apareceu a reclamar a sua insignificância. Apenas sabe que quem quer que o tenha
parido lhe deixou nas suas rudes veias o bom sangue de cristão-velho, caso contrário
não teria tão abnegado carinho ao Pai-do-Céu e a todos os santinhos que com Ele estão
no Paraíso. E porque é assim – porque só pode ser assim! –, para ele está apenas uma
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manhã. Boa, talvez, mas só se for para enterrar mais um preso que morreu ontem no
Tronco, que é como chamam a uma das muitas prisões de Lisboa. E no coval de Santa
Ana a sua sepultura está agora quase pronta conforme as ordens recebidas de Agostinho
Belo, mordomo que serve na capela da Misericórdia. Ele próprio, revestido dessa
faculdade de ser o major domus, ou seja, o «maior da casa», que é o que significa ser
mordomo, enviou ao tronqueiro o caixão para o preso que faleceu no dito Tronco.
Agora, dos passos desta diligência e da notícia do enterramento lavra a respetiva
certidão aos senhores inquisidores, neste dia vinte e três de setembro de mil e
seiscentos, firmando nela o seu autógrafo sem lhe esquecer a necessária referência à
suspeitosa pureza do seu sangue, que só tem três-quartos de cristão-velho por causa de
uma nódoa de sangue judeu que mancha a sua família.
Aberta à enxada pelo escravo mourisco, a cova não está muito funda. Apenas o
suficiente para nela caber, à justa, a tumba de madeira. Cuidado sempre necessário a ter
em terra de mortos, não vá alguma ossada mais antiga desvelar-se por descuido. Nem o
coveiro o aceita, de tão grave profanação que é aos olhos do Santíssimo, nem o escravo
o deseja, pois bem sabe como acabam por ficar os seus próprios ossos se lhe acontecer
semelhante azar.
Tiradas as medidas a olho, o caixão é finalmente descido à terra num movimento
certeiro. À primeira. E assim fica, sem merecer um simples gesto de aconchego no
puxar das cordas, mais parecendo a deposição estúpida de uma pedra de bom tamanho,
para ali transmudada por já não fazer falta ao mundo.
E lá dentro o cadáver, lançado ao monturo da morte como coisa vil e inútil que
se não quer à vista dos viventes. Tão desamparado na sua sorte que nem a família mais
chegada comparece a este último adeus. A este derradeiro conforto de luz que alumia a
memória de um morto que é, tão só, saber-se acompanhado na sua última viagem. Nisto
compartilhando o mesmo destino de todos os infelizes que jazem neste coval. Centos,
sem conto e sem nome. Que o Espinha se lembre dos que lhe passaram pelas mãos,
assim de repente, só se for o fazedor-de-versos, ruivo e zarolho, que morou aqui perto,
ao Arco de Santa Ana. Vai para cinco anos que um fidalgo de nome Coutinho lhe veio
dar sepultura digna no interior da igreja. E só se lembra disso porque foi um trabalho
penoso: teve que cavar às apalpadelas para achar o ataúde certo. Por fim lá achou o que
lhe pareceu de melhor feição ao caso. Ao acaso, a bem dizer, que num mar de sepulturas
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sem nome não foi fácil encontrar na barriga da terra o Jonas engolido sabe-se lá por que
baleia. Até a Jesus, se não fosse Jesus filho de Deus, isso havia de ter custado fazer à
primeira. Certezas absolutas desse dia aziago somente o cheiro pestilento quando o
ataúde se partiu pelo meio, de podre que estava a madeira. Coisa que atraiu de imediato
os malditos corvos que o Espinha costuma apedrejar, ainda que a cidade tenha em
grande estima os dois que estão pintados no altar do santo mártir Vicente. De padiola,
por entre a fidalguia enojada, lá se levou a enterrar aquela carcaça pútrida, ficando-lhe
gravada na pedra tumular a memória de insigne poeta, de nome Luís Vaz de Camões.
Ao coveiro ainda hoje lhe custa perceber porque se deu Dom Gonçalo Coutinho ao
trabalho de trasladar ao chão sagrado da igreja de Santa Ana alguém que viveu pobre e
miseravelmente e assim sempre viveu…
Não é o caso do desgraçado que ele acaba de atirar à cova do esquecimento
como uma pedra sem nome. Só o facto de ter vindo do Tronco já é motivo bastante para
se desconfiar do tipo de morto que é. De lá, daquele covil pestífero, só podem vir
bandidos, criminosos e outra gente com graves culpas por confessar a Deus. A Deus
não, que culpas destas nem ao Purgatório chegam por não terem quem cá fique a rezar
pela alma do defunto. E logo este que vem com fama de frade relapso, apóstata e
bígamo. Felizmente para o coveiro que o morto não consta ser poeta. Mas até podia ser
pintor. E dos bons! Com culpas tão graves vem decerto a sua alma mais negra e
encardida do que a da simples escumalha presidiária. Mais uma para os corvos…
– Ide arder nas entranhas do Inferno, Deus me perdoe! – vocifera o Espinha,
empunhando o cabo da enxada como um bastão de comando.
– Que o Demo folgue dele! – imita o ajudante escravo, já em bom português,
entre a raiva e o temor de ser raivoso.
Depois de espalhada a cal que há-de comer o corpo e disfarçar-lhe o mau cheiro,
não vá algum cão vadio dar com ele, os dois tapam a cova, calcando bem a terra escura.
Feito isto, o Espinha hesita em riscar uma cruz sobre a terra batida. Gesto que
acaba por fazer ante o olhar de podengo esfomeado do escravo. Fá-lo sim, mas não por
comiseração ou súbito rebate de consciência. Tão só por achar que Deus, sentado na sua
tribuna celeste, atenta, um a um, a todos os gestos dos homens. E qualquer sinal de bom
cristão que ele faça hoje – sobretudo este que os olhos-do-céu conseguem alcançar com
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clareza – pesará amanhã a seu favor na balança do Purgatório, lugar de pernoita onde
ele sabe ter contas a prestar aos juízes da corte de Deus. E mais cedo que tarde.
Agora sim, o preso que morreu no Tronco está finalmente debaixo do chão. E o
seu nome proscrito para sempre da memória dos vivos. A esta hora já a barca do Inferno
o carrega para as profundezas da terra descendo aos seus nove círculos de sofrimento. E
é bom que isto aconteça com frequência, pois como é costume ouvir dizer-se: quantos
mais lá caírem mais sobra de Céu aos que cá ficarem.
Mas, bem vistas as coisas – por exemplo, à mesa de uma qualquer taberna do
Rossio que é sítio respeitável até para um inquisidor –, dificilmente alguém pode exigir
a um oficial experiente como o Espinha trabalho de melhor qualidade. Afinal, o
importante no lançar de um corpo à terra é o de garantir que a alma não se escapa para o
lado dos vivos. E até pode parecer que nunca uma alma se tresmalha ao sair da boca de
um morto, mas o que por aí não faltam são almas penadas sem sepultura cristã,
assombrando e amaldiçoando pelos cantos da noite o sossego dos vivos.
– Deste cabrão ruim não se alembrará o mundo mais! – vangloria-se o coveiro
como se tivesse acabado de enterrar o verdadeiro culpado da maldade humana. – Anda
daí, Mafamede…
Mafamede é o nome do escravo mourisco. Soa na boca do coveiro como se fosse
nome de besta cavalar. Para o Espinha tem o mesmo som desprezível como se tivesse
que chamar ao escravo Castanho, ou Ruço. É simplesmente Mafamede. E se lhe
perguntarem pela idade dirá que tem trinta anos, pouco mais ou menos. Todos nesta
cidade de corvos, por este tempo, têm a idade seguida de pouco-mais-ou-menos. Mas o
Mafamede, ao contrário do Espinha, deixou pais e avós na Barbaria, que é como os
portugueses chamam à zona Berbere do Norte de África. E aí era uma criança feliz ao
tempo d’el Rei Dom Sebastião, quando, sem ele saber como, uns homens brancos de
Ceuta o batizaram e o trouxeram a Lisboa já cativo. Agora alimenta a esperança de
comprar a sua alforria, coisa que deve tardar. Mas a acontecer antes do dia do Juízo, só
se for quando ele já não tiver préstimo para trabalhar…
Terminado o enterramento e recomposta a tralha do ofício, o coveiro e o
ajudante escravo vão à sua vida a enterrar outros de igual sorte. Ele de enxada às costas,
como digno lavrador, o escravo alombando com o puxo da carreta desengonçada, que
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até aqui, neste fundilho remendado da humanidade, há precedências a respeitar. Se
Miguel Cervantes Saavedra viesse agora a Lisboa e desse de caras com estes dois nesta
triste figura – o Espinha, magrote e espigado, o escravo, curto e maciço –, tinha ele aqui
inspiração de sobra para um Dom Espinhote e o seu fiel servidor Mafamede Pardo em
terras portuguesas senhoreadas por castelhanos.
Quando se afastam, deixando aos corvos o seu quinhão da alma do morto,
cruzam-se no caminho com um vulto pardacento, enrodilhado de miséria. Se tivesse
bico e asas até podia parecer um corvo descorado, daqueles mal tingidos de preto,
escapados ao feitiço dos deuses antigos. Mas não. É apenas um vislumbre de mulher,
pequena, frágil e magra, de cara negra, caminhando a passos leves como se não tivesse
peso. A verdadeira visão de um anjo-da-morte caso um deles descesse à terra. De belo
neste rodilho fúnebre apenas umas flores púrpura de aloendro que trás na mão, e mesmo
essas são venenosas como todos bem sabem.
– Quem vai lá em tão ruim figura? – questiona o escravo, já bem depois de se
cruzar com ela.
– Bem pode ser Belzebu em disfarces de mulher... Deus me valha! – responde o
coveiro sem dar grande importância ao assunto, o que bem mostra a fealdade da criatura
que por ele acaba de passar.
Ainda que lhes desinteresse saber os propósitos daquela desconhecida mulher,
coveiro e ajudante dão conta num último vislumbre de que ela se detém junto à
sepultura do morto que ambos acabam de enterrar. Mas já não a vêm a ajoelhar-se. A
pousar o ramo de flores sobre a terra num gesto de despedida. De Paz. Porque se
freassem agora a marcha para lhe prestar alguma atenção talvez se admirassem da súbita
agitação dos corvos, como se um golpe de vento os fizesse desequilibrar na fímbria do
telhado da igreja. E muito mais se surpreendiam se vissem um dos corvos descer como
uma seta; pousar junto da sepultura; grasnar com estridência como se viesse ao solo
recriminar o comportamento da mulher. Ou talvez reclamar algo que lhe pertence, quem
sabe a alma do morto… E feito isto, sabe-se lá por que misteriosa intenção, a lançar-se
em círculo largo sobre a igreja, grasnando ao modo de um chamamento, como quem diz
para os companheiros: já cá a tenho, vamos embora!
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Desatentos a este repentino comportamento dos corvos à voz de um deles, o
Espinha e o Mafamede acabam por notar a sua presença só quando o bando se lança à
cidade, tomando a direção do rio. Fazendo-o, aliás, com malévola intenção, pois
podendo voar a altos voos optam por rasar-lhes a cabeça como que encarnados numa
inesperada revoada de moços felizes a correr de asa-à-solta. Fruuummm… Provocação
tão descarada que o coveiro não resiste ao impulso de logo ali os correr à pedrada, ainda
que na atrapalhação de movimentos não encontre uma pedra a jeito, restando-lhe lançarlhe um violento, mas inútil, impropério:
– Corvos dum grandessíssimo cabrão, se vos apanho!...
Sobre a cidade um dia perfeito. De uma luz macia. De um calor meigo e doce.
Bom também para celebrar o dia do santo apóstolo Mateus. Aquele a quem o anjo-doSenhor ajudou na escrita do Evangelho por não saber ler nem escrever. E ainda bem,
pois como poderiam os cristãos atravessar as trevas do pecado sem a ajuda de mais esta
luz a alumiar o caminho escalavrado que sobe à cidade-de-Deus?
Cá em baixo, na cidade-dos-homens, onde há corvos que esperam pela morte,
moços que correm de asas abertas ao sabor da vida e coveiros que não gostam nem de
moços nem de pássaros e correm os corvos à pedrada, os mortos que estão a mais no
mundo vão a enterrar sem memória num qualquer adro de igreja. Pode até ser a de Santa
Ana, mãe de Nossa Senhora, e por isso obrigada a ser duas vezes mãe-dos-homens. De
resto, os homens-da-cidade seguem o passo certo do seu quotidiano: os pobres
trabalhando para o seu sustento, os ricos folgando das suas rendas e os inquisidores
vigiando do alto, não vá alguma ovelha do rebanho cristão afastar-se em demasia dos
pastos-do-Senhor…
Tudo o mais como o quer o Criador: corvos a grasnar nos ares a infinita espera
da morte, cá em baixo, sobre a terra empapada de vómito e incenso, uns à espera do
Desejado que o mar há-de trazer, outros no silêncio dos mosteiros à espera do Juízo
Final, fogo redentor que já não deve tardar.
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DOIS
O Juízo Final bem pode retumbar nos céus – já hoje – com o clamor de mil
trovões. Talvez no último dia de 600. Talvez em 666, que é o número da besta: hic
sapientia est. Qui habet intellectum, computet numerum bestiae. Numerus enfim
hominis est, et numerus eius est sescenti sexaginta sex.
Mas enquanto a cristandade espera com resignação as sete trombetas do
Apocalipse, resta aos homens a certeza de que a sua viagem continuará esforçada.
Punitiva. E breve. Em particular os que andam no mar. Para esses, regressar ao
aconchego do Tejo é como voltar ao regaço de uma mãe sentada. E Lisboa tem esse ar
de mãe-de-abrigo, pronta a abraçar todos por igual à hora da chegada. Ela própria, de
mãos firmes nas margens mais altas do rio, parece estar sempre à espreita de notícias do
mar… Espera assim há séculos, vestida de um manto pardo como um vestido-de-dó. E
como mãe-de-abrigo, mesmo para os que aqui aportam fulminados de solidão e
deslembrança, não é difícil recordá-la num só olhar: lá no alto o esporão rochoso da
Alcáçova Velha, com as suas torres de aparato; a meia encosta a massa calcinada da Sé
onde se veneram as relíquias do santo patrono; à mão direita outro São Vicente, mas de
Fora, com o seu torreão agulhado como fortaleza; e a toda a volta, pespontando a cidade
velha aos arrabaldes, a linha escura da muralha medieval: sobe da Ribeira Velha ao
Castelo, que já foi morada de reis, precipita-se para o Rossio a rodear o Hospital Real de
Todos-os-Santos, São Domingos e os Estaus do Santo Ofício, galga a escarpa do Carmo
pelos moinhos, a São Roque, desaparece em Cata-Que-Farás, nos baixos da Ribeira das
Naus e nas costas do Terreiro do Paço.
Neste final de setembro do ano do Senhor de mil e seiscentos, um mar coalhado
de embarcações repousa aos pés desta mãe-de-abrigo. Há as muito grandes que vieram
de longe. As de bom calado. As pequenas. Na verdade, de todos os tamanhos e feitios.
De todos os nomes também: naus, galeões, patachos, galés, galeotas, caravelas, urcas,
faluas, fragatas… Umas de personalidade altiva, turgidas e embandeiradas. Outras
robustas como carros de carga, já sem lustro, ou porque nunca o tiveram ou porque o
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tempo e o sal o apagaram, como é o caso da galé capitania que acaba de voltar do mar.
Mas todas imóveis sobre a suave ondulação que respira em cintilações metálicas.
As que fundeiam ao largo, as que procuram abrigo no cais de pedra e as que
jazem no areal da Ribeira das Naus como carcaças abandonadas pela maré, por junto,
dão a impressão de ser uma outra cidade que prolonga Lisboa rio a dentro. Duas cidades
que se fundem e talvez se espelhem, ainda que uma de pedra e cal, outra de madeira e
pano. Por ora ambas adormecidas à tona de água. Embaladas nos mesmos fios de luz.
No mesmo sussurro dormente do tempo, intervalado pelo estridor alucinado das
gaivotas.
Como rasto de vida urgente apenas os batéis, que cruzam o rio a compasso. Uns
aportam nos areais da Ribeira. Outros volteiam para o cais da Alfândega. Perdem-se uns
quantos para lá da Ribeira Velha. Há os que sobem o rio. Os que vão para Coina e para
Punhete. Os que vêm da banda-de-além. Nenhum arrisca, para já, aproar à foz do rio,
costeando por Alcântara até Belém, onde está o baluarte do Restelo levantado nos
tempos do rei Venturoso.
Para os que desembarcam à liberdade da terra firme, seja para matar saudades
antigas seja para viver aventuras novas, a primeira sensação olorosa é a do bafo húmido,
intestino, entre o breu resinoso dos calafates das Terecenas e a imundície lançada ao rio
pelo cano real. Até a areia molhada que os pés pisam e revolteiam exala a um podre
visceroso. É claro que um tal cheiro só apodrece no nariz dos que aqui aportam. Para os
vizinhos de Lisboa os ares e as águas ribeirinhas são benesses divinas. Por isso a
miudagem não tem pejo em se lançar à água do rio sempre que o sol aperta. Até os de
São Roque aqui vêm pousar, em correrias estouvadas, como pássaros de asa-à-solta. Por
brincadeira, os mariolas chamam-lhes putos. Alguns destes putos, que sabem nadar com
desenvoltura, chegam a rodear os galeões fundeados ao largo. Fazem-no à compita, por
sua diversão, às vezes a mando de certos homens que gostam de ver os corpos
desnudados dos moços mais novos e que, sem pejo nisso, lhes dão doces à chegada e os
convidam para a suas casas…
Mas para os que aportam na Alfândega e por isso não molham os pés, talvez a
cidade os receba com outras cores, com outra nitidez. Talvez o verde do Jardim d’el Rei
seja um pouco mais viçoso. Talvez os telhados, baixos e desajeitados, sejam agora
tingidos de tonalidades sanguíneas e as fachadas ribeirinhas, apinceladas de cal e
óxidos ferrosos, talvez amareleçam tons de açafrão-da-índia à luz do sol. Talvez o corpo
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de varandas sobrepostas do Paço da Ribeira, como ponte de pedra disparada ao rio, seja
agora à vista de todos uma imensa galeria festiva. Talvez por ainda se conservarem
algumas janelas recortadas à mourisca a lembrar o gosto exótico do rei Dom Manuel.
Ou, talvez, por servir a um palácio real, ainda que ocupado por um soberano espanhol.
Logo espaço de luxos, de damas galantes, de opas roçagantes, de adamascados
carmesins… Mas vendo-o mais de perto, na sua altivez fidalga, escudado por uma nova
e potente torre com os pés dentro de água, talvez não deixe de parecer um pantufo de
seda pousado na bosta fétida da rua.
Aos que prosseguem, tateando o corpo inteiro desta mãe-à-espera, talvez se
espantem com a interminável arcaria que sustenta as salas sobradadas dos paços reais e
acomoda as dependências da Casa da Índia. Aqui, sim, a vida pulula em frenesim.
Mercadores, tendeiros, regateiras, sardinheiras, mariolas, ribeirinhos… Lembram um
enxame que enxameou à volta do cortiço, só que, em vez de favos de mel, está cheio de
pimenta e de outras muitas drogas trazidas pelas naus da Índia. E como num enxame
frenético que se deixou endoidar pelo cheiro das especiarias, por todo o lado estalam
sons guturais, metálicos, ocos, arrastados, numa melodia desarrumada em permanente
improviso.
Subindo na distância do Terreiro do Paço, pregões saltarilhos vendem peixe frito
à cambada, água à canada, confeitos e bugigangas. E como que amassados neste
carrossel, circulam corpos disformes que falam por bocas desdentadas. Chegam e
partem como alucinações corpóreas. Alguns parecem vaguear sem destino e sem dono.
Como os muitos cães vadios da Ribeira. Outros, ainda, têm mesmo o juízo avariado, ou
porque se avariou em qualquer passo da sua vida, ou porque assim já nasceram. Para
estes, que nunca conheceram Deus nem Deus se importou com eles à hora de nascerem,
estão agora condenados a não ter quem lhes salve a alma. Também que importa a
salvação da alma a quem vive um sonho acordado sem saber ao que sabe a realidade.
Sem saber, sequer, que a alma tem olhos. Porquanto, abrir-os-olhos-da-alma, é por este
tempo a mensagem cristã mais ouvida nos púlpitos das igrejas e na mesa do Santo
Ofício. Pois bem se sabe que neste mundo maquinado pela esperteza oportunista só se
salvam as almas daqueles que reconhecem, recantando, as palavras da doutrina católica.
Descontados os muitos que vão ao Inferno por renegarem conscientemente esta
instrução básica de vida, para todos os outros deve haver um Céu especial para onde se
lhe escape a alma, pois não passa pela cabeça de ninguém que um Deus misericordioso
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não deixe de acolher no seu regaço pobres criaturas que nasceram destituídas de juízo e
por isso não sabendo destrinçar no altar da fé o verdadeiro Pai do Céu.
Acrescem a este torvelinho de corpos mais uns quantos estropiados das guerras,
curvados de miséria, de mão estendida à caridade. Mais umas quantas mulheres
enrodilhadas em saios escuros. A maioria viúva e velha. Diz-se que algumas delas ainda
esperam pelos seus maridos, desaparecidos e sem dar notícia de si desde a fatídica
jornada d’el rei Dom Sebastião. Faz agora vinte anos. Teimam nisso, olhando os longes
do rio até ao mar. Porque um dia, sem que nada o anuncie a pendões de glória, muitos
regressarão na companhia do seu jovem rei. Porque o rei ainda é novo demais para
morrer. E os seus maridos bons demais para que Deus os tenha abandonado à sua sorte
do outro lado do mar…
De resto, nada é etéreo, nada é belo nesta Babilónia boçal. E o exotismo, se já o
teve em tempos de El Rei Dom Manuel com as espantosas alimárias que lhe vieram da
Índia – pois bem se lembram os mais velhos de ouvirem dizer a seus pais que aqui,
neste mesmíssimo Terreiro do Paço, se viu lutar um rinoceronte contra um elefante! –,
está hoje resumido a pouca coisa, que já nem fumar torcidas de tabaco espanta
alguém…
Não é isso o que cantam os poetas seduzidos pela beleza das tágides. Não é isso
que escrevem os doutos e letrados que discorrem sobre a grandeza e magnificência das
cidades, buscando em Platão e Aristóteles o bom uso dos ensinamentos antigos das Leis,
da República e da Política. Se algumas coisas falecem à cidade, como Francisco de
Holanda bem notou, para os que escrevem loas a Lisboa até parece que ela é tão ou mais
notável que outras cidades do mundo antigo. Mas, bem podem os encomiastas escrever
que ela é um sítio temperadíssimo, por estar na Zona Temperada, dezasseis graus
apartada do Trópico de Câncer. Bem podem elegê-la como locus salubre, ameno e
deleitoso, seguro e inexpugnável, que é condição própria da realeza de qualquer capital,
o certo é que para Lisboa ser uma das cabeças coroadas da Europa ainda é coisa que se
está para ver. E tágides se as houvesse, formosas e abundantes, certamente os
pescadores ribeirinhos já as tinham apanhado nas suas redes, sobretudo com os tapaesteiros, que é arte de pesca afamada no cerco de toda a espécie de criatura marinha que
povoa os fundos do rio Tejo.
Uma derradeira esperança de luz que se imagina brilhar nesta poça de lama, pelo
menos aos olhos dos que agora desembarcaram e não venham completamente
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inebriados pela fortuna das especiarias, são os rostos trigueiros das moças da Ribeira.
Pedras- raras entre o cascalho pútrido. Mas se as há, todas devem estar embuçadas num
casulo de sarapilheira, que nada é novo nem jovial neste circo de sombras defumado a
vómito e a incenso. Talvez as moças que vendem nos degraus da Misericórdia
ramalhetes de flores e boninas, que é como se chama aos malmequeres, sejam o mais
belo que a vista tope nesta cidade de sardinheiras e regateiras. Fraca consolação para os
que arrastam olhares de água salgada meses a fio e aspiram por cor, por amarelos vivos
de damasco, vermelhos de framboesa e muitas, muitas rosas carnais.
E assim perdida a esperança das cores e dos cheiros daqueles que sonham pelas
bodas de Caná pintadas pelas mãos de um Veronese, o mais são negros. Todos escravos.
Todos criados de alguém. Velhos. Novos. Até crianças de colo. Maltrapilhos, quase
todos. Mas há uns que vestem gibão golpeado, já fora de moda, calções tufados de
chamalote e gorra de cor garrida a cobrir a carapinha. É a desgraça de mão dada com o
risível a feder a lodo e a especiaria.
A destoar neste quadro pintado a ocre e a almagre só a presença de flamengos,
de valões, de ingleses e de outra gente luterana que o mar despeja todos os dias na
Ribeira. Chegam do norte da Europa com esperança de trabalho rendoso, de negócio
fácil. E facilmente são mercadores, ourives, lapidários, iluminadores, carpinteiros de
marcenaria, imaginários, pintores. Altos e de tez clara, como que talhados em mármore,
cabelos longos de oiro fulgente e olhos tingidos de azuis marinhos, são, para os
rasteiros, escuros e rudes portugueses de boa cepa cristã, como que encarnações
angélicas de mau agoiro. Destes celestes diabretes, que abjuram da nossa fé e comem
carne aos dias defesos, devem os cristãos-velhos estar prevenidos. No mínimo, tê-los
sob vigilância apertada. À cautela, logo que aqui aportam, mandar às suas naus os
visitadores da Inquisição para ver se nelas encontram livros proibidos ou indecentes,
não raras vezes escondidos nos barris do biscoito. De preferência entregá-los sob um
qualquer pretexto acusatório ao corretivo doutrinal do Santo Ofício. Pois se não fosse o
reino estar tão necessitado de quem queira trabalhar nas artes mecânicas nenhum deles,
certamente, punha mais os pés nesta terra de bons e velhos costumes católicos.
E lá no alto, sobre os que pisoteiam a terra fétida, sobre os que se apascentam
nos nadas da sua existência, espreitam olhos furtivos atrás de janelas envidraçadas. São
olhos femininos, uns. Mas esses jamais descerão à terra vil, a não ser para se entregarem
às leituras dos salmos e do Libera me ou correrem às purificações confessionais. O mais
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são olhos varonis. Todos educados na altivez do olhar de soslaio. Adestrados a não
andar na rua e em público. E quando o fazem por humana necessidade ou por simples
deleite exibicionista, que é o mais das vezes, é sempre às costas de uma besta de sela.
Que assim são os olhos e os olhares dos nobres, dos fidalgos, dos que o querem ser, ou
parecer.
Olhos e olhares assim também são os dos incontáveis oficiais da Coroa, que se
multiplicam pelos palácios da cidade nas reais tarefas da corte, circulando
disciplinadamente entre antecâmaras, câmaras, e trascâmaras. Também estes não sujam
os pantufos no pó da rua. Lá estão os escravos para isso.
Subindo ao Rossio os que ainda agora desembarcaram, janelas altas onde
espreitam olhos e olhares temidos não há como as dos Estaus do Santo Ofício. Aí estão
os olhos e olhares mais eficazes na visão seletiva das almas pecadoras. Vigiam noite e
dia como Deus vigia a humanidade. Perscrutam como águias do céu as culpas mais
escondidas. Águias ou corvos, tanto faz. Aliás, fazem-no tão a gosto como se a
existência terrena dos homens vivesse aprisionada num imenso confessionário. Na
verdade, aprisionada numa gaiola de passarinhos, cada um com a sua cor e feitio, mas
onde nenhum deles pode deixar de descantar ao som da fé. E quando por eles se não
vigia, há espreitas e denunciantes que os substituem em qualquer parte da cidade,
acoitados na denúncia fácil. Porque é fácil enviar alguém às funduras de um cárcere da
Inquisição por ninharias. Basta desconfiar de algum vizinho que não se persigna com a
desenvoltura de um cristão-velho-devoto. Alguém, lá na rua, que se exiba de camisa
lavada à hora das refeições. Alguém, tido por boa pessoa, mas que teime comer só peixe
de escama, ou que se empanturre de carne aos dias defesos. Alguém, numa taberna de
bairro, que saiba dizer as proibidíssimas trovas do Encoberto escritas pelo sapateiro de
Trancoso. Simplesmente, um qualquer desconhecido que tenha por hábito acender uma
cadeia antes de anoitecer e a certos dias da semana, ou não se desbarrete com
acatamento ante a passagem de um defunto. É por causa deste incontrolável surto de
mal que anda emboscado à volta da cristandade, tentando ferrar o dente nas ovelhas
mais tenras, que todos os pastos-do-Senhor são guardados agora com tanta diligência
pelos pastores Santa Madre Igreja. Na verdade pelos cães-do-Senhor, que em latim se
diz domi canis, pois são os dominicanos os verdadeiros mastins dos inquisidores. Com
tão fiéis cães-de-guarda nenhuma ovelha, negra ou ranhosa, consegue chegar à verdura
que medra fora dos pastos eucarísticos, muita dela rebentando nos viçosos jardins
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luteranos. Se alguma se atrever a tanto, só pode esperar como castigo as redentoras
chamas do Santo Ofício que, ano sim ano não, se armam no Terreiro do Paço.
E para qualquer um que vista a pele de ovelha, negra ou ranhosa, levado por uma
qualquer tentação, seja ela filha do deleite carnal ou irmã de alguma doutrina herética, o
pior castigo que pode temer de Deus a mando dos homens é ser chamado aos Estaus da
Santa Inquisição de Lisboa. Aí chegado, só pode esperar que a sua vida seja retalhada,
esmiuçada, devassada, finalmente espremida para dentro de um processo acusatório.
Mas não é só aqui em Lisboa, também em Évora, em Coimbra e em Goa. Na verdade,
em todos os pedaços de terra cristã onde cheguem as visitações dos senhores visitadores
apostólicos. Nem que para isso tenham que atravessar o mar-oceano, como é o caso do
Brasil, tão distante da cabeça do reino como as solas dos pés, que até nisto se pode
explicar pela metáfora do corpo humano o funcionamento venoso (e venenoso) do
Estado. E nestes processos qualquer um pode cair, novos e velhos, pobres e ricos, leigos
e clérigos, até moços, que é a forma comum para nomear as crianças que entram na
adolescência e todos os que tenham aparência jovem. Pergunte-se aos da cidade de
Évora se isto não é verdade. Até os mais distraídos sabem do caso do Manuel, morador
na Rua do Inferno. A história deste moço – filho de António Cunha, cego e mendigo,
natural de Fornos de Algodres –, que veste de pardo, anda descalço e descarapuçado e
tem rosto magro e preto, não é muito difícil de contar. Parece que culpa de que o
acusam é a de ter dito em voz alta estas palavras heréticas: viva a lei de Moisés e acabese com a de Cristo, que assim me mandam dizer! Estas palavras gravíssimas, proferidas
assim com tanta convicção e em público, são ouvidas por um fidelíssimo católico,
estando a passar na Rua do Cano, na boca da travessa de Manuel de Olival, indo
cristãmente ouvir as Ave Marias, pelo cair da tarde. Ao ouvir uma tal blasfémia, ele
mesmo se encarrega de ir ao Santo Ofício a denunciar o dito Manuel, ainda assim não
seja o caso de alguém o fazer primeiro e o seu nome vir a ser citado na Inquisição como
testemunha que viu e não denunciou. Claro está que este denunciante não hesita em
nomear todos aqueles que ouvem estas mesmas palavras, sejam eles testemunhas
presenciais que o acaso levou à rua naquela hora, sejam eles os próprios moradores que,
estando no recato de suas casas, as podem ter ouvido também por uma janela mal
fechada. Com tão graves acusações declaradas aos autos pelos que asseveram ter ouvido
as blasfemas palavras, o desfecho do caso só pode terminar na inevitável prisão do
rapaz. E de nada vale que, nos longos interrogatórios que se seguem, a culpa apurada
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seja escassíssima. Mais dececionante do que isso é não ficar provado que o réu pertence,
quiçá dá uma secreta ajuda, à nefanda seita judaica. Provado, provado, fica apenas que o
réu não tem consciência plena das palavras proferidas, seja pela sua pouca idade, seja
pelo estado de embriaguez em que confessa andar quando as diz a mando de outros. E
com esta culpa está preso cinco meses. Aos senhores inquisidores isso não incomoda;
como não incomoda que o moço não saiba ler nem escrever, nem saiba bem a sua idade,
parecendo-lhe que talvez ande perto dos nove anos; nem faça ideia alguma do que seja o
judaísmo e muito menos o significado perverso das palavras proferidas; nem que,
andando bêbado, se engane no que quer dizer, que é: viva a lei de Cristo e acabe-se com
a de Moisés! Ao fim de setenta fólios manuscritos, que é o peso do seu processo, e
espremidas as culpas, que de magras que são sempre devem ter irritado quem delas
esperava muito, lá se manda o réu ao auto-de-fé privado, para aí ser condenado à pena
de abjuração de levi, que é como quem diz, de leve suspeita de heresia, ao açoite nos
cárceres citra sanguinis effusionem, ou seja, sem derramamento de sangue, e ao
pagamento das custas do processo, 2.801 reais!
Por aqui se vê como é fácil entrar pelos portões da Santa Inquisição e nunca
mais de lá sair, estejam eles nos fundos do Rossio, em Lisboa, ao lado do açougue, em
Évora, ou no éden tropical da terra brasilis.
Pois numa destas janelas altas dos Estaus do Santo Ofício viradas ao Rossio –
que são das melhores que há em Lisboa para se esmiuçar o frémito pecaminoso dos
homens –, um destes olhos-que-olha-tudo, qual corvo sagrado poisado no seu trono de
prata dourada, volta à folha de papel. São, hoje, porque o são à vez, os olhos-de-serviço
de Pedro Álvares, solicitador da Inquisição. Aliás, tido no Santo Ofício como um dos
mais competentes oficiais, diligentíssimo servidor da Mesa e fidelíssimo servo de Deus.
Enquanto uma das suas mãos mantêm fixa a folha ao plano inclinado da escrevaninha,
ao modo dos tabeliões, a outra leva a ponta da pena ao tinteiro e daí volta ao imaculado
da página. E escreve, fazendo serpentear com elegância o aparo de metal:
Certifico eu Pedro Álvares, solicitador desta Inquisição de Lisboa, que fui ao
Tronco por mandado dos senhores inquisidores a reconhecer a frei Jerónimo do
Espírito Santo que nele estava morto se era o próprio, o qual me mostrou o tronco hirto
e lhe descobri o rosto, e eu o vi e reafirmo ser ele por o ter visto algumas vezes nesta
Mesa e no Auto que se fez na Ribeira este ano de 600 no qual ele saiu.
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Para o velho solicitador da Inquisição de Lisboa estas palavras não trazem nada
que importe à sua alma. Testemunham apenas o cumprimento de um dever. Talvez uma
ou outra faça ainda hesitar o gesto caligráfico, mas só por uma questão de acerto formal.
Seria o mesmo se o assunto fosse quantificar os gastos do Santo Ofício num moio de
trigo ou num arrátel de carne de vaca. Por isso, não é necessário aquiescer a nenhum
tipo de dor ou de raiva. Sequer a uma réstia de piedade cristã devida a um pobre que
morreu sem os santos óleos da extrema-unção, sem um único familiar ou amigo a
reclamar o sufrágio da sua alma. Tão só um registo mecânico de boa letra para lembrar
mais uma ida ao Tronco em véspera de São Mateus.
Mas, ainda que sejam somente palavras escritas, este reavivar da memória de
mais uma ida ao cárcere arde num incêndio de imagens antes de desaparecer para
sempre. E nesse fogo-fátuo revelam-se os gestos acostumados do tronqueiro; as suas
breves palavras de recebimento; a sua marcha de verdugo fazendo tinir o molho de
chaves; o ranger da porta que estanca no chão e tem que ser empurrada com um gesto
brusco; o interior do cárcere, escuro e húmido; o abafado pútrido, ressudando a urina; a
velha candeia de azeite a iluminar as sombras pastosas dos cantos da cela; o bafo do
carcereiro a tresandar a vómito; por fim, o desvelar do cadáver que jaz, meio inclinado,
contra a parede da cela.
Mas há coisas que mesmo a uma alma empedernida como a de Pedro Álvares
não deixa de amolecer. Sucede que o corpo que a vida abandonou durante a noite, está
agora hirto e lívido como um cristo descido da cruz. E como um qualquer crucificado,
também ele está de braços meio-abertos, como se descansasse do gesto de abraçar o
infinito. A cabeça tombada, encoberta por um farrapo que mais parece ter sido posto de
propósito por alguém que não suportou ver tamanha felicidade no rosto de um morto.
Qual é o propósito daquele abraço sem rosto?
Sabe-se lá.
A mão do tronqueiro levanta aquele trapo imundo com a ponta dos dedos. E
debaixo dele surge um rosto seco e fundo como que escavado em mármore venado. Só
os olhos semicerrados como duas lâminas de vidro baço lembram que neles houve vida.
Mas a boca, sem uma ponta de raiva, sem uma réstia de dor, esboça ainda um leve
sorriso tranquilo, mais parecido com aquele que as crianças felizes sabem inventar para
dormir. Se o prisioneiro estivesse nu e apoiado por anjos mais parecia um cristo morto
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de Rosso Fiorentino, isto se alguém naquela cela miserável soubesse da existência de
um tal pintor ou de uma tal pintura.
Descontados os gestos bizarros que o morto conserva da vida, em tudo o resto é
o mesmíssimo rosto que apareceu em confissão na Mesa do Santo Ofício e foi ao último
auto-de-fé celebrado na Ribeira. É, sem dúvida alguma, frei Jerónimo do Espírito Santo,
o pintor.
Mas o que Pedro Álvares não escreve, também por não ser razão para escrever
uma tal coisa, é que ao lado daquele cadáver, um pouco acima do seu rosto esculpido a
talhes de serenidade, estão escritas na parede, a ponta de carvão, algumas palavras
heréticas. Lembram um poema…
E são de facto um poema, que começa assim: Já de ti, Deus, nada desejo…
Coisas de presos à hora da morte, sós e renegados da fé, já não se importando
que a alma, completamente cega ou zarolha, lhes caia nos abismos do Inferno…
Relatado o que era de relatar sobre o caso, com a mesma determinação com que
um deus fecha as páginas do seu mundo de papel, a mão angélica do solicitador volta do
tinteiro de prata para rematar o texto da certidão:
E por me ser mandado fiz esta, hoje dia 23 de Setembro de 1600.
E assina um pedr’alvarez minúsculo e feliz.
É por estas tantas razões que todos os marinheiros desembarcados aos pés de
Lisboa, cidade-mãe-à-espera, correm às tabernas de Alfama onde o vinho e as mulheres
têm fama de curar a alma e o corpo. De tanto sal… de tanta solidão. Chegam
emprenhados de esperança, partem paridos de desilusão. É este o seu fado. Mas quando
rezam a Deus à procura de si nos longes mares da desmemória, todos tem saudade de
serem felizes.
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TRÊS
Feliz o dia, explodindo no ar os primeiros arremedos de verão. A meio da manhã
já o sol abrasa a tijoleira do claustro do mosteiro de São Francisco de Alenquer. Onde o
tempo passa tão devagar que não há pressa no contar dos anos. Sabem alguns que o
calendário está parado em mil quinhentos e oitenta e nove. Que o mês é o de maio e que
os dias dele são agora os derradeiros. As horas, essas sim, todos as sabem apontar, pelo
menos desde mil quinhentos e cinquenta e oito, ano em que Damião de Góis, filho
dileto da terra, deu ao convento um relógio de mármore de Génova que mostra as horas
pelo sol. Diz-se que por voto feito lá pelas partes da Europa onde andou por bastante
tempo em casa de Erasmo e Lutero, o que foi razão bastante para o condenarem aos
cárceres da Inquisição mal pôs os pés em Portugal.
Quase debaixo dele, ao canto do claustro, há um espaço recatado, iluminado de
boa luz por uma janela alta. É nele que está a improvisada oficina de frei Jerónimo do
Espírito Santo, onde trabalha por especial deferência do guardião do convento, frei
António da Piedade. Já vai para três anos que aqui pinta, ou melhor, repinta e restaura,
com os vagares de artista consagrado. Pois que neste venerável mosteiro franciscano de
Alenquer todos sabem que ele é o pintor que pinta muito bem.
Frei Jerónimo tem por este tempo vinte e dois anos cumpridos. É do tipo magro
e seco, não muito alto de vulto, de cara escura e cabelo crespo, olhos negros e pequenos,
onde cintilam vontades escondidas. Sempre foi moço de poucas palavras e de frases
medidas, por isso não se sabe se estas vontades atormentadas são filhas da sua natural
sisudez ou de outras causas mais profundas que não quer revelar. Descontado este ar
ensimesmado como quem anda sempre de capuz, o certo é que o seu espírito criativo
anda à solta, pelo menos tanto quanto pode andar à solta pelos quatro cantos de um
mosteiro uma mão adestrada no desenho e na pintura. Adestrada e de fina sensibilidade,
que tanto é capaz de decorar de pintura a fresco um qualquer lugar sagrado, como pintar
a óleo o retrato de um santo. Não que ele seja um exímio oficial que nasceu com o dom
da arte como os melhores mestres de Lisboa, mas porque toda a pintura é para um pintor
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que disso faça o seu ofício um meio de expressão em qualquer suporte e numa qualquer
técnica. A óleo ou a fresco, debuxo em papel ou simples policromia sobre imagens de
vulto, tudo é a mesma arte que serve a Deus e aos homens. Claro que há os insignes
mestres que têm oficinas de muitos aprendizes e que pintam para papas e reis. De
muitos se houve falar. Mesmo aqui tão longe, quanto pode estar Alenquer de Itália ou
de Flandres, vão chegando notícias da arte de Rafael Sanzio ou de Miguel Ângelo
Buonarroti, que na Santa Sé deixaram pinturas de inigualável mestria. O guardião do
convento de Alenquer, viajado por Roma e íntimo de franciscanos italianos, não se
cansa de louvar uma certa capela no palácio apostólico que o papa Sisto IV reformou, e
que bem poucos portugueses já viram. Pois ele gaba-se de a ter visto e não poupa
elogios à obra e a Michel Agniolo, por saber ser este o verdadeiro nome do seu criador.
E tanto a tem louvado, a ela e ao mestre pintor que a fez, que frei Jerónimo só já pensa
em ir a Roma. E pelo seu próprio pé, se for caso disso. E aí, vê-la com os seus próprios
olhos. Tomá-la como quem toma nas mãos o pão eucarístico… Anseia agora por esse
batismo que o tornará afortunado e quem sabe insigne. Mas tem faltado a oportunidade.
E esse dia, com que as noites tanto sonham, parece tardar. Pior que tardar, parece
entardecer… Por isso, esta é uma das vontades escondidas que não confessa a ninguém.
A ninguém é decerto «força de expressão», pois nenhum segredo é totalmente secreto.
Se o fosse nem as manhas da tentação serviriam para grande coisa e, muito menos, os
confessionários estariam cheios de palavras segredadas. Haja algum frade que não tenha
um confidente (ou uma confidente) fora do confessionário. Confidente e, em muitos
casos, amante carnal. Também a Jerónimo, o segredo de se ir a Roma, parece ser
demasiado pesado para o levar sozinho às costas. Má de levar também por que queima,
como pedra tirada do lume. Por isso, aos poucos, aos pinguinhos, tem-no partilhado
com frei António da Anunciação, um estranho frade de corpo avantajado, que tem de
cabeça a mesma robustez que tem de braços. E não só robustez como agilidade no andar
e no dizer, que nisso poucos lhe ganham em conversa e às cartas, que é coisa
proibidíssima a leigos, quanto mais a um frade franciscano como ele. Por estes dois bem
se expressa a diferença entre a inteligência sensível e a esperteza loquaz, não raro
esperteza saloia.
Todos os dias o vigoroso frei António da Anunciação corre às escondidas a ver
Jerónimo a pintar. Não porque goste de pintura, nem ele sabe distinguir um Perseu de
um Caronte, mas porque tem ali o seu confidente que é um poço seguro onde pode
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esconder culpas e confissões. Diga-se que esta amizade, para muitos irmãos que a
testemunham, também só pode ser movida pelos fios da cumplicidade, pois se um fala e
outro cala, ademais aos cochichos, é porque alguma coisa andam os dois a mexericar.
Nesta mesma manhã abrasada por um sol que brinca ao verão, estando Jerónimo
a pintar uma imagem de Nossa Senhora, que por sugestão do provincial da Ordem só
agora o convento lhe manda estofar e encarnar, assoma à porta da improvisada oficina o
inevitável frei António da Anunciação. E parece estranhamente feliz com a má-nova
acabada de chegar à portaria do convento: afinal, os nossos amigos ingleses que vem de
Peniche a Lisboa a pôr no trono o Prior do Crato não passam de um bando de ladrões e
malfeitores que saqueiam e destroem tudo à sua passagem. A vila de Torres Vedras
acaba de ser pilhada e já ninguém sabe se o caminho do desastre também passa aqui por
Alenquer, já amanhã ou depois.
Frei Jerónimo suspende a pincelada minuciosa no manto de Nossa Senhora. São
palavras que a ele, ao contrário da placidez feliz de frei António, o enevoam de dúvida.
Pois nada garante que Lisboa resista a um ataque concertado dos ingleses, uns por terra,
outros por mar. Se chegarem a Lisboa com o mesmo ímpeto com que destruíram a
Invencível Armada vai ser, decerto, uma crua mortandade.
– Que Deus nos livre de tais amigos de Peniche! – dispara Jerónimo com ironia,
mal sabendo da fortuna popular que os vindouros reservarão a um tal dito.
E prossegue. Agora num solilóquio interior como se falasse apenas para a sua
consciência. Porque se os muros de Lisboa não resistirem, que é o mais certo de
acontecer, tudo levará descaminho como vara de porcos num campo de melões. A sua
mãe e a sua avó materna, sós e desprotegidas do lado de fora das muralhas, serão
sempre alvos fáceis das garras famintas. Facilmente assassinas se alguém lhes torvar o
passo. E ainda que a casa tenha dois servidores afeiçoados, nestas alturas até eles são
uma ameaça a considerar, pois que a fazenda familiar não é coisa de somenos. Bem se
lembra de ouvir contar à sua velhíssima avó como pessoas em seu siso se deixam
possuir pelo demónio em tais circunstâncias. Como naquele distante ano de mil
quinhentos e seis onde morreram nas ruas de Lisboa centenas de cristãos-novos às mãos
de cristãos-velhos. Quantas crianças de berço atiradas às paredes como trouxa de roupa
velha por gente boa e devota? Uma verdadeira matança dos inocentes, revisitada em
Lisboa pela cólera do Diabo.
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Agora, que pode ele fazer para o impedir? Um caminho é fazer como frei Tomás
de Aveiro, inquieto patriota, que daqui fugiu, faz agora uma semana, para se juntar aos
ingleses do Prior do Crato. E quem sabe se o destemperado frade já anda de arma em
punho a matar quem jurou servir o rei Filipe, preparando-se, um dia destes, para voltar a
aclamar por rei de Portugal a Dom António, que não há muitos anos veio a estas santas
paredes de Alenquer jurar servir os portugueses, daqui levando a bênção de todos os
religiosos.
– Tomando os ingleses os muros de Lisboa, sabe Deus a que custo de vidas
inocentes… como as da minha mãe e avó… – remata frei Jerónimo, de olhos pousados
no chão.
E regressado ao rosto de frei António, pergunta como quem grita para o vazio do
mundo:
– Agora, como devo eu acudir a tão desamparada gente?
Mas frei António da Anunciação parece seguro quanto à resposta a dar. Em três
passos saltitados corre a fechar a porta. Regressa ao ouvido do confidente Jerónimo com
a face a explodir de prazer. Matreiro como uma raposa, o pesado frade, mastigando
longas falas como quem se enfarta a gosto, não têm dúvida: a situação adequa-se na
perfeição ao que ambos andam a planear há meses. Com efeito, aproveitar o alarme
geral criado pelo ataque dos ingleses a Lisboa é uma ajuda preciosa aos seus planos de
fuga.
– Como é lá isso feito… irmão? – pergunta Jerónimo, assaltado de dúvida.
– Ora, é fácil de praticar: se o fizermos depois das matinas vai parecer aos
irmãos que fugimos com temor aos ingleses que seguem a Dom António. E se o Prior do
Crato sair vitorioso da contenda, coisa de duvidosa sentença, sempre nos
conformaremos a nosso bom amor a Portugal.
– E se sair ele vencido? – dispara Jerónimo, nada convencido com aqueles
argumentos de quem quer dar um passo maior que a perna.
– Buscaremos nós uma santa desculpa, assim Deus nos ajude...
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– E Nossa Senhora, que é testemunha de tão ruim mexerico! – remata frei
Jerónimo com azedume.
E o azedume é aqui mais do que apropriado. Pois como pode frei Jerónimo
justificar mais esta culpa a Deus e à sua consciência cristã de frade professo? Na
verdade não uma, mas duas culpas: a da fuga da comunidade sem obediência nem
licença e a de mau oficial de pintura por deixar a meio uma empreitada de tão sagrado
comprometimento. E isto para não falar nas culpas e remorsos caso venha a ter que virar
costas a sua mãe e avó. É este azedo de palavras que o obriga a cuspir uma resposta
áspera na cara de frei António da Anunciação:
– Não, irmão. Não posso ir-me assim deste convento tão a despropósito.
Explica-se:
– Ao menos enquanto não findar a pintura de Nossa Senhora…
E já com palavras mais seguras, como que confortado por uma decisão interior e
por isso inabalável:
- Um dia destes sim, ir-me ao encontro de meu sonho. Correr a Roma e a Itália
onde os pintores são insignes e grandes mestres, para lá me fazer também insigne na
arte da pintura e da imaginária de óleo. Pois sendo professo sempre posso aprender e
ficar por lá… Quem sabe, um dia, vir a ser um frade-pintor como aqueles que nos seus
mosteiros rezam da pintura.
E insiste na ideia, agora já bem ciente dos passos a dar ao seu destino:
– Ir-me do convento, talvez, mas só ao cabo de estofar e encarnar a imagem de
Nossa Senhora, que a ingratidão de um pintor até aos santos deve repugnar.
E isto não faz só pelo dever artístico de alguém que leva o ofício da pintura
muito a sério. Também pelo reconhecimento da estima que por ele têm os franciscanos
de Alenquer. Pois um pintor que põe a sua arte ao serviço dos santos e doutores da
Igreja só pode esperar ser reverenciado pelos seus irmãos de fé. Comer bem. Passear
muito pelos campos floridos em redor do mosteiro. Suavizar jejuns e abstinências.
Premiar-se de refrigérios. Que, apesar de fechado nestas veneráveis paredes que
conheceram os cinco mártires de Marrocos, ainda São Francisco de Assis pregava a
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pobreza pelo mundo, não é apenas um frade professo com veia de artista, é o pintor que
pinta muito bem.
Mas, como lho recorda imediatamente frei António da Anunciação, agora já de
olhar mais cortante, a verdade é que o apreço que lhe têm os noviços e alguns irmãos
mais velhos não é partilhado com igual entusiasmo pelos superiores. Pois bem sabe toda
a alma vivente deste mosteiro que os votos que o irmão Jerónimo confiou a Deus nas
mãos de frei João de Santarém nunca foram levados a preceito, em particular o da
castidade. E já por duas ou três vezes foi chamado a retratar-se das suas culpas a frei
António da Piedade. Vá lá que até agora os castigos não passaram de admoestações,
recolhimentos e disciplinas espirituais. Pois se ainda não foi parar ao cárcere do
mosteiro deve-o à arte das suas mãos que no pintar e dourar imagens santas não tem
rival por muitas léguas em redor de Alenquer.
Pode isso ser verdade, pois Jerónimo, ainda que bemqueira o céu e saiba que as
imagens sacras servem para anatemizar os principais erros dos hereges, também ama a
beleza feminil das flores que desbrocham nos campos primaveris. E qual é o homem
sensível que não resiste a uma flor pousada nos lábios carnudos de uma mulher,
sobretudo se deitada sobre um campo florescido, pedindo-lhe o sangue da vida por
quem a desflore no fogo da paixão?
Mas agora, logo agora, porque há-de querer estragar tudo com um gesto
precipitado? Não. Não vai fugir do convento… nem logo à noite, nem amanhã, nem
depois de amanhã. Pelo menos enquanto não terminar a imagem de Nossa Senhora. E
acabando-a não é certo que ele vá a correr para Roma, a ver a pintura de Michel
Agniolo, pois a sua mãe e avó, sós e desprotegidas em Lisboa, podem vir a necessitar da
sua ajuda caso os ingleses alcancem aos muros da cidade e a tome Dom António.
A isto, frei António de Anunciação, hábil na pesca das palavras certas, ou não
fosse ele filho de um pescador, volta à carga para desarmar o renitente irmão Jerónimo.
Mas agora já num tom desafiador:
– Pois eu não gasto nem mais um dia de minha vida em estas quatro paredes.
Podem até ser as mais santas e veneradas da nossa Ordem. Até pode estar nelas a
salvação de minha alma… mas nada disso é maior que a minha vontade de me ir a
Roma a estudar as Escrituras, fazer-me lá um letrado e tomar as ordens de missa.
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E nisto, lançando-se num solilóquio de pregador, olha para a abóbada da sala
como quem fala para o Céu:
– Porque Deus, Nossa Senhora e São Cristóvão hão-de guiar esta minha
jornada. E se tiver que me ir já hoje, ainda que desacompanhado, vou sem
arrependimento ou peso na consciência. Quem me diz que esta não é a última porta que
Deus me abre. Pois quantas vezes na vida verei marchar um exército inimigo sobre
Lisboa para dela expulsar o usurpador castelhano, e com isso arrastar o reino para
uma guerra que só Deus sabe quantos meses, quantos anos durará...
E já em tom apaziguado, de olhar regressado a Jerónimo, batendo com a mão
direita nas pernas e no peito:
– Tenho eu ainda boas pernas pera andar. Estou são. E trago no peito uma
vontade a rebentar. Se me quedar à espera…
O silêncio faz vibrar pelos interstícios da porta o estridor das andorinhas que
vieram procurar as sombras do claustro.
– Se me quedar à espera, amanhã pode ser já tarde demais…
Frei António volta a cravar os olhos em Jerónimo, que entretanto se voltou a
sentar no banco, agora com a cabeça baixa, as mãos amarradas pelos dedos,
abandonadas sobre o colo.
– Então?
Nada. Uma mortalha de silêncio.
Sem resposta, sem um talvez, frei António abandona a pequena oficina deixando
atrás de si a fúria de uma pedrada lançada ao infinito. De tal modo brusco que atira ao
chão um frade que, por graça ou infortúnio, atravessa nesse instante o vão da porta.
Atravessa ou já ali estava especado a ouvir a conversa. Só Deus sabe.
Frei Jerónimo retorna aos seus pensamentos atormentados tentando salvar o que
pode do súbito vendaval de palavras que o irmão António lhe lançou à cara. Tem para
isso o habitual remédio-santo que é esconder-se no aconchego da fé.
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Levanta a cabeça e olha para a face de Nossa Senhora e nela vê uma mãe que
sofre pelos pecados dos homens. Pensando bem, pode ser o rosto da sua mãe Catarina
que sofre pelos pecados do filho. De um filho que não vê desde que ele foi a Lisboa
tomar a primeira tonsura e os quatros graus das ordens menores.
– Há quanto tempo foi isso? – questiona-se sem encontrar firmeza no alicerce da
memória.
Rosto maternal pode ser também o da sua velhíssima avó Isabel, nascida ainda
no século passado e que, com perto de noventa anos de idade, todos em Lisboa a têm
agora por venerável anciã. Foi com ela que se criou, que soube de histórias antigas da
sua família, pois que os Mendoça de Tavira são aparentados aos Mendoça de Ceuta e de
muito boa linhagem. E que seu bisavô materno, um tal Pedro Caldeira, foi fidalgo da
casa do Duque de Bragança, Dom Jaime, e nela residia quando o duque matou a
duquesa no paço ducal de Vila Viçosa…
Só de seu pai é que nada sabe. Nada sabe, nem dele encontra imagens guardadas
na memória. Porquê? Bem se lembra que a mãe e a avó sempre se mostraram comedidas
na exposição do assunto, como se por alguma razão inconfessável fosse impróprio
mencionar o nome paterno. Talvez pelo doloroso das palavras que escondiam alguma
história funesta… Porque o pai que nunca conheceu, ao que sabe, morreu em terras
distantes. E dele guarda o apelido Soares, que é tudo o que resta da sua incógnita
paternidade e que só perdeu quando fez profissão de fé. Mas também, verdade seja dita,
os seus irmãos são Guerreiro por lado paterno, dos Guerreiros de Almodôvar. Ou seja:
são filhos de outro pai que não o seu…
Estando nestes pensamentos, o sino que marca a hora de sesta começa a tanger
com a estridência acostumada, anunciando ao mundo outro meio-dia chegado. No
silêncio metálico que se sucede, a luz do sol parece recrudescer nas paredes do claustro
em grandes lumes geométricos.
As andorinhas aquietam-se no aconchego dos seus ninhos de lama.
Jerónimo fecha a porta da sua improvisada oficina. Dá um jeito no cordão que
cinge o hábito e em passo miúdo, quase infantil, dirige-se ao corpo da igreja onde os
irmãos acorrem a rezar o Ângelus. Quando transpõe o portal que dá acesso à nave da
igreja sente uma súbita frescura, como quem se acolhe à sombra de um grande carvalho.
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Talvez seja esta a verdadeira árvore da vida que dá abrigo aos verdadeiros crentes,
ocorre-lhe pensar.
Já no interior da igreja, Jerónimo ajoelha-se em frente ao altar e, com o
assombro de um penitente, deixa-se embalar pelos cânticos angélicos que evolam no
céu. À sua volta tudo se organiza num ritual de luz, de cores, de formas, de
precedências, de hierarquias hagiográficas, de cheios e de vazios, de verticalidade e de
horizontalidade. A abóbada celeste. O plano de chão. Os quatro cantos do mundo
ordenados pelos pontos cardiais. Uma porta para a mundo, outra para o Paraíso. Mundo
sensível e mundo inteligível. Cosmogonia perfeita onde cabe a harmonia original,
selada pelas mãos de Deus-Pai-Criador. Que dúvidas podem existir no desenho desta
verdade imortal? Que força pode derruir os alicerces da casa de Deus onde se acolhe o
temor do homem? Desde a primeira alvorada da sua vida até à almejada glória no
Paraíso...
Numa capela lateral está a pequena imagem que Jerónimo costuma interrogar.
Fá-lo quase todos os dias por lhe reconhecer o seu exemplo catequético. Mas não
esconde que o seu nome de batismo o une mais ao santo que a outros frades que são
antónios, ou franciscos, ou josés, ainda que todos eles devam o nome a um santo de
tanta santidade quanto o seu. Porque não é golpe do acaso, decerto, Jerónimo ser
Jerónimo. Porque é Deus Nosso Senhor que manda no destino dos homens. Portanto,
ele tem o nome que tem para, de alguma maneira ainda não revelada, repetir o exemplo
de São Jerónimo e assim conseguir salvar a sua alma pecadora numa qualquer provação
de vida. Mas até agora bem sabe ele, como bem deve saber o verdadeiro São Jerónimo
que, mesmo buscando voluntariamente o deserto, a paixão da carne continua a ser um
tormento interior que só uma severa ascese consegue sossegar. Ascese e mortificação.
Estado místico que tardará a acontecer no seu caso. Nem vê ele como o conseguirá tão
depressa. Porque para ele o corpo de uma mulher – igualmente lascivo como o das
matronas de Roma que seduziram o santo… – é um prazer para a vista e um apelo para
a carne. Haverá alguma coisa mais bela de pintar do que o corpo desnudo de uma
mulher? A dúvida sacramental é como fugir a esse pecado: então se o simples pintar
uma mulher desnuda da cintura para cima, só por amor à Arte e em imitação dos
antigos, já é coisa tida por pecaminosa, porque não isenta de risco venial se o modelo
for de carne e osso, possuí-la, mesmo que seja só em pensamento, é coisa própria das
tentações demoníacas! Nem com muita mortificação corporal se consegue reprimir um
28
tal pensamento. Mais a mais um pintor que pinta muito bem. No entanto é isso mesmo
que a Ordem exige aos professos franciscanos, apontando-lhes o maior exemplo de fé
que São Jerónimo deu aos fracos e impuros – o castigo do corpo pecador ferindo o peito
com uma pedra. Mas até agora frei Jerónimo tem preferido exaltar outro exemplo
catequético de São Jerónimo – a sagrada escritura na forma de um livro, a vulgata, mais
conhecida por Bíblia. Porque a Bíblia – ouviu Jerónimo repetidamente no púlpito deste
mesmo convento – é guardiã da palavra divina, logo instrumento doutrinal imaculado,
pois nela começa e acaba tanto o verbo eucarístico como o ideal da fé cristã. É claro que
frei Jerónimo sabe que nada tem para dar ao mundo que o mundo não tenha já. Quando
muito poderia ser, se Deus assim o quisesse, um insigne pintor professo, como foi Fra
Angelico em outros tempos, em Itália. Nem é preciso ir tão longe nestes exemplos de
amor à arte servindo a Deus. Até aqui em Alenquer, no vizinho mosteiro de São
Jerónimo do Mato, se diz que viveu e morreu um frade flamengo de nome Carlos, pintor
muito primo na imaginária de óleos no tempo de el rei Dom João terceiro. Frei Simão
de Évora até diz, recordando o seu longínquo noviciado, que ainda o viu pintar um
retrato do santo padre Jerónimo no deserto…
Tudo isto está muito certo. Até gravado no pensamento e a cinzel, que sempre
dura mais do que a tinta de galha. Porém, nesta hora de dúvida e de desconsolo da alma,
que pode ele perguntar à pequena imagem penitente de São Jerónimo, de pedra na mão
e olhar extasiado à procura de Deus, que não saiba já a resposta.
Não, não vai fugir!
29
QUATRO
Depois de transposto o pátio sobe-se uma escadaria de pedra de dois lanços até
chegar a um corredor, estreito e comprido, que termina numa antecâmara, ressaltada três
degraus. Aí se espera pelas ordens do porteiro. Só depois disso se acede à Casa do
Despacho dos Estaus da Santa Inquisição de Lisboa, que é um lugar tão resguardado e
de tão grande segredo que as paredes estão forradas de panos escuros para que as
palavras confessadas aí fiquem suas prisioneiras. De panos escuros e de tapeçarias
coloridas, pois se há coisa grandiloquente nesta sala são as histórias de Perseu com a
Medusa na mão e uma monumental sentença de Salomão. No entanto, o que mais
espanta não são estes dois exemplos antigos do primado da Justiça. O que espanta e o
que espantará até um parvo é a história de Calisto fiada a ricos fios de lã. O que faz
naquela sala uma das amantes de Zeus, reclinada e seminua, é coisa que poucos se
atrevem a perguntar. Pode ter sido aqui colocada em tempos mais liberais, na época do
Cardeal-Infante Dom Henrique, rei, arcebispo e Inquisidor-geral, pois bem se sabe
como ele gostava destas histórias antigas, sobretudo das que contavam as paixões das
belas ninfas de Zeus, deleitosas e nuas o suficiente para aquecerem a alma de um velho
celibatário que, de resto, tinha por hábito antigo ser amamentado por amas-de-leite. E
tendo passado despercebida aos novos preceitos tridentinos, mais severos com os
atrevimentos artísticos, talvez a deleitosa Calisto, de surpreendentes seios e torneadas
coxas rosadas, esteja dependurada apenas para mostrar aos homens que o segredo que
ali se guarda não é só feito de palavras ouvidas, também é de imagens observadas. Pode
ser. Mas lá que não é tema próprio a um lugar de tão grave ponderação espiritual, não é,
e nisto ao menos hão-de estar de acordo todos declarantes e confessantes.
Seja como for, o segredo é o valor supremo dos autos confessionais. Por isso,
todos os que aqui são chamados juram sobre os Santos Evangelhos dizer a verdade e
guardar dela absoluto sigilo.
Ao fundo da sala, a enquadrar a Mesa inquisitorial, está um crucifixo com um
cristo de vulto, sofrendo a dor da sua morte. Ladeiam-no as armas e o estandarte do
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Santo Ofício, que, apesar de tudo, é decoração de menos mau-gosto e mais apropriada
ao sofrimento dos que aqui padecem. Sobre o estrado de madeira, em feitio de palco de
teatro, uma mesa de carvalho da Flandres forrada de damasco carmesim, de três gavetas,
cada uma com a sua chave. Em cima dela estão um missal com os Evangelhos, usado
para se jurar a verdade; uma oração do Espírito Santo para inspirar na busca da mesma;
os Regimentos do Santo Ofício e do Fisco Real; Bulas e Privilégios da Inquisição.
Ainda um tinteiro de prata, uma campainha e algumas folhas de papel sobre as quais
está um pequeno crucifixo de madeira.
Atrás da Mesa assim composta, sentados em cadeiras de espaldar alto, estão hoje
os licenciados Manuel Tavares, inquisidor, Heitor Furtado de Mendonça, deputado do
Santo Ofício, e o notário Manuel Marinho, que há-de pôr no papel tudo o que ouvir
dizer. São eles que abrem a audiência da manhã deste dia trinta de julho de mil
quinhentos e noventa e nove, uma sexta-feira.
Depois de ordenado ao porteiro que faça entrar a declarante, surge à porta uma
mulher franzina, de feições rudes, uma cicatriz antiga que lhe apagou uma das
sobrancelhas, o corpo enrodilhado de pobreza num saio verde desbotado. Tem vinte e
oito anos de idade e apresenta-se como Maria de Faria, cristã-velha, natural da cidade de
Lisboa. Filha de António Mendes, já defunto, que foi criado d’el rei, e de Maria
Carvalha, também já defunta.
Descalça, vogando sobre chão de tijoleira como se não tivesse peso, dirige-se à
Mesa na companhia do porteiro, de nome Diogo Botelho, que a deixa a dois passos do
estrado. Por instinto, ou medo, ajoelha-se e persigna-se. E só aí se apercebem os da
Mesa quão pequena e frágil é esta mulher. Não há nela um só volume carnal que se
insinue aos senhores inquisidores. Nem a eles nem a ninguém. Aliás, imagina-se que
debaixo dos trapos onde se enrodilhou até à cabeça haja apenas um esqueleto de
madeira, como numa imagem de roca. Mas até uma virgem negra de pau tem
parecenças com uma mulher, pois nenhum imaginário quando as talha se esquece de
acrescentar as curvas do peito e das ancas, que é coisa que numa mulher, sendo santa ou
não, fica sempre bem. Mas esta pobre criatura não tem mais que uns os olhos negros,
esbugalhados e fulminantes, à espera que os inquisidores lhe dirijam a palavra. Até se
imagina – porque o pensamento dos homens é sempre perverso quando topam uma
mulher, mesmo o dos homens santos – que pelo canto do olho algum destes inquisidores
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não se atreva a comparar as curvas recheadas e desnudas de Calisto com a frialdade
subnutrida e andrógina desta Maria de Faria.
Mas talvez estes senhores inquisidores sejam diferentes e nunca tenham sentido
necessidade de ir confessar algum pensamento mais pecaminoso. Lá vagarosos são eles.
E quando se movem parecem animados por gestos mecânicos como numa celebração
eucarística. Primeiro fazem-na jurar sobre os santos evangelhos, e só depois disso a
mandam sentar numa cadeira sem costas, que é uma forma simpática de se chamar
nomes a um banco.
Dessedentam-se os da Mesa, à vez, servindo-se de um único pichel de barro. E
com este ritmo maquinal as perguntas vão surgindo a goles breves. Prática também ela
necessária ao ritmo do calígrafo, que tem por missão redigir cuidadosamente os passos
da confissão. Heitor Furtado de Mendonça, já desbarretado, por não aguentar o calor
sufocante, é quem tem o encargo das perguntas.
E nesta cadência pendular começa a declarante a desfiar o novelo da sua vida.
Decerto uma vida amarga, lançada ao abismo da incerteza depois da morte da sua mãe,
da qual morte seu pai se fez clérigo. Por isso, cedo foi empurrada para caridade da
Igreja, vivendo vários anos no recolhimento de Nossa Senhora da Natividade, que todos
aqui em Lisboa conhecem como o das Convertidas, obra social regida pelos padres da
Companhia de Jesus desde mil quinhentos e oitenta e seis. Agora vive ao Arco do
Espírito Santo, junto ao Chafariz dos Cavalos, em casa de uma Joana Dias, sardinheira,
com a qual de agasalha.
Lá fora, a manhã espalha sobre Lisboa a torreira costumada de julho. E ainda
bem que o sol de estio abrasa a cidade. Não que isso seja um refrigério para a alma. Pelo
contrário. Mas, ao menos, ajuda a acalmar a peste. Essa besta peçonhenta que anda sem
se ver no ar que se respira. Como muitos dizem e juram ser verdade pelas cinco chagas
de Cristo, foi o tremor do ano passado que a desassossegou das entranhas da terra. E
assim, livre das peias telúricas que a aprisionavam, lançou-se sem ponta de piedade
sobre todos. Velhos e novos. Ricos e pobres. Andado na ceifa das almas desde outubro
do ano passado, sem que nada a esconjure.
Pedem os de Lisboa, desesperadamente, que a fornalha que incensa os ares de
Lisboa mantenha a modorra bem longe da cidade.
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Na Sala do Despacho da Santa Inquisição, abafada ao insuportável, Heitor
Furtado de Mendonça volta às perguntas sopesadas. Agora para interrogar a declarante
se sabe ou suspeita o porquê de ter sido chamada à Mesa do Santo Ofício.
Ela sabe. Melhor, desconfia. Porque o marido está preso na Enxovia do
Limoeiro, acusado de ter duas mulheres por suas legítimas esposas. Ela própria o
denunciou ao braço secular, pois sendo seu marido à face da Igreja e tendo vivido
maritalmente com ela portas a dentro, tem por certo e provado que ele voltou a casar
pela igreja com uma tal Baltezara de Padilha, castelhana, natural de Sevilha, ainda
moça, de dezanove anos de idade.
Os inquisidores já conhecem a história, pois esta castelhana já aqui veio declarar
aos autos ser mulher legítima desse mesmo homem e dele ter ficado prenha de uma
menina que morreu aos sete meses de gestação… Sabem disso e até sabem que aquela
criança pode ter sido concebida por um outro pai, pois já aqui veio uma testemunha
afiançar que a castelhana já estava prenha de outro homem quando casou.
Instigada a recordar as razões e os factos do seu casamento, Maria de Faria
escava à procura de imagens escondidas na sua memória. Afloram-lhe ao pensamento
como gravuras folheadas num livro de salmos. E a primeira imagem que tenta recordar
é a mais longínqua. Tem sete anos passados. Foi no tempo em que era governador de
Angola Dom Francisco de Almeida.
E assim achada a memória nos esconsos do tempo já é mais fácil puxá-la para o
presente. Exibir à luz do dia, um a um, os seus cacos.
– E ao diante? – questiona Heitor Furtado de Mendonça.
Maria de Faria, explica-se sem hesitação, o que, na total falta de beleza do seu
rosto, o desembaraço da conversa compensa, ainda que pouco, a má impressão da sua
triste figura:
– Fui eu, senhor, na armada de Dom Francisco de Almeida com outras onze
convertidas. E à vila de Luanda de Angola chegámos com a ajuda de Deus Nosso
Senhor no ano de noventa e dois…
Foram elas as primeiras mulheres do reino aí chegadas com o objetivo de
constituírem família, coisa tão necessária ao povoamento daquelas partes de África. E
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estando nessa terra, passados alguns meses, o Governador arranjou-lhe um marido de
qualidade, que também havia ido por soldado naquela armada. Mas para que este
soldado se pudesse casar com ela, e com ela viver portas a dentro a uma cama e a uma
mesa, o Governador teve de lhe dar o ofício de marcador d’el rei, naturalmente
marcador dos escravos, que como gado se marcavam a ferro em brasa para se lhes saber
a condição e a propriedade.
– Coisa que fez por gratidão, pois aquele soldado o havia bem servido – explica
a mulher. – E pela pressa de nos ver casados logo me escolheram duas madrinhas.
Uma foi dona Maria de Camões, mulher de Sebastião Pais, meirinho da correição de
Luanda, em cuja casa eu me agasalhava, outra foi dona Ana de Castro, mulher de
Salvador Gonçalves, mercador de Luanda.
Suspendendo aqui as palavras como se elas lhe fugissem, Maria de Faria desce
ao poço fundo da sua memória. Com esforço, vai derramando na Mesa as imagens de
uma tarde do dia de Nossa Senhora dos Prazeres… Em que, estando ela e o noivo à
porta da igreja de Santo António, que era então a matriz de Luanda, foram recebidos
pelo vigário e também provisor eclesiástico da vila, Manuel Rodrigues Teixeira.
– E à porta da matriz, o dito vigário, tomando-nos a mãos direitas envolta na
sua estola, nos fez dizer as palavras acostumadas…
Foi este seu casamento depois do desentendimento dos padres da Companhia de
Jesus com o Governador. Porque estes padres se desencantaram com o governo de Dom
Francisco de Almeida, pela muita autoridade que queriam ter sobre os assuntos que a
eles não diziam respeito por não serem do espiritual. E neste enfado caiu o Governador
que, pouco tempo passado, se foi a Pernambuco do Brasil deixando a substitui-lo no
cargo seu irmão, Dom Jerónimo de Almeida.
– Assim casada à face da Igreja com este marcador d’el rei estive seis meses, a
uma cama e a uma mesa da porta para dentro, na dita vila de Luanda, no morro de São
Paulo. Do qual casamento pari somente um mocito sem tempo…
Os olhos negros de Maria de Faria, saltando-lhe ainda mais das órbitas, ganham
um brilho de raiva.
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– Agora, senhor, disseram-me que este meu marido está casado com a dita
castelhana. Coisa que é pecado grave aos olhos de Deus e da Santa Madre Igreja. E
logo que o soube, corri a denunciá-lo a Antão Caroto, corregedor do crime, que lhe
deu ordem de prisão aqui em Lisboa, onde vivia escondidamente há muitos dias.
Mas antes disto acontecer foi falar com Cristóvão de Melo, porteiro-mor d’el rei,
em cuja casa se criou o seu renegado marido. Para seu espanto e profunda repulsa,
aquele fidalgo confirmou as suspeitas que já levava de uma conversa com a sua sogra:
que além dos dois casamentos, o seu marido também era frade, um frade-pintor que
professou no convento de São Francisco de Alenquer e que de lá fugiu no tempo em que
os ingleses chegaram aos muros da cidade de Lisboa.
35
CINCO
Mas por que razão haveria Jerónimo de querer fugir hoje, pela calada da noite?
As suas razões já as têm explicadas e se o irmão António teimar em ir que vá sozinho à
procura do seu sonho. Porque ele quer terminar a pintura de Nossa Senhora, sagrada
missão que ainda lhe ocupará uma boa semana de trabalho. E é preciso que o prior o
dispense de algumas obrigações espirituais, como é costume fazer em iguais
circunstâncias.
Fugir, sim, mas num dia escolhido a seu gosto. Que o sonho de ser um insigne
pintor e rezar da pintura em Itália é coisa que lhe anda a remoer na cabeça há muito
tempo. A bem dizer desde que entrou pela primeira vez no convento de São Francisco
de Lisboa e aí se apercebeu que, sendo frade professo, poderia rezar da pintura como
muitos o faziam em importantes mosteiros da Europa e não só da Ordem de São
Francisco. Se o conseguisse fazer, que melhor vida poderia ele desejar… Agora, quase
todas as noites se deita a pensar nisso. E até sonha nessa viagem a Roma que um dia
fará, só ou acompanhado. Porque é para Roma que ele foge se tiver que fugir. De barco,
ou por terra, como fazem os que nada tem de seu, a não ser uma vontade indomável.
Porque em Roma tudo é belo e insigne. Mas nada supera em beleza a capela da Santa Sé
que o papa Sisto mandou adornar de frescos pela mão do grande Miguel Ângelo
Buonarroti. Pelo menos é isto que diz o guardião que já os viu pintados e até sabe que o
pintor assinava Michel Agniolo. E não espanta que seja mesmo assim, pois se ele pouco
entende de pintura e não gosta de brutescos nem de histórias pagãs sobre vícios e
virtudes com mais facilidade lhe repugnava uma tal obra se ela não fosse de fábrica
primorosa. Até se diz que Deus está a tocar o dedo de Adão para lhe dar o espírito da
vida, tudo tão bem pintado como se fosse ao natural. Jerónimo não se importava de
receber assim, do nada, o toque supremo da redenção, que o libertasse como quem abre
a gaiola a um pássaro. E lá fosse ele a voar ao encontro da sua felicidade de pintor de
óleos... Se assim fosse, se assim pudesse ser, certamente de lá voltaria, um dia, vestido
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no seu manto de glória para morrer na sua Lisboa natal e ser sepultado em São Roque
com a reverência e a dignidade dispensadas a um grande pintor. Nem seria necessário
outro aconchego à sua paz eterna e ao sufrágio da sua alma, que bem lhe bastaria
alcançar dali as águas do Tejo, seu batismo de sangue e de vida...
Estando frei Jerónimo nestes pensamentos enquanto pinta a imagem de vulto de
Nossa Senhora, nem se dá conta que a luz da tarde vai esmorecendo na sua improvisada
oficina. Tão abstraído no pintar e no pensar todas estas coisas que está longe de
imaginar que este é o último dia da sua vida como frade professo. Por muito que toda a
criatura vivente se ponha a adivinhar o futuro, o próprio ou dos outros, seja nas artes de
lançar cartas, seja no acreditar em profecias de falsos profetas, essa porta está-lhe
sempre vedada. Há até quem diga, muito sigilosamente é claro, que Deus Nosso Senhor,
quando fez o homem e a mulher, não tivesse Ele pleno conhecimento do futuro, pois se
o tivesse teria previsto que rapidamente ambos comeriam o fruto proibido e desatavam a
abrir todas as caixas de Pandora que topassem pelo caminho. Claro está que também é
próprio da natureza humana a sua obstinada sobranceria face ao escuro do
desconhecido, infelizmente quase sempre de mistura com a mais pueril das inocências.
Inocência pueril é também expressão apropriada a Jerónimo, o pintor que pinta muito
bem… Sem se dar conta, os planos de fuga concertados secretamente com frei António,
ainda que para já os tenha recusado liminarmente na urgência da sua consumação, o
certo é que foram escutados por alguém e agora a denúncia, alastrando rapidamente de
boca em boca pelos irmãos do convento, acaba de chegar aos ouvidos do guardião. Mas
o pior nem é o guardião saber da tentativa de fuga do convento de um dos seus
professos mais estimados, mais a mais não consumada no ato, só no íntimo das
palavras. A gravidade disciplinar da situação resulta de frei Jerónimo ter antecedentes
pouco edificantes por certas visitas às mancebas de Alenquer. Agora, qualquer simples
acusação de apostasia ou simples desobediência pode atirá-lo com facilidade ao temido
cárcere do mosteiro. E sem apelo. Mais: e privado de pintar, o que é em si mesmo a
punição mais severa de quantas pode suportar a sua alma de artista.
É isto mesmo que o velho frei Simão de Évora vem dizer ao frade-pintor,
olhando-o com infinita bonomia como qualquer pai ante o desconsolo de um filho
renegado.
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Jerónimo, trespassado pelas setas da traição como qualquer Sebastião atado à
coluna, pergunta-se como é possível ter acontecido uma tal denúncia se tudo foi
mantido no mais íntimo dos segredos? Só segredado nas quatro paredes da sua pequena
oficina e sem outros ouvidos por perto. Teve que ser noutro lado. Em outra qualquer
circunstância que não recorda. E por alguém que lhe quer mal, pois num caso destes que
alternativa lhe resta senão a de imaginar que no convento de Alenquer há um traidor de
orelhas grandes e língua de palmo. Razão tem o povo que diz que a língua do
maldizente e a orelha do que ouve são irmãs
– Diz-me, irmão, quem foi o danado que me fez isto? – pergunta Jerónimo,
inconsolável.
Frei Simão de Évora não sabe, ou não quer dizer. Só sabe que o guardião quer
explicações sobre a veracidade dos rumores que circulam pelo convento e pela boca do
próprio frei Jerónimo. E quanto antes, que o Capítulo vai agora reunir de urgência por
causa dos ingleses que marcham sobre Lisboa e este assunto deve ser tratado antes
mesmo do toque de vésperas. E conclui:
– Temo que vos deem castigo mais danoso – diz frei Simão com as melhores
palavras que encontra.
– Mais danoso… Como? – espanta-se Jerónimo, levando as mãos à cabeça.
– Por certo a pena de cárcere, caso se prove vossa culpa.
– Mas que culpa prova um mexerico? Uma prática mal ouvida? A inocência de
um desabafo? – remata ainda Jerónimo, sem saber mais o que dizer.
– Venha, irmão... O guardião vos aguarda.
Desconcertado pela notícia, o frade-pintor ajeita como pode a sua improvisada
oficina. Limpa com cuidado as sedas dos pincéis. Tapa as tintas para que não sequem
durante a sua ausência. Cobre com cuidado a imagem de Nossa Senhora. Ajoelha-se e
benze-se num gesto de humildade e reverência. Tudo sob o olhar imóvel de frei Simão,
agora vazio de palavras, esperando à porta para acompanhar frei Jerónimo ao Capítulo.
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Quando fecha a porta e roda a chave na fechadura, que estala numa pancada
seca, frei Jerónimo tem a estranha sensação de uma despedida. Despedida de quê? De
quem?
Seguindo os passos de frei Simão, ruma agora à sala do capítulo em pesado
silêncio. Passa em frente da porta do refeitório e logo do poio onde fez os votos de
professo. Recorda esse dia em que foi levado em procissão ao coro, com todas as
cerimónias e solenidades que a Ordem costuma fazer no acolhimento dos noviços.
Tinha então pouco mais de dezasseis anos. Era demasiado novo para compreender Deus
e os seus infindos mistérios. Queria apenas ser pintor. Pintor de imagens santas.
Imaginário como é hábito dizer-se. É certo que nunca quis levar uma vida pura e
ascética como os santos que pinta, ainda que São Jerónimo seja para ele um exemplo de
vida que sabe ser impossível de alcançar. Viver em comunidade religiosa, debaixo de
uma regra e fazer votos de ordens menores não era para ele, como ainda o não é hoje,
uma inabalável vocação de fé, uma entrega generosa e incondicional à palavra de
Cristo. É o preço justo a pagar pelos que perseguem certos sonhos. Que se paga com
disciplina e comedimento, como quem paga a portagem da barca que atravessa o rio.
Porque entre as margens do rio da vida é dever do bom cristão acatar as ordens do
barqueiro. Ser temperado no julgamento dos companheiros de viagem. Respeitar os
humores das águas do rio. Sob pena de Deus, juiz soberano, decidir lançá-lo borda fora
antes de atingir a margem da salvação… Porque na margem da salvação, se lá chegar
pelo seu pé de bom cristão, espera-o a remissão de todas as suas culpas passadas.
Mesmo as de relapso e mundano. E aí há-de encontrar a sua felicidade. Feliz e a pintar
para todo o sempre, assim o ajude o seu Anjo-da-Guarda.
Mas, qual Anjo-da-Guarda! Se o tivesse à sua beira bem podia agora a verdade
romper como um trovão. Fazer sumir da face da terra, por milagre, todos os boatos
contra ele. Ou fazer com que o velho frei Simão, que vai à sua frente de passada manca
como se uma das pernas fosse de pau, rebentasse subitamente a rir pelo embuste a que o
acaba de sujeitar.
Mas não há um único anjo-da-guarda que o queira proteger, ou se o há não
chega a todos os que dele precisam, como é o seu caso.
Agora frei António da Piedade espera-o para um interrogatório sumário. Para
por a nu as suas culpas de apostata e relapso. No limite, para o condenar à insuportável
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dor da separação da pintura. Mas, verdadeiramente, o que inquieta frei Jerónimo não é a
condenação moral, que essa está certa no seu espírito. É saber quem o denunciou e
porquê. E quais as provas que apresenta, pois não é possível que essas provas se fundem
no anedótico de alguém que «ouviu dizer». Nem aos inquisidores isso basta para
mandar um denunciado aos cárceres do Santo Ofício – pensa Jerónimo com o breve
alento de quem encontra uma réstia de esperança perdida no chão.
Quando ultrapassa o arco rendilhado da sala do capítulo já o espera uma plateia
de rostos acusatórios. Repara que muitos deles se consomem em expressões de raiva.
Mas contida. Poucos conservam a bonomia inocente do costume. Outros, entre o
carrancudo e o grave, aprestam-se a explodir num incêndio de palavras. O único rosto
que não espera ver nesta plateia é o do comprometido frei António da Anunciação.
Que faz ele aqui?
Frei Jerónimo dá conta de imediato de quem é a mão que anda a semear tamanha
crueldade. Explica-se com a simplicidade da cobardia: Frei António da Anunciação,
sentindo traídos os seus planos de fuga, denuncia agora um delito do qual ele é o
principal culpado. E com tal ligeireza de carácter que o cínico do frade não deve ter tido
qualquer rebate de consciência em transferir toda a responsabilidade do erro para o seu
cúmplice, transformando a sua revolta numa vingança mesquinha.
Claro que Jerónimo reclama inocência. E fá-lo com o vigor de um injustiçado na
praça pública, acusando de imediato frei António da Anunciação de ser o instigante da
fuga. Mas, com a agilidade de um felino que tem a presa dominada, frei António
abocanha-o de imediato:
– É nosso irmão pintor que me tem tentado nesta ruim ideia de querer ir-se
deste nosso honrado convento a Roma a meter-se a insigne pintor como os de lá! –
acusa o frade de dedo em riste como espada desembainhada. – Eu, irmão que ama Deus
como só um fiel franciscano sabe amar, posso ter pecado, sim, mas tão só por dar
ouvidos a um renegado da nossa santa fé!
E com a frieza de um leão vencedor, fecha os caninos na jugular da sua vítima:
– Se vós, irmão Jerónimo, tivésseis dado ouvidos a quem vos quer bem…
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Todas as palavras cínicas ferem com lâminas. Perfuram a carne de um inocente
com tanta infâmia quanto a lança do soldado romano que profanou o corpo moribundo
de Cristo. Mais do que infames, as palavras de frei António são como um veneno que
paralisa a vítima. Frei Jerónimo fica encurralado no beco para onde, inocentemente, se
deixou conduzir. Pode agora dizer que é tudo uma grandessíssima mentira. Pode até
dizer que é uma cilada de um cobarde. Que nunca pretendeu ir a Roma sem licença do
guardião.
– … Frei António, sim, para ser letrado e ter ordens de missa!
Mas quem ganha são os que têm as armas mais fortes. E ele, frei Jerónimo,
concorre num combate desigual. A melhor arma com que poderia agora ripostar era a de
uma vida exemplar. Da entrega a Deus e às virtudes teologais. A do imaculado
cumprimento dos votos. Mas essa, ele já não a tem para desembainhar. E o seu
contendente bem o sabe.
Chegando a refrega a este limite, o guardião já não tem dúvidas da veracidade
das suspeitas que recaem sobre o frade-pintor. Por isso, ninguém estranha que a
sentença final ouvida no capítulo seja a do cárcere. Pois só aí Jerónimo pode expiar as
suas culpas a Deus, que de graves e encardidas sempre levam o seu tempo a sair da alma
de um pecador relapso. Pelo que ajuíza o guardião, do alto da sua autoridade nestas
matérias disciplinares e em todas as outras que exigem intermediação divina, talvez a
alma de frei Jerónimo esteja limpa em pouco mais de dois meses… lá por Santa Maria
de Agosto.
Frei Jerónimo nem acredita que isto lhe esteja a acontecer. Numa questão de
minutos a sua reputação resvala de um admirado pintor de imagens santas a um apostata
renegado pelos seus irmãos de fé. E tudo sob a complacência de Nosso Senhor, que não
se incomoda de ver um filho seu sofrer uma tal dor. Que nesta sua indiferença é igual a
um qualquer pai insensível à morte de um filho no cadafalso, condenado pela vilania
dos homens. Que fé assim pode resistir à desesperança de um crente?
Agora vai parar ao calabouço como um animal odiado. E para cúmulo da sua
angústia, sozinho. Carregando aos ombros toda as culpas, como se fosse ele o único
réprobo à face da terra. Mais do que isso: obrigado a expiar culpas que lhe não
pertencem. Só se apetece esmurrar de ódio por ser tão parvo e deixar-se ir nas conversas
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de frei António. Esse sonso, filho de uma pescadeira da praça! Bem poderia ter já
aprendido que o palreiro é vasilha sem fundo.
É tal a celeridade com que se resolve esta «moléstia disciplinar», que é como lhe
chama o guardião, que frei Jerónimo já ouve a hora de véspera atrás das grades. E aí
fica a entardecer, tendo por único conforto espiritual um pequeno crucifixo de pau-preto
que a mãe lhe deu quando ele fez profissão de fé. Não é luz que o conforte na noite da
sua solidão. Antes fosse uma chave que servisse à fechadura da sua liberdade…
Para seu maior desconsolo, ninguém reparte consigo o minúsculo cárcere do
mosteiro, que mais não tem que um banco de pedra e uma enxerga. Se nele estivesse, ao
menos, um irmão de má-andar sempre tinha companhia para tanto dia e tanta noite sem
fazer nada. Mas não. Seja pelo bom comportamento da comunidade, seja por razões que
só assistem a Deus nos seus infinitos mistérios que teima em esconder dos homens, frei
Jerónimo está só na prisão. E assim vai ficar por vários meses e sem licença para pintar.
Frei Jerónimo senta-se no banco e alivia o nó do cordão. Leva as mãos à cabeça
e assim fica minutos a pensar no que se transformou a sua vida: lama, atoleiro, fundão
de rio, palavras que lhe latejam na cabeça, cruéis metáforas onde as suas passadas
imprevidentes caíram. Melhor seria ter ele um assomo de coragem e usar o cordão para
se cintar pelo pescoço, não fosse isso uma grave ofensa a Deus. Porque só aquele que
nos dá a vida a pode tirar, ensina a Igreja e ninguém discorda que assim seja.
Neste olhar à procura de respostas, repara que a um canto da cela está uma
pequena banqueta de madeira. Em cima dela uma candeia velha que de tão usada nem
parece ter pavio. E debaixo da enxerga aflora o bojo de um bacio que é tudo o quem
tem para as necessidades. O que não falta é o omnipresente crucifixo em madeira
escura, tão negra que parece incinerada pelo fogo do tempo.
E depois há as paredes apinceladas de uma cal que os anos escureceram em tons
de âmbar e fuligem. Nelas mal se distinguem gravados sobre gravados: de nomes, de
datas, de frases incompreensíveis. As poucas que se conseguem ler são mensagens
coléricas como explosões de dor, de renúncia, ou de dúvida. Quase todas são de uma
solidão que interroga Deus. Que o procura no deserto e não o encontra. Nem todos têm
a sorte de Paulo de Tarso a caminho de Damasco. Por isso não há aqui milagres, nem
revelações. Apenas desabafos esmurrados contra a parede.
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Jerónimo consegue ler uma mensagem em forma de poema. Chama-lhe a
atenção a qualidade da escrita e rapidamente se dá conta como aquelas palavras lhe
alvoroçam a alma à medida que as lê:
Adeus convento ingrato, adeus tirano,
Cruel carrasco de minhas tristes venturas.
Por esses caminhos sem medos nem juras
De ti fujo hoje, indo livre e mui ufano.
Quem terá sido aquele monge-poeta que dali fugiu, certo dia?
Não tem data. Nem ano. Mas não deve ter sido escrito há muito tempo.
Mas quando a luz do sol se apaga nas sombras da noite faz-se um estranho
silêncio na sua vida. Pela primeira vez Jerónimo dá-se conta de que alguma coisa falhou
na máquina que o governa. Não se lembra sequer de alguma vez o silêncio de Vésper
lhe ter provocado arrepios de medo. Porque o silêncio voluntário, aquele que se procura
longe dos outros, o mesmo que o fez tornar-se frade para estar mais próximo de Deus e
da sua arte, é um silêncio preso à sua mão e por isso amestrado e inofensivo. Puxa-se ou
afrouxa-se como quem comanda um papagaio de papel ao sabor do vento. Mas este
silêncio é diferente, sombrio e desassossegado de medos. De medos? Que medos pode
ele recear fechado neste cárcere do mosteiro? Talvez o medo de estar só, em face de si.
E imaginar que tudo o que o habita não é uma verdade absoluta, tão só uma fugaz
ilusão…
De repente, Jerónimo treme. Como se um frio gélido lhe entrasse nos ossos. Ou
como uma faca os descarnasse para os expor ao ar. Brutal assombro de quem vê à janela
de si próprio outro eu em aproximação.
Quem é esse rosto que se aproxima? Que resposta trás ele na sua mão assassina?
Jerónimo agarra com violência o crucifixo que a mãe lhe deu esperando que esse
gesto convoque uma súbita força protetora. Olha-o. Beija-o. E põe-se a rezar. Reza,
como quem chora palavras-sem-resposta caídas no chão…
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Mas não há respostas que apaguem o fogo de tanta pergunta. Que queima.
Queima tanto como se o caminho de Deus parasse às portas do Inferno.
E neste vazio de chamas passam duas horas na roda imparável do tempo.
Jerónimo tenta adormecer, aquietado finalmente sobre a enxerga, já a noite
fulgurando de estrelas. E quando sente o corpo desvaído a serenar, um ruído ao longe
desassossega-o. Atenta no que será. Quando se levanta a perscrutar as sombras da noite,
aparece-lhe um súbito vulto pardacento às grades da cela. Uma massa informe. Mais
parecida com um animal à procura de comida.
– Quem é lá? – pergunta Jerónimo como se quisesse dizer estou aqui, não te
aproximes.
Sem resposta imediata, Jerónimo levanta-se e aproxima-se ainda mais das grades
a passos hesitantes. A criatura disforme, já muito perto e sem se descobrir, sibila como
quem manda calar alguém:
– Chiiiuuu!
Nisto ouve-se um tilintar de chaves. E num movimento brusco a porta de ferro
abre-se num ranger rouco de ferrugem. É aqui que o embuçado se descobre. E para
grande surpresa de Jerónimo o rosto que emerge do capuz à luz ténue do luar é o de frei
António da Anunciação. E traz no sorriso cínico duas palavras para celebrar:
– Vamos fugir?
– Fugir? – responde-lhe o que ainda está preso, totalmente desconcertado com
este inesperado desfecho.
Agora frei Jerónimo fica paralisado sem saber o que fazer. Ou dizer. Mas lá se
atira ao outro sem dó nem piedade como quem disfarça uma boa notícia.
– Sim, bem me vejo eu a fugir… Mas não sem primeiro esmurrar os focinhos do
meu salvador!
A estas dúvidas o seu renovado irmão de fuga exibe-se como qualquer raposa
pilha-galinhas de papo cheio:
– Não foi uma obra de mestre!
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– Sim…, foi – responde-lhe Jerónimo, em tom irónico –, de uma mestria
tamanha, que antes quisera eu apunhar os beiços do mestre que a fez! Por amor de
Deus, que vamos fazer agora de nossas vidas?
Agora? Agora fogem os dois, galgando o muro do quintal do mosteiro. Sem
outra coisa mais do que trazem vestido: uma túnica pardacenta, remendada, sandálias de
muito uso. E para lhes matar a primeira fome dois tassalhos de pão que frei António
roubou ao despenseiro. São, para quem não desconfie desta tão grande pressa, dois
franciscanos penitentes que correm a salvar o mundo pela palavra de Cristo. E vão de
passada estugada, ungidos pela claridade da lua e das estrelas. Sem outro propósito que
não seja o de seguirem o primeiro caminho que os leve a Roma, à cata de um qualquer
mosteiro franciscano que lhes dê pousada, desejando que os seus guardiões não façam
muitas perguntas sobre as suas obediências e licenças.
São eles a fugirem para Roma e os ingleses de D. António a correrem para
Lisboa.
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SEIS
Manuel Simões é um seriíssimo rapaz de dezanove anos, ainda solteiro, moçoda-câmara de Sua Majestade, morador nesta cidade junto a Nossa Senhora da Vitória
em casa de seu pai. Apesar da idade, cresce-lhe a fama na cidade de bom e devoto
católico. E de muito boa linhagem cristã. Se dúvidas houvesse bastaria mandar-lhe fazer
na Inquisição um exame rigoroso à pureza de sangue para logo se concluir que não tem
pinga de sangue judeu, marrano ou mourisco. Cristão-velho sem sombra de dúvidas!
Com todos os sacramentos recebidos e com todas as confissões em dia.
Por tantas e tão boas credenciais católicas não é agora de estranhar ser ele visita
habitual do Convento de São Francisco de Lisboa. Mas não que o seja por especial
devoção à comunidade religiosa, fundada ainda em vida de São Francisco de Assis por
dois frades vindos do ermitério de Alenquer. Aliás, se o fizesse nem seria de estranhar,
sendo seu pai confrade da Irmandade das Almas da capela de S. Miguel Arcanjo, que
nesta igreja franciscana tem culto e bandeira. Tão só porque frei Gaspar das Chagas,
agora Comissário da Corte da Província de Portugal da Ordem de São Francisco, é seu
parente e, ultimamente, seu confessor.
Estas visitas regulares a São Francisco têm-lhe trazido alguma familiaridade no
trato com frei Rodrigo, porteiro, e um à vontade de movimentos no interior do mosteiro.
Por isso, é já com alguma informalidade que o frade-porteiro lhe franqueia o passo logo
que o noviço chega a avisar que o reverendíssimo comissário já pode receber o seu
parente.
A cela de frei Gaspar das Chagas fica na claustra segunda. Este espaço, de
planta quadrada quase perfeita, tem agora as paredes envolventes decoradas a fresco
com belos grotescos à romana e cenas franciscanas onde não falta um bom painel de
Santo António de Lisboa. A obra de pedraria é um pouco mais antiga, do tempo de elrei Dom Manuel, feita para dar melhores cómodos ao mosteiro: celas, refeitório e
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cozinha condizente. À ilharga do claustro, do lado norte, irrompe um alto campanário
ornado de um bom relógio de sol, por onde os frades seguem as horas do dia.
Nesta manhã de junho de mil quinhentos e noventa e nove, uma segunda-feira
em véspera de São Pedro, Manuel Simões chega em passo ligeiro à porta da cela de frei
Gaspar das Chagas. O dia já vai calmoso a sóis de fogo vivo e os sinos acabam de
anunciar nove horas andadas. No silêncio do claustro tudo ressoa com absoluta nitidez:
a chilreada das andorinhas, o lento chiar de uma roldana distante, o estrépito breve de
uma porta que se fecha, as passadas ocas de um frade apressado. O mais é um sepulcro.
Nem se imagina estas vetustas paredes a abrigar perto de cento e vinte frades, fora os
muitos servidores laicos e escravos.
Ao rapaz não lhe espanta mais esta chamada do seu parente franciscano,
habituado que está a isso acontecer com frequência, mormente desde que veio servir na
câmara do rei. Mas desta vez a recomendação para que viesse ao convento com a maior
diligência possível parece prenunciar uma missão de maior melindre. Presente que a
coisa seja séria desta vez. Mas pode Deus estar seguro que seja qual for a sua missão a
aceitará com humildade e acatamento, que são virtudes próprias de um bom cristão.
– A sua bênção, padre Gaspar – diz Manuel Simões com a reverência de quem
está habituado aos rituais da corte.
– Deus te abençoe, meu filho – responde-lhe o frade com ar paternal. – Sentaivos nesse escabelo.
Manuel Simões conhece bem os cantos à casa. Nem é preciso ser bom
observador para notar que tudo está igual ao primeiro dia em que aqui entrou: uma
enxerga, sobre a qual está a mesma manta castanha de lã surrada, uma pequena mesa de
madeira com uma candeia de barro, um minúsculo escritório e uma arca encourada,
onde frei Gaspar guarda alguns pertences, livros e memórias. Sobre a enxerga, a meio
da parede caiada, um crucifixo de madeira com as pontas flordelisadas. Na parede
oposta, uma pintura miniatural de Nossa Senhora da Porciúncula que é a Nossa Senhora
mais antiga na veneração franciscana. A luz, pouca, vem de uma fresta envidraçada,
agora aberta para refrescar o abafado da cela que cheira a madeira carunchosa. Sem
diferença alguma de aspeto também o próprio frei Gaspar, que resiste ao tempo de
forma incomum. Diz ele que é Deus que lhe dá essa graça como recompensa pelas suas
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constantes leituras espirituais. Talvez. O certo é que as suas longas barbas grisalhas e
uma cabeça sem cercilho por lhe faltar todo o cabelo até à altura das orelhas parece ser
uma imagem que já não muda até ao fim dos seus dias. O que também não muda são os
seus olhos, vibrantes, miudinhos, de um azul-esverdeado a denunciar as origens galegas
da família.
Enquanto Manuel Simões se senta e ajeita como pode no minúsculo escabelo
que frei Gaspar usa para descanso dos pés, assoma à porta da cela frei António de São
Francisco. Franzino e já vergado ao peso da idade, vem ao seu habitual refrigério
matinal: dois dedos de conversa.
Mas vendo o moço sentado solta uma expressão como quem entra
inadvertidamente numa necessária já ocupada.
– Ah! Vejo que o irmão tem visitas… Torno mais tarde.
– Irmão António! – diz frei Gaspar, dando um salto da cadeira. – Recebi cá
ontem uma carta do irmão Jerónimo de Alenquer.
– Jerónimo do Espírito Santo… o pintor?
– Ele mesmo.
– E que vos pede ele na carta?
– Perdão e misericórdia.
– Pelas cinco chagas de Cristo! E agora que pode a Ordem fazer para o trazer à
fé sem o molestar severamente? – interroga-se frei António procurando os olhos
cúmplices de frei Gaspar.
Mas frei Gaspar não reage, limita-se a encolher os ombros num gesto de
resignação.
– É cousa para vermos mais ao diante…
Logo que frei António se afasta no seu passo de galinha velha, frei Gaspar vai ao
modesto escritório que tem a um canto da cela e traz de lá um pequeno papel escrito.
Dobra-o a meio para que fique ainda mais pequeno, pela metade da palma da sua mão.
Manuel Simões, de olhos arregalados como duas lanternas negras, levanta-se, intuindo
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que aquele gesto de dobrar o papel pressupõe alguma cumplicidade com a sua pessoa,
pois deve ser esse o motivo da sua repentina chamada ao convento.
O frade estende a mão na direção do moço e diz-lhe sem rodeios:
– Está neste papel um recado para Gaspar Castanho, escrivão desta cidade,
morador junto a São Francisco, que é sobrinho de frei Gaspar da Natividade, ministro
da nossa Província. Rogo para que ides logo a sua casa a entregá-lo como muito
recato e segredo, que é cousa que direis ser de meu mandado.
Manuel Simões, ainda que não perceba o motivo de tanto secretismo, anui de
imediato à urgência da entrega, que só pode ser coisa ruim e gravosa para alguém.
Todavia, num gesto resoluto de quem está sempre às ordens de Cristo, atreve-se a
balbuciar estas palavras desnecessárias:
– Quereis que me vá já… a ele?
– Assim seja, com a graça de Deus – responde-lhe o frade com um leve aceno
cúmplice.
Depois de pedir a bênção a frei Gaspar com uma mesura de submissão, o moço
estuga o passo em direção à portaria. Já no exterior, a luz intensa, mais do que o
braseiro do sol, fá-lo seguir pela sombra, rente às paredes do mosteiro. E sem parar,
como quem está muito ciente da sua secreta missão, vai esboçando um ar resoluto como
quem foge de uma tentação demoníaca: não, não vou ler o que está escrito no papel!
Mas é lá capaz um homem resistir à tentação de desvelar o segredo que está
pousado na sua mão, ainda que vigiado por todos os deuses, ainda que cravado por
todas as setas da virtude? Desconfia ele, e bem, que mais tarde ou mais cedo até um
santo se descaia naquela mesmíssima tarefa de guardar um segredo confiado por Deus.
Está claro que é previsível que um moço se descaia mais cedo do que tarde. E porque a
tentação de abrir a caixa de Pandora é sempre maior do que a de comer o fruto proibido
– pois, ainda que possa haver muito esfomeado no mundo, a cópia dos curiosos será
sempre maior –, o moço, com uma só mão a manobrar e a outra a fazer de conta,
consegue desdobrar a folha de papel com a destreza de um cartomante. E finda a
subversiva tarefa, finge descansar recostando-se à parede. E aí atenta em redor para ter a
certeza de que ninguém está por perto. Apenas uma mulher, ao longe, enrodilhada no
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seu vestido coçado de tecido cru. Segue o caminho, equilibrando à cabeça um enorme
cesto com roupa suja. Vai decerto lavá-la ao rio. Manuel Simões olha agora para o alto
com a desculpa de compor o sombreiro, certificando-se que nem mesmo os olhos-docéu podem ver àquela distância o mais insignificante gesto pecador. E pelo canto do
olho, que é como fazem os quem vêm sem olhar, retêm na memória a mensagem
lavrada em letra miúda:
Digo eu, frei Gaspar das Chagas, comissário da Corte da Província de Portugal
da Ordem de São Francisco, que se releva prender a frei Jerónimo do Espirito Santo,
pintor, por suas graves culpas que contra si tem esta Ordem e se leve às justiças por
apostata da fé e por denúncias de ter casado duas vezes sendo professo.
Frei Gaspar das Chagas
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SETE
Desde o tempo de el rei Dom Manuel que o cárcere do Limoeiro está junto à
igreja de São Martinho de Lisboa. Fica nos baixos dos Paços da Suplicação e do Cível e
é uma obra rude de feição e um antro de miséria. Se algum dia aqui medrou uma casa
da moeda, dela não resta um tostão de riqueza, que tudo o que não é paço é lixo. E a
este lixo são lançados os degredados com penas a cumprir no além-mar. E como lixo
humano aqui esperam nas suas enxovias o momento do embarque.
A enxovia, propriamente dita, é um espaço único, largo e fundo, nos intestinos
dos Paços. É como uma gruta escavada na rocha. Nisto repetindo a triste sina da
humanidade: os de cima, poderosos, os debaixo, miseráveis.
Nela cabem até cinquenta homens deitados ao modo do porão de uma nau. Cada
um com o seu espaço próprio, mas não maior que uma esteira. E não se pense que sobre
esta esteira haja algum almadraque velho para deitar o corpo. Isso tem um escravo por
sua cama em casa do seu senhor. Aqui, neste chão de tijoleira esgaivada, apenas é
permitido os luxos de uma esteira e de um cobertor de lã surrada.
Em frente a esta gruta de sombra e sujidade, abre-se um pátio de terra batida que
desagua de esguelha numas grades de ferro altas que dão para a rua. É aqui que
assomam os familiares dos presos. Os que os têm. E quando calha. Muitas vezes com o
propósito de lhes trazerem algum pão fresco, que o da ração nem o bicho o quer, de
seco e bolorento que costuma estar.
Bem se sabe que a condição de prisioneiro nesta enxovia é temporária, porque a
pena quase sempre é para cumprir no desterro das galés ou em algum pedaço de terra
ultramarina. Mas há aqui gente que, por alguma razão, espera pelo seu embarque há
vários meses. A esses, mais velhos no lugar e por isso reis da sua sombra, devem os
recém-chegados acatar as habituais reverências e quase sempre uns certos favores. Por
isso, é raro o dia que não haja súbita zaragata por bagatela. Os que aqui caem, como
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despejo de lixo a um monturo qualquer, lembram sempre um podengo vadio apanhado
num território de mastins. É o que acontece ao último desgraçado que os homens do
meirinho aqui despejam. Põe-se a desafiar os rituais de vassalagem de uma destas
alimárias e a ousadia custa-lhe um dos dentes da frente, arrancado de um tiro por um
murro certeiro. Nesta casa de condenados é mais um que não tem motivos para sorrir.
Sorrir é coisa que este novo prisioneiro já não faz há muito tempo, acossado
pelas ruas da cidade, dia e noite, como um lázaro. Pior que um lázaro, pois até a esses se
lhes dá guarida em lazaretos, com cama, pão e água. Já lá vai o tempo em que vestia
calções e roupeta curta de picote e um farragoulo verdoso. E a compor a figura, chapéu
e espada. Agora a sua roupa é uma nódoa de vergonha e tão coçada como o pelo de um
cão vadio. Porque de tão alucinada viagem em que se tornou a sua vida já nem sabe
contar as voltas que ela deu. Só se lembra da sua condição de fugitivo pelos esconsos da
cidade. Tão escondido que até a modorra que passa a pente fino as ruas de Lisboa o não
tem conseguido alcançar, seja pelos acasos do seu desgoverno, seja por ela não ter
pressa de o levar. Mas, mais dia, menos dia, ela vai aparecer-lhe de emboscada. Olharlhe nos olhos como uma serpente venenosa. Que a peste é um animal peçonhento que
não escolhe a sua vítima. Pobres e ricos, velhos e novos, todos levam descaminho.
Agora, aqui fechado nesta pocilga, a besta há-de chegar. E quando chegar, os seus dias
estão contados. Por isso, ou também por isso, este novo inquilino da Enxovia do
Limoeiro tem a sua vida presa por um fio, que nada parece impedir que se quebre.
Andando um dia pelo pátio, dá conta olhando para o astro que o março tem
vindo mais seco e soleado do que o do ano passado de noventa e oito. Bem se lembra
disso agora pois foi quando se casou em São Nicolau… Soleado é palavra que aprendeu
com a sua esposa castelhana, parente de uma família de bons pintores e com eles bem
relacionada, pois que a estima que tem por eles é igual ao desejo de os ter na cama.
Agora, pelas suas contas, abril já não deve tardar. Mas que interessa ao tempo
que anda sem parar a esperança que desaparece no pó do caminho? A única esperança
que lhe resta é uma carta que enviou aos frades de São Francisco de Lisboa por
Cristóvão de Matos... Que tarda a ter resposta. Nela foi escrita a confissão de uma culpa.
Um pedido de perdão para que o aceitassem de volta ao convento e o reconhecessem
como um dos seus irmãos de fé. Não é decerto o primeiro cristão que se perdeu dos
pastos-do-Senhor. E até pode a resposta ser uma carta de repúdio. Ao menos assim
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sempre se pode sujeitar aos rigores disciplinares da Ordem. Julgamento por julgamento
é preferível que seja no recato dos muros de um qualquer mosteiro franciscano.
Experiência que conhece bem e que ainda assim entende ser melhor que a justiça
secular, ou que a mão férrea do Santo Ofício, coisa de que não está livre, como bem
sabe. Por isso teme que o seu pedido não seja atendido. Ou que a sê-lo, chegue a notícia
tarde demais…
Estando ele consumido na angústia da espera, os seus olhos esbarram num vulto
que o procura às grades da rua. É uma figura pardacenta, encapuçada, como que vestida
de dó. Mas querendo-o saudar e chamando-o pelo nome é, subitamente, como que um
anjo fulgente enviado por Deus. É mais do que um anjo de esperança. É uma aparição.
E de sua mãe. Cheia de uma luz que vibra na límpida manhã de abril. Se calhar já é
abril? Quem sabe? Mas isso que importa para a história de um reencontro? O que
importa neste momento de lágrimas é a promessa de um regaço de conforto. De uma
mão cheia de ternura. De uma bondade sincera que só as mães têm quando abraçam os
filhos.
Mas o conforto que esta mãe trás a seu filho não é aquele que ele espera. É um
simples ajuste de contas com o passado. Que a verdade é como o azeite, sempre se ouve
dizer. E esta verdade pede urgência. Vem de trás e quer falar.
Fala, boa mãe, que queres tu dizer a um filho desesperançado?
Mas, tudo custa a dizer. Porque a história que ela trás para contar não é feita de
amor ou remissão. É antes uma confidência, agrilhoada ao seu segredo. Que se quer
libertar.
Aos poucos as palavras tropeçam. Caem no chão como bolas de chumbo.
Diogo Guerreiro, seu marido, já defunto, natural de Almodôvar e que em vida
foi criado do bispo do Algarve, Dom João de Melo, afinal não é o seu verdadeiro pai.
Pai, sim, mas de seus irmãos mais velhos. Pai de Domingos Guerreiro de Mendonça que
é escrivão da fazenda da feitoria d’el rei, em Angola, e que se diz ter sido cativo em
África na jornada d’el rei Sebastião. Pai de Manuel Caldeira de Mendonça que está em
Goa servindo como soldado. Pai, ainda, de Adriana Pereira de Mendonça, casada com
António Cortes, castelhano, alguazil real das galés de Espanha, que vive agora em
Madrid.
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– Vosso pai é Pedro Soares… – diz-lhe a mãe, escorrendo-lhe uma lágrima pela
face, como que sangrada da alma.
Depois de desferir esta facada no peito do filho, à mulher pesam-lhes as
palavras. Saem aos tropeções. Como que vindas longe como carga costal, cansadas de
trinta anos de espera.
E conta que nesse tempo já era viúva quando teve conversação com esse Pedro
Soares. Porque ele era homem solteiro e servia de vedor a Dom Fernando da Luz,
capitão-mor das galés e semilher d’el rei Dom Sebastião. E ela, não sendo já moça, era
ainda nova demais para ficar presa a uma viuvez prematura.
E este Pedro Soares, num dia de maior intimidade, prometeu-lhe que a
desposaria. E nisso confiando ela, veio a emprenhar dele…
Mãe e filho, separados pelas grossas barras de ferro, vão escorregando pela
conversa até encontrarem a firmeza do chão. Os olhos negros da mulher cintilam agora
como se só eles tivessem voz, ou forças para continuar.
Acontece que este Pedro Soares, faltando à sua palavra, acabou por não a
receber por esposa, estando ela já prenha de meses. E sem outro caminho, empurrada ao
beco da vergonha, não teve outra escolha…
– …Do que parir escondidamente – conclui a mulher.
E de tal modo o fez em segredo que foi a parteira que levou a criança a batizar a
Santa Justa e aí recebeu o nome de Jerónimo por ser esse o dia consagrado a São
Jerónimo.
O novelo da vida do prisioneiro dá mais uma volta. Ou mais um nó, tanto faz.
Porquê só agora estas revelações? Mais apropriadas a quem está no leito de
morte. Não para quem espera um abraço maternal e redentor. Ou, tão só, o resgate final
do seu sofrimento.
Este seu verdadeiro pai casou, entretanto, com outra mulher e foi-se para fora do
reino. Ela, sua mãe, sem saber o que fazer para o proteger e para salvaguardar o bom
nome da família, pensou em dar fama que casara segunda vez com um homem que se
fora às partes de Além, que é como todos conhecem o continente africano. E já parida,
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lançou fama que lá morrera o seu marido, ficando-lhe dele este seu filho que ela criou e
doutrinou, publicamente, como tal…
É então filho de Pedro Soares. Isso explica o apelido que usou em criança, que
só perdeu quando fez votos de professo. Isso explica também as conversas vagas da sua
avó materna sobre o pai que ele nunca conheceu. Que era um Soares que ninguém ouviu
falar em Lisboa. Que o mar levou. Que o mar comeu. Afinal quantos dos seus amigos
de rua, putos como ele, não tinham um pai assim. Roubado à meninice por uma África,
por uma Índia, por um Brasil longínquo.
Agora esta ironia do destino: passou ele quase tantos anos quantos tem a sua
vida à procura do verdadeiro pai e agora encontra-o às grades do Limoeiro.
– E onde está ele? Vive? Finou-se? – pergunta o prisioneiro.
– Já defunto… – responde-lhe a mulher.
Pelo que sabe, por o ouvir dizer a um irmão ou parente de nome Gomes Soares,
mataram-no em Alcântara, junto da cidade, na guerra de Dom António quando o Duque
de Alba entrou em Lisboa no ano de mil quinhentos e oitenta…
Triste sina. Viveu trinta e um anos para saber que o seu legítimo pai morreu há
dezanove às portas de Lisboa, numa guerra de Dom António Prior do Crato que bem lhe
lembra uma outra… Quando imaginou ser possível correr a Lisboa a acudir à mãe e avó,
indefesas ante o perigo da dessava inglesa. E não o fez. Porque preferiu correr atrás dos
seus sonhos de pintor falhado.
Agora sabe que o seu pai morreu na defesa de Lisboa às mãos das tropas do
Duque de Alba. Quem sabe se foi um dos que carregou o descomunal canhão de Diu
para as defesas de Alcântara. Ou que liderou as milícias de escravos negros que
combateram os espanhóis. Fosse de que maneira fosse, foi um pai que lutou ao lado de
uma causa. Certamente com heroísmo e bravura. Coisa, afinal, de que ele se não pode
orgulhar. Porque, neste cárcere miserável, atolado de culpas e remorsos, uma morte
assim é o pior sofrimento que um homem pode desejar...
Com visível sofrimento, a mulher afasta-se das grades sem mais gestos do que
os do silêncio. Sem um beijo, ao menos. Afasta-se lentamente, como os que morrem de
nós.
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Mas à distância de uns passos, vira-se. Olha de novo, num vislumbre breve e
último.
Escorregando pela rua, este rodilho de mulher não leva no regaço o corpo morto
do filho. Nem o filho que lhe fica às grades do Limoeiro é um cristo de exemplo. Mas
ambos sentem-se, no olhar cúmplice do silêncio, como uma Maria e um Jesus vivendo a
separação da morte. Porque ele é um filho moribundo. Que morre só. Abandonado pela
mãe. Abandonado pelo pai que agora reaparece para logo lhe morrer nos braços.
Esvaindo-se dele, tudo de uma só vez. Agora que memória lhe resta viver? Resta-lhe a
pintura como testamento vital. Mas isso era se ele fosse um pintor insigne. A arte que as
suas mãos foram capazes de conceber não é mais do que um filho morto, como aqueles
que as suas duas mulheres pariram. E a pouca obra que deixa não é, certamente, o
testemunho do génio de um grande mestre, que tanto desejou ser. Que o sonho de ir a
Roma para ser um insigne pintor foi obra do Diabo que lhe abriu as portas do mundo e
da carne.
Maldita a hora em que fugiu atrás desse sonho!
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OITO
Neste regresso à Casa do Despacho dos Estaus da Inquisição de Lisboa tudo está
no seu lugar acostumado. À primeira vista parece que nada foi mudado de lugar desde
que o Santo Ofício aqui construiu este cofre-forte para ouvir o íntimo das almas
penadas. Até a história da lasciva Calisto permanece armada à vista dos olhos mais
gulosos. A única coisa que vai mudando, e mesmo assim muito lentamente, são os
rostos dos inquisidores que assistem na Mesa. Há trinta anos atrás, quando aqui ouviram
o pobre Damião de Góis para lhe expurgarem as culpas de luteranismo de que vinha
acusado, já cheirava a esta mesma sarapilheira podre, a este abafado de vómito e
incenso, que é o que cheira o ar de Lisboa. Hoje, de diferente, além dos rostos que
presidem às audiências, apenas o calendário: é dia seis de agosto de mil quinhentos e
noventa e nove. E a tarde sobre a cidade avança num céu esmaltado de azul, queimando
a brasas de lume tudo por onde passa.
Também imutáveis são as audiências vespertinas, convocadas depois de três
horas andadas depois do meio-dia, para suas mercês, os senhores inquisidores, fazerem
a sua sesta depois do jantar. De resto, os rituais também são imutáveis desde mil
quinhentos e cinquenta e dois quando se regimentaram para fazer melhor fruto na igreja
de Deus. Tão solenes e rígidos eram então, quanto o são agora.
Ao toque da campainha o prisioneiro que vem por confessante entra na sala
acompanhado por Diogo Botelho, porteiro da Sala do Despacho. Dirige-se à Mesa e fica
de pé a dois passos do estrado forrado de um belo tapete turco, de rodas, também
conhecido de todos por alcatifa de Levante. Aí espera que os senhores inquisidores lhe
dirijam a palavra.
Bem vistas as coisas, não é diferente de um cristo na casa de um pilatos. O
mesmo amassado de sujidade do condenado. O mesmo olhar sofrido, sanguíneo,
desesperançado. Mas este cristo de meã estatura trás o braço esquerdo preso ao corpo
como se não o pudesse manobrar. Olhos negros e sem brilho, apoucados de miséria. A
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cara golpeada de uma barba mal feita. E a boca encortiçada onde já lhe falta um dos
dentes da frente. Do outro lado da Mesa, o que é de esperar na casa de um pilatos:
altivez no porte, rosto severo, veste negra a condizer como o que se espera de um juiz
que julga os pecados dos homens em nome de Deus.
Porque será que dos pequenos as culpas se chamam grandes e dos grandes,
pequenas?
Sobre eles um ar insuportável, quente, pesado e bafiento, a que a penumbra da
sala e os forros atapetados das paredes mais acentua. Tão sufocante e repulsivo que
mais parece o ar que se respira nos refolhos de um caixão. Bem pode ser, na sua crua
metáfora, a visão do próprio Purgatório.
Depois de se ajoelhar e benzer com visível dificuldade, o confessante fica de pé,
imóvel e em silêncio. E enquanto espera dá-se conta de que um dos senhores
inquisidores não lhe é totalmente estranho. Já viu aquele rosto, seco e austero, em outro
momento da sua vida. Talvez já aqui em Lisboa, ou em outro qualquer lugar do mundo
por onde tem andado. Não sabe… Que importância tem isso. Contas feitas à vida é mais
um senhor inquisidor a somar ao Céu e ele mais um pecador a somar ao Inferno. Se ele,
confessante, o tivesse agora que retratar na sua pose seráfica seria qualquer coisa assim:
cara esticada de rocim, boquinha cerzida de azedume, olhinhos escuros de bicho
peçonhento, tudo pregado ao negro da roupeta jesuítica.
Mas nesse instante em que fixa as feições da criatura que pousa à sua frente
rebenta-lhe uma memória na cabeça. Memória distante. De um dia de outubro. Quente e
húmido. Pelas ruas de Olinda de Pernambuco, uma multidão de gente acode à solene
procissão feita pelo vigário. Celebra-se o recebimento do senhor visitador apostólico da
Inquisição, Heitor Furtado de Mendonça. E na Matriz do Salvador, decorada com uma
cruz arvorada sobre o altar, está tudo preparado para esse soleníssimo recebimento. E
nele, depois das fastidiosas cerimónias do juramento de fé, do capitão, do governador,
do ouvidor geral, do ouvidor da capitania e de todos os representantes da câmara, o
senhor visitador concede àquelas terras de Olinda trinta dias de graças, que é como
quem diz, trinta dias para ouvir dezenas de denunciantes…
Agora, esse mesmo senhor está ali à sua frente, em carne e osso, vestindo o
negro do Juízo Final! Mas desta vez não para lhe anunciar uma qualquer graça. Não
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para lhe dizer num gesto de familiar humanidade: estive eu como visitador em Olinda
de Pernambuco, está lembrado disso? Tão só para o condenar pelas suas culpas.
Mostrar-lhe a lâmina afiada que lhe ceifará a alma, um destes dias. Porque neste palco
da vida e da morte só há lugar para acusados e acusadores. Réus e juízes. Que a culpa e
o castigo são as rodas da justiça de Deus que sulcam o caminho da redenção dos
homens.
Neste pensar de imagens despregadas, o escrivão começa o registo da audiência
da tarde no tom monocórdico do costume: Aos seis dias de agosto de mil quinhentos e
noventa e nove anos, em Lisboa, nos Estaus na Casa do Despacho da Santa Inquisição,
estando aqui por comissão o licenciado Manuel Álvares Tavares, inquisidor, em
audiência da tarde, e o licenciado Heitor Furtado de Mendonça, deputado deste Santo
Ofício, veio um homem que esteve preso no Limoeiro para este cárcere, filho de
Catarina de Mendonça, viúva, moradora nesta cidade. Veio o réu a esta Mesa por estar
muito arrependido das suas culpas e por querer aqui confessá-las, pelas quais pede
perdão e misericórdia…
Depois dos juramentos acostumados sobre os santos Evangelhos, as perguntas ao
prisioneiro surgem do alto da Mesa, disparadas a escrutinar o passado deste homem que
é réu e confessante, porque os dois num só farrapo. Querem que a sua verdade se
derrame nos autos como prova lapidar, confessada à Mesa como se confessada a Deus.
Querem que ele abra os olhos da alma, como se ela os tivesse, ou tendo-os como se ela
sofresse de momentânea cegueira.
E aos poucos as palavras, que são como asas com que voa o pensamento,
começam a sair às revoadas. Vêm lá de trás, de um tempo distante… De um tempo em
que ele, réu, professava no convento de São Francisco de Alenquer. E nesse convento
conheceu um frade corista de ordens de evangelho que se chamava frei António da
Anunciação, cristão-velho, natural desta cidade de Lisboa, filho de um pescador e de
Antónia Luís, pescadeira… E este frade pensou um dia fugir para Roma, com a
justificação que queria continuar os estudos para se fazer um letrado e tomar ordens de
missa. E ele, réu-confessante, como também quisesse ir a Roma aprender o ofício de
pintura com os grandes mestres, pensou fugir com ele do convento. Porque ele, réu,
antes de tomar os votos de frade franciscano, pela sua curiosidade e natural inclinação
para a pintura e imaginária de óleos, contra a vontade da sua mãe e dos seus parentes,
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aprendeu a pintar em casa de alguns pintores afamados de Lisboa, deixando de ir ao
estudo do latim. E indo às casas desses pintores a debuxar e a pintar, conheceu a arte de
Itália, onde os pintores são insignes e grandes mestres. E por isso, logo que fez profissão
de fé, começou a desejar de ir a Roma para a prender a arte da pintura e da imaginária
de óleos com tais mestres, parecendo-lhe que sendo frade com mais facilidade podia ir
às ditas partes de Itália e com sorte lá ficar como frade-pintor, como aqueles que nos
seus mosteiros rezam da pintura... E foi por isso que, ao tempo em que os ingleses
chegaram aos muros desta cidade de Lisboa, ele e frei António fugiram do convento de
Alenquer, subindo o muro de um quintal do mosteiro, vestidos apenas com o hábito
franciscano…
O réu faz uma pausa como se fixasse no fundo da parede da sala uma imagem
longínqua. No seu rosto desfigurado surgem pequenas gotas de suor como que trazidas
por uma ardência interior. E, enquanto se adensam, os olhos continuam presos a
pedaços de histórias sem sentido, que pulsam como estrelas distantes. Na verdade, a
história que lhe falta contar está minada de impossíveis. Que palavras a podem explicar
para que ela pareça real aos olhos de Deus?
– E ao depois que jornada tomaram? – questiona Manuel Álvares Tavares, a
quem compete hoje conduzir o inquérito.
O homem avança, como que tateando pelos barrancos de um caminho escuro.
Para explicar que, sem nunca despirem o hábito franciscano, caminharam sempre por
terra até Flandres, pedindo pelos lugares onde achavam esmola.
– Até Flandres! – espanta-se o da Mesa. – E como foi isso possível?
– E ao depois, senhor, desde que saímos das terras de Castela e entrámos nas de
França, até à dita Flandres, fomos pedindo pousada nos mosteiros que achávamos da
nossa Ordem, e neles sempre nos acolheram e hospedaram por irmãos de fé. E no
primeiro mosteiro de França da Ordem de São Francisco da Província de Ruão onde
entrámos, dissemos ao guardião dele que eramos frades professos da mesma Ordem
portuguesa…
– E o guardião não vos fez mostrar as patentes do vosso convento? – pergunta o
inquisidor.
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– A esse respeito mentimos, senhoria… – esclarece o réu, com visível embaraço
–, dissemos-lhe que levávamos as nossas obediências e licenças do ministro provincial,
mas que no caminho uns bandoleiros nos saltearam e nos tomaram os alforges onde
elas iam guardadas. E com esse fingimento fomos bem recebidos no mosteiro de Ruão.
– E o guardião deu crédito a essa falsa história que lhe foi contada?
– Sim, vossa senhoria, assim foi.
– E ao adiante que vos aconteceu em esse mosteiro de França?
O réu volta à procura dos termos certos. Demora a compor as frases como se as
sufragasse uma a uma. Aos poucos lá vai desenhando os contornos da história com
palavras cuspidas pela boca gretada. Para dizer que naqueles reinos de França e
Flandres os hábitos dos frades franciscanos não são pardos como os de cá, mas brancos
de escarlatim ou de outro pano branco, por isso o guardião do mosteiro de Ruão lhes
deu outros. E foi uma sentença avisada, pois como aquelas terras andavam alevantadas
contra Castela, por causa das lutas religiosas entre luteranos e católicos, se os vissem
com aqueles hábitos pardos logo tratariam de lhes tolher o passo julgando-os por
castelhanos. Pelo que, com os hábitos brancos que lhes deu o guardião, puderam passar
seguramente por essas terras que o rei de França trazia a ferro e fogo…
Neste ponto da confissão Heitor Furtado de Mendonça interrompe a confissão do
réu como se quisesse cuspir um súbito azedume chegado à boca:
– Bem sabemos cá dessa guerra entre os santos católicos e a seita luterana
começando a reinar el-rei Henrique de França… E ao adiante?
– E ao adiante, senhor, – continua o réu – sem nunca tirarmos os hábitos,
vestimos os brancos por cima dos pardos. E juntamente com os hábitos brancos, o
guardião do convento de Ruão deu-nos uma obediência escrita para que ambos
pudéssemos atravessar a salvo aquelas províncias de França e Flandres. E nesse
escrito também ia dito que nós eramos frades portugueses que íamos a Roma e que uns
ladrões no caminho nos tinham salteado e tomado as obediências que levávamos de
Portugal. E com esse escrito dado em Ruão fomos sempre bem recebidos e hospedados
nos mosteiros da mesma Ordem por onde andámos…
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E depois de uma breve pausa, o réu retoma o fio da conversa, agora um pouco
mais desenvolto de língua apesar da secura que sente na boca:
– E mais digo a vossa senhoria que caminhando muitas léguas chegámos ao
mosteiro de São Francisco da cidade de Douai, no qual mosteiro mostrámos ao seu
guardião o dito escrito, com o qual fomos sempre bem recebidos e agasalhados. E
nesse mosteiro professava frei Gladio Matão, valão de nação, que era bom pintor e ali
rezava da pintura, pintando retábulos e imagens santas, que de fora do mosteiro lhe
encomendavam e que para isso lhe pagavam em dinheiro, tudo com ordem do mosteiro,
ficando o prémio nas mãos do sindico do mosteiro, que é como naquelas partes se
costuma fazer. E logo que ele soube que eu também era pintor e de como ali chegara
por me querer ir a Itália para lá rezar da pintura, nos reteve em sua companhia até à
vinda do ministro daquela província. E quando chegou ao mosteiro o dito ministro
provincial, declarámos-lhe toda a verdade: de que íamos apostatas da obediência e
fugidos sem ordem nem licença.
– E o ministro provincial não vos admoestou com severidade? – interroga
secamente o inquisidor.
– Saiba vossa senhoria que não.
– Não! Então vos deixou sem castigo?
– Saiba vossa mercê que por intercessão do dito frade pintor, o ministro
provincial nos favoreceu muito e em capítulo e comunidade nos absolveu da
excomunhão em que andávamos por apóstatas. E fê-lo com muita solenidade à vista de
todos, que para isso nos tocou nos ombros com cinco varinhas enquanto nós rezávamos
o misere mei Deus. E assim ficámos limpos de culpas e novamente na graça de Deus.
– E ao adiante?
– Ao adiante, senhoria, eu e frei António da Anunciação nos detivemos por
algum tempo em esse mosteiro. E daí mandou o guardião a Roma, por um correio
ordinário, o pedido ao Comissário da Ordem das licenças para nós ficarmos sendo
filhos daquela província de Santo André, a que pertencia o mosteiro de Douai.
– E quanto tempo tardou essa resposta? – pergunta o inquisidor limpando o suor
que lhe gotejava pelo rosto.
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Mas, neste passo da sua confissão, o réu suspende as palavras como se elas
hesitassem a sair da memória. A recordação de um companheiro de viagem, partilhando
pão e água, comungando tristezas e infortúnios, é idêntica àquela que se deve a um
irmão natural. Não que seja pelos laços íntimos de sangue, mas é-o, certamente, pelos
laços secretos do afeto, como só o coração sabe explicar. É esta a última imagem que se
esvai na sua memória, desenhada a fios de sangue: Um frade sisudo, teimoso como uma
mula, forte como uma besta de carga, sempre disposto a não quebrar no puxo da vida.
Como pode explicar-se que a morte o tenha levado… ainda mal descobrira o
sentido da sua vida?…
– Saiba vossa senhoria – retoma dolorosamente o réu –, que antes de tornar a
resposta de Roma, frei António da Anunciação caiu de uma varanda no dito mosteiro,
da qual queda se finou, esvaindo-se em sangue; que nenhum outra consolação lhe valeu
se não o de morrer honradamente na casa de Deus...
Não admira, pois, que neste passo da confissão as palavras sejam cruéis como
um cilício na carne.
– E por esta morte ser a ruína da nossa empresa, me desgostei daquele mosteiro
e ao ministro provincial pedi licença para me ir a Itália.
– E deu ele uma tal licença? – questiona o inquisidor pressentido uma resposta
afirmativa.
– Saiba vossa senhoria que sim. Deu-me uma patente assinada para que me
pudesse agasalhar durante a viagem nos mosteiros da Ordem por onde passasse a
caminho de Roma.
E assim andou ele, muitas semanas, por terras desalmadas que lhe não lembra os
nomes, até chegar a Roma, onde se apresentou ao Comissario da Cúria que por
ausência do Geral da Ordem governava, então, as províncias franciscanas de todo o
mundo. Este comissário recebeu-o com muita humanidade, dando-lhe patente geral para
ele tornar à província de Portugal, sem pena ou castigo.
– E foi assim que me tornei a nosso reino – explica o réu como quem fecha na
pedra uma história escrita a cinzel –, na qual viagem demorei um ano e meio, pouco
mais ou menos, sem nunca despir o hábito de São Francisco.
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– E o desejo de rezar da pintura em Itália? – interroga o inquisidor, pouco
satisfeito com este súbito abandono de um sonho.
– Senhor, me enfadei da solidão e desesperança por que passava. Saiba vossa
senhoria que de pintores como eu está pejada a cidade de Roma e toda a Itália. Como
podia eu rezar lá da pintura quando tantos o fazem com mais saber e bem a prazer dos
que lhes pagam suas empreitadas?
– E por isso o réu se apartou de Itália e volveu a nosso reino?
– Sim, senhoria, porque me queria eu tornar à fé, mas temia que me não
recebessem sem duro castigo por minha continuada apostasia.
O réu, finalmente rendido à secura da boca e às muitas dores que o braço lhe dá,
parece determinado em atalhar deliberadamente a sua confissão. A muito custo lá
explica que se apresentou no mosteiro de São Francisco de Coimbra onde frei Francisco
Surriaga presidia, então, ao capítulo provincial da Ordem. E que, num golpe que não
esperava, o mandaram apresentar-se a São Francisco de Santarém, no qual o seu
guardião, frei Rodrigo de Buarcos, o prendeu de imediato pelo tempo de oito meses no
cárcere do mosteiro.
Heitor Furtado de Mendonça parece ansioso por fazer uma pergunta final. Andalhe no espírito já algum tempo como uma comichão que não passa sem ser coçada.
– E ao tempo que o réu esteve nessas partes da Europa onde a seita luterana
tem seu quartel e os frades tomam maus princípios de vida, não vos falaram os hereges
a respeito dos frades se puderem casar?
– Não, senhoria – responde prontamente Jerónimo, pressentindo o beco onde o
deputado o quer encurralar. – Em meu caminho nada vi que fosse contrário à lei de
Deus. E toda a doutrina da Santa Madre Igreja é nos ditos mosteiros de valões e
framengos tão venerada como aqui.
– Que essa seja a verdade – sentencia o inquisidor em tom de ameaça velada –,
e que o réu, sendo frade e temente a Deus, seja capaz de a dizer sem escusa alguma.
Cerre-se aqui a audiência de hoje. Que seja lido o auto ao réu e se ouça de novo
amanhã, na primeira audiência do dia.
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Ninguém o confessa, mas todos recebem com agrado esta pausa providencial.
De um lado e outro da mesa já não se suporta mais o calor que tudo estrangula ao
insuportável. Tanto o inquisidor como o deputado desbarretaram-se várias vezes,
usando o barrete como leque. Ambos afrouxaram a gola da camisa. Ambos se
dessedentaram uma e outra vez. Agora até o pichel regressa cheio de água fresca,
trazido reverentemente por Diogo Botelho a passinhos de pelintra, para que suas
senhorias matem a secura de suas excelsas gargantas. Bem pode o réu invejar a bênção
desta água que circula à sua frente de boca em boca, tão sagrada quanto o vinho
eucarístico da última ceia. Tem ele a certeza que se a pedisse, uma gota que fosse, lha
negavam, pois a um preso da sua laia nem um bom samaritano se atreveria a ter uma tal
compaixão cristã. Se isto é assim com uma simples gota de água, como pode ele esperar
que alguém lhe cuide das suas feridas de morte com azeite e vinho. Nem um condenado
como ele pode pensar que estes carrascos, escolhidos a dedo pela sua crueldade, não
estejam empenhados em lhe aplicar uma execução perfeita, que é como quem diz, com
o maior sofrimento possível.
Depois das habituais admoestações ao réu para que se retrate e cuide de
confessar a Deus os seus pecados, a Mesa concorda em retomar a audiência na manhã
do dia seguinte, duas horas antes do meio-dia. Fá-lo com gestos afirmativos acenados na
cumplicidade dos olhares.
Ao réu-confessante, depois de lido o auto, é-lhe pedido que o assine. O que faz
com a energia de um tabelião e a alma de um destroçado.
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NOVE
Situada em terras novas do Brasil, Olinda de Pernambuco está a ficar bem
composta de casas e ruas. Até parece uma qualquer vila portuguesa recortada à beiramar. Pelo menos assim parece aos olhos dos que aqui aportam pela primeira vez. De
diferente apenas as exuberantes palmeiras explodindo no ar e a insuportável humidade
que se cola à pele. No mais é uma Lisboa tropical. Atulhada de escravos negros. De
barulhos ocos. De trejeitos vociferados. De falares gentios. De gentes de toda a sorte.
De todas as cores. De todas as raças. Trazidas ao altar de um só credo. Por isso, os
sinais da cristandade rebentam por toda a parte como sementes lançadas ao húmus
virginal. Virando a vista ao alto lá estão a matriz de Nosso Senhor Salvador do Mundo e
a Misericórdia. Para os lados, nas margens do casario que desce do morro, já despontam
do chão os cenóbios dos carmelitas, dos jesuítas, dos beneditinos e até dos franciscanos.
Tamanha prosperidade de casas e gentes deve-se ao rendoso negócio do açúcar,
a que muito concorre o lucrativo comércio dos escravos africanos. Que neste despejar
de corpos e de almas nas areias do paraíso, mercadores, fazendeiros e religiosos, todos
lucram à sua maneira.
Só para os missionários é que o negócio das almas não vai grande coisa. É que a
conversão do gentio tem-se revelado inútil pelos métodos convencionais da doutrina,
quais sejam os do uso da palavra e do exemplo de Cristo. Para eles, agora só dois
caminhos parecem possíveis para acudirem a tanto mau costume poligâmico, guerreiro e
antropófago: um é o da concentração dos convertidos em aldeamentos com assistência
eclesiástica; o outro é o da sujeição, castigando os infiéis ruins e relapsos, e por esta via
exemplar fazer com que todos os outros aprendam e se tornem domésticos. Pode ser que
deste modo os infiéis da costa se moldem às conveniências da doutrina, porque às do
trabalho roceiro parecem ser um caso perdido.
Subindo a ladeira da Matriz o casario não despega. Nele moram oficiais
mecânicos, mercadores, fazendeiros e servidores da Coroa. E muitos criados. Deste e
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daquele. Que só o governador-geral, Dom Francisco de Sousa, aqui estão pousados uma
mão cheia deles.
Acontece, no entanto, que nem todas as casas da vila de Olinda – como, aliás,
em qualquer outra vila portuguesa – têm a mesma reputação pública. E não se pense
logo na costumada mancebia que, no muito, pode ter só a costumada má fama e assim
não conta para o caso. As mais temidas e faladas de todas são, agora, as casas de
morada do senhor visitador do Santo Ofício, onde pousa desde outubro de noventa e
três, Heitor Furtado de Mendonça. Temidas, faladas e, sobretudo, dispensáveis, pois
bem se sabe como o senhor visitador deixou um rasto de queixas na Bahia. Não que
neste desterro edílico se recuse uma boa denúncia, seja de um vizinho indesejado, seja
de uma mulher adúltera, ou, simplesmente, de uma qualquer minudência que atrapalhe a
boa marcha da fé aos olhos da Santa Madre Igreja. Temidas, faladas e dispensáveis
porque todos sabem, ou deviam saber, que a mão férrea do Santo Ofício não se importa
de espremer uma pedra se desconfiar que há nela um ressumbro de pecado. Até se diz
afoitamente – entre dentes, é claro –, que força assim devia antes servir para engrenar os
engenhos de açúcar que proliferam nas fazendas de Pernambuco…
Seja como for, uma coisa é certa: a visitação que acaba de começar neste final de
outubro de mil quinhentos e noventa e três lá vai arrancando como pode as ervas
daninhas do Paraíso. Uma das vítimas é o próprio vigário, Diogo do Couto, por pregar
coisas pouco dignas da fé católica na festa de São Pedro e São Paulo, na matriz de
Olinda. Pois disse o padre para quem o quis ouvir que se misturava Deus com o homem.
Sentença a merecer o necessário reparo doutrinador de quem tem cátedra nestas
matérias, pois bem se sabe que a natureza divina de Deus é una e indivisível. E não só
esta ideia estapafúrdia como outras que se foram ouvindo nas pregações dominicais do
vigário. Esta por exemplo: que Nossa Senhora não foi bem-aventurada por ter gerado
no seu ventre e dado de mamar com as suas tetas a Cristo Nosso Senhor, mas porque
ela ouviu a palavra de Deus e a guardou. Assim mesmo, neste bom português ainda
sem sotaque. Felizmente para Diogo do Couto, talvez por respeito ao tão solene
recebimento que fez ao senhor visitador no dia da sua abençoada chegada, que as suas
pregações, tidas como falsas e escandalosas, são, mesmo assim, catolicamente aceites
pelo Santo Ofício. E ainda bem, pois sempre vão servindo os lapsos linguae do vigário
da Matriz para animar de boa conversa os vizinhos de Olinda.
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Nesta parcela de terra cristã nascida às portas do éden tropical há aqui
alentejanos, beirões, minhotos e ilhéus. Fora os que aqui desembarcam todos os dias
vindos da costa africana, a maioria de Angola. Porque neste construir coletivo de uma
nova cidade e de uma nova nação cada um transporta consigo a vida que lhe pertence.
Que Deus, por enquanto, não se importa de ter no seu misericordioso regaço pobres e
ricos, muito menos senhores e escravos. Estes últimos, aliás, de duvidosa nomenclatura
na hierarquia das criaturas viventes, pois que a incerteza de serem possuídos de alma
ainda é reflexão grave de muitos doutrinadores da Igreja. O que vai valendo ao mundo é
que para qualquer problema teológico mais complexo há sempre um destes sábios
disposto a ajudar a resolvê-lo. Seja como for, o mínimo que se exige aos recémchegados a esta terra cristã é muito simples de explicar no púlpito da igreja do Salvador,
até pelo desbocado vigário: que todos sejam católicos praticantes e que reneguem a
qualquer tipo de heresia. É claro que ser um bom-católico-praticante por este tempo de
visitadores não é assim tão simples de dizer. Na verdade, quem queira passar
despercebido a tanto olho delator é necessário, no mínimo, frequentar as missas de
domingo e dos dias santos, assistir às pregações quando as haja, confessar e comungar
pelas quaresmas, saber persignar, rezar o Padre-nosso, a Avé Maria, o Credo, o Salve
Regina e, naturalmente, nomear de cor todos os dez mandamentos da lei de Deus.
Seja pelo acatamento destes princípios doutrinais ou pela simples razão que os
pecados mais encardidos dos homens ainda não enraizaram nas praias de Pernambuco,
ao senhor visitador do santo Ofício só lhe chegam culpas de pouca monta: agora, um
Manuel de Oliveira, mestre que ensina os moços, apanhado a duvidar da virgindade de
Nossa Senhora, pois acaba de ler num livro que a Virgem teve cópula de varão; logo,
uma santa de franceses que dá à costa do cabo de Santo Agostinho e uns incautos a
recolhem carinhosamente sem se aperceberem do perigo luterano que ela esconde;
depois, um José, mulato, filho de um madeirense e de uma negra brasila, que anda por
aí a abjurar da nossa santa fé e que, por ser mulato, lá tem por condenação ir ao auto da
fé, descalço, com uma carocha infame na cabeça, uma vela acesa na mão e uma vara
atravessada na boca, a mesma que há de servir para os necessários açoites purificadores
pelas ruas da vila; mais tarde, um descuidado Cosme Martins, pescador, morador em
Jaguaribi, por ter comungado depois de almoçar uma pouca de farinha de mandioca,
que é o alimento desta terra em lugar de pão, um peixe pequeno vermelho e um púcaro
de água; finalmente, uma questão de atualidade doutrinal que ainda merece dúvida a um
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ou outro pecador da terra: se a fornicação simplex de um homem solteiro é ou não
pecado. É, e mortal.
Coisas assim. Coisas pueris que não estão à altura do estatuto de alguém vindo
de tão longe e de tão subida condição eclesiástica como é o caso do senhor visitador
apostólico da Santa Inquisição de Lisboa, Heitor Furtado de Mendonça. Mas, verdade
seja dita, dizem as más-línguas da terra que também ele não tem competência para
julgar culpas de maior monta, ainda que pareça que a tem. Se culpas houver assim tão
graves devem elas ser remetidas a Lisboa, que nisto da delegação de competências
também a Inquisição costuma ser muito zelosa. E também se diz que o senhor visitador
apostólico não tem tido a vida fácil nestas partes do Brasil, pois sabem alguns aqui em
Olinda que na vizinha Bahia, um tal Estevão da Rocha, alentejano de Moura, deu dois
estouros de ferro com a sua espingarda na janela da casa da Santa Inquisição,
justamente onde pousava o senhor visitador Mendonça. Felizmente – e graças a Deus! –
os tiros não acertaram no alvo. Já o desajeitado atirador alentejano, denunciado por
amigos, acabou sentenciado a um ano de prisão e consequente ao degredo nas galés,
forçado ao remo para todo o sempre.
Bem remexidas as culpas de uns e de outros nestes anos de visitação, e faltando
nas redes o pe(s)cado judaico, talvez a mais grave nódoa social seja a do pecado
nefando da sodomia. Até fica a dúvida ao senhor inquisidor se o que explica tamanho
número de ocorrências seja a escassez de moças solteiras, ou outra causa de inspiração
mais maligna. Pois, não andando muito longe da verdade a primeira constatação, o certo
é que uma tão grande perversidade, e logo num sítio tão pequeno e remoto, só pode ter
mãozinha do Diabo. Porque bem se sabe que onde há um cristão, bom e devoto, lá está
o mal para o tentar nos prazeres mundanais da carne, ainda que neste caso seja carne do
mesmo género…
Dos muitos acusados de sodomia caídos na rede do inquisidor estão um André
de Freitas, morador no caminho de São Bento, e um Diogo Henriques, cristão-novo,
mancebo de dezoito anos, que por sete ou oito vezes em dias e tempos diferentes,
sempre em casa do primeiro e sempre do mesmo modo, ambos tiram as calças e deitamse um sobre o outro de bruços por detrás metendo os seus membros desonestos viris
pelos seus vasos traseiros um ao outro, como se fora em vaso natural de mulher…
69
Ora, para o senhor visitador Mendonça, que para aqui chegar teve que
demonstrar dezasseis vezes a inequívoca pureza do seu sangue, além da necessária
competência de letras e sã consciência, tudo aferido pelo próprio Inquisidor-geral, o
Arquiduque Alberto, estes casos são como nódoas encardidas que sujam a moral cristã.
E, como tal, dignos de exemplar e purificadora condenação pública, que é como quem
diz abjurações, açoites e degredo para as galés.
É a esta vila de Olinda da capitania de Pernambuco que aporta, no início do ano
de mil quinhentos e noventa e três, uma mulher vinda de Luanda à procura do seu
legítimo esposo. Tem um aspeto franzino, cara negra, olhos grandes e esbugalhados e
uma cicatriz que lhe levou metade da sobrancelha esquerda. Vista na sua rude imagem
de múmia embrulhada da cabeça aos pés até parece que vem assombrar o sossego desta
terra. Aliás, há nela qualquer coisa de estranha parecença com um espírito maligno,
talvez por nela não haver um palmo de beleza física. Mas, ao contrário de todos os
outros que acabam de desembarcar, a maioria escravos negros de Angola, para quem o
pisar desta terra é sinónimo de chegar às portas da desesperança, ela trás no seu
pensamento uma única determinação: recomeçar uma vida a dois. Nisto tem esta mulher
o mérito de ser indómita e resistente como fortaleza. Porque a fortaleza, que é uma das
virtudes para Aristóteles, como ensinam os doutos, está mais em sofrer as coisas que
espantam que em acometer ousadamente.
Mas não foi fácil aqui chegar. Desde logo, não foi fácil convencer o capitão da
nau de que ia em busca do seu marido que era marcador d’el rei e criado de Dom
Jerónimo de Almeida. Depois por ter vindo ela numa nau negreira, atulhada de
escravos, onde cada palmo de agasalho é o bem mais valioso dos que andam no mar.
Finalmente por ser mulher e ainda moça. Nada bonita, nada atraente, é certo, mas fêmea
o suficiente para pôr em polvorosa uma tripulação maioritariamente masculina. Por isso
o capitão a colocou, a recato, no camarote da varanda, à popa da nau, e aí passou mais
de um mês numa vida de quase clausura, apenas quebrada para assistir às missas secas,
que é como chamam aos ofícios religiosos em que o sacerdote não consagra.
Isolada, mas espectadora das duras condições de vida dos que iam com ela a
bordo da nau negreira. Pois ainda que o vento tivesse favorecido a viagem e por isso a
magra ração tivesse sempre chegando a todos, em particular a diária de meia canada de
água, bem se deu conta dos que morreram e foram lançados ao mar como trouxa inútil.
70
Muitos atacados de febres, de disenteria ou de mal-de-Luanda, que é como todos
identificam o escorbuto. Mas o que mais lhe torvou o espírito nas longas noites de
travessia do mar, pouco abaixo da linha do equador, foram os gemidos e os gritos dos
centos de malungos amontoados no porão. Num primeiro momento quando se
apartaram de terra, ainda agrilhoados ao barco, não fosse o caso de se lançarem à água.
Depois, já em alto mar, a dor de verem partir os seus companheiros ou familiares sem
lhes puder dar sepultura digna, que é como quem diz, na terra onde nasceram. Pior que
isso era o medo que todos tinham das almas dos mortos que eram lançados ao mar: por
certo viriam pela calada da noite atormentar os vivos, batendo nos escotilhões do barco
como asas de pássaros. O medo destas almas penadas sem sepultura digna era bem pior
que a do chicote dos carcereiros.
Pobre gente que Deus abandona à sua sorte, que não se contentando os cristãos
em os ter como escravos, também os despem de toda a humanidade. E assim despojados
da sua honra, roubados da sua memória, engordados e besuntados a toucinho para
parecerem sadios, são, no mercado negreiro das praias de Pernambuco, a imagem do
desalento que acaba de cruzar o oceano para aqui morrer nas malhas da servidão.
Não é o caso desta mulher que acaba de chegar a Olinda. A sua vida recrudesce
agora de novos sentidos. Assim ela encontre o seu marido e este a saiba receber como
sua legítima esposa.
71
DEZ
Interrompida ontem pelo adiantado da hora, a audiência recomeça hoje, pela
manhã, na Sala do Despacho da Santa Inquisição de Lisboa. No calendário da história
este dia sete de agosto de mil quinhentos e noventa e nove é um sábado e a cidade
acorda fatigada e mal dormida de uma noite sufocante. No Rossio, ali tão perto, a vida
regressa ao seu habitual frenesim de gestos e de vozes. O sol vibra nas fachadas do
casario da praça e a água murmura na Fonte Velha. Os sinos ecoam lá longe os sons de
uma paz bíblica. Há vozes de crianças e aves no céu. As negras do pote já estalam
pregões e uma chusma de criados afadiga-se nas compras a mando de seus senhores.
Por breves instantes parece ter caído sobre a cidade, ainda que pobre e debruado a ocre
e manganês, o véu diáfano da concórdia universal. Estranha comiseração caída do céu.
Porque a esta cidade de corvos sempre faltaram as cores inteiras da alegria: poucos
verdes luminosos; nenhuns vermelhos-vivos; azuis, os do céu; o ouro, o do sol; o
prateado, o do rio, ao longe e a certas horas; em demasia o negro, viúvo e fúnebre, os
brancos crus da beatice, os castanhos ferruginosos da pobreza vadia e descalça. No
resto, a cor lamacenta a perder de vista impregnada de vómito e incenso que é o que
cheira a pele mestiça de Lisboa.
Indiferentes ao murmúrio da cidade que cresce em ruas de vida, os rituais da
Sala do Despacho da Santa Inquisição apodrecem num silêncio maquinal. Lembram um
cão velho a lamber vagarosamente a sua monotonia junto ao portal do Céu.
É a este cenário que é chamado o prisioneiro, réu e confessante, porque tudo
amassado num só corpo de lama. Regressa à Mesa para nela bolsar algum coalho de
palavras.
Retomadas as perguntas, o calígrafo vai anotando no seu acrisolado registo tudo
o que o réu tem para expurgar. É verdade que ao réu custa tudo. Mas o remexer no
passado é o desossar da carne que mais lhe custa. Porque o passado é nele uma terra
72
onde se escondem bocados de si que são insuportáveis à vista. Só os bichos desalmados
enterram os ossos na terra para um qualquer festim que o futuro os obrigue a devorar.
Poucos são os bocados de si que espalhou que não se importe agora de exumar. Talvez
os de quando era puto, que são os bocados da inocência e do deslumbramento. De
quando corria ao Tejo a enfiar-se naquelas águas batismais, lançando-se de cabeça no
poço secreto dos mergulhos, deixando-se depois levar pela corrente até a cidade lhe
caber num abraço. Ou de quando corria pelas ruas de Lisboa com a pressa de não ter
pressa nenhuma, estugando o passo para lhe caberem os dias nos olhos famintos. O
resto é uma terra queimada pelo desgoverno em que caiu à procura de si, que o sonho de
ser insigne pintor só pode ter sido tentação do Diabo. Bem desconfia agora que ter
vestido o hábito mendicante, seguir a Deus e tentar rezar da pintura foi o pior erro da
sua vida.
Agora voltam à cara seráfica de Heitor Furtado de Mendonça todos os
inquisidores que há no mundo. Para que o réu confesse. Para que vomite até ao último
engaço o mosto da sua vida de réprobo.
– Continue o réu onde ficou na sua confissão de ontem – ordena o inquisidor
ajeitando-se na cadeira.
O réu nem sabe onde deixou o livro da sua vida quanto mais a página onde ficou
interrompida a leitura da véspera. Tateia pelas palavras à procura de firmeza onde se
agarrar. O inquisidor aviva-lhe a memória lembrando-o de que o réu está preso em
Santarém…
Pois está. Aliás, toda a sua vida é um permanente regresso à prisão. Às prisões, a
bem dizer, pois todos parecem correr atrás de si a dar-lhe ordem de prisão: os irmãos de
fé, a fé da Igreja, a mulher de que não gosta, quem sabe se a própria mãe…
E estando preso no cárcere do mosteiro de São Francisco de Santarém, tratou ele
com outro frade sacerdote de missa chamado frei Francisco de Santo António, ou frei
António de São Francisco, já não se recorda muito bem, o qual havia tomado o hábito
na Índia e aí fora professo. E este frei, prometendo-lhe que o ajudaria a sair do cárcere e
que fugiria com ele para Roma, ele consentiu nisso. E assim combinados, um certo dia,
romperam o teto do cárcere e se foram pela cerca fora até à cidade de Lisboa. E nela,
escondidamente, ambos negociaram o necessário para passarem à banda de além,
73
tomando o caminho de Alcácer do Sal com o propósito de irem a Roma sempre por
terra. Mas, estando ele e o outro frade já na vila de Alcácer do Sal para se irem a
Sevilha, frei António, arrependido da sua apostasia, quis voltar para Lisboa e recolherse ao convento de São Francisco da cidade para aí expiar os seus pecados, rogando-lhe
que se tornasse com ele à religião. Mas, ele, confessante, não quis tornar a Lisboa nem à
religião porque tinha medo dos castigos que nela davam. No entanto desistiu de ir pelo
seu pé mais adiante na fuga e decidiu voltar para Lisboa. E chegando ambos os frades às
hortas de São Lázaro, apartou-se dele frei António, já sobre o tarde.
– E que fez o réu depois de se apartar do dito frade? – indaga Heitor Jerónimo
de Mendonça.
– Tomei, senhor, o caminho do Terreiro do Carmo, onde morava António Lopes,
mestiço da Índia, alfaiate, que estava casado com Andresa Gonçalves, mulher branca e
cristã-velha. E por ser António Lopes muito meu conhecido e amigo e por me ter criado
naquela zona da cidade com seus filhos, e por eu ir de Alcácer do Sal doente de febres e
sezões, fiquei em sua casa durante três meses.
– E não teve o réu conversação com outras pessoas em tal tempo?
– Saiba vossa senhoria que estando aí reconvalescente, minha mãe me visitou e
me deu todo o necessário a meu sustento, trazendo-me os médicos, os barbeiros e
cousas da botica.
Bem se lembra ele dessa longa convalescença, julgando que tais febres e sezões
o matariam aos poucos. Pior de tudo os suores e os delírios. Foram eles que o levaram à
beira da morte e aí descobriu que Deus se esquece dos homens de fé, ou que a sua fé,
afinal, não resistiu ao incómodo de um Deus indiferente. Bem se lembra de teimar em
não despir o hábito como que provocando um gesto Dele, fosse por intercessão da
Virgem, de Nosso Senhor, de São Jerónimo... Mas nenhuma oração pungente resultou.
Apenas as mezinhas do boticário.
– E enquanto estive doente e acamado em casa de António Lopes nunca despi o
hábito – retoma Jerónimo a conversa. – Só daí por diante e já estando curado e são de
todas as maleitas que trouxe de Alcácer do Sal é que despi o hábito.
– E vestiu-se o réu de leigo?
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– Assim foi, senhor. Vesti-me de leigo com um vestido de picote e um sombreiro
que António Lopes me fez por ser alfaiate.
O calígrafo, ainda que habituado às longas confissões, precisa agora de
descansar a vista e folgar a mão. Heitor Furtado de Mendonça, olhando para Manuel
Álvares Tavares, condescende a uma breve pausa para que a Mesa se possa refrescar
num gole de água.
Depois disso, dá ordem com aceno de cabeça ao confessante para que ele
continue.
– Senhor, como eu nesse tempo queria muito tornar a Roma com o propósito de
pedir perdão à Ordem sem mais castigo algum, e por não querer ser reconhecido por
irmão por outros frades que me topassem pelos caminhos, me vesti de leigo como disse
e nunca mais usei o hábito.
– E que fez o réu a esse hábito?
– O hábito e a túnica estão em casa de minha mãe.
– E ao seguinte?
– Ao seguinte, senhor, dizendo a minha mãe que me ia a Roma pedir perdão à
Ordem e tornar à nossa santa religião, ela me encomendou muito e pediu-me que me
esforçasse, quanto me pudesse esforçar, para me tornar à religião, que para isso
rezaria por mim todos os dias.
– E o réu tornou a Roma? – questiona o deputado.
– E ao seguinte, senhor, embarquei numa caravela de Alfama para o Algarve e
daí me fui a Sevilha. E estando em Sevilha por espaço de três meses, pouco mais ou
menos, me usei de pintor de pinturas e retratos, em que ganhei bem mais de trezentos
cruzados…
Neste ponto Heitor Furtado de Mendonça quer saber se o confessante continuou
a viagem para Roma como era sua intenção e se lá conseguiu chegar. Mas o réu hesita,
como se isso lhe doesse na memória. Sem o dizer, sem o explicar, o seu destino volta a
cruzar-se com Lisboa. Parece que é à memória de Lisboa que ele quer voltar… Onde já
estava para zarpar a armada de Dom Francisco de Almeida, que ia por governador de
75
Angola, no ano de mil quinhentos e noventa e dois. E ele, nomeando-me por secular,
apresentou-se para ir como soldado, no que foi aceite.
Súbita mudança no rumo da sua vida. Como confessá-la agora à Inquisição se
ele a não sabe explicar racionalmente a si próprio? Sabe que foi Sevilha que o fez
mudar… até de nome, fazendo-se então nomear por Jerónimo de Mendonça. Nem foi
bem a cidade… Foram as notícias de um mundo novo trazido das Índias Ocidentais que
lá observou maravilhado. Plantas, coisas raras e preciosas e toda a sorte de animais
terrestres, marinhos e voadores como nunca vira em Lisboa. Muitos os exibiam
empalhados em suas casas como curiosidades naturais, fazendo como isso bom
dinheiro. Outros os estudavam, tentando integrar na Criação de Deus o seu despropósito
de vida. Contudo, essa nunca foi a sua preocupação, mas antes o fascínio de conhecer
tão remotos locais de onde procediam tais criaturas, algumas ainda mais bizarras do que
os alifantes da Índia…
– Mas antes de partir, senhor, para as partes de Angola – acrescenta o réu,
tateando na memória as palavras certas – estive em Lisboa somente quatro dias, nos
quais não tive conversação com outra gente que soubesse que eu era frade...
– Nem mesmo vossa mãe? – atalha o deputado como que apunhalando a
conversa.
– Não, vossa mercê – esclarece o réu baixando a cabeça a esboçar um súbito
pudor. – Não visitei minha mãe para a não desgostar de minhas culpas de mau cristão e
de mau frade.
– Foi então o réu para as partes de África na armada do governador de Angola?
– Assim foi, senhor. E gastando alguns cinco meses no mar, desembarquei em
Luanda de Angola.
– E em todo o tempo sem se descobrir de sua apostasia? – pergunta em tom
irónico o inquisidor.
– Assim foi, senhor. Porque no tempo em que estive em Angola por soldado,
acompanhei o senhor governador nas guerras que fez aos sobas, e por bom soldado
ganhei o respeito de todos. E porque Dom Francisco de Almeida se foi de Angola, o seu
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irmão Dom Jerónimo de Almeida, que lá ficou por governador dela, me convenceu a
casar, com muitas promessas e rogos.
– E quem era essa mulher com quem casou o réu?
– Uma moça das convertidas, senhor, que fora na mesma armada – adianta o
prisioneiro, como que a medo de lhe nomear o nome.
– E qual o nome de batismo dessa dita moça?
– Maria de Faria, senhor.
– E ao diante?
– Ao diante, senhor, lá tido e havido por secular em essa vila de Luanda me
casei com essa convertida, vivendo a uma cama e a uma mesa, de umas portas para
dentro, por um espaço de seis meses em a dita vila de Luanda.
– Seis meses, somente? – questiona, Mendonça.
– Assim foi, senhor. Saiba vossa mercê que esta minha mulher não tem beleza
alguma que aqueça o desejo de um homem.
– Mas o réu se casou com ela à face da Igreja, jurando os santos sacramentos
do matrimónio…
– Que outro caminho tinha eu se não o de lamentar a desventura de meu
casamento? Como podia eu escusar-me a casar tão honradamente, sendo de meu
proveito esconder o meu passado de frade professo? E não suportando viver com ela
por desgostá-la como mulher e como esposa, e tendo nosso filho nascido morto antes de
tempo, a deixei em Luanda, dizendo-lhe que me ia tornar a Lisboa.
– E tornou o réu a Lisboa?
– A Lisboa não, senhoria…
– Então aonde?
– A Pernambuco do Brasil. E porque naquele tempo não podiam as pessoas
casados e os soldados saírem de Luanda, por aí serem mui necessários, me embarquei
escondidamente, julgando que a minha mulher nunca sairia a buscar-me. Mas estando
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já em Olinda de Pernambuco e nomeando-me aí por secular, aportou lá essa minha
mulher, e achando-me aí eu a aceitei…
– Foi isso ao tempo de nossa visitação?
– Assim foi, senhoria. E em vossa visitação temi que não a aceitando por minha
esposa legítima e não fazendo com ela vida de casado a uma casa e a uma mesa, ela o
descobrisse publicamente. E como em todo esse tempo minha mãe e irmão, que ao
tempo estava em Angola por escrivão da fazenda de Sua Majestade, me enviaram
muitas cartas a lembrar a minha apostasia, onde pediam com muitos rogos que me
tornasse à religião, e por eu também já o ter assim determinado, me embarquei para
Lisboa e trouxe comigo a dita minha mulher, por a não poder deixar lá, nem ela me
querer largar, tornando-me a esta cidade ao mês de novembro de noventa e sete…
– E tornando-se o réu a Lisboa que fez ao depois?
– E logo que me tornei a Lisboa fui com minha mulher pousar a casa da minha
mãe, dizendo-lhe que aquela mulher que levava não era minha esposa mas antes uma
amiga que conhecera no Brasil e agora a trazia por manceba.
– E vossa mãe a aceitou como tal? – questiona Mendonça.
– Saiba vossa mercê que daí a cinco ou seis dias a minha mãe contou a verdade
àquela minha esposa. E porque ela o não aceitou por verdade veio a mim perguntarmo…
– E que resposta lhe deu o réu?
– Disse à minha mulher, senhor, que não era frade mas leigo e andava
homiziado nesta cidade. E aproveitando-me desta desculpa lhe disse mais que não
podia continuar a viver publicamente com ela...
– E ela se contentou com essa resposta?
– Assim foi, senhoria. E por esta falsa razão eu lhe disse que me queria ir desta
cidade de Lisboa, e que para isso lhe dava provimento para ela se tornar ao
Recolhimento das Convertidas. E estando ela já no dito Recolhimento, enviei por
Manuel de Castro Rios uma carta ao ministro provincial da Ordem, frei Gaspar da
78
Natividade, rogando-lhe que me recolhesse na Ordem, mas usando comigo moderação
no castigo.
– E que retorquiu esse ministro?
– Que me entregasse à religião, senhor. Mas não me disse a que castigo me
sujeitaria se lá volvesse. E temendo eu muito disso, não o fiz logo. E nessa conjunção
de tempo, que foi o mês de maio ou junho de mil quinhentos e noventa e oito, fui eu a
visitar a António Pereira, pintor desta cidade, morador ao Espírito Santo da Pedreira,
que então pintava a segunda claustra do mosteiro de São Francisco de Lisboa.
– Com que intenção? – pergunta o deputado, pouco convencido das voltas desta
história.
– Com a intenção, senhor, que vendo lá os frades e conhecendo alguns deles,
por também ser frade franciscano, me lançarem eles mão. Mas, movendo práticas com
alguns deles, já andando a pintar a dita claustra, nenhum deles de mim era lembrado.
Pelo que mandei outra carta por António Pereira a frei Gaspar das Chagas, comissário
da Corte da Ordem de São Francisco, que estava neste mesmo mosteiro, na qual carta
lhe pedia perdão e misericórdia e que se lembrasse de me recolher na Ordem.
– E que resposta deu o comissário?
– Me disse que não prometia o perdão na forma como eu o desejava ter, e por
isso temi apresentar-se por vontade própria, temendo que os castigos do cárcere fossem
de maior qualidade que os que já havia tomado.
– E ao depois como foi que réu veio a casar uma segunda vez? – questiona
Mendonça deixando cair a máscara seráfica de juiz imparcial.
– Minha mulher, senhor, veio a saber que eu andava pela cidade e chamou-me
ao Recolhimento para que eu a tirasse de lá. E assim o fiz, e a levei a Santo António do
Tojal, onde a agasalhei em casa de uma mulher honrada e afazendada. E aí estando
algumas semanas, a deixei, dizendo-lhe que me ia a Madrid, a ver minha irmã.
– Mas não foi o réu a Madrid como prometera a sua mulher… – insinua o
deputado já antevendo a resposta.
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– Assim foi, senhoria. Saiba vossa senhoria que já então eu conhecia Baltezara
de Padilha…
– Quem é essa Baltezara? – Interrompe Mendonça, de voz grave.
– É uma castelhana, senhor. Moça solteira e já mundana, passamaneira,
moradora com a sua mãe na Caldeiraria, ao Beco dos Namorados em esta cidade de
Lisboa. Tive eu conversação com ela quando pintava a claustra segunda de São
Francisco, por os pintores que nela pintavam conhecerem certas mulheres mundanas
de que também se serviam alguns frades. E nisso caí eu…
Jerónimo parece mergulhar os olhos no fundo de si a buscar alento, ou talvez
coragem. E retoma as palavras como se elas lhes pedissem urgência para acontecer.
– E por Baltezara saber satisfazer um homem com sua beleza e com suas artes
de amor, me quis eu logo casar com ela...
– E como frade professo não sabíeis vós dos perigos de Eva?
– Sim, excelência reverendíssima – abana a cabeça o réu com algum incómodo
na consciência, – sabia muito bem de tais manhas que essas mulheres mundanas
costumam usar.
– E ao depois?
– Ao depois, senhor, por recear perder a Baltezara para outros que a rondavam
por sua beleza, me casei com ela publicamente na igreja de São Nicolau, pouco tempo
depois.
– E como foi feito esse danado recebimento! – rosna Tavares, do alto da sua
cadeira.
– O recebimento, excelência reverendíssima, foi feito na semana depois da
Páscoa da Ressurreição do passado ano de noventa e oito, em um dia pela manhã que
me não lembro se foi algum das oitavas se algum outro ferial.
– E quem a ele assistiu?
– Belchior Soares, espadeiro d’el rei, por meu padrinho e Francisca de Padilha,
por minha madrinha.
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– E que diligências foram feitas para que o prior consentisse num tal
recebimento?
– Nenhuma, senhor, das que se costumam fazer...
– Nenhuma! – explode Mendoça perdendo a pose seráfica de santo de altar.
– Saiba vossa excelência reverendíssima que Baltezara de Padilha e Belchior
Soares, que é também castelhano, foram falar com o cura de São Nicolau para que este
os recebesse sem licença. E nisso ele consentiu. Mas depois disse ele que não nos podia
receber sem licença, mas que tornássemos lá na semana seguinte para ele nos dar as
bênçãos. E o dito Belchior Soares, já no adro da igreja, disse ao cura que tudo se haria
bien. E, virando-se depois para mim, o dito Belchior Soares me disse que mandaria ao
cura um presunto e uma borracha de bom vinho e uma galinha por pitança. E na
semana seguinte voltaram eles ao dito cura de São Nicolau para que este lhes fizesse o
recebimento, o que fez em face da Igreja, publicamente, tomando para isso a dita
pitança e mais três tostões para uma galinha.
A conselho de Manuel Álvares, já com a aflição de quem tem a bexiga cheia, a
Mesa decide suspender a sessão por um breve espaço de tempo, apenas o necessário
para suas senhorias desentorpecerem as pernas e esvaziarem os líquidos corporais, que
de puros que são só se vertem em vasilhas de barro e em local apropriado. O réu não
tem estas humanas necessidades, pois que o estado do seu corpo nem para isso dá, tal é
a secura que o governa. Mas ainda que as tivesse só teria que as conter dentro de si, e o
tempo que fosse necessário, pois ainda está para acontecer a suspensão de um auto
confessional por causa de tão mísera necessidade de um preso.
São breves os minutos de pausa que, por uma providencial coincidência, é
marcada pelas badaladas dos sinos a vibrar por toda a cidade a notícia da hora de sesta.
O que, de resto, é um bom sinal para apressar o resto da confissão. Sabe o réu que de
nada vale esconder as palavras, pois se não saírem aqui às boas, sairão a mal na cadeira
da sala do tormento. Por isso, obriga-se a confessar o que puder e que é ainda alguma
coisa.
– E a outra sua legítima mulher?
81
– E estando eu, senhor, já casado segunda vez veio a esta cidade, dois ou três
meses depois, Maria de Faria, por assim saber deste casamento. E a um domingo,
depois da sesta, veio a casa de Francisca de Padilha a perguntar se ela tinha uma filha
casada com um mancebo pintor. Ao que Francisca de Padilha lhe respondeu que ali
não morava nenhum pintor, nem a sua filha era casada.
– E com tal mentira ficou ela persuadida?
– Não, senhor, não ficou, e se foi ao convento de São Francisco a denunciar-me
como apóstata da fé e bígamo, com que os frades me mandaram os alcaides da cidade
para me prenderem. Disso soube eu por uns frades que vieram a minha casa para me
tomarem, e deles fugi para umas lojeas na Rua da Caldeiraria.
– E ao diante?
– Ao diante, excelência reverendíssima, por temer muito ser preso, fugi para o
Alentejo a recadar dinheiro em obras de pintura, pelo mês de julho de noventa e oito. E
daí me passei ao Algarve, onde estive quase um ano servindo na casa do
reverendíssimo bispo Dom Francisco Martins Mascarenhas.
– Em obras da sua sé? – pergunta o inquisidor, acometido de um súbito interesse
pessoal.
– Assim foi, senhoria. E bem necessitada estava ela de obras depois de a
tomarem e devassarem os ingleses do Conde de Essex, que não só a destruíram de tudo
como a saltearam do seu melhor…
– Cá sabemos da queixa de Dom Francisco Mascarenhas ao Santo Padre
Clemente de como sua igreja foi queimada pelos hereges, só dela ficando de pé oito
capelas por serem de abóbada. Além de sua boa livraria até os sinos e o relógio
levaram…
Num fugaz instante, réu e tribuno parecem encontrar uma ponte de palavras
sobre a acidez do interrogatório. Assim, como quem faz uma breve pausa num combate
mortal. Pura ilusão.
– E ao depois? – pergunta o inquisidor, silvando como quem escarra um bocado
de veneno.
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– E depois desse tempo, senhoria, me tornei a Lisboa, onde me acolhi na casa
de Baltazar de Souto, pintor de adufes, morador além da Esperança, junto ao Convento
das Inglesas. E acontece que na primeira noite em que eu ali me agasalhei, para minha
triste fortuna, foi a justiça a casa do dito Baltazar do Souto por causa de uma tábua
pintada muito antiga que diziam que ele tomara às ditas freiras inglesas. E eu, vendo
chegar o juiz Armão da Silveira que vinha para prender o dito Baltazar, julgando que o
fazia por mim, fugi a esconder-me num canavial, e nele me acharam os homens do juiz.
E daí me levaram à enxovia do Limoeiro…
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ONZE
Ninguém imagina os tormentos que padece um condenado às funduras da
Inquisição. Até aos inquisidores com um pingo de humanidade, que também os há,
repugna ver as condições miseráveis dos prisioneiros. Repugna ver a escassez de um
único espaço partilhado por tanta gente, sem intimidade para o seu serviço necessário.
Fétido e húmido. Com corrupção de tudo. Sem sol. Sem luz. Sem ar. Onde a doença
ataca sem piedade o corpo e a alma.
Assim despedaçados aos poucos pela besta inquisitorial, os que sobrevivem a
tais tormentos e que daqui saem ao fim de muitos anos, arrastam cicatrizes profundas
para o resto da vida. Uns surdos. Outros tolhidos de dores. Todos hão de morrer cedo,
melancólicos, ou desanimados.
À miséria e ao sofrimento soma-se a solidão. Pois os que são lançados a uma
«solitária» falta-lhes todo o género de comércio humano. E mal sabem eles que, as mais
das vezes, ficam sós para que os inquisidores os possam vigiar de noite e de dia, pelas
frestas discretas das junturas das portas. Tal vigília, normalmente destinada aos cristãosnovos, tem como único propósito aclarar dúvidas sobre práticas de judaísmo não
confessadas nos interrogatórios. Nos interrogatórios ou na polé, ou no potro, que são
instrumentos necessários para se dar tormento aos presos por forma a apressar-lhes a
confissão. Bem se ouvem - porque é mesmo para se ouvirem - os gritos lancinantes dos
que são içados na polé. A estes desgraçados aplicam-lhe tratos, regulados ad faciem
tormenti, ou seja, segundo graus de dor. Não raro, aos gritos insuportáveis das vítimas,
içadas à altura da roldana, sucedem súbitos estrondos secos da queda desamparada dos
seus corpos. Chamam a esta crueldade trato esperto.
Mais silenciosos, mas não menos cruéis, são os tormentos do potro. Consistem
em sufocar a vítima, atarraxando-lhe o peito, braços e pernas até ao limite de uma volta
inteira do arrocho, em seis pontos de aperto diferentes. Simples e muito eficaz como
máquina confessional. Que o Diga António Pinto, de trinta e seis anos, natural de Évora
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e morador em Borba. Além das culpas habituais de judaísmo, parece que um dos delitos
mais graves de que o acusam é o da sua reiterada blasfémia de, na missa dominical,
responder ao mea culpa, mea culpa – palavras que se dizem no momento da confissão –
com um descarado meu cu, meu cu. Agora está preso nos cárceres da Inquisição de
Lisboa para vomitar todas as suas culpas, nem que para isso seja necessário ir à sala do
tormento. E como o renitente Diogo Pinto teima em dizer que não tem culpas que
confessar porque é cristão, os inquisidores dão-lhe a provar os tratos espertos do potro e
da polé, que é coisa que fica registada nos autos do seguinte modo:
Aos oito dias do mês de fevereiro de mil e seiscentos anos em Lisboa, nos
Estaus, nos cárceres do Santo Ofício da Inquisição, à porta da Casa do Tormento,
achando-se aí por comissão do senhor licenciado Manuel Álvares Tavares, inquisidor,
em audiência pela manhã, e o senhor licenciado Heitor Furtado de Mendoça, deputado
deste Santo Ofício, mandou vir perante si a Diogo Pinto cristão-novo, preso neste
cárceres, conteúdo nestes autos, e sendo presente lhe foi dito que ele tinha vindo muitas
vezes à Mesa do Santo Ofício e nela fora sempre admoestado com muita caridade,
quisesse confessar suas culpas, o que ele usando de mau conselho nunca quis fazer, e
que agora fazia a saber que este seu processo estava em termos de se fazer com ele
certa diligência perigosa e trabalhosa que ele já devia entender pelo lugar em que
estava e cousas que via, portanto o tornava a admoestar com a mesma caridade da
parte de Nosso Senhor e Redentor Jesus Cristo (para que) abra os olhos da alma e tome
bom conselho e confesse todas as suas culpas, dizendo a verdade delas e todas as
cousas que fez da lei de Moisés e pessoas que sabe terem crença nela (…). (Mas como
ele se manteve irredutível na confissão das suas culpas) foi mandado vir o ministro, e
sendo presente foi dado juramento dos Santos Evangelhos em que pôs a mão sob
carrego do qual lhe foi mandado que bem e fielmente fizesse seu oficio atormentando
ao réu e tivesse segredo no caso, o que tudo ele prometeu cumprir. E logo foi levado o
dito réu Diogo Pinto à Casa do Tormento e estando nela já despojado de seus vestidos
e sentado sobre o potro foi pelo dito senhor admoestado que quisesse confessar suas
culpas dizendo a verdade. E por dizer que não tinha culpas que confessar porque era
cristão lhe foram atados dois cordelinhos pelos colos e cotovelos dos braços, tendo um
sobre o outro, e lhe foi posto o cordel com que havia de ser neles apertado. E estando
assim, foi outra vez admoestado com caridade que quisesse confessara verdade de suas
culpas, e por dizer que as não tinha, pelo dito senhor foi protestado que se ele
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quebrasse algum membro ou morresse no tormentos ou tivesse outro algum perigo a
culpa seria sua, dele réu, pois por não querer confessar as suas culpas se punha a tanto
perigo e que ele dito senhor nem os mais incorriam em irregularidade alguma. E logo o
dito ministro lhe começou a dar voltas com o dito cordel ao redor das cavas dos
braços, e lhas foi dando até neles ser de todo atado. E foi outra vez admoestado que
confessasse a verdade e por dizer que não tinha que confessar foi lançado no potro e
lhe foram postos os cordéis nas seis partes acostumadas (a saber:) nos buchos dos
braços e nas coxas e canelas das pernas. E estando assim, foi tornado a admoestar que
quisesse confessar a verdade das suas culpas e que se ele confessasse se lhe daria
misericórdia e não iria o tormento por diante. E por dizer que não tinha culpas que
confessar e que era cristão, lhe foi dada meia volta em cada uma de todas as ditas seis
partes e sendo tornado a admoestar disse que não tinha culpas que confessar, pelo que
lhe foi dada segunda meia volta em todas as seis ditas partes, e assim ficou tendo um
trato esperto. E sendo tornado a admoestar que confessasse suas culpas e não iria o
tormento por diante e por dizer que não tinha culpas que confessar, lhe foi dado mais
meia volta em todas as ditas seis partes, a qual responde no potro ao trato corrido na
polé. E sendo outra vez admoestado que confessasse suas culpas disse gritando que não
tinha nada que confessar. E por estar satisfeito ao assento foi mandado desatar o dito
réu e levado ao seu cárcere para ser curado. E a tudo esteve presente o cirurgião da
Casa Pedro Gomes (…). (Mas tendo o réu negado no potro, volta à Sala do Tormento
para lhe ser dado o trato de polé, que) logo foi começado a atar nos pulsos com as mãos
postas detrás e atando-se com a primeira correia começou a gritar o dito réu, dizendo
– Deus meu!-, e enquanto lhas atavam gritava e dizia que não devia nada. E sendo por
(diversas) vezes admoestado para que confessasse a verdade para remédio da sua alma
e que se lhe daria misericórdia e não iria com o tormento por diante, disse que era
cristão e que não tinha que confessar. E depois de lhe serem atadas as mãos com a
correia e cordel sobre ela, lhe foi posto o calabre e foi tornado a admoestar, e por não
quer confessar foi mandado alevantar e foi alevantado até ao lugar do libelo que é à
altura em que está o calabre na trave, para quando deixassem cair não descer mais
baixo e estando assim alevantado no dito lugar foi admoestado que confessasse as suas
culpas, e dissesse somente a verdade e que se as confessasse teria muita misericórdia e
não se iria com o tormento por diante. E por ele dizer que era cristão e que não devia
nada, foi alevantado até à roldana, e estando assim alevantado até à roldana lhe foi
dito que olhasse o perigo em que estava e que confessasse a verdade, porque se
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confessasse seria mandado descer muito manso e sem perigo, e lhe daria muita
misericórdia, e que não confessando havia de ser mandado largar para cair e dar
queda muito perigosa de que poderia morrer ou aleijar. E por ele dizer que era cristão
e que não tinha que confessar e que não devia nada, foi mandado largar e assim ficou
tendo um trato esperto conforme ao assento do seu processo, pelo que, e por ele réu
não quer confessar cousa alguma, foi mandado descer de todo e desatar e levar ao seu
cárcere para ser curado.
Normalmente aplicados pela manhã, em jejum, e não mais de uma hora de
duração, poucos são os que conseguem livrar-se de um destes instrumentos necessários.
E os que o conseguem fazer, mais pela natureza das suas culpas confessas do que pela
misericórdia dos seus carrascos, não se lhes dispensa o necessário açoite, prática tão do
agrado dos guardas do cárcere. Guardas que, tal como os familiares do Santo Ofício,
são escolhidos a dedo pelas suas altas qualidades de crueldade e obediência, nisto não se
distinguindo de um qualquer mastim, se não no andar de pé.
Aos que estão presos nestas hediondas paredes dão os carcereiros, se necessário,
uma brasa de lume pela manhã. Com ela podem os mais afortunados concertar a sua
comida miserável num fogareiro de barro. E isto apenas para os que têm alguma
fazenda que lhes permita ter na sua cela pequenos mimos de cama e mesa. A todos os
outros a ração diária é pouco mais do que pão e água.
Nos silêncios infindáveis e insuportáveis das celas há quem comunique com
outros companheiros de infortúnio batendo com a palma da mão na parede. É como uma
espécie de código vital usado para dar os bons dias. As boas noites. Simplesmente uma
forma de exorcizar a sombra da morte. Como quem diz: estás vivo? Eu também…
É a este inferno que vem parar frei Jerónimo do Espírito Santo, o pintor. Não
que lhe seja estranha a mudança, pois que em matéria de prisões ele já experimentou de
tudo. Mas esta, mesmo para um profissional das grades, têm a condenação insuportável
da exposição ao escárnio público. Porque ele não está aqui apenas para expiar as suas
culpas. Está aqui porque é um réprobo, e como réprobo obrigado a exibir publicamente
a intimidade dos seus erros. E nesse sentido, a expor uma nódoa de culpa que mancha
todos os do seu sangue. Felizmente que não tem filhos vivos para lamentar o dia em que
desfilará, aos olhos do mundo, como um criminoso relapso, apóstata e bígamo.
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Lançado a este monturo penitencial, frei Jerónimo julga-se transportado à
antecâmara da sua própria morte. Mas não está só neste pensamento. Com ele estão
outros companheiros de desventura. A maioria cristãos-novos, acusados de culpas de
judaísmo. Todos aqui reunidos como ovelhas num redil à voz de um único propósito
declarado: a salvação das suas almas!
Dos que já lá estão ou se juntam a frei Jerónimo quase todos são moradores em
Lisboa e vários são naturais de Évora: o dito Diogo Pinto, negociante; um Estevão
Soeiro, alfaiate; um Pedro Lopes, aprendiz de boticário. Alentejano como estes, um
Duarte Lopes, mercador, natural de Montemor-o-Novo. De Lamego, um Jorge
Fernandes, sapateiro. De Peniche, um Diogo Mendes, escrivão do pescado da Ribeira e
sindico dos frades de S. Francisco Xavier de Xabregas, morador nas Fangas da Farinha.
Todos acusados de simpatia à Lei de Moisés.
Contando com as mulheres, que também aqui as há apartadas pela sua natural
condição feminil, estão nos cárceres da Inquisição várias dezenas de prisioneiros. Mas,
homens de religião como ele, só tem conhecimento de frei Diogo da Assunção, um
minhoto de Viana de Caminha professo no mosteiro de Santo António que está fora dos
muros da cidade. As culpas de que vem acusado são as de judaísmo, heresia e apostasia.
Apóstata, como frei Jerónimo, por em determinada fase da sua vida, renegando aos
princípios da fé católica, ter fugido do convento para ir ao porto de Setúbal, com o
propósito de embarcar numa urca com destino a Inglaterra ou a Flandres... Para quem o
vê vestido em hábitos de burel da Ordem de São Francisco dos Capuchos de Santo
António, com a barba e a coroa feita com cercilho de frade, este capuchinho não parece
ser uma fortaleza de carácter. Mas é. E de inabalável devoção religiosa. Naturalmente,
tudo menos canónica. Das várias práticas hereges de que vem acusado, algumas
definem-lhe bem a têmpera do seu aço. Esta, por exemplo: que a Escritura é como nariz
de cera que a levam para onde querem; que Maria, que mantinha cópula carnal com
José, depois de parir Jesus, parira a São Tiago e a São João, e por isso eram ambos
irmãos de Jesus; que Lutero e outros cristãos por não acharem fundamento na nossa lei
católica se foram dela, posto que, por serem homens insignes, fizeram seitas novas por
ficar fama deles.
Está claro que aos senhores inquisidores estas ideias são a vera prova das
proposições heréticas do frade capuchino. E nem ouvir-se-lhe dizer que Aristóteles
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defende que um semelhante gera outro semelhante, posto que é dever sagrado nunca
faltar o pão ao homem, é razão bastante para lhe aligeirarem o castigo.
Aos dois frades não lhes é permitida grande convivência com outros presos,
julgam eles pela sua condição de professos. Deste modo, impossibilitados de
publicarem o seu ruim exemplo, pouco digno para os alicerces católicos. Mas também
os carcereiros evitam tê-los juntos demasiado tempo receando que esta associação
encoraje algum tipo de «associativismo» herético.
Ainda assim, no curto espaço de tempo em que ambos habitam na mesma cela,
frei Jerónimo fica encantado com o conhecimento de frei Diogo. Nele, tudo quanto é
dito faz sentido e é de justíssima verdade. E num ponto ambos estão de acordo: a
pintura que os pintores de Roma fazem para papas e reis são hinos à invenção da Arte.
Mas também o são à própria fé católica, pois até a beleza dos antigos pagãos,
transfigurada em belas ninfas carnais se lhes afigura como um tributo à exaltação de
Deus. Porque se tais figuras voluptuosas da corte dos deuses antigos exibem o pecado
da luxúria, mostrando os seus corpos desnudados e as suas vergonhas mais secretas, é
porque o pintor as quer dar como exemplo de mau caminho. Mas nem era preciso ser
exemplar. Já dizia São Tomás de Aquino: solus homo delectator in pulchritudine
sensibilium secundum seipsam, «só o homem consegue gozar a beleza das coisas
sensíveis pelo simples gosto da beleza».
Jerónimo, no entanto, faz questão de manter as suas vontades atormentadas num
poço de silêncio. A custo, lá confessa os seus fundos segredos a frei Diogo. Só o faz,
bem o sabe o capuchinho, porque a conversa vibra no assombro da arte, no artifício do
pincel criativo de insignes pintores, até porque os dois frades já viram pinturas de
Rafael e de Miguel Ângelo no palácio do papa. Jerónimo não tem dúvida – e muita
coisa já viu por essa ilustre Europa de pintores afamados – que a capela pintada em
tempo do papa Sisto é o ponto mais alto que a invenção artística do homem pode
conceber ao serviço de Deus. E as pinturas do Juízo Final ou da criação de Adão no teto
da capela papal só podem ter sido pintadas por consentimento de Deus, se não por Ele
inspiradas. Nem se imagina possível que um pintor como Miguel Ângelo Buonarroti
não tivesse alguma coisa de divino a correr-lhe no sangue quando as pintou para deleite
dos nossos olhos. Frei Diogo vai mais longe:
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– Miguel Ângelo estava possuído de um ângelus quando pintou para o papa
Júlio!
Jerónimo, escalando a conversa ao limite, acaba por improvisar a mais profunda
confissão que nem ele a suporta ouvir:
– Antes não tivessem vivido os deuses do génio em tais pintores, assim eu, ao
menos, continuava a acreditar que um dia conseguiria ser insigne, amado como freire e
venerado como pintor.
E continuando, como quem liberta de si uma memória atormentada:
– Foi o insigne Miguel Ângelo que me levou a Roma e foi ele quem de lá me
expulsou. A arte – conclui –, é uma mercê divina dada aos preferidos de Deus!
Hoje, como bem sabe Jerónimo, não é um deles e por este ruim caminho que
tomou a sua vida nunca o será.
E se Deus tem preferidos que elege à nascença como pode alguém acreditar
nessa luz divina que se alcança com trabalho e oração, mesmo que intermediada pelos
santos e doutores da Igreja. De que valeu à glória do seu nome ter como patrono
Jerónimo de Estridão? De que valeu à sua fé ter sido cordeiro apascentado nos pastosdo-Senhor?
Perguntas que esbarram nas paredes enegrecidas da cela. Morrem ali, sobre o
chão inútil. Como podem elas ter resposta? Na sua triste sina, fazem lembrar o
andorinhão que Jerónimo certo dia recolheu no claustro de Alenquer. Havia caído do
céu com uma asa partida. Na verdade, como ele se apercebeu quando o tomou do chão,
faltava ao pequeno andorinhão parte de uma das asas, arrancada de forma estranha,
talvez pelo animal que o tentara filhar. E ainda que Jerónimo tivesse feito tudo para
salvar a pequena ave, dessedentando-a, alimentando-a, a verdade é que ele nunca
conseguiu restitui-la à sua condição voadora. Perdida a sua razão de viver, ali mesmo
morreu como coisa sem préstimo.
Desasado, sem préstimo e para morrer está também Jerónimo. Caído à paulada
neste chão de perguntas sem resposta. E assim espera a sua morte, anunciada sempre
que um sino ecoa na cidade. A toda a hora. E sempre que a badaladas vibram a marcar o
passo do tempo, o corpo de Jerónimo estremece como que chamado ao seu suspiro final.
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Até aos sonhos da noite chegam os sinos da cidade como trons do Apocalipse.
Impossível não os ouvir. E há um sonho que até gosta de os chamar. É como uma
fixação que obriga a correr. Que obriga a fugir. Fugir para onde? De quem? Que
começa no convento de Alenquer e depois, sem se saber bem como, precipita-se numa
fuga sem descanso. Atalhando por caminhos ínvios e desalmados, até às margens do
Tejo. E fugindo, fugindo, o sonho obriga Jerónimo a um caminho que é sempre o da
Carambancha que termina na Vala do Carregado onde costumam parar as barcas de
Punhete. E aí, esperando por uma qualquer barca que desça o rio, o sonho gosta que a
hora seja sempre a de véspera, já com a sombra da noite a crescer pelas charnecas de
Benavente. E, desvanecendo-se a pressa, aí fica ao relento, olhando Vésper a cintilar no
seu fadado brilho, próprio dos deuses celestes, enquanto as cigarras desistem de cantar,
dobradas ao cansaço de mais um dia de frenesim. Não se entende porque gosta este
sonho de um fim de dia de verão tocado a sinos de véspera… E chegando Jerónimo em
sonhos à margem do Tejo, assim fica até ao outro dia à espera de um barqueiro de
Punhete. Porque na urgência da correria ele parece querer ir a Lisboa a salvar alguém. E
o que quer venha a flutuar sobre as águas do Tejo é bom que o leve rio abaixo. E
depressa. Que em horas de aflição não há lugar para esquisitices. Pode até ser a barca do
Purgatório.
E quando chega finalmente a barca de Punhete, o barqueiro chama os da
margem. Está ali para os buscar. A ele e a outros como ele, que são frades relapsos,
companheiros de mau andar. Jerónimo não sabe como ali chegaram outros frades, que o
mais certo é padecerem de um sonho parecido. Do alto daquela barca, o arrais mais
parecido a Caronte, de carão branco e de formidável corpo ao modo de uma estátua
antiga, pergunta aos da margem o que têm eles feito para merecer o Céu? Jerónimo
pinta santos como os que estão no Paraíso, sentados nos seus tronos à espera do Juízo
Final. Pinta-os, não com a arte dos pintores de Roma, mas ainda assim com devoção e
comedimento. Os outros nem isso têm para dizer. Só querem expiar as suas culpas
carnais. Lavarem-se na água da redenção e subir à barca. Mas só Jerónimo tem ordem
para entrar.
E entrando na barca, a viagem parece não ter fim.
A certa altura do sonho o Caronte de mármore desaparece subitamente.
Desaparece ou transforma-se por obra do Diabo numa bela moça desnuda como as
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ninfas das histórias antigas. Também ela branca e lasciva, ao modo de uma deusa pagã.
Será Calisto? Nua e sem pudor de se expor. De exibir as suas vergonhas como ímanes
virginais. E não só de se expor, bem à vista da cobiça de Jerónimo, como ainda de tocar
na sua rosa carnal com as pontas dos dedos. E quando ele hesita nos seus instintos de
animal reprodutor, ela puxa-o a si com a força de uma fêmea com cio. E estando já
dentro dela, beijando-a com sofreguidão, um súbito frio tolhe-lhe os gestos como se lhe
tivesse caído em cima todo o gelo do inverno. A bem dizer do Inferno. Um frio de
morte! Primeiro pela espinha a cima. Depois pelo membro abaixo. E nisto a bela jovem,
branca e desnuda, esboroa-se como que desfeita em nuvem de pó. E com ela também a
barca se desfaz em fumo, mas negro como fuligem. E já sem nada que o sustenha à tona
de água, sem nada que o agarre ao ramo da vida, cai no céu do nada, como um náufrago
cai na morte. Cai, mas no chão. Com a força de um trovão retumbante: trommm!…
trommm!…
São de novo os sinos da cidade!
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DOZE
Quando não é este sonho a desassossegar Jerónimo são os pensamentos
obsessivos que lhe revoam na memória. Lembram um enxame de imagens inquietas
rodopiando à volta da sua cabeça como moscas alucinadas. Algumas imagens são só
incómodas, mas outras explodem à frente dos seus olhos em estrépitos de raiva. E nesta
inquietação passa os dias, agora já isolado dos outros presos pela proximidade do autode-fé. Neste inferno em que se tornou a sua vida nem ele já se lembra da última vez que
sorriu. Nem ele sabe se saberia sorrir mesmo que tivesse um inesperado motivo para
isso. Até acha que os músculos da sua face retesaram numa expressão de dor como se
tudo fosse uma espécie de máscara de ferro. Máscara fúnebre, boa para os corvos
roerem – pensa ele. Longe vão os tempos em que se achava jovem e atraente, em que as
mulheres da sua vida lhe gabavam os atributos físicos: a sua avó os olhos, a sua mãe a
doçura do rosto, as moças da rua os lábios carnudos. Agora nem lábios tens, murchos e
secos, como que cosidos a uma boca que desaprendeu de amar a vida e as palavras. Por
certo nunca mais irá amar e muito menos sorrir. As próprias palavras devem estar no
fim, como no fim deve estar o bater do coração. Quantas mil batidas, quantas mil
palavras tem a sua vida andada? Quantas lhes restam para viver? Palavras de fé, mil
vezes repetidas. Já lhe custa dizer. E no entanto mil vezes desencantadas. Porque um
homem – pensa ele quando pinta a sua liberdade – tem marcado na alma um limite que
Deus lhe deu. Porque Deus deve ser, à sua maneira, marcador-de-homens como ele o
foi marcador-de-escravos: condenados que todos estão à morte certa, ferra-os à
nascença para que eles vivam o seu breve dia. E o seu foi marcado a fogo para ser o
mais breve de todos…
Agora que se acerca o limite de batidas do seu coração, pergunta-se se bastará a
Deus as poucas mil palavras ditas na sua breve vida para provar a fé desencantada de
um homem?
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Para esconjurar tamanho desconsolo costuma rabiscar nas paredes da cela uma
qualquer coisa que lhe venha à ideia. Ora fazendo de conta que é um pintor, debuxando
a carvão formas caprichosas. Volutas. Acantos. Figuras femininas com corpo de animal,
tudo ao modo antigo como se usa em Roma e a que chamam os artistas grutescos, ou
outros desenhos caprichosos que só um pintor sabe ir buscar à imaginação. Ora fazendo
de conta que é um escultor, abrindo na pedra enegrecida da parede formas que lembram
quimeras… Tudo ajuda a passar o tempo.
Neste entretém de fazer riscos ao sabor da sua ideia, ou melhor, da ideia de
outros que gosta de copiar, dá-se conta que os seus pensamentos atormentados se
aquietam, rendidos às imagens que faz brotar do sarro das paredes como flores
primaveris. Não só os pensamentos atormentados se aquietam, quais leões adormecidos,
como outros aparecem em bicos de pés, como crianças descalças, dóceis e
espantosamente pequenas. Tão pequenas que, se ele quiser, as pode libertar pelos
interstícios das grades de ferro. E assim libertas, com tão estranha facilidade, ainda que
cegas de luz e ébrias de prazer, correm sem destino à procura de uma Lisboa de
meninice. De uma Lisboa de brincadeira e de espanto.
Nota Jerónimo que uma das crianças que lhe sai do pensamento é parecida
consigo, melhor dizendo, é parecida com a criança que já foi. Um Jerónimo pequenino
também ele fugido a asas de liberdade. Para os que o reconhecerem, coisa decerto
difícil, é o filho mais novo da Mendoça que mora na Rua da Barroca, ao bairro novo de
São Roque. E agora, sem grades que lhe barrem o caminho do coração, sem licenças
nem obediências que lhe turvem a marcha da alma, corre esta criança pelas ruas da
cidade encarnado na figura de um Jerónimo pequenino, como um pássaro fugido da
gaiola, que é a mais pura forma de liberdade. Até porque na corrida desta criança-alada
há a urgência de uma manhã de verão que quer viver.
Que ainda agora começa e já se está a extinguir.
E assim correndo como quem voa, este Jerónimo, bem moço, vai ao encontro se
si e da sua liberdade roubada à caixa dos desejos. E tão depressa corre que logo esbarra
em figuras familiares. Fazem lembrar, pelas artes ilusórias do pensamento, figuras
pintadas num estendal de roupa a secar: aqui a velha Ana dos Anjos, vendedora de
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tripas cozidas e cruas que trás enroladas ao pescoço e aos braços, ao jeito de colar e
manilhas; ali a Preta de Enxobregas que anda a vender água do pote; mais à frente a
Teixeira, sardinheira de Cata-Que-Farás, com o seu ar buliçoso e gingão. Bom dia, bom
dia a todas. Deixem passar, que este moço-alado, este puto, traz urgência em ser feliz.
Gozar livremente a sua luz. Que é breve, como breve é o querer que morre atrás das
grades da prisão…
Jerónimo, que comanda o seu puto à distância, não vá ele soltar-se da sua mão
insegura e assim perdê-lo para sempre num golpe de vento mais forte, interroga-se a que
tempo vai ele pousar. Tem que ser, certamente, a um tempo onde se escondem os dias
felizes. Que tenha pelo menos um rio de águas correntes com um poço secreto de
mergulhos e uma cidade a descer aos «ésses», boa para fazer de conta que basta abrir os
braços para voar. Se ele pudesse seria sempre com os braços abertos que abraçava voos
infinitos. Se ele pudesse nunca mais desceria à terra, voando à altura dos andorinhões e
como eles passar todo o tempo no ar… E nesta corrida urgente, a braços abertos como
asas velozes de nebri, o puto que Jerónimo acaba de soltar parece ir pousar num dia
feliz. Num dia perfeito de sol e calor. Maduro e melado como um cacho de uvas pretas
roubadas aos dias de setembro que são meigos e doces. E porque há sol e há calor,
também tem de haver uma cidade escondida para descobrir.
Ei-la! À luz da sua lassidão, embiocada e labiríntica. Tecida num improviso de
vidas como se fosse um formigueiro. E como um formigueiro, amassado e perfurado em
mil caminhos, em mil destinos, todos enovelados ao mesmo sentimento de pertença
coletivo, todos reis do seu mísero quinhão de espaço… De estranho e desabitual nesta
cidade que Jerónimo acordou para si, só se for a ausência da costumada fidalguia. Não
se vê hoje a passear pelas ruas da cidade, ufana sobre as suas belas montadas, bem
ajaezadas, levando à ilharga a habitual chusma de criados negros, adestrados. Quase
todos mininos, vestidos de cores garridas a lembrarem pequenos troféus de caça. Sim,
onde anda a fidalguia altiva, sempre insuflada de soberba, que costuma passear-se por
Lisboa?
Pouco interessa isso agora, se no mais está tudo igual. A começar pelo Buraco
de São Roque, ponto de encontro de todos os putos que vivem nestas bandas altas da
cidade. Daqui até ao Rossio, que é uma descida feita em muitos «ésses», são pouco mais
do que dois tiros de besta. Mas, uma vez chegados à planura do Rossio, a pressa
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desvanece-se. Porque, mesmo para os mais novos, ávidos de aventura e correria, o
Rossio é um campo de reverente acalmia. Talvez pela presença, ao fundo, das casas do
Santo Ofício, com o seu austero recorte de torres e telhados a denunciar-lhe a sua
sinistra má-fama. Talvez pela desmesura do Hospital Real de Todos-os-Santos, com a
sua poderosa escadaria que termina debaixo de um altíssimo portal, lavrado ainda em
tempo d’el rei Dom Manuel. Talvez pela presença do mosteiro de São Domingos para
onde se encaminham as solenes arcadas dos baixos do Hospital. Simplesmente, por tudo
ser grave, belo e sedutor. Mas de entre todos os poisos do vasto terreiro, nenhum ganha
à escadaria do Hospital. É precisamente aqui que a rapaziada dos altos de São Roque
gosta de pousar antes de disparar a novas descobertas. Ninguém sabe explicar bem o
porquê. Seja porque a natural inclinação vence tudo, ou porque este é o melhor poleiro
das redondezas para ver o mundo dos homens a fluir, como um rio de vidas que vão dar
ao mar… Mas hoje, este mundo é estranhamento habitado por viúvas, negros, velhos e
putos como o que Jerónimo fez sair das grades da prisão. Nada de fidalgos. Nada de
homens honrados e afazendados. Até os escravos negros que ganham a vida a caiar
paredes parecem ter desaparecido.
A partir do poiso da escadaria do Hospital, os destinos podem ser vários. Se não
for logo o da Ribeira, que é o mais frequente, pode ser o das arcadas até São Domingos,
e daí à Fonte Velha para dessedentar a goela. Talvez depois um salto ao Arco de Santa
Ana, onde mora um homem já velho e zarolho do olho direito, de barba ruiva, e que
todos sabem ser bom fazedor-de-versos. Porque aos mais novos acresce-lhes agora o
interesse de ele ter chegado da Índia. Coisa que para a miudagem da rua é motivo de
redobrada curiosidade: é que na Índia há alifantes e outras bestas de pasmar… Mas este
homem velho que faz versos de exótico não tem nada. Nem a mísera tença real lhe
permite exibir algum tipo de excentricidade. A única que lhe resta é ir pelo seu pé à
Fonte Velha do Rossio na companhia do seu escravo javanês. E só quando a saúde lho
permite. Não que o propósito seja o de encher o cântaro com as suas próprias mãos, que
isso é trabalho de mulher e de preferência escrava. Tão só para ver as moças que vão à
fonte. Não raro para as galantear com trovas improvisadas que declama com gestos
solenes. Fá-lo como um ator de teatro. Mas ao contrário de um ator de teatro, quem
contracena com ele não está no palco da vida para devaneios amorosos. Não que as
moças desgostem de galanteios, bem entendido. Simplesmente não têm tempo para os
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apreciar, ademais vindos de quem vêm. Algumas, como já lhe conhecem as manhas,
costumam retaliar, mais por piedade do que por irreverência:
– Ora, senhor Camões não vedes vós que vosso tempo está acabado!
Não vê. Não quer ver. O estado de saúde do velho Camões do Arco de Santa
Ana, o que escreve versos e que veio da Índia onde há alifantes e outras bestas de
pasmar, não é lá grande coisa. Nisso as moças têm razão. De rosto ressequido, sem um
dos olhos, parece-se mais como uma passa de abrunho do que com um galante poeta do
paço. Até mesmo a roupeta escura, cerzida e já sem brilho, não ajuda à beleza dos
versos que lhe saem da boca desdentada. O seu tempo está esgotado, como esgotada
está a sua galanteria. Dá dó ver partir o velho Camões do Arco de Santa Ana atrás do
seu escravo pardo, como cão atrás do seu dono… Nesta triste cidade de corvos a cheirar
a vómito e a incenso, pouca gente se vai da lei da morte libertando.
Uma outra paragem obrigatória, caso as circunstâncias o permitam, é o coval de
Santa Ana, onde vai a enterrar a ralé da cidade. Não que os putos o façam por respeito
ou vigília aos que vão a sepultar. Nem eles se importam com a morte nesta fase da sua
vida convencidos que estão que nem ela os consegue apanhar em corrida. Tão só porque
gostam de se pendurar na carreta da Misericórdia que transporta o ataúde, que é coisa
certa se os únicos acompanhantes forem o coveiro e o ajudante. E todos dias há gente
que morre na rua. Tanta e tão só que já não espanta a Deus que se enterre alguém com a
frieza de uma vulgar pedra empurrada a um fundão do Tejo. E assim é porque todos os
dias chega gente da província, chega gente do mar. Negros, índios, ciganos, estropiadas
de guerra, loucos rejeitados pela família, crianças órfãs abandonadas à sua sorte,
mulheres que teimam em esperar pelos maridos que se foram um dia às partes de além,
à Índia, ou à terra brasilis, e por cá ficam anos a fio a consumir o veneno da sua
solidão. E sobre toda esta miséria humana, abundam ladrões e malfeitores que ora
matam ora morrem nas vielas escusas de Cata-Que-Farás, ou em Alfama onde têm fama
as tabernas e as prostitutas.
Hoje – porque o fio do pensamento assim o deseja – os putos topam o coveiro e
o ajudante a cruzarem o Rossio, ambos na sua missão de levarem mais um ataúde a
enterrar ao coval de Santa Ana. E para não variar, nenhum familiar ou amigo do defunto
acompanha o féretro, que é a oportunidade perfeita para mais uma partida destas aves de
arribação que vêm dos altos de São Roque a infernizar a vida aos que trabalham. Um a
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um, discretamente, colocam-se atrás da carreta. Fazem-no tão a preceito que o coveiro e
o ajudante não se apercebem destes movimentos concertados. E, numa dança
combinada, vão-se agarrando como lapas à traseira da carreta, com os pés de tal modo
cravados no chão que mais parecem travões de pau. Às alturas da muralha, já perto
porta de Santa Ana e só quando o puxo se torna pesado e teimoso, mais parecido ao de
um burro especado, é que o ajudante nota o esforço desumano que é preciso fazer. Aí
para e olha para trás. É nesse instante que o bando de putos explode numa revoada de
gargalhadas. O Espinha, que ainda é rapaz e por isso ajudante e mula-de-puxo da
carreta, custa-lhe ao desespero aquela zombaria dos mais novos. Por ele, havendo uma
pedra por perto, é certo que a usa com toda a violência contra aquele maldito bando de
putos armados em corvos.
– Perros tinhosos! Se vos apanho!...
Não apanha. Ninguém apanha em corrida e muito menos em voo os putos de São
Roque.
Mas se o destino do bando for o da Ribeira, a correria só pode desembocar nas
águas do rio para um banho refrescante. Muito gostam os putos de o fazer. E ele,
pequeno Jerónimo de asa aberta, é dos mais ligeiros no nadar. Vai até onde as forças o
levavam, quase sempre longe do areal, onde as naus fundeiam. E aí chegado, volta o
rosto para Lisboa, que, estendida à sua frente, mais parece pintada sobre as colinas.
Mede-a de ponta a ponta com o olhar e imagina como será dar-lhe um abraço tão largo,
tão largo, que nele caiba toda a extensão de casario. Assim, assim… E estica bem as
pontas dos dedos para que nada fique de fora, desde Cata-Que-Farás até à Porta da
Cruz.
É este abraço largo a Lisboa uma coisa só sua.
Nem ele, pela sua natural timidez, o revela aos outros putos que andam com ele
a boiar, pois certamente o mofariam por tão parva coisa de dizer e fazer. Afinal, quantos
deles perseguem a beleza das coisas que se escondem ao primeiro olhar? De todos eles,
que serão um dia homens-sem-perguntas, só o pequeno Jerónimo alcança um mundo de
perguntas-sem-resposta, onde muita coisa não cabe nos ensinamentos da catequese, nem
Deus está para se maçar a grandes explicações. O mundo que se avista do alto das
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palavras incompreendidas é um mundo belo. Belo, mas perigoso, até mesmo para um
pequeno e insignificante puto, qual passarinho-faz-de-conta…
Jerónimo, boiando à tona do pensamento, questiona-se de quantos abraços iguais
a este deu ele a Lisboa. De quantos e de qual foi o último que lhe deu. Não se recorda,
até já as memórias pueris lhe custam folhear. A única certeza que tem é que nunca mais
o fará, pois aqui lançado a este buraco no chão, só daqui sairá para sofrer a dor final da
sua morte.
Mas outro pouso seguro para os putos dos altos de São Roque é a Rua Nova dos
Mercadores. A que fica junto ao Paço d’el Rei. Tão próximo, aliás, que a família real
tem janelas por onde costuma espreitar a alegria fidalga da rua. Hoje, no entanto, estão
fechadas. Sinal evidente de que o rei não está em Lisboa.
Pois não.
O rei, que também é ainda moço, como moço é o chão da sua ventura, está em
África. Ele e toda a nobrezia de Lisboa. Mais um número incontável de homens válidos.
Todos empurrados para um destino incerto. Por isso só ficaram os muito velhos e os
muito novos; os pedintes e os doentes; os mercadores estrangeiros, estes alheios às
glórias militares do reino, quando muito preocupados pela demora do torna-viagem de
algumas das suas naus; as mulheres que andam na rua a vender água, peixe e pão; e os
negros, ainda moços, que se afadigam nos recados ou nas compras de uma qualquer
coisa que falte às suas senhoras.
Ao longo da Rua Nova dos Mercadores, de ambos os lados da rua, enfileiram-se
as logeas. Há as de todo o género: de ourives do ouro e da prata, de lapidários de
diamantes, de sapateiros e barbeiros. E tendas de tudo: de marcaria, de brocados,
veludos, cetins e toda a sorte de sedas, de louça de barro, de louça vidrada, de mantas de
retalho e de mantéis, de gaiolas de papagaios e passarinhos. Somam-se a isto as muitas
boticas e algumas livrarias.
Mas neste mostruário comercial também há espaço de sobra para as oficinas: de
carpinteiros, de marceneiros e entalhadores, de imaginários, de iluminadores de livros e
de cartas de marear, até de pintores afamados. E aqui sim, o puto – o que fugiu das
grades da Inquisição e anda preso ao fio do pensamento de Jerónimo –, encontra o seu
refúgio mais secreto. E sagrado. Aqui e nas ruas próximas, onde moram e têm oficina
99
alguns mestres pintores. Entre estes e os que moram ao Jogo da Péla, na freguesia de
Santa Justa, que também são grandes mestres, ele prefere os primeiros. Talvez por
serem estrangeiros e aceitarem com mais naturalidade a presença de moços que querem
aprender a arte da pintura. Nisto dessemelhando-se de portugueses e castelhanos, ainda
que o grande pintor Gaspar Dias, educado nas itálias, e também por isso o seu mestre
preferido, o tem deixado acompanhar a fábrica do retábulo que pinta para São Roque.
Talvez esta franquia de portas se deva a Catarina de Évora, esposa do pintor, por ter
particular afeição ao mocito da Mendoça, que é como ela o costuma tratar.
Outro dos seus grandes fascínios é o retábulo do santo mártire Vicente,
padroeiro de Lisboa. Por isso, sempre que anda de asa solta pela cidade, como é hoje o
caso, sobe à Sé. E aí fica, quanto tempo pode, a ver e a rever aquelas figuras que
parecem de carne e osso. Todos reais. Todos naturais. Tão naturais que certamente
escondem algum segredo. Até pelo modo austero como alguns insinuam defendê-lo. E
como era importante para ele saber desvelar, um a um, todos os rostos que estão
pintados nas dezasseis tábuas que compõem este retábulo sagrado. Porque muitos dos
rostos pintados – tem ele aprendido olhando-os fixamente – têm uma luz íntima no
olhar, como se quisessem revelar um segredo... É o caso do rosto sofrido do próprio São
Vicente. Que segredo tem ele para nos revelar? Corre fama entre os pintores de Lisboa
que o santo tem o rosto do príncipe Dom Afonso, filho de el rei Dom João segundo, o
que caiu do cavalo nos campos de Santarém e morreu sem deixar filho varão…
Jerónimo também concorda que o santo é moço demais para ser santo. Afinal, o seu
retrato terçado mais parece a de um puto tristonho a quem roubaram as asas da
felicidade.
E ainda que de lá não traga as respostas que procura, a simples contemplação das
tábuas do mártir Vicente, venerado por ilustres varões de outros tempos embarretados
de caraminholas de cor, tem-lhe mostrado quão bela e intemporal é a arte da pintura.
Não que os mestres consagrados de Lisboa sejam hoje piores a fazer e a ensinar. Pelo
contrário. Guarda com carinho, aliás, boas recordações do seu primeiro mestre, o pintor
António Pereira, com quem aprendeu muito do que sabe. Até porque não foi difícil
aprender o ofício, tal a sua generosidade para com os aprendizes. E muitos foram os que
saíram da sua oficina como bons oficiais-pintores. Como costumava dizer António
Pereira, a pintura aprende-se como se aprende o latim. Ressalvando, no entanto, que
não bastava saber todos os segredos do ofício. Era preciso ter também o dom de Deus.
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Sem tal dádiva, um pintor podia até ser bom oficial, até mestre apreciado pelos
encomendadores, mas nunca seria insigne. Pois não. O mestre Pereira tinha razão, pensa
agora Jerónimo, lá longe, no cárcere, lembrando o primor artístico do retábulo de São
Vicente. Deus escolhe a dedo os seus preferidos. Dá-lhes a graça de serem insignes para
fazerem o mundo mais belo com a sua arte, louvando com ela o próprio Criador. Mas
não há dúvida que Deus tem as suas preferências pessoais e ele, Jerónimo, não foi
decerto um desses agraciados com pitanças divinas.
Por um breve momento, Jerónimo, lá longe, remexe de novo no pensamento à
procura dos bocados que sobreviveram. E logo o seu puto reganha uma nitidez real e
palpável. Quase consegue sentir a textura da tela retesa no caixilho de madeira. Quase
consegue sentir o melaço da tinta entre os dedos. Quase consegue ouvir as práticas dos
seus esforçados companheiros no acerto das sedas dos pincéis. Ou as ordens de António
Pereira sobre qual o tom exato da cor desta ou daquela figura: o azul-céu para o manto
de Nossa Senhora, o vermelho sanguíneo para São José… Quase sente os cheiros
inebriantes a óleo, a grude e a alvaiade.
Há sons e cheiros que não se apagam da memória. Porque será?
E neste deleite está o pensamento de Jerónimo quando nos ouvidos do seu puto
rebenta um súbito borburinho vindo da rua. De um salto, todos os aprendizes se
levantam e correm à porta. Primeiro sem saberem a origem de tamanha agitação.
Depois, aos poucos, lá vão aclarando que o motivo de tamanho rebuliço é a notícia que
acaba de chegar à Ribeira. A dar novas d’el rei.
Jerónimo fecha ainda mais os olhos à procura da sua memória pelos olhos e
ouvidos do seu puto, aprendiz de pintor. E de repente vê-se envolvido num torvelino de
corpos tomados de dúvida e de espanto. O que se passa para que as velhas se esmurrem
aos gritos? Ouve-se distintamente a estridência dos seus berros como explosões em
série, alastrando pelo interior da cidade. E em pouco tempo a grita pega fogo aos sinos
das igrejas. Que tangem aflitos como que a acordar Deus, tarefa, aliás, desnecessária,
pois Deus não dorme, como todos bem sabem.
Chegam à Rua Nova dos Mercadores os que vêm dos lados da Conceição, da
Madalena, de Santo António, da Matriz… Rodeiam pelo Pelourinho Velho e desaguam
no Terreiro do Paço. Nesta enxurrada de rostos aturdidos, todos procuram saber novas
101
d’el rei. E por um breve instante velhos e novos, ricos e pobres, mendigos e prostitutas,
juntam-se numa só massa humana aos emissários que trazem notícias de longe. Mas,
para os que esperam algum consolo de palavras, alguma mitigação do susto, nada é pior
do que a notícia do desastre. Porque este desastre não trás consigo só a dor da morte,
que essa todos os dias ressoa pela cidade num ritual sem fim. Este, trás consigo a ferida
em sangue dos que se perderam nos campos de África sem nunca mais puderem
sentirem na face a luz da sua pátria. Trás a angústia dos que ficaram cativos. Trás a
raiva da humilhação da derrota às mãos do infiel. Trás, sobre todas as perdas
individuais, a perda maior - a identidade soberana de um povo.
E agora? Quem vai governar esta gente que sempre precisou de um rei-paiprotetor, ungido pela graça de Deus para reger a justiça entre os homens e guiá-los à
salvação das suas almas?
Lá longe, no seu buraco insignificante, pensa Jerónimo como tudo é mutável.
Transitório. Como um sol feliz que se apaga atras de uma nuvem mais escura. Ontem o
cortejo da chaparia reluzente, dos pendões da vitória hasteados no delírio da festa. Hoje
a cinza e o pó. O sangue sobre o ouro. Ontem, a exaltação de Cristo em Ourique no
milagre da fé simbolizado na espada e no escudo do rei-fundador. Hoje o vazio amargo
da cruzada perdida. Que já sabe a messianismo…
Subitamente, esta ridente manhã de agosto de mil quinhentos e setenta e oito é
esmurrada pelo destino. E tudo porque lá do outro lado do mar, em África, nos chãos
malditos de Alcácer Quibir e ao contrário de Dom Afonso Henriques nos vitoriosos
campos de Ourique, el rei Dom Sebastião acaba de perder a guerra contra o Mouro. E o
pior é que ninguém sabe se o rei está vivo. Ele e todos os que o seguiram na sua
insensata jornada.
102
TREZE
O rei morreu. Era jovem demais para morrer. Desejado demais para se perder
num instante fatal. Mas morreu. Morreu como uma frágil e bela flor pisada
acidentalmente por um jumento. Que até a história dos grandes, ainda que adornada de
boa letra, está sujeita aos mesmos mistérios de Deus. E querendo o Altíssimo que assim
seja, não hesita em soprar de morte aqueles que insuflara de graça para reger as nações.
Porque nesta lotaria celeste, onde se nasce e morre desde que o mundo é mundo, nem
mesmo os reis ungidos têm manhas para vencer o anjo-da-morte.
Morto o Desejado Sebastião, veio o Casto Henrique. Morto Henrique, veio o
Prudente Filipe. Veio António cercar os muros da cidade. E foi vencido. O reino
sossegou. Mas não o patriotismo. Não o sebastianismo nas trovas escondidas do
Encoberto.
A marcha do tempo volta ao ano de mil e seiscentos. E Lisboa consome-se nos
ardores de agosto, agora mais do que nunca a cheirar a vómito e a incenso. Vá lá saberse porque querem alguns que Lisboa esteja debaixo de um temperadíssimo céu e de um
benigníssimo signo. Só se for para os malditos corvos.
Esta noite a Confraria da Misericórdia organiza pelas ruas de Lisboa uma
soleníssima procissão em honra de Nossa Senhora. Fá-lo com estado e devoção para
que a Virgem interceda pela cidade e a mantenha protegida da modorra, pois teme-se
que finda a trégua do verão a pestilença reapareça com toda a sua cega crueldade. E o
pior é que se os físicos já não sabem mais o que fazer e os santos protetores parecem ter
desaprendido de ouvir as súplicas dos homens. Nem São Brás, nem São Sebastião, nem
São Roque. Nenhum deles parece já interessado no esconjuro do mal, seja pelos muitos
pecados que ainda ensombram a cristandade, seja pela insuficiente manifestação de fé a
Deus e à Santa Madre Igreja. Seja ainda, como dizem os hereges luteranos, por serem
apenas bonecos de pau.
103
Por isso, a procissão de hoje, concorrida como está, faz lembrar a que se faz na
quinta-feira maior, antecedendo o dia da Paixão de Cristo. Só lhe faltam os
disciplinantes a mortificam a carne à chicotada e os que carregam às costas pesos
descomunais, cruzes de madeira, barras de ferro, blocos de pedra, que neste excesso
sobre-humano de imitar a dor de Cristo muitos acabam por fazer tristes figuras de
atlantes pagãos. No mais é tudo igual: um absurdo sofrimento, pungente de se ver.
Jerónimo, tolhido nos baixos da sua cela, pouco vê da procissão à passagem pelo
Rossio. Está aqui preso ao fundo escuro de um caixão de pedra, a feder ao que fede a
carne morta. Só pelos interstícios das grades e muito à distância consegue medir o seu
tamanho. Mas, que mais não seja, já vale o esforço a breve vista da luminária de velas e
candeias. Acrescem à explosão de luz os faróis de fogo, alimentados a estopa engraxada
em borras de azeite e sebo para dar bom lume, que é coisa para impressionar as almas
mais empedernidas, como começa a ser o caso da sua. Bem vistas as coisas, é um mar
de vidas perdidas a passo penitente, expiando culpas e rogando pela intercessão da
Virgem. Até é de perguntar se com uma tão ardente manifestação de fé, com um
tamanho rogo coletivo derramado pelas ruas Lisboa, não era para ter de Deus a
promessa inequívoca de um pequeníssimo gesto de misericórdia?
Depois da miríade de luzes desaparecer na Praça da Palha a caminho da Sé,
Jerónimo volta ao escuro da sua cela. Em silêncio profundo e à luz de uma pobre
candeia de azeite ceia alguns restos de pão demolhado em água, que outra coisa já não
consegue mastigar. Ainda tem uma cebola, um rábano e dois ou três figos espapaçados
que lhe sobraram do jantar. Estes, talvez os coma amanhã quando voltar a ter fome. O
préstimo do rábano não é culinário, tão só medicinal. Com ele faz lâminas finas que
coloca como emplastro nas gengivas para acalmar a dor.
E feito isto apaga a candeia e tenta dormir. Mas como? Está magro e doente.
Tem a boca numa lástima. As gengivas fedem a pus. As costas, essas, estão sulcadas de
laivos negros do chicote dos guardas do cárcere. O braço, que lhe desconcertaram mal
aqui chegou, permanece dorido e sem préstimo. E é impossível dormir de costas, pois
quando o tenta fazer é como se deitasse na grelha do martírio de São Lourenço. E
mesmo que consiga posição para descansar, os piolhos, os percevejos e os mosquitos
hão de aparecer para cobrar, à vez, o seu quinhão de sangue.
104
Sangue? Se estas miseráveis criaturas tivessem algum discernimento iriam picar
nas carnes suculentas dos inquisidores, bem nutridas e rosadas. Essas sim, iguarias que
valem o esforço de as procurar onde quer que estejam resguardadas. Mas não. Aos
senhores inquisidores nem os piolhos devem molestar, ou molestando devem ser
piolhos raros e especiais, pois se algum deles conseguir alcançar o sangue azul da sua
vítima sempre se há de distinguir, com vantagem, dos reles piolhos que andam ao
sangue dos condenados, sem certezas de o encontrar debaixo de carnes tão chupadas, e,
encontrando-o, sem certezas de ser sangue ou uma aguadilha deslavada e malcheirosa.
Tem ele certo e seguro que se fizesse agora uma das cinco sangrias anuais que os
sangradores recomendam, talvez a de setembro que é própria para os maus humores e
para os abcessos, pouco sangue jorraria da veia situada no lado esquerdo sobre a veia
arcal...
Por isso a noite promete ser longa e sufocante. E se vier como as todas as outras,
desassossegada de pensamentos obsessivos. Ou mais certo, assombrada de sonhos
funestos. E se assim for, lá vêm as fugas e as quedas. Os medos sem rosto a perseguir
sem piedade. E quando não é o sonho ruim da correria desalmada, é alguma tentação
insinuando-se na forma de um arrais do Inferno, que vem na barca de Punhete com a
sua gélida deusa da fornicação e da morte.
Pensamentos doces e felizes, como os do seu puto que lhe foge para as ruas de
Lisboa, é que não. Para isso acontecer precisaria de um grande esconjuro ao mal que lhe
tomou a alma. No limite um milagre que o seu Anjo-da-Guarda lhe quisesse trazer do
Céu, coisa de que ele já desistiu de pedir. Até porque os ministros de Deus têm em dia,
decerto, toda a contabilidade dos seus pecados. Seriam eles péssimos a fazer contas de
somar se agora, vindo do nada, lhe aparecesse um anjo de asas brancas, igual ao da
Anunciação de Maria… Mas Maria era pura e concebeu sem mácula. Ele é impuro e
fornicou em pecado. Até ele sabe que isso é mortal, quanto mais os ministros de Deus
que prestam contas todos os dias das incontáveis almas pecadoras que há no mundo.
Ultrapassadas as matinas e já o céu empoando toda a sua glória de estrelas, um
sonho mais reaparece a Jerónimo. Mas desta vez diferente. Talvez por sugestão do
martírio processional, ou da fé exaltada aos limites da carne. Um sonho que nasce com a
radiosa promessa de uma viagem numa nau bem armada. Que de grande e
embandeirada mais parece uma nau da carreira da Índia. Da Índia não pode ser, uma vez
105
que está prestes a zarpar do porto fluvial de Salatia Imperatoria, que é como os antigos
chamavam a Alcácer do Sal. E nesta nau entra Jerónimo despedindo-se de frei António
de São Francisco, ou de frei Francisco de Santo António, tanto faz, por não querer
acompanhá-lo nesta aventura. E nela entra, mas não sabe se por soldado ou capitão. Em
boa verdade, como rapidamente se dá conta, ele é o único passageiro. E assim até pode
ser capitão e piloto do seu destino. E também não sabe, ou talvez nem queira saber, a
que tempo pertence este sonho e esta nave que já vai de velas enfunadas pela barra do
Sado. Pode bem ser a de um tempo absoluto e indizível, habitado pelas cores da
harmonia e da concórdia. Mas também pode bem ser a de um tempo infestado de
corsários e inquisidores, ambos perseguindo, sem ponta de piedade, a carne e alma dos
que andam em terra e no mar. O que sabe, isso sim, é que a nau em que vai embarcado
como único passageiro singra num mar a perder de vista rumando a sul. E a bordo leva a
sua solidão. O que, desde logo, nada tem de parecença com qualquer sonho bíblico.
Nem ele tem jeito para fazer de conta que é um novo Noé, ungido pela obra
misericordiosa de um novo Deus, e assim transportando a salvação dos homens na sua
barca redentora.
Nada disso. É apenas um homem atormentado, levado numa grande nau que sai
pela barra do Sado em direção ao sul. Tão grande que nela pode caber um mundo. Mas
vai vazia. Perdida no deserto azul do sonho.
Mas o que era promessa de uma viagem aventureira, fosse para Sevilha, Roma,
Luanda ou Olinda de Pernambuco, afinal adensa-se em angústia solitária. Porque é à
solidão do mar que o sonho o aprisiona. E neste paradoxo de ser dono do seu destino,
livre para viver a sua liberdade, o sonho arrasta-o na solidão de um mar sem fim à
procura de um porto de abrigo.
E assim anda como se estivesse parado, dia após dia. Ao sabor do vento.
E quando já põe a hipótese de ser este o seu fim – que é ficar vivo para sempre à
procura da sua morte –, ouve uma voz distante como que vinda do porão da nau. Atenta
nesse súbito sinal de esperança. E logo exulta como um náufrago ante a visão da terra
firme. Desce a escada a passos hesitantes, com o coração a palpitar-lhe na mão. E a três
degraus descidos parece-lhe ouvir alguém que canta baixinho, quase segredando, uma
canção familiar. Lembra a que sua avó lhe cantava quando, ainda pequeno, adormecia a
seu colo. Coisa que confirma quando, aproximando-se o suficiente para ver e ouvir com
106
nitidez, dá de caras com uma velha entretida na costura. Tão velha e tão caduca que bem
pode ser a sua avó Isabel. Que canta enquanto pesponta uma roupa estranha e desusada,
que mais parece um… sambenito!
E sentindo-o aproximar, a velha, que mal pode com a cabeça de senil que está
por lhe pesarem os mais de cem anos, levanta-se como uma boneca de trapos puxada
por uma mão invisível. E diz-lhe como se esperasse a sua chegada:
– Eis o meu netinho que vem p’la roupeta nova!
E nisto, sem se saber com que manhas o faz, a velha enfia aquele vestido no
corpo de Jerónimo num só gesto. E logo de seguida, sem lhe dar tempo de reação, a
velha, por outra manha sua, embarreta-lhe uma carocha na cabeça ao modo de mitra de
bispo. E fazendo-o, sussurra-lhe ao ouvido com esta sinistra ternura:
– Que bem vos fica a gorrinha, meu filho!
Jerónimo não entende. Não reage. Só lhe ocorre subir ao convés para se livrar
daquelas vestes de condenado. E pousando os pés no convés nota que vem descalço.
Coisa impossível de ter acontecido sem que ele tivesse dado por isso. Só pode ter sido
outra manha daquela velha, sua avó.
E ainda antes de tentar despir tão horrenda vestimenta, dá de caras com três
mulheres que andam a acarretar lenha para junto do tranquete, ao jeito de pira
sacrificial. É, porque só pode ser, uma fogueira para supliciar alguém. E esse alguém só
pode ser ele. Mas como pode ser isso possível?
Jerónimo, aturdido pela vertigem de imagens, dirige-se às mulheres. E querendolhes gritar para que se expliquem apercebe-se que não tem voz. Ou tendo-a, parece não
ser suficientemente forte para que elas oiçam os seus berros.
E nesta aflição de gritar sons inaudíveis, descobre o rosto embuçado de uma das
mulheres. Para seu espanto é o rosto, igualzinho, ao de sua mãe. E as outras duas
mulheres, virando-se para ele e desvelando os seus rostos, são exatamente iguais aos das
suas duas esposas. E para sua inquietação e desnorte, as três mulheres parecem olhá-lo
sem surpresa, sem a mínima turvação de espírito. Até parece que se afadigam no
propósito de tudo ficar bem feito. Como quem diz: queremos uma morte digna e feliz
para este nosso filho e nosso esposo.
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E estando a pira terminada, pronta a receber o supliciado ao fogo, surge do nada
frei António da Anunciação, de cabeça aberta, escorrendo-lhe pela face dois fios de
sangue que logo recrudescem aos borbotões. Porém, indiferente à dor de quem foi
ferido pelos ferros da morte, traz um sorriso radioso e as mãos em paz enfiadas nas
mangas do hábito. E, trazendo nos lábios o beijo de Judas, diz-lhe ao ouvido como se
toda a esperança do mundo lhe irradiasse nos olhos:
- Vamos fugir?
E quando Jerónimo recua, como que incinerado de dúvida, surge das sombras o
deputado da inquisição Heitor Furtado de Mendonça, quase nu, com um toucado de
penas coloridas ao modo dos índios do Brasil. E vem a fumar uma torcida de tabaco.
Mas, subitamente, num gesto de penitência como quem implora misericórdia, ajoelha-se
aos seus pés. A pedir perdão?
Nada disto Jerónimo entende. O siso do mundo só pode ter adoidado de vez. Ou
então tudo isto não passa de uma tentação demoníaca, como aquelas que os santos
eremitas costuma suportar no desterro da sua alma. Talvez esta alucinação satânica
tivesse acontecido a João de Patmos quando lhe foi revelado o Apocalipse. Ou a
Jerónimo de Estridão tentado em sonhos pelas matronas de Roma…
Pergunta-se como é possível estar aqui toda esta gente ao mesmo tempo? E logo
virada do avesso: os que o odeiam a pedirem-lhe perdão, os que o amam a condená-lo à
morte.
Sem mais forças, curva-se em desespero como os que renunciam de si. Pede
pelas cinco chagas de Cristo que não o levem ainda. Só precisa de mais um dia. Um
simples dia. Não para bem viver a sua morte, apenas para bem morrer o resto breve da
sua vida.
108
CATORZE
Um dia mais de vómito e incenso. Sem notícias do Encoberto. Sem sinais do
negro Juízo.
Indiferente a tudo isto, indiferente à própria finitude humana, a manhã, como no
primeiro dia antes de tudo, desperta numa alvorada de pássaros. Parece desassossegá-los
o vermelhão do sol a nascer, parido do ventre da terra.
Agora uma fina poalha de luz entra pelo escuro da cela e esbarra no empedrado
da parede. Jerónimo, ensopado no suor da sua dor, não é capaz de se mexer. A noite foi
tortura pior que o trato da polé e do potro juntos. E dos destroços do seu sonho nada
mais resta do que um terrível azamboamento na cabeça.
Abre os olhos. Abre a sua alma cega à luz íntima da manhã. E, pouco a pouco,
tenta insuflar energia aos membros doridos na esperança que lhe respondam. O braço
esquerdo permanece morto, ou quase. O corpo, ainda que lhe rebente em dor como que
vergastado por um impiedoso chicote, lá consegue reagir a custo.
Já sentado, encosta-se à parede e tenta chegar à bilha de barro. Quando o
consegue fazer leva-a aos lábios ressequidos.
Dá uns goles. Devagar. Como quem fumaça um pensamento à janela da vida. E
por alguma razão aquele sabor, doce e fresco como se nele macerassem pétalas de rosa,
faz-lhe lembrar uma manhã de maio a reverberar nas arcadas do mosteiro de Alenquer.
De quando ele era aí professo e corria ao poço do claustro. E saciando-se do caldeiro,
enchia a bilha de barro que levava para a sua improvisada oficina de pintor de imagens.
Como eram felizes esses dias em que ele se sentia pintor. E quase nada frade. Em que a
sua vida tinha algum sentido, ainda que aprisionada a um convento, a uma regra e a um
mosteiro. É certo que para um religioso, voluntariamente escondido no deserto, a paixão
da carne continua a ser um tormento interior que só uma severa ascese consegue
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sossegar. Que só os rituais quotidianos e uma permanente celebração retrospetiva do
tempo sagrado podem ajudar a ultrapassar. E só ele sabe (porque Deus não o deve
saber) quanto ele suportou por não ter o calor feminino para partilhar o desejo da carne.
Ali, naquela minúscula cela do mosteiro de Alenquer, onde os sonhos se agigantavam
contra as paredes, abrindo-se em vulvas fundas de prazer… Mas mesmo esse estéril
deserto de pombas e de sombras era o seu paraíso inventado. Mesmo que tudo o resto
fosse insuportável disciplina. De gestos. De palavras. Bem se lembra daquele calendário
litúrgico anual, severamente consagrado aos santos mártires da fé, aos Doutores da
Igreja, aos momentos-de-fé da vida de Nossa Senhora e do seu filho carnal. A maioria
dele coincidindo com temporas e ladainhas, a marcar ciclos de jejum e abstinência.
Ora et labora.
Nesta mundividência cíclica e fechada, sob a estrita observância do silêncio,
trabalho e oração, o tempo era uma contínua recriação do modelo original. E a vida uma
permanente recapitulação. Sem dúvida. Mas era feliz. Assim, sem nada mais do que a
simples água do poço a cheirar a rosas, um pincel, algumas tintas e o respeito dos
outros. Nada sabe melhor ao pulsar criativo de um artista do que a consolação de se
sentir útil e respeitado. E quem lhe dera ainda acreditar nesse tempo piedoso e penitente
em que todos eram filhos de Deus-Pai-Criador, vindos ao mundo com o único propósito
de imitarem o seu arquétipo sagrado. Uma e outra vez. Insistentemente, até à suprema
consumação da cópia perfeita. Cópia perfeita! Como poderá ser ele alguma vez uma
cópia perfeita de um cristão, de um professo, de um insigne pintor. Como o pode ele ser
se a própria Igreja não é uma cópia perfeita da virtude cristã? Porque na Igreja
desaguam todos os dias avultadas rendas de missas, de sufrágios, de capelas e
herdamentos. De todo o tipo de doações e mercês reais. E o que dizer das indulgências?
Por isso a Igreja nunca quis ser pobre. Nem remediada. E até os franciscanos se
abastardaram. Porque não há perfeição na substância humana. Sequer na irmandade
cristã mais devota à pobreza. Para esta não bastaram sequer os exemplos de São
Francisco de Assis. Ele que, amado pelos pobres porque pobre como eles, renunciou aos
bens temporais em favor da verdadeira espiritualidade cristã, feita através do apostolado
da palavra e da fraternidade das ações.
Vita vere Apostolica.
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Pedagogia do exemplo deveria ser a conduta dos crentes na palavra de Cristo,
como Jerónimo aprendeu em pequeno nas aulas de catequese do capelão de São Roque.
No entanto, a Igreja não quer ser pobre. Como Cristo o foi. Como pobres não querem
ser os irmãos, irmanados em convento. Talvez por mera sobrevivência básica que nada
tem de espiritual. Porque a pobreza, para quase todos os católicos, só faz sentido aos
que são obrigados a vaguear. Aos nómadas. Aos deserdados. Não aos que criavam
raízes. Aos que fortificavam em comunidades de crentes. Por isso o governo
escrupuloso dos bens eclesiásticos não tem sido mais do que uma «cópia perfeita» da
vaidade e da usura. Nisto contradizendo os ensinamentos da palavra de Cristo. Porque o
cristianismo nasceu como mensagem universal da justiça e da esperança. Não admira
agora que a Igreja ande tão dividida no modo de intermediar a Deus e servir os homens.
E sem se perceber como podem viver juntos e sem ódios de morte aqueles que a própria
Igreja aparta em cristãos-velhos, cristãos-novos e luteranos…
Jerónimo regressa aos poucos do mar distante onde se perdeu, mas sem amainar
os vendavais que o desassossegam.
Agora a luz coada pelas grades da minúscula janela recorta de tragédia as
paredes da sua vida. Que é só vazio e solidão. E silêncio.
A chilreada de pássaros desapareceu como que assustada pela alegria do sol. Ao
silêncio dos galos madrugadores respondem os corvos. Grasnam uma e outra vez, como
que concorrendo à melhor estridência da manhã. A eles respondem os sinos do Angelus
tocados em São Domingos e logo ressoados pela cidade.
Jerónimo tenta ajoelhar-se apoiando-se num banco velho de madeira. E já de
mãos postas, virado à luz, reza para si:
Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et
benedictus fructus ventris tui, Iesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis
peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae. Amen.
Retornam os sons do mundo à cidade. A vida vai erguendo-se do chão como pó
levantado pelo vento. O Rossio, ali tão perto, retoma-se de chamamentos, de pregões, de
risos. De vozes que trazem notícias. Nada é pior para quem está preso do que as notícias
da liberdade, venham elas presas aos passos dos que correm, à voz dos que cantam,
111
simplesmente soltas na luz do sol ou no vento que empurra as velas das naus. Para
longe…
Nas paredes ouvem-se as familiares pancadas a ecoar pelas celas. Jerónimo
responde ao cumprimento batendo na parede com a sua mão direita que é a que tem em
melhor estado. E pela impressão que lhe dá, todos estão vivos. Ou mortos-vivos, como é
o seu caso.
Depois de distribuída a ração por todas os prisioneiros num ritual mecânico
mais próprio de um canil, o carcereiro regressa com ordens para o levar a fazer as
barbas, coisa que para Jerónimo, habituado como está a não dar crédito a estas súbitas
chamadas, é mais uma desculpa para o espancarem, seja à saída da porta da cela, no
corredor ou em qualquer outra sala. Já não se importa. Tem o corpo tão dorido que o
simples gesto de andar é, em si mesmo, um tormento.
Mas hoje é mesmo para o sentarem numa cadeira de fundo de buinho, o que,
valha a verdade, sempre é mais conveniente à lástima do seu corpo. Para Jerónimo,
apesar da demorada espera, até lhe sabe bem este inesperado conforto. Mas o que ele
não sabe é que o «barbeiro», finalmente aparecido à porta, não vem pelas suas «barbas».
Na verdade é um familiar que vem a mando da Mesa. É que Heitor Furtado de
Mendonça sabe que ele, réu, é bom debuxador e pintor de óleos, não só por o saber das
sessões mas porque o ouviu dizer ao prior da matriz de Olinda, quando por lá fez a
visitação.
Sim, é verdade que ele, Jerónimo, por lá passou e ajudou às obras da matriz do
Salvador de Olinda, pintando algumas capelas ao tempo da visitação. Mas isso que tem
a ver com a sua presença naquela sala para a fazer as barbas? O familiar, homem
fidalgo, pelo menos de cara e roupa, explica-se com estranha delicadeza: É necessário
fazer o debuxo do homem que vai a relaxar no auto de domingo. Debuxo tomado do
natural que é como devem ser representados na samarra os que vão a relaxar em carne.
E que para isso lhe hão de trazer tudo conforme ao ofício.
Jerónimo, que só tem um braço capaz, tenta subitamente demonstrar com um
gesto ridículo a sua incapacidade de mãos. E até se contorce com dores quando obriga o
braço esquerdo a obedecer-lhe.
112
– Veja, vossa senhoria, que mais não posso fazer para o ajudar – explica-se
Jerónimo tentando um gracejo impossível, como se fosse ele o culpado daquela súbita
falha mecânica.
Mas o familiar confronta-o com este inesperado cinismo:
– Tendes a outra boa… e é com ela que pintais, não é?
Jerónimo encolhe os ombros como quem desiste de lutar.
O familiar, que não tem nome nem nunca o terá neste reino das sombras,
pergunta com uma voz de quem aprendeu latim e há de saber cantar bem o miserere:
– Havemos trato?
E assim fica o mundo suspendo por alguns segundos, como se o coração
deixasse de bater.
Jerónimo não sabe o que dizer. Mas não dizer nada pouco ajuda à sua desgraça.
Lá se decide abanando a cabeça num gesto de quem consente o impossível.
O familiar compraz-se com a resposta:
– Muito bem. Pero Anes vos dará o necessário ao debuxo.
Pero Anes é o guarda, de faces avermelhadas e olhos papudos que mais parecem
useiros no vinho. E bem pode ser verdade esta suspeita, pois o que para aí não falta em
Lisboa é gente tomada da bebida. Bêbado ou não, a sua fama de ruim rês é bem
conhecida de todos. Mas agora todo ele se adoça ao fidalgo quando este lhe dá um
aceno reverente de despedida. Não há nada mais desprezível no comprazimento humano
do que o de um patife mimado pelos que o podem mandar matar.
Jerónimo vai precisar de papel, de uma pena, tinta e tinteiro. E se for para pintar
sobre a própria samarra, que lha tragam com as ordens do que nela há de ficar escrito,
que ele o escreverá em boa letra.
E tintas e pincéis… E uma mesa maior.
Numa questão de minutos, Jerónimo que vinha ao barbeiro julgando ser
desculpa para o admoestarem à vergastada, afinal nem castigo nem barbas. O Santo
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Ofício tão severo para com as suas culpas, pede-lhe agora um «favorzinho». Não,
decerto, por falta de quem queira fazer aquele mister. Muito menos para poupar ao
Santo Ofício alguns magros reaes. Tão só porque os senhores inquisidores tendo esta
inesperada «prata da casa» à sua disposição não a querem desaproveitar.
Talvez isso lhe sirva para atenuar algum último tormento, pensa Jerónimo como
quem, no meio dos destroços, salva uma réstia de esperança ao muito que acaba de
perder. Mas à boca chegam-lhe os ácidos da raiva. Queimam-lhe a língua. E muitas
palavras ficam por dizer, entaladas na garganta. Suprema ironia, esta: o seu préstimo de
pintor só lhe é reconhecido às portas da morte e logo para retratar um morto-adiado que
irá a queimar no próximo auto-de-fé.
– Onde está quem é para debuxar? – pergunta Jerónimo quando lhe reaparece o
guarda abraçado a um cesto de vime cheio das coisas conformes ao ofício.
Está ali perto… Do outro lado da parede, visível apenas por um buraco onde
cabe um dedo, que é o suficiente para fixar o essencial do rosto da vítima sem que ela se
aperceba de que está a ser observada, e muito menos retratada por um condenado como
ela. Coisa que nunca será um verdadeiro serviço à arte, quando muito um mero serviço
à hipocrisia. Também quem neste antro de decadência e aleivosia se importa que a arte
seja coisa nobre e sublime? Lá fora até pode servir para glorificar Deus e as suas
virtudes celestes, os santos, os mártires e os doutores da Igreja. Mas aqui dentro, ao
servir o terror e a iniquidade, a Arte, que já é o Belo e a Ideia do seu criador, renega-se a
si própria. Ao prestar este serviço à Arte em nome de Deus, Jerónimo pensa por um
instante que ela também pode servir as manhas do Diabo. E se for este o caso de que
serve a Arte aos homens se ela apenas for divina nas mãos do grande Miguel Ângelo?
Jerónimo, ainda que com muita hesitação moral, levanta-se a custo a espreitar
pelo buraco da parede. Coisa que faz com a dificuldade de quem observa uma dada
estrela no firmamento, habituando a vista à luz e a cabeça à ideia.
Insiste, afastando e aproximando os olhos da parede. Finalmente a imagem
chega-lhe aos olhos, ainda que enevoada. Com dificuldade lá consegue focar o rosto de
quem há-de retratar: uma cara magra de tez amarelada, nariz um pouco grosso, olhos
fundos e pequenos, barba escura de abandono e infindas rugas de miséria. É, visto de
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qualquer ângulo possível, um rosto de quem padece o insulto da morte. Tão natural no
seu sofrimento que bem pode ser o seu próprio retrato fronteiro visto ao espelho.
Jerónimo regressa à cadeira de buinho, agora ladeada de uma mesa de bom
tamanho que lhe trouxeram dois servidores negros. E sobre ela, para seu espanto, além
do papel, da pena e da tinta, está um quartilho de vinho numa escudela de barro, mimo
que lhe custa a entender o que é. Pode bem ser a sua pitança, deduz ele, até pelo olhar
regalado do guarda quando Jerónimo procura o significado daquela «surpresa». Visto
assim, purgando-se-lhe a hipocrisia, até parece um gesto nobre da Santa Inquisição.
Bem sabe Jerónimo que com papas e bolos se engana os tolos.
Em todo o caso, sem nunca arremedar um leve gesto de desagrado, sem nunca
usar de uma palavra que lhe escape do desconforto da alma, Jerónimo começa a debuxar
sobre o papel com tanto empenho como se a um verdadeiro artista fosse pedido o
debuxo de um rei. E neste faz-de-conta, finge igual serenidade, finge igual
concentração. Por três vezes se levanta a ir ao buraco da parede perscrutar o seu
«modelo». Tarefa estúpida, pois só um pintor insignificante espreita ao buraco habitado
pela insignificância do seu modelo. Só valia o esforço se o seu modelo fosse uma ninfa,
daquelas que se desnudam na margem do rio para os seus banhos íntimos, sabedoras de
que os deuses as vigiam e por isso cumprindo bem o seu papel de jogadoras encartadas
no jogo da sedução. Serviria ao propósito a sua Baltezara, castelhana de Sevilha, com o
seu abastado peito, as suas coxas torneadas, a sua lânguida sensualidade de gata de
telhado, arrastada à cama do vício pelo íman do cio. Nada disso. Apenas um desgraçado
sem graça, esfrangalhado de dor, endurecido de raiva, de cara disforme, que se não
tivesse uma sobrancelha mais parceria a pobre Maria de Faria.
E assim, perscrutando pelo buraco da parede, Jerónimo vai fixando a imagem do
que vê. Ou finge ver. Linha após linha. Primeiro os contornos gerais do rosto e alguns
traços onde nascerá a boca, o nariz e os olhos. Depois traços mais densos, a dar um
sopro de vida àquela figura anónima que se vai extinguindo, aos poucos, do outro lado
da parede. Naturalmente, nunca saberá o involuntário «modelo» que aquela imagem
nascida das mãos e do olhar furtivo de Jerónimo é mais o debuxo do observador do que
o do observado. Porque o rosto que vai surgindo na folha de papel é o de um homem
sem nome, a esvair-se a vida de si. E a pouca que lhe resta fulgura-lhe na face mas
apenas como se nela ardesse na pressa de a abandonar. Na verdade, aos dois homens,
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em lados opostos da mesma parede, tanto faz que o debuxo seja o retrato do debuxador
ou do debuxado. Para todos os efeitos é apenas o retrato de um homem que padece o
sangramento da vida no corredor da morte.
O que para o caso serve muito bem…
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QUINZE
A tarde de quinta-feira deste último dia de agosto do ano do Senhor de mil e
seiscentos está reservada à vistoria da obra do Auto. Que é tarefa grave e ponderada. E
por isso entregue ao inquisidor da primeira cadeira e ao deputado mais antigo do Santo
Oficio, coadjuvados por representantes das justiças, familiares da Inquisição e outra
gente principal da cidade. E porque a missão é grave e ponderada, todos se juntam nos
Estaus da Inquisição, ao Rossio, para, em cortejo de muita cortesia, se dirigirem à Praça
da Ribeira. Operação demorada, ela própria, pois que o lustro necessário ao desfile das
montadas e ao arrumo da infinda criadagem gasta horas à paciência de quem organiza,
meticulosamente, a saída ordenada de tanta senhoria.
Bem vistas as coisas, esta vistoria à obra do auto-de-fé que se vai realizar na
Praça da Ribeira é o primeiro arremedo público da solenidade de domingo. Não que o
«público» desconheça as ditosas vontades do Santo Oficio, pois todos sabem, pelo
menos desde a missa de domingo passado, de que se vai representar na Ribeira mais um
auto e que o enredo é a costumada «prova de fé». Sabem disso os que o ouviram da
boca do prior e os que «aprenderam as letras», pois se há coisa nova que se pode
comentar em Lisboa é que este auto foi publicado pela primeira vez em letra de forma,
que nisto talvez seja a primeira edição impressa no país de um «semanário» de notícias.
Na Ribeira, entretanto, já faz duas semanas que oficiais de carpintaria e
servidores, a mando de Francisco Álvares, mestre carpinteiro, erguem o grandioso palco
onde terá lugar o auto-de-fé. Grandioso, não que o exija a quantidade de penitenciados e
relaxados em carne e em estátua, sessenta e oito ao todo, número de grandeza que,
ainda assim, já foi ultrapassado pela Inquisição de Lisboa várias vezes. Mas porque está
garantida a presença das mais altas dignidades seculares e eclesiásticas do país, que do
vice-rei para baixo são várias dezenas as que precisam de cómodos próprios.
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E não se pense que tais cómodos sejam só cadeiras de espaldas encouradas,
ainda que a sua colocação necessite de cuidados especiais para evitar qualquer melindre
pessoal em matéria de precedências (logo agora que o país tem aos seus comandos gente
estrangeira, segundada por portugueses que tudo fazem para não desmerecer das graças
de Sua Majestade, Filipe, o Pio, agora sucedido no trono Ibérico a outra Sua Majestade,
Filipe o Prudente). Não: estes cómodos são espaços funcionais e, como tal, de
imprescindível utilidade aos diferentes momentos da festa e aos diferentes atores que
nela irão intervir. Desde logo dois camarotes, um para o Corregedor do Crime da Corte,
outro para o Meirinho e oficiais da justiça secular. Acrescidos de duas casas, a do
Secreto para ouvir as confissões, se as houver in extremis, e a da Relação para o caso de
necessidade de algum julgamento de última hora. E ao número de cómodos junta-se o
mobiliário de função e de aparato, como bancadas para os penitenciados e familiares,
um púlpito e dois altares: um próximo da tribuna principal, com a função de altar-mor,
outro no centro do placo, escadeado, onde irão ficar a cruz de madeira que preside às
audiências da Sala do Despacho e quatro missais.
E se todos estes cómodos fazem parte da cenografia do espetáculo, por onde
fluirão os diversos passos do enredo, outras dependências são de capital importância
para os convidados da festa. Afinal, ainda que tudo isto seja feito a pensar na justiça
divina, quem aqui vai estar sentado, horas e horas, não são santos nem deuses, mas
homens. Homens de humanas e imprevistas necessidades fisiológicas. Por isso, no
aperto de uma dor de barriga, de uma bexiga mais cheia, é sempre bom ter por perto
umas necessárias ou mesmo um pipo-urinol.
Isto no que respeita ao despejo dos fluídos corporais. Porque para o recheio e
conforto dos estômagos fidalgos, a festa não dispensa um tinelo de bom tamanho, não
vá o Auto acabar a desoras, que é coisa sempre possível de acontecer como todos bem
sabem. Mas mesmo que tudo corra célere, mal seria que tantos e tão excelsos
convidados não tivessem direito a uns entreténs-de-boca para dejejuar das entediantes
confissões de culpa dos penitenciados. Na verdade, não são simples entreténs-de-boca,
são uma verdadeira comezana do bom e do melhor. Na grande mesa corrida, ao jeito de
uma comprida cornucópia, está previsto desaguarem todos os mimos conventuais da
cidade. Ele serão maçapães brancos, ovos reais de alforge, caixas de manjar real, doces
de abóbora coberta, marmelada em grandes talhadas. Ele serão géneros alimentares
variados pagos pelos generosos cabedais da Santa Inquisição: fragões assados, perus,
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caça variada e canastras fruta da época vinda do termo de Lisboa. Ele serão os
generosos vinhos de Colares, que a simples água da fonte, ainda que de boa fama como
é a de Lisboa e muito indicada para as febres, fígado e pedras, estão os lisboetas
saciados.
Chegada a opulenta comitiva aos chãos areentos da Ribeira, as vistas não são
ainda as finais. Mas não há razões para duvidar de que o fim está prestes, como
prontamente o encarregado das obras se apressa a dizer, mesmo antes de lhe
perguntarem. Tem razão o homem: ao corpo da obra falta acabar apenas coisas meúdas.
Cortar e bolear aqui. Acabar de soalhar acolá. O resto virá de véspera para não ficar
muito tempo ao sol e ao pó. Estão neste caso o cruxifixo da Sala do Despacho, as
tapeçarias da Sé e da Casa Real que se trarão para decorar as tribunas principais e os
panos que toldarão alguns camarotes. Em suma: está como Deus quer que esteja,
faltando tão pouco para a festa começar.
Depois de uma vistoria atenta, ao inquisidor e ao deputado também nada está
que lhes desagrade. Também não é de esperar que haja alguma questão grave por
resolver, pois não passa pela cabeça daqueles que aqui trabalham negligenciar algum
pormenor da empreitada. Seja no fazer, seja no dizer. Com um encomendador destes
quem é que se atreve a não cumprir o contrato? A folgar mais do que a conta. A
reclamar de algum tostão recebido a menos? Até um simples imprevisto, desculpável
por mil razões alheias, é de evitar quando o patrão é o carrasco. Pois bem sabem os que
cá andam a soldo que um dia destes podem ser eles os primeiros a estrear o tavoado
novo do palco. Basta alguém ouvir-lhes uma palavra suspeita, uma simples dúvida
deixada escapar sobre uma santa verdade…
Mas podem estar de consciência tranquila os carpinteiros, os servidores e os
muitos mariolas que vieram ao carrego da madeira. Em certa medida até podem estar
orgulhosos do aprumo do cadafalso assente em poderosos mastros, à altura de dois
homens de pé. Da perfeição das escadarias que mais parecem feitas de pedra branca de
Estremoz, não fosse denunciá-las a cor do pinho e o cheiro resinoso que liberta por ser
madeira nova. Até do alinho do tabuado e da perfeição do altar-mor. E, querendo Deus,
cá estarão todos no domingo. Não para zelar pela sua boa obra, que essa, de firme que
está, não é como o monte de Santa Catarina que, há três anos, caiu para o rio levando
consigo o Cais das Negras. Mas para gritar e escarnecer e, se for caso disso, ajudar a
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lançar à fogueira os relaxados mais renitentes. Pois enquanto se insulta e cospe no rosto
dos que vão ao suplício, por culpas só confessadas a Deus, a morte anda entretida e vai
passando d’arredor… Deus nos livre!
E para quem julgue que foi à toa a escolha deste domingo para a realização do
auto, desengane-se. Porque tudo tem uma razão de ser. Ponderável e grave. Podem até
ser razões pouco inteligíveis ao entendimento dos que se acotovelam nas ruas para ver
passar o desfile processional dos condenados. Para esses, pode ser em qualquer altura,
de preferência todos os dias do ano. Mas para a elite que governa o secular e o espiritual
a escolha de uma data é sempre imposta por razões que assistem aos mistérios de Deus e
à sua infinita glória. Por isso, este domingo de três de setembro de mil e seiscentos é,
para as contas de Deus e da Igreja, um dia de evocação do martirológico romano.
Porque em Roma é dia de Santa Serápia, virgem de Antioquia, mártire que foi moída a
pau e degolada. E em Corinto dia de Santa Febe, da qual faz menção o Apóstolo São
Paulo, escrevendo aos romanos. E em Aquileia dia das santas virgens mártires Eufémia,
Doroteia, Tecla e Erasma, as quais, em tempo do imperador Nero, foram mortas à
espada depois de muitos tormentos. E em Cápua dia dos santos mártires Aristeu bispo e
Antonino Melino. Em Nicomedia dia de Santa Basilissa, virgem mártire, a qual sendo
de nove anos de idade, na perseguição de Diocleciano depois de vencer com a graça
divina açoutes, chamas e feras, estando em oração, deu o espírito a Deus. E em Córdova
dia de São Sandalo, mártir, e dos santos mártires Aigulso abade no mosteiro de Lirins e
de seus companheiros monges, os quais, depois de lhes cortarem as línguas e vazarem
os olhos foram degolados. E por toda a cristandade dia da consagração do incomparável
S. Gregório Magno em sumo pontífice, o qual obrigado a tomar sobre os ombros o peso
da dignidade, do sublime de seu trono alumiou ao mundo com os mais esclarecidos
raios de santidade.
É por isso que, como se verá na pregação de frei Manuel Coelho, este dia do
Senhor, coincidindo com o terceiro dia de setembro, foi escolhido com o propósito de
celebrar o nome de São Gregório Magno, papa e Doutor da Igreja. Aquele que salvou
Roma da peste – coisa, aliás, de louvável pertinência –, que lutou contra a heresia de
Inglaterra – tópico também ele de incontornável atualidade, pois ainda em maio do ano
passado a câmara de Lisboa pediu ao rei que se fechassem as portas da cidade que se
tivessem que cerrar por se temer de a demandarem os inimigos, ou seja, os mesmos
ingleses. Mas sendo Gregório Magno o primeiro dos Gregórios a sentar-se na cadeira de
120
São Pedro, o seu nome também recorda, por providencial coincidência, outro Gregório,
o IX, criador da própria Inquisição.
É por isto que, pensadas todas estas coisas, mandadas fazer a preceito todas as
outras, que imprevistos podem ensombrar uma festa como esta? Nenhuns. Nem mesmo
aquele que se costuma confiar a São Pedro, patrono involuntário da meteorologia só por
ter à sua guarda as chaves do Céu. Porque, seja pela celeste providência de Pedro, ou
pela simples razão de que nesta altura do ano é raro fazer mau tempo, o certo é que até o
dia promete ser formoso, como só um dia jovem de Setembro o sabe ser.
E sem nada que perturbe este renovar da fé cristã, sem nada que manche a
autoridade dos que mandam no secular e no espiritual, está tudo pronto para a festa da
humilhação e da morte, que é serviço a Deus e à Santa Madre Igreja.
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DEZASSEIS
Na rua da Barroca, ao Bairro Novo de São Roque, uma das casas de maior
nobreza continua a ser a de Catarina de Mendonça. Não que seja uma casa nobre, bem
entendido, nem os nobres de condição as têm aqui. Mas destoa da monotonia de
casebres e pardieiros que nasceram à volta destes cabeços de pedra, por não haver mais
espaço dentro dos muros da cidade.
Vista de perto, é uma casa sobradada, de paredes acafeladas e apinceladas, com
pátio, quintal e poço e onde não falta um pequeno oratório dedicado à Sagrada Família.
Nas casas térreas há um pequeno cómodo ao lado da casa do carvão onde se agasalham
dois criados cativos, comprados ainda no tempo da Rainha Dona Catarina, que Deus
haja. São por isso escravos velhos, ambos cafres de Moçambique que falam bem o
português por terem vindo muito pequenos para o reino. São eles que fazem a lida da
casa, seja nos arrumos e limpezas, seja nas compras domésticas ou nos mandados lá
abaixo, que é como quem diz à Baixa. A estes junta-se uma negra de Manicongo,
também velha, mas já forra, não moradora, que só vem quando necessário às tarefas da
cozinha e da roupa.
No piso sobradado, que é onde ficam os cómodos mais reservados da família, a
sala maior tem os luxos de uma chaminé, chão ladrilhado e uma escada de madeira que
dá para um eirado com boas vistas para o rio. É nela que passa a maior parte do tempo
Catarina de Mendonça na companhia da sua centenária mãe, já completamente caduca
mas ainda de muito boa boca. Aliás, no comer, a avó Isabel ainda dá bem sentido à
expressão que muitos usam por este tempo: ninho feito, pêga morta!
Estando aqui na manhã do dia oito de setembro do ano de mil e seiscentos, dia
da Natividade de Nossa Senhora, recebe a notícia por um dos escravos que uma mulher
de Santo António do Tojal acaba de chegar à porta e que lhe quer muito falar.
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– Que me quer essa mulher? – pergunta Catarina, ajeitando a mantilha de tafetá
à volta da cabeça.
– Vem por notícias de vosso filho mais novo – diz-lhe o escravo, como um
sorriso faiscante como se essa notícia também o comprazesse.
Catarina desce ao encontro da mulher que espera do lado de fora da porta.
Depois de se aperceber do seu aspeto honrado, manda-a entrar. É que nesta Lisboa
mestiça, exposta a toda a sorte de gente estrangeira que nela vêm acarrar, uns por mar
outros por terra, nunca é demais ter cautela com os estranhos que batem à porta. Mas
esta mulher, já viúva, como bem se vê pelo vestido e mantilha negra que a cobre, só
pode ser cristã-velha e de bons princípios católicos. Basta olhar para o crucifixo de ouro
que exibe ao peito para ter a certeza de que a sua fé é igual à sua honrada condição
social. Chama-se Simoa Rodrigues e trás com ela um mocito negro, cativo, vestido de
roupeta castanha, gorra vermelha e camisa branca desgolada. Na cara bochechuda
brilham-lhe uns olhinhos meigos, mas curiosos.
Catarina de Mendonça que sempre aninhou crianças em sua casa, talvez mais
pelo seu temperamento do que pela sua educação católica, ainda que seu pai foi criado
do bispo do Algarve, não hesita em puxar a si o rapazito escravo perguntando-lhe pelo
nome. Ao que a Simoa Rodrigues se apressa a responder por ele:
– Jerónimo.
– Ah, como meu filho mais novo – diz Catarina de Mendonça, apanhada de
surpresa.
– Sim, como seu filho… – responde Simoa Rodrigues, fazendo um sorriso
cúmplice.
– Conheceis então Jerónimo, meu filho?
– Pousou em minha casa, trabalhando numa retábulo que lhe mandei pintar em
minha capela.
– Sabeis então como ele nos desonrou a todos por graves culpas a Deus? –
pergunta Catarina, embargando-se-lhe a voz.
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Simoa Rodrigues acena com a cabeça sem encontrar palavras de consolo. Mas
como Catarina também se fecha em silêncio, ela resolve justificar a sua presença.
– Vim de Santo António do Tojal a Lisboa e me disseram que vos poderia
encontrar aqui…
– Sabeis, decerto, da pena e culpas de meu filho? – Atalha Catarina como se
retornasse à vida.
– Que Deus o ajude! – replica Simoa Rodrigues, benzendo-se.
– Não há caminho que o traga a Deus e à salvação de sua alma – conclui
Catarina, fixando os olhos no chão. – Eu e meu filho mais velho bem lhe enviámos
cartas pela sua continuada apostasia. Só Deus sabe quantas vezes eu roguei a São
Roque, a Santa Justa, ao mártir Vicente, para que o trouxessem à luz da santa fé…
– A Santíssima Trindade saberá iluminar-lhe o caminho de volta a nossa fé –
responde Simoa Rodrigues, tentando palavras de conforto.
– Dizem-me que se parte amanhã para as galés a cumprir a sua pena. Desde o
Auto que não há um só dia que não rogue a Nossa Senhora para que lhe perdoe tantos
e tão ruins pecados e que lhe faça abrir os olhos da alma.
E dito isto, Catarina de Mendonça vira-se de novo para o pequeno cativo, de
olhos iluminados:
– Que traz ele no regaço?
Simoa Rodrigues, baixando-se um pouco para agarrar o rolo de folhas que o
rapaz tem abraçado contra o peito, dá a resposta:
– São desenhos de vosso filho que lá quedaram esquecidos em minha casa.
– Assim tantos? – surpreende-se Catarina de Mendonça, segurando na mão com
alguma dificuldade aquele rolo de papéis cintado por uma fita de seda vermelha.
– Aqui vos deixo por vos aprazerem mais a vós do que a mim, pois tendo-os
convosco sempre vos lembrareis de vosso filho nesta hora de dor.
– Antes fora meu filho que vós trouxésseis a mim, que os seus desenhos.
124
– Se eu o pudera fazer, trá-lo-ia sem desprazer.
– Lá morrerá meu filho no mar, doente como está… Deus tenha misericórdia
dele!
E, regressando à face de Simoa Rodrigues, diz no tom de apaziguamento
interior:
– Não esquecerei vosso grande trabalho de querer fazer alegre um rosto de uma
mãe quando o seu coração está desfeito. Ide com a paz de Deus.
E, chamando um dos criados da casa que por ali anda perto a acarretar uma
pouca de lenha para o fogão, diz:
– António, trás um vaso de água a esta senhora e a Jerónimo umas maçãs…
dessas boas, camoesas.
E virando-se para o pequeno cativo, que a espera já de olho arregalado e de
incontido sorriso no rosto como que pressentindo palavras doces de conforto, diz-lhe
como se lhe segredasse ao ouvido:
– São as maçãs que meu filho Jerónimo levava quando se ia ao estudo do latim.
Pudera eu voltar a ver seu rosto feliz, por elas, como ora o vejo a ti…
125
DEZASETE
Resplendendo de sol e calor, este dia do Senhor de três de setembro do ano de
mil e seiscentos vem bem ao jeito do gáudio popular. De todos as partes de Lisboa, de
todos os lugarejos à sua volta e até da outra margem, este auto da fé será o
acontecimento do ano. Até porque tendo sido o auto de noventa e nove à porta fechada
por causa do interdito da peste, o povo vai certamente querer desforrar-se de tão
prolongado jejum. Sobre tamanha alegria, comprazida por novos e velhos, poucos
podem censurar. Talvez os estrangeiros, que tendo as suas crueldades para com os
ladrões e facínoras, não chegam a este requinte de purgar o pus aos suspeitos da fé.
Porque a sua fé, ainda que católica como os católicos das Espanhas, é bebida de fonte
cristã mais cristalina, por isso mais irmanada no respeito pelo semelhante. Nem eles
entendem muito bem como na Igreja de Deus existam papas e eclesiásticos mais tiranos
que os leigos, já para não falar da riqueza que muitas ordens religiosas acumulam, não
guardando a pobreza dos seus instituidores. Mas o povo, para quem Deus e Igreja
emanam a mesma luz redentora e que a riqueza que exibem é expressão do seu poder –
até porque está ainda para chegar um poderoso que não traga embainhada a sua espada
de ouro –, o que mais quer e o que mais estima são estes folguedos aos dias do Senhor.
E quantos mais dias de folia melhor, que assim pensam também os que arrecadam as
reais receitas, forma subtil de dizer, cobrar impostos. Logo agora que se fala com
insistência na obra dos canos da Água Livre, a mesma que devolverá a Lisboa a água
que os romanos há muitos séculos atrás a ela trouxeram, e até já se pensou como seria o
seu transporte ensaiando a obra por um aqueduto de madeira; e como haveria de jorrar
copiosamente pela tromba de quatro elefantes de mármore numa nova fonte do Rossio a
construir para o efeito… Uma coisa é certa: havendo vontade para fazer uma tão
desmedida obra é ao povo que se vai buscar os reais-de-água, como bem se vê em
Elvas, onde não há meio de acabarem o aqueduto da Amoreira. Touros, canas,
126
procissões e autos-de-fé, tudo serve para trazer o povo feliz, que a miséria não se
compraz com a sisudez, seja em Lisboa, em Roma ou em Olinda de Pernambuco.
A medir pela lotação das estalagens e dos míseros cómodos dos e das que dão
camas, a cidade irá estar a rebentar de gente pelas ruas. E isto sem contar com os muitos
que vêm de madrugada a pé, de muitas léguas em redor. Famílias inteiras. Sós, ou em
grupos. Todos com o único propósito de chegarem muito cedo, para não perderem
pitada da festa. E aqui chegados, logo ao raiar do dia, uns querem acarrar no Rossio
para verem sair os presos dos cárceres do Santo Ofício. Outros procuram o melhor poiso
para verem de perto o desfile processional a serpentear pelas ruas. Mas muitos, a grande
maioria, não querem perder o cerimonial das confissões e do relaxamento em carne dos
condenados à fogueira. E porque o dia de domingo deste dia três de setembro de mil e
seiscentos promete ser longo e o regresso a horas incertas, todos vêm prevenidos com
uma ditosa merenda, ao gosto e posses de cada um, onde, pelo menos, não falta um
tassalho de pão, umas lascas de queijo do Alentejo e um pichel de vinho.
Mas, não é só o ansioso povoléu que se afadiga a madrugar. A máquina
inquisitorial também. Pelas quatro horas da manhã já os guardas do cárcere estão na
ronda das celas a buscar os presos. A acordá-los a pontapé se alguns de sono mais
pesado não despertarem a tempo, se bem que a maioria deles não tenha dormido, ou
pelas dores dos aleijões que já não suportam, ou pelo desassossego do espírito assaltado
pelas imagens do medo.
Assim arrancados das celas como animais que se chamam à linha de morte do
matadouro, os presos são colocados, um a um, nos corredores que ligam as celas. E aí
esperam, encostados à parede, uns de pé, outros sentados.
Este mesmo procedimento repete-se num corredor oposto, correspondente à ala
feminina. Ao todo, vinte e oito mulheres e trinta homens. Todos penitenciados. Todos
com culpas diversas. Todos colocados na ordem pela qual sairão no desfile
processional: primeiro os que não abjuraram nem levam hábito de penitentes; depois os
que abjuraram de leve; depois os que abjuraram de veemente; depois os que abjuraram
em forma, por judaísmo, que são os que levam o sambenito e, finalmente, os acusados
de penas graves que por isso vão a relaxar à justiça secular. Estes últimos são os que
levam vestidas as samarras com o seu retrato envolto em insígnias de fogo. Desta
categoria de condenados à fogueira só um homem e três mulheres vão sair neste Auto.
127
Só é uma estúpida forma de expressão, mas é aquela que o povo vai usar, acostumado
que está a ter dezenas de padecentes nas chamas purificadoras. O certo é que para os
desgraçados que vão a relaxar, tudo é mais penoso. Sobretudo desde que o notário lhes
anunciou o padecimento pelo fogo na última sexta-feira pela manhã e o guarda do
cárcere logo aí lhes atou as mãos pelos pulsos. E assim amarrados, os lançou ao escuro
de uma minúscula cela individual a que chamam, ironicamente, casinha. E nesta
casinha ficaram até hoje a lutar pela vida, esperando os inquisidores que com este
tormento adicional surja alguma confissão de última hora.
Às cinco horas da manhã é distribuída uma vela grande a todos os penitenciados.
Aos acusados de judaísmo acresce um embrulho de roupa bem dobrada, dádiva que aos
agraciados já não causa grande repugnância, pois todos sabem qual o seu humilhante
significado. E também todos sabem como um sambenito se enfia pela cabeça, ao modo
de um saco. De um saco bendito, que é, aliás, o nome original nos primórdios da Igreja,
naturalmente com idêntico significado vexatório.
E já com os sambenitos vestidos, ostentando a aspa de Santo André pintada a
vermelho, chega pelas mãos dos guardas do cárcere uma mitra risível de papelão,
também pintalgada de vermelho. Chamam-lhe carocha, diz-se que por subtil troca de
género, pois que o masculino carocho tem significado popular de Diabo.
Quando a alvorada chega a grandes lumes no céu, começam a chegar os
familiares que vêm «apadrinhar» os penitenciados. Chegam com grandes sorrisos de
festa. Com largas vozes como qualquer folião ante o júbilo que se aproxima. Trocam
entre eles comentários de lisonja sobre o dia que se anuncia quente e formoso. Assunto
que aos pobres réus nada diz. Aliás, pouco ou nada os deve interessar a formosura do
dia. Muito menos se o cadafalso está bem soalhado e não tem lascas que firam os pés
nus. Ou se o altar-mor está conforme aos preceitos da liturgia. Ou se o corregimento das
tribunas está ao gosto das pessoas fidalgas que nelas irão sentar o seu precioso traseiro.
Sequer deve interessar saber se o retrato pintado por Jerónimo na samarra tem
parecenças com aquele que vai a relaxar. O que pode interessar a um penitenciado nesta
hora não é certamente o brilho da festa, e muito menos as suas conformidades litúrgicas,
tão só a que limites do suportável chegará a humilhação pública de uma condenação
torpe, arrancada nos tratos de polé, assim lançada miseravelmente ao escárnio popular e
ao julgamento de Deus, que, lá em cima, no seu reino celestial, assiste a tudo isto com a
128
indiferença da estátua de sal da mulher de Ló. Frei Simão, o frade capuchinho de Santo
António, sobre isto também tem a sua teoria, herética naturalmente, mas muito certa:
Nossa Senhora, tão próxima do sofrimento dos seus filhos terrenos, não deve ter ordem
de abrir o bico lá no Céu quando as matérias de discussão envolvem reis, papas e a
clerezia mais importante; pois se a sua voz feminina de Rainha fosse mais ouvida na
corte celeste, já há muito tinha enviado à terra pela sua escada do Céu os seus exércitos
a acabar com estes despropósitos inquisitoriais. E remata sempre a conversa com este
dito: a quem aborreça a maldade fuja dos homens!
Mas como fugir dos homens?
Cá em baixo, de volta ao lameiro terrestre, onde não há saber que baste para
contrafazer a mentira, os familiares agora transformados em «padrinhos» de ocasião,
juntam-se aos seus afilhados, que é como quem diz, aos réus penitentes, para os
acompanhar, responder por eles se necessário for, e fazerem a sua entrega conforme as
sentenças que lhes calhar, finda a cerimónia do Auto. E são estes mesmos familiares que
ajudam a organizar a sequência do desfile segundo as culpas de cada um, começando
pelos homens, depois pelas mulheres.
Ao dobrar dos sinos do Ângelus já o Rossio está bem composto de gente, que
bem se ouve pelo barulho de feira que fazem. E não só barulho amalgamado de gritaria,
também de repuxões e repelões, pois ninguém quer ficar com a vista turvada para as
frentes da procissão. Sobretudo por alguém que, chegando mais tarde que outros, vai
deslizando para os lugares da frente, vá lá saber-se como. Se ele há coisas que um
português do Rossio não suporta é da esperteza saloia - aquela que é própria dos outros,
que a sua não faz mal nenhum a ninguém.
A este formigueiro que formiga nas areias do Rossio responde a oportuna
chegada de um corpo da Guarda dos Alabardeiros comandados por Dom Francisco de
Sousa. Trazem estes homens de alabarda em punho ordens para, caso seja necessário,
aguilhoarem a turba indisciplinada que se vai juntando à entrada dos Estaus do Santo
Ofício e daí, rua abaixo, até ao Terreiro do Paço. Não é raro as discussões e o
estouvamento de alguns terminarem em brigas coletivas, com juras de morte e, pior,
com facadas de morte. Isto os machos, quais galos-de-briga, porque as fêmeas têm por
hábitos antigos, quando se engalfinham na capoeira, vingarem-se nos impropérios, na
gritaria desalmada e quase sempre nos puxões de cabelo. Amanhã, muita desta gente
129
desordeira estará presa no Aljube ou no Limoeiro, decerto toda ela a reclamar inocência
dos factos de que a acusam, que nisto os costumes dos portugueses do Rossio são iguais
aos portugueses de todos os rossios do reino.
Entretanto, a comunidade de São Domingos vestida na sua túnica branca, capa e
capuz negros, chega ao Rossio para tomar a dianteira do desfile. Com ela vem o
estandarte do Santo Ofício, todo em damasco vermelho, franjado a ouro, que é peça de
aparato de altíssimo simbolismo neste contexto processional. Num dos lados, a meio de
uma grande tarja, a imagem de São Pedro de Verona, mártir, com esta legenda: Pro
Sancto munere martyrij palmam meruit obtinere. Na outra face as armas da Santa
Inquisição, que são uma cruz ao centro, do lado direito uma oliveira e por cima dela a
palavra, Misericórdia, do lado esquerdo uma espada tendo por cima dela a palavra,
Justiça.
Finalmente composta a sequência com que sairá o desfile processional, uma
longa corrente humana começa a sair pelo portão dos Estaus da Santa Inquisição. À
frente vem o Provincial da Ordem de São Domingos de estandarte bem erguido.
Acompanham-no, segurando em duas pontas caídas, dois qualificadores dominicanos e
dois familiares da primeira nobreza. Atrás do estandarte do Santo Ofício vem a
comunidade de São Domingos.
A seguir vem a irmandade de São Jorge, santo que tem esta precedência por ser
o defensor do reino. E traz também a sua cruz. Depois vem o «alcaide dos cárceres
secretos» com a sua vara de meirinho, cargo agora ocupado por Gaspar de Molina da
Cunha. Depois os réus: na dianteira os homens, segundo a gravidade das suas culpas,
depois as mulheres, do mesmo modo.
Atrás dos réus segue o guarda dos cárceres e, atrás deste, os clérigos do Hospital
Real de Todos-os-Santos com a sua cruz devocional. Depois o capelão das Escolas
Gerais, que são os cárceres da penitência, com a sagrada imagem de Cristo cruxificado,
acompanhado de seis familiares, metade dos quais cavaleiros, todos com as suas tochas
acesas. Fecham a procissão os relaxados ao braço secular. Na frente um homem,
seguido de três mulheres. Todos com as mãos atadas debaixo das samarras, estas
pintadas com um retrato entre as chamas e diabos por todo o lado. Acompanham estes
condenados os padres da Companhia de Jesus, exortando-os a bem morrer. Por fim vêm
130
os relaxados em estátua que por serem já defuntos são os seus ossos transportados em
caixões de madeira para também eles serem supliciados no fogo.
Neste alinho de infindáveis precedências, caminha a procissão pelas ruas da
cidade. A passo arrastado, próprio à exposição dos penitentes, rumando à Ribeira, onde
vão ser lidas as culpas de todos e dada a cada um a respetiva justiça.
No meio deste tropel de rostos, uns que se arrastam enfileirados, sofrendo a dor
da sua humilhação, outros à volta que gritam e fazem gaifonas, segue Jerónimo, raiado
de dores, mal conseguindo arrastar os pés descalços pelo empedrado da rua. É um cristo
que segue o seu calvário ante o escárnio da multidão ululante. A cruz que carrega é
igual com toda a certeza: foi julgado e condenado, sofreu os espinhos da tortura,
apresenta-se agora ao insulto público como um verdadeiro senhor da cana-verde e tem a
sua Gólgota de madeira à espera nas margens do Tejo, para aí lhe ministrarem o
supremo sacrifício. Uma vez mais – pensa Jerónimo – a miserável história dos homens
repete-se no palco da criação de Deus. Bem o sabe – pois assim foi doutrinado e o viveu
na carne e no espírito dentro das paredes de um convento – que o modelo cristão vive da
«recapitulação», insistentemente, à procura da «cópia perfeita». Mas ao contrário de
Jesus que tinha o lastro de Deus encarnado pelo próprio Espírito Santo, e que morreu na
cruz a sua alvorada redentora, Jerónimo sente-se um cristo de carne e osso que morrerá
na cruz a noite do seu fim. E bem desconfia ele que aos seus pés crucificados não terá a
bênção de nenhuma mulher, que a sua centenária avó, a sua mãe e as suas duas esposas,
por razões diversas e atendíveis, lhe negarão decerto esse último conforto.
E como um jesus no seu calvário, Jerónimo desce à Ribeira arrastando-se pelos
insultos, de cabeça pendida, um braço preso ao corpo e um cansaço e uma secura de
boca igual a quem anda perdido no deserto da Judeia. Ao seu lado, pelo contrário,
marcham dois «padrinhos» de qualidade, escorreitos como dois centuriões romanos.
Não sabe Jerónimo quem eles sejam. Certamente gente importante. Gente que ganhará,
se não no plano material imediato, pelo menos no plano espiritual, pois é sabido como a
Santa Madre Igreja estima os familiares do Santo Ofício. E ganhando no espiritual,
também isso apraz aos juízes do Purgatório que lá estão à espera que, um dia destes, as
suas almas subam ao derradeiro julgamento. Certamente são naturais de Lisboa,
cristãos-velhos e de sangue limpo, sem infâmia pública conhecida. Certamente sabem
ler e escrever e, sendo casados, os filhos terão que ter a mesma limpeza de sangue que
131
os seus pais. Por momentos, Jerónimo imagina-se, finalmente, acompanhado pelo seu
Anjo da Guarda que tanto quis ter e que tanta falta lhe tem feito pela vida fora. E logo
dois, que não há fome que dê em fartura.
Quem não é nada puro de sangue é o réu que vai à sua frente e à sua frente será
julgado no altar da fé. Jerónimo encontrou-se com ele no cárcere do Limoeiro e dele
guarda a sua descarada insolência, própria de quem já serviu nobres e bispos, e que se
gabava à descarada de conhecer o íntimo da casa real. Chama-se António Pereira e é
homem pardo de sessenta e oito anos, mestre de cozinheiros de Dom Luís da Silveira.
As culpas de que vem acusado todos as sabem em Lisboa, pois é bem conhecida a sua
fama de fanchono. Mas, sejam grandes ou pequenas as culpas que vem confessar a
Deus, o certo é que a alma já a leva desfeita. E não é caso para menos, pois os muitos
que o reconhecem na rua despejam-lhe baldadas de ódio e insultos de toda a espécie.
Vexame de tal crueza que, aqui e além, faz o homem rebentar num choro convulso.
Jerónimo, fechado no seu casulo de dor, não deixa de se interrogar sobre o
sortilégio de quem comanda a vida de António Pereira: ontem o gabarola, de ar
insolente, próprio de quem é íntimo da fidalguia, hoje o farrapo sem préstimo arrastado
pela lama da vergonha. Porque a vida – pensa Jerónimo – é uma roda em movimento
que nos apanha pelo caminho; e os que nela se seguram à sua passagem, é certo que vão
subindo até ao mais alto do seu rodado, mas logo descerão, sem outro remédio, até
voltarem a tocar a poeira da terra… Mas também esse espelho por onde julga a vida dos
outros lhe serve na perfeição, pois bem se lembra agora como também já foi marcador
de escravos. Bem se lembra do ferro em brasa na mão, arma que o fez senhor de uma
força implacável. Um verdadeiro Hefesto! Quantos lhe imploraram misericórdia?
Quantos? Agora bem se lembra dos gritos das mulheres e das crianças, do cheiro da
carne queimada de cada vez que o ferro em brasa lhes tocava na pele… E que bem lhe
sabia fazer ouvidos de marcador àquele terrível sofrimento. Grande cabrão! Mau e
ruim que fui! – pensa ele, a rosnar consigo próprio. Sem pinga de misericórdia para com
os fracos. Agora como pode ele admirar-se que a mesma fútil presunção esteja ao
serviço dos carrascos que lhe ministram os tormentos do chicote. Ainda assim sorte a
dele não serem os silícios lâminas de fogo.
132
Os homens são as criaturas mais desalmadas que Deus criou, disso Jerónimo já
não tem grande dúvida. E ele não é exceção. Há até quem diga, cautelosamente, que
quanto mais se aproxima o dia do Juízo mais gente ruim se acha sem ele!
Não obstante o julgamento sumário ao carácter do que vai à sua frente, e até de
si próprio ou dos outros que o habitam, Jerónimo recorda agora as descrições de
António Pereira sobre o fausto da corte sempre que era preciso dar de comer ao rei. Até
parece um absurdo fazê-lo aqui, nesta humilhante condição de prisioneiro, mais a mais
atolada nas lembranças do tempo em que foi marcador de escravos e fazia ouvidos de
marcador. Talvez seja esta a melhor maneira de se aconchegar a uma memória libertina
e libertadora. E enquanto caminha por entre a multidão a vociferar impropérios de toda
a ordem, Jerónimo pensa nas iguarias carregadas pelos moços-da-câmara entre a
cozinha e a copa, numa fila como aquela em que vai mas onde todos se desbarretam à
sua passagem. Recorda o que António Pereira dizia do cerimonial da chegada da comida
à mesa do rei, dos que ficavam à esquerda e à direita de Sua Majestade, naturalmente
sempre com os pés do lado de fora da alcatifa por não ser permitido pisar esse chão
sagrado; esperando sinais, olhando pelo canto dos olhos se a coreografia estava
conforme aos regimentos da mesa. Porque esta mesa não é a mesa que bem conhece dos
autos confessionais, ainda que o cerimonial às vezes se assemelhe. Mas na mesa do
Santo Ofício não há moços fidalgos de joelhos à espera que o rei lhes lance uma peça de
fruta, ou um doce. Não há guardas-reposte, nem servidores-da-toalha, nem trinchantes,
nem manteeiros, nem capelões-mor a benzer a mesa antes do rei começar a comer, nem
mestres-salas, nem porteiros-da-cana. E terminada a refeição de Sua Majestade, na
mesa que tão bem conhece, não há lugar para a solenidade purificadora da água às
mãos, como não há quem prove as iguarias antes de irem à boca de Sua Alteza…
Onde estamos?
Rua Nova dos Mercadores. Rua de tão gratas recordações para Jerónimo. Quem
diria a este puto - que tanta vez aqui passou em correria a caminho da Ribeira a enfiarse de cabeça no poço secreto dos mergulhos – que era o mesmo que um dia aqui haveria
de passar neste mísero andar de pássaro-ferido, apanhado à paulada e levado ao altar da
fé para ser imolado como um agnus dei… Quem diria…
A turba não desarma. Agora de tal modo densa que não deixa ver as lojas
debaixo da galeria porticada. Numa linha contínua, centenas de rostos exibem-se em
133
caretas de toda a espécie, como estendal do ódio humano. Pintá-los na sua
singularidade, no seu puro delírio animal, seria tarefa parecida à empreitada do retábulo
de São Vicente da Sé. Até tinha graça – pensa maliciosamente Jerónimo – que ele
poderia ser o santo ungido, de caraminhola vermelha, vestido nas suas vestes de
cerimónia. E se o fosse, facilmente faria curvar a seus pés os mesmos inquisidores que
agora lhe dão este tormento aviltante. Mas não é. E estes são apenas rostos e mais rostos
de gente anónima, explodindo no seu breve momento de glória. Todavia, reparando
melhor, nem todos cospem insultos à descarada. Alguns apenas observam como que
aturdidos. Quem sabe se algum desses rostos é o de algum pintor, daqueles que aqui têm
oficina ou aqui vêm vender os seus retratos. E não admiraria ser estrangeiro, para quem
tudo isto é um absurdo sofrimento, uma absurda humilhação. Mas é bom que venham
ver a procissão dos apóstatas da fé de Cristo, não seja o caso da sua ausência dar
demasiado nas vistas, chamar a atenção de algum delator embuçado vindo ao negócio
das almas disfarçado de patrono da boa pintura. Porque nesta Lisboa mestiça e
estrangeirada, onde se ouvem as vozes de Babel, os flamengos e os franceses são os
estranhos que mais padecem como a denúncia. Muitos estão aqui há décadas e já com
filhos nascidos. Aninharam a sua vida em Lisboa, mas isso não significa ser fácil manter
ofícios e linhagens oficinais. É que, por muito que os de cá estimem os seus dotes
artísticos, também repudiam, e muito, os seus arreigados costumes desconformes ao
viver católico. Há até a desconfiança de que todos são hereges, ou pela sua natural
inclinação às ideias de Lutero, ou por simpatia à lei de Moisés, que é como quem diz,
por hábitos suspeitos de não querem trabalhar ao sábado e fugirem da carne de porco e
de certos peixes sem escama.
Virando agora ao Pelourinho Velho, pelos Açougues, a grande serpe de
condenados chega finalmente à Praça da Ribeira.
No mar de gente que se acotovela decerto não estão as moças que vendem
boninas e ramalhetes de flores na escadaria da Misericórdia, que é o único encanto de
Lisboa.
O dia, entretanto, já vai queimando no astro o seu azul de festa. Uma brisa sem
pressa de soprar chega do rio a cheirar a lodo. A custo entumece as bandeiras atadas às
gáveas das naus, quando muito parece brincar na areia do terreiro aos repentes. Se é
Deus quem comanda os acasos da Natureza, este tempo de cetim só pode significar aos
134
olhos de qualquer cristão evidente comprazimento da corte celeste por mais este serviço
à fé.
Neste passo da coreografia do espetáculo em que todos se aprestam a subir ao
tabuado, começa agora o Inquisidor-geral a descer do seu paço do Rossio na companhia
de todos os ministros do tribunal. Vêm todos a cavalo, a passo estugado, não só porque
fica mal fazer esperar os convidados da festa, também porque ela não pode começar
sem a presença do maestro desta sinfonia celeste, que a há de reger com a batuta de
Deus.
Jerónimo quando se senta nos degraus da bancada entre os dois familiares que o
apadrinham, ao jeito de anjos da guarda pretoriana, sente o corpo a desfalecer como que
se a alma lhe quisesse fugir. Pensa, nesses instantes, que a voltar vivo para o cárcere só
se for de padiola. Porque lhe não nascem agora as asas que tanto quis ter quando era
moço? Se as tivesse fugia sem hesitar, nem que fosse fugindo para os píncaros de uma
torre como fazem os corvos.
Pois fugia.
Mas não pode. Não consegue. É humano demais para ter esse sortilégio próprio
dos deuses. Pecador demais para que os milagres nele aconteçam. Nem ele já sem sente
apenas um, mas vários dentro de si. Quantos são? Como pode ele acomodar tantos
outros no seu interior? Como pode ele, num mesmo corpo e numa mesma alma, ser ao
mesmo tempo um puto, um frade, um pintor, um marcador de escravos, um bígamo, um
condenado, um apóstata?
135
DEZOITO
Chegado o momento tão esperado, já com todos ocupando os lugares segundo o
seu estado e condição, o Auto-de-Fé tem ordem para começar.
Nas tribunas assistem Dom Cristóvão de Moura, Marquês de Castelo Rodrigo e
Vice-Rei, Marques Teixeira, Bartolomeu da Fonseca e Rui Pires da Veiga, do Conselho
Geral da Inquisição, Manuel Álvares Tavares e Dom António Pereira de Meneses,
inquisidores, Pedro de Olivença e Heitor Furtado de Mendonça, deputados da
Inquisição, Pedro Gomes, Promotor da Justiça.
O público que rodeia o palco da festa é então mandado calar com muitos
cheeee… cheeee…
Sobe ao púlpito frei Manuel Coelho, douto pregador dominicano, a quem
compete fazer o sermão de abertura. É uma subida honra para ele e para a comunidade
de São Domingos, que nestes palcos da retórica, jesuítas, dominicanos e franciscanos
disputam a primazia com inflamada rivalidade. Por esse motivo, os inquisidores levam à
consideração do Conselho Geral do Santo Ofício, à cautela, o nome de três tribunos para
que este órgão escolha um. Quase sempre a honrosa missão recai num dos deputados do
Conselho Geral. Como é o caso de frei Manuel Coelho.
Nestes longos sermões têm os pregadores por hábito doutrinal buscarem uma
passagem dos evangelhos ou algum pensamento dos muitos doutores da Igreja. Coisas
graves e ponderadas que ao comum dos mortais soa inevitavelmente a sermão. Ou seja,
a um fastidioso arrazoado de palavras elegantes cujo significado muito poucos sabem
discernir. Por isso este orador, já experiente no despertar das consciências mais
empedernidas, dá preferência ao discurso simples retirado das homilias de São Gregório
Magno. De lá retira a lição do bom pastor.
Porque Deus é um pastor que conhece as suas ovelhas e as suas ovelhas o
reconhecem como seu pastor… E por isso os que amam Deus o seguem sem hesitar.
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A plateia escuta e interroga-se sobre o alcance daquelas palavras. Nada como
reduzir a fé dos homens a uma simples escolha entre o bem e o mal. Entre a verdade e a
mentira. Porque, dito assim, claro como a água, quem em seu siso não aceita que o
rebanho da cristandade deve retribuir com acatamento, com obediência e com fé
incondicional o amor do seu pastor celestial?
Mas há ovelhas do rebanho de Deus que se perdem noutros pastos que não o da
fé católica, que é o único pasto viçoso capaz de nutrir a alma de um bom cristão; não os
pastos heréticos da Alemanha que escondem serpentes venenosas entre as flores…
Bem percebem os mais avisados aquilo que o pregador quer dizer com esta flor
retórica. Porquanto o perigo que tanto a Igreja teme é o da seita Luterana, que por essa
Europa fendida em duas teima em afirmar que se pode ser cristão somente através da fé
em Cristo. Ora os católicos-apostólicos-romanos, doutrinados na militância da fé e nas
obras piedosas da Igreja, que é como quem diz no aparelho eclesiástico comandado
desde Roma, não aceitam mudar uma pedra à igreja de Pedro, quanto mais mudar-lhe o
alicerce onde assenta a sua riqueza e poder.
E mais adiante, já de discurso inflamado, pungente como só um bom tribuno
consegue fazer, atira de novo a rede das palavras ao mar de rostos aturdidos. Agora para
concluir que todas as ovelhas de Deus devem seguir os seus pastos celestes, que é o
único caminho para a salvação!
E repetindo-se, uma e outra vez, como quem sublinha palavras sagradas, frei
Manuel Coelho remata a mensagem dizendo que nenhum outro pasto por mais tentador
que ele seja a bordejar o caminho deve seduzir o caminheiro cristão; porque o pasto do
senhor é que é a verdadeira salvação das nossas almas!…
Jerónimo, abandonado à sua indiferença, não consegue que as palavras
aspergidas da tribuna lhe provoquem qualquer eco interior. São só palavras que evolam
sobre a sua cabeça como uma qualquer revoada de pássaros. Frade como é, muitas delas
as escutou, repetidamente, nas prédicas religiosas dos seus superiores conventuais. E as
guardou como virtuosas. Sem nunca as questionar.
Porque ele amou e ama o seu bom pastor e sempre sossegou a sua alma inquieta
nos pastos-do-Senhor. Que são a salvação da sua alma. Mas os pastos do Senhor
também são grandes como o mundo. E demasiado belos para se não conhecerem. E por
137
serem esses pastos grandes como o mundo, a sua alma ruminante não resistiu a
descobrir os seus cheiros e sabores. Porque a sua alma é feita, desde pequeno, de
vontades diferentes. Não opostas, não rivais, apenas diferentes. Umas que querem correr
à descoberta da vida e do amor, outras que querem o silêncio e a reclusão para poderem
rezar da pintura. A sua cabeça sempre foi um pêndulo: ora atraída à carne e ao prazer
dos sentidos, ora ensimesmada na missão de servir Deus através da pintura. Por isso,
tanto gosta de pintar uma ninfa carnal, amante de Zeus, como a uma Nossa Senhora das
Dores. Será Jerónimo o único artista professo que vive na contradição das suas
escolhas? E nesta hesitação, neste desconcerto tão desacertado, a sua vida errante
acabou por seguir caminhos que não os das verdes pastagens da salvação da sua alma.
Afinal o seu caminho, como agora se dá conta, sempre foi o que bordeja o rio da vida.
Porque este caminho, ainda que áspero e caprichoso, sempre dá ao caminheiro a
possibilidade de ele se sentar na margem do rio a olhar as águas que correm sem parar, e
com isso sentir-se preso apenas à sua vontade interior. Se estivesse no meio da corrente
não o poderia fazer. É certo que as suas escolhas toldaram de dor a vida de outros.
Principalmente a das três mulheres da sua vida: a sua mãe Catarina de Mendonça, a sua
primeira mulher Maria de Faria, a sua segunda mulher Baltezara de Padilha. É nelas que
pensa agora quando se interroga. Como reagirão elas quando se aperceberem que ele,
qual marcador de escravos sem escrúpulos, lhes ferrou no rosto o ferro do vexame
público que jamais sairá com o tempo? Hão-de odiá-lo. De um ódio que nenhum amor
de mãe ou de esposa conseguirá desencardir. Aliás, se o quisessem perdoar já teriam
feito. Talvez gritado de longe. Talvez enviado um simples papel escrito. Talvez
mandado recado por alguém... Mas não. Nenhuma o fez. Talvez aí estejam escondidas
na multidão à espera de o ver subir ao palco. Quem sabe exultarem de prazer quando
ouvirem rebentar no ar as suas culpas de apóstata, relapso e bígamo.
É agora este pensamento a moê-lo a pau e um outro já a formigar: o de ser
pequeno, o de ser puto, para fugir dali a asas de liberdade… Correr ao encontro das
águas do rio e atirar-se ao poço dos mergulhos. Que, esse sim, é um sítio secreto. Um
sítio só seu. E nadar até perder a força de braços. Ficar a boiar como uma gaivota
cansada. E daí, sem ninguém por perto, na mais pura das liberdades, que é aquela que se
conquista ao medo, olhar Lisboa ao fundo. De ponta a ponta. E abraçá-la num só
abraço... E depois fugir a nado ao encontro de um galeão, de uma simples jangada que o
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leve para o outro lado do mundo. De preferência a um qualquer lugar onde os homens a
mando de Deus o não alcançassem.
Jerónimo está cansado de pensar. Está exausto de ser.
Acabado o sermão, segue-se a leitura do édito da Santa Inquisição. Tem ele
como principal propósito doutrinal reforçar a mensagem de terror de que se alimenta a
máquina inquisitorial, exortando ao mesmo tempo todos os cristãos ao exercício
favorito da denúncia. E fá-lo nestes termos precisos: em que se manda com pena de
excomunhão maior a toda a pessoa que souber que alguém vive apartado na Nossa
Santa Fé, ou que cometeu alguma daquelas culpas de que o Santo Tribunal toma
conhecimento, o denuncie e o mais depressa que puder…
E terminada a leitura do édito, começam a ser lidas no púlpito as culpas de cada
um dos réus, bem como as penas que por direito e justiça lhes cabem. Tudo na mesma
sequência com que saíram no Auto.
Para as ouvir vêm os réus «assistidos» de dois familiares. E fazem-no de pé com
as mãos levantadas em prece e entre estas uma vela acesa que todos eles trazem ao
Auto.
Tudo isto junto do altar, no centro do tablado, no lugar mais alto, sobre o qual
está uma cruz e quatro missais abertos.
Acabando de ouvir as suas culpas e as suas penas, os réus ajoelham-se e assim
ficam até lerem a sua própria abjuração. E aos que as leem, se lhes pergunta se o
prometem assim fazer, ao que respondendo que sim põem a mão sobre o missal, beijam
a cruz e voltam com os familiares para o lugar em que antes estavam sentados.
Mas Jerónimo, cansado de pensar, exausto de ser, volta ainda a todos os que se
cruzaram na sua breve vida. Imagina-se só e exposto a uma plateia de rostos
conhecidos: a sua velhíssima avó; o cura de São Roque que o crismou, Cristóvão de
Melo, porteiro d’el rei, em cuja casa cresceu e aprendeu as primeiras letras e ganhou o
gosto pela pintura; os pintores com quem aprendeu; António Lopes e seus filhos; Dom
Francisco e Dom Jerónimo de Almeida, frei António de Anunciação e tantos irmãos e
tantos putos que como ele se foram perdendo pela vida. A propósito: que é feito dos
seus amigos de infância? Que é feito do seu poço dos mergulhos aqui tão perto?
139
E neste pensar alucinado, rebentam-lhe vozes na cabeça como se todos os que
estão à sua volta tivessem coisas para dizer: Não te demores na Ribeira! Toma esta
maçã para comeres no estudo. Pintar é uma arte nobre, mas precisas de ter o dom de
Deus… vamos fugir? Não me deixes só… estou prenha… vem, Jerónimo… tudo se
hara bien… Até Baltazara, levantando-se do escuro avança para si. E sem se importar
que outros a vejam, despe o vestido. Desnuda-se completamente, ao modo de uma ninfa
banhando-se nas águas da perdição. Sorri cúmplice apertando a mãos contra si, tocandose num incêndio de prazer.
Jerónimo volta a si. Um súbito movimento estremece-o como uma folha ao
vento. Mestre António Pereira, o cozinheiro fanfarrão e fanchono, vai ouvir as suas
culpas. Ainda não enxugou as lágrimas que lhe foram rebentando com violência ao
longo da procissão. Porque os crimes de que o acusam, como Jerónimo se dá conta, são
os de uma sórdida vida passada em casas muito fidalgas do reino. Sabem alguns que
ultimamente servia de cozinheiro a Dom Luís da Silveira, que lhe pagava soldada e
estipêndio. E aí, tendo comportamentos indecentes, mostrando a sua natura alvoraçada,
abusou de vários rapazes, e até de um moço de dez anos que pedia esmola na rua e se
agasalhava junto das casas de Dom Luís. Fazendo-o, além do mais, com a ameaça de
matar o moço com a mesma faca com que o sujeitava, junto à boca…
A este sodomita, predador de crianças, a sentença é o degredo para as galés para
sempre e sem soldo. E quando for levado às galés, será açoutado publicamente desde o
cárcere do Santo Ofício até a uma das galés que resida no rio e porto desta cidade de
Lisboa.
Lida a sentença, mestre António regressa num choro compulsivo sobre uma
chuva de impropérios que a assistência lhe lança de longe.
Jerónimo é agora chamado ao altar.
Fá-lo pensado. Pensando, não na remissão dos seus pecados ou na severidade do
seu castigo, mas em todos aqueles que o observam no anonimato da multidão.
E os que o observam do céu? A começar pelo seu verdadeiro pai e pelo outro de
faz-de-conta, e de todos os outros que o ensinaram como a um filho e que hoje já não
estão entre os vivos…Talvez no Paraíso.
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E lá longe, como se sentirão os franciscanos de Alenquer pelas culpas deste seu
irmão apóstata?
Como se sentirá a sua centenária avó que vai resistindo tenazmente à ceifa da
morte?
Jerónimo escuta amparado pelos familiares que o obrigam repetidamente a alçar
a vela, esquecida nas suas mãos frouxas.
E escuta, como se escutasse a voz da brisa que chega do Tejo:
Acordão os Inquisidores, Ordinário e Deputados da Santa Inquisição que vistos
estes autos e confissão de frei Jerónimo de Espírito Santo, cristão velho, natural desta
cidade de Lisboa, réu preso que presente está per que se mostra que sendo frade
professo neste reino em certa religião aprovada, e ordenado das quatro ordens
menores, obrigado, como tal a viver bem catolicamente conforme às obrigações da
ordem e religião que professou, ele o fez muito polo contrário, e esquecido delas e de
sua salvação, apostatando da dita ordem, se saiu dela, e passando per França e
Alemanha se foi a Itália onde andou mais de um ano, e tornando a este reino foi
recebido da dita ordem e encarcerado nela, da qual prisão fugiu apostando segunda
vez: e deixando o hábito de sua religião se vestiu em trajos de secular, chamando-se
dali por diante Jerónimo de Mendoça, e depois de andar per algumas partes de Castela
usando do oficio de pintor se veio a esta cidade, e dela se embarcou pera Angola
assentando-se por soldado, e estando lá se casou publicamente em face de igreja com
uma Maria de Faria moça das convertidas, e os recebeu o provisor que então era na
dita Angola, dizendo ambos as palavras costumadas, e depois de recebidos, viveram de
umas portas a dentro como casados, por espaço de seis meses no fim dos quais, ele réu
determinou de deixar a dita Maria de Faria, como de feito deixou, e se foi pera o Brasil
a Pernambuco onde a dita Maria de Faria foi ter com ele, e se tornaram a juntar e
viver como dantes, e dali se vieram pera esta cidade, E nela estiveram ambos algum
tempo da mesma maneira, depois do qual, o réu deixando de todo a dita Maria de
Faria, se casou segunda vez em face de igreja com uma Baltezara de Padilha,
castelhana, com a qual o recebeu por palavras de presente, na igreja de São Nicolau, o
cura que então era dela, e depois estiveram ambos de umas portas a dentro, como
marido e mulher por espaço de alguns meses até o tempo que o prenderam. O que tudo
visto com mais que dos autos consta. E a grande suspeita que contra o réu resulta de
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sentir mal dos votos da religião, e do sacramento do matrimónio, havendo porém
respeito ao dito réu confessar logo suas culpas pedindo delas perdão e misericórdia,
afirmando que nunca tivera pera si que podia casar; sendo como é frade professo, em
que bem entendia que estava em mau estado com as ditas mulheres, e a outras
considerações que no caso se tiveram: mandam que o réu frei Jerónimo vá ao auto da
fé na forma costumada, E nele faça abjuração de veemente suspeito na fé e por tal o
declaram e suspendem do exercício das ordens menores que tem, e não possa ser
promovido às mais, E o degradam pera as galés por espaço de cinco anos, onde servirá
ao remo sem soldo, fazendo penitencia de tão grande delito, e depois de cumprir o dito
degredo será entregue ao superior de sua religião, pera lhe impor as mais penitencias
que lhe parecerem necessárias pera salvação de sua alma. E mandão que das censuras
em que incorreu polas ditas culpas seja absoluto in forma ecclesiae.
Depois de ouvidas as suas culpas e a forma de as expiar, Jerónimo faz abjuração
de veemente suspeito na fé, ou seja, é obrigado a retratar-se através de uma renúncia
solene às crenças e erros contra a fé. É este o texto que lhe fazem ler em voz alta:
Eu frei Jerónimo cristão-velho, frade professo da Ordem de São Francisco,
natural da cidade de Lisboa, perante vós senhores inquisidores contra a herética
pravidade e apostasia, em esta cidade e arcebispado de Lisboa, juro nestes santos
evangelhos em que tenho as minhas mãos, que de minha própria e livre vontade
anatematizo e aparto de mim toda a espécie de heresia e apostasia que for ou se
alevantar contra nossa santa fé católica e fé apostólica especialmente estas que agora
em minha presença foram lidas, as quais aqui tive por repetidas e declaradas, de que
me houveram por veemente suspeito na fé, prometo de sempre ter e guardar a santa fé
católica, e o que tem e ensina a Santa Madre Igreja de Roma e que serei sempre muito
obediente ao nosso muito santo padre papa Clemente oitavo, ora presidente na Igreja
de Deus, e a seus sucessores, e confesso que todos os que contra esta santa fé católica
vierem são dignos de condenação e prometo de nunca com eles me juntar e de os
perseguir e descobrir as heresias que deles souber aos inquisidores e prelados da
Igreja, e se em algum tempo tornar a cair nestes erros ou em outra qualquer espécie de
heresia ou não cumprir a pena que me é ou for imposta, quero que seja acusado por
relapso e castigado conforme o direito, e requeiro ao notário do Santo Ofício que disto
passe instrumento e aos que estão presentes e assinarem aqui comigo.
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Feito isto regressa ao seu lugar, acompanhado pelos dois familiares assistentes.
Só lhe apetece fugir. Voar. Agora mais do que nunca. Mas como fazê-lo? Está
tolhido de dores, um dos braços não funciona e as suas pernas estão fracas demais para
correrias pelo mundo. Se fosse novo, ágil como era, num pulo fugia para Alfama à
procura de quem o levasse para fora do reino numa urca qualquer. Ou, passando para a
outra banda, num instante ia ele a Setúbal fazer o mesmo. Talvez aí até mais depressa
se passava a Flandres, ou a Roma, locais onde a pintura é mais bela e insigne.
Quem é este eu que falou?
A voz dos outros, dentro de si, está a destrui-lo aos poucos…
Por ele – Jerónimo que pensa ser ainda Jerónimo – só lhe resta resistir ao pouco
tempo que tem para viver. Pois não vê como na sua condição de meio-morto possa
servir nas galés onde o querem todo-vivo.
Lá morrerá, certamente. O que é para ele o maior desconsolo. Porque, morrendo
no mar, dificilmente o seu corpo descerá à terra. Dificilmente terá uma cova onde os
que lhe querem bem, ainda que nenhum nome lhe venha à memória, o possam visitar e
reconhecer-lhe alguma virtude. Pois não há coisa pior do que morrer sem memória.
Mortes assim têm os cães e nem todos.
Jerónimo sabe que não sobrevirá à remissão dos seus pecados. Pois está ali a
viver os seus últimos momentos de vida. E sem o conforto de uma mão amiga... Amiga
não para o ajudar a fugir daquele pesadelo, que para isso não há amigos que se
sobreponham aos desígnios da Inquisição. Mas uma mão-amiga-de-verdade para o
ajudar a morrer cristãmente.
Depois de lidas, uma a uma, as culpas bem como as correspondentes sentenças,
e feitas todas as abjurações necessárias, o Inquisidor da «primeira cadeira», Dom
António Pereira de Menezes, revestido de vestimentas sagradas, anuncia aos réus
reconciliados a absolvição da excomunhão maior em que tinham incorrido pelo crime
de heresia.
E findas estas palavras, dois clérigos também revestidos das suas sobrepelizes,
tocam nos ombros dos reconciliados com umas varas, que é o sinal público de que são
recebidos novamente no grémio da igreja católica.
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Depois de terminado o Auto, estes reconciliados voltam debaixo do pendão da
Santa Inquisição. Mais tarde serão levados para as Escolas Gerais para aí serem
instruídos nos mistérios da fé, necessários para a salvação das suas almas.
E depois de sentenciados uns, reconciliados outros, a festa prossegue, porque
ainda falta um dos momentos altos do espetáculo, que se fosse taurino bem se poderia
dizer que faltaria ainda matar o touro.
De facto, ainda estão por relaxar ao braço secular um homem e três mulheres,
coisa que a multidão estima com a mesma devoção como que dá loas ao Altíssimo.
E no fim de tudo ainda falta queimar as ossadas de nove pessoas trazidas em
outros tantos caixões pequenos de madeira. Todos estes despojos humanos foram
exumados por se desconfiar de que ficaram culpas graves por saldar a Deus, que, pelos
vistos, se não contentou em julgar no Purgatório a alma destes desgraçados…
O dia acaba como acabam todos os dias de auto-de-fé: uma névoa de fumo sobre
a cidade a cheirar a carne queimada. Coisa abominável para quase todas as almas com
nariz, menos para os corvos que não tendo alma nem nariz apreciam todos os cheiros
com que apodrece a morte.
Pobre Lisboa. Se já não bastava o cheiro a vómito e a incenso agora tem mais
este olor celestial a torná-la numa das cidades de Deus mais odiadas à face da terra.
144
DEZANOVE
Pela impressão que dá, o sol está a baixar no horizonte e não devem tardar as
ave-marias. Uma brisa do mar sobe pela encosta levantando no ar as folhas que não
resistiram aos meses de torreira. No alto da colina investe forte nas velas dos moinhos
fazendo-as girar mais depressa. Nesta urgência de subir, encosta acima, um sopro mais
forte, como que tocado pelos lábios de Zéfiro, entra pela nesga da janela como um gato
vadio, fazendo cair no chão algumas folhas de papel. Uma porta no piso térreo bate com
estrondo. E logo a voz de um dos criados acode aflita com um valha-me santa Bárbara!
Catarina de Mendonça, sentada e entregue aos afazeres da costura, levanta-se a
fechar a janela. Custa-lhe a desentorpecer as pernas. Mas não precisa muito para chegar
à janela que ficou meia aberta. Fecha-a e fixa-lhe bem o trinco, retardando nele os
gestos como se lhe congelassem as mãos ao contato da luz. Na verdade não são as mãos,
mas os olhos que se imobilizam como que presos aos longes do rio, ainda que daqui,
destes altos escarpados, não alcancem com nitidez mais do que dois ou três barcos que
vão aproar à Ribeira. Para o lado de Belém nem vale a pena tentar um olhar mais
demorado, pois a cortina de luz que entardece sobre a barra não deixa ver para lá do
vale de Alcântara.
Ainda não é hoje que devem chegar notícias do mar…
Regressada da janela, Catarina de Mendonça junta as folhas de papel que restam
sobre a mesa. Vai ser mais difícil apanhar as que caíram ao chão, coisa que exige
alguma destreza de movimentos. É aqui que ela sente que a idade já lhe vai tolhendo a
frescura do corpo. Costumava ela dizer, quando ainda moça, que as pessoas de trinta
anos eram como as flores do campo: colhiam-se formosas por terem o viço da terra;
depois de colhidas eram postas numa jarra para secar; e aos cinquenta já não tinham
graça nenhuma, melhor seria jogá-las fora… Agora Catarina de Mendonça sorri quando
pensa na sua idade que já se encaminha para os sessenta e cinco e pelas suas contas já
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devia ter sido jogada fora há muitos anos. Mas isso dizia ela não esperando ser mãe aos
trinta e três e, pelos vistos, não esperando que a sua mãe fosse viva passante os cem.
Tudo mistérios que só Deus sabe o porquê de serem mistérios. Também nunca esperou,
decerto, que o seu filho tardio, mimado como nenhum outro que gerou e criou, fosse
agora uma dor mortal a sangrar-lhe no peito. Ele que tudo tinha para honrar o bom
nome da família, pois que mais pode uma mãe desejar do que ter um filho professo
numa ordem de tanta santidade a rezar-lhe pela alma.
A custo apanha do chão as quatro folhas que caíram e se enrolaram como tubos.
Todas elas são desenhos de seu filho, que um dia quis ser pintor e rezar da pintura.
Catarina de Mendonça já os viu, um a um, com o vagar de imaginar a vida secreta que
neles habita. Uns são como que moldes para compor padrões florais usados nas pinturas
a fresco. Outros, figuras santas, como que estudos para aplicar em obras maiores, que
não sabe se alguma vez o filho as pintou. Só há um desenho que não entendeu o seu
significado. Volta a ele agora. Parece ser cópia de alguma coisa que o filho viu em
Roma em mil quinhentos e noventa, pois a um canto da folha está escrito esse nome e
referida essa data.
Catarina de Mendonça transporta-o de novo à luz que esmorece na janela.
O que diz ele hoje de novo que não quisesse dizer ontem?
O que lá está retratado não merece qualquer dúvida: uma figura de longas
barbas, vogando no ar ao jeito de Deus, de corpo inclinado como se não tivesse peso, a
estender o dedo indicador a um belo jovem nu que, sentado e só, parece corresponderlhe com o mesmo gesto cúmplice. Mas o que nos querem dizer aquelas duas figuras e o
que significa aquele gesto de quem se toca carnalmente? Deus não é, pois Deus não toca
carnalmente na sua criação, esse trabalho é feito pelo Espírito Santo que é uma pomba
de luz, uma chama caída do Céu. Por isso, seja o que for que fazem não é coisa que
agrade aos olhos-da-alma, pois que desprovida de sentido. E quando a arte não tem
sentido e não apraza a Deus nem a nenhuma das suas virtudes teológicas, que préstimo
pode ter? Nenhum. É caso para Catarina de Mendonça se interrogar sobre se este
desenho tivesse chegado às mãos dos senhores inquisidores decerto teriam feito maior
dano à alma de seu filho.
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Num gesto quase ritual, como se desenhasse no ar o sinal da santa cruz, Catarina
rasga o desenho em quatro pedaços e lança-os para cima da mesa. Feito isto, grita a um
dos criados para que suba. Ao que prontamente lhe aparece o mais novo e ligeiro dos
dois, o Lourenço.
– Aqui me tem, minha senhora.
– Há novas da Ribeira? – pergunta a mulher, procurando de novo a cadeira para
se sentar.
– Não, minha senhora, de lá vim há niquinho…
Catarina de Mendonça parece hesitar no que fazer ou dizer, como que caída num
buraco escuro do pensamento. Mas nisto reergue-se e diz com aspereza:
– Lançai fogo à chaminé que me quero aquecer.
O cativo apanhado de surpresa como se tivesse levado uma paulada na cabeça
tenta uma pergunta conciliadora:
– Tão antes do inverno, senhora?
– Faz o que te digo, que o frio do meu inverno já se acerca de mim. E se não
tiverdes o que queimar, toma esses papéis que estão sobre a mesa – diz Catarina de
Mendonça apontado para o rolo de desenhos.
Uma vez mais o pobre Lourenço parece desnorteado com o sentido das palavras
da sua ama. Timidamente arrisca a pergunta:
– Os debuxos de vosso filho?
– Não são debuxos – responde prontamente a mulher de boca cerzida de cólera –
, e meu filho o Demo levou à cova! Pode ser que o fogo lhe purifique a alma… e me
aqueça a minha.
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VINTE
Ou é dos olhos enevoados de Jerónimo ou o dia nasceu sem vontade nenhuma.
Mortiço como ele. Não tinha razão para nascer assim a não ser que, comandado como é
pela máquina celeste, tenha vindo prestar homenagem a um condenado nas vésperas de
embarcar nas galés. Mas, nem ele é um santo para receber visitas celestiais, pelo menos
na forma habitual de anjos ou de pombas, nem Deus se incomoda muito com a sua
desprezível existência carnal. Se alguma vez o pensou fazer, teve Ele ocasiões de sobeja
para dar um sinalzinho da sua graça. E nada… Deve ser então pelas artes do acaso que
este dia cinco de setembro do ano do Senhor de mil e seiscentos, uma quarta-feira,
acordou tão mal sentido como ele. Apesar de tudo, há muita diferença entre o carão
enevoado do dia e a penosa angústia do prisioneiro na pessoa de Jerónimo do Espírito
Santo – é que a manhã espumosa que caminha pela mão de um dia indisposto não tem
escadas para subir, nem audiência marcada, nem senhores inquisidores à espera, e logo
enrolados nas sedas negras da justiça, ao fundo da sala, como que preparados para
trinchar mais uma presa caída no beco da morte. A crer nestes dois, de seus nomes
Manuel Álvares Tavares e Dom António Pereira de Meneses, há neles qualquer coisa de
animal atraiçoado, sibilino e peçonhento. Mas, vendo bem a imobilidade das duas
criaturas que aguardam atrás da Mesa do Despacho da Santa Inquisição, vestidas assim
de negro e embarretadas de negro, de caras seráficas furadas com dois pares de olhos
negros, parecem a encarnação de Cerberus, o cão que guarda o poço do Inferno, só que
com duas cabeças.
Parecidos ou não, o certo é que Jerónimo fica preso nas garras dos dois, que
parecem um, e o dia, ainda que entediado e melancólico, está livre de seguir a
caminhada pelo mundo na sua vigília de luz.
Depois do habitual juramento sobre os santos evangelhos em que Jerónimo põe
a mão direita sob seu carrego, o inquisidor António Pereira de Meneses, de fala
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ligeiramente efeminada, o que mais lhe acentua a maldade, diz-lhe como se o tivesse a
sangrar:
– Que o réu tenha ao diante absoluto segredo sobre todas as cousas do cárcere
deste Santo Ofício. E que em nenhum tempo se descubra o que aqui o réu viu ou
ouviu…
– Assim farei, vossa senhoria, reverendíssima – responde Jerónimo num
impulso, como se a resposta o obrigasse a ser imaculadamente assertivo.
– Nem que o réu disse nesta mesa durante as suas audiências passadas – insiste
o inquisidor. – Nem daqui levar recado nem avisos dos presos do cárcere a pessoa
alguma, nem por si nem por outrem!
– Assim farei, reverendíssima senhoria.
– Sob pena de grave castigo se o fizer! – sublinha com aspereza o soturno
Meneses, no mais rouco da sua fala fina.
– Assim o prometo a vossa reverendíssima senhoria e ao Altíssimo Senhor dos
Céus.
– Uma outra coisa que importa à salvação da alma do réu: – diz o inquisidor
com um ar agora forçadamente paternal – antes de se embarcar nas galés se faça
absolver por um seu superior da Ordem das excomunhões em que incorreu por suas
continuadas heresias.
– Assim farei, meritíssimo.
Despejados todos estes recados na cara de Jerónimo do Espírito Santo e
conferidas, uma a uma, todas as formalidades, o auto que acaba de ser lavrado é dado a
assinar aos presentes. Jerónimo, chegada a sua vez e com a reverência de quem se
apresta a assinar um contrato tabeliónico, segura na pena. Ainda que lhe faltem as forças
na mão, tenta traçar a sua elegante assinatura como se fosse a de artista consagrado.
Mas os gestos já não saem como antigamente. Tropeçam e enrolam-se como que
chamados à sua insignificância de linhas sem nome. Adivinha-se ser esta a sua última
assinatura como frade professo. E nela uma vida que se extingue…
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Feito isto, e soando a campainha a chamar o porteiro, Jerónimo volta a fletir os
joelhos num gesto de reverência. Persigna-se, à vista da imagem de Cristo crucificado,
só e mirrado de dor contra a parede, alçado a meia altura atrás da Mesa.
E como lhe custa aquele simples dobrar das pernas. Mas se fosse só uma dor
física talvez ele a suportasse com resignação. Mas não é. Parece que lhe vem de dentro,
como que sangrada da alma. Porque, para seu maior desconsolo, a condenação que lhe
deram às galés para expiar os seus pecados não é nada quando comparada com o
desmoronamento de tudo aquilo em que sempre acreditou. Pedaço a pedaço. Palavra a
palavra. Que nada parece ficar de pé.
Sim, onde está a misericórdia daquele cristo crucificado que presidiu ao seu
julgamento? Onde está a sua divina faculdade de perdoar?
Quando abandona a Sala do Despacho deixando para trás os exemplos
catequéticos dos antigos deuses e heróis bordados a ouro – incluindo o da desnuda
Calisto que ali fica a mostrar a sua beleza carnal a quantos desgraçados vierem
confessar as suas culpas carnais –, Jerónimo já não se sente como um frade, como um
filho, como um marido. Sequer como um homem, quanto mais como um cidadão.
Sente-se como uma peça sem préstimo que se soltou da roda do mundo em andamento.
Caiu ao chão, como coisa inútil. Como uma pedra ainda a pulsar de vida, a arrefecer. E
no chão ficou, inerte, à espera de ser pó.
Ele e todos os outros que o habitam.
E agora, que o mundo já não tem lugar para ele, nem ele tem força nas mãos
para se importar com isso, o que lhe resta?
Talvez encontrar a sua paz nos fundos esquecidos de si. Se os tiver…
- Ó enganadora fantasia…
Já no pátio, avançado na companhia do carcereiro em direção à cela, Jerónimo
leva a mão boa a arrumar os cabelos desgrenhados. E puxando os cabelos para trás com
as pontas dos dedos, dá-se conta que nada mais lhe resta da coroa de frade. Há quanto
tempo sabe ele isso, ainda que teime em assinar como frade? Mas isso é o menos: se
necessário fosse, num instante os cabelos se tonsuravam ao jeito de uma coroa de frade.
E tudo voltava ao normal e talvez os outros que o povoam se aquietassem num qualquer
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recanto da sua alma, resignados com a mentira. O pior é que também a sua alma de
professo já não responde a qualquer sinal de fé. A mesma fé que em tempos o irradiou
de vontade e de crer. A mesma fé que o ensinou a acreditar na beleza de um céu
povoado de estrelas longínquas como prova de uma divina ordem universal. A mesma
fé que o tornou peregrino da beleza natural, florescida em cachos de cor nos campos de
Alenquer. Redução extrema à raiz inicial de si vingando agora como se fora enxertada
no espírito do próprio São Francisco de Assis.
Irmão sol, irmão vento, irmã terra…
Quanta vez não se perdeu ele nas linhas de uma flor silvestre procurando o
princípio da forma e da cor em cada pétala minúscula, acreditando piamente que todos
aqueles ínfimos detalhes só podiam acontecer se tocados pelo ânimo divino. Cântico dos
cânticos da vida. Nem podia ser de outro modo. Porque na natureza – entendia ele – não
havia vontades autónomas, pois nenhuma flor desabrochava sem que todas as outras
também desabrochassem, cumprindo ciclos perfeitos de vida: nascimento, morte e
ressurreição, nascimento, morte e ressurreição... A mão sagrada do Criador dava vida a
toda a sua criação, mesmo aquela aparentemente inútil e seca por fora. Cumprida a
vontade de Deus, nunca à Sua voz a natureza deixava de reverdecer. Que melhor prova
para entender o significado do Criador poderia ele ter do que o milagre da primavera,
ano após ano, cumprindo-se no ritualmente de cores e formas infinitas… Até chegava a
acreditar, quando se deitava à sombra de uma árvore naquelas tórridas tardes de verão,
que era possível ouvir – aquietando-se tudo por um instante, cigarras, pássaros e vento –
o som da máquina divina a rodar nas suas rodas dentadas.
O verdadeiro som de Deus… Que ele nunca conseguiu ouvir acreditando nele.
Porque não falou ele desse mistério aos mais doutos frades da Ordem?
Agora é tarde.
Porque agora, nesta aridez desértica em que se transformou a sua alma e onde já
não há primaveras a explicar o sentido belo e profundo da vida, a fé parece
definitivamente fugida de si. Vazio inexplicável. Como alguém que abandona um amigo
sem coragem de se despedir, deixando-lhe no peito, não um deserto de areia, não um
céu sem estrelas, não um campo sem flores… apenas fantasmas. Fantasmas não, que
esses não explicam a vida aquém da morte. Apenas vozes. Vozes de outros que nunca
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aceitaram morrer a fatalidade da morte sem primeiro se saciarem na beleza da vida…
Porque a morte não deve ter razão contra a vida, nem Deus deve ter razão contra
aqueles que a amam.
Jerónimo tem agora a estranha certeza de ter ficado trancado por dentro. Virado
a si mesmo. Incapaz de fugir para os braços de um qualquer aconchego.
– Só a Jerónimo preso me vejo…
E pelos sinais que o corpo e o espírito lhe mostram, agora mais do que nunca,
até parece que combinaram morrer abraçados à mesma sorte. É só uma questão de
tempo…
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VINTE E UM
Neste setembro que se apaga a dias mornos e soalheiros, os barcos chegam ao
Tejo vindos de longe. Sucedem-se, arriando as velas à vista da cidade como quem
descansa da exaustão de um mar sem fim. Em nenhum deles vem o Desejado, muito
menos os centos de homens que o seguiram na sua insensata jornada. Para as mulheres
que teimam esperar pelo milagre de os ver regressar começa a parece-lhes que, também
neste caso, o aforismo popular ganha a qualquer rogo à Senhora da Guia: de pouco vale
a diligência onde falece a ventura.
Quem volta neste torna-viagem é a galé capitania. Ninguém a esperava tão cedo.
Mas volta. E apressada em fundear na Ribeira, o que é uma consolação para Jerónimo.
Para Jerónimo e para quase trezentos forçados, que como ele servem ao remo. Uns
pagando pelos erros à justiça comum, outros pagando pelas culpas à justiça de Deus. E
Jerónimo pagando erros e culpas a Deus e aos homens.
Saiu a galé no passado dia nove de setembro para a sua última missão de
vigilância anual à barra do Tejo. Rotina marítima imposta pelas circunstâncias militares
exigidas à permanente defesa das águas costeiras portuguesas, pois ultimamente os
ingleses têm por hábito aparecer às portas de Lisboa quando menos se espera. Bem
lembrados estão todos do ano de mil quinhentos e noventa e oito quando uma esquadra
de cinco naus da Índia foi bloqueada ao sair do porto de Lisboa por uma frota inglesa de
vinte grandes velas comandada por George Clifford, conde de Cumberland…
Todavia, o regresso apressado da galé capitania bem se justifica, pois vários
homens da tripulação vêm gravemente doentes. Quase todos atacados de febres ruins, o
que não sendo bem o caso de Jerónimo é um dos que vem em pior estado. Coisa, claro
está, para muito anojar o capitão, pois não gosta que os forçados fiquem doentes. Basta
um ficar enfermo na bancada para que todo aquele remo fique sem préstimo. E depois,
se insistir em continuar e a doença tomar a tripulação de soldados e marinheiros é ele
próprio que corre perigo de ficar enfermo. E um capitão que fique cativo da
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enfermidade na sua câmara, à ré e confinado às vistas do seu escotilhão, é quase sempre
rastilho para um qualquer motim a bordo. Porquanto no mar como em terra há sempre
quem esteja disposto a ocupar os lugares de comando quando suspeita de uma qualquer
vulnerabilidade do líder. Todos sabem que até Deus, que é Deus, tem de estar sempre de
olho fito nos ardis do Diabo, useiro e vezeiro nas artes da falsidade e da sedução.
Os forçados, mal chegados a terra, regressam ao desterro da prisão para
continuar a cumprir as suas penas. Por isso não é de estranhar que Jerónimo seja de
imediato encaminhado ao Tronco onde dá entrada na manhã do dia dezoito de setembro
de ano de mil e seiscentos.
Foram certamente os piores nove dias da sua vida aqueles que passou ferrado ao
remo da galé capitania. Ele que perdeu as forças muito antes de ser levado àquela
bancada infernal, onde quatro homens sempre pareceram poucos para manobrar um
único remo. Horas a fio de infinito sofrimento. Ele pior que todos, pois que com um
braço perdido para o esforço muscular, o outro trabalhou a dobrar. Quantas vezes, caído
de exaustão sobre o remo, fingia que remava. E sem o conseguir disfarçar aos guardas
do turno, expondo-se ao ridículo da vergastada, que nisto de punir os fracos seja no mar,
na terra ou nos céus, há sempre quem tenha nas mãos um chicote pronto a usá-lo com
severidade. É até caso para pensar se o castigo do Inferno não será todo ele ministrado à
vergastada, pois não se está a ver um sofrimento mais demorado e cruel infligido à
carne de um padecente.
Só Deus sabe a brutalidade daquela cruz. Ou talvez não saiba, pois se o soubesse
certamente não permitiria uma tal expiação dos pecados da alma e do corpo. Alma e
corpo são coisas que Jerónimo teima em não deixar despegar. Já lá vai o tempo que a
alma se lhe soltava livremente do corpo. Voava por puro prazer de voar. Agora parece
que tudo está a voltar à firmeza com que nasceu. Mas tudo numa lástima. Os olhos
quase não vêm, fulminados de tanta sombra da cela e de tanta luz do mar. A boca é uma
ferida de pus e sangue onde só a água fresca é suportável refrigério. Da sua pele, seca,
gretada, ulcerada e roída pelas pulgas e percevejos, não se aproveita um palmo que seja.
As pernas, essas, conservam as marcas brutais dos ferros com que foram sujeitas às
bancadas da galé.
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Mas o pior de tudo são os espasmos gélidos das febres que vão e vêm como as
marés. Por isso é com uma alma solidária a um corpo que morre que conta para se
manter vivo.
Nos dias em que passou no mar, à noite, que é quando se tornam voadores os
sonhos dos homens, escapava ainda a sua alma para Lisboa, vivendo nas ruas da cidade
como puto-pintor, ou como simples amante carnal de uma castelhana, tenra e fácil como
uma deusa lasciva de Buonarroti. Lembrava-a deitada na alcova, à luz de uma candeia
de azeite, debaixo de um cruxifixo mirrado como a sua fé, mostrando sem pudor os
volumes apetitosos do seu corpo lácteo, as mãos desvelando o triângulo sedoso... E
depois os gritos abafados de prazer… O cheiro do amor exalando aos bolores do sémen,
aos íntimos húmidos como terra lavrada.
Porque lhe morreu aquela filha antes de tempo? Teria agora sete ou oito meses,
os mesmos com que morreu no ventre da mãe. Terá sido Deus que não a quis por ter
sido concebida em pecado? Se foi Deus que assim o quis, que sentido faz matar uma
criança no ventre da sua mãe por ter sido concebida em pecado? Que tipo de Deus seria
esse que, matando um filho inocente de um homem, proibiria esse mesmo homem, pelo
quinto mandamento, de matar a um semelhante?
– Já de ti, Deus, nada desejo…
Escapava a sua alma, ainda, para Alenquer, vivendo a vida de franciscano,
pintando belas imagens devocionais, rezando o misere ao lado de Nossa Senhora,
escapando-se pelos campos ao redor do mosteiro para ver desabrochar a beleza íntima
das coisas. Ou para Luanda, vivendo aventuras de soldado no sertão, na conquista das
minas de prata de Cambambe e no combate sem trégua aos poderosos sobas da região.
Ou as aventuras de um marido feito à força, casando-se publicamente para não dar
motivos a alguém, mais curioso, lhe remexer no passado de frade professo. Ou para
Olinda de Pernambuco, vivendo a felicidade simples do paraíso terreal com a sua esposa
feia e possessiva. Ou de novo as noites de amor com a sua jovem castelhana de
dezanove anos, que lhe mostrou quanto a beleza de uma mulher pode cegar a lucidez de
um homem. Lembra-a, como certa vez a pintou, no seu porte majestoso, imitando uma
Nossa Senhora. Como é enganadora a arte dos pintores:
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De tanto que fugiu, de tanto que caminhou, faltou a alma ir a Roma. Porque não
pensou nisso antes? Agora já não sabe se vai a tempo de o fazer, pois não vê como o
corcel moribundo da sua alma se possa desagarrar do corpo e partir em busca de tão
longínquo lugar.
O sol, entretanto, sem se dar por isso, vai descendo à terra a grandes astros
violetas, devagar, que nenhuma é a pressa das esferas celestes. Nem a poderia ter, pois
como poderiam girar depressa os nove círculos do inferno, os nove degraus do
Purgatório e as nove esferas do paraíso? Bem se sabe que tudo isto gira como uma roda
vagarosa pelo amor que move o sol e as estrelas, que é como quem diz, à volta de DeusPai-Criador. E girando, girando, espera Ele o Juízo Final que se anunciará pelas
trombetas do Apocalipse. Que Deus, sendo criador, também é punitivo e destruidor.
Assim o diz João de Patmos.
João de Patmos… Até aqui, neste miserável buraco onde se enterra a dignidade
humana, chegam as suas palavras atormentadas como feridas abertas a profetizar a mais
negra morte que todos podemos esperar à voz do Juízo Final. Em nome da salvação.
Nisto, Deus, redentor e colérico, que lhe levou a filha antes de a mãe a parir e lhe deu
este trato esperto de vida, não se distingue em nada dos destemperados e coléricos
deuses antigos que os pintores também gostam de pintar…
O dia apagou-se finalmente nas cinzas da noite.
Pensa agora Jerónimo que há coisas que se vão perdendo para sempre. A fome é
uma delas. E como era bom ter fome. Saciá-la como um lobo se sacia numa carcaça…
A fé e a fome… Duas velas perdidas na sua barca desgovernada.
Resta-lhe a sede…
Muita sede…
E ainda que quase não tenha força para beber, o pouco que bebe sabe-lhe essa
água a vida. Em boa verdade é a água o único alimento que o tem mantido vivo, e a ter
de morrer até já não se importa que seja dentro de água. Da água do Tejo, apesar de
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podre e viscerosa, sempre é fresca e ajuda uma flor do campo como ele a aguentar mais
tempo na jarra da vida…
Mais tempo na jarra da vida, para quê?
A noite avança pelo céu como uma princesa de estrelas. É bom que seja bela a
noite, pois bem pode ser a derradeira. Também que interessa sofrer mais noites assim.
Subitamente, como se algo irrompesse sem aviso pela porta da memória,
Jerónimo lembra o cárcere de Alenquer, de onde fugiu. Fixa com estranha nitidez
aquele poema gravado na parede a ponta de prego, escrito por alguém à hora da
partida...
Não tem ele um prego, nem mãos subtis para o usar. Sequer engenho poético
para escrever uma frase que se assemelhe a um poema rimado. Apenas uma vontade
indomável de consagrar à vida as suas últimas palavras. Não a Deus. Não a suas duas
mães. Não a seus dois pais. Não a suas duas mulheres. Não a seus dois conventos. Não a
seus dois frades que o tentaram nas duas fugas insensatas… À vida! Única e bela. Que
lhe mostrou a beleza e a simplicidade das coisas. Que lhe mostrou a Arte dos insignes
pintores. Que lhe revelou os caminhos do mundo, tão vasto e tão belo. Que lhe
concedeu a liberdade de ter asas e voar como puto até ao poço secreto dos mergulhos…
E que o chama agora ao seu derradeiro momento para o transformar em pó.
E pegando ele numa pequena ponta de carvão arrancada às cinzas do fogareiro
começa a desenhar na parede como quem escreve o seu testamento vital:
Já de ti, Deus, nada desejo
Mas, ó enganadora fantasia
Quando cuidava que lhe fugia
Só a Jerónimo preso me vejo
A sua alma está cansada e só já pensa em apegar-se ao corpo para dormir.
Jerónimo pede-lhe, no entanto, um último alento. Que voe só mais uma vez… Até
Roma. Seja seguindo as passadas de dois frades apóstatas, seja nas asas de um pássaro,
que são aquelas que a alma escolhe para fugir mais depressa. Logo ele que tem treino de
puto.
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À luz mortiça da candeia de azeite, Jerónimo bebe mais um pouco de água e olha
para longe para ver se vê a sua alma a caminho da cidade dos seus desejos.
E já em Roma tudo é belo. Mas nada é mais belo do que a capela da Santa Sé
que os papas mandaram adornar de frescos pela mão insigne do pintor Buonarroti.
Ali estão eles. Ali está Deus tocando o dedo de Adão.
Quem dera a Jerónimo ser aquele Adão a receber o toque supremo da redenção.
Que o libertasse. Que o tornasse na pureza simples que ele desejou ser, um dia… Para
correr ao seu desejo de pintar e de ser novamente Jerónimo, o pintor que pinta muito
bem.
E neste encontro com a imagem pintada de Deus, que é sublime criação de um
insigne pintor, Jerónimo sente um derradeiro arrepio de frio. Um torpor que o desliga
aos poucos da vida. E já não ouve. E já não vê. Mas retém, por um brevíssimo segundo,
o calor daquela imagem de Deus, imóvel, imutável… a voar como um homem-pássaro.
Não é este o Deus que tanto esperou para o seu Juízo Final. Nem ele, no trono da
sua glória celeste, está ali para o julgar. Sequer para o levar a algum paraíso que sempre
acreditou merecer…
E sem outro gesto, sem outra vontade daquele rosto imóvel, criado pela divina
mão de um pintor, Jerónimo tem agora a certeza que ele e o seu Deus pintado nas
paredes da Santa Sé, nas paredes da sua cela, vão ambos morrer. Sós.
E o pior é que o arrepio da solidão, o mesmo que trouxe Jerónimo a Deus na
esperança de uma palavra redentora que lhe explicasse o sentido da vida, reaparece para
o acompanhar às sombras da morte sem uma palavra de conforto. Apenas o arrepio da
solidão.
Jerónimo interroga-se, ainda, como um náufrago sem esperança: então é esta a
morte que os vivos tanto temem de morrer pelo temor a Deus? Apenas o arrepio da
solidão?
Num derradeiro ardor da sua consciência, estilhaçando-se em salpicos de luz,
Jerónimo sente-se como uma estrela cadente que brilhou no céu a sua breve vida e agora
apaga-se no escuro da noite. Noite sem portas a abrir, sem luzes ao fundo do corredor,
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sem anjos e sem cânticos. Não que ele esperasse uma morte em passeio triunfal, bem o
sabe, pois está bem consciente de que já nada disso o espera. Talvez ainda pense
inutilmente: ao menos uma despedida final como num beijo de amor...
Mas de repente uma última luz explode-lhe os olhos. Luz quente como num dia
de verão. Tão quente que até parece ser a do próprio Inferno. E vem acompanhada de
vozes de crianças, como anjos que brincam no Paraíso.
Jerónimo hesita: não pode ser. Quem é ele? Onde está?
E tocando-o carnalmente, uma súbita frescura penetra-lhe no corpo como se
tivesse a mergulhar na água de um rio.
Parece ter endoidado de vez: que rio é este?
Até consegue sentir aquela leveza fácil de quem flutua. Até consegue ouvir
vozes de crianças que chapinham na água...
Onde está?
E nisto sente o sangue a regressar às veias dos seus braços, mesmo ao braço que
está meio-morto. E de tal modo bombeado de sangue palpitante que já consegue avançar
rio a dentro, nadando com os dois braços como novos. E sentido afastar-se para estar
próximo de qualquer coisa que ama consegue abrir finalmente os braços, os dois braços.
E de tal modo que mais parece um abraço. Vira-se contra a parede da cela com os
braços abertos como um cristo crucificado. Estica-os bem como se espreguiçasse um
gesto infinito. E ao longe, bem ao longe, na parede oposta da minúscula cela, como que
pintada de luz, está uma Lisboa que lhe cabe naquele abraço, de uma ponta à outra dos
dedos, a passar rente ao coração.
Só lhe apetece sorrir se for capaz de o fazer.
E estando de braços bem abertos para que nada fique de fora, as forças começam
a faltar. E já é inútil lutar com o peso do seu corpo. Que escorrega para o fundo como
que puxado à sua tumba.
Aos poucos a luz da cidade esmorece em tons de azul, laivados de violeta. E
logo o rio se tinge de púrpura. Como se as próprias águas o chamassem a si. Se fosse
criança, havia de resistir o mais que pudesse, batendo os pés e as mãos como os putos
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fazem quando querem muito fugir com a sua liberdade roubada. Mas agora, passado o
medo de sofrer, passado o medo da morte, passado o medo do castigo dos homens e o
temor de Deus, já não se importa de ir ao fundo, já não se importa, sequer, que os
fundos escuros do rio sejam a sua secreta sepultura. Pode até ser púrpura, da cor das
flores do aloendro.
Olha uma última vez a cidade ao fundo, à tona da água. E na sua boca tenta um
sorriso doce como quem diz para si, só para si: este é o último abraço que te dou.
Então, a alma aquieta-se ao corpo para morrer com ele.
Adormecem assim, como dois irmãos inseparáveis, aninhados a um mesmo
ninho de ossos e nervos.
E assim endurecem sem se abandonar, puto-alado, frade-pintor, monge-marido,
homem-pedra.
A noite, indiferente à morte dos homens, leva o véu de estrelas para o outro lado
do mundo. Do lado oposto vem chegando a Aurora com o seu facho de luz a alumiar o
dia. E o dia há de ser meigo e doce como só os dias de setembro sabem partilhar com os
moços e com os pássaros.
Em todo o caso, mais um dia de vómito e incenso para os que cá ficam sobre a
terra à espera de uma voz de Deus ou da nau impossível de um Desejado.
Os corvos, que são os primeiros a olhar a luz do céu e também os primeiros a
olhar a sombra da morte, esperam desde a eternidade pelo ranger das rodas da carreta da
Misericórdia, com os seus ouvidos de cão e olhos de águia. Hoje, amanhã e todos os
dias que Deus quiser, a cidade será sua. E ainda que o Espinha os não estime e os
espante à pedrada, voltarão, outros ou os mesmos, ao seu alto trono.
Um destes dias o Espinha vai a sepultar no seu próprio coval, ou corval, quem
sabe. É esse o destino de todos, até dos putos que já perderam o voar. O pior é que
ninguém cá fica para correr à pedrada os corvos…raios os partam!
Não há azul que amanheça sem eles.
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