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Revista História & Luta de Classes Nº 12 – Setembro de 2011 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO..............................................................................................................................................................5 RESUMOS / ABSTRACTS................................................................................................................................................7 DOSSIÊ REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO DEPOIS DA REVOLUÇÃO?... REVISIONISMO HISTÓRICO E ANATEMIZAÇÃO DA REVOLUÇÃO.................11 Manuel Loff TRINTA E CINCO ANOS DE REVOLUÇÕES INTERROMPIDAS.............................................................................17 Valerio Arcary CENTRALIZAÇÃO X DEMOCRACIA: UMA APROXIMAÇÃO AOS DILEMAS COLOCADOS PELAS REVOLUÇÕES FRANCESA E RUSSA..........................................................................................................................23 Fabio Luis Barbosa dos Santos NAS TRINCHEIRAS DA DEMOCRACIA: OS COMUNISTAS E A FRENTE POPULAR ENTRE A REVOLUÇÃO E A CONTRA-REVOLUÇÃO..........................................................................................................................................28 Carlos Zacarias de Sena Júnior REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO NA ITÁLIA PÓS-FASCISTA...................................................................35 Paula Schaller REVOLUÇÃO SOCIALISTA E SUJEITO REVOLUCIONÁRIO EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI.....................43 Gilberto Calil POR UMA ALIANÇA OPERÁRIO-CAMPONESA: DILEMAS HISTÓRICOS DO SINDICALISMO ANDINO BOLIVIANO.....................................................................................................................................................................50 Bruno Miranda PARA ALÉM DE HUGO CHÁVEZ: AS CLASSES SOCIAIS NA “REVOLUÇÃO BOLIVARIANA”.......................56 Flávio da Silva Mendes ATIVISMO JURÍDICO E EFETIVIDADE DOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS: A CONTRA-REVOLUÇÃO E A MARCHA DOS REFORMADORES SOCIAIS...............................................................................................................62 Hélio de Souza Rodrigues Júnior ARTIGOS PRÁXIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO NO PENSAMENTO DE KARL MARX.................................68 José D’Assunção Barros A PRIMEIRA INDEPENDÊNCIA DO PARAGUAI.......................................................................................................73 Mário Maestri RESENHAS CARLOS NELSON E A DEFESA DA DIALÉTICA.......................................................................................................79 Mozart Silvano Pereira O LABORATÓRIO DE MARX........................................................................................................................................82 Maurício Vieira Martins NORMAS PARA AUTORES............................................................................................................................................84 Organizadores gerais deste número: Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Gilberto Calil (Unioeste) Editor: Gilberto Calil (Unioeste) Secretário: Luis Fernando Zen (Unioeste) Comissão Editorial: Danilo Martuscelli (SP), Enrique Serra Padros (RS), Gelsom Rozentino de Almeida (RJ), Gilberto Calil (PR), Igor Gomes Santos (BA), Kênia Miranda (RJ), Lúcio Flávio de Almeida (SP), Virgínia Fontes (RJ) Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Afonso Alencastro (UFSJ), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (UFF), Andrea Lemos Xavier Galucio ((UFF) Angélica Lovatto (UNESP), Antonio Cláudio Rabello (UNIR), Antonio de Pádua Bosi (UNIOESTE), Aruã Silva de Lima (UFAL), Beatriz Loner (UFPEL), Caio Graco Cobério (USP), Carla Luciana Silva (UNIOESTE), Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Cláudia Trindade (UFF) Cláudio Lopes Maia (UFG), Danilo Martuscelli (UFFS), David Maciel (UFG), David Rehem (LABELU-UEFS), Demian Melo (UFF), Diorge Konrad (UFSM), Dulce Portilho Maciel (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (UFRJ), Fábio Frizzo (UFF), Felipe Demier (UFF), Gelsom Rozentino (UERJ), Gerson Fraga (UFFS), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad (UFSM), Guinter Tlaija Leipnitz (UNIPAMPA), Hélio Rodrigues (IESB/CEUB), Hélvio Mariano (UNICENTRO), Igor Gomes Santos (IFBA), Isabel Gritti (URI), José Ernesto Moura Knust (UFF), Juliana Lessa Vieira (UFF), Kátia Paranhos (UFU), Kênia Miranda (UFF), Larissa Costard (UFF), Leandro Galastri (PUCCAMP), Lúcio Flávio de Almeida (PUC-SP), Luis Fernando Guimarães Zen (UNIOESTE) Luiz Bernardo Pericás (FLACSO), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marcos Marques Pestana (UFF), Marcos Smaniotto (UNIOESTE), Mario Jorge Bastos (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Michel Goulart da Silva (IFSC), Muniz Ferreira (UFBA), Osvaldo Maciel (UNEAL/UFAL), Paulo Douglas Barsotti (FGV-SP e NEILS), Paulo Henrique Pachá (UFF), Paulo Villaça (UFF), Paulo Zarth (UFFS/UNIJUÍ), Pedro Leão da Costa Neto (TUIUTI), Pedro Marinho (MAST), Rafael Caruccio (RS), Renata Gonçalves (UEL), Renato Della Vecchia (UCPEL), Renato Lemos (UFRJ), Ricardo da Gama Rosa Costa (FFSD), Rodrigo Jurucê Gonçalves (PR), Rômulo Costa Mattos (PUC-RJ), Sarah Iurkiv Ribeiro (UNIOESTE), Selma Martins Duarte (PR), Sirlei Gedoz (UNISINOS), Sydenham Lourenço Neto (UERJ); Sônia Regina Mendonça (UFF), Tarcísio Carvalho (Pedro II), Theo Piñeiro (UFF), Tiago Bernardon (UEPB), Valerio Arcary (CEFET-SP), Vera Barroso (FAPA), Vicente Ribeiro (UFFS), Virgínia Fontes (UFF/FIOCRUZ), Wanderson Fábio de Melo (USP), Zilda Alves de Moura (UFMS), Zuleide Simas da Silveira (CEFET-RJ). Próximos Números: Educação e Ensino de História. Envio de contribuições até 30.09.2011. Sociedade Pré-Capitalistas. Envio de contribuições até 30.3.2012. História e Memória. Envio de contribuições até 30/09/2012. Distribuição: [email protected]. Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagem da Capa: 1. March 18, Comuna de Paris, Théophile-Alexandre Steilen (1894); 2. Revolução Russa: marcha bolchevique em Smolnyi (1918); 3. Adolf Hitler; 4. Cartaz da Confederação Nacional dos Trabalhadores, Espanha (1936). Revisão e Edição: Gilberto Calil. Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45) 3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - Paraná. Foram impressos 1.000 exemplares em Agosto de 2011. SÍTIO ELETRÔNICO www.projetoham.com.br Ÿ Ÿ Ÿ Ÿ Versão integral: nº 1 a nº 7 Capa, Sumário e Apresentação: nº 8 a nº 12 Ficha de Assinatura Chamada de Artigos APRESENTAÇÃO História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 - 5 Revolução e Contra-Revolução Q uase 20 anos depois da publicação de O fim da historia e o último homem, de Francis Fukuyama, parece que já é possível fazer um balanço relativamente seguro sobre as duas décadas que nos separam da euforia neoliberal que afirmava a vitória inconteste do capitalismo sobre as utopias não realizadas dos séculos XIX e XX. Não obstante, como não há segurança quanto ao curso da história, preferimos afirmar com Gramsci que na história só se pode prever a luta, de maneira que a única garantia que temos é a que pode ser demonstrada pelos processos que se (re)inauguraram com século XXI e que em diversas partes do planeta tem sacudido o solo aparentemente seguro de governos e regimes que se defrontam com uma humanidade que permanece buscando a transformação, seja por via das reformas ou das revoluções. É verdade que hoje em dia a tese de Fukuyama só desperta interesse historiográfico. Por este e por outros motivos preferimos nos perfilar com Eric Hobsbawm, que logo após a publicação do libelo do historiador liberal sentenciou no seu Era dos extremos que ninguém que olhasse em retrospecto o breve século XX apostaria seu dinheiro no triunfo universal da mudança pacífica e constitucional de regimes e governos. O historiador anglo-egípcio ao se perguntar se revoluções continuariam acontecendo no planeta não titubeava em concluir que o mundo que entrava no terceiro milênio não parecia ser exatamente um mundo de sociedades e Estados estáveis. A América Latina e o Mundo Árabe, apenas para não citar a atual instabilidade da velha e conservadora Europa, parecem confirmar o prognóstico. Protestos, manifestações e mobilizações com dinâmicas diferenciadas e distintos graus de contestação ao capitalismo são cada vez mais freqüentes e intensos e não deixam dúvidas de que algo se move na dinâmica da luta das classes trabalhadoras. Ao mesmo tempo, também a contra-revolução em seus distintos formatos, redefine seus perversos contornos, do atentado fascista na Noruega à ascensão de governos da direita supostamente “civilizada” na Europa, muitas vezes em aliança ou com apoio de organizações extremistas que florescem como resposta reacionária à crise. A verdade é que a história não se presta a análises apressadas e a conclusão de Hobsbawm de que o mundo continuaria a assistir revoluções e toda espécie de catarse tinha o lastro de um olhar penetrante por toda uma era de convulsões, guerras, revoluções e contra-revoluções pelo globo. Nem bem o século XX chegou ao final, toda a proclamação eufórica do fim da história deu lugar ao pessimismo dos apologétas da vitória capitalista, diante das agressões imperialistas dos estadunidenses no Oriente Médio sob o pretexto da “guerra ao terror” e outras tantas agressões que continuamos a assistir pelo mundo, seguidas, obviamente, por uma resistência encarniçada. Ou seja, mudaram-se os argumentos e a tecnologia de guerra, mas o sangue derramado pelos povos oprimidos permanece tingindo de vermelho a história recente. O fato é que revoluções continuam a acontecer e não é necessários lembrarmos o recente exemplo da Tunísia e do Egito para afirmar que quando as massas entram em cena podem por abaixo ditadores e também “democratas” com seu receituário neoliberal. Que o digam argentinos, bolivianos e equatorianos, que recentemente derrubaram governantes eleitos pelo voto universal. Em verdade, por paradoxal que pareça, a movimentação das massas em inúmeros países tem conseguido por abaixo governos e governantes que são o produto das formas excludentes, social e politicamente falando, da democracia burguesa. O dossiê que o leitor tem em mãos, Revolução e Contra-Revolução, surge justamente com o propósito de passar em revista dois dos temas mais caros da historiografia marxista contemporânea, considerando que os processos históricos inaugurados com a Revolução Russa de 1917 só aprofundam a necessidade de reflexão diante de um presente de tanta instabilidade. Revoluções e contra-revoluções continuam a acontecer, mesmo que personagens e formatos variem ao longo do tempo. No plano acadêmico, a luta também prossegue com a disseminação de uma historiografia revisionista e neo-conservadora que pretende reservar o lugar do abominável para as revoluções, sendo necessário o combate dos marxistas. É justamente disso que trata o artigo Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução, do historiador português Manuel Loff, que abre este número de História & Luta de Classes. Loff identifica e critica as construções ideológicas hegemônicas que propõe, de forma a-histórica, que todas as revoluções necessariamente desembocam no totalitarismo, promovendo assim a anatemização do conceito de Revolução e desqualificando os processos revolucionários, responsabilizados por atacar uma ordem supostamente harmônica e legítima. A seguir, o artigo Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas, de Valério Arcary, indaga sobre os motivos pelos quais as revoluções sociais não acompanharam as revoluções políticas que transformaram diversos regimes desde meados da década de 1970. A resposta que dá o historiador que viveu em Portugal quando da Revolução dos Cravos é das mais instigantes e polêmicas, pois imputa à direção stalinista a responsabilidade histórica por diversas derrotas, vendo na democracia uma armadilha ainda mais devastadora para as direções revolucionárias. 6 - Apresentação Fábio Luís Barbosa dos Santos busca aproximar comparativamente as experiências revolucionárias de franceses e russos nos séculos XVIII e XX, respectivamente. Refletindo acerca destes dois processos paradigmáticos no artigo Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa, o historiador reflete sobre os dilemas colocados pela necessidade de centralização política da direção revolucionária, que no seu entender terminaram contribuindo para engendrar definições sobre os limites de sua radicalidade histórica. Nas trincheiras da democracia, de Carlos Zacarias de Sena Júnior, chama a atenção para a linha tênue que separa a dimensão revolucionária e contra-revolucionária das experiências de frente popular na história. Percorrendo os caminhos que levaram o Komintern a endossar a política de Frente Popular e a definir como linha oficial do movimento comunista internacional, o autor conclui que a definição de hierarquias superiores aos imperativos interesses da classe trabalhadora na luta de classes empurrou as organizações comunistas para o campo da contra-revolução e da democracia num dos momentos mais revolucionários do século XX, qual seja, o período de crise aberta com a derrota do nazi-fascismo em 1945. Em perspectiva semelhante, o artigo da historiadora argentina Paula Schaller, Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista discute o rico contexto do imediato pós-guerra, enfatizando a revolução social em curso, constituída no contexto da resistência antifascista. A autora propõe um balanço crítico que permita a compreensão da derrota da alternativa revolucionária e conseqüente restabelecimento da estabilidade burguesa, bem como o apagamento da memória sobre daquela experiência. A problemática da Revolução latinoamericana é contemplada nos três artigos seguintes. Em Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui, Gilberto Calil apresenta a originalidade do marxismo mariateguiano e sua reflexão sobre revolução e sujeito revolucionário na América Latina, discute criticamente algumas apreensões em torno de sua obra e reflete acerca de seu legado. O artigo de Bruno Miranda – Por uma aliança operário camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano – discute os impasses e as limitações das principais concepções e organizações sindicais bolivianas e sua incapacidade em efetivar uma aliança operário-camponesa. Considerando tal aliança como “um pilar da estratégia revolucionária em contextos históricos dependentes como o boliviano”, o autor busca refletir em torno dos limites das mais destacadas experiências da luta de classes naquele país. Também está presente a reflexão em torno da experiência venezuelana recente, no artigo Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana”, de Flávio da Silva Mendes. O artigo propõe, oportunamente, uma reflexão em torno daquela experiência pautada na análise das forças sociais em presença e da luta de classes mais do que na liderança chavista, considerando-as fundamentais para a configuração da crise orgânica que engendra o bonapartismo chavista. O artigo que encerra o dossiê –Ativismo Jurídico e efetividade dos direitos constitucionais: a contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais -, de Hélio Rodrigues Júnior propõe uma crítica do movimento do ativismo jurídico e sua crença na capacidade transformadora do Direito, sustentando que tal posição configura perspectiva contrarevolucionária e em aberta oposição à emergência social e política da classe trabalhadora. Esta edição traz ainda dois outros artigos. O primeiro deles, Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx, de José D'Assunção Barros, propõe uma reflexão sobre o conceito marxiano de práxis, em suas diferentes dimensões e sentidos, discutindo sua construção em diferentes obras do materialismo histórico e, em menor medida, em alguns marxistas posteriores. Por sua vez, o artigo de Mário Maestri, A primeira Independência do Paraguai discute as posições políticas e as ações militares empreendidas pelas distintas classes e frações de classe paraguaias frente ao processo de luta pela Independência, sustentando que constituiu-se naquele momento um bloco político e social que permitiu a concretização de uma independência de “forte sentido democrático-popular”. Duas resenhas complementam este número de História & Luta de Classes. Mozart Pereira saúda a republicação de O estruturalismo e a miséria da razão, de Carlos Nelson Coutinho, dimensionando sua importância histórica, sua contribuição teórica e sua atualidade. Maurício Vieira Martins, por sua vez registra a importância da recente tradução brasileira dos Grundrisse, avaliando a importância desta obra no desenvolvimento da reflexão marxiana e indicando algumas das questões presentes na obra. História & Luta de Classes chega a sua edição de número 12, ao ingressar em seu sétimo ano, mantendo sua perspectiva crítica e aberta ao debate, seu caráter de empreendimento coletivo, a diversidade de abordagens e perspectivas e a ênfase na centralidade da luta de classes para a compreensão da dinâmica histórico-social. Os resultados que vem sendo alcançados – progressivo reconhecimento e disseminação da revista, consolidação de seu projeto editorial, crescente internacionalização das contribuições, e manutenção de rigorosa periodicidade, reforçam as opções seguidas. Ao mesmo tempo, investimos crescentemente na veiculação eletrônica e informamos que mais três edições foram disponibilizadas na íntegra no sítio eletrônico – as edições de número 5 (Trabalhadores e suas organizações); 6 (Imperialismo: teoria, experiência histórica e características contemporâneas) e 7 (Estado e Poder). Agosto 2011 Gilberto Calil Carlos Zacarias de Sena Júnior História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 - 7 Resumos Manuel Loff. Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução. A leitura da Revolução, enquanto categoria conceitual do campo da História e das Ciências Sociais em geral, e da Revolução Portuguesa de 1974-75 em particular, tem vindo a ser feita através de uma perspetiva ideológica, que enforma a maioria das visões acadêmica e mediaticamente produzidas, que procura eliminar a viabilidade real do próprio conceito. A equação Revolução=Totalitarismo/Utopia totalitária está presente em quase todas as leituras que pressupõem serem os processos revolucionários geralmente ofensivos daquelas que se descrevem como sendo as mais profundas (e, presume-se, genuínas) tradições (por outras palavras, consensos sociais e simbólicos) das sociedades, tomando-as como produtos de projetos políticos, ideológicos e culturais cuja operacionalização na realidade social se descreve como tendo uma natureza totalitária. Palavras-chave: Revolução; Totalitarismo; Revisionismo. Valerio Arcary. Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas. Há trinta e cinco anos não triunfa uma revolução social anticapitalista. Nessas décadas, contudo, não faltaram revoluções políticas. Mas foram em sua ampla maioria revoluções democráticas que derrubaram ditaduras. A crise do estalinismo favoreceu a influência da estratégia de democratização da democracia na direção dos partidos mais influentes da esquerda. Ao abraçar a democracia liberal a maioria da esquerda despediu-se do projeto revolucionário, interpretado como o pecado original das ditaduras burocráticas. Essa escolha política teve desdobramentos teóricos. O primeiro passo foi procurar apresentar o estalinismo como o herdeiro de Lenin. Depois buscou legitimação em Marx, presumidamente gradualista, para se afastar de Lenin, supostamente, blanquista. O que merece ser considerada uma dupla injustiça. Não fosse isso o bastante, depois evoluiu para descobrir em ambigüidades do próprio Marx a responsabilidade pelo estalinismo. Palavras-chave: Revoluções no século XX; marxismo; socialismo. Fábio Luis Barbosa dos Santos. Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa. O presente trabalho realiza uma aproximação entre a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Russa (1917) com o objetivo de explicitar um dilema: a centralização do poder emerge como uma necessidade política em ambos processos, ao mesmo tempo em que contribui de maneira decisiva para gerar os constrangimentos que, em última análise, delimitam a radicalidade histórica destas experiências. Palavras-chave: Revolução Russa; Revolução Francesa; democracia revolucionária. Carlos Zacarias de Sena Júnior. Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução. O objetivo deste artigo é discutir os caminhos percorridos pela formulação da linha de Frente Popular no VII Congresso do Komintern, passando em revista a história do movimento comunista internacional para que se compreendam seus desdobramentos e as circunstâncias em que a atividade revolucionária da Internacional Comunista foi substituída pela diplomacia soviética e a revolução não cessou de acumular derrotas ao longo de quase oitenta anos, enquanto os comunistas dos PCs de vários países não deixaram de buscar alianças com as burguesias locais no caminho da democracia, sem adjetivações. Palavras-chave: Comunismo; Frente Popular; Internacional Comunista. Paula Schaller. Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista. No artigo propomos uma análise que propõe definir e conceituar as tendências estruturais que nos permitem considerar a experiência da luta armada antifascista na Itália como um processo de revolução social. Servimo-nos de categorias propostas por Gramsci tais como crise orgânica, correlação de forças e hegemonia, assim como a análise de Trotsky sobre a articulação entre as situações revolucionárias, a guerra civil e o duplo poder. Tentamos sublinhar aqueles elementos de possibilidade de superação do sistema social que estiveram presentes na experiência em estudo. Ao mesmo tempo, avançamos sobre um balanço crítico dos fatores subjetivos que, a nosso ver, contribuíram para minar esta possibilidade histórica. Palavras-Chave: Duplo poder, crise organica, burguesia, movimiento trabalhista, revolução. Gilberto Calil. Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui. O peruano José Carlos Mariátegui produziu uma importante obra dedicada à reflexão em torno da realidade latino-americana, sendo usualmente considerado como primeiro marxista latino-americano. Sua obra, marcada por uma perspectiva socialista revolucionária, é considerada inovadora e original. Este artigo pretende discutir o sentido desta inovação e originalidade, problematizando algumas interpretações presentes no debate existente no Brasil em torno da obra de 8 - Resumos e Abstracts Mariátegui, em especial as que o qualificam como “romântico” ou “voluntarista”. Para tanto analisaremos alguns de seus textos, com destaque para as proposições acerca da relação entre base material e projeto socialista, da ausência de perspectiva revolucionária por parte das burguesias locais; do caráter necessariamente socialista da revolução latinoamericana e da necessidade de incorporação dos trabalhadores rurais como parte integrante do sujeito revolucionário. Palavras-Chave: Mariátegui; Marxismo; Revolução. Bruno Miranda. Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano. Através de revisão bibliográfica, o presente artigo trata da formação e dos momentos cruciais do sindicalismo operário e camponês do Altiplano Boliviano, assim como seus encontros, paralelismos e indiferenças durante o século XX, até o processo de reabertura democrática na década de 80. O trabalho conclui apresentando os limites do sindicalismo mineiro de um lado e do sindicalismo katarista de outro no sentido de uma efetiva articulação operário-camponesa. Palavras-chave: sindicalismo; “Altiplano Boliviano”; “aliança operário-camponesa”. Flávio da Silva Mendes. Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana”. As ações do governo de Hugo Chávez na Venezuela ocupam lugar de destaque no debate sobre a política latino-americana neste início de século XXI. Porém, em muitos espaços – entre os quais se destaca, sem dúvida, a imprensa – a discussão acaba se atendo a aspectos superficiais daquela conjuntura e, assim, sintetizando o conflito às atitudes de Chávez e seus opositores. Neste artigo analiso a composição das forças sociais que atuam no interior dos blocos – chavista e antichavista – aos quais aparentemente se resume a luta política venezuelana na tentativa de encontrar, ali, interesses de classes. Neste percurso faço referência a algumas obras que dão subsídio ao estudo da luta de classes em períodos de crise, sobretudo ao 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Palavras-chave: Venezuela – Aspectos políticos; classes sociais; Hugo Chávez. Hélio de Souza Rodrigues Júnior. Ativismo jurídico e efetividade dos direitos constitucionais: a contrarevolução e a marcha dos reformadores sociais. O artigo busca submeter à crítica o movimento do ativismo jurídico que defende a capacidade do direito de revolucionar a sociedade, todavia, esse movimento não questiona que o direito está assentado no modo de produção capitalista e busca com este harmonizar-se e torná-lo mais humano. Tal posição representa prática contra-revolucionária que impede o protagonismo social da classe trabalhadora, uma vez que configura uma funcionalidade e mediação com o processo de acumulação e reprodução capitalista, impedindo uma elaboração teórica e prática que permita a classe trabalhadora mediar-se a si mesma ao invés de ser mediada por instituições e instrumentos moldados pelo processo de acumulação e reprodução capitalista. Palavras-Chave: Ativismo Jurídico, Revolução, Protagonismo Social. José D'Assunção Barros. Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx. Este artigo tem por objetivo desenvolver algumas considerações acerca da contraposição do conceito de Praxis no Materialismo Histórico (enquanto paradigma histórico-filosófico), no pensamento de Karl Marx, e no Marxismo como um programa político específico que se dirige a propósitos de estabelecimento de uma organização socialista. O conceito é contraposto inicialmente aos conceitos de Theoria e Poiésis. Palavras-Chave: Práxis; Materialismo Histórico; Marxismo. Mário Maestri. A Primeira Independência do Paraguai. Em 1810, a Revolução de Maio emancipou o Prata, para submetê-lo a Buenos Aires. Cabildo em Asunción manteve-se fiel à Espanha, rejeitando o governo portenho, que enviou tropas contra a província. No Paraguai, os espanholistas lutavam por Espanha; os portenhistas, por Buenos Aires; os proprietários criollos, pela independência/federação; os pequenos e médios proprietários/arrendatários, pela autonomia política, tributária e comercial. Os portenhos foram batidos, sobretudo pelos crioulos e plebeus paraguaios. O governador espanhol organizou-se para combater Buenos Aires e os patriotas, sob a proteção lusitana. Em 14 de maio de 1811, crioulos, apoiados por chacareros, peões agrícolas, etc. promoveram mote autonomista. Vergado o poder espanhol, as oposições entre crioulos, portenhistas e plebeus patriotas ensejariam independência de forte sentido democrático-popular. Palavras-chave: Paraguayan Independence; May Revolution; American Independence. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 - 9 Abstracts Manuel Loff. After the Revolution? ... anathematization historical revisionism and the Revolution. Historical and political interpretations of modern revolutions, and of the Portuguese 1974-76 Revolution in particular, and of Revolution as a conceptual category in History and in Social Sciences, has been produced in the last 20 years under a dominant ideological perspective, that shapes most of the academic discourse and the one produced by liberal and conservative political elites and the mainstream media, seeking, among othe rthings, to eliminate the sheer political viability of the concept itself. Assuming Revolution = Totalitarianism/Totalitarian Utopia has been present in interpretations describing revolutionary processes as being generally offensive of those who describe themselves as being the most profound (and presumably genuine) traditions (in other words, social and symbolic consensus), turning them into products of political, ideological or cultural projects whose operationalization in social reality is described as having a totalitarian nature. Key-words: Revolution; Totalitarianism; Revisionism Valerio Arcary. Thirty-five years of an interrupted revolution During the last thirty-five years not a single anti-capitalist social revolution prevailed. However, political revolutions did not lack in these decades. But they were in large majority democratic revolutions that overthrew dictatorships. The crisis of stalinism favored the influence of the strategy of democratization of democracy in the direction of the most influential parties of the left. By embracing liberal democracy most of the left said goodbye to the revolutionary project, interpreted as the original sin of the bureaucratic dictatorships. This political choice had theoretical developments. The first step was to try to make stalinism an heir of Lenin. Then sought legitimization in Marx, presumably gradual, to get away from Lenin supposedly Blanquist. What deserves to be considered a double injustice. As if this was not enough, then evolved to find in Marx's ambiguities the responsibility for stalinism. Key-words: Revolutions in twentieth century; marxism; socialism Fábio Luis Barbosa dos Santos. Centralization X Democracy: an approach to the dilemmas placed by the French and Russian Revolutions. This article aims to contrast the French Revoution (1789) and the Russian Revolution (1917) from the standpoint of the dilemma placed by the need of political centralization which has occured in both processes and, at the same time, has contributed decisively to generate the constraints which have ultimately restrained the historical outcome of these experiences. Key-words: Russian Revolution; French Revolution; revolutionary democracy Carlos Zacarias de Sena Júnior. In the trenches of democracy: the Communists and the Popular Front between revolution and counterrevolution. The aim of this paper is to discuss the paths followed by the formulation of the Popular Front line of the VII Congress from the Komintern, by reviewing the history of the international communist movement to understanding its consequences and the circumstances in which the revolutionary activity of the Communist International was replaced by Soviet diplomacy and the revolution has continued to accumulate losses over eighty years, while the Communists of PCs from several countries have left to seek alliances with the local bourgeoisie towards democracy without objectiveness. Key-words:Popular Front, Communist International, Marxism in the twentieth century Paula Schaller. Revolution and counterrevolution in the post-fascist Italy. In this article we deploy an analysis aimed to defining and conceptualizing the structural trends that allow us to consider the experience of the armed struggle against the fascism in Italy as a process of social revolution. Using the categories that Gramsci offered us, such as organic crisis, relation of forces and hegemony, and the analysis of Trotsky about the link between revolutionary situations, civil war and dual power, we try to emphasize those elements of chance overcoming the social system that were present in the experience under study. At the same time, we progress on a critical assessment of subjective factors, we believe, helped to undermine this historic opportunity. Key-words: Dual power, organic crisis, bourgeoisie, labor movement, revolución. Gilberto Calil. Socialist Revolution and revolutionary subject in José Carlos Mariategui. Jose Carlos Mariateguit, the Peruvian produced an important work devoted to reflection on the Latin American reality, and is usually considered the first Latin-American Marxist. His work, marked by a revolutionary socialist perspective, is considered innovative and original. This article discusses the meaning of innovation and originality, questioning some interpretations present in the existing debate in Brazil about the work of Mariategui, in particular those that qualify as 10 - Resumos e Abstracts "romantic" or "proactive". For this look at some of his texts, especially the propositions about the relationship between base material and the socialist project, the absence of revolutionary perspective on the part of the local bourgeoisie, the character necessarily Latin American socialist revolution and the need for incorporation of rural workers as part of the revolutionary subject. Key-words: Mariátegui; Marxism; Revolution. Bruno Miranda. For a worker-peasant alliance: historical dilemmas of unionism Bolivian Andes. Through bibliographic review, the present article treats formation and essential moments of Bolivian Highlands´ worker and peasant´s unionization, as well as approaches, parallelisms and indifferences along twentieth century. Democratic reopening on the 80´s is the terminal date. This work concludes with the presentation of the limits of miner and katarist unionism towards an effective worker-peasant alliance. Key-words: unionism; “Bolivian Highlands”; “worker-peasant alliance”. Flávio da Silva Mendes. In addition to Hugo Chavez: social classes in the "Bolivarian Revolution" The actions of the Hugo Chavez Government in Venezuela have a prominent place in the debate on Latin American politics since the early twenty-first century. However, in many areas – including, without doubt, the press – the discussion ends up sticking to the superficial aspects from that political context and thus synthesizing the conflict as a product from the attitudes of Chavez and his opponents. In this article, I analyze the composition of social forces that act inside the blocks – chavista and anti-chavista – which apparently resume Venezuela's political struggle trying to find, there, class interests. Through this path I make reference to works that benefit the study of class struggle in times of crisis, especially the 18th Brumaire of Louis Bonaparte, of Karl Marx. Key-words: Venezuela – Political aspects; social classes; Hugo Chávez. Hélio de Souza Rodrigues Júnior. Effectiveness of legal activism and constitutional rights: the conterrevolution and the march of social reformers. The objective os this text is subject to the cristicism the legal activism that defends the right of the ability to revolutionize society, however, this movement does not question the right sits on the capitalist mode of production. This movement represents the counter-revolutionary practice that prevents of a protagonist social, with mediation and functionality of the process of capitalist accumulation and reproduction, preventing a theoretical elaboration and practice which enables the working class to mediate itself rather than being mediated by institutions and instruments shaped by the process of capitalist accumulation and reproduction. Key Words: Legal Activism, Revolution, Protagonist social. José D'Assunção Barros. Praxis: considerations about the concept at the thought of Karl Marx. This article aims to develop some considerations about the concept of Praxis in the Historic Materialism (as a historicphilosophic paradigm), in the thought of Karl Marx, and in the Marxism as a specifically political program directed to the purposes of establish a socialist organization. The concept is initially contrasted with the concepts of Theoria e Poiésis. Key-Words: Praxis; Historic Materialism; Marxism Mário Maestri. Paraguay's First Independence. Abstract: In 1810, May Revolution emancipated Rio della Plata in order to subdue it to Buenos Aires' power. Cabildo in Asunción stood by Spain and did not recognize porteño's government, which sent troops against that province. In Paraguay, the españolistas wrestled for Spain; the porteñistas did the same for Buenos Aires; Creole planters fought for independence and federation; the small and middle landowners and tenants fought for their politic, commercial and tributary autonomy. Porteños were defeated by Paraguayan Creoles and plebeians. The Spanish governor organized an attack against Buenos Aires and patriots, under th Portuguese protection. On the 14 of May 1811, Creoles, supported by chacareros and farm workers, organized an autonomist movement. As soon as Spanish power was overthrown, oppositions between Creoles, porteñistas and patriotic plebeians allowed a strongly popular-democratic independence. Key-Words:Independência Paraguaia; Revolução de Maio; Independência Americana História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (11-16) - 11 Revisionismo histórico e anatemização da Revolução Manuel Loff1 O que é uma Revolução? Que representações temos da Revolução? Nós, os portugueses, pelo menos, que, parafraseando Bernardo Bertollucci2, já não sabemos bem se vivemos depois da Revolução (por referência ao 25 de Abril) ou, crescentemente empurrados de volta para os modelos econômicos e mentais do desenvolvimentismo capitalista do séc. XIX, se viveremos de novo num tempo que parece ser um ciclo antes da Revolução (por referência à percepção que os homens e mulheres dos séculos XIX e XX tinham da Revolução como um confronto inevitável que resolveria a tensão provocada por um grau muito elevado de exasperação social e política). A cultura contemporânea do progresso, feita de um ânimo otimista perante o avanço da ciência, percepcionada como uma luz emancipadora que liberta espaços inteiros da realidade e do conhecimento ao obscurantismo pessimista, e perante um autoconfiante triunfo da razão, usou frequentemente o conceito para descrever as grandes mudanças positivas na História social, política, econômica, cultural. A Revolução Francesa, como epítome das revoluções do Liberalismo rompedor do pós-Iluminismo, foi interpretada como fundadora de uma era de progresso que se definiu a modernidade. A Revolução Industrial foi, as mais das vezes, definida como a transformação mais radical dos padrões de vida das comunidades humanas, desencadeando os historicamente mais acelerados processos de mudança social, econômica e tecnológica, que abriram um caminho aparentemente irreversível nas formas de interação entre comunidades humanas geográfica e culturalmente inelutavelmente distantes até então. O estereótipo dos manuais de História começava quase sempre por recordar a longuíssima duração do ciclo histórico da economia rural agro-pecuária a que ela vinha pôr termo. No campo científico, as grandes rupturas epistemológicas foram em toda a contemporaneidade definidas, mesmo retrospectivamente, pelo conceito de Revolução: de Copérnico a Einstein, a proposta de 1 Professor Associado de História Contemporânea Universidade do Porto (Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais) e investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Doutor pelo Instituto Universitário Europeu (Florença), é autor, entre outras obras recentes, de «O nosso século é fascista!» O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945) (Porto: Campo das Letras, 2008), e coordenador, com Teresa Siza, de Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a ditadura (1891-1974) (s.l.: Comissão Nacional para a Comemoração do Centenário da República, 2010). 2 Cf. o seu filme Prima della Rivoluzione (Antes da Revolução), guião de Gianni Amico e Bernardo Bertolucci, Itália, Iride Cin. Ca., 1964. visualização dos avanços do conhecimento passaram sempre - passam ainda, reconheçamo-lo - pela semântica revolucionária. Centrar-me-ei aqui na percepção que dos processos revolucionários se foi construindo no último meio século. Aqueles que, inscrevendo-se, antes de mais, numa cronologia política, numa cesura dos ciclos políticos, produziram uma significativa mudança na ordem política, tiveram uma dimensão social e, inevitavelmente, econômica e cultural. Na melhor tradição progressista, Eric Hobsbawm definia, no seu clássico A Era das Revoluções, que “a política e ideologia [do mundo do século XIX] ficaram a dever-se sobretudo aos [revolucionários] franceses”. A “política europeia (de fato, a política mundial), entre 1789 e 1917, [foi] em grande parte a luta contra ou a favor dos princípios de 1789, ou dos princípios ainda mais incendiários de 1793”, o mesmo se podendo dizer para o século XX, entendia o historiador britânico, “da Revolução Russa de 1917, que ocupa uma posição de importância semelhante”.3 Esta leitura da História, que privilegia a organização da diacronia a partir de marcos de mudança sociopolítica muito intensa, tem sido crescentemente posta em causa por uma perspectiva revisionista da História que, porque ideologicamente coerente com um ciclo de hegemonia (para usar um conceito de Gramsci) neo-liberal e neo-conservadora que tem já quase três décadas, tem encontrado terreno particularmente acolhedor nas representações históricas que a cultura mediática difunde, ou nos discursos históricos, ou aparentemente históricos, que o Estado e as elites sociais e culturais produtoras de discurso histórico têm vindo a fazer. Este movimento que habitualmente se designa por revisionismo histórico tem como um dos seus objetivos centrais na batalha intelectual - é certo que intelectual, mas com fortíssimas repercussões políticas – 4 a “liquidação da tradição revolucionária”. Este ataque é anterior àquela que considero ter sido a reconquista da hegemonia ideológica por parte da direita intelectual neoliberal e neo-conservadora e, no séc. XX – não pretendo convocar aqui exemplos deste mesmo processo nas correntes conservadoras e irracionalistas do séc. XIX que já então concentraram as suas baterias sobre a Revolução Francesa -, centrou-se na construção de um argumentário demolidor da Revolução Soviética de 1917. Como em 3 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções, trad. port., 4ª ed. [ed. ori. brit: 1962], Lisboa: Estampa, pp. 65-66. 4 Cf. LOSURDO, Domenico, Il revisionismo storico. Problemi e miti, Roma-Bari: Laterza, 1996, cap. 1. 12 - Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução qualquer fenômeno desta natureza, este foi, é, um processo gradual, para cuja análise é fundamental verificar em cada momento o contexto político e ideológico da produção de cada contributo. Por exemplo, é ainda no contexto de um confronto tripolar entre as chamadas democracias ocidentais, as potências fascistas e a União Soviética stalinista que nos aparecem os prenúncios daquela que será a tese totalitária arendtiana – de que se falará mais adiante – através da tese de Alfred Cobban que, no seu Dictatorship, publicado em 1939, sustenta já que “num certo sentido, todos os ditadores europeus dos nossos dias são filhos do Manifesto do Partido Comunista”.5 Por outras palavras, um dos objetos ideológicos que mais arrebatadoramente ajudou a conceptualizar a necessidade histórica da Revolução para conseguir rupturas criadoras de estádios estruturalmente diferentes da vida humana, produzido num dos ciclos mais reveladoras da violência intrínseca da civilização capitalista, era lido como a fonte do mal totalitário que avançara como uma mancha de óleo pela Europa do período de entre-guerras. Primeiro dos procedimentos deslegitimadores da Revolução: a deriva autoritária/ditatorial/totalitária das suas propostas. Faltava estabelecer se o processo era ou não intrínseco ao projeto revolucionário, se a Revolução não resultará sempre de um projecto que, no ovo, esconde a serpente 6 totalitária (para usar outra metáfora cinematográfica) ... Antecipava-se já a leitura que hegemonicamente se imporia ao Ocidente da Guerra Fria, dos anos 1950, aparentemente inspirada em Hannah Arendt e no seu Origins of Totalitarianism, no qual, curiosamente, a autora alemã distinguia ainda Revolução bolchevique de Stalinismo, sublinhando a perspectiva de Lenine ao promover uma “classe camponesa emancipada”, a modernidade da sua política das nacionalidades, a sua “[tentativa] de fortalecimento da classe trabalhadora encorajando os sindicatos independentes”, até mesmo a sua “[tolerância] para com o tímido aparecimento de uma classe média proveniente da NEP”. Arendt não encontrava, em 1951, na Revolução bolchevique, nem mesmo naquilo que descreve como sendo a “ditadura revolucionária” de Lenine (por oposição à “ditadura totalitária” de Stalin), os processos que intrinsecamente 7 explicassem a passagem para o Totalitarismo. No início dos anos 1960, contudo, Arendt evolui para um outro patamar da anomalização da Revolução – ou melhor, de um certo tipo de revoluções, aquelas das quais está presente uma dimensão de ruptura da estrutura social pré-existente. No seu ensaio On Revolution, a referente filosófica de um pensamento que se tornara dominante no Ocidente lamentava o peso dos exemplos francês e russo na construção da modernidade política do séc. XX. A sua aposta era agora recuperar o “glorioso 5 COBBAN, Alfred, Dictatorship, [ed. ori. amer.: 1939], Nova York, Haskell, 1971, 112. 6 Cf. Ormens Ägg (O ovo da serpente), realizado e escrito por Ingmar Bergman, Alemanha/EUA, Rialto Films/Dino de Laurentiis Corp., 1977. A expressão aparece originalmente na obra Júlio César de William Shakespeare. 7 ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo, trad. port. [ed. ori. amer.: 1951], Lisboa, Pubs. Dom Quixote, 2004, pp. 422-32. exemplo” da Revolução norte-americana, na qual, recorde-se, esclavagismo e supremacia de uma minoria étnica de origem europeia coexistiam com a proclamação formal da liberdade e da cidadania como modelos políticos universais. Opunha-lhe Arendt a “trajetória desastrosa” da Revolução Francesa com a emergência do Jacobinismo. A dedução lógica era a de que “a liberdade se conservou melhor nos países onde não se desencadeou nenhuma revolução” segundo o modelo francês, ou, pelo menos, onde esta tenha sido derrotada. Começa aqui, podemos dizer – e di-lo Domenico Losurdo, por exemplo –, um outro procedimento argumentativo que tende a negar a viabilidade do conceito de uma “revolução ocidental”, que teria tido na Revolução Francesa um dos seus processos arquetípicos, procurando-se excluir da “civilização ocidental” (a expressão é usada por Arendt) a Revolução Francesa, de cujo legado se terá desembocado na Revolução de Outubro ou na revolução anticolonialista que percorria o mundo afroasiático já nos quinze anos anteriores à obra de Arendt.8 A desocidentalização da Revolução de Outubro – na esteira de uma velha tese do caráter não-ocidental (isto é, não-europeu) da Rússia e da cultura russa - já a havia tentado Robert Palmer, que no seu The Age of Democratic Revolution (publicado em 1959-64) distinguira já a “revolução do mundo ocidental” do séc. XVIII, na qual, em geral, e até então, se incluía ainda a Revolução Francesa, das revoluções de um mundo que ocidentocentricamente se definia como “não ocidental”, e que iam preenchendo o séc. XX. O enorme alcance de semelhante tese percebe-se melhor se considerarmos que desde, pelo menos, o séc. XVIII, as elites europeias vinham definindo a modernidade, o progresso, o triunfo da civilização e do espírito humano como um puro produto ocidental, desse Ocidente que se espraiava pelas duas margens do Atlântico e que rapidamente reivindicaria, em plena era do triunfo liberal e capitalista, um direito de conquista e ocupação civilizadora e libertadora do resto do planeta. O procedimento argumentativo é o da patologização da Revolução, dos processos revolucionários, descritos como ciclos anômalos na História. Quando nos anos 1970 François Furet se lançou sobre o legado da Revolução Francesa, descreveu as “incessantes agitações revolucionárias” na França dos sécs. XVIIII e XIX como uma “doença”, provocada por “vírus de uma espécie nova e desconhecida” que se “enfureceu”, ainda por cima “com violência redobrada no séc. XX”9 através, por exemplo, das revoluções de impulso socialista e anticolonialista. A tese era já de que estávamos perante um “delírio ideológico” - a ideologia como febre que devasta o organismo social - que teria produzido o chamado Terror do período 1793-94 e, um pouco mais de século depois, diretamente, o Gulag. A psiquiatrização da semântica com que a Revolução Russa é apresentada teve num dos seus mais consagrados historiadores, Richard Pipes, um cultor. No 8 Cf. ARENDT, Hannah. On Revolution, Nova York, Penguin Books, 1962. 9 FURET, François. Penser la Révolution Française, Paris, Gallimard, 1978, pp. 16-17. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (11-16) - 13 seu The Russian Revolution, de 1990 fala-se de “psicose revolucionária”, de um “desejo intenso, irracional, de ver ruir todo o edifício da monarquia russa”, pressupondose, portanto, que o combate político dos partidários da Revolução se fizera, se faz, movido por um desejo psicótico semelhante ao do incendiário que se regozija na destruição pura e simples... Quem eram os portadores de semelhante patologia? Antes de mais um “grupo (…) nutrido de fanáticos, revolucionários de profissão”, uma vanguarda de conspiradores, portanto, capazes de mobilizar segmentos importantes da sociedade mas cujo enraizamento nesta, caracterizados enquanto conspiradores profissionais, se pode perceber apenas como sendo muito artificial. Por outras palavras, a Revolução é, entre outras coisas, produto de um grupo de revolucionários que, justamente enquanto tal, não são representativos do conjunto da sociedade. Outra das leituras correntes dos processos revolucionários – e que bem conhecemos, por exemplo, no caso da Revolução portuguesa de 1974-76 – é o de produzirem uma (lamentável, percebe-se) interrupção de ciclos reformistas legítima e honestamente democratizantes. É a tese, de novo, de Richard Pipes para o caso russo: o czar Nicolau II, por exemplo, já teria, em sua opinião, acolhido “todas as reivindicações dos revolucionários” em Novembro de 1916, em plena guerra mundial, um ano antes do triunfo bolchevique. Será, entre outros, a demonstrada capacidade de os bolcheviques contaminarem os próprios socialistas moderados liderados por Kerensky com o seu “discurso histérico” contra as “classes dominantes” da sociedade russa a alimentar uma, percebe-se, inútil deslegitimação 10 do sistema político. O “objetivo principal” de todo este movimento revisionista da História das revoluções contemporâneas é, no dizer de Domenico Losurdo, o “conjunto do ciclo histórico que de 1789 conduz a 1917”. Uma vez conseguido esse objetivo, produzem-se “efeitos e desabamentos em cadeia”: “Sem a Revolução Francesa não pode ser compreendido o Risorgimento italiano” ou aquela que é descrita já há anos como a “revolução desencadeada pelo Norte” contra o Sul esclavagista que 11 teria provocado a Guerra da Secessão norteamericana, da mesma forma que sem a Revolução de Outubro não é inteligível a luta de libertação anticolonial ou resistência antifascista dos anos da ascensão internacional do Nazifascismo, “na qual um papel de primeiro plano foi jogado pelas forças políticas e sociais que se 12 reivindicavam explicitamente do bolchevismo”. Neste sentido, desde o fim da II Guerra Mundial que se desenvolveu por toda a Europa toda uma literatura revisionista que pretendia pôr em questão a legitimação das democracias pós-1945 na luta das forças da Resistência antinazi, frequentemente tornada a ação desta equivalente, moral e politicamente, às práticas do ocupante ou dos seus aliados nacionais (os vichystas 10 Cf. PIPES, Richard. The Russian Revolution, Nova York, Alfred A. Knopf, 1990. 11 CURTIS III; G. M. & THOMPSON Jr., J. J. (eds.), The Souther Essays. Richard M. Weaver, Indianapolis, Liberty Press, 1987. 12 LOSURDO, op. cit., pp. 6-7. franceses, os partidários da República de Salò em Itália, os ustashas croatas, os colaboracionistas holandeses, 13 belgas, sérvios, gregos...). Até mesmo nos EUA, a leitura da política social de Roosevelt, nos anos do New Deal e da II Guerra Mundial, cujo projecto de democracia social baseado na freedom from want, foi interpretado por um autor tão influente como Friedrich von Hayek como tendo incorporado a influência ruinosa da “revolução marxista russa”.14 Talvez seja necessário situar o leitor brasileiro no campo da interpretação da Revolução portuguesa de 1974-76. O argumentário que acabo de expor tem sido replicado na leitura, hoje creio que já majoritária em Portugal, que desde os anos 1980 se tem vindo a fazer da Revolução aberta pelo 25 de Abril de 1974. Em sectores significativos da produção politológica e historiográfica, bem como, e sobretudo, na enorme maioria do discurso mediático e no discurso político das personagens da direita política, tem-se persistido na tese de um 25 de Abril como resultado de uma conspiração de um grupo restrito de militares, rapidamente aproveitada por um conjunto também restrito de membros de diretórios partidários da oposição antisalazarista mais radical – por outras palavras, um grupo pouco representativo da sociedade que se teria arvorado em vanguarda de uma mudança que, aparentemente, não teria sido desejada pela maioria. Como Pipes sobre a Rússia de 1916, desde meados dos anos 1990 (o 20º aniversário da democracia, em 1994, em plena fase final do ciclo cavaquista no governo português, foi um ponto significativo de elaboração desta interpretação) que se insinua que o 25 de Abril teria interrompido um processo de mudança política que já estaria em curso com o marcelismo, no qual, pelos vistos, se fundiriam modernização socioeconômica e uma resolução (em que termos?, isso é que não se especifica…) do problema africano. Os militares, preocupados com problemas de natureza corporativa e (inaceitavelmente, nesta perspectiva) cansados da guerra, ter-se-iam precipitado numa iniciativa irresponsável. Por fim, o processo revolucionário, com o que se descreve ter sido o seu estendal de excessos e erros (socialização da propriedade, nacionalizações, movimentos reivindicativos, …), teria propiciado iniciativas políticas que se interpretam como sendo contrárias ao espírito e às tradições mais profundas da sociedade portuguesa, obrigando os sectores e as instituições que se reputam serem representativas da sociedade portuguesa (a Igreja Católica, os sectores políticos e militares descritos como moderados e 13 Abordo desenvolvidamente esta questão em “O nosso século é fascista!” O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945), 2007, e Salazarismo e Franquismo na Época de Hitler (1936-1942). Convergência política, preconceito ideológico e oportunidade histórica na redefinição internacional de Portugal e Espanha, 1996, ambos Porto, Campo das Letras. Uma síntese em “Esquecimento, revisão da História e revolta da memória”, In DELGADO, Ivã; LOFF, Manuel; CLUNY, António; PACHECO, Carlos; MONTEIRO, Ricardo (coords.), De Pinochet a Timor Lorosae. Impunidade e Direito à Memória, Lisboa: Fundação Humberto Delgado/Edições Cosmos, 2000, pp. 189-202. 14 Cf. HAYEK, Friedrich von, Law, Legislation and Liberty, 3 vols., The University of Chicago Press, 1973-79. 14 - Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução responsáveis, o universo empresarial descrito como responsável pela produção da riqueza) ao recurso a todo o tipo de meios, sendo alguns deles (o que se vem admitindo, reveladoramente, cada vez mais) assumidamente ilegítimos em circunstâncias normais mas compreensíveis dada a deriva revolucionária no sentido totalitário (interpretação que é dada ao projeto político da esquerda revolucionária, e, dentro desta, 15 especialmente ao PCP): o bombismo ou a aberta interferência de serviços secretos estrangeiros, para conseguir corrigir os erros praticados. A leitura dos processos de mudança – como, ainda que não queira parecer demasiado óbvio, a leitura de toda a História em geral – envolve sempre, pelo menos na sua dimensão social e não estritamente acadêmica, ou intelectual, se se preferir, numa batalha pela memória que, em minha opinião, só recentemente começou a ter visibilidade pública. Como já deixei entrever, creio que é central a todo este processo uma viragem ideológica que configurou, desde o final já dos anos 70, uma nova hegemonia, de natureza neoliberal e neoconservadora, a primeira de cujas batalhas foi, justamente, a de denunciar uma visão da História centrada no otimismo teleológico que marcava as grandes etapas da História com um processo revolucionário incontornável, descrita agora como um produto de uma verdadeira ditadura cultural da esquerda, por vezes apresentada diretamente como um totalitarismo cultural marxista, para usar a terminologia com que os intelectuais neocon norteamericanos, ou um François Furet e um Bernard-Henri Lévy em França, um Ernesto Galli della Loggia e os ideólogos de bolso do berlusconismo em Itália, ou um Pacheco Pereira em Portugal, gostam de descrever a cultura progressista euroamericana que se estruturou desde a Guerra Civil de Espanha em torno de uma ampla frente de combate contra o Fascismo, e que permaneceu articulada até ao fim da Guerra do Vietname – de Hemingway ou dos Hollywood Ten,16 por exemplo, até Sartre, Brecht, os movimentos pela paz, Zeca Afonso17 ou a Escola de Frankfurt,18 para juntar vários e díspares exemplos de uma vez. 15 Entre Maio de 1975 e Dezembro de 1976, o «anticomunismo terrorista» de que fala Josep Sánchez Cervelló leva a cabo mais de meio milhar de operações terroristas, das quais resultam, pelo menos, 14 vítimas mortais. A sua estruturação «baseou-se em quatro componentes: o apoio da hierarquia eclesiástica, cujo epicentro foi o arcebispado de Braga; a ajuda operacional, técnica e econômica de Espanha, que além disso proporcionava uma retaguarda segura; a colaboração com os militares contrários ao 25 de Abril que vertebraram todo o movimento, tornando-o eficaz; e, por último, a concordância de todas as forças políticas desde os socialistas até à direita, majoritárias nos distritos do centro e norte do País» CERVELLÓ, J. Sánchez, A Revolução portuguesa e a sua influência na transição espanhola (1961-1976). Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 237. 16 Referência a dez das centenas de realizadores, guionistas ou atores que foram perseguidos nos últimos anos '40, primeiros '50, pela Comissão de Actividades Antiamericanas dominada pelo Senador McCarthy, concretamente um grupo que foi convocado simultaneamente e que se recusou a prestar declarações, o mais destacado dos quais era o realizador Edward Dmytryk. 17 José Afonso (1929-1987) é o mais emblemático dos chamados cantores de intervenção das décadas de '60 e '70 em Portugal, autor de «Grândola, Vila Morena», transformado em hino da revolução do 25 de Abril de 1974. Tomemos alguns dados eleitorais para localizar esta viragem ideológica naquela que habitualmente designamos por opinião pública do Ocidente: em Março de 1979, Margaret Thatcher vencia as eleições na GrãBretanha, meses depois o PCI retrocedia eleitoralmente pela primeira vez desde 1945 e os socialdemocratas suecos perdiam o poder para a direita pela primeira vez desde 1932; um ano depois, era a vez do primeiro triunfo de Reagan nos EUA, ao qual se seguiriam doze anos de administrações republicanas; em 1982, Helmut Kohl ascendia a chanceler por uma mudança de coligações no Parlamento, sendo ratificado nas urnas entre 1983 e 1997. Em todos os casos, salvo o sueco, as direitas políticas permaneceriam no poder até bem entrados os anos 90. Em Portugal, 1979 foi também o ano da primeira vitória eleitoral da direita portuguesa, através da Aliança Democrática; o PSD não sairia do poder nos 16 anos seguintes. Era o refluxo conservador, um pêndulo que virava generalizadamente à direita em quase todo o mundo ocidental.19 Pessoalmente, não creio que a produção da componente intelectual destas direitas tenha apresentado nesta fase histórica – os últimos 35 anos, portanto –, em que ganhou preponderância acadêmica mas sobretudo mediática, contributos particularmente inovadores relativamente ao acervo teórico que produzira desde os primeiros anos 50, sobretudo em torno da chamada teoria do totalitarismo. Neste sentido, o triunfo desta nova visão hegemônica da História e da realidade social parece-me não se ter devido tanto a um impulso intelectual especialmente criativo que, repito, não creio que se tenha dado, mas sim ter resultado de alterações profundas na relação de forças social e econômica que retiraram base de apoio aos sectores culturais que até aqui – e por simplificação – designei como progressistas. Já agora – e ainda que me não queira envolver numa grande discussão de metodologia de interpretação histórica -, deixem-me adiantar que não acho, da mesma forma, que tenha sido o grande vigor intelectual das esquerdas antifascistas dos anos 30 e 40 e dos anos 60 e 70 o principal responsável pelo seu predomínio ideológico no pós-II Guerra Mundial, porque, justamente, não creio que, em geral, possamos detectar honestamente situações de hegemonia, ou, pelo menos, de predomínio ideológico à escala de toda uma sociedade numa determinada conjuntura histórica, sem que essa tenha emergido de um conjunto de transformações sociais, e económicas, e culturais, que em muito superam o estrito plano intelectual.20 18 Designação pela qual se tornou conhecido o grupo de investigadores sociais de perspectiva marxista que começou a desenvolver o seu trabalho em 1923 no Institut für Sozialforschung. A sua teoria crítica tornou-se um contributo central na redefinição do papel das ciências sociais no séc. XX. 19 E até fora dele: na maior democracia parlamentar do Mundo, a Índia, a direita nacionalista e religiosa ganhara, pela primeira vez desde a independência em 1947, as eleições em 1977. 20 Apesar dos anos que sobrevieram à sua obra, parece-me útil recordar aqui a interpretação de um György Lukács sobre o papel da filosofia irracionalista na construção da hegemonia ideológica do Nacionalsocialismo na Alemanha: “El hecho de que nos limitemos a exponer esta parte del proceso [histórico de la emergencia del Nazismo], la más abstracta de todas, no significa, ni mucho menos, História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (11-16) - 15 Se entendi que as direitas intelectuais não haviam inovado de forma particularmente incisiva e criativa nos anos do seu triunfo político (os últimos '70, os '80) é porque sinceramente acho que o grande trunfo teórico que conseguiram introduzir no debate intelectual, com grande difusão social, foi claramente anterior a este período, porque ocorreu no início da década de 1950 e a que já me referi: a teoria do totalitarismo, base de uma verdadeira escola de pensamento que, mais até do que se basear na abordagem que Hannah Arendt faz, nas Origens do Totalitarismo, de um conceito reivindicado 21 por toda a galáxia fascista dos anos 30, usou o manual Totalitarian Dictatorship and Autocracy, de Carl Friedrich e Zbigniew Brzezinski, publicado cinco anos 22 mais tarde (1956), como verdadeira bíblia dos discursos dominantes na Ciência Política, na História, na Sociologia, propondo uma espécie de vulgata facilmente assumível pelos média e pelo discurso político mais banal. Muito sucintamente, além das suas potencialidades políticas imediatas (legitimar teoricamente a divisão política efectiva do planeta, no quadro da Guerra Fria, entre Estados/movimentos não totalitários, configuradores do Mundo Livre, e Estados/movimentos totalitários, necessariamente liderados pela União Soviética; hermanar um Comunismo a derrotar com um Nazismo já derrotado como subprodutos do mesmo conceito totalitário de intervenção na sociedade), a teoria do totalitarismo propunha uma explicação da mudança social radical e da mobilização social das massas nas sociedades contemporâneas como fenômenos necessariamente explicáveis pela manipulação deliberada, calculada, arquitetada por grupos políticos que se autodescrevem como vanguardas. Esta creio ter sido a maior vitória intelectual dos neoliberais dos anos 50, herdada pelos seus 23 correligionários do último quarto do século XX : ler os processos de mudança sociopolítica impulsionados pela participação das massas como jogos de manipulação de verdadeiros profissionais da subversão política, lançando, assim, a suspeita sobre a espontaneidade, a representatividade real de toda a mobilização sociopolítica. Lida a realidade desta forma, as únicas formas de mudança social não artificiais, designemo-las que tratemos de exagerar la importancia de la filosofía” - ou da ideologia - “dentro de la agitada totalidad del proceso real”. Centrado na realidade histórica alemã contemporânea, procurava Lukács “señalar el camino seguido por Alemania hasta llegar a Hitler, en el terreno de la filosofía (...), demostrar cómo esta trayectoria real se refleja en la filosofía, y cómo las formulaciones filosóficas” constituíam “el reflejo de la trayectoria real que ha conducido a Alemania al hitlerismo, han ayudado a acelerar este proceso histórico” [in LUKÁCS, Georg [sic], El asalto a la razón. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler, trad. esp., Barcelona: Grijalbo, 1975, p. 4]. 21 E que havia sido já trabalhado uma década antes por compatriotas seus alemães identicamente exilados, como Franz Borkenau e Franz Neumann. 22 Nova York: Harcourt, Brace and Co. 23 Com particular relevo para Francis Fukuyama e para a sua tese do “The End of History”, título do artigo publicado in The National Interest, vol. 16 (Verão de 1989); cf. também o seu O Fim da História e o Último Homem, trad. port., Lisboa: Gradiva, 1992. assim, seriam produto de longos processos de mudança, suficientemente longos para resultarem de complicados processos de negociação entre sectores das elites políticas e sociais, uns mais conservadores, outros mais reformistas, cujos produtos finais seriam, portanto, sempre consensuados com os grupos dominantes no momento em que tais processos teriam o seu início. Exemplos mais evidentes desta interpretação, obviamente neoliberal, dos processos históricos de mudança: “desastrosas”, “criminosas” terão sido as revoluções francesa e russa; “naturais”, “moderadas”, “gloriosas” até, as revoluções inglesa e americana. Se a leitura da História é sempre uma componente essencial da interpretação ideológica do mundo social, o que a teoria do totalitarismo vinha trazer para a arena intelectual era uma chave teórica de funcionamento bastante automático que permitia rejeitar à partida o fulcro do pensamento progressista hegemônico nos anos 60 e 70 do século passado. Os termos essenciais desta teoria – contraposição Mundo Livre/Totalitarismo, Liberdade/Revolução, respeito pela tradição contraposto a subversão social – foram, não nolo esqueçamos nunca, claramente hegemônicos em algumas das sociedades ocidentais mais ricas (a norteamericana, a alemã ocidental, a italiana, provavelmente a britânica), convivendo com o predomínio dos ideais progressistas noutros âmbitos da interpretação do mundo, como a deslegitimação do colonialismo formal, a relativa laicização dos costumes, a procura da liberdade sexual ou o triunfo temporário de um conceito do Estado como representação da sociedade, empenhado na procura do Bem Público24. Será aquela viragem política do fim dos anos 1970 e dos anos 1980, num sentido politicamente conservador e ultraliberal no estrito campo da economia, acompanhado da crise definitiva do modelo soviético que arrastou atrás de si grande parte do movimento comunista internacional na viragem das décadas de '80 para '90, a esvaziar a capacidade mobilizadora dos valores ideológicos progressistas, abrindo espaço aos valores das direitas. No caso português, em que é que aquelas leituras estereotipadas da Revolução de 1974-76 me parecem 24 Relativamente a estas questões, costumo citar Richard Bosworth, para quem «a teoria do totalitarismo foi deliberadamente desenhada para se ajustar ao seu tempo», ou seja, os anos '50, «[a sua] década», podendo «a maioria dos historiadores perceber a procedimento tão automático através do qual os pressupostos com que se interpretou o inimigo do ciclo anterior, a Alemanha nazi, foram transferidos para o seguinte, a URSS». A sua hegemonia terá tido até «implicações "totalitárias"» em duas grandes vertentes: «Era a resposta certa, ou melhor, a única resposta. Era ainda a resposta válida para sempre, ou, pelo menos, para um futuro previsível já que enquanto o comunismo sobrevivesse, nem a URSS, nem a China mudariam. A teoria era ainda, potencialmente, pelo menos, agressiva. Na atmosfera de guerra iminente que a própria teoria justificava ou promovia, aqueles que não aceitassem a resposta correta poderiam ter de ser contidos ou destruídos.» Nesta última acepção, Bosworth sublinha como a «ideia do totalitarismo deu impulso às piores formas de intolerância política e cultural que se manifestaram no McCarthismo» e configurou uma atitude de «[empenho] na sua resposta única» semelhante à dos seus «inimigos, os estalinistas marxistas vulgares». [BOSWORTH, Richard J. B.. Explaining Auschwitz and Hiroshima. History Writing and the Second World War, 1945-1990,. Londres e Nova York, Routledge, 1994, pp. 24-25]. 16 - Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução herdeiras, partícipes, dos instrumentos essenciais de leitura da realidade social da teoria do totalitarismo? Ao ler a Revolução como simples produto, ou melhor, subproduto, de uma conspiração militar, de um golpe bem sucedido, já de si resultado de uma manipulação de umas centenas de capitães por um par de ideólogos, deixa-se-a pairar, digamos assim, sobre a evolução histórica da sociedade portuguesa, tomando-a como um fenômeno excepcional que não se inscreve numa trajetória social, política, cultural mais ampla. Partindo deste pressuposto, como ler, então, todas as manifestações de criatividade política, social, cultural, moral, que se seguiram ao fim da ditadura, e que, visivelmente, envolviam tanta gente? Impossíveis de se conceber como elementos lógicos num caminho que se viria a percorrer nos anos anteriores, resta a possibilidade de as ler como produto, uma vez mais, da manipulação das massas por parte dos diretórios da subversão, vanguardas que, forçosamente desligadas da vontade, dos “sentimentos mais profundos da sociedade portuguesa” – a expressão está absolutamente banalizada neste tipo de discursos -, procuraram implantar soluções inaceitáveis. Daqui até ao totalitarismo vai um passo curtíssimo: o que é que pretenderia a esquerda revolucionária portuguesa implantar em Portugal em 1974-75? O totalitarismo, claro está. No ciclo de confronto de representações ideológicas, filosóficas, simbólicas, em que desde meados da década de '70 nos encontramos, a Revolução permanece presente. Como conceito operativo de leitura da História, a Revolução, por mais que se pretenda torná-la uma excrescência histórica sem lugar no mapa das expectativas dos povos, ocupará sempre a parte que lhe corresponde na percepção dos processos sociais. Da forma como usamos o conceito depende não só a (re)construção da nossa memória pessoal e coletiva – depende, acima de tudo, a viabilidade da sua aplicação futura. Artigo recebido em 05/04/2011 Aprovado em 21/05/2011 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (17-22) - 17 Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas Valerio Arcacy 1 M as essas reivindicações não podem satisfazer de nenhum modo ao partido do proletariado. Enquanto os pequenos burgueses democratas querem concluir a revolução o mais rapidamente possível,(...) os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o poder do Estado até que a associação dos proletários se desenvolva, não só em um país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado. Karl Marx e Friederich Engels2 Nas últimas três décadas e meia, revolução e contra-revolução mediram forças, seriamente, por mais de uma vez em diferentes continentes. Inúmeros países foram convulsionados por situações revolucionárias que asumiram a forma de greves gerais, marchas com milhões nas ruas, corte de estradas, ocupação de prédios e terras públicas, e enfrentamentos, às vezes sangrentos, com aparelhos repressivos. Muitos destes processos revolucionários foram derrotados, como a luta contra ditadura militar no poder há 45 anos em Myamar em 2007, ou a luta contra o golpe em Honduras em 2010. Revoluções políticas foram vitoriosas, entretanto em muitas nações. Não houve, no entanto, nesse intervalo histórico de uma geração nenhuma revolução socialista vitoriosa. Desde a derrota norte-americana no Vietnam em 1975, em nenhum outro processo o capital foi expropriado. A busca de uma explicação histórica para este desfecho deve considerar muitos fatores de diversas naturezas: econômicos, sociais, culturais, políticos e ideológicos. Desde a revolução portuguesa em 1974/75, a Grécia é o primeiro país europeu a viver uma situação revolucionária ou pré-revolucionária. Os países centrais continuaram poupados do vendaval da revolução. Na segunda fase da Guerra Fria a orientação de Moscou continuou sendo a colaboração com Washington para a preservação da ordem mundial, com o apoio, também, de Pequim que iniciava a restauração do capitalismo. A 1 Professor do IFSP (Instituto Federal de São Paulo), doutor em História pela USP (Universidade de São Paulo), e autor de As Esquinas Perigosas da História. 2 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Mensagem do Comité Central à Liga dos comunistas” In Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, p.86. decadência da economia soviética já era indisfarçável. Uma etapa das relações internacionais se fechou e outra se abriu em 1991 com a dissolução da URSS. Não obstante, a hipótese deste artigo é que entre os muitos fatores que podem explicar este processo, um merece ser apreciado com especial atenção, porque até hoje desvalorizado: a conversão da maioria da esquerda à democracia-liberal. Em outras palavras, o respeito de que o horizonte político da nossa época seria a regulação do capitalismo através de reformas, respeitando o calendário eleitoral. Este processo de adaptação não é uma novidade histórica, portanto, os fatores que o determinam merecem ser considerados como poderosos. Primeiro, a socialdemocracia européia, após a I Guerra Mundial, posicionou-se, claramente, contra o outubro russo. Depois o estalinismo, posicionou-se contra um Outubro na revolução espanhola. Na seqüência da Segunda Guerra, Moscou foi hostil à ruptura anticapitalista tanto na China, Vietnam e Coréia do Norte como em Cuba. Em Portugal o PCP defendeu o respeito aos acordos internacionais, incluindo a presença de Lisboa na OTAN. Finalmente, até Fidel Castro aconselhou os sandinistas a não fazer da Nicarágua uma nova Cuba. Após a restauração capitalista, a maioria da esquerda que nos seguintes a 1968 se fortaleceu à esquerda da socialdemocracia e do estalinismo aderiu, também, à estratégia da democratização da democracia. Ditaduras foram derrubadas por revoluções democráticas na América Latina (Argentina no início dos anos 80; Haiti e Paraguai nos anos 90), na África (África do Sul e Zaire nos anos 90; Tunísia e Egito em 2011) e na Ásia (Indonésia nos anos 90), entre inúmeros outros processos. Até governos eleitos foram deslocados pela mobilização política de massas, como na Argentina em 2001, na Bolívia em 2003 e 2005. Um golpe de Estado foi derrotado na Venezuela em 2002. As mudanças de regimes político exigiram, com uma freqüência mais intensa do que nas etapas históricas anteriores, o recurso aos métodos revolucionários. As transições negociadas de regime político de ditaduras para democracias, embora permanecessem acontecendo, como no Chile de Pinochet nos anos 90, foram mais exceções do que regra. Em nenhum processo, mesmo naqueles socialmente mais radicalizados, como na Nicarágua depois do triunfo da Frente Sandinista, o capitalismo foi ameaçado. A ditadura de Somoza foi derrubada na Nicarágua em 1979 e o entusiasmo que ela despertou ameaçou alastrar a dinâmica revolucionária para El Salvador, mas a onda terminou derrotada com o impasse da guerra civil financiada pelo governo Reagan. As 18 - Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas revoluções políticas permaneceram somente como revoluções democráticas ou fevereiros, por analogia com a revolução russa de fevereiro de 1917. Revoluções políticas são as revoluções democráticas que culminam com a demolição de regimes, ou seja, a destruição das instituições que garantiam a dominação política, mas mantém intactas as relações sociais, portanto, as relações de propriedade. Na época do imperialismo, as revoluções políticas merecem ser consideradas como revoluções sociais interrompidas, porque só podem vencer quando mobilizam as classes populares. Revoluções são qualificadas, freqüentemente, por três critérios: (a) pelas tarefas que se colocam; (b) pelos resultados que alcançam; (c) pelos sujeitos políticos que as dirigem. Não obstante, revoluções só podem ser avaliadas, historicamente, quando se considera as classes ou bloco de classes que as fizeram. Nas nações periféricas, mesmo aquelas mais retardatárias na integração no mercado mundial capitalista, as classes populares foram socialmente subjugadas e economicamente expropriadas e já iniciaram a proletarização há pelo menos duas gerações. Se os sujeitos sociais das revoluções políticas são as classes oprimidas e ou exploradas, as revoluções democráticas continham desde o seu início, de forma mais madura ou menos consciente, reivindicações econômicas e sociais que, para serem satisfeitas, ameaçariam a ordem capitalista. A presença e a disposição de luta da classe operária naqueles países dependentes ou semicoloniais mais industrializados e urbanizados sinalizavam o perigo de revoluções sociais. Mas, o que aconteceram foram revoluções sociais interrompidas, porque bloqueadas pela intervenção do imperialismo, como na Nicarágua, abortadas pela reação das classes proprietárias e desviadas pela escolhas estratégicas de direções como o CNA e o Partido Comunista na África do Sul. O que poderia explicar este desenlace histórico, se não faltaram crises regulares do capitalismo, e suas seqüelas não diminuíram os sacrifícios impostos à maioria do povo, inclusive, depois dos anos oitenta, no centro do sistema? Por quê tantas revoluções de Fevereiro, e nenhuma revolução de Outubro? Processos desta complexidade exigem que se considerem muitas variáveis em que as consequências se transformam em causas e vice-versa, ou seja, as determinações econômico-sociais e políticas estão de tal maneira entrelaçadas que redescobrir o fio da meada é um trabalho de ourivesaria historiográfica. A restauração capitalista na China e ex-URSS desvalorizaram o projeto socialista. As revoluções interrompidas facilitaram a restauração capitalista. O protagonismo do proletariado ficou dissolvido na grande frente da luta democrática de todo o povo, por ausência de uma auto-organização mais independente. Mas não se deve subestimar o papel desempenhado pelas direções políticas (sandinistas, tupamaros, montoneros, petistas, por exemplo) que abraçaram, despudoradamente, ideologias nacionalistas e democráticas para defender fórmulas obscuras de um projeto que, mesmo quando ainda nominalmente socialista, era apresentado como a luta pela democratização da democracia. Esta evolução de organizações originalmente independentes dos aparelhos socialdemocratas e estalinistas teve uma história que culminou em um transformismo que as deixou irreconhecíveis. Campismo, reformismo, e gradualismo podem assumir as mais variadas formas e culminaram na defesa em políticas públicas de assistência social focada. Veremos como e porquê. A urgência do internacionalismo Esta dinâmica não impediu a necessidade do internacionalismo que, ao contrário, ganhou nova urgência. Mesmo a vitória de revoluções políticas é duvidosa quando condenadas ao isolamento nacional, como ficou demonstrado no processo de Honduras em 2010. Uma onda torrencial de revoluções democráticas se estendeu pelo mundo árabe no primeiro semestre de 2011 levando à queda fulminante de ditaduras militares na Tunísia e no Egito, e à precipitação de uma guerra civil na Líbia, que provocou uma intervenção armada da OTAN, diante do perigo de descontrole do Oriente Médio. Dezenas de milhares de jovens e, também, de trabalhadores encabeçaram a mobilização de todo o povo, igualmente, no Bahrein, no Yemen e na Síria. O desenlace deste processo ainda é incerto. As revoluções democráticas poderão ser vitoriosas ou não. Assad em Damasco e Gadaffi em Trípoli poderão ou não cair. A onda revolucionária ainda terá forças para se estender até à Arábia Saudita, a fortaleza protegida dos EUA, da Europa e do Japão no mundo árabe? Não sabemos, também, em que medida os combates contra as ditaduras irão se radicalizar, socialmente, contra os privilégios de tipo “oriental” das burguesias dos petrodólares. É uma nova geração de jovens estudantes e operários que se levanta. Não sabemos se a revolução democrática em marcha terá forças para ameaçar o controle das grandes companhias internacionais que exploram o petróleo. Mas o que está em causa não é somente a dominação imposta nos países árabes pelas suas Forças Armadas, aparelhos que substituem a forma-partido nestes regimes bonapartistas, em regimes monárquicos ou de fachada republicana. O que está se encerrando é uma etapa histórica do capitalismo na região. Uma configuração do sistema de Estados construída para proteger o Estado de Israel e garantir o petróleo barato. As insurreições democráticas poderão ou não ser a ante-sala de revoluções sociais. A revolução política, contudo, voltou ao vocabulário da política. E quando a revolução reaparece como a ruptura da inércia histórica, desperta a contra-revolução. Porque são dois os planos que estão sendo, simultaneamente, articulados. Serão estes processos revolucionários derrotados, bruscamente, pela repressão impiedosa, como a de Assad na Síria? Os milhares de mortos, até agora, serão suficientes para interromper a dinâmica aberta pela Praça Tahrir? Ou serão desafiados pela tentativa de legitimar regimes democráticos eleitos que consigam integrar a esquerda através de eleições? História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (17-22) - 19 As teses pós-modernas de inspiração foucaultianas que insistiram nas últimas duas décadas na desqualificação da revolução deixaram de ser criticadas somente pelos marxistas. Foram refutadas pelos combates na Tunísia, no Egito, na Líbia, no Yemen, no Bahrein e na Síria. Grandes acontecimentos podem ter como faísca pequenos episódios, mas a centelha não explica o incêndio. A história registra milhares de fagulhas que não se alastram A auto-imolação de um jovem no interior da Tunísia inflamou a revolta de milhões, mas não esclarece porque ela aconteceu. Para aqueles que se interessam por história e marxismo, a onda de revoluções nos países árabes de 2011 reatualiza a discussão sobre a teoria da revolução no marxismo. O malogro da estratégia da democratização da democracia O marxismo interpreta os debates de estratégia caracterizando, em última análise, cada posição em função da intensidade das pressões de classe. Uma caracterização de classe não é algo simples e deve encerrar uma avaliação, não pode iniciá-la. As pressões de classe são, todavia, um fator inescapável na análise da política. Há mais de cem anos que a esquerda socialista conhece as conseqüências devastadoras da força de cooptação e, também, de coerção dos regimes democrático-liberais. A luta do movimento operário e das organizações socialistas foi decisiva para garantir a expansão do direito do voto, sendo uma das forças sociais e políticas que explicam a existência dos regimes democráticos. Mas, se a presença da esquerda foi vital para a conquista das liberdades democráticas e civis, influenciando e até determinando a forma dos regimes democráticos em inúmeros países, como a Inglaterra, a França e a Alemanha, é incontornável considerar, também, que a democracia-liberal exerceu uma pressão terrível sobre os partidos socialistas. Na verdade, deveríamos nos lembrar que o capital só aceitou a dominação através de regimes democráticos no final do século XIX e início do XX, quando obteve a garantia que os líderes socialistas tinham renunciado ao projeto revolucionário, assegurando-se que a socialdemocracia não utilizaria as liberdades democráticas para subverter a ordem, organizando os trabalhadores para a luta pelo poder. Na etapa histórica anterior à Primeira Guerra Mundial, a sugestão de uma “via inglesa” - a perspectiva reformista da possibilidade de uma transição pós-capitalista por dentro do regime democrático, portanto, sem ruptura revolucionária – esteve no centro da disputa dentro da II Internacional e ficou conhecida como o debate Bernstein. A querela do primeiro revisionismo marxista teve como pano de fundo a expansão imperialista do final do século XIX – até a Primeira Guerra Mundial - e a consolidação de regimes democrático-eleitorais, na Europa ocidental, que absorviam as ambições de integração dos aparelhos sindicais e parlamentares reformistas – uma casta burocrática sustentada em setores privilegiados da classe trabalhadora e, também, das novas classes médias assalariadas. O reformismo não era, contudo, nesse período histórico, somente uma ideologia desconectada do processo econômico-social. O regime democrático se apoiava em reformas ou concessões que favoreciam setores organizados entre os trabalhadores: o salário médio subia lentamente, mas subia; a redução da jornada evoluía lentamente, mas evoluía; contratos coletivos eram negociados reconhecendo direitos sociais mínimos; sistemas de aposentadorias, reformas e pensões surgiam em alguns setores mais organizados; muitas cidades as vilas operárias – a conquista da casa própria - como uma solução urbanística ao crescimento urbano; o acesso à educação pública se ampliava, os direitos políticos foram ampliados, etc... O “gradualismo democrático” permaneceu sendo a política dos aparelhos social-democratas, na etapa histórica posterior à Segunda Guerra, associados, dependendo do país, aos partidos comunistas alinhados com Moscou, mas despojado de horizontes socialistas. A reconstrução capitalista da Europa fomentava um crescimento que garantia o pleno emprego, potencializado pela divisão de áreas de influência no mundo entre os EUA e a URSS, que garantia estabilidade política aos regimes democrático-liberais nos países imperialistas. Este programa de colaboração de classes renunciou, finalmente, até ao vocabulário anticapitalista depois dos anos cinquenta, em função de um projeto de regulação social do capitalismo que buscava a universalização de serviços públicos como saúde, educação e previdência social. Social-democracia e estalinismo abraçaram a democracia e, durante décadas, relembravam o socialismo, uma quimera nostálgica, nos dias de festa. O regime democrático posterior entre 1945/1980 tinha bases sociais ampliadas: desemprego baixo, contínuo aumento da escolaridade média, aumentos salariais e ampliação do acesso ao crédito, ampliação da rede de segurança social e serviços públicos, etc... A armadilha democrática Mas, nos anos oitenta, no contexto de uma crise de estagnação econômica, o programa reformista desceu mais um degrau em sua adaptação ao regime democrático e aos limites do capitalismo, assimilando a pressão dos ajustes exigidos pelo programa do neoliberalismo, o que originou a Terceira Via dos anos noventa: depois de Felipe González e do segundo mandato Mitterand, Blair do Labour Party Britânico e Schroeder do SPD alemão passaram a denunciar a perda de competitividade da economia européia diante dos EUA e da Ásia, os gastos insustentáveis dos serviços sociais, os excessos fiscais do estatismo intervencionista, etc... Diante da ofensiva neoliberal, conduzida em vários países pelos seus próprios partidos ou com a cumplicidade de suas organizações sindicais, aconteceu uma evolução desfavorável para os trabalhadores das relações de forças sociais e políticas: com as derrotas, ocorreu uma desmoralização de amplos setores da classe. As bases sociais da social-democracia passaram, então, também, por grandes mudanças com o debilitamento do movimento operário tradicional e a precarização do trabalho da juventude. 20 - Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas O aumento simultâneo do desemprego crônico e de grandes movimentos migratórios do norte da África, do Leste europeu e da América Latina, ajuda a explicar o contexto do crescimento da abstenção operária, e o deslocamento à direita das classes médias rurais e urbanas. Em resumo, desde 1980, os regimes democráticos deixaram de oferecer para a classe trabalhadora, mesmo nos países centrais, a segurança de que a geração futura poderia aguardar um futuro melhor que a geração passada. Surgiu um reformismo de contrareformas. A democracia-liberal entrou em crise, e com ela a sua ala esquerda, os partidos reformistas, que passaram a defender um programa de administração do neoliberalismo com descontos: ruim conosco, pior sem nós, gerindo a destruição das gorduras acumuladas em décadas anteriores. A crise da economia capitalista, desde meados dos setenta, foi atenuada, mas não foi superada pela restauração capitalista no Leste e pela recolonização da América Latina. No Oriente Médio, o elo mais frágil da dominação imperialista no mundo, a resistência palestina permanecia indomável. Uma contra-ofensiva em escala mundial se iniciou com a eleição de Bush em 2000, conduzindo, a pretexto da luta contra o terrorismo islâmico, à invasão o Afeganistão e do Iraque. O mapa da esquerda mundial começou a passar, então, por grandes mudanças. Não só a democracia nos países imperialistas já não garantia emprego, salário, aposentadoria, saúde e educação, mas exigia uma política de guerra permanente. Nasceu um movimento mundial contra as guerras imperialistas que foi capaz de organizar marchas com alguns milhões. À esquerda da socialdemocracia e do curso majoritário dos ex-partidos comunistas, entre as ideologias nostálgicas do reformismo das etapas históricas anteriores, nenhuma foi mais representativa do que o programa da “cidadania participativa” que reuniu em Porto Alegre, desde 2001, centenas de organizações e algumas dezenas de milhares de ativistas de todos os continentes contra a globalização. Heterogênea, política e socialmente, com posições que oscilam desde a defesa das experiências do “orçamento participativo” do Governo do PT do Rio Grande do Sul, até à proposta da taxa Tobin sobre as transações financeiras internacionais, como os colaboradores da ATTAC, passando pelos que se iludem com o projeto de democratização dos organismos internacionais, como a ONU, o elemento comum que unifica uma boa parte dessa “nova esquerda” mundial é a ilusão na democracia. O internacionalismo revolucionário, tal como inspirou a fundação da Primeira, Segunda e Terceira Internacional, no limiar do novo século, seria uma utopia. O fiasco do Governo Lula, depois do que foram os governos Walesa e Mandela, é mais uma confirmação dos limites de uma estratégia reformista sem reformas, ou com reformas reacionárias. Mesmo as correntes que se colocam à esquerda desta esquerda – a maioria das quais com origem no trotskismo - são forças engajadas na construção de partidos anticapitalistas sem delimitação estratégica, ou seja, que admitem a idéia de unir em um mesmo partido, tendências que defendem a reforma do capitalismo e o gradualismo democrático, e tendências comprometidas com um projeto revolucionário. Nesta coabitação de projetos incompatíveis tendem a vingar híbridos com dinâmicas de adaptação aos regimes democráticos. A versão mais nuançada do reformismo contemporâneo admite a necessidade de preparação de mobilizações de massas para rupturas com o regime, porém, reduz a revolução a um “processo de rupturas” sem a necessidade de uma insurreição contra os governos democraticamente eleitos. A democracia seria inviolável. A democracia estaria blindada pela legitimidade das urnas. Há, por último, quem mantenha a convicção de que uma revolução permanece necessária como programa máximo, mas argumenta que aos socialistas caberia o papel de defesa e aprofundamento da democracia contra a burguesia como programa de ação. Não são poucos os que afirmam que este giro político decorre de uma redescoberta de Marx, em contraposição à versão leninista do marxismo, um blanquismo substitucionista e autoritário. Para outros, pressionados pelos pressupostos liberais, residia no próprio marxismo o pecado original que culminou nos regimes despóticos estalinistas: a transformação da sociedade apelando ao proletariado à revolução – uma classe explorada, oprimida e dominada – exigiria uma ditadura sangrenta, porque o custo histórico de uma menor desigualdade seria a destruição da liberdade. O recurso à “via inglesa” para justificar a estratégia de “democratização da democracia” A ditadura do proletariado, entendida como um período de suspensão parcial das formas políticas democráticas para uma parcela privilegiada e muito minoritária da sociedade - as classes proprietárias que foram derrotadas - ficou de tal maneira identificada com as ditaduras burocráticas que virou um conceito tabu. Mas no século XIX a idéia de uma ditadura revolucionária apoiada nas classes populares se inspirava na experiência da revolução francesa, e remetia à idéia romana de ditadura, um regime transitório e excepcional, em que a defesa da República exigiria medidas de exceção. A ditadura revolucionária era compreendida por Marx como uma necessidade incontornável em uma experiência de transição ao socialismo, já que em todas as experiências históricas da revolução burguesa a força da contra-revolução tinha sido devastadora. Se a passagem do poder das mãos de uma classe proprietária para outra, dentro de uma nação, como na Inglaterra em 1640 ou na França em 1789, teve como imperativo histórico a necessidade de ditaduras – a de Cromwell e a dos jacobinos de Robespierre - seria previsível que a passagem do poder dos capitalistas para uma classe de despojados, o proletariado, ainda por cima à escala internacional, deveria considerar, também, e seriamente, a necessidade de uma ditadura. A conceituação de ditadura do proletariado sempre foi uma definição da nova natureza do Estado, sob a qual poderiam existir, tal como sob a ditadura burguesa, variados regimes políticos. Não se encontrará em nenhum texto clássico do marxismo a teorização da História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (17-22) - 21 necessidade de uma ditadura de partido único. A ditadura na Rússia dos Sovietes não começou com a proibição dos partidos de oposição. Ao contrário, os partidos de oposição eram aceitos até o início da guerra civil. E só foram ilegalizados depois que atentados armados, como os dos esseristas de esquerda contra Lenin no centro de Moscou, colocaram em risco a própria sobrevivência do novo Estado. Se as revoluções socialistas viessem a triunfar em alguns dos países centrais, seria provável uma ampliação das liberdades democráticas para além dos estreitos limites estabelecidos pelas repúblicas burguesas, oferecendo um novo sentido histórico à definição de democracia. Mas, tudo isso são hoje somente hipóteses históricas ainda não confirmadas. Entretanto, o ceticismo reina. Sobre a interpretação da “via inglesa”, Texier, por exemplo, afirma que Marx previa que o sufrágio universal conduziria, necessariamente, a classe operária ao poder: Pelo menos em relação ao continente porque existem em alguns trechos dos escritos de Marx e Engels formulações ambíguas, porém, pouco conclusivas. Elas foram suficientes para alimentar, sob a pressão histórica da estabilização da democracia no pós-guerra nos países centrais, e nos últimos anos, sob a pressão da ofensiva neoliberal na Europa ocidental e na América Latina, a idéia de que Marx não teria descartado a possibilidade, mesmo que excepcional, de uma passagem pacífica ao socialismo. Um ou outro comentário indicaria, segundo alguns autores interessados em legitimar o programa da “democratização da democracia” – uma fórmula etapista que remete a Bernstein e sua crítica ao suposto catastrofismo-blanquista de Marx - uma hipótese estratégica distinta em relação à Inglaterra e os EUA, a chamada “via inglesa” É o que podemos encontrar no trabalho de investigação de Texier: As palavras de ordem de Marx e de Blanqui são os mesmas, ditadura revolucionária do proletariado e revolução permanente (...) Ela implica uma luta feroz contra a democracia pequeno-burguesa que não deixará de chegar ao poder na próxima fase da revolução. Tratase, portanto, de fazer o necessário para derrotar estes aliados de momento, e mover-se rapidamente para a fase do comunismo (...) Seus artigos não reivindicavam a ditadura e o terrorismo contra as forças de reação? Na primavera de 1850, a intransigência revolucionária de Marx e Engels se desdobra em um contexto completamente ilusório: tratava-se de ir para o comunismo em um país como a Alemanha. Neste caso, podemos dizer que a violência revolucionária tem uma função taumatúrgica que é correlativa à perspectiva realista. O que pode diferenciá-lo da violência das minorias ativas de tipo blanquista? (...) Conclui-se sobre esta questão do blanquismo de Marx, dizendo que Marx não é, sem dúvida, Blanqui, mas é uma lenda que nos diz Lenin quando nos fala de uma distinção radical que sempre existiu entre o marxismo e o blanquismo. (tradução nossa)4 No caso da Inglaterra, Marx prevê uma transição pacífica para o socialismo antes que as instituições democráticas existissem por lá. O princípio defendido é que em um país onde o proletariado constitui a maioria da população e onde ele está consciente de si mesmo como uma classe, o sufrágio universal (e as instituições que garantem a existência da soberania popular) conduzem, necessariamente, a classe operária ao poder. Neste sentido, Marx dizia, nada é mais socialista que a reivindicação do sufrágio universal pelos cartistas. (tradução nossa)3 A via inglesa seria, portanto, segundo Texier, uma via não revolucionária de transição histórica apoiada na extensão das liberdades democráticas, na ampliação irrestrita do direito ao sufrágio universal e conquista eleitoral do poder político, sustentada no peso social do proletariado. Enfim, uma releitura dos termos da relação entre democracia e revolução, na qual a segunda estaria subsumida na primeira. A democracia sendo um fim deve ser um meio. A revolução sendo um meio antidemocrático deveria degenerar sempre em tirania. A revolução permanente era uma palavra de ordem blanquista? A operação teórica não é nova e já vitimou há cem anos atrás o próprio Marx. Não há, contudo, razões para muita controvérsia sobre a concepção de revolução que animava Marx e Engels em 1848/50. Ela tinha no seu centro um pensamento que, pelo menos em relação ao continente, desenhava a perspectiva de um processo de duas revoluções políticas encadeadas, seqüenciadas, ininterruptas - a primeira política e democrática, a segunda social e anticapitalista - inspirada no padrão mais influente nos círculos extremistas de meados do século XIX que, por sua vez, derivava da experiência histórica do modelo francês de 1789/93. Nesse sentido, Marx usou algumas vezes a fórmula da revolução permanente - em especial na famosa Carta à Liga dos Comunistas de 1850 sem se deter em maiores explicações. 3 TEXIER, Jacques. Révolution et démocratie chez Marx et Engels. Paris, PUF, Actuel Marx Confrontation, 1998, p.338. Téxier tem razão quando resume o programa socialista às duas palavras de ordem: ditadura do proletariado e revolução permanente. Quanto ao “conto do vigário” que Lênin teria nos deixado, Texier confunde a interpretação marxista da revolução quando a reduz a um processo de “mobilização de minorias ativas”. Marx se une ao movimento operário impressionado pelas ações de massas do Cartismo inglês. Ora, o que justamente separava o blanquismo do marxismo era a concepção substitucionista do sujeito social pelo sujeito político – a organização clandestina e determinada que faz a revolução - isto é, a defesa que os carbonários faziam da tática insurrecional crônica, do que inclusive resultou uma ruptura de uma ala na Liga dos Comunistas. De qualquer forma, o tema é importante, e vale a pena conferir as conclusões de Draper, quase hemorrágico pela erudição: A história provou, com certeza, que esta perspectiva foi prematura, em 1848, que a sociedade e o proletariado ainda não estavam maduras para a 4 Idem, p.352-8. 22 - Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas revolução socialista, ou seja, para "uma revolução da maioria", mas é claro que existe um abismo entre esta aspiração de encontrar uma maneira de conseguir "uma revolução da maioria" e a meta blanquista da tomada do poder por um grupo de conspiradores. Nas linhas de “As lutas de classes na França” Marx estabeleceu a idéia clara de uma maioria que é liderada por uma classe: "Os operários franceses não podiam dar um passo em frente, não podiam tocar um fio de cabelo da ordem burguesa, até que o curso da revolução despertou a massa da nação, camponeses e pequenos burgueses, de pé entre o proletariado e a burguesia, contra esta ordem, contra a dominação do capital, e os tinha forçado a juntar-se aos proletários como seus protagonistas. (tradução nossa)5 A questão é central, e ainda hoje provoca avaliações apaixonadas, como podemos conferir neste fragmento de Texier: Agora, o que Engels nos diz em 1895, é que Marx e ele (...) pensavam de forma bastante ilusória, quando imaginavam em 1848, e não só em 1848, mas mais de vinte anos depois, em 1871, que a transformação revolucionária da sociedade burguesa em sociedade comunista estava na ordem do dia.(...) O que estava, então, na ordem do dia era a revolução industrial capitalista (...) O tipo de retrospectiva que encontramos nesta "Introdução" de Engels implica que o tempo mudou e que o que fala tem capacidade de reconhecer que uma página foi virada.6 (tradução nossa) Texier encontra, portanto, no balanço do chamado “testamento” de Engels, um ponto de apoio para concluir que o Engels de 1895 rompia com as “influências blanquistas de 1848” o que de alguma forma faria de Engels, nesta questão, um bernsteiniano “avant la lettre”. E no entanto, segundo Draper: Esta é a visão de que o movimento para a revolução proletária não deve começar até que haja uma possibilidade real de vitória, antes da qual seria "utópico" e "irrealista "(...) Em qualquer caso, não há nenhuma maneira de determinar quando a possibilidade histórica da vitória chegou. Neste sentido: nos engajamos e depois veremos. Meio século depois qualquer um poderia ver que a revolução proletária foi prematura, em 1848; quando Engels escreveu esta opinião em 1895, ele não estava sob a impressão de que era uma grande revelação. (...) Esta foi para alguns, para Engels não, uma condenação dos revolucionários de quarenta e oito por não possuir uma bola de cristal.7 (tradução nossa) É possível, evidentemente, não concordar com a leitura ortodoxa de Draper, que nos parece irretocável. Em poucas palavras, não é possível avaliar se uma revolução é prematura, senão depois que a sorte foi lançada. Um exercício histórico legítimo, mas um procedimento político impossível. Assim como não é menos desonesta a tentativa de dissociar a teoria da 5 DRAPER, Hal. Karl Marx's theory of revolution. New york, Monthly review press, 1978. p.257. 6 TEXIER, op. cit.. p.27-8. 7 DRAPER, op. cit, p.272 e 287. revolução de Engels, convertido à democracia, de um Marx blanquista. Ou separar o marxismo revolucionário de Lenin de um Marx democrático. Ou ainda pior, atribuir aao marxismo a responsabilidade teórica pelo estalinismo. Artigo recebido em 11/04/2011 Aprovado em 23/05/2011 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (23-27) - 23 Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa Fabio Luis Barbosa dos Santos 1 I ntrodução O presente trabalho visa a uma aproximação entre as revoluções francesa e russa encetando uma reflexão acerca do dilema colocado pela necessidade de centralização política comum a ambos processos, mas que contribuem de maneira decisiva para gerar as circunstâncias que definirão o próprio limite de sua radicalidade histórica. Definimos um dilema como o impasse apresentado por uma situação onde a decisão se coloca difícil e irreversível, qualquer que seja o caminho escolhido. Assim, se a conjuntura de guerra e a miséria enfrentadas permitem o acirramento das contradições sociais que explodem com intenção construtiva no processo revolucionário, a resposta aos problemas franqueados exigirá medidas que, embora essenciais para preservar a revolução, paradoxalmente enfraquecem suas bases social, econômica e moral. Dilemas da revolução As revoluções francesa e russa, processos de uma radicalidade ímpar a seu tempo, viveram dilemas semelhantes, de que os principais quadros bolcheviques tiveram interessada consciência: em sua atuação revolucionária, procuraram superar os limites de uma experiência da qual se reconheciam, em vários sentidos, como tributários. Em que pesem as diferenças de contexto histórico e a singularidade das respectivas formações sociais, incidindo no padrão de luta de classes de cada situação, ambas revoluções viveram impasses decisivos trazidos de um lado por uma conjuntura internacional de guerra, e de outro, pela necessidade de centralização inerente à própria dinâmica da destruição e criação revolucionária. Aliás, são problemas que, expostos na sua forma mais aguda nestas duas experiências históricas, foram recolocados de maneira mais ou menos dramática em todas as explosões revolucionárias de caráter popular desde então. Nosso objetivo é fazer uma aproximação de como os governos revolucionários lidaram com estes dilemas a partir das possibilidades históricas que lhe estavam franqueadas. Na análise da Revolução Francesa, nos baseamos em três autores consagrados: Albert 2 Mathiez, George Lefebvre e Albert Soboul . Embora apresentem diferenças quanto ao período abordado, 1 Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Albert Mathiez, História da Revolução Francesa. Atena Editora, sem data e cidade; Georges Lefebvre. 1789 – O surgimento da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1989; Albert Soboul. Précis d'histoire de la Révolution française. Paris: Éditions Sociales, 1973. 2 recorte enfatizado e nuances interpretativas, os três abordam a revolução como um feito social de conseqüências transcendentais, inserido na problemática histórica mais ampla da transição do feudalismo para o capitalismo e o estabelecimento da sociedade burguesa. A comparação com a experiência russa tomará como base o trabalho de Leon Trotsky, “A História da Revolução Russa”, relato minuncioso legado por uma liderança 3 protagonista do processo. Circunscrito aos acontecimentos de 1917, esta obra será complementada pela história da Revolução Russa indiretamente contada na trilogia escrita por seu principal biógrafo, Isaac Deutscher.4 O recorte bibliográfico explica-se pela freqüente remissão feita nestas obras à experiência anterior francesa, conseqüência da preocupação comum aos autores em compreender a essência do processo revolucionário. Ao escolhermos um problema da semelhante natureza para este trabalho, a escolha bibliográfica apresenta-se justificada. Guerra e intervencionismo a) França Na França, a crise deflagrada inicialmente pela aristocracia, que pressionou pela convocação dos Estados Gerais, desencadeia um processo que se radicaliza progressivamente, levando à auto-proclamação da Assembléia Nacional que está determinada a limitar o poder real. Neste contexto, o recurso à intervenção externa emerge como estratégia da salvação monárquica. No entanto, a guerra não será declarada pela monarquia francesa. Ao contrário, é a sua derrota progressiva, aterrorizando a realeza dos estados vizinhos, que os encoraja a se aliarem em uma frente reacionária. Deste momento até a última derrota de Napoleão, a França enfrentará sete coalisões de países contrarevolucionários. Paradoxalmente, é a prisão do rei em fuga em Varennes que explicitará o caráter anti-nacional (no sentido histórico recém atribuído ao termo) e anti3 No Brasil, a obra foi publicada pela Editora Paz e Terra (Rio de Janeiro, 3 volumes, 1977) e recentemente, pela Editora Sunderman (2 volumes, São Paulo, 2007). Na elaboração deste trabalho utilizamos a edição francesa, traduzindo por nossa conta as citações.: León Trotsky. Histoire de la révolution russe. Paris: Éditions du Seuil 1950, 2 volumes. 4 No Brasil, a trilogia foi recentemente republicada pela Editora Civilização Brasileira (“O Profeta Armado”; “O Profeta Desarmado”; “O Profeta Banido”. São Paulo: 2005/6). Neste trabalho, utilizamos a edição inglesa, traduzindo por nossa conta as citações: Isaac Deutscher. The Prophet Armed (1879-1921).; The Prophet Unarmed (1921-1929); The Prophet Outcast (1929-1940). Londres: Oxford University Press, 1980. 24 - Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa popular da realeza. No estrangeiro, o impacto da detenção real precipitará as hostilidades militares, enquanto internamente pavimenta-se o caminho para a nova onda de manifestação popular, que culminará na adoção da república. O novo governo revolucionário realiza o julgamento que culmina com a condenação do rei à morte, sinal claro do radicalismo alcançado na França e que incendiará a reação européia. Internamente, o julgamento do rei contribui para explicitar as hesitações da fração girondina dominante, alimentando seu descrédito e enfim, a sua queda. O terreno é franqueado para a ascensão da Montanha: a pressão popular leva à organização da ditadura jacobina, que assume como tarefa comandar a salvação pública. O esforço necessário para salvar a revolução constrange o segmento mais radical da burguesia, encarnado pelos jacobinos, a fazer concessões democráticas no sentido de ganhar a adesão voluntária dos sans-culotte e do campesinato à sua causa, levando o conteúdo da revolução liderada pela burguesia ao paroxismo. O governo revolucionário tem sucesso na organização de um exército de base nacional, uma inovação histórica. Passa a reverter, a partir de Valmy, os reveses militares no exterior. Com isso, ganha legitimidade para a política de terror interno, uma reivindicação popular para enfrentar a reação. O esforço de guerra molda a um tempo a novidade do espírito nacional, dotado de um marcado conteúdo democrático, e uma “economia de guerra”, operada sobretudo no período da Convenção da Montanha e a política de salvação pública da ditadura jacobina. De um lado o recrutamento de massa; de outro o controle do Estado sobre a economia, sobretudo através do estabelecimento dos “máximos”. O terror emerge como produto de uma situação revolucionária que precisa se proteger interna e externamente da ameaça contra-revolucionária. Para sustentar um exército forjado em bases nacionais necessário à defesa da revolução, o governo revolucionário é obrigado a fazer seguidas concessões democráticas, respondendo à pressão popular. O aguçamento da situação faz com que a posição da ditadura jacobina, comprometida por seu inelutável selo de classe, torne-se insustentável: a revolução deve radicalizar-se em um sentido democrático - o que exigiria a condução do processo por um ator histórico que não se apresenta - ou descambar para a guerra de conquista, selando o fim das concessões de caráter popular, mas preservando uma justificativa nacional para o conflito. Segundo Soboul, apoiado nas conclusões de Lefebvre, o que viabiliza a adesão e a extensão da guerra ao período napoleônico seria em larga medida um produto da revolução agrária, que aparece como uma transação entre a burguesia e a democracia rural - conservadora em seus efeitos - que é sobretudo a aliança em torno da defesa da propriedade. Os limites da revolução geram a base social e de classe do que será a reação. Segundo Soboul, apoiado nas conclusões de Lefebvre, a adesão popular à guerra no período napoleônico seria em larga medida uma decorrência da revolução agrária, interpretada como uma transação entre a burguesia e a democracia rural que teve efeitos conservadores, uma vez que alicerçou-se sobretudo na defesa da propriedade. Assim, os limites da revolução geram a base social e de classe do que será a reação. b) Rússia a O papel da 1 guerra mundial no acirramento das contradições da sociedade russa foi bastante evidente para os protagonistas da revolução. O fracasso militar explicitou o atraso do regime tzarista em relação às outras potências do continente, ao mesmo tempo em que a guerra agravou de maneira dramática as condições de vida já miseráveis do grosso da população, submetida ainda ao recrutamento e portanto ao sacrifício compulsório e incompreensível seja em casa, seja no front. Nesta perspectiva, a guerra contribuiu de maneira decisiva para acelerar o movimento de massas e o enfrentamento do Antigo Regime. Uma vez derrocado o tzar em fevereiro de 1917, as ambigüidades do governo que o sucedeu em relação à uma guerra que o povo não queria lhe foram fatais, levando à radicalização do processo. O conflito europeu no qual a Rússia foi envolvida mas também se envolveu, cumpriu um papel didático subjetivo e objetivo, levando as massas à consciência da distância entre os interesses das classes dominantes e as necessidades da população, ao mesmo tempo em que aguçou as condições de miséria e morte do povo empurrando-o ao desespero, que o partido bolchevique soube canalizar em um sentido revolucionário. Triunfante a revolução de Outubro, o governo soviético perseguiu a paz. Foi obrigado a enfrentar não apenas a intransigência e a belicosidade irrefreáveis do governo alemão, que viria a causar considerável dano militar apesar dos esforços de Brest-Litovsk, mas muito mais grave: as potências estrangeiras, igualmente assombradas diante do risco de uma vitória comunista, deram seqüência ao conflito em território russo, invadido por ao menos oito exércitos diferentes. A agressão internacional colocou a revolução diante da imensa tarefa de organizar o exército popular, ou seja, dar escala continental ao exército vermelho que devia enfrentar não apenas a contra-revolução branca que pululava, mas as forças estrangeiras que lhe apoiavam. A guerra, que acirrou as contradições da sociedade russa desembocando na Revolução de Outubro, causava agora uma devastação inaudita, a despeito da atitude pacifista do novo governo. Diante desta realidade, os primeiros passos da construção da nova sociedade eram condicionados por uma dinâmica de sobrevivência, reativa à situação que se colocava. A guerra precipitará não apenas a centralização indiscutível do partido bolchevique, em prejuízo das disposições democráticas de suas principais lideranças, como também obrigará a perseguições políticas em uma escala e intensidade imprevistas. A brutalidade do confronto militar conduz a revolução a uma senda aparentemente inevitável, que engendra ao mesmo tempo as condições que resultarão no seu estancamento após o esmagamento da reação: aniquilamento dos quadros mais combativos do partido e desfiguramento da classe operária que lhes História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (23-27) - 25 forjara; devastação do território e da base produtiva, rebaixando dramaticamente o ponto de partida material da revolução. A carestia justificará a continuidade de uma economia de guerra, perpetuando uma dinâmica política centralizada que dá ampla margem para a perseguição política. Assim, o partido se descola da classe que lhe dera as rédeas, abrindo espaço para a ascensão de um personagem que maneje o controle da máquina partidária, que por sua vez controla o governo e portanto, o país. Os limites da revolução aparecem condicionados pela própria dimensão dos desafios que teve de enfrentar, ainda no berço, para a sua consolidação. Assim, se a guerra acelerou a luta de classes e forjou uma coesão nacional em torno à defesa da revolução, por outro lado abreviou de maneira inelutável o alcance da obra revolucionária desencadeada. Contraste Ambas revoluções tem seu radicalismo freado pelas distorções sociais inerentes a uma economia e uma sociedade voltados para a salvação pública, que nas circunstâncias, significou a defesa da revolução. No caso francês, as seguidas ondas de pressão popular causam concessões sociais que, por um lado, radicalizam o caráter popular do processo, mas incapaz de ir além do selo de classe congênito à liderança burguesa, termina por engendrar o apoio camponês e a consolidação burguesa que levará à contra-revolução. Na Rússia, o esgotamento das energias revolucionárias, seja do ângulo dos quadros políticos e da classe operária, seja do ponto de vista material, ocasionado pelo prolongamento indesejado do conflito militar, condicionará os limites de um processo que parecia sem limites, na medida em que a condução revolucionária (o partido) se descola da classe social que a produziu. Não havendo classe capaz de produzir a reação antipopular (Trotsky desconfiava do exército) esta foi gerada no próprio seio do novo grupo ascendente. Padrões do processo revolucionário a) dualidade de poderes Na análise de Trotsky, a questão da dualidade de poderes é central aos dilemas vividos pela revolução. Reflexo de uma situação social crítica onde o novo ainda não reuniu forças para irromper destruindo o velho, mas o velho também não encontra meios de sustentar a dominação anterior, a natureza instável da dualidade de poderes é transitória por natureza, clamando por uma solução centralizadora, seja na direção da revolução ou do seu contrário: “A necessidade da ditadura característica tanto das revoluções como das contrarevoluções procede das contradições intoleráveis 5 advindas da dualidade de poderes.” Analisando a situação colocada pela Revolução Francesa, o líder russo observa que a Assembléia Constituinte, liderada pela elite do Terceiro Estado, concentra o poder sem suprimir totalmente as prerrogativas do poder real. Esta dualidade persiste até a fuga do rei e é liquidada formalmente com a proclamação 5 Trotsky, op. cit. vol. 1, p. 256. Tradução do autor do texto. da República. Uma nova dualidade de poderes é instalada antes da chegada da guerra e da guilhotina, quando entra 6 em cena a Comuna Insurrecional de Paris , que se apoia nas camadas inferiores do Terceiro Estado e disputa o poder com os representantes da nação burguesa, ao mesmo tempo em que, no campo, ascende a insurreição camponesa contra a legalidade burguesa que protege a propriedade feudal. Segundo Trotsky, a Comuna revolucionária se opõe à Assembléia legislativa e depois à Convenção, que retardam a realização das tarefas revolucionárias, em um processo onde cada uma das etapas se caracterizou por uma dualidade de poderes claramente delineada, e os pólos da luta em curso se empenhavam em estabelecer uma autoridade única e forte, seja defensivamente no caso da direita, ou ofensivamente no campo da esquerda. A partir do 9 termidor, sucessivas guerras civis marcam o descenso do empuxe revolucionário, como havia seguido a sua ascensão, em um contexto onde a sociedade nova busca um novo equilíbrio de forças, sempre nos marcos de uma dualidade de poder. Diante da situação russa, Trotsky recupera a experiência da Revolução Francesa, ao analisar a dualidade de poderes colocada pela ascensão política dos sovietes, acelerada vertiginosamente após a Revolução de fevereiro. Identifica na extrema instabilidade característica da situação revolucionária um magnetismo social que tende à solução centralizadora, seja para a direita ou para a esquerda: “Toda sociedade de classes precisa de uma unidade de desígnio governamental. A dualidade de poderes é, em sua essência, um regime social de crise (...)”. 7 Percebe na experiência revolucionária a recorrência do que chama as “jornadas de julho”, coincidentemente ocorridas no mesmo mês na França em 1791 e na Rússia em 1917, como prefiguração do momento decisivo de superação da crise, que em geral se faz em um sentido reacionário. Explica a natureza desta jornada de lutas, que chama de uma “meiarevolução complementar,” pela própria dinâmica do movimento revolucionário: neste estágio inconclusivo, as massas acreditam ter força para retificar o processo em curso enquanto a burguesia espera o momento adequado para promover uma restauração violenta da ordem. Não foi o caso das jornadas de julho de 1791 na França nem em julho de 1917 na Rússia. No primeiro caso, o massacre promovido por La Fayette sobre a manifestação pacífica no Campo de Marte revelou-se incapaz de deter o movimento republicano. Na Rússia, a tentativa de investir o governo Kerensky de poderes ilimitados, colocando-o acima da burguesia e da democracia em um esforço de cunho bonapartista fracassou,gerando o golpe frustrado liderado por Kornilov, que acelerou o processo a ser consumado em outubro. 6 A partir da queda da Bastilha em 14 de julho de 1789 é estabelecido um governo municipal dos revolucionários na capital francesa, que em 1792, na iminência da invasão estrangeira, se converte na Comuna Insurrecional de Paris. Este organismo foi uma expressão política da radicalização da revolução, e a derrota dos jacobinos em 1794 precipitou o seu fim. Não deve ser confundida com a famosa Comuna de Paris de 1871. 7 Trotsky, op. cit. vol. 1, p. 91. Tradução do autor do texto. 26 - Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa b) jacobinismo e bolchevismo Triunfante a Revolução, os limites do governo revolucionário são dados pela classe social que lhe da sustentação e sentido. Neste ponto, Trotsky traça uma diferenciação nítida entre a potencialidade jacobina e a social-democracia antes mesmo da formação do partido bolchevique, determinada pela evolução da conjuntura histórica.8 No século XX, os social-democratas podem e devem livrar-se de seus traços de jacobinismo, identificado com o radicalismo burguês. Este ponto seria crucial na determinação do caráter do governo revolucionário bolchevique em contraste com a experiência jacobina. Sintonizado com a classe revolucionária de seu tempo, não haveria lugar para a guilhotina na revolução operária, cujo materialismo encontrava-se em franca oposição com o idealismo jacobino.9 Fundamental na concepção de Trotsky sobre o caráter do governo revolucionário é o seu controle direto pela classe que o forjou. Na sua visão, uma classe operária capaz de exercer a ditadura sobre o conjunto da sociedade não tolerará a ambição de um ditador que busque se impor sobre si: nisto reside o limite da centralização operada pela ditadura do proletariado. O problema adiantado por Trotsky é se, uma vez feita a revolução, a classe operária não é capaz de exercer sua ditadura sobre a sociedade. Então, advém o risco do “substitutismo”: “A organização de um pequeno comitê substitui o partido; então o Comitê Central substitui a organização; e finalmente um ditador substitui o Comitê Central.”10 c) centralização e terror Ocorre precisamente este quadro na Revolução Russa. Já em 1921 a classe operária, exaurida pela revolução e a guerra civil, mostrava-se incapaz de exercer sua ditadura sobre a sociedade. Esta não é uma situação nova, uma vez que a conjunção de revolução e guerra civil pressiona para a decomposição social da classe revolucionária. Mas a radicalização do centralismo que deriva desta situação extrema contem um potencial letal demonstrado pela experiência francesa, segundo Deutscher: Por causa da desintegração do Terceiro Estado, a base social da revolução estreitou-se e o poder era exercido por cada vez menos pessoas. Eleição era substituída por nomeação. Este processo estava avançada antes do golpe Termidoriano; foi Robespierre quem o aprofundou e então tornou-se sua vítima. Primeiro foi a exasperação popular com a fome e a miséria que não permitiu aos Jacobinos confiar ao voto popular o destino da revolução; então a gestão arbitrária e terrorista dos Jacobinos conduziu o povo à indiferença política; e isto permitiu aos Termidorianos destruir Robespierre e o partido Jacobino.11 8 Deutscher, op. cit., vl 1, p. 91. Referindo-se ao idealismo jacobino, Deutscher escreve: “Eles não pouparam hecatombe humana alguma para construir o pedestal para a sua Verdade... A contrapartida da sua fé absoluta em uma idéia metafísica era sua absoluta desconfiança das pessoas vivas.” Deutscher, op.cit. vl 1, p. 90. Tradução do autor do texto. 10 Apud: Deutscher, op. cit., vl 1, p. 95. Tradução do autor do texto. 11 Deutscher, op. cit, vl 2 p. 436. Tradução do autor do texto. 9 Trotsky, que em coerência com a sua análise sempre advogara a livre competição de idéias no interior do partido, é levado pela urgência das circunstâncias a proclamar o direito do partido estabelecer sua tutela sobre o proletariado, assim como sobre o conjunto da sociedade.12 Entretanto, a violência da reação interna e estrangeira revelava uma complexidade imprevista ao governo revolucionário, levado a recorrer a um “terror” que acreditava possível evitar, considerada a afinidade da revolução operária com seu tempo histórico. Esta não era uma escolha de princípio político, mas ditada pela circunstância objetiva, que dizimara a base operária já estreita da Revolução. O recurso à ditadura e ao “terror” premido pela objetividade da situação não era original e revela-se uma característica do processo revolucionário em geral. A ditadura de um partido no momento em que fragiliza-se o seu lastro com a classe operária, acentuando a vigilância social em função da própria debilidade da classe que o sustenta, gera uma situação imprevista, aproximando os bolcheviques dos jacobinos. Segundo Deutscher, reeditava-se a idéia jacobina de uma minoria virtuosa e iluminada que substituía um povo imaturo com a pretensão de trazer a razão e a felicidade. O que o Jacobinismo e Bolchevismo tiveram em comum foi o substitutismo. Cada um dos dois partidos se colocou na cabeça da sociedade mas não podia contar com o apoio voluntário da sociedade para a realização do seu programa. Como os Jacobinos, os Bolcheviques não podiam confiar que a sua Vérité conquistasse os corações e as mentes do povo (...) Eles também tiveram que traçar uma linha rígida dividindo eles do resto do mundo (...) e eles também a estavam traçando “com a ponta da guilhotina...”13 A arena política abria-se inadvertidamente para o “substitutismo” que antevira Trotsky, trazendo implícito o perigo de uma ditadura pessoal. Conclusão Segundo Trotsky, a revolução é uma resposta bárbara para uma situação bárbara. A intransigência com que as classes dominantes ameaçadas pela insurgência defendem o estado de coisas, amparada pelo conservadorismo internacional militante que não hesita em intervir para salvaguardar o passado, coloca qualquer projeto de governo revolucionário ante um dilema, entre a centralização necessária e a democratização ensejada. Longe de ser um acontecimento pontual, o processo revolucionário deita raízes na história. Seu motor são as contradições estruturais inerentes a uma sociedade de classes que se acirram com o tempo, produzindo uma alteração na qualidade destas relações causando, que a contradição se transforme em antagonismo, ou seja: uma incompatibilidade de contrários. A crise manifesta-se no tecido social na forma de uma conjuntura revolucionária, que pode resultar ou não em uma situação revolucionária, dependendo 12 13 Deutscher, op. cit., vl. 2, p. 521 Deutscher, op. cit.,,vl. 2, p. 347. Tradução do autor do texto. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (23-27) - 27 principalmente da maturidade política dos atores sociais envolvidos. O desenlace da crise tampouco se faz de um golpe só: na realidade, a revolução constitui uma seqüência mais ou menos prolongada de espasmos sociais mais ou 14 menos agudos, no sentido da mudança social. No caso francês, de acordo com a análise proposta por Lefebvre, observamos uma revolta aristocrática atropelada pela ascensão burguesa. A convocação dos Estados Gerais e a proclamação da Assembléia Nacional abrem as comportas das energias populares, que incidem na radicalidade do processo, garantindo em um primeiro momento o triunfo burguês, mas pressionando o desenrolar dos acontecimentos em um sentido progressivamente democrático. Assim, à Assembléia Constituinte segue-se a fuga do rei capturado em Varennes, a precipitação da guerra e a proclamação da república, produto do aguçamento da conjuntura. Ao vacilar na realização do projeto revolucionário, a Convenção Girondina é premida até ser derrubada pela onda popular, cedendo passo à Convenção da Montanha e à Ditadura Jacobina de salvação pública. Decisiva na crescente radicalização do processo foi a participação camponesa, embora o compromisso feito em torno à garantia da propriedade privada tenha selado, segundo Lefebvre, uma aliança conservadora que seria fundamental para a sustentação da contra-revolução que seguiria o golpe de Termidor. Na Rússia, a revolução de 1905 é vista pelos bolcheviques como o ensaio geral dos acontecimentos de 1917. A derrocada da monarquia em fevereiro, precipitada pela miséria agravada em um contexto de guerra, abriu espaço para um governo de compromisso. A despeito do caráter popular do movimento que derrubou o tzar, as forças revolucionárias não estavam preparadas para tomar o poder, que passou às mãos de um governo cuja ambivalência mal disfarçava seu caráter contrarevolucionário. As dificuldades da guerra e a miséria social generalizada, enfrentadas com pusilanimidade pelo novo governo ao mesmo tempo em que reprimia as energias populares, foram radicalizando paulatinamente o povo russo, sobretudo operários e camponeses, muitos deles recrutados pelo exército. O prestígio dos sovietes, legado da revolução de 1905, crescia e com isto o seu poder. Estavam lançadas as bases para uma dualidade de poderes que sobreviveria às jornadas de julho e ao golpe militar de Kornilov, onde se revelaria a força do campo popular em contraste com a impotência governamental. O assalto ao palácio de Inverno realizado em fins de outubro custaria pouco sangue. A tomada do poder fora preparada por décadas, sobretudo através da dedicação abnegada dos quadros bolcheviques, que se transformam em maioria nos sovietes apenas poucos meses antes do desenlace definitivo da primeira revolução operária. O sucesso subseqüente da Revolução em relação à radicalidade das demandas da qual se faz portadora é colocado em xeque nas duas experiências pela violência da reação contra-revolucionária. A centralização do 14 Ver: Florestan Fernandes. O que é revolução? Em: Clássicos sobre a Revolução Brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2001. V. I. Lênin. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1978. poder político, a economia de guerra e a perseguição implacável dos inimigos da revolução se impõem, à despeito das pretensões de seus protagonistas. Porém, como observamos na análise combinada de Trotsky e Deutscher, a ditadura da necessidade selará, em um caso como no outro, os limites da Revolução. No caso francês, as crescentes concessões democráticas do governo revolucionário objetivando sedimentar a coesão necessária à formação de um exército de bases nacionais, concorreram para acentuar a contradição entre o radicalismo popular e a classe social encarnada por seus governantes. Incapaz de superar os limites da classe que lhes gerara, os jacobinos são arrancados do poder pela reação, que se viabiliza em meio à apatia social engendrada pelo terror e o pacto com os camponeses em torno à propriedade, ambos frutos do próprio regime revolucionário. No caso russo, o esforço de guerra seguido por anos de confronto civil deu a tônica da economia de guerra e da ditadura do proletariado assumidos pelo governo revolucionário. Engendrou-se um regime de acentuada centralização política, em uma circunstância onde o esgotamento da classe operária provocou o descolamento do partido de seu lastro de classe, gerando as condições para o “substituísmo” e a sobreposição do partido sobre o Estado, como máquina à serviço de uma ditadura pessoal. O dilema consiste em calibrar entre a tensão social gerada por uma revolução recente, e a necessidade que esta apresenta por sua própria natureza inovadora de arejar-se para intuir e perseguir o novo. A rigidez forçada pela ameaça permanente de contra-revolução, alimentada com persistência a partir do exterior, recoloca o problema do internacionalismo revolucionário em bases materiais e também sociais. Em última análise, o fracasso da revolução mundial no crepúsculo da Primeira Guerra ou da centelha republicana no outono do absolutismo, condenaram estas experiências pioneiras não apenas materialmente, mas também do ponto de vista da democracia necessária à sua própria renovação política. A agressiva hostilidade internacional, aliada ao conservadorismo imanente a uma sociedade recémrevolucionada, concorreram para o surgimento de Stálin e Napoleão, cristalização política dos limites encontrados pelo mundo novo que irrompera. Artigo recebido em 08/12/2010 Aprovado em 19/04/2011 28 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução Carlos Zacarias de Sena Júnior1 U m tema em quatro polêmicas Surgida de uma inflexão tática promovida pela Internacional Comunista (IC, Komintern, Terceira Internacional) em seu VII Congresso, a política de Frente Popular foi sempre um tema de recorrentes e intensos debates no seio das organizações que reivindicam a tradição terceirointernacionalista. Em primeiro lugar, considerando a longevidade da tática que ainda anima setores da esquerda em todo o mundo, em que medida se pode dizer que a Frente Popular se converteu numa estratégia permanente das correntes comunistas? Estaria ela relacionada a um momento político específico, o período do antifascismo e a conjuntura da Segunda Guerra Mundial, ou seria uma imposição estratégica vinculada à ascensão da diplomacia soviética e a premência dos acordos possíveis ou firmados entre a URSS e o Ocidente capitalista? Tratar-se-ia da reedição atualizada da política de Frente Única dos anos 1920 ou significaria uma aliança interclassista em muito diferente da formulação original do III Congresso da IC de 1921? Seria fruto de uma necessidade defensiva oriunda da circunstância política de ascensão dos regimes nazifascistas ou protofascistas nos anos 1930 ou uma linha que admitia a ofensiva e a participação em governos burgueses, especialmente os de União Nacional do pós-guerra? Obviamente, que, conforme o caso, poder-se-ão encontrar argumentos para todos os gostos, tanto porque nem mesmo a Frente Única é tema de menores controvérsias entre os partidários do marxismo e mesmo entre aqueles que reivindicam a tradição terceirointernacionalista, mas, principalmente, pelo fato de que foi a Frente Popular, ao menos na conjuntura da sua formulação no início da década de 1930, que cindiu decisivamente o movimento comunista internacional. Dito de outra forma, não parece arriscado afirmar que seja a Frente Popular um dos principais pontos de divergência entre as mais importantes correntes que reivindicam o legado de Lenin, de maneira que, dos vários governos atualmente vigentes na América Latina, até as recentes experiências eleitorais européias, passando pelo governo francês de François Miterrand dos anos 1980, a Frente Popular continua sendo um dos temas políticos mais candentes da atualidade devido a sua persistência no campo da esquerda marxista. O que se pretende neste artigo é discutir os caminhos percorridos pela formulação da linha de Frente Popular, passando em revista a história do movimento comunista internacional para que se compreendam seus 1 Professor do Departamento de História e do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). desdobramentos e as circunstâncias em que a IC foi substituída pela diplomacia soviética e a revolução não cessou de acumular derrotas ao longo de quase oitenta anos, enquanto os comunistas dos PCs de vários países não deixaram de buscar alianças com as burguesias locais no caminho da democracia, sem adjetivações. O caminho da derrocada Em inícios dos anos 1930, enquanto na maioria dos países do mundo o movimento comunista continuava a defender que a social-democracia e o fascismo eram irmãos gêmeos através da conhecida linha do Terceiro Período, exarada em 1928 no VI Congresso da IC, na França, um ligeiro movimento de inflexão ganhava terreno e empurrava o Partido Comunista Francês (PCF) para próximo das organizações social-democratas do movimento operário.2 Após a ascensão de Hitler na Alemanha, caminho facilitado pela política do Partido Comunista que em 1930 havia afirmado que “o fascismo tinha alcançado seu ponto culminante e que iria, dali por diante, entrar em rápida decomposição, preparando o caminho para a revolução proletária”, estava na França a chave da situação internacional.3 No país dos gauleses, repetia-se a situação de instabilidade encontrada na Alemanha na virada dos anos 1920 para os anos 1930, momento em que se prenunciava uma crise revolucionária, de maneira que o PCF precisava deter o avanço da direita bonapartista e, ao mesmo tempo, apresentar respostas à ascensão galopante da luta de classes e a proximidade de um desfecho em que revolução e contra revolução, fatalmente, se enfrentariam. Embora não aparecesse para os seus dirigentes como algo óbvio, o fracasso da política de “classe contra classe” da IC já começava a ser pressentido em muitos países. Tanto que em março de 1933 o Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC) lançou um chamado à social-democracia para a formação de uma Frente Única contra o fascismo. Tal apelo foi sucedido por um reposicionamento do Komintern no XIII Pleno do CEIC, realizado ainda em dezembro daquele mesmo ano. Muito 2 A linha conhecida como “terceiro período”, ou de “classe contra classe”, foi adotada a partir de 1928, após o VI Congresso da Internacional Comunista. Ela dizia que o capitalismo estava em vias de entrar em colapso, o “terceiro período”, e um grande ascenso revolucionário se anunciava após um “segundo período” de estabilização (1923-1928), condição em que os comunistas deveriam abdicar da formação de Frente Única com a social-democracia que era vista como irmã-gêmea do fascismo. 3 TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução. Lisboa, Porto, Luanda: Centro do Livro Brasileiro, s/d, p. 27. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (28-34) - 29 embora a IC não alterasse no substancial a política que vinha desenvolvendo desde o VI Congresso, já que os social-democratas permaneciam sendo acusados de traidores e as teses sobre o “social-fascismo” eram reafirmadas sem mediações, promovia-se uma ligeira inflexão tática, de maneira que a Frente Única pela base passava a ser proposta como alternativa para deter o avanço do fascismo.4 Tratava-se, na verdade, de um primeiro movimento de abandono da linha política do Terceiro Período, momento em que a Internacional Comunista passava gradualmente a entender que o perigo representado pelo fascismo alcançava, indistintamente, as organizações operárias ligadas aos comunistas e também à social-democracia. Não obstante, ao que parece, Stalin ainda não havia percebido as dimensões da ameaça nazista em toda sua inteireza. Preocupado que estava com o início das depurações no Partido Comunista no interior da URSS e com os movimentos de sua diplomacia no plano internacional, o dirigente soviético aparentava ter pouca clareza quanto às diferenças entre a democracia burguesa e o fascismo, tanto que as primeiras ações unitárias contra os fascistas em diversos países, ocorridas entre fins de 1933 e os primeiros meses de 1934, prescindiram da presença dos PCs que permaneciam desconfiando dos sociais-democratas e da “canalha trotskista”. Foi a situação francesa que impulsionou as mudanças que abriram caminho para o estabelecimento de acordos com a social-democracia. Tais acordos passavam a ser admitidos não apenas pela base, mas também pelo alto, apesar da oposição inicial de Maurice Thorez, dirigente máximo do PCF. A compreensão da IC, que passava a enxergar a ameaça fascista que pairava sobre o Arco do Triunfo, foi esclarecida em editorial do Pravda, de 23 de maio de 1934, em que se afirmava que o PCF deveria propor à direção da Seção Francesa da Internacional Operária (SFIO), a formação de uma “frente única de luta”, fórmula que deveria ser seguida 5 pelos Partidos Comunistas de outros países. Em verdade, tal editorial, seguido de um artigo de Thorez que passava a assumir possibilidade do retorno da política de Frente Única, coincidia com a ascensão meteórica do búlgaro Jorge Dimitrov aos cargos de direção no interior do Komintern e a abertura de negociações entre a URSS e a França, ambas tementes da ameaça representada pela Alemanha nazista. Stalin havia não somente consentido a ascensão fulgurante de Dimitrov à direção da IC, como admitia a necessidade da guinada na linha política na Internacional, tanto porque necessitava de uma flexibilização tática ante as burguesias européias, quanto porque prenunciava tempos difíceis para a sua política externa e um maior isolamento da URSS. Com o retorno da Frente Única e sua extrapolação para uma aproximação com as burguesias e 4 DASSÚ, Marta. Frente Única e Frente Popular: o VII Congresso da Internacional Comunista. In: HOBSBAWM (Org.), História do marxismo. O marxismo na época da Terceira Internacional: da Internacional Comunista de 1919 às Frentes Populares. 2 ed. Rio de janeiro, Paz e Terra, 1985, v. 6, p. 293-294. 5 Idem, ibidem, p. 299. seus partidos, estava aberto o caminho para a Frente Popular. De acordo com Pierre Broué, a política de Stalin para a IC visava não a revolução socialista, mas a guerra, no instante em que soavam suas primeiras trombetas. Desta forma, com a inflexão tática indicada para o Komintern, pretendia-se desviar os trabalhadores da Frente Única, esta entendida exclusivamente como uma tática aplicada no âmbito dos partidos operários, para “fazer deles um componente da política de busca por alianças com os 'burgueses antifascistas', isto é, os burgueses de todos os países dispostos a se opor ao 6 expansionismo alemão.” Em verdade, após os pequenos ajustes táticos de 1933-1934, o acordo em torno da nova linha já havia sido costurado entre algumas das mais importantes Seções Nacionais e as principais lideranças da IC, como Dimitri Manuilsky, Wilhem Pieck, Otto Kuusinen, Bela Kun e Palmiro Togliatti, de maneira que os debates do VII Congresso foram apenas um jogo de cena sob o qual os verdadeiros e irremediáveis interesses da URSS se moviam e se afirmavam sobre a pauta da revolução mundial.7 Com efeito, não era mais possível dissociar os interesses do Komintern e do Estado Soviético, haja vista que a inflexão anunciada para a IC e que teve na França o seu primeiro laboratório, atendia também ao propósito de acomodação das forças políticas que se movimentavam no interior do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) no momento em que se proclamava o fim do processo de transição com a vitória e a consolidação do socialismo na URSS, sob a liderança de Stalin. O dirigente soviético, agora elevado à categoria de personagem onipresente do socialismo mundial, após afastar Bukharin e a ala direita do PCUS da direção política da IC e de toda e qualquer influência nos destinos da “pátria do socialismo”, concluía o primeiro Plano Qüinqüenal (1928-1933) e dava os largos passos para transformar a URSS numa grande potência ao mesmo tempo em que promovia a coletivização forçada da agricultura soviética e preparava o terreno para os famigerados “Processos de Moscou” que varreram da cena política soviética novos e velhos “opositores” do regime. Da revolução mundial ao socialismo num só país As condições que vislumbraram a ascensão dos regimes fascistas ou protofascistas na Europa, com Mussolini e Hitler sendo suas “pontas de lança”, mas não os únicos prepostos, representaram para o movimento comunista o fim da vaga revolucionária e da expectativa de que a Rússia dos sovietes não ficaria isolada. A bem da verdade, o início dos anos 1930, em que o “culto à personalidade” foi elevado ao máximo patamar na URSS, significava, também, a afirmação de um período contrarevolucionário, com o nazi-fascismo esmagando o movimento operário em diversos países e o stalinismo 6 BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista. Da atividade política a atividade policial e anexos. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 831, v. 2. 7 Id., ibid., p. 832-833. 30 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução fazendo retroceder inúmeras conquistas alcançadas pela Revolução de 1917. Todavia, se no plano político o stalinismo marca uma ruptura com o leninismo do tempo de Lenin, ruptura anunciada entre 1923/1924 e concretizada na década seguinte, no terreno econômico e militar a URSS caminhou para se transformar numa grande potência menos de 20 anos após a derrubada da autocracia tzarista. Não obstante, a ascensão de Hitler na Alemanha acendia o sinal vermelho para os comunistas, já que ameaçava a existência física da União Soviética e punha em movimento uma prática diplomática que parecia ter desaparecido com a ascensão dos bolcheviques. É sabido que entre as primeiras e mais importantes atitudes dos bolcheviques após a tomada do poder, aparecem com destaque o acordo de paz de BrestLitovsk e a divulgação dos protocolos secretos da diplomacia tzarista. Esta atitude tanto representava uma reviravolta completa nas práticas diplomáticas do velho regime autocrático, quanto inovavam em relação às atitudes correntes da democracias burguesas. Com efeito, desde os tenros anos da Revolução, foram nomeados importantes militantes do Partido Bolchevique para cargos diplomáticos em diversos países, de maneira a se propagandear a revolução em todas as fronteiras 8 possíveis. Com o passar dos anos, contudo, e conforme a contra-revolução burocrática avançava, também no terreno diplomático houve um retorno às antigas concepções. Neste sentido, segundo Isaac Deutscher, Stalin “requeria a gradual subordinação da política comunista às necessidades da diplomacia soviética”, de maneira que, de destacamento auxiliar do Komintern enquanto Lenin esteve vivo, a diplomacia passou a ocupar um lugar central na época de afirmação da ditadura stalinista, tornando-se, segundo Trotsky, os guarda-fronteiras da “pátria do socialismo”, o que 9 arrastou junto toda a política da Internacional. Todavia, tal percurso não foi feito sem percalços, haja vista que os princípios internacionalistas dos bolcheviques permaneciam vivos. Da mesma forma, a autoridade de Lenin e parte do legado de Trotsky não podiam ser simplesmente apagados de uma hora para outra da história, de modo que a ascensão da nova diplomacia ia se dando em conformidade com as necessidades de cada conjuntura. Enquanto o “culto a Stalin” ia se solidificando, na URSS dos bolcheviques, segundo ainda Isaac Deutscher, “a questão principal consistia em decidir em que medida era real o socialismo num só país e mero espectro o comunismo internacional”, o que significava que a decisão sobre esta questão viria a definir os rumos da IC e da própria revolução mundial. De acordo com o historiador polonês, “[d]o ponto de vista de Stalin, seria rematada loucura arriscar a realidade do socialismo num só país em benefício do espectro da revolução no exterior”, dilema que teria dividido os líderes bolcheviques entre as posições de Trotsky, que “acreditou haver mais realidade no comunismo internacional, apesar de todas as debilidades, do que no socialismo num só país, apesar de todas as realizações”, e a posição de Stalin, que entendia imprescindível a afirmação do socialismo na URSS, contra toda incerteza da revolução mundial.10 Em todo caso, ainda em 1921, Lenin, Trotsky e outros dirigentes bolcheviques, já haviam percebido que a revolução mundial podia não ser uma questão de meses, ou mesmo de uns poucos anos. Admitiam que o capitalismo poderia sobreviver à primeira vaga revolucionária aberta com a Revolução Russa de 1917, mas não esperavam sacrificar os esforços pela revolução mundial em nome da construção do socialismo num só país. Muito menos pretendiam que os Partidos Comunistas rebaixassem seus programas para atender aos interesses das burguesias dos seus países. Em vista disso, recomendaram a formação da Frente Única com os partidos operários, garantindo a total independência frente às burguesias dos países em que o capitalismo se mostrava mais robusto e que a contra-revolução se encontrava na espreita, de maneira a favorecer a tática defensiva, enquanto esta fosse necessária, sem que se perdesse de vista a possibilidade da ofensiva, quando esta fosse possível. Exortava-se, com isto, que um sistema de palavras de ordem e reivindicações imediatas e transitórias fossem postos em movimento para se alcançar às massas e evitar o isolamento dos Partidos Comunistas. Em breves palavras: “[a]apenas na luta pelos interesses mais simples, mais elementares das massas operárias, poderemos formar um front unido do proletariado contra a burguesia. Apenas nessa luta poderemos por fim às divisões no seio do proletariado, divisões que constituem a base sobre a qual a burguesia pode prolongar sua existência”.11 Obviamente que nos 14 anos que se passaram entre a realização do terceiro e do sétimo Congresso da Internacional Comunista, não apenas o Komintern se transformou de instrumento da revolução mundial para organismo de apoio à política externa soviética, como o mundo não era mais o mesmo. No terreno da IC, mudaram-se os quadros dirigentes, depuraram-se as fileiras internacionais e de umas tantas seções nacionais e foram incorporados novos partidos e dirigentes ao espectro kominterniano. No plano mundial, dos primeiros sinais de derrota da revolução mundial ao avanço das forças contra-revolucionárias, especialmente na Itália e na Alemanha, um longo caminho foi percorrido, denotando uma grande mudança de situação. Com efeito, em que medida se pode afirmar que as inflexões da Terceira Internacional foram meras adaptações às necessidades dos novos tempos da contrarevolução e do fascismo? Responder a questão acima não é tarefa fácil. Principalmente porque o tema guarda altas doses de 8 BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista. Ascensão e queda. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 53-54, v. 1. 9 DEUTSCHER, Isaac. Stalin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 417. TROTSKY, Leon. A revolução permanente. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p. 8. 10 DEUTSCHER, Stalin..., p. 418. III CONGRESSO da Internacional Comunista. Manifestos, teses e resoluções do 3º Congresso. São Paulo: Brasil Debates Editora, 1989, p. 194. 11 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (28-34) - 31 contrafactualidade. Mas um exame das políticas da IC após o seu IV Congresso (1922), sugere uma gradual subordinação do Komintern aos interesses soviéticos, senão vejamos: primeiro veio a bolchevização aprovada no V Congresso de 1924, quando Lenin já estava morto e o bloco Stalin/Bukharin se preparava para enfrentar a Oposição de Esquerda e seu principal líder, Leon Trotsky. A bolchevização foi necessária para os dirigentes da IC, porque enquadrava as seções nacionais ao promover uma ultra-centralização do movimento comunista mundial, abrindo um primeiro flanco internacional contra o trotskismo, o que tornava todo o movimento a ela ligado refém dos interesses estritos de Moscou. Em seguida, a política de “classe contra classe”, ou do Terceiro Período, implementada a partir do VI Congresso, em 1928, pretendia dar respostas aos desastres da política da IC na China e o malogro do Comitê anglo-russo na GrãBretanha, mas atendia, principalmente, à virada da política stalinista no interior da própria URSS. Stalin, após derrotar Trotsky e a Oposição de Esquerda, voltou suas baterias para Bukharin e seus partidários, a ala direita do PCUS que defendia a continuidade da NEP. Foi a partir de 1928 que a NEP foi suprimida, sendo substituída pelos Planos Qüinqüenais e a coletivização forçada da agricultura soviética, sepultando de vez as aspirações dos bukharinistas. A política ziguezagueante de Stalin era uma clara demonstração de que o dirigente soviético, no plano internacional, não conseguia perceber os perigos do fascismo nem diferenciá-lo completamente dos regimes burgueses plenos. Em vista disso, por indicação do próprio Stalin, promoveu-se uma guinada à esquerda nos rumos do Komintern justo no momento em que a contrarevolução ganhava terreno e os comunistas não tinham alternativa senão ampliar as bases de aliança com as correntes do movimento operário para melhor se defenderem. Stalin submeteu a totalidade da IC à sua mão de ferro, consolidando sua liderança e afastando os adversários que lhe faziam sombra na URSS e fora dela no curso de implementação de sua política esquerdista do Terceiro Período. Não foi outro motivo que, frente às primeiras avaliações da nova derrota representada pela ascensão de Hitler na Alemanha, uma nova inflexão fosse preparada, a maior de todas elas, a inflexão do VII Congresso da IC, a inflexão da Frente Popular que rompeu de uma vez por todas com a independência de classes das organizações comunistas. A vitória da diplomacia Com a virada dos anos 1920 para os anos 1930, uma nova onda revolucionária se abriu no planeta. Desta feita, não apenas na Europa se pressentiram irrupções violentas e embates de vida e morte entre a revolução e a contra-revolução, mas também na Ásia, especialmente na China, a revolução ganhava terreno e o desfecho das situações dependia em grande medida do papel jogado pelas direções comunistas perante os operários e camponeses de diversos países. Admitindo-se a abertura de uma nova vaga revolucionária na passagem da década de 1920 para 1930, seria possível dizer, então, que estaria correta a política do Terceiro Período que antevia uma nova época de colapso do capitalismo e de ruptura revolucionária no mundo? A se considerar a assertiva como correta, ainda soaria bastante improvável que a linha da IC se voltasse para a revolução no momento preciso em que a teoria do socialismo num só país ganhava seus contornos definitivos e a política externa do Estado soviético caminhava para postular a convivência pacífica com as nações do ocidente capitalista. Mas concedamos à história, mesmo com suas ironias, o benefício da dúvida sobre as reais intenções da IC e dos stalinistas nos anos 1920. Busquemos identificar quais elementos estavam em jogo no momento em que a Frente Popular foi definida para o movimento comunista internacional. Entre os marxistas não pode haver dúvidas de que uma revolução só avança na circunstância de haver uma crise revolucionária. Grosso modo, em seu livro sobre o Esquerdismo, Lenin definia uma crise revolucionária numa pequena, porém eficaz, fórmula que dizia, quando os de cima não podem e os de baixo não querem, a ordem vigente está próxima de se liquefazer. Some-se ao elemento mais diretamente mensurável em que circunstâncias objetivas são mais evidentes, como a própria crise econômica que se abateu sobre a economia mundial em 1929, a instabilidade momentânea nas instituições burguesas de direção, a incapacidade da classe dominante de se manter como dirigente frente aos setores subalternos, a divisão das forças armadas e uma mudança de posição dos extratos médios da sociedade que se perfilam com o proletariado, ao elemento subjetivo da existência de um partido revolucionário capaz de dar conseqüência ao curso da história, e o fator crise revolucionária está definido com fortes chances de vitória da revolução. Contudo, uma crise revolucionária não está imediatamente vinculada a um colapso da economia, ainda que a piora na situação de vida das classes trabalhadoras possa favorecer a eclosão da crise que antecede à catarse que é a revolução. Fosse assim, o capitalismo permaneceria ameaçado pela revolução a cada ciclo descendente, o que não parece ser o caso. Não obstante, a IC teria, de fato, acertado na antevisão do Terceiro Período no seu VI Congresso em 1928? Para Trotsky, que repele categoricamente a terminologia “apocalíptica” dos “períodos” para se pensar a revolução, não existe uma tática abstrata definida a priori para cada período. Considerando que “o número de períodos até a vitória do proletariado é uma questão de relação das forças e de mudanças na situação”, Trotsky entendia que o ritmo de mobilização que se devia imprimir às massas, depende não somente da situação objetiva, mas, principalmente, “do estado em que a crise social do país encontra o proletariado, das relações entre o partido e a classe, entre o proletariado e a pequena-burguesia etc”. Ainda assim, para ser mais claro no que dizia, o dirigente do Exército Vermelho se pôs a pensar como a burocracia stalinista, aplicando o próprio jargão “apocalíptico” contra os chefes da IC: A direção da IC impôs às seções nacionais a tática do “terceiro período”, isto é, a tática do surto revolucionário imediato, em um momento (1928) que 32 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução tinha os traços visíveis do “segundo período”, isto é, da estabilização burguesa, de um refluxo e uma descida da Revolução. A reviravolta que disso resultou em 1930 significa o abandono da tática do “terceiro período” em proveito da tática do “segundo período”. Essa reviravolta, entre outras, foi realizada pelo aparelho burocrático num momento em que sintomas essenciais começavam a testemunhar, de forma eloqüente, ao menos na Alemanha, uma verdadeira aproximação do “terceiro período”.12 Ou seja, para Trotsky, que estudou de perto a situação revolucionária aberta na Alemanha na virada dos anos 1920 para os 1930, a tática adotada pela IC foi absolutamente equivocada tanto em 1928, já que se indicava a ofensiva quando havia certa “estabilização burguesa” e evidente refluxo da revolução, quanto em 1930, quando após o colapso econômico de 1929 e os resultados das eleições denotavam o grande peso político do PC, o Komintern recomendou o recuo dos comunistas e a desmobilização das massas que permaneciam sendo 13 fustigadas contra a social-democracia. Segundo ainda o revolucionário russo, as reviravoltas da política stalinista na IC provocavam o enfraquecimento da posição do PC da Alemanha que de derrota em derrota tornou-se incapaz de apresentar as repostas adequadas a cada conjuntura. Em todo caso, Trotsky era categórico quando permanecia defendendo a necessidade da Frente Única com a socialdemocracia no momento em que os nazistas também cresciam eleitoralmente. E quando se perguntava se a tática do PC alemão, em 1930, deveria ser ofensiva ou defensiva, não tergiversava ao dizer que devia ser defensiva.14 Ainda assim, caso concedamos a direção da IC o mérito da antevisão da crise de 1929 e a indicação de uma linha correta no ano anterior, há que se concordar com Issac Deutscher que considera a irremediável contradição entre a linha política implementada por Stalin na URSS, que transformou em “supremo artigo de fé” o “socialismo num só país”, e “aquela por ele inspirada no Komintern”, que visualizava a irrupção revolucionária no planeta. Para Deutscher, não era difícil adivinhar qual das duas 15 políticas teve maior peso. Tanto foi assim que a tática do Terceiro Período, conforme observado anteriormente, teve vida curta para o movimento comunista internacional, ainda que permanecesse inspirando a bolchevização, a ultra-centralização e a depuração contra os “perigos de direita” nas seções nacionais de todo o mundo, pelo menos até 1935. O fato é que, de pequenos ajustes à grande tournant de 1935, a Frente Popular veio a ser a confirmação da vitória da diplomacia e da política externa soviética sobre todo o movimento comunista internacional e sobre o próprio Komintern. Foi também o momento em que os comunistas passaram a defender a “democracia” sem adjetivações, colocando-se nas trincheiras do inimigo de classe e de tudo aquilo que os bolcheviques do tempo de Lenin pretenderam combater 12 TROTSKY, Revolução e contra-revolução, p. 50. Id., ibid., p. 50. 14 Id., ibid., p. 59-60. 15 DEUTSCHER, Stalin…, p. 428. 13 como as mais vãs ilusões burguesas. Quanto à IC, esta foi se desmoralizando gradualmente, ainda que permanecesse sendo necessária para dar suporte à diplomacia soviética e ser o esteio da implementação da política de conciliação de classes inspirada por Moscou e que teve seus primeiros laboratórios na França, na Espanha e, em seguida, no resto do mundo. Doravante os comunistas estavam integrados ao campo da nação e da democracia contra o fascismo, ou seja, no campo da burguesia e da contra-revolução, contra a luta de classes e o próprio proletariado.16 A ilusão da convivência pacífica Parece não haver dúvidas que a guinada política da IC, experimentada inicialmente na França, tinha relação com os interesses de Stalin e do PC na URSS. Entretanto, se neste momento não vale à pena retomar o debate sobre o peso da “mão de Moscou” no movimento comunista internacional, cabe mencionar que a autoridade do único partido que tinha feito a revolução no mundo e o exemplo da “pátria do socialismo” continuavam importando nas decisões das seções nacionais que pretendiam aprender com a experiência dos bolcheviques, ainda que os ensinamentos de Lenin parecessem cada vez mais distantes. Com efeito, mesmo considerando as dimensões nacionais da questão francesa, situação em que os socialistas se mobilizaram apelando à formação da Frente Única com o PC através da Internacional Operária por medo de que na França se repetisse o que tinha ocorrido na Alemanha, há que se apontar que o ressurgimento da Frente Única veio a propósito do atendimento dos interesses de Moscou. Afinal de contas, ante as primeiras movimentações de Hitler na vizinha Alemanha, Stalin pretendeu firmar uma trégua com os países ocidentais abandonando a política de Rapallo que desde 1922 vinha dando o tom das relações com os germânicos e com as outras potências 17 européias. Por medo de que uma guerra se precipitasse na frente ocidental, a diplomacia soviética acenou ostensivamente para a França e para a Inglaterra com o objetivo de barrar a sanha belicosa dos nazistas. Esboçado entre 1933 e 1934 pelo CEIC e, posteriormente, experimentado na França e também na Espanha, a política de Frente Popular só foi efetivamente consagrada quando da realização do VII Congresso da Internacional Comunista, entre julho e agosto de 1935. Na ocasião, Dimitrov, o herói búlgaro injustamente acusado pelo incêndio de 1933 no Reichstag, já devidamente empossado como dirigente máximo do Komintern, pronunciou um discurso que entraria para a história do movimento comunista internacional. Em seu relatório apresentado ao VII Congresso no dia 2 de agosto 16 Cf. RODRIGUES, Francisco Martins. O anti-dimitrov. 1935-1985. Meio século de derrotas da revolução. Lisboa: Ulmeiro, 1985, p. 30. Para este autor, que não deixa de demonstrar simpatia pelos resultados do VI Congresso, o VII Congresso do Komintern decretou a capitulação face ao reformismo e a falência da Internacional Comunista. 17 Firmado em abril de 1922 entre a URSS e a Alemanha da República de Weimar, o Tratado de Rapallo implicava na renúncia de reivindicações territoriais e financeiras originadas dos acordos seguidos à Primeira Guerra Mundial. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (28-34) - 33 de 1935, Dimitrov não apenas promovia a maior inflexão na história da Internacional ao romper totalmente com os princípios da independência de classes consagrados nos congressos anteriores, especialmente nos quatro primeiros, como isentava os dirigentes da Terceira Internacional de toda a responsabilidade pelos equívocos da política do período anterior. Num sutil e competente exercício de prestidigitação, o dirigente da IC tanto não incorporava a necessária autocrítica quanto aos erros políticos do Terceiro Período, como remetia para a socialdemocracia todo o peso da responsabilidade histórica pela ascensão do fascismo. De acordo com Marta Dassú, o informe de Dimitrov, que não deixa de responder a “lógica continuísta” do Komintern, cuidava para que não se legitimasse as críticas de Trotsky, tendo obtido a mais ampla adesão dos delegados do Congresso. Ainda assim, o dirigente búlgaro esperava uma maior sinceridade na construção do consentimento, lamentando “o caráter acrítico e ritualístico da unanimidade” consagrada no conclave comunista.18 No final das contas, o informe de Dimitrov sepultou o Komintern, já que definia uma virada estratégica e não apenas tática na prática da IC, sendo a resultante de uma luta subterrânea de tendências 19 no seio da Internacional e da própria URSS. Todavia, pela primeira vez desde a ascensão dos fascistas na Itália e dos nazistas na Alemanha, a Internacional Comunista tornava pública uma apreciação pormenorizada do fenômeno do fascismo procurando diferenciá-lo da democracia burguesa: “O fascismo é o próprio poder do capital financeiro; é a repressão terrorista organizada contra a classe trabalhadora, a parte revolucionária da classe camponesa e dos intelectuais”.20 Mas a caracterização do fascismo como uma outra forma de dominação burguesa trazia embutida a premência da defesa da URSS, a “pátria do socialismo”: “O fascismo alemão surge como a tropa de choque da contra-revolução internacional, como o principal fomentador da guerra imperialista, como o instigador da cruzada contra a União Soviética, a grande pátria dos 21 trabalhadores do mundo inteiro”. O relatório de Dimitrov, uma peça de retórica que não deixa de ter as suas qualidades, limpou o terreno das inúmeras ambigüidades que estavam presentes no comportamento do CEIC e de algumas seções nacionais da IC que abandonavam a linha do Terceiro Período, para traçar o panorama da nova linha política da Frente Popular que pressupunha um retorno à tática frentista sem o cuidado de preservação das fronteiras de classe. Neste sentido, paradoxalmente, o chamado à construção de Frente Popular nada mais foi do que o abandono puro e simples da política de Frente Única em função de uma nova estratégia de conciliação com a burguesia e de defesa da pátria e da democracia, não obstante a Frente Única permanecesse sendo reivindicada. Doravante, os partidos de Thorez, Togliatti, Cunhal ou Prestes, assim como todos os outros partidos comunistas do mundo, em que pesem as diferenças entre as situações, as circunstâncias históricas e os regimes que tiveram que enfrentar, só podiam aspirar a democracia e se entrincheirar com os democratas “honestos” e “honrados” dos seus países na luta contra os fascistas. Deixava-se de lado o conflito capital/trabalho dentro da hierarquia das contradições que dizia para os comunistas que o caminho a ser pavimentado era o da democracia, fosse no cumprimento das tarefas de libertação nacional ou então na luta pela derrota do fascismo e pelo restabelecimento da democracia burguesa. Assim, em cada país, conforme a luta antifascista ganhava a primazia diante da luta de classes, os comunistas passaram a conclamar os setores antifascistas para a formação da Frente Nacional, circunstância em que os PCs apelaram para liberais, monarquistas, católicos, latifundiários, industriais, enfim, todos aqueles que se colocassem no campo do antifascismo deveriam ter lugar na ampla trincheira aberta pelos partidários da IC que visavam, acima de tudo, derrotar o fascismo, e não promover a revolução proletária. E caso fossem acusados de pretender se servir de aliados com a finalidade de instauração da ditadura do proletariado, os comunistas do planeta podiam responder com o dirigente português Álvaro Cunhal, que não negava os fins, mas assegurava que o objetivo fundamental dos comunistas era, ao fim e ao cabo, a democracia: Nós, comunistas, entendemos que a etapa actual da revolução no nosso país é a de um movimento nacional libertador e pomos como principal objectivo o derrubamento do governo fascista de Salazar. Na prossecução deste objectivo, pomos todas as nossas energias, todas as nossas forças. Nós queremos realmente instaurar um governo democrático de Unidade Nacional, com a participação de todas as forças progressistas e patrióticas. Um mesmo objectivo nos une. Porque receais pois colaborar com os comunistas que lutam convosco pelo vosso próprio objectivo?22 Com efeito, conforme Hobsbawm, a “democracia só se salvou porque, para enfrentá-lo [ao nazi-fascismo], houve uma aliança temporária e bizarra 23 entre capitalismo liberal e comunismo”. Sendo assim, por que os “democratas sinceros” insistiam em temer os comunistas e seus partidos? Será que tinham razão em desconfiar de gente como Thorez, Togliatti, Cunhal ou Prestes? A pergunta para essa questão talvez seja a chave para o entendimento da persistência da política de Frente Popular e para tantos mal entendidos que ela tem provocado no campo da esquerda. Afinal de contas, a aura romântica da Frente Popular, banhada em sangue numa era em que o fascismo esteve às portas de instaurar a barbárie no planeta, segue sendo a principal fiadora de 18 DASSÚ, Frente Única e Frente Popular. In: História do Marxismo..., p. 328. 19 Cf. RODRIGUES, O anti-dimitrov…, p. 109. 20 DIMITROV, Jorge. “A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o fascismo”. In: Obras escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1976, p. 11. 21 Id., ibid., p. 10 (grifos no original). 22 CUNHAL, Álvaro. “Unidade da nação portuguesa na luta pelo pão, pela liberdade e pela independência”. In: Obras escolhidas. Lisboa: Editorial Avante, 2007, p. 222. 23 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. 19141991. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 17. 34 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução parte de revolucionários honestos que enxergam nos tempos pretéritos o espírito guerreiro que lhes falta no presente. Não obstante, a premissa deste texto sobre o caráter derrotista e mesmo contra-revolucionário que a Frente Popular imprimiu ao movimento comunista internacional persiste, ainda que não se perca de vista que o fantasma da revolução permaneceu no encalço da IC como sua própria sombra, mesmo contra a vontade daqueles que sucederam Lenin em sua direção. Neste sentido, conforme Isaac Deutscher, “[p]or mais moderados, constitucionais, 'puramente' democráticos e patrióticos que fossem os slogans que articulara para as Frentes Populares, não podia anular as potencialidades revolucionárias daquelas 'frentes'”.24 Em todo caso, após cumprirem um curto período de lua de mel com as democracias e de aguardada convivência pacífica, os comunistas voltaram a amargar a marginalidade na democracia burguesa. Afinal de contas, como herdeiros de Lenin que pretendiam ser, não podiam prescindir das massas trabalhadoras. E conforme a luta antifascista avançava e o nazi-fascismo foi, finalmente, derrotado; conforme os trabalhadores vieram cobrar a conta dos anos de escassez e penúria junto às suas burguesias; conforme os de baixo percebiam e acreditavam nas suas próprias forças; tendiam a atropelar suas direções conciliadoras, para o bem da revolução mundial e para a desgraça dos Partidos Comunistas que pretendiam se integrar à democracia e não conseguiam se livrar do espectro de 1917. Artigo recebido em 02/04/2011 Aprovado em 09/06/2011 24 DEUTSCHER, Stalin…, p. 444. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 35 Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista 1 Paula Schaller2 M uito se escreveu sobre a grande experiência de luta armada antifascista que sacudiu a Itália nos anos 1940. Aqui pretendemos analisar e conceituar as tendências que nos permitem considera-la como o início de um processo revolucionário, com o propósito de superar os relatos que fazem da Itália o paradigma histórico da disputa binômica totalitarismo versus democracia liberal, onde o horizonte da revolução social parece não ter estado nem discussão. Pretendemos não apenas recuperar a magnitude histórica deste processo de revolução social como ao mesmo tempo avançar em um balanço dos limites político-subjetivos que contribuíram para sua debilitação como tal. Considerando que nos encontramos diante de um caso em que a dialética revolução-contrarevolução operou de maneira particular, sendo o elemento determinante não a contra-revolução fascista mas o próprio curso político adotado pelas tendências hegemônicas no interior do “campo antifascista”. Nos basearemos nas categorias brindadas por Trotsky para a análise da articulação entre as situações revolucionárias, a guerra civil e o duplo poder, assim como as noções formuladas por Gramsci em torno dos conceitos de relação de forças, crise orgânica e hegemonia, que consideramos de grande utilidade no momento de analisar o estado da relação entre as classes e frações sociais em disputa, suas forças e disposições relativas à luta, etc. Ascenso da luta de classes e dissolução do poder estatal A participação italiana na Segunda Guerra Mundial [1939-45] atuou como um potente acelerador das contradições sociais no país. Ao regime político opressivo se somaram as penúrias e padecimentos próprios da guerra que levaram o país a uma situação de crise econômico-social aguda, tal como havia sucedido na saída da Primeira Guerra Mundial [1914-1918] com o processo que desembocou na formação dos conselhos de fábrica em Turim.3 Assim, a partir de 1942 se reativou a luta antifascista nas cidades industriais no Norte, que durante anos havia estado reduzida a pequenas células clandestinas com pouca capacidade de ação. Assim descreve o historiador inglês Arnold Toynbee: O racionamento e os ataques aéreos [...] serviam para demonstrar a incompetência e corrupção do regime. Desde princípios de 1942, ou seja, muito antes do inverno decisivo de 1942-43, enquanto o público ordinário lamentava a guerra de maneira passiva, começaram a organizar-se grupos ativos de oposição. [...] Em Turim e Milão haviam sobrevivido, em todo o período fascista, as células comunistas. Os fracassos italianos e a resistência russa permitiram o florescimento destas células e se restabeleceram os antigos laços com os socialistas, especialmente em Milão e Gênova. O centro da resistência comunista seguiu sendo a fábrica de automóveis FIAT de Turim.4 Esta resistência teve um salto logo depois da batalha de Stalingrado [07/1942-02/1943], que não apenas impulsionou uma nova relação de forças no plano militar, produto da primeira grande derrota alemã por parte do Exército Vermelho, mas também uma mudança na correlação de forças entre as classes, abrindo um período de luta de massas em grande parte da Europa ocupada. Na Itália isto significou em março de 1943 o estouro de um importante movimento grevista que implicou em mais de cem mil trabalhadores das cidades de Turim, Milão e Gênova.5 Este começou na fábrica Mirafiori, das oficinas FIAT de Turim, onde os trabalhadores exigiam que se cumprissem as promessas de indenização aos trabalhadores lesados pelos bombardeios ou que por causa deles estivessem sem trabalho: […] foram distribuídos panfletos nos quais se pediam pão, paz e liberdade. [...] No dia 19 de março começaram a propagar-se as greves pelas oficinas das fábricas Caproni, de Milão e Breda, assim como as fábricas Pirelli. Quando Mussolini e Batianini (Dirigente do Partido nacional Fascista, exerceu o cargo de subsecretário da Chancelaria desde o ano de 1932 e foi nomeado embaixador em Londres em 1939) foram a Salzburgo no mês de abril, Bastianini falou a Ribbentrop (Ministro de Assuntos Exteriores da Alemanha Nazista desde o ano de 1938 até 1945) das greves de Turim e Milão como uma das razões pelas quais a Itália não podia continuar em guerra. Foi a primeira vez que a Europa do Eixo presenciou uma 1 Tradução do espanhol por Carla Luciana Souza da Silva, professora do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná 2 Licenciada en Historia, Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Nacional de Córdoba. Becaria de CONICET, Centro de Estudios Avanzados, UNC. 3 Ver: GRAMSCI, Antonio, “El movimiento turinés de los consejos de fábrica. Julio 1920”, en Antología, ed. Siglo XXI, Buenos Aires, 2004 y VIOLA, Eduardo, “Italia 1918/1922: Socialismo o fascismo”, en Historia del Movimiento obrero, Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1985. 4 TOYNBEE, Arnold, J., La Europa de Hitler, Sarpe, Madrid, 1985, pg. 243 CLAUDÍN, Fernando, La crisis del movimiento comunista. De la Komintern al Kominform. Ediciones Ruedo Ibérico, Madrid, 1975, pg. 315 5 36 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista formidável demonstração operária dirigida contra seus governantes.6 Foi neste marco de derrota alemã em Stalingrado, ascenso da luta de classes e desembarque das tropas inglesas e norte-americanas na Sicília em julho de 1943, que a burguesia italiana resolveu “desfazer-se” de Mussolini e apostar na mudança do pessoal político dirigente, destituindo-o nesse mesmo mês para substituilo por Badoglio, seu antigo marechal, em uma tentativa de “manter o fascismo sem Mussolini”. Discordamos da visão liberal que apresenta a queda de Mussolini como o produto de uma crise “nas alturas”, sintetizada nas palavras de Henri Bernard, militar inglês e estudioso das resistências européias: “[....] a revolução de julho veio de cima e não do povo. Foi a conseqüência direta da derrota militar. No desastre caiu Mussolini, abandonado inclusive pela maioria de seus colaboradores”.7 Pelo contrário, tal como explica Fernando Claudín (dirigente do Partido Comunista Espanhol até sua expulsão deste em 1965), esta política tinha o objetivo claramente preventivo de conter a emergência de uma saída revolucionária à crise aberta do regime. De fato, a extensão da luta operária não apenas impressionou à hierarquia fascista, mas também ao conjunto da burguesia italiana: “[...] todos eles viam renascer nas greves o espectro proletário, um inimigo muito mais perigoso que os adversários do outro campo de batalha. A burguesia compreende com essas greves que o regime fascista é incapaz de conter a cólera operária e prepara sua substituição e a reorganização das forças 8 'democráticas'.” Este caráter preventivo do governo ficou demonstrado na política repressiva que levou a diante desde que foi formado: “[...] todo movimento deve ser esmagado inexoravelmente desde sua origem [...] as tropas atuarão em formação de combate, abrindo fogo à distância, inclusive com morteiros e artilharia, sem aviso prévio, como se procedessem contra o inimigo”, se orientava em um comunicado.9 Mas não obstante a repressão do regime, que em pouco mais de um mês tirou a vida de cem operários enquanto que mais de dois mil foram presos,10 começou a emergir um estado pré-insurrecional no norte do país, com greves que já para este momento não apenas colocavam reivindicações econômicas diante da catastrófico deterioração das condições de vida mas que exigiam a liberdade dos presos políticos e o cessar da guerra. A situação se agudizou logo depois do armistício com os aliados anunciado por Badoglio em setembro, o que motivou a invasão alemã no Centro e Norte da península. Seguindo ao historiador italiano Enzo Traverso, poderíamos dizer que neste momento o Estado italiano se “desmoronou”, deixando de existir uma autoridade política e um Exército centralizados, perdendo a burguesia italiana o controle militar do país. Neste contexto, e diante da crise de dominação burguesa existente, o governo de Badoglio foi incapaz de opor resistência alguma diante do avanço da invasão alemã, refugiando-se junto com o rei no Sul com o amparo das tropas aliadas e deixando nas mãos do exército alemão o combate contra o movimento antifascista. [...] em 9 de setembro, depois de anunciar o armistício concluído secretamente com os aliados, o rei e a família real, o marechal e um distinto cortejo de generais e funcionários, fogem de Roma, sem haver tomado a mínima medida de defesa contra os invasores. E passará um mês mais sem que Badoglio declare guerra à Alemanha. Ao fim o fará em 13 de outubro sob a 11 pressão do Alto Comando aliado. Mesmo que algumas divisões aliadas tenham lutado contra a invasão alemã que avançou sob Roma em 9 de setembro, a frustrada defesa desta esteve a cargo do povo romano que resistiu praticamente sozinho na Porta de São Paulo, e isto porque o conjunto dos chefes do Exército e a oficialidade assumiram, da mesma forma que o novo governo, uma posição absolutamente derrotista.12 Crise orgânica e situação revolucionária Esta atitude derrotista da burguesia italiana, que nos permite medir a enorme dimensão de classe de sua noção de patriotismo -, preferindo deixar-se invadir sem resistência do que mobilizar suas tropas (nem falemos de fazer um chamado a operários e camponeses para lutar) é em si mesmo uma significativa mostra do grande estado de crise de dominação existente. Neste sentido, consideramos que o conceito gramsciano de crise orgânica é útil para traduzir esta experiência, já que nos permite ler as características de uma crise não apenas econômico-social, mas hegemônica, onde é o estado, em seu conjunto que se vê questionado: Em certo momento de sua vida histórica, os grupos sociais se separam de seus partidos tradicionais. Isto significa que os partidos tradicionais, com a forma de organização que apresentam, com aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem, já não são reconhecidos como expressão própria de sua classe ou de uma fração dela. Quando estas crises se manifestam, a situação imediata se torna delicada e perigosa, porque o terreno é propício para soluções de força, para a atividade de potências obscuras, representadas por homens providenciais ou carismáticos. [...] [produzindo-se uma] crise de hegemonia da classe dirigente, produzida ou bem porque a classe dirigente falhou em alguma grande empreitada política sua em que pediu ou impôs por força o consenso das grandes massas [como no caso de uma guerra] ou bem porque vastas massas [...] passaram subitamente da passividade política a uma 6 TOYNBEE, Arnold, J., Op. Cit. pg. 240 BERNARD, Henri, Historia de la resistencia europea, Ediciones Martínez Roca, Barcelona, 1970, pg. 48. 8 “A luta de classes contra a guerra imperialista. As lutas operárias na Itália em 1943”, disponível em: http://es.internationalism.org/rint75lucha 9 CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 315. 10 “La guerra partisana en Italia”, en: http://www.luchadeclases.org.ve/historia-leftmenu-171/5365-laguerra-partisana-en-italia 7 11 CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 316 TOYNBEE, Arnold, J., Op. Cit., pg. 241. 12 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 37 certa atividade e colocam reivindicações que em seu inorgânico conjunto constituem uma revolução. Se fala de 'crise de autoridade' e nisto consiste precisamente a crise de hegemonia, ou a crise do Estado em seu conjunto. 13 A crise que desembocou na queda do governo de Mussolini e sua substituição pelo marechal Badoglio demonstrou que longe de ser de conjuntura, uma “crise parlamentar” ligada ao questionamento de setores específicos do pessoal dirigente, era orgânica, uma profunda crise de dominação, produto da derrota italiana na grande empreitada da guerra, que havia exacerbado as penúrias das massas, se desatou uma crescente intervenção da luta operária que, combinada com a ação militar de amplas camadas sociais, pôs em xeque o ordenamento político-social vigente. Nenhum setor da burguesia italiana foi desde julho de 1943 capaz de impor diante das massas sua própria vontade, capaz de assegurar um governo que suscitasse consenso social. Pelo contrário, a burguesia recorreu a soluções de última hora, tal como a substituição de Mussolini e a mudança de lado na guerra, que não conseguiram suavizar o estado da luta de classes ascendente. Bernard destaca que no contexto da invasão aliada a Sicília – e na crescente onda de greves operárias no Norte, agregamos aqui – a burguesia italiana se dividiu em três alas, que por seus programas resumiremos em dois: por um lado, uma ala liberal representada pelos setores antifascistas militantes, dirigidos pelos ex - primeiro ministro Ivanoe Bnonomi, que lutavam por substituir o Dulce por Bodoglio, roper relações com a Alemanha e iniciar negociações com os aliados; e outro setor representado por importantes membros do Partido Fascista, tais como o Ministro de Relações Exteriores Galeazzo Ciano, que lutavam por regenerar o partido mantendo o essencial do regime político.14 Embora numa primeira vista possamos julgar que o primeiro grupo conseguiu impor sua própria saída, isto de maneira alguma bastou para encerrar a situação de crise de hegemonia aberta, com um Estado desmembrado crescentemente incapaz de projetar sua autoridade sobre o conjunto da sociedade. Tal como coloca Traverso, logo depois da dupla invasão anglo-americana e alemã, - seguida esta última da fuga da monarquia e o governo de Badoglio ao Sul dominado pelas forças militares aliadas -, a continuidade deste Estado foi preservada simbolicamente pela Monarquia, enquanto que Mussonini por sua vez estabeleceu a República Social Italiana, - chamada de República de Saló pelo nome de sua capital -, sustentada pelas forças alemãs. Assim “a Monarquia e o regime de Saló não [podiam] existir em virtude da ocupação aliada e alemã, sem uma 15 legitimidade verdadeira”. Agora vejamos, tal como coloca Gramsci, nem toda crise orgânica desemboca em uma revolução. Em 13 GRAMSCI, Antonio, Notas sobre Maquiavelo, sobre política y sobre el Estado Moderno, Nueva Visión, Buenos Aires, 1997, pg. 124 14 BERNARD, Henri, Op. Cit, pg. 45. 15 TRAVERSO, Enzo, A sangre y fuego. De la guerra civil europea (1914-1945), Publicacions de la Universitat de Valencia, Valencia, 2009, pg. 56. seu artigo “análise de situações. Relações de força”, diferenciando entre os movimentos orgânicos, relativamente permanentes, e os movimentos conjunturais, de caráter ocasional e imediato, precisamente colocava que “o erro em que se cai frequentemente na análise histórico-política consiste em não saber encontrar a relação correta entre o orgânico e o ocasional”.16 Assim, para que se produza uma crise orgânica é necessário que a ruptura englobe às classes fundamentais, ou seja, à classe dominante, por uma parte, e à classe que aspira à direção do novo sistema hegemônico, por outra; e para que esta crise desemboque em uma revolução é necessário que esteja desenvolvida uma força que expresse a mudança subjetiva da classe revolucionária: O elemento decisivo de toda situação é a força permanentemente organizada e predisposta desde muito tempo, que se pode fazer avançar quando de julga que uma situação é favorável (e é favorável somente na medida em que uma força tal exista e esteja impregnada de ardor combativo). É por isso uma tarefa essencial velar sistemática e pacientemente para formar, desenvolver e tornar cada vez mais homogênea, 17 compacta e consciente de si mesma essa força. Esta análise pondera o elemento subjetivo, político, de direção das classes em luta, entretanto determinante para o estabelecimento de uma revolução. Voltaremos mais adiante sobre esta questão, mas nos interessa apontar que, tal como demonstraremos neste caso, o peso deste fator visto como desenlace não dá por acabadas as tendências prévias que configuraram a situação revolucionária, incluído o curso de ruptura com o sistema social adotado espontaneamente por setores das massas. Neste sentido, tomamos Trotsky quando, analisando a derrota da revolução espanhola, - centrandose na relação entre a vanguarda proletária e sua direção política -, coloca que “o caminho da luta seguido pelos operários cortava em todos os momentos sob um determinado ângulo o das direções e, em momentos mais críticos, este ângulo era de 180º.” Ou seja, que em determinadas circunstâncias, as ações empreendidas por setores das massas tendem a adquirir uma orientação revolucionária a pesar e contra sua própria direção, aprofundando uma situação revolucionária que não se resolve como revolução social triunfante. Para explicar esta contradição. Trotsky apresenta uma análise dialética, colocando que assim como os governos não são expressão direta dos povos que dirigem, mas produto da “luta entre as diferentes classes e as diferentes camadas no interior de uma só e mesma classe e, além disso, da ação de forças exteriores, alianças, conflitos, guerras”; a direção de uma classe não é reflexo mecânico desta, e em alguns momentos pode entrar em contradições com os 18 setores mais avançados da mesma. 16 GRAMSCI, Antonio, Op. Cit., p.68 GRAMSCI, Antonio, Op..cit., pg.75. 18 Ver: TROTSKY, León, Bolchevismo y estalinismo. Clase, partido y dirección. A propósito del frente único, el Yunque, Buenos Aires, 1975. 17 38 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista No cenário italiano, a crise que se desencadeou com a derrota dos exércitos ítalo-alemães da frente africana em Tunis, em maio de 1943, seguida do desembarque aliado na Sicília, em julho do mesmo ano, e a posterior invasão alemã, desmembrará a unidade burguesa entre o bando anti-fascista, apoiado nos aliados, e o pró-fascista, apoiado nas forças militares alemãs, gerando as fissuras que possibilitaram a emergência da auto-atividade das massas, tanto a nível econômicopolítico como militar. Se combinaram, para tanto, uma profunda crise nacional assinalada pela derrota militar, a catástrofe econômica e a dupla invasão; uma profunda crise social e política da burguesia e seu sistema de dominação e a ação crescentemente independente da classe operária das cidades do Norte e o Centro, o campesinato e setores da pequena-burguesia que se alistavam na resistência armada; dando como resultado a abertura de uma situação revolucionária. Luta pela libertação nacional, duplo poder e guerra civil Desde novembro de 1943 a luta contra a invasão alemã levou a que o movimento de massas e a resistência armada adquirissem um caráter generalizado no Norte. Em numerosas cidades se repetiu o mesmo cenário: Turim, Milão, Roma, Gênova, Bolonha, Florença. Os operários começavam a armar-se, com a tácita cumplicidade dos estratos inferiores do exército, prontos a arriscar tudo não só contra a invasão alemã mas também pela conquista imediata da paz.19 O PCI lançou o chamado a integrar a Guarda Nacional para combater a invasão alemã, a que acudiram aos milhares os operários das grandes cidades. Tal como relata o historiador italiano e dirigente do PCI Paolo Spriano em sua Historia do Partido Comunista Italiano, nesses momentos, dirigindo-se ao prefeito da cidade para pedir armas, um operário da Breda de Milão disse: “os alemães tiveram uma derrota decisiva em Stalingrado; nós, operários, queremos fazer de Milão a Stalingrado da 20 Itália”. Casos como esse se multiplicavam. Diante da inação do governo de Badioglo, as massas tomaram a iniciativa na luta contra a invasão alemã, adquirindo a ação armada uma envergadura cada vez mais importante, convertendo-se, nas palavras de Arnold Toynbee, no “movimento mais notável de sua classe na Segunda 21 Guerra Mundial”. À margem do governo de Badoglio se criaram o Comitê de Libertação Nacional (CLN), com sede em Roma, e o Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália (CLNAI), com sede em Milão, com o objetivo de coordenar e centralizar as ações armadas. Estes comitês, que tinham conteúdo policlassista por estarem formados por partidos burgueses e operários – o Partido da Ação (liberal), o Partido Comunista, o Partido Socialista, a Democracia Cristã, entre outros -, centralizaram as ações de resistência armada e terminaram sendo reconhecidos tanto pelo governo de Badoglio como pelos aliados, uma vez que estes últimos obtiveram, às custas do Partido Comunista Italiano, a garantia de que logo após a liberação lhes seria dada toa autoridade. Aqui nos interessa assinalar mais além de seu conteúdo policlassista e da política de suas direções, pelo grande nível de desarticulação do aparato militar do Estado italiano estes comitês se viram chamados a converter-se em canais de organização de uma resistência operária e camponesa que crescia espontaneamente, centralmente nos povoados e cidades do norte do país. Neste sentido, ao passo que por sua política estes atuaram estrategicamente como um freio ao desenvolvimento da revolução, foram ao mesmo tempo uma expressão do enorme nível de auto-organização alcançado pelas massas no terreno político-militar, e em muitos casos esta contradição os levou a adquirir uma orientação muito mais radical que a pretendida por suas próprias direções. O Partido Comunista, o Partido Socialista e o Comitê de Liberação Nacional da Alta Itália (CLNAI), fizeram para meados de 1944 um chamado à greve geral na zona ocupada pelos alemães em que participaram mais de um milhão de operários – sendo a maior greve em toda Europa ocupada pelos nazis e alcançando em Turim uma 22 extensão de 8 dias -. Assim, “a tradição combativa do operariado turinês ressurgia com o máximo vigor depois de duas décadas adormecidas”, tal como descreve o 23 historiador Eduardo Viola. Enquanto isso, o movimento guerrilheiro seguia se desenvolvendo e alcançou para esse momento uns cem mil combatentes. Assim o descrevia Luigi Longo, dirigente do PCI: Devido à grande envergadura do movimento de massas, em muitas regiões havia de fato dualidade de poder: os órgãos das autoridades fascistas, que se desacreditavam cada vez mais, e os órgãos de poder antifascista, que existiam de maneira ilegal mas gozavam de grande popularidade entre a população. E além dessas regiões onde existia a dualidade de poder, durante todo o período da ocupação nazi houve outras zonas no norte da Itália completamente liberadas das autoridades fascistas, alemãs ou italianas. Eram dirigidas por organismos democráticos de poder, eleitos livremente sob a proteção das forças guerrilheiras.24 Efetivamente, os comitês de liberação acentuavam seu poder em escala local e provincial tomando iniciativas independentes do governo de Badoglio que foram criando uma situação embrionária de duplo poder. Se para o marxismo a característica fundamental do Estado é o monopólio da violência por parte da classe dominante dentro de um território delimitado, isto era precisamente o que se colocava em questão com o 22 Ver CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit. VIOLA, Eduardo, “Del fascismo a la revolución frustrada”, AAVV, Historia del movimiento obrero, Centro editor de América Latina, Buenos Aires, pg. 568. 24 AAVV, Guerra y revolución. Una interpretación alternativa de la Segunda Guerra Mundial, Tomo I, Centro de Investigaciones y Publicaciones León Trotsky, Buenos Aires, 2004, pg. 27. 23 19 “La guerra partisana en Italia”, Op. Cit. SPRIANO, Paolo, Storia del Partito Comunista Italiano. La fine del fascismo. Dalla riscossa operaia alla lotta armata, tomo IV, Eunadi, Torino, 1973, pg. 87. 21 TOYNBEE, Arnold, J., Op. Cit, pg. 241 20 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 39 desenvolvimento desta dinâmica em curso, pondo na ordem do dia a questão de que classe detém o poder. Isto havia sido analisado em profundidade por Trotsky na revolução de fevereiro de 1917, que havia inaugurado um período transicional de duplo poder ao coexistir o Governo Provisório burguês com os soviets de operários, camponeses e soldados, deixando colocada a questão de qual classe detinha o poder efetivamente. Segundo Pierre Broué, historiador e militante trotskista francês, uma das principais conclusões extraídas por Trotsky para a análise das duas grandes revoluções da história, a francesa e a russa, precisamente consistia em A constatação de que as contradições sociais, no desenvolvimento da revolução, se estabilizam e se desestabilizam sob a forma de situações de 'duplo poder' em uma curva ascendente, primeiro, descendente, logo. Em cada caso, a questão da hegemonia entre os dois poderes em conflito está dirigida pela força ou, se se prefere, por uma 'guerra civil', por breve que ela seja.25 Será a partir da experiência da revolução russa que Trotsky aprofundará em um esquema de análise teórico do duplo poder como episódio transitório da dialética de classes nos momentos revolucionários: A mecânica política da revolução consiste no passo do poder de uma a outra classe. [...] Mas não há nenhuma classe histórica que passe da situação de subordinada à de dominadora subitamente, da noite para o dia, ainda que esta noite seja a da revolução. É necessário que já na véspera ocupe uma situação de extraordinária independência com respeito à classe oficialmente dominante; mais ainda, é preciso que nela se concentrem as esperanças das classes e das camadas intermediárias, descontentes com o existente, mas incapazes de desempenhar um papel próprio. A preparação histórica da revolução conduz, no período pré-revolucionário, a uma situação na qual a classe chamada a implantar o novo sistema social, se bem que não seja ainda dona do país, reúne de fato em suas mãos uma parte considerável do poder de Estado, enquanto que o aparato oficial deste último segue ainda em mãos de seus antigos detentores. Daqui parte a dualidade de poderes de toda revolução. 'a dualidade de poderes surge ali onde as classes adversas se apóiam já em organizações estáveis substancialmente incompatíveis entre si e que a cada posso se eliminam mutuamente na direção do país. A parte do poder correspondente a cada uma das duas classes combatentes corresponde à proporção de forças sociais e ao curso da luta.26 Retomando a Trotsky consideramos que o desenvolvimento do duplo poder é precisamente a expressão da maturação do estado de guerra civil existente na itália, onde a classe operária e o campesinato não apenas enfrentaram militarmente ao minoritário setor da burguesia italiano nucleado ao redor do projeto neofascista da “República de Saló” mas também, 25 BROUE, Pierre, “Trotsky y la revolución francesa”, 5 de agosto de 2009, en http://gramscimania.blogspot.com/2009/08/trotsky-y-larevolucion-francesa.html 26 Ibíd., pg. 287 consolidando seu próprio poder, de fato se opunham abertamente aos interesses do conjunto da burguesia italiana que buscava por todos o meios, tanto políticos como militares, conter a emergência da revolução. O Partido Comunista italiano: rumo à unidade nacional Enquanto o duplo poder avançava como resultado da crescente iniciativa político-militar das massas, um enorme dique de contenção começava a delinear-se, produto da orientação política que ia adotando o PCI. Este, desde o final de 1943, longe de decolar uma estratégia tendente a empoderar ao incipiente poder operário-camponês fixou uma orientação cujo objetivo era o fortalecimento do cambaleante poder burguês, promovendo um governo de unidade nacional junto com Badoglio. Passou assim de propor que “[...] seria um erro [...] grave, em sentido oportunista, subestimar a importância do problema da direção política no complexo de forças dentro do qual atua a classe operária, e por uma mal entendida unidade ceder às exigências das forças reacionárias, cujos representantes são Badoglio e a monarquia, nas quais se pode reconhecer uma função auxiliar mas não diretiva na luta 27 conta o fascismo e pela libertação nacional” ; integrar o governo dirigido por essas mesmas forças, pondo o foco na necessidade da unidade nacional entre as classes. Questão que é fundamental para compreender o rumo político adotado por setores das massas, já que como assinalam todos os historiadores do período, entre eles o italiano Aurélio Lepre: Já antes de que a guerra tivesse terminado, o PCI, não tanto pela quantidade de afiliados, mas pela capacidade de influenciar diretamente de modo capilar e profundo sobre vastos estratos da população, havia se convertido em um grande movimento de massas, e havia contribuído para criar a realidade política na qual deveria ter-se movido no pós-guerra.28 Graças à campanha empreendida pelo PCI, em abril de 1944 todos os partidos antifascistas entraram no governo presidido pelo ex marechal fascista, - da mesma forma que o farão depois da libertação de Roma com o governo de Bonomi. Esta política do PCI, conhecida como “a volta de Salerno”, foi promovida por Togliatti, máximo dirigente do PCI, recém chegado a Itália vindo de Moscou –em direta obediência das diretrizes fixadas na “Declaração sobre Itália” emitida no final de 1943 depois da Conferência de Moscou dos “três grandes” – a URSS, Estados Unidos e Grã Bretanha -, onde se recomendava que fossem incluídos no governo “representantes daqueles setores do povo que se 29 opuseram sempre ao fascismo”. Esta política tendia a dotar de legitimidade a um governo debilitado como uma pré-condição necessária para conter o processo revolucionário em curso. Assim o expressou claramente 27 CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 318. TOGLIATTI, Palmiro, La política di Salerno. Aprile-dicembre 1944, Editore Riuniti, Roma, 1969, pp 10-11. 29 CLAUDÍN, Fernando, Op.Cit., pg. 317. 28 40 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista Togliati em seu primeiro discurso público ao chegar à Itália: “hoje não se coloca diante dos trabalhadores italianos o problema de se fazer o que foi feito na Rússia [...] nós devemos garantir a ordem e a disciplina na 30 retaguarda dos exércitos aliados”. A política do PCI se enfrentou diante ao crescente avanço do duplo poder, tendeu a dirigir-lo e subordiná-lo à linha governamental e começou a advogar para que “os comitês de libertação nacional, em vez de serem mantidos à margem (sejam) reconhecidos, evitando claramente um desdobramento de poderes, […] assegurando a participação ativa de todas as forças democráticas e antifascistas no esforço organizado que o país deve realizar”.31 Para terminar de atar as mãos da iniciativa dos comitês de libertação e evitar seus desenvolvimento como embriões dos futuros instrumentos do poder do pós-guerra, o PCI impulsionou a assinatura do Protocolo de Roma entre o CLNI e o Comando Superior Aliado no Mediterrâneo e, posteriormente, com os representantes do governo de Bonomi, em que se estabelecia que o CLNAI exerceria todas as funções governamentais na parte ocupada do país até a libertação enquanto que por sua vez se comprometia a acatar as instruções dos angloamericanos no curso da guerra, a nomear como chefe militar do exército guerrilheiro um “oficial secreto” dos aliados e a seguir suas diretivas até a liberação do 32 território. Foi estritamente em função da política de conter o avanço do duplo poder e o aprofundamento do processo revolucionário em curso que os aliados decidiram, - com o acordo do governo italiano integrado pelo PCI -, em novembro de 1944 quando já havia sido libertada Roma dos alemães, paralisar seu avanço e deixar liberados a sua sorte ao partisanos que combatiam no Norte, permitindo às tropas de Hilter e de Mussolini consagrar-se durante todo o inverno à luta contra a Resistência,33 tal como coloca Claudín: O general Alexander, comandante em chefe das forças aliadas, ordenou aos guerrilheiros cessar toda operação até a primavera, entregar as armas e dedicarse a escutar as emissões de rádio do quartel general aliado. O CNLAI e o Estado Maior do exército guerrilheiro não acataram as ordens de Alexander, e decidiram prosseguir a luta.34 A política dos aliados, tendente a conter o desenvolvimento do movimento partisano, precisamente teve o efeito contrário, já que nestes momentos adquiriu um caráter massivo, contando com cerca de trezentos mil combatentes,35 tomando um impulso notável suas ações independentes. E isto porque diante das múltiplas ofensivas desembocadas pelas tropas alemãs e os fascistas combatentes da “República de Saló”, diante das quais os exércitos aliados não tiveram iniciativa militar alguma, o governo de Bonomi, - que sucedeu ao de Badoglio logo após a liberação de Roma pelos aliados-, nem os partidos antifascistas do centro e sul do país, toda a defesa ficou em mãos do exército guerrilheiro e da combativa classe operária do Norte, “demonstrando que não apenas eram o ´poder legal' mas também o 'poder 36 real' da Itália industrial”. Uma ordem emitida por Kesselring, comandante alemão em chefe da frente de Italia, nos dá uma mostra desta situação: A atividade dos guerrilheiros segue aumentando. Agora atuam em regiões até aqui livres de sua presença. Os atos de sabotagem são cada dia mais freqüentes e nossos transportes tropeçam com mais e mais obstáculos. Esta peste deve desaparecer totalmente. Alem disso, os grupos guerrilheiros têm um serviço excelente de informação e o apoio da população que lhes informa dos movimentos e preparativos de nossas tropas. Como primeira medida, ordeno a realização de uma semana anti-guerrilha [...] [que] demonstrará aos grupos qual é nossa potência e a repressão será implacável.37 Assim, a guerra civil em curso na Italia foi se aprofundando ao calor tanto da agudização da ofensiva alemã, como da tática de paralisação aplicada pelos aliados e o governo italiano, acentuando as ações independentes das massas que consolidaram o duplo poder. As massas conquistam sua liberdade no Norte Traversa coloca que a guerra civil surge precisamente da ruptura do monopólio da violência dentro de um Estado, que habilita a emergência de uma situação na qual não são Estados os que combatem mas grupos no interior de um mesmo Estado. No caso italiano os “grupos”, longe do que pretendeu impor-se, eram forças sociais, de classe, que expressavam interesses antagônicos, e este caráter se manteve em que pese a política de unidade nacional impulsionada pelos partidos antifascistas. De fato, quando em meados de abril de1945, uma vez que a Alemanha ja etava praticamente derrotada militarmente, os aliados iniciaram a ofensiva na chamada linha gótica – linha defensiva dos alemães nos Apeninos para impedir o avanço aliado -, produto da grande envergadura que já haviam adquirido as ações das massas a esta ofensiva se acelera uma insurreição generalizada que, combinando a luta armada com greves insurrecionais, liberou todas as grandes cidades e a maior parte do território do Norte diante da chegada das tropas aliadas. Assim o descrevia Luigi Longo: Mais de 300 mil guerrilheiros iniciaram em princípios de abril de 1945 os combates ativos no norte da Itália e uma depois outra libertação Bolonha, Módena, Parma, Piacenca, Gênova, Turim, Milão, Verona, Pádua, e toda a região de Veneza, antes de chegarem as tropas aliadas, os guerilheiros salvaram as empresas industriais e as comunicações que os alemães se preparavam para destruir, fizeram dezenas de milhares de prisioneiros e se apoderaram de 30 Ibídem., pg. 323. VIOLA, Eduardo, Op. Cit 32 BERNARD, Henri, Op. Cit. Pg. 50. 33 CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 327. 34 Ibidem. 35 BERNARD, Henri, Op. Cit., pg. 50. 31 36 37 Ibídem, pg. 228. BERNARD, Henri, Op. Cit., pg. 50. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 41 considerável armamento, os guerrilheiros estabeleceram em todos os lugares o poder dos Comitês de Libertação nacional e executaram aos principais cabeças do fascismo italiano [...] durante dez dias, até a chegada das tropas e as autoridades aliadas, os comitês de libertação nacional dirigiram no norte da Itália toda a vida política, social e econômica. O serviço de polícia correu a cargo das unidades guerrilheiras não ocupadas nas operações militares de persecução e desarmamento das unidades alemãs.38 Da mesma forma, o historiador italiano Guido Quazza escreve: “antes do 25 de abril, por dez dias, as massas populares exercitaram o poder real no norte da Itália, as tropas aliadas estavam ainda longe, e por algum tempo dispunham do apoio entusiasta da maioria da população, do controle das fábricas, de uma grande 39 revolta camponesa em numerosas zonas”. Como vemos, durante os dias transcorridos entre a libertação das cidades do Norte e a chegada das tropas aliadas, o poder esteve em mãos dos comitês de libertação, que de fato estava em mãos da classe operária e os setores populares, que contavam com um exército próprio nada menos que de trezentos mil combatentes. É por isto que falamos da existência do duplo poder, onde significativos setores da classe operária, do campesinato e os setores populares das cidades e povoados do Norte experimentaram “uma situação de extraordinária independência com respeito à classe oficialmente dominante”, onde embora estes “não [eram] ainda donos do país, [reuniam] de fato em suas mãos uma parte considerável do poder do Estado, enquanto o aparato oficial deste último [seguia] ainda em mãos de seus antigos detentores”. Neste ponto, tendo em conta o desenvolvimento do processo social, nos parece interessante tomar o pensamento de Gramsci em torno da “análise de situações, relações de forças” a noção de momento político-militar da luta de classes como estágio avançado e decisivo da mesma, onde as classes exploradas superaram sua consciência econômico-corporativa e se elevam ao terreno mais aberto da luta social. O paradigma histórico que apresenta Gramsci para este caso é o da opressão militar de um Estado sobre outro, questão que põe na ordem do dia o problema de qual classe hegemonizará a luta pela libertação nacional. Trostsky em muitas de suas análises sobre a guerra de libertação nacional reiterou que esta era o “bolchevismo em potência máxima”, no sentido de que permite ao proletariado conduzir ao resto das classes exploradas e elevar-se como sujeito hegemônico dando realizando as grandes tarefas históricas colocadas. Consideramos que na Itália se criou desde o primeiro momento um laço orgânico entre esta luta e a luta de classes, pelo papel hegemônico do proletariado tanto nas cidades como nas milícias partisanas. E este foi precisamente o caráter que as direções dos Comitês de Libertação Nacional tenderam a diluir, dando à luta um caráter patriótico de unidade nacional. Por isso o próprio Togliatti teve que insistir em várias oportunidades sobre o caráter que a luta armada deveria assumir para o partido. Assim, em sua diretiva sobre a guerra partisana de 6 de julho, assinalou a respeito que: “deve recordar-se sempre que a insurreição que nos queremos não tem o objetivo de impor transformações sociais e políticas no sentido socialista e comunista, mas tem como objetivo a libertação nacional e a destruição do fascismo”.40 Não obstante este enorme freio estratégico à revolução, na medida em que a direção do proletariado não se propunha tomar o poder senão reconstituir a democracia burguesa, a ação espontânea das massas demonstrou até o último momento o caráter de classes de sua luta. Tal como coloca Paolo Secchia em torno à insurreição que precedeu à libertação das cidades do Norte: “os projetos insurrecionais dos quais o PCI dispunha desde tempos atrás viram aplicação em abril de 1945, mas na maioria do casos, o movimento de massas foi muitíssimo mais rápido que estes planos. Na prática, os partisanos 41 apareceram por todos os lugares antes da hora fixada”. Segundo se colocava no artigo “A guerra partisana na Itália”, isto demonstrava a grande autonomia de que gozavam as formações a pesar das tentativas para submeter-las. Ao mesmo tempo também as massas operárias entraram em ação. Em 18 de abril iniciou a greve em Turim; entre 21 e 23 se insurrecionaram Módena, Bolonha, Ferrara, Régio Emilia, La Spezia. Entre 23 e 27 se liberou Gênova e em 25 Milão. Em Piemonte o chamado à insurreição havia sido projetado até o dia 26 de abril, mas foi liberada pelos operários desde antes da chegada dos partisanos. É importante fazer perceber que em Piemonte, centro industrial mais importante da Itália, a espera, ou melhor dito, a passividade do PCI para dar vazão à ação insurrecional não foi casual. Os “titubeios” foram correspondentes às tentativas de conter e desvia um levantamento em linhas de classe que espontaneamente estava se desenvolvendo.42 De fato, tal como coloca Paolo Secchia, a insurreição geral foi uma política imposta ao PCI pelo próprio estado de ânimo e resolução das massas, que obrigou o PCI a por-se à frente a fim de conter a luta nos limites para eles admissíveis. A dimensão em que os dirigentes do PCI advertiram o perigo de que as massas poderiam sair de seu controle pode ser sintetizada nas seguintes palavras do discurso de Togliatti de fevereiro de 1945: No momento da libertação do norte, nós nos encontraremos de frente à situação mais difícil destes últimos anos. Nas massas surgirá a grande expectativa criada [...] de nossa propaganda. Mas se criará também a psicologia que haverá de dizer às massas: é a paz, o esforço da guerra terminou, os sacrifícios também. Então todos os problemas imediatos econômicos e políticos ficaram expostos de maneira mais crítica do que já está hoje”.43 40 SECCHIA, Paolo, Storia della resistencia, Eunadi, Turín, 1973, pg. 509. Ibíd., pg. 564 42 “La guerra partisana en Italia”, Op. Cit. 43 SECCHIA, Paolo, Op. Cit, pg. 601. 41 38 CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pp. 328-329. QUAZZA, Guido, Resistencia e storia d'Italia, Riuniti, Roma, pg. 292. 39 42 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista Talvez a melhor prova do estado de independência alcançado pelas massas esteja dado pela política que iniciaram os aliados ao chegar às zonas liberadas: A administração militar anglo-americana declarou o estado de guerra no norte da Itália. Aboliu todas as disposições democráticas dos comitês de libertação nacional e destituiu do aparato dirigente aos que contavam com a confiança do povo, substituindo-os por funcionários reacionários. Devolveu aos monopolistas e terratenentes a propriedade que havia sido confiscada deles. Os ocupantes desarmaram os destacamentos guerrilheiros e dissolveram o comitê de libertação nacional do norte da Itália.44 Que o nível de auto-organização alcançado pelas massas do norte italiano deveria ser sufocado mediante a ação político-militar dos exércitos aliados é uma mostra de seu enorme desenvolvimento, da mesma forma que o é o fato de que tenham sido os partisanos e operários quem com suas próprias forças libertaram as cidades do norte dias antes de sua chegada. Artigo recebido em 09/03/2011 Aprovado em 23/04/2011 44 Citado en CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 329 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 43 Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui 1 Gilberto Calil 2 O peruano José Carlos Mariátegui (14/6/1894-16/4/1930) foi o primeiro marxista a desenvolver uma reflexão original sobre a realidade latinoamericana. Definindo-se como revolucionário, construiu referências de análise com o objetivo de sustentar e impulsionar a revolução latino-americana. Nosso objetivo é indicar os elementos estruturantes desta reflexão, que permitam compreender historicamente sua contribuição, destacando-se os elementos de originalidade e inovação de sua perspectiva de Revolução, na qual ocupavam espaço privilegiado os camponeses e trabalhadores rurais, e muito especialmente as comunidades indígenas subordinadas ao latifúndio na América Andina, sem, no entanto, desprezar o papel a ser desempenhado pela classe operária urbana no processo revolucionário. A estes elementos articulam-se sua concepção de democracia e sua crítica à estratégia política voltada à construção de um bloco interclassista dirigido pela pequena-burguesia, propugnada por Haya de la Torre. Nos últimos anos é perceptível um renovado interesse pela obra de Mariátegui no Brasil,3 o que se caracteriza pela publicação ou republicação no país de diversos textos seus,4 bem como a produção de novos estudos e interpretações.5Ainda assim, permanece 1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Fórum Universitário do Mercosul: Frontera, Universidad y Crisis Internacional, com o título “Revolução socialista e sujeito revolucionário no pensamento de José Carlos Mariátegui” 2 Professor Adjunto do Curso de História e do Programa de PósGraduação em História, Poder e Práticas Sociais da Unioeste; líder do Grupo de Pesquisa História e Poder. [email protected] 3 Luiz Bernardo Pericás faz um vasto painel do impacto de Mariátegui no Brasil da década de 1920 à atualidade, ressaltando sua reduzida repercussão no país, concluindo que o marxista peruano passou desapercebido da maioria dos escritores e políticos do Brasil e que teve influência reduzida no meio acadêmico e partidário. PERICÁS, Luiz Bernardo. José Carlos Mariátegui e o Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, 2010. 4 Pode-se destacar, dentre elas, MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. Org. Michel Löwy; MARIÁTEGUI, José Carlos. Do sonho às coisas: retratos subversivos. São Paulo: Boitempo, 2005. Org. Luiz Bernardo Pericás. MARIÁTEGUI, José Carlos. Sobre educação. São Paulo: Xamã, 2007. Org. Luiz Bernardo Pericás, MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular / Clacso, 2008. Coleção Pensamento Social LatinoAmericano; MARIÁTEGUI, José Carlos. As origens do fascismo. Org. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo: Alameda, 2010. 5 Destacamos, dentre eles, a investigação de doutoramento de Leila Escorsim: O Amauta Revolucionário: uma introdução ao pensamento de J.C. Mariátegui. Tese de Doutorado em Serviço Social. Rio de Janeiro: UFRJ. 2004. A parte principal da tese está publicada em ESCORSIM, Leila. Mariátegui: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2006. A autora identifica os principais momentos da trajetória de Mariátegui, articulando a reflexão teórica com os desafios e tarefas bastante presente a perspectiva que considera Mariátegui como um autor “heterodoxo”, “romântico” e até “idealista”, visão que acreditamos ser insustentável em face de sua obra teórica e de sua breve trajetória política. Em vista disto, interessa-nos também indicar a centralidade da análise da estrutura social e das determinações materiais na reflexão mariateguiana. Para a análise do pensamento de Mariátegui, utilizaremos como opção metodológica a análise de alguns de seus principais textos, com ênfase em sua reflexão sobre as características da revolução latinoamericana e a constituição do sujeito revolucionário, confrontando, quando for o caso, com as interpretações e juízos presentes em obras publicadas no Brasil. Nesta abordagem, justifica-se relativo destaque aos Sete Ensaios, tendo em vista que nesta obra a dialética marxista se expressa em sua forma mais completa, com a perspectiva totalizante articulando os diversos textos e conferindo à obra em seu conjunto um significado que 6 supera a soma das partes. Complementarmente, serão utilizados também outros escritos de Mariátegui, não discriminando-se entre textos incluídos em coletâneas publicadas no Brasil e outros sem tradução disponível. A trajetória intelectual e política de José Carlos Mariátegui Mariátegui viveu apenas 35 anos. Seus textos mais importantes foram escritos nos últimos sete anos de sua vida, após seu retorno de um período de três anos e quatro meses em que viveu em uma espécie de exílio na Europa. Sua produção juvenil, marcadamente romântica, foi considerada por ele próprio como “a idade da pedra 7 de meu pensamento”. Em sua formação, foi especialmente importante o período em que permaneceu na Itália, entre fevereiro de 1919 e maio de 1922, quando práticas para refletir sobre o amadurecimento e as peculiaridades de sua concepção marxista. 6 A obra é considerada por Pericás como “obra prima” de Mariátegui e apontada como “o mais influente, original e inovador estudo do processo histórico de uma nação realizado por um intelectual na América do Sul”. PERICÁS, José Carlos Mariátegui e o Brasil, op. cit. Em termos semelhantes, Escorsim considera-o como “a primeira expressão crítico-analítica sólida do marxismo na América Latina, isto é, a primeira análise histórico-concreta de uma formação econômico-social latino-americana processada criadoramente com os recursos heurísticos do marxismo”. ESCORSIM, op. cit., p. 213. A autora acrescenta que “só a articulação do conjunto dos 7 textos permite a interpretação da totalidade social complexa que é o Peru de Mariátegui”.Idem, p. 231. 7 Ao retornar da Itália, Mariátegui teria queimado seus escritos de juventude Cf. ALIMONDA, Héctor. José Carlos Mariátegui. São Paulo: Brasiliense 1983, p. 27. 44 - Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui Mariátegui tomou contato com as ocupações de fábrica e assistiu a ascensão do fascismo, aprofundou suas leituras marxistas e refinou seu instrumental para a interpretação da realidade social.8 Sua estadia na Europa foi fundamental para seu amadurecimento intelectual, possibilitando que em seu retorno tenha produzido sua original interpretação sobre a realidade peruana. É fundamental levar em conta as condições encontradas por Mariátegui em seu retorno. Para além do atraso econômico e da dependência externa, a perspectiva de constituição do marxismo peruano enfrentava inúmeros obstáculos, como a fragilidade do movimento operário, a pouca disseminação das ideias marxistas e a quase total ausência de espaços de debate e discussão crítica sobre a realidade peruana. Além disso, “Mariátegui está só quando retorna ao Peru – não dispõe de nenhum suporte, de nenhuma tradição, de nenhum companheiro com o qual pudesse dividir o peso da sua tarefa americana; estava tudo por fazer”.9 Portanto, tinha que se dedicar simultaneamente a inúmeras tarefas: “A ele coube aquele tudo por se fazer: o estabelecimento de uma casa editora, a direção de Amauta, a criação de Labor, a animação do movimento operário-sindical, a fundação do partido e da central sindical – e os estudos, 10 as investigações, as matérias para revistas e jornais...” Se por um lado, tal engajamento favorecia a articulação entre a reflexão teórica e a atividade prática – fundamental para Mariátegui -, por outro determinava condições materiais e práticas bastante adversas à sistematização de suas reflexões. O marxismo de Mariátegui Mariátegui foi o primeiro marxista a desenvolver uma reflexão original sobre a realidade da América Latina e é considerado por diversos autores como o mais original e criativo marxista latino-americano e o fundador de um marxismo autenticamente latino11 americano, ainda que em termos estritamente cronológicos não seja o primeiro latino-americano a reivindicar o marxismo. Em sua recepção no Brasil, o reconhecimento da originalidade de seu pensamento tem levado diversos autores a considerar seu marxismo como “heterodoxo” e até idealista, atribuindo particular importância à valorização da ação do sujeito revolucionário. Além disso, a reflexão de Mariátegui sobre temáticas que contrariam o esquematismo stalinista 12 (erroneamente tratadas como “heterodoxas” ), como a cultura, a literatura, a questão indígena e a identidade nacional, muitas vezes tem levado seus analistas a considerá-lo como “antideterminista” e pouco propenso a levar em consideração a estrutura econômica. Tal apreciação nos parece incorreta e injustificável. A qualificação de Mariátegui como romântico e heterodoxo é particularmente presente na obra de Michel Löwy. De acordo com ele: No se puede dar cuenta del pensamiento de Mariátegui sobre la religión – así como sobre la filosofia, la ética, la política, la cultura o la cuestión indígena – sin tomar en cuenta el espírito romântico/revolucionário que inspira su obra, e imprime a su concepción marxista del mundo su calidad única y su fuerza cultural visionaria. Acerca de la religión, como acerca de otros tantos temas, Mariátegui es un heterodoxo. En el corazón de su heterodoxia marxista, de la singularidad de su discurso filosófico y político, se encuentra un momento irreductiblemente romântico.13 Em contraposição a esta apreciação, concordamos com Escorsim quando refuta a posição de Löwy, lembrando que “embora Mariátegui tenha dado os seus primeiros passos intelectuais na trilha do anticapitalismo romântico, sua adesão ao marxismo compeliu-o a superá-lo”,14 e que “a crítica matiateguiana ao capitalismo não é conduzida em nome de qualquer passado (real ou imaginário); sua visão, ao contrário, é 15 nitidamente histórico-concreta”. Tanto a análise de Mariátegui sobre a estrutura econômico-social do Peru, registrada nos Sete Ensaios, como as indicações concretas de sua perspectiva socialista corroboram claramente esta apreciação, desautorizando, a nosso ver, a qualificação de Mariátegui como “romântico”, como bem exemplifica seu alerta ao tratar a questão da questão indígena: Nosso primeiro esforço tende a estabelecer seu caráter de problema fundamentalmente econômico. (...) Com certeza, a mais absurda das refutações que se podem nos dirigir é a de lirismo ou literaturismo. Colocando 8 Parte dos textos produzidos por Mariátegui na Itália estão disponíveis em português em MARIÁTEGUI, As origens do fascismo, op. cit. Para uma avaliação da importância dos textos de análise do fascismo para o amadurecimento do marxismo de Mariátegui, ver CALIL, Gilberto. A experiência italiana e o desenvolvimento do marxismo de José Carlos Mariátegui (1920-1922), disponível em: http:// www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/anais_ivsimp/gt8/15_gilbertocalil.pdf 9 ESCORSIM, op. cit., p. 120. 10 Idem, p. 121. 11 Esta qualificação está presente, dentre outros, em ALIMONDA, op. cit., LÖWY, Michael. Notas sobre a recepção do marxismo na América Latina. In: BARSOTTI, Paulo & PERICÁS, Luiz Bernardo. América Latina: história, idéias e revolução. São Paulo: Xamã, 1998, p. 11-16; PERICÁS, José Carlos Mariátegui e o Brasil, op. cit.; SANCHEZ VÁZQUES, Adolfo. Mariátegui: grandeza e originalidade de um marxista latinoamericano. In: BARSOTTI, Paulo & PERICÁS, Luiz Bernardo. América Latina: história, idéias e revolução. São Paulo: Xamã, 1998, p. 45-54; ARICÓ, José. Mariátegui e o surgimento do marxismo latino-americano. In: HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 447-459 e FORNET-BETANCOURT, Raúl. O marxismo na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 1995. 12 Não nos parece correto tratar os procedimentos teóricos stalinistas como “ortodoxos”, sendo mais adequado denominá-los como mecanicistas, o que coloca em evidência sua ruptura com o método marxiano. 13 LÖWY, Michel. Mística revolucionaria: José Carlos Mariátegui y la revolución. Utopia y práxis latinoamericana. Maracaibo, n. 28, eneromarço 2005, p. 49-59. P. 50. Grifos do autor. 14 ESCORSIM, op. cit., p. 50. 15 Idem, 51. A crítica de Escorsin à interpretação de Löwy é a mais direta que encontramos no debate em torno de Mariátegui no Brasil. Pericás ressalta a importância da contribuição Löwy na disseminação do pensamento de Mariátegui no Brasil, sustentando que ele “conseguiu ver Mariátegui de maneira totalizante, mais ampla” e que “sua abordagem teve uma sofisticação maior”, registrando, ao mesmo tempo que “mesmo que se possa discordar de algumas de suas interpretações”, sem precisar ao que se refere. PERICÁS, José Carlos Mariátegui e o Brasil, op. cit. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 45 em primeiro plano o problema econômico-social, assumimos a atitude menos lírica e menos literária possível. Não nos contentamos com reivindicar o direito do índio à educação, à cultura, ao progresso, ao amor e ao céu. Começamos por reivindicar, categoricamente, seu direito à terra. Esta reivindicação perfeitamente materialista deveria bastar para que não fôssemos confundidos com os herdeiros ou repetidores do verbo evangélico do grande frei espanhol [Las Casas], a quem, de outra parte, tanto materialismo não nos impede de admirar e estimar fervorosamente. É recorrente também a proposição de que Mariátegui “é defensor de um marxismo antideterminista”.17 Apreciação correta se entendida enquanto expressão da veemente oposição de Mariátegui às simplificações deterministas e economicistas impostas pelo stalinismo em detrimento à dialética marxista. Ainda assim, é necessário alertar que tal oposição jamais levou Mariátegui a minimizar a determinação da estrutura econômica, nem implicou em qualquer forma de 18 idealismo, voluntarismo ou romantismo, como defende, por exemplo, Fornet-Betancourt: Trata-se de um marxismo decidido “ideologicamente” pela “idéia” da revolução socialista. (...) O voluntarismo, em Mariátegui, é um termo que, antes de tudo, quer ressaltar a função religiosa metafísica, que, num mundo que se precipita na falta de orientação o marxismo deve assumir e cumprir. (...) [Mariátegui] afirma no marxismo a novidade imprevisível, que o ímpeto criativo daquele fator subjetivo cujo nome é liberdade humana, pode provocar em qualquer situação histórica.19 Em contraposição, é importante lembrar que Mariátegui inicia seus Sete ensaios propondo nada menos do que um “Esquema da evolução econômica”, realizando para isto uma análise da formação histórica peruana, o que expressa seu esforço de compreensão da economia do país como base para a compreensão da realidade social. O ponto de partida de Mariátegui é a evolução econômica, sob perspectiva histórica, avaliando as estruturas pré-coloniais, o processo de colonização e sua base econômica, a constituição de uma economia oligárquica no período pós-independência, inicialmente constituída em torno do salitre e do guano e após o colapso da economia constituída em torno destes produtos, a configuração de uma economia agroexportadora baseada no latifúndio e na exploração do trabalho semi-servil. Como destaca Leila Escorsim “são essas bases econômicas, concretas e historicamente situadas, particulares, da formação econômico-social do seu país que propiciam a compreensão das expressões socioculturais, que permitem interpretar unitária e totalizadoramente o que à análise superficial, ou metodologicamente mal-direcionada, aparece como 20 casual, folclórico ou episódico”. O objetivo de compreender a realidade sob uma perspectiva totalizante levava Mariátegui a reivindicar enfaticamente a dialética marxista: O marxismo, do qual todos falam mas muito poucos conhecem e, sobretudo, compreendem, é um método fundamentalmente dialético. Ou seja, é um método que se apóia inteiramente na realidade, nos fatos. Não é, como alguns erroneamente supõem, um corpo de princípios de conseqüência rígidas, iguais para todos os climas históricos e todas as latitudes sociais. Marx extraiu seu método das próprias entranhas da história. O marxismo, em cada país, em cada povo, opera e atua sobre o ambiente, sobre o meio, sem descuidar de nenhuma de suas modalidades.21 Em artigo intitulado “O determinismo marxista”, Mariátegui repudiava a crítica idealista ao marxismo articulando de forma clara a ação do sujeito revolucionário às determinações materiais: “Marx só podia conceber e propor uma política realista e, por isto, esmerou-se na demonstração de que o próprio processo da economia capitalista, quanto mais plena e vigorosamente se cumpre, conduz ao socialismo; mas sempre considerou como condição prévia de uma nova ordem a capacitação espiritual e intelectual do proletariado para realizá-la, através da luta de classes”.22 Embora sempre reivindicasse enfaticamente a ação do sujeito nos processos históricos, em diversas oportunidades, Mariátegui demarcou sua divergência com as interpretações idealistas e voluntaristas, como podemos exemplificar na passagem abaixo do texto “A imaginação e o progresso”, publicado em 1924: A imaginação, geralmente, é menos livre e arbitrária do que se supõe. (...) Como todas as coisas humanas, a imaginação também tem seus limites. Em todos os homens, tanto nos mais geniais quanto nos mais estúpidos, encontra-se condicionada por circunstâncias de tempo e de espaço. O espírito humano reage contra a realidade contingente. No entanto, precisamente ao reagir contra a realidade, é quando talvez mais dela dependa. Esforça-se para modificar o que vê e o que sente, não o que ignora. Logo, só são válidas aquelas utopias que se poderiam chamar de realistas. Aquelas utopias que nascem das próprias entranhas da realidade.23 A mesma preocupação com as determinações concretas está presente em sua análise da questão indígena: Todas as teses sobre o problema indígena, que ignoram ou aludem a este como problema econômico social, são outros tantos exercícios teóricos – e às 16 MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, op. cit., p. 67-8. Grifo meu. 17 FORNET-BETANCOURT, op. cit., p. 154. 18 Excetuando-se, certamente, o período de juventude, caracterizado pelo próprio Mariátegui como “romântico”. Tratamos aqui, portanto, estritamente de sua produção teórica do período de maturidade, compreendido entre 1923 e 1930. 19 FORNET-BETANCOURT, op. cit., p. 142, 153 e 154. 20 ESCORSIM, op. cit., p. 232. MARIÁTEGUI, José Carlos. Mensagem ao Congresso Operário. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano, op. cit., p. 103-104 22 MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit., p. 211. 23 Idem, p. 48. 21 46 - Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui vezes apenas verbais – condenados a um descrédito absoluto. (...). A crítica socialista o descobre e esclarece, porque busca suas causas na economia do país e não no seu mecanismo administrativo, jurídico ou eclesiástico, nem em sua dualidade ou pluralidade de raças, nem em suas condições culturais ou morais. A questão indígena nasce de nossa economia. Tem suas raízes no regime de propriedade da terra”.24 Comentando esta passagem, Tiago Coelho Fernandes conclui que “é a análise do regime de propriedade agrária e das relações sociais daí decorrentes que possibilita compreender a situação dos povos indígenas e elaborar um programa de sua 25 emancipação”. Ainda referindo-se à questão indígena, Mariátegui é bastante preciso em sua definição dos limites da “vontade revolucionária”, enfatizando a necessidade de que esteja articulada a um programa econômico concreto: A reivindicação indígena carece de concreção histórica enquanto se mantiver em um plano filosófico ou cultural. Para adquiri-la – isto é, para adquirir realidade, corporeidade – precisa se converter em reivindicação econômica e política. O socialismo nos ensinou a colocar o problema indígena em novos termos. Deixamos de considerá-lo abstratamente como problema étnico ou moral para reconhecê-lo concretamente como problema social, econômico e político. E assim o sentimos, pela primeira vez, esclarecido e demarcado.26 Mais do que apenas propor uma mera “contextualização” econômica de sua problemática, Mariátegui buscava dialeticamente construir uma interpretação capaz de apreender a totalidade social, em oposição às “diversas teses que consideram a questão como um ou outro dos seguintes critérios unilaterais e exclusivos: administrativo, jurídico, étnico, moral, 27 educacional, eclesiástico”. De forma ainda mais explícita, Mariátegui considerava que “o regime de propriedade da terra determina o regime político e administrativo de toda nação. O problema agrário – que até agora a república não pôde resolver – domina todos os problemas de nossa nação. Sobre uma economia semifeudal não podem prosperar nem funcionar instituições democráticas e liberais”.28 Sua análise do estágio de desenvolvimento do capitalismo e do lugar nele ocupado pela América Latina fundamenta sua análise da Revolução latino-americana, tendo como referências centrais o Imperialismo e a Divisão Internacional do Trabalho: “A época da livre concorrência, na economia capitalista, terminou em todos os campos e em todos os aspectos. Estamos na época dos monopólios, isto é, dos impérios. Os países 24 MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, op. cit., p. 53. 25 FERNANDES, Tiago Coelho. Mariátegui e as raízes da rebelião indígena. História & Luta de Classes, Marechal Cândido Rondon, n. 4, julho 2007, p. 22. 26 Idem, p. 54. 27 Idem, p. 56. 28 Idem, p. 70. latino-americanos chegam atrasados à concorrência capitalista. Os primeiros lugares já foram definitivamente atribuídos. O destino desses países, na ordem capitalista, é o de simples colônias”.29 É com base nessa referência geral que o autor fundamenta sua proposição de que “o pensamento revolucionário, e mesmo o reformista, já não pode ser liberal, mas sim socialista. O socialismo aparece em nossa história não por força do acaso, de imitação ou de moda, como supõem espíritos superficiais, mas sim como uma 30 fatalidade histórica”. Neste ponto, coloca-se a problemática da revolução latino-americana, sua necessidade e urgência, e seu caráter. A Revolução latino-americana Entre 1923 e 1930, a produção teórica de Mariátegui – articulada a sua intervenção concreta na luta de classes no Peru – concentra-se em torno problemática da Revolução Latino-Americana. Seu argumento central era que não existiam condições materiais para a concretização de uma “revolução burguesa” na América Latina, tendo em vista a ausência de autonomia da burguesia do subcontinente e sua vinculação estrutural ao imperialismo e ao latifúndio. Assim, para ele era necessário ter claro que a luta anti-imperialista não poderia contar com o apoio da burguesia local, como expressou em seu conhecido “Ponto de vista antiimperialista”: “As burguesias nacionais, que vêem na cooperação com o imperialismo a melhor fonte de ganhos, sentem-se suficientemente donas do poder político para não se preocuparem seriamente com a 31 soberania nacional”. Seria, portanto, anacrônico e despropositado esperar por uma “revolução burguesa” na América Latina. A consequência lógica é que a revolução latino-americana só se concretizaria sob a direção dos trabalhadores, tendo, desde o princípio, um caráter socialista, ainda que assumisse concomitantemente tarefas historicamente são atribuídas à burguesia: Mentes pouco críticas e profundas podem supor que o fim do feudalismo é um empreendimento típica e especificamente liberal e burguês e que pretender transformá-lo em função socialista é mudar de forma romântica as leis históricas. Esse critério simplista de teóricos de pouca profundidade contrapõe-se ao socialismo sem outro argumento que o de que o capitalismo não esgotou sua missão no Peru. A surpresa de seus partidários será extraordinária quando ficarem sabendo que a função do socialismo no governo da nação, conforme a hora e o compasso histórico ao qual tiver que se ajustar, será em grande parte a de realizar o capitalismo – isto é, as possibilidades ainda historicamente vitais do capitalismo – no sentido que convenha aos interesses do progresso social.32 29 MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit., p. 119. Esta passagem encontra-se no texto Aniversário e Balanço, publicado em setembro de 1928, marcando os dois anos da revista Amauta. 30 MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, op. cit., p. 55. 31 MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit, p. 130. 32 MARIÁTEGUI, José Carlos. Prólogo a Tempestade nos Andes. In: LÖWY, Michael (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Perseu Abramo, 1999, p. 106. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 47 Neste sentido, Mariátegui registrou no editorial do segundo aniversário da revista Amauta que “a revolução latino-americana será uma etapa, uma fase da revolução mundial, nada mais, nada menos. Será, pura e simplesmente, a revolução socialista. A esta palavra acrescentem, segundo os casos, todos os adjetivos que quiserem: 'antiimperialista', 'agrarista', 'nacionalistarevolucionária'. O socialismo os supõe, os antecede, 33 abrange a todos”. Mariátegui não dava margem a dúvidas quanto ao caráter imediatamente socialista da revolução proposta: “Na luta entre dois sistemas, entre duas ideias, não passa pela nossa cabeça sentirmo-nos espectadores nem inventar um terceiro termo. A originalidade acima de tudo é uma preocupação literária e anárquica. Em nossa bandeira inscrevemos apenas uma grande e simples palavra: socialismo”.34 Ainda no mesmo sentido, em uma conferência proferida em 1923, avaliava a divisão do movimento operário e socialista europeu, assumindo claramente a posição dos revolucionários: Las fuerzas proletarias europeas se hallan divididas en dos grandes bandos: reformistas y revolucionarios. (...) En uno y otro bando hay diversos matices, pero los bandos son neta y inconfundiblemente sólo dos. El bando de los que quieren realizar el socialismo colaborando políticamente con la burguesía; y el bando de los que quieren realizar el socialismo conquistando integralmente para el proletariado el poder político. (...) Una parte del proletariado cree que el momento no es revolucionario; que la burguesía no ha agotado aún su función histórica; que, por el contrario, la burguesía es todavía bastante fuerte para conservar el poder político, que no ha llegado, en suma, la hora de la revolución social. La otra parte del proletariado cree que el actual momento histórico es revolucionario; que la burguesía es incapaz de reconstruir la riqueza social destruida por la guerra e incapaz, por tanto, de solucionar los problemas de la paz; que la guerra ha originado una crisis cuya solución no puede ser sino una solución proletaria, una solución socialista, y que con la Revolución Rusa ha comenzado la revolución social. (...) Yo participo de la opinión de los que creen que la humanidad vive un período revolucionario. Y estoy convencido del próximo ocaso das teses social-democráticas, de todas as teses reformistas, de todas las tesis evolucionistas.35 Para Mariátegui, era imprescindível que a classe trabalhadora tivesse clareza das limitações da democracia burguesa, 3 6 inclusive observando o progressivo descomprometimento da própria burguesia com as instituições por ela criadas, característico do estágio imperialista: “La democracia burguesa ha cesado de corresponder a la organización de las fuerzas económicas formidablemente transformadas y 37 acrescentadas. Por esto, la democracia está en crisis”. 33 MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit, p. 119. Idem, p. 118. 35 MARIÁTEGUI, José Carlos. Historia de la crisis mundial: conferencias pronunciadas en 1923. Lima: Amauta, 1964, p. 19-20 e 22. 36 É importante registrar que usualmente Mariátegui utilizava o termo “democracia” como sinônimo de “democracia burguesa”, designando a democracia da classe trabalhadora como “ditadura do proletariado” ou “regime soviético”. Escrevendo em 1923, Mariátegui avaliava o impacto da Revolução Russa e da ascensão do fascismo, concluindo que “la intensificación de la lucha de clases, el acrecentamiento de la guerra social, ha acentuado esta 38 crisis de la democracia”. Para a classe trabalhadora, reivindicava o regime soviético, nos termos em que se estruturou nos primeiros anos da experiência soviética: No existe el dualismo democrático en el regímen sovietal. Los soviets son al mismo tiempo órganos ejecutivos y legislativos. El consejo de comisarios del pueblo no es sino un comité directivo, un estado mayor de la asamblea de los soviets. El parlamento suele no corresponder, por envejecimiento, a las corrientes del instante. El soviet está en constante renovación, en constante cambio. Todas las oscilaciones de la opinión se reflejan en el soviet. El soviet es el órgano típico del régimen proletario, así como el parlamento es el órgano típico del régimen democrático. Es un régimen de representación profesional y de representación de clase. La dictadura del proletariado, por ende, no es una dictadura de partido sino una dictadura de clase, una dictadura de la clase trabajadora.39 Assim, ao mesmo tempo em que recusava às burguesias latino-americanas qualquer papel revolucionário às burguesias latinoamericanas, articulava esta recusa à crítica ao caráter supostamente universal das instituições burguesas, tratadas como correspondentes aos interesses de classe que as sustentam material e historicamente. A inviabilidade de uma “revolução burguesa” recolocava a Mariátegui a reflexão em torno da constituição do sujeito revolucionário, impulsionando um dos mais férteis eixos de sua produção teórica. A constituição do sujeito revolucionário A reflexão em torno da Revolução Socialista em um país dependente, atrasado, pouco industrializado e com uma estrutura econômica centrada no latifúndio agro-exportador conduziu Mariátegui a refletir acerca da necessidade de incorporação dos camponeses no processo revolucionário, tendo em vista que a classe operária peruana era demasiadamente reduzida. O dado evidente de que a grande maioria dos trabalhadores rurais peruanos era constituído de indígenas indicava a Mariátegui a necessidade de estudar sua cultura e sua história, buscando nas tradições incaicas elementos que permitissem uma aproximação e articulação concreta entre as reivindicações indígenas – em especial a reconquista e apropriação comunitária da terra expropriada pelo latifúndio – e a perspectiva socialista revolucionária. Assim a questão indígena era pensada nos marcos do projeto revolucionário socialista, o qual, por sua vez, deveria ser capaz de abarcar os anseios das comunidades indígenas. 34 37 MARIÁTEGUI, José Carlos. Historia de la crisis mundial, op. cit., p. 135. 38 Idem, p. 136. 39 Idem, p. 149. 48 - Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui Desta forma, rejeitando a plataforma política reformista, a proposição mariateguiana para a construção da revolução socialista conduzia à constituição de um bloco classista, no qual tivessem lugar tanto a vanguarda operária como os trabalhadores rurais, em sua maioria de procedência indígena. A incorporação dos indígenas como parte do sujeito social revolucionário não era pensada de forma passiva. Ao contrário, apenas sua participação ativa possibilitaria tanto a resolução de suas questões específicas – fundamentalmente a reconquista da terra -, como o avanço da revolução socialista: “A solução do problema do índio tem de ser uma solução social. Seus realizadores devem ser os próprios índios. Essa concepção faz ver a reunião dos congressos indígenas como um fato histórico. Os congressos indígenas ainda não representam um programa, mas já representam um movimento”.40 A proposição de articulação entre operários e campesinos indígenas articulava-se diretamente à reivindicação de autonomia de classe, em oposição à aliança com a burguesia, como explicita um de seus últimos escritos publicados em vida, um editorial de Amauta denominado “Sobre uma questão superada”: “A vanguarda do proletariado e os trabalhadores conscientes, fieis a sua ação no terreno da luta de classes, repudiam toda tendência que signifique fusão com forças ou organismos políticos de outras classes. Condenamos como oportunista toda a política que proponha a renúncia momentânea do proletariado a sua independência de programa e ação, independência que deve ser mantida integralmente em todos os momentos”.41 Além de recusar colaboração com a burguesia, Mariátegui manifestava suas reservas em relação às ambigüidades e contradições da “classe média”: “La clase media, dominada por el recuerdo de su pasado bienestar, tiende ao restablecimiento del antiguo régimen. Le falta una mentalidad de clase, una consciencia de clase. Un gobierno de la clase media no puede desenvolver sino una política capitalista. La clase media necesita incorporarse en la clase capitalista o en la clase asalariada. No cabe para ella una posición media ni independiente.42 Já em 1923, analisava o comportamento político da classe média, sob impacto de sua participação na ascensão do fascismo: Como la batalla actual se libra entre el capitalismo y el proletariado, toda intervención de un tercer elemento tiene que operarse en beneficio de la clase conservadora. El capitalismo y el proletariado son dos grandes y únicos campos de gravitación que atraen las fuerzas dispersas. Quien reacciona contra el proletariado sirve al capitalismo. Esto le acontece a la clase media, en cuyas filas ha reclutado su proselitismo el movimiento fascista.43 40 MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit, p. 88. A citação encontra-se no texto “O problema elementar do Peru”, publicado em 1924. 41 Idem, p. 190. 42 MARIÁTEGUI, José Carlos. Historia de la crisis mundial, p. 102. 43 Idem, p. 136-7. Ressalve-se, como o próprio Mariátegui adverte em diversos momentos, que não se deve confundir a base social do fascismo, fundamentalmente constituída por setores médios, com o A conclusão política desta proposição é clara, e vincula-se à conhecida polêmica travada com Haya de la Torre: a tarefa política do proletariado não seria jamais a de apoiar uma “revolução pequeno burguesa”. Além disso, mesmo a incorporação de parcelas da classe média no bloco classista revolucionário teria que se dar necessariamente sob direção e controle da classe trabalhadora (urbana e rural), e jamais ao custo da amenização do projeto socialista ou em troca de oferecer aos setores médios a direção do processo. O legado de Mariátegui Mariátegui é reiteradamente considerado como primeiro grande teórico do marxismo na América Latina, lembrado pelo seu pensamento original e criativo e pela sua militância comunista. Ainda assim, o conteúdo de sua reflexão permaneceu relegado ao esquecimento nas duas décadas que se seguiram a sua morte. Para a III Internacional Comunista, integralmente subordinada à direção stalinista na década de 1930, Mariátegui era uma lembrança incômoda. A ênfase no protagonismo indígena e a reivindicação do papel dos trabalhadores rurais como parte do sujeito histórico da revolução socialista contrariavam frontalmente as teses da Internacional Comunista e foram violentamente combatida pelos Partidos Comunistas latino-americanos. Como indica Pericás, “a partir de 1929, começou um forte processo de intervenção da IC no continente, explicitado na famosa 'Carta aberta aos partidos comunistas da América Latina 44 sobre os perigos da direita”. Com a posterior “guinada à direita” e defesa do etapismo, acentuou-se o incômodo provocado por Mariátegui, uma vez que explicitava a ausência de qualquer perspectiva revolucionária das 45 burguesias latino-americanas. seu caráter de classe, que corresponde aos interesses do grande capital financeiro. 44 PERICÁS, José Carlos Mariátegui e o Brasil, op. cit. 45 É bastante controverso o grau de tensionamento na relação entre Mariátegui e a Internacional Comunista. Por um lado, autores como Hector Alimonda sustentam que o próprio Mariátegui enfrentou diretamente o processo de stalinização da Internacional Comunista, o que se expressa nos textos elaborados por Mariátegui e apresentados pela delegação peruana na Conferência Sindical realizada em Montevidéu e no Congresso sul-Americano do Comintern, realizado em Buenos Aires, ambos em 1929. Cf. ALIMONDA, op. cit., p. 6775). De outra parte, Leila Escorsim sustenta que “as tensões localizáveis nessa relação estiveram longe de configurar uma rota de colisão entre Mariátegui e a Internacional Comunista durante a vida de Mariátegui”. ESCORSIM, op. cit., p. 226. Para além desta polêmica historiográfica, interessa-nos destacar que após a morte de Mariátegui , o conteúdo de seu pensamento foi omitido, deturpado ou reinterpretado, de acordo com as oscilações táticas e estratégicas da Internacional Comunista, seja no Peru e em outros países da América Latina, seja no Brasil. Nesse sentido, concordamos com Rodrigo Montoya Rojas, quando corrobora a acusação à Internacional Comunista e a seus dirigentes peruanos de enterrar o pensamento de Mariátegui: “Acusaram Mariátegui de populista e deram às palavras 'mariateguismo' e 'amautismo' o significado de desvio pequenoburguês por prestar atenção aos índios, à sua liberdade, e por ver o Peru para muito além dos antolhos do partido comunista soviético. A partir dos anos 1960, estes mesmos adversários de Mariátegui se transformaram em 'mariateguistas' para usar seu nome como guarda chuva e aval de suas teses, sem levar em consideração nenhuma de suas teses centrais sobre o Peru e o socialismo”. MONTOYA ROJAS. Prólogo à edição brasileira. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, op. cit, p. 15. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 49 Em dezembro de 1933, o Partido Comunista do Peru lançou o Manifesto Bajo la Bandera de Lênin, no qual ao mesmo tempo elogiava “o abnegado e tenaz lutador José Carlos, por sua honradez e sinceridade”, e atacava o “mariateguismo”, que seria “uma confusão de ideias procedentes das mais diversas fontes”, definindo duramente sua posição: “Nossa posição diante do mariateguismo é e tem que ser a de um combate implacável e irreconciliável, já que ele obstaculiza a bolchevização organizativa e ideológica de nossas fileiras. Impede que o proletariado se arme com o marxismo-leninismo; obstaculiza o crescimento do PCP e dos seus quadros”.46 Por sua vez, os reformistas peruanos, integrantes da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) se opunham à tese mariateguiana relativa ao caráter socialista da revolução peruana e 47 latino-americana. Ainda assim, nos anos seguintes a sua morte, Mariátegui foi reinterpretado e reivindicado pela Internacional Comunista e até mesmo pelos reformistas da APRA. Em ambos os casos, no entanto, a reivindicação da independência organizativa da classe trabalhadora e o caráter imediatamente socialista da revolução latino-americana eram omitidos, secundarizados ou reinterpretados. A rigor, apenas com a revolução cubana e a retomada de seu legado teórico por Ernesto Guevara, quase três décadas depois, o núcleo fundamental do pensamento mariateguiano retornou ao centro do debate e reflexão do marxismo latinoamericano – em especial sua reflexão quanto ao caráter socialista da revolução e a reivindicação da necessidade de incorporação dos trabalhadores rurais como parte integrante do sujeito revolucionário. E desde então, a realidade latino-americana inúmeras vezes trouxe a tona processos e movimentos que evidenciam a atualidade da reflexão do revolucionário peruano, com destaque para a cada vez mais clara interdependência entre as malchamadas “burguesias nacionais” e o capital financeiro internacional,48 e para o destacado reaparecimento das lutas indígenas em diversos países latino-americanos. Compreendemos, portanto, que a obra de Mariátegui apresenta-se contribuição atual e relevante para a reflexão marxista em torno da revolução latinoamericana, em especial no que se refere a sua proposição acerca da impossibilidade de que a burguesia dos países latino-americanos desempenhasse (e desempenhe) qualquer papel revolucionário, e a conseqüente impossibilidade da concretização de uma revolução burguesa nos moldes clássicos (e, portanto, o anacronismo de sua proposição como plataforma política). Sua abordagem tem evidentes e incontornáveis 46 Apud ALIMONDA, op. cit., p. 76-77. De acordo com Corrêa e Belloto, após a ruptura de Mariátegui com a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), Haya de la Torre “acusou Mariátegui de excesso de europeísmo e de ter caído no tropicalismo, isto é, de ter uma visão europeia da América”. BELLOTTO, Manuel & CORREA, Anna Maria M (org). Mariátegui. Gênese de um pensamento Latino-americano. São Paulo: Ática, 1982, p. 20. 48 A respeito da articulação orgânica entre os capitais nacionalmente sediados e o capital transnacional, uma abordagem relevante e original encontra-se em FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: ESPJV, 2010. 47 desdobramentos políticos. Além disso, o protagonismo dos movimentos indígenas – visível hoje em diversos países latinoamericanos - era antevisto e considerado por Mariátegui como imprescindível para uma ofensiva socialista na América Latina, o que salienta e reforça a atualidade de seu pensamento. Desta forma é justo concluir enfatizando que a reflexão mariateguiana permanece extremamente atual e constitui-se como instrumental de grande relevância para a investigação dos processos sociais recentes da América Latina. Artigo recebido em 25/03/2011 Aprovado em 19/06/2011 50 - Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano Bruno Miranda1 I ntrodução Concomitante às intensas mobilizações pelos recursos naturais e à ascensão de um ex-sindicalista camponês e indígena à presidência da Bolívia, alguns estudiosos têm publicado no Brasil importante material acerca da história deste país vizinho. É nesse mesmo sentido que este trabalho pretende aportar. O artigo a seguir salienta os momentos nos quais se vislumbrou uma articulação operário-camponesa na região altiplânica durante o século XX, através da recuperação das primeiras organizações de trabalhadores bolivianos, paralelas à industrialização do país, até a consolidação das centrais e federações sindicais nas décadas de 30 e 40, período em que o proletariado mineiro hegemonizou o movimento operário e o campesinato começou a mobilizar-se contundentemente em termos regionais e nacionais. Recuperamos aqui não só momentos da Revolução Nacional de 1952, mas também da experiência assembleísta popular do começo da década de 70. Historicamente combativo, o operariado mineiro tratou de concretizar co-governos em determinados momentos e a autogestão operária em outros. De outro lado, subordinado no interior da recém-formada Central Operária Boliviana e posteriormente cooptado pelos governos ditatoriais, o campesinato independente somente se consolidaria contra o mandato de Hugo Bánzer, ao fim do qual a fração katarista-sindical se afiliaria à COB e selaria, ao menos formalmente, uma aliança operário-camponesa na luta pelo retorno democrático. Sugerimos que a “cegueira sindical” de ambos os lados prevalecentes até então é decorrente, entre outros elementos, de uma leitura equivocada do papel que tanto classe quanto etnia cumprem no contexto histórico boliviano. Primeiras experiências organizativas e sexênio 1946-52 Antes e depois da industrialização das minas, a condição do mineiro boliviano se manteve distinta da condição do trabalhador urbano. Isto porque o mineiro que habitava os distritos ou vilas, distantes muitas vezes de qualquer centro urbano, era um indivíduo (recém) egresso do campo e não tinha acabado de romper os laços com o mundo rural. Rodríguez2 nos revela que a indústria mineira enfrentou dificuldades durante todo o século XIX por 1 Membro do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC), Graduado em Ciências Sociais (UFSC) e Mestrando em Estudos Latino-americanos (UNAM/México). questões relacionadas com o próprio comportamento do trabalhador. Tinha periodicidade própria, pois a mina era uma atividade complementar e ainda não possuía o ascetismo relacionado ao trabalho, tão necessário para a produção industrial capitalista. 3 O sistema de kajcheo, que fomentava o roubo de minerais pelos próprios mineiros, foi praticado por décadas. Tratava-se, durante esse período, de 4 “modalidades pré-industriais de resistência”. Na metade do século, um novo grupo de capitalistas modernizadores e menos tolerantes implantou multas e passou a perseguir os “ladrões” com o intuito de ordenar o tempo de trabalho e o mercado laboral em moldes propriamente capitalistas. A maquinaria erodiu a divisão de trabalho tradicional das minas5 durante a colônia e ocasionou maior controle sobre o processo produtivo. O início do século XX marca a hegemonia da extração do estanho, que alimentará grande parte das lutas mineiras até a década de 50. A luta contra a precariedade das condições de trabalho dos mineiros era acompanhada por demandas de outros setores através de organizações de ajuda mútua, ligas e federações de artesãos, ferroviários e gráficos, que giravam ao redor dos salários, salubridade e construção de pulperías.6 Durante o mês de maio de 1912, grupos de artesãos descontentes com o liberalismo que permeava algumas organizações fundaram a Federação Operária Internacional (FOI), logo convertida na Federação Operária do Trabalho (FOT) em 1918, organização que por primeira vez divulgou os postulados marxistas entre seus membros e fomentou o distanciamento de 7 trabalhadores ácratas mais próximos do anarquismo. O anarco-sindicalismo boliviano, por sua vez, foi promovido basicamente pela Federação Operária Local (FOL), de 1927, que abriu as primeiras portas para a organização sindical na Bolívia através de um 2 RODRÍGUEZ OSTRIA, Gustavo. El socavón y el sindicato. Ensayos históricos sobre los trabajadores mineros SIGLOS XIX-XX. La Paz: ILDIS, 1991. p. 21. 3 Sistema pelo qual os trabalhadores arrendavam as terras junto a seus proprietários e faziam uso de suas próprias ferramentas de trabalho dentro da mina. O fruto do trabalho era então dividido com o proprietário sem a intermediação do salário. 4 RODRÍGUEZ OSTRIA, op. cit., p. 51. 5 A divisão do trabalho nas minas consistia nos transportadores manuais de minério (apiris/cumiris), selecionadores de minérios (mortiris/palliris) e refinadores (repasiris). 6 Pequenos armazéns para a venda de alimentos e bebidas alcoólicas. 7 RODRÍGUEZ GARCÍA, Huáscar. La choledad antiestatal: el anarcosindicalismo en el movimiento obrero boliviano: 1912-1965. Buenos Aires: Libros de Anarres, 2010. p. 29-31. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (50-55) - 51 movimento operário-artesanal organizado em grêmios. Embora a doutrina libertária na Bolívia tenha tido eco entre o período que vai do final da década de 1910 até a Guerra do Chaco (1932-1935), seu auge se deu durante o sexênio 1926-1932, concomitante à luta pela jornada de oito horas, depois da qual seus militantes haviam morrido no Chaco, incorporado o sindicalismo para-estatal ou então perseguidos pelo próprio Estado.8 Em todo o caso, a FOT e a FOL foram as principais centrais operárias da Bolívia até 1936. Neste ano é conformada a Confederação Sindical de Trabalhadores da Bolívia (CSTB), de caráter fabril, vinculada ao stalinismo do Partido da Esquerda Revolucionária (PIR) e subordinada à lógica do aparato estatal, já que os governos desse período (1936-1946), conhecido com o nome de “socialismo militar”, perseguiam sistematicamente o objetivo de tutelar o flamejante movimento operário da década. Aproveitando a mobilização grevista iniciada na década, muitos grupos de esquerda que haviam participado da Guerra do Chaco voltaram à Bolívia e em pouco tempo reorganizaram os sindicatos em regiões combativas de La Paz e Oruro, assim como em Potosí, desatando um novo clima laboral de protestos e greves. No universo das minas, a Liga Operária do Trabalho de Amparo e Proteção Mútua de Catavi e as Federações Mineiras de Llallagua e La Salvadora durante a década de 20 foram as experiências mais claras do que seriam os futuros sindicatos conformados exclusivamente por mineiros. Em 1942, fruto de uma mobilização do Sindicato de Ofícios Vários de Catavi pelo aumento de 100% dos salários – devido à alta do preço internacional do estanho -, o governo de Peñaranda executou dezenas de mineiros e mulheres, numa luta que teve o apoio das minas de Llallagua e Siglo XX. O evento, conhecido como o Massacre de Catavi, transformou-se num hiato histórico, evidenciando aos mineiros o real 9 funcionamento do poder oligárquico boliviano. Dois anos mais tarde foi criada a Federação Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTMB) durante o Congresso de Huanuni. A fundação da FSTMB foi fruto do acúmulo histórico da organização e combatividade das Federações e Ligas Operárias anarcosindicalistas da década de 20 e dos sindicatos mineiros da década de 30, além de consolidar a organização sindical por centro de trabalho. A Federação deu finalmente uma dimensão nacional ao classismo mineiro boliviano. No fim da década de 40, a Federação de Mineiros já se encontrava distante da tutela governamental do MNR,10 em parte pelo trabalho militante do Partido Operário Revolucionário (POR) pela independência de classe. Foi assim que em 1946, diante das ameaças de 8 LEHM, Zulema; RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Los artesanos libertarios y la ética del trabajo. La Paz: Taller de Historia Oral Andina (THOA), 1988. p. 59-61. 9 Posteriormente, a FSTMB seria mantida sob influência do POR e de Juan Lechín, enquanto a CSTB seria controlada pelo PIR e em menor grau pelo Partido Socialista Operário da Bolívia (PSOB), de Tristán Marof. 10 O Movimento Nacionalista Revolucionário foi um partido criado pela pequena burguesia urbana, primos pobres da oligarquia em crise e por ex-combatentes da Guerra do Chaco. Próximo, portanto, aos oficiais nacionalistas. fechamento das minas, a FSTMB torna pública a Tese de 11 Pulacayo, documento que rompe com a idéia da existência do feudalismo na Bolívia através de uma leitura que incorporava este país ao desenvolvimento desigual e combinado da economia mundial, sob tutela imperialista. O documento indica, entre outros elementos, que a revolução proletária deve ter como método a ação direta, expressa na ocupação das minas e no controle 12 operário coletivo. Num contexto em que a III Internacional priorizava as alianças com frações das burguesias nacionais, além da união nacional contra o fascismo, o PIR manteve-se distante da agitação mineira da década, deixando espaço tanto para o POR quanto para o MNR.13 Quanto à mobilização camponesa, que atuava paralelamente ao movimento operário - mas sem deixar de ser influenciado por ele -, sabemos que os primeiros sindicatos camponeses formaram-se nos vales de Cochabamba nos anos 30 através de novos líderes aymara e quéchua em Ucureña, Cliza e Quillacollo. 14 Devido à continuidade do pongueaje, os protestos e sublevações no campo prosseguiram durante os anos 40 em diversas regiões até 1952. Se até a década de 40, a classe operária boliviana se baseava em organizações de matriz artesanal, daí em diante o sindicalismo daria lugar ao eixo mineiro verticalista. É importante sintonizar a ascensão sindical operária e camponesa durante o sexênio 1946-52 com a decadência da oligarquia do estanho, conhecida como a rosca, que começa no período de pós-guerra do Chaco e se acentua até a revolução democrático-burguesa de 1952. Jornadas revolucionárias na cidade e no campo Chegamos a 1952. A partir do mês de abril desse ano, a Bolívia não só veria derrocada uma antiga classe oligárquica substituída pelo MNR, mas também a criação de uma nova matriz histórica, entendida como o “conjunto de relações sociais básicas, funções e percepções que se conformaram como resultantes da insurreição operária e popular vitoriosa e que determinaram as orientações da sociedade das décadas 15 seguintes”. Os três dias de jornadas mineiro-populares nas ruas de La Paz e Oruro tiveram como protagonistas artesãos, desocupados, pequenos comerciantes urbanos e estudantes, ao redor do movimento constituído por 11 Redigida pelo dirigente porista Guillermo Lora e criticada por stalinistas por incluir a construção de milícias armadas para o controle operário das minas, o documento está baseado no Programa de Transição da IV Internacional escrito por Trotsky em 1938, segundo o qual as tarefas nacionalistas e democráticas seriam somente um passo para a consolidação da revolução socialista. 12 LORA, Guillermo. La clase obrera después de 1952. In: ZAVALETA MERCADO, René (org.). Bolivia, hoy. México, DF: Siglo XXI, 1987. 2ª ed. p. 171, 174. 13 ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Boliviana. São Paulo: Ed. UNESP, 2007. p. 49. 14 Parte da estrutura da grande fazenda boliviana baseada no trabalho indígena forçado e gratuito ao fazendeiro latifundiário. 15 LAZARTE, Jorge. Movimiento obrero y procesos políticos en Bolivia (Historia de la C.O.B. 1952-1987). La Paz: Offset Boliviana Edobol, 1989. p. 261. 52 - Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano trabalhadores mineiros e fabris. Passados os enfrentamentos de rua, as principais reivindicações convergiam na nacionalização das minas e ferrovias, reforma agrária e formação de milícias populares armadas em substituição ao Exército. São os próprios sindicatos operários e camponeses e suas milícias armadas quem sustentam materialmente o MNR no co-governo constituído posteriormente. Embora tenha tido a capacidade de impor suas decisões sobre o Poder Executivo, a recém-formada Central Operária Boliviana (COB)16 teve sua fase de maior expressão de poder até outubro de 1952, quando se deu a nacionalização das minas e então se iniciou o período de acomodação e burocratização da central. O governo movimentista, com o importante apoio do lechinismo,17 foi ocupando os postos-chave da COB e de suas organizações afiliadas regionais ao longo dos anos seguintes. Mesmo assim, distante do tradicionalismo sindical, a COB agrupou em seu seio desde assalariados a camponeses e funcionários públicos, desde universitários a pequenos comerciantes e inquilinos, desde artesãos a contrabandistas e “ocupou desde seu nascimento em 1952 um lugar mais amplo que o de uma central sindical, agindo como centro político de sindicatos, organizações operárias e populares”.18 Simultaneamente, no campo, as primeiras ocupações e assaltos a fazendas ocorreram no Vale de Cochabamba e se espalharam por todo o país. Crescia o pânico dos proprietários de terra diante das ocupações e dos esforços de construção de sindicatos, já que o Exército continuava dissolvido e as milícias camponesas ainda detinham suas próprias armas. Além do sindicalismo cochabambino, também mostrou combatividade o de Achacachi, nas margens do Lago Titicaca, dotado de uma imbricação complexa entre o sindicato tradicional verticalizado e a forte presença da organização comunitária andina. Mescla da tradição autogestionária rural nos Andes e do sindicalismo ocidental, esses sindicatos conformam ainda hoje órgãos de poder local que regulam todos os aspectos da vida 19 cotidiana. A participação massiva do campesinato indígena na etapa revolucionária inicial deu lugar ao clientelismo político gerado entre o MNR e os dirigentes sindicais através das terras devolvidas como parte da reforma agrária e dos alimentos subvencionados. Rivera (1984) e Ticona (2000) classificam o período de 1952-58 como de subordinação ativa, conduzida pelo sindicalismo cochabambino e outro de 1959-68, caracterizado pela naturalização da nova estrutura sindical para-estatal. Os vínculos dependentes entre o MNR e os sindicatos camponeses funcionariam por doze anos, até o golpe de Estado do general René Barrientos em 1964.20 16 Com a fundação da COB em 1952, ocorre a dissolução das correntes anarquistas aglutinadas na FOL e stalinistas ao redor da CSTB. 17 Juan Lechín foi uma figura política que transitava não sem certa ambigüidade entre organizações operárias, alas do MNR e do próprio governo movimentista. Chegou a ser vice-presidente em 1960. 18 ANDRADE, op. cit., p. 144. 19 HURTADO, Javier. El Katarismo. La Paz: HISBOL, 1986. p. 23 O primeiro encontro entre operários e camponeses indígenas ocorreu em 1953 motivado pela Reforma Agrária, mas sob a tutela do MNR. No I Congresso da COB, realizado somente em 1954, a participação camponesa foi ínfima. Afirmava-se que o campesinato não podia cumprir um papel político autônomo e contundente pelo atraso no campo boliviano e por sua condição de proprietário de pequenas porções de terra. Portanto, necessariamente deveria se subordinar à direção proletária. Dois anos depois, quando os mineiros rompem com o MNR, os camponeses, cooptados pelo Estado, aceitam a “proteção” do Pacto Militar-Camponês. Emergência operária e camponesa: a Assembleia Popular e o katarismo Com o golpe de 1964, quando inicia o ciclo de governos ditatoriais na Bolívia (1964-1982), o governo de Barrientos trata de selar a ruptura com o operariado e ao mesmo tempo subordinar o sindicalismo camponês. A assinatura do Pacto Militar-Camponês é seguida pelo desarme das milícias camponesas e transforma os quartéis regionais e locais em coordenadores dos próprios sindicatos rurais. O Pacto é utilizado pelos militares para conseguir uma base de apoio político em troca de um programa de ajuda infra-estrutural às regiões rurais, denominado “Ação Cívica”. Tratou-se, antes de mais nada, de uma ampla base social que tiveram os militares para servir de arma contra o potencial mineiro. No entanto, o Pacto foi deteriorando-se com ações dos próprios governos ditatoriais, permitindo novos horizontes de autonomia sindical camponesa. Primeiramente, com a tentativa do governo de Barrientos de implementar o Projeto de Imposto Único, fomentado pela USAID em 1968, pelo qual os camponeses indígenas passariam a pagar pela propriedade da terra, incorporando-se ao sistema tributário como contribuintes. Em resposta, conformou-se o Bloco Camponês Independente (BIC) no departamento de La Paz, vinculado à COB e a partidos marxistas, além da União de Camponeses Pobres (UCAPO), de orientação maoísta. Posteriormente, o Pacto se debilitou em 1974 sob o governo de Hugo Bánzer, diante do massacre de camponeses em Cochabamba, conhecido como o Massacre do Vale, motivado pela subida dos preços dos bens manufaturados. A partir desse período, a COB passaria a enfrentar um duro período de desarticulação. Seus dirigentes seriam perseguidos e exilados, assim como os distritos mineiros passariam a ser declarados zonas militares. A reação mineira veio na forma de organizações clandestinas e na decisão de armar-se para enfrentar a ditadura. Durante os anos de 1970-71, quando os governos militares de Alfredo Ovando e Juan José Torres 20 O Estado MNRista passou a exercer controle sobre o campesinato indígena através da Comissão de Reforma Agrária e do Ministério de Assuntos Camponeses (MACA), processo culminado com a criação da Confederação Nacional de Trabalhadores Camponeses da Bolivia (CNTCB). História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (50-55) - 53 permitiram um espaço maior para as organizações de esquerda, o XIV Congresso da FSTMB e o IV Congresso da COB foram marcados pelo abandono da perspectiva do co-governo, em prol de uma reaproximação à Tese de Pulacayo e de maior autonomia de classe, numa aberta luta antiimperialista pelo socialismo. O general Rogelio Miranda tenta então um novo golpe sobre o governo de Ovando, mas a greve geral decretada pela COB debilita a tentativa. Estabelece-se o Comando Político da COB e do Povo para debater o apoio ao possível governo do general Juan José Torres. Diante das incertezas postas sobre a mesa, o POR, até então influente dentro da COB, redige as bases de constituição do que ficaria conhecido como Assembleia Popular (AP), convocada pela central sindical como máximo organismo de poder da classe operária e das massas bolivianas. Contrária ao parlamentarismo burguês e buscando independência do governo de Torres para evitar os erros táticos de 52, suas principais medidas em 1970 relacionaram-se ao controle operário com direito a veto e à conformação de ministérios e milícias operárias. Todo o período da AP foi marcado por mobilizações e ações diretas de sindicalistas e estudantes nas principais cidades do país, incluindo a ocupação e apropriação do Palácio Legislativo, onde foi estabelecida a sede da maior experiência operário-popular desde as 21 jornadas de abril de 1952. Andrade nos indica que a eleição dos delegados da AP foi marcada pela hegemonia mineira e fabril, restringindo espaços ao movimento 22 camponês. Embora relegado a segundo plano, parte do campesinato aymara vinculou-se ao katarismo, um movimento fomentado pelos setores médios do campo. Esse setor então inicia um trabalho de divulgação e reinterpretação da história colonial em centros culturais de La Paz, reivindicando a figura do líder anticolonial Tupak Katari do século XVIII. A partir daí, respaldados pelo trabalho de base comunitário, ocupariam a sede da Federação Departamental dos Trabalhadores Camponeses de La Paz (FDTCLP), elegeriam como novo Secretário Executivo Jenaro Flores, agregariam o nome Tupak Katari à entidade (FDTCLP-TK) e passariam a ter abrangência sindical nacional em contraposição à oficialista CNTCB, então hegemonizada pelo barrientismo. O documento conhecido como Manifesto de Tiwanacu de 1973 é uma prova da busca por autonomia organizativa. Divulgado clandestinamente, serviu para a formação de quadros sindicais kataristas durante a ditadura de Hugo Bánzer. 21 O debate sobre os alcances e limites da AP merece uma análise à parte. No interior do trotskismo, o POR é acusado de claudicar diante da direção contraditória que compunha tanto o Comando Político quanto a AP, representada pelo PC boliviano (que pensava em compor a esquerda do gabinete de Torres) e pelo Partido Revolucionário de Esquerda Nacionalista (PRIN), de Juan Lechín, eleito presidente da Assembleia (que aludia à transformação da AP numa Constituinte). A análise crítica de Aldo Duran Gil também pode ser muito esclarecedora: Gil, Aldo D. O caráter das crises políticas durante o governo Torres e a Assembléia Popular na Bolívia (1970-1971). Apresentado no V Colóquio Internacional Marx Engels, Campinas, 2007. 22 ANDRADE, op. cit., p. 154-157. Durante o Pacto, empurradas por uma propaganda anticomunista realizada pela Igreja e pelo próprio MNR, milícias camponesas invadiam as minas enfrentando-se aos mineiros e servindo de carne de canhão aos projetos dos governos de turno. No auge de seu anticomunismo, a fração indianista23 no interior do katarismo chega mesmo a declarar a iminência de uma guerra contra o proletariado. Denunciavam o “racismo operário” e o “internacionalismo branco da COB”. Por outro lado, o sindicalismo mineiro alertava que a postura indianista não se importava com a luta classista e acabava se tornando aliada da direita burguesa. Mesmo com a emergência do katarismo, a aliança operário-camponesa ganharia novas tonalidades somente anos mais tarde. Prova deste desencontro é que no início dos anos 70, enquanto os sindicalistas kataristas lutavam no interior da oficialista CNTCB contra o Pacto e 24 por melhores preços agrícolas, os mineiros aglutinados na AP concentravam suas forças na gestão operária da Corporação Mineira da Bolívia (COMIBOL). Processo de “abertura democrática” Mesmo diante da pujança do movimento operário e camponês aymara e quéchua vivida no país, o golpe de Bánzer em 1971 representou um duro golpe contra o sindicalismo em geral e o mineiro em particular. Houve resistência armada por parte do Comando Político da COB, mas esta não estava suficientemente organizada para enfrentar o Exército nas ruas. Como parte da crescente mobilização e do início de uma nova época de alianças, a greve de fome de 1977, que uniu operários e camponeses, conseguiu do governo ditatorial a anistia irrestrita e o livre funcionamento dos sindicatos. Hurtado destaca que esta “greve de fome constituiu para os kataristas o início de um importante processo de aprendizagem político junto ao proletariado 25 mineiro e outros setores explorados”. Por sua vez, os kataristas mobilizados publicaram o II Manifesto de Tiwanacu, documento no qual se assentam as bases para a abertura democrática do período 1978-80 e para o protagonismo katarista que 26 precedeu o fim da ditadura de Bánzer. No mesmo documento, assim como no V Congresso da Confederação Camponesa Tupak Katari de 1978, a COB é reconhecida pela primeira vez como a forma mais representativa da aliança dos trabalhadores do campo, da cidade e das minas.27 É assim que o conteúdo étnicocultural começa a ser permeado pelo classista e vice-versa. 23 O indianismo, juntamente com o sindicalismo, são as duas principais vertentes do katarismo. Internamente ao indianismo existem expressões partidárias sem alcances eleitorais. Há também penetração do indianismo em associações e movimentos sociais por toda a Bolívia, especialmente no Altiplano. Para mais informação, consultar: MIRANDA, Bruno. Comunitarismo, autonomia indígena e movimento autônomo: as lutas sociais de El Alto e Chiapas. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Sociologia Política da UFSC, 2007. 24 No VI Congresso da CNTCB de 1971 realizado em Potosí, os kataristas conseguem a expulsão dos barrientistas da CNTCB. 25 HURTADO, op. cit. p. 79. 26 Idem, p. 71. 27 Idem, p. 83. 54 - Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano No ano seguinte ocorre o Congresso de Unidade Camponesa, convocado pela própria COB, do qual nasceu a Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), organismo que viria a ser a cabeça de um forte movimento social no início do presente século. Na Tese Política do VI Congresso da CNTCB-TK, celebrado em março de 1978, os kataristas afirmavam: deixar de ser pobres sim, mas sem perder nossa identidade cultural, sem envergonhar-nos do que somos. Não acreditamos na luta de raças. Se o racismo foi o primeiro passo de nossa ideologia, devemos agora superá-lo porque somos explorados, não porque somos aymaras, quéchuas, cambas, etc., mas fundamentalmente porque há poucos ricos que nos exploram a aymaras e não aymaras, a quéchuas e não quéchuas, a cambas e não cambas. Temos que mudar esta sociedade de exploração para que nossos valores aymaras, quéchuas, cambas, etc., possam exercitar-se e desenvolver-se livremente.28 Depois da unidade camponesa, o período posterior (1980-86) foi caracterizado pela crescente unidade operário-camponesa em protestos contra a ditadura militar e contra ajustes econômicos estruturais. Em outras palavras, quando a dimensão étnica começou a prevalecer em suas demandas e prática política, os camponeses aproximaram-se da COB, ainda que questionando o varguardismo operário. Logo após sua integração à COB, os membros da CSUTCB enfrentaram dificuldades para que fosse reconhecido o fato de que a base social camponesa necessitava maior representação. Enquanto o setor camponês-indígena dentro da COB sustentava que era necessária uma mudança na estrutura da central sindical, mais adequada ao contexto atual, o setor mineiro e fabril afirmava que a diminuição da classe operária fruto da reestruturação produtiva seria conjuntural. Quando em 1979 foi decretada outra greve geral contra o golpe do coronel Natusch Busch, que não reconheceu as eleições anteriores, o campesinato aderiu massivamente, utilizando-se de seus próprios métodos: bloqueio de caminhos, cerco de povoados e ocupação de 29 territórios não urbanos, selando a aliança operáriocamponesa e de uma vez por todas o cancelamento do Pacto Militar-Camponês. No entanto, optaram pela saída democrática que, nesse contexto, concentrava-se na 30 União Democrático-Popular. Posteriormente, a COB convocaria o Comitê Antifascista como contraparte de um golpe que provocou 200 mortos, no enfrentamento popular mais sangrento desde 1952. O processo terminaria com a negação da COB diante da proposta de um governo triangular com as Forças Armadas. 28 Idem, p. 98. ZAVALETA MERCADO, René. Forma clase y forma multitud en el proletariado minero en Bolivia. In: ZAVALETA MERCADO, René (org.). Bolivia, hoy. México, DF: Siglo XXI, 1987. 2ª ed. p. 237. 30 Enfraquecido diante da massiva propaganda do oficialismo no campo, o katarismo viu-se obrigado a aliar-se com a UDP de Siles Suazo. A UDP, frente democrático-burguesa, foi composta pelo PC boliviano, partidos social-democratas e populistas. A participação da CSUTCB na paralisação contra o golpe de Busch constituiu a primeira mobilização de dimensão nacional exitosamente convocada pela confederação camponesa. Os reflexos do poder de convocatória da CSUTCB continuariam em 1980 e 81 em resistência aos golpes seguintes e pelo fim da ditadura, até que no último trimestre de 1982, o Parlamento boliviano em La Paz seria reaberto para que assumisse Hernán Siles Suazo. Considerações finais Embora tenha assediado diretamente o poder estatal, o movimento operário-popular boliviano não chegou a consolidar uma ruptura com o capital nas jornadas de abril de 1952 nem durante a AP em 1971. No entanto, o fato de “que os operários não souberam explorar seu poder não subtrai em absoluto importância ao fato irreversível que atuassem como classe de poder”.31 Nesses momentos, embora a consigna de um “governo operário-camponês” fosse brandida pelos quatro cantos, ora o sectarismo operário menosprezava o camponês aymara ou quéchua, ora o próprio camponês era aliado dos governos ditatoriais e apoiava o anticomunismo. Quando a aliança por fim ia se consolidando como horizonte emancipatório, a luta já não era revolucionária, mas democrática, além do que o katarismo não possuía um projeto político autônomo e de classe nesse momento. Entre outros motivos, a barreira existente entre o trabalhador mineiro/fabril e o rural é fruto de uma leitura segundo a qual o camponês-indígena tem sido visto simplesmente como pequeno-burguês, justamente por possuir seu pedaço de terra comunitária. Esta leitura tem sido fomentada em grande parte pela absorção das teses da III e IV Internacional propagadas por partidos operários bolivianos. Juan de la Cruz Villca, dirigente camponês e Segundo Secretário da COB em 1992, adverte: na prática boliviana, se compararmos um camponês com um operário assalariado, qual está melhor economicamente? Um operário pode ter seu rádio, sua TV, serve-se um chá, veste-se bem, etc. e um camponês do Norte de Potosí está em farrapos e apenas se autoabastece.32 Às considerações de Villca poderíamos agregar outro elemento que nos ajuda a desmitificar o indígena e a entender a precariedade contemporânea no campo boliviano: o êxodo rural. Os fluxos migratórios campocidade na Bolívia têm sido crescentes depois da segunda metade do século passado, em parte devido ao esgotamento da terra e aos grandes períodos de seca, mas também devido ao sistema de parcelamento das terras que foi adotado na Reforma Agrária de 1953, que com o tempo permitiu o avanço do minifúndio rural no Altiplano. 29 31 ZAVALETA MERCADO, René. 50 años de historia. La Paz; Cochabamba: Los Amigos del Libro, 1998. p. 79. 32 TICONA ALEJO, Esteban. Organización y liderazgo aymara. La experiencia indígena en la política boliviana 1979-1996. La Paz: AGRUCO; Universidad de la Cordillera, 2000. p. 180. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (50-55) - 55 Consequentemente, a condição do camponês aymara que permanece no campo já não só obedece à 33 geografia de ayllus de épocas anteriores, mas está parcialmente submetida às condições do mercado. Em se tratando da região cochabambina, zona quéchua, a mercantilização da terra foi anterior e ainda mais contundente. Em todo caso, para além de uma leitura marxista mecânica que vincula automaticamente cada classe social ao seu lugar no processo produtivo, é igualmente necessário levar em conta a prática histórica de determinadas coletividades e seu modo de ser.34 No caso em questão, trata-se de agrupações altiplânicas em resistência histórica contra o colonialismo, externo e interno. Por outro lado, é urgente reconhecer o retrocesso político representado pelo indianismo radical surgido no final dos anos 60, que nega a lógica totalizante do sistema em prol de uma “luta de raças” e serve de insumo aos governos liberais-burgueses. O capital tolera lutas de caráter exclusivamente étnico porque é capaz de absorvêlas e finalmente utilizá-las a seu favor. Por isso, as lutas de conteúdo étnico e anticolonial devem vincular-se com as lutas antiimperialistas e socialistas porque sem a destruição das bases sistêmicas materiais, a visão de mundo andina se reproduz subsumida e carcomida pela lógica do capital. A aliança operário-camponesa é um pilar da estratégia revolucionária em contextos históricos dependentes como o boliviano, no qual o socialismo obrigatoriamente precisa levar em conta a sociabilidade andina, queiramos ou não. É necessário então converter o elemento étnico em elemento revolucionário. Artigo recebido em 18/03/2011 Aprovado em 07/05/2011 33 O ayllu pode ser entendido como a organização-matriz dos povos andinos, de famílias ampliadas assentadas em terras comunitárias que em alguns casos podiam não ser contíguas. 34 ZAVALETA MERCADO, René. 50 años de historia, op. cit. p. 11. 56 - Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana” Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana” 1 Flávio da Silva Mendes2 A o descrever e analisar as características da crise política e econômica que antecedeu a ascensão ao poder de Luís Bonaparte na França, em 1851,3 Marx inaugurava uma longa tradição de reflexões da esquerda sobre processos contra-revolucionários. Entre as principais novidades desta obra destaca-se o cuidadoso estudo sobre a dinâmica da luta de classes, método que levou seu autor a um resultado bastante diverso daqueles encontrados em textos que enfatizavam as virtudes e defeitos de Luís Bonaparte e subvalorizavam ou mesmo ignoravam os conflitos e as relações de força – consideradas tanto entre as classes quanto entre suas frações internas – que levaram ao golpe de Estado.4 À primeira vista, esta referência ao 18 Brumário pode causar estranhamento. Afinal, qual é a relação entre aquela obra, escrita há mais de 150 anos, e a atual conjuntura política venezuelana, tomada como objeto de estudo neste artigo? Creio que tal referência se torna irresistível a partir do momento em que nos aproximamos do debate sobre o governo de Hugo Chávez na Venezuela. Um observador que realiza este movimento rapidamente se impressiona com a centralidade que o atual presidente tem nas diversas esferas de discussão sobre a política no país: seu nome é presença certa nas conversas cotidianas, nos jornais e nos trabalhos acadêmicos. Mais além: na imprensa internacional as aparições da Venezuela quase sempre ocorrem como se aquele fosse o país de Chávez, ou seja, como se a história nacional se submetesse às vontades de seu governante. Esta primeira impressão já justifica, em parte, a citação da obra de Marx: alguém que pretende analisar a política venezuelana neste início de século deve se perguntar, assim como fez o autor do 18 Brumário, sob quais circunstâncias os homens fazem sua história, ou seja, até que ponto as lideranças políticas são capazes de guiar os rumos de uma sociedade à revelia de sua história passada e das lutas do presente. O problema, portanto, é semelhante, mas não idêntico: as diferenças se revelam quando nos debruçamos sobre a história venezuelana, 1 Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa de mestrado realizada junto ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da UNICAMP, entre 2008 e 2010, com financiamento do CNPq. O resultado completo encontra-se em MENDES, Flávio. Hugo Chávez em seu labirinto: o Movimento Bolivariano e a política na Venezuela. São Paulo: Alameda Editorial (no prelo). 2 Doutorando em Sociologia (IFCH/UNICAMP). 3 MARX, Karl. “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”. In: O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 4 Segundo Marx, as análises do golpe de Estado realizadas por Victor Hugo e Proudhon, em especial, apresentavam tais características. Ver MARX, Karl, op. cit., pp. 13-14. suas tradições e símbolos nacionais. O mesmo ocorre quando olhamos mais de perto os grandes atores do conflito político mais recente e notamos que a polarização entre chavistas e anti-chavistas é, embora verdadeira, apenas uma parte daquela realidade. Neste artigo pretendo realizar brevemente estes dois movimentos: em primeiro lugar, resgatar algumas características da recente história venezuelana que nos ajudam a compreender a atual conjuntura do país. Em seguida, tentarei descrever algumas das frações que atuam no interior dos polos que compõem governo e oposição. História: petróleo, Estado e sociedade Entre diversos fatores que determinam a especificidade da história venezuelana, um se sobressai: o petróleo. Ao longo do século XX, a consolidação do Estado nacional, as mudanças nas relações sociais e a diversificação das atividades econômicas sempre estiveram em alguma medida relacionadas ao destino do chamado “ouro negro”. Portanto, tomá-lo como referência deve nos ajudar a compreender algumas características da Venezuela atual. Na década de 1920, quando os primeiros poços de petróleo foram explorados no país, uma série de mudanças econômicas, políticas e sociais tiveram início. Não é exagero afirmar, por exemplo, que o processo de ampliação e centralização do poder em torno do Estado nacional só foi possível, àquela altura, graças aos lucros obtidos pela nascente indústria petroleira. A Venezuela era então governada pelo general Juan Vicente Gómez, mas nem sua ditadura foi capaz de conter a agitação política ligada ao surgimento do Partido Comunista de Venezuela (PCV) e do social-democrata Acción Democratica, além de centrais sindicais e entidades patronais. Este fenômeno estava colado à crescente urbanização e à diversificação das atividades econômicas do país, concentradas, sobretudo, nos setores de serviços e financeiro, também vinculados à renda petroleira. A partir da morte de Gómez, em 1935, o processo 5 de “modernização” da sociedade venezuelana sempre teve o petróleo – e mais precisamente o seu valor de mercado – como uma referência fundamental. Cada governo, democrático ou não, teve que estar atento às 5 Como em outros países latino-americanos, o paradigma da modernização fez parte do processo de transformações pelas quais passou a nação venezuelana desde o final do século XIX. Essa centralidade das noções de “atrasado” e “moderno” foi muito bem explorada em CORONIL, Fernando. The Magical State. Nature, money and modernity in Venezuela. Chicago: University of Chicago Press, 1997. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (56-61) - 57 variações da renda petroleira para decidir se expandia ou reduzia programas sociais, se aumentava ou cortava verbas para suas instituições e, por fim, para definir sua estratégia cambial. Logo, se o nível da tensão política na Venezuela pudesse ser medido num gráfico, acredito que sua linha coincidiria em vários pontos com a trajetória do preço da commodity no mercado internacional. Entre esses altos e baixos, dois períodos são determinantes. Nos anos 1970, com a crise mundial de escassez do petróleo e a grande elevação de seu preço, a sociedade venezuelana parecia ter chegado ao apogeu.6 Os chamados petrodólares invadiram o país e com eles vieram a ampliação do poder de consumo de parcelas da população, por um lado, e o crescimento do peso do Estado na sociedade, por outro. O consumo estava ancorado na importação de inúmeras mercadorias, das básicas às de luxo, o que contribuiu para enfraquecer a já débil indústria nacional. O Estado, por sua vez, estava nas mãos de políticos identificados com a social-democracia – sobretudo vinculados ao partido Acción Democractica – os quais executavam seu programa de bem-estar social sem a necessidade de impor à população uma carga tributária elevada. Para o antropólogo Fernando Coronil, o Estado venezuelano assumia diante da sociedade características mágicas.7 Esta ilusão se desfez nos anos 1980, quando a crise da dívida e a queda das divisas petroleiras tornaram insustentável o arranjo político-econômico elaborado pela social-democracia. Naquela década, os cortes de gastos e a redução do poder de consumo da sociedade seguiram uma linha ascendente, enquanto a desigualdade social, pouco alterada ao longo dos anos anteriores, revelava-se profunda e ameaçadora. O auge da crise chegou no final de fevereiro de 1989, quando o anúncio de um conjunto de medidas recessivas por parte do então presidente, Carlos Andrés Pérez, causou protestos populares duramente reprimidos pelo Estado. Além de deixar centenas de vítimas, este episódio, conhecido como Caracazo, revelou o avançado grau de deterioração da confiança popular nas capacidades mágicas do Estado. Sem esse breve relato histórico, a rápida ascensão de Chávez na política venezuelana ao longo dos anos 1990 poderia parecer um acaso. No entanto, no caminho percorrido para passar de líder de um golpe militar fracassado, em 1992, a presidente eleito, em 1998, Chávez logrou articular um poderoso discurso crítico àquela que batizou como “IV República” e, assim, entrar em sintonia com os anseios populares. Seu partido, o 8 MVR, reivindicava a refundação do Estado através da 6 Em meio à alta da renda petroleira ocorreu, em 1976, a nacionalização da exploração do petróleo. Na década seguinte, quando os lucros dessa indústria decaíram, o Estado venezuelano recorreu a um artigo da lei de nacionalização que previa a possibilidade de se associar a indústrias estrangeiras como uma forma de captar capital e tentar reanimar a produção. Esse processo, conhecido como Apertura Petrolera, está descrito em RIBEIRO, Vicente, Petróleo e processo bolivariano: uma análise da disputa pelo controle do petróleo na Venezuela entre 2001 e 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UFRGS, 2009. 7 CORONIL, Fernando, op. cit. 8 A sigla é uma abreviação de Movimiento V República. O partido surgiu em 1997 como o braço eleitoral do Movimiento Bolivariano realização de uma constituinte que colocasse a soberania 9 nas mãos do povo. No plano econômico, a organização criticava os sucessivos pacotes neoliberais e defendia que a “causa social” deveria ser prioridade. Para financiar esse projeto, a Agenda Alternativa Bolivariana10 propunha grandes mudanças nas regras de exploração do petróleo, então reguladas pela PDVSA, uma empresa estatal na prática controlada por representantes das grandes multinacionais do ramo. Ao tocar na questão do controle sobre o petróleo, o MVR de certa forma restabelecia a normalidade do debate político venezuelano. Esquecida durante o bemestar econômico, quando pouca gente se interessava em buscar as origens do milagre, essa pauta voltou com a crise e ganhou espaço até se tornar o centro da luta política no país. Ali, o embate entre ideias liberais e estatizantes passava necessariamente pelo petróleo. Não por acaso, o principal adversário de Chávez nas eleições de 1998, Henrique Salas Römer, estava mais alinhado com as teses neoliberais que emergiram na crítica à social-democracia. Na batalha das urnas, porém, prevaleceria o que o sociólogo Edgardo Lander chamou de “cultura de direitos”: Quando chega a crise, se produz uma ruptura deste consenso [social-democrata] e os meios de comunicação, empresários e parte importante dos intelectuais começam a ver o Estado como o problema. O consenso da sociedade se rompeu neste momento. Criou-se uma espécie de consenso liberal anti-política, anti-Estado, que acusava tudo de populismo, e os setores populares ficaram sem lugar, porque os sindicatos eram populistas, tudo era populista. Mas a expectativa dos setores populares era de que o Estado tinha responsabilidade. Isso criou Acción Democratica: na Venezuela havia uma cultura de direitos.11 A vitória de Chávez aparece agora como a combinação de diversos fatores, entre os quais se destacam – além de seu carisma – a capacidade de criticar os resultados da social-democracia no país sem, com isso, ignorar a expectativa popular diante das obrigações do Estado, erro cometido pelos defensores de um programa de conteúdo neoliberal. A “Revolução Bolivariana” iniciada em 1999 é, portanto, herdeira de muitos dos valores construídos a partir da complicada relação entre Revolucionário 200 (MBR-200), organização de origem militar na qual Chávez atuava clandestinamente desde os anos 1980. O número 200 é uma referência ao bicentenário do nascimento de Simón Bolívar. 9 Ao investigar a origem dessa proposta encontrei um trecho do Contrato Social, de Rousseau, citado num dos documentos do MBR200. Ver CHÁVEZ, Hugo. Pueblo, Sufragio y Democracia. Caracas: Ediciones MBR-200, 1993, p. 6. Essa e outras características do MBR-200 foram analisadas por mim em MENDES, Flávio. “As raízes do Movimento Bolivariano na Venezuela”. In: IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina (Anais de Congresso), Londrina, 2010. Disponível em <http:// w w w. u e l . b r / g r u p o pesquisa/gepal/anais_ivsimp/gt4/1_FlavioMendes.pdf>. Acessado em 28 de março de 2011. 10 CHÁVEZ, Hugo et alli. Agenda Alternativa Bolivariana. Caracas: MinCI. Disponível em: <http://www.minci.gob.ve/doc/folleto_agendabolivarina.pdf>. Acessado em: 28 de março de 2011. 11 Entrevista realizada em Caracas, em 06/03/2009. 58 - Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana” Estado, petróleo e sociedade na Venezuela. Esse passado, como demonstrado a partir da obra de Marx, estabelece limites às escolhas dos atores políticos e deixa marcas nas relações das classes sociais em conflito. Além das aparências: as frações na luta política A análise das relações de classe na Venezuela atual é tarefa complicada, mas creio que também neste ponto a leitura de O 18 Brumário pode dar pistas valiosas para a interpretação daquele cenário. A França descrita por Marx atravessava nos anos anteriores a 1851 uma crise aguda que atingia a totalidade das classes sociais e, neste processo, as relações entre elas e seus representantes políticos na Assembleia Nacional se viu tomada por conflitos intensos. Tal conjuntura abria a possibilidade para que Marx realizasse uma distinção fundamental: a ação política dos representantes das classes não pode ser reduzida automaticamente ao lugar que estas ocupam na produção. Há, em geral, uma visão compartilhada que contribui para que as ações dos representantes reflitam os interesses das classes, mas essa convergência se torna sem dúvida mais difícil em 12 momentos de crise. A sociedade venezuelana mergulhou a partir dos anos 1980 num cenário de profunda crise econômica, política e social que, respeitadas as evidentes diferenças históricas, é passível de comparação com aquela que Marx encontrou na França. O declínio da socialdemocracia no país afetou negativamente o conjunto das classes sociais: os trabalhadores, em especial, e os setores médios da sociedade enfrentaram um retrocesso material imposto pela estagnação econômica, enquanto a falência do frágil Estado de bem-estar impulsionava a descrença nos partidos políticos tradicionais que se alternavam no poder desde o final dos anos 1950. Essa ruptura revelou também a crise de hegemonia da classe dirigente do país, a qual perdia, em meio à falência de seus representantes, as condições políticas que lhe permitiram acumular as riquezas petroleiras durante a segunda metade do século XX. Neste cenário, as relações entre as classes sociais se obscureceram: carentes de seus representantes tradicionais, suas frações vão se realinhar durante os anos 1990 de acordo com suas posições diante das propostas de Chávez, uma liderança carismática que emergiu num cenário de intensos conflitos sociais e marcado pela desorganização dos setores em disputa. Não por acaso, a partir de sua eleição a luta política aparecerá como o embate entre dois grupos homogêneos e distintos: os chavistas e os antichavistas. Creio que o grande desafio para a análise da luta de classes na Venezuela atual é encontrar, no interior desses blocos, os interesses que justificam o alinhamento das diferentes frações. Nesse conflituoso e complexo cenário de disputa política na Venezuela, ao menos uma relação é fácil de identificar: o bloco conhecido como chavista conta com o apoio da maioria dos trabalhadores mais pauperizados do país, tanto do campo quanto da cidade. Este setor popular 12 Esse diagnóstico perpassa todo o texto de O 18 Brumário e é mais explícito na análise das forças presentes na Assembleia Nacional francesa, realizada na Parte III. Ver MARX, Karl, op. cit., págs. 46-64. não é produto da “Revolução Bolivariana” e corresponde a uma parcela majoritária da sociedade que esteve historicamente afastada dos centros de decisão política e da divisão da riqueza nacional. A partir dos anos 1980, com a crise que afetou a sociedade venezuelana, esta parcela dos trabalhadores voltou às ruas na forma de protestos populares, entre os quais o Caracazo é o evento mais destacado.13 Os principais motivos que levaram à aproximação entre esse movimento e a alternativa bolivariana parecem baseados na combinação entre uma proposta antineoliberal na economia – que, mais tarde, resultaria em amplos programas sociais – e a defesa radical da inclusão política contra os partidos tradicionais, ingredientes articulados nos discursos do carismático Chávez. A aproximação entre os trabalhadores mais pauperizados do país e o governo bolivariano obrigou as organizações de esquerda – afetadas por uma profunda crise14 – a reavaliarem suas táticas. As lideranças dos inúmeros grupos que compõem este setor fragmentado são, em sua maioria, quadros oriundos da classe média – funcionários públicos, estudantes universitários e lideranças sindicais – também assolados pela crise econômica do final dos anos 1980. Com o objetivo comum de criar laços com as bases populares, estes grupos foram gradativamente se aproximando do MBR200 ao longo dos anos 1990 embora sempre apresentassem críticas de variadas intensidades a certas características daquela organização. Como partes minoritárias do bloco no poder, muitas dessas forças vieram a romper com o governo. A maioria, porém, se mantém ligada a Chávez. Nessa opção pesam tanto o cenário de isolamento que enxergam no caso de uma ruptura com o atual presidente – e, assim, com os setores populares que o apoiam – quanto a ambiguidade do discurso oficial que, ao dialogar com personagens e autores caros à tradição da esquerda em meio aos constantes apelos a Bolívar, gera expectativas de radicalização de sua estratégia e valoriza um vocabulário propício ao estreitamento dos laços entre a esquerda tradicional e a população. Além do discurso, o alinhamento à “Revolução Bolivariana” é justificado pela percepção de que há avanços políticos e sociais consideráveis em meio às contradições do governo de Chávez. Mas ao lado do bloco chavista também são encontrados grupos que não são anteriores à “Revolução Bolivariana”, mas se produziram em seu interior, a partir 13 O crescimento e a mudança do conteúdo dos protestos populares entre os anos 1980 e 90 foram analisados em LÓPEZ MAYA, Margarita. “Novedades y continuidades de la protesta popular en Venezuela”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, Janeiro-Abril de 2006, vol. 12, nº 1. Caracas: UCV. 14 Nos anos 1960 uma parte expressiva da esquerda venezuelana se dedicou à luta armada contra a social-democracia, sobretudo após a suspensão do Partido Comunista de Venezuela (PCV). A derrota sofrida afetou duramente essa organização e dela se originaram diversas dissidências, entre as quais se destacam o Movimento al Socialismo (MAS), de inspiração euro-comunista, e La Causa Radical, de perfil leninista. Essas organizações foram as mais expressivas da esquerda venezuelana nas décadas de 1970 e 80, mas eram ainda marginais no cenário político nacional quando a crise chegou. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (56-61) - 59 de interesses econômicos e políticos aos quais só puderam ter acesso através do Estado. Para a oposição, que os cita mais abertamente, eles conformam a chamada “boliburguesia”, composta em sua maioria por exmilitares e empresários favorecidos por relações com o governo. Seu surgimento não é surpreendente, afinal a burguesia venezuelana tem historicamente um perfil parasitário em relação ao Estado e à renda petroleira que este administra. As organizações de esquerda que atuam ao lado de Chávez também criticam esse setor, mas de modo mais velado e menos consensual. Ele é geralmente vinculado a uma burocracia reformista que ameaça a continuidade da Revolução, embora o teor do julgamento varie conforme as estratégias de cada grupo e seu grau de comprometimento em relação ao presidente. O fato de Chávez fazer parte da simbologia popular exige que as organizações de esquerda, preocupadas em ampliar suas bases de apoio, tomem cuidado em relação às críticas que dirigem ao presidente. Do ponto de vista da nova burocracia, por outro lado, a necessidade de articular um discurso recheado pelo vocabulário da esquerda também a leva a constrangimentos e concessões. Por último, as condições para o avanço da experiência popular autônoma estão dadas pelo afastamento das forças mais conservadoras da política nacional, garantido pelo governo bolivariano. Essa complexa rede de dependências mútuas parece dar origem a um equilíbrio instável que sustenta o bloco chavista. A fragmentação também é característica do bloco anti-chavista. Pela composição dos atos públicos contra o atual presidente, percebe-se que a base de sustentação deste grupo está na maior parte da classe média e numa parcela minoritária das camadas populares, que compartilham entre si um sentimento que batizam de cívico-democrático, oposto aos traços autoritários que 15 enxergam em Chávez. Este sentimento remete à experiência da social-democracia no país, anterior à crise dos anos 1980, rememorada pelos líderes da oposição e pela imprensa. Não deixa de ser, portanto, outra vertente herdeira daquilo que Lander chamou de “cultura de direitos”. Além do autoritarismo, este setor enfatiza a ineficiência da administração pública e critica uma ideologia oficialista considerada ultrapassada, que se apoia no exemplo da experiência cubana, no vocabulário da esquerda tradicional e no militarismo. O estímulo ao conflito contra a oligarquia e o imperialismo, táticas utilizadas cotidianamente por Chávez, é interpretado como uma forma de ofuscar problemas no seio da “Revolução Bolivariana”. Esses sentimentos parecem anteriores à eleição de Chávez, embora tenham se tornado mais intensos após 15 Neste ponto, a contribuição de Marx retirada de O 18 Brumário parece ser mais uma vez relevante: ao invés de um lugar na produção, o que se destaca entre esses setores são os “valores democráticos” herdados da social-democracia. Diante da atual crise de hegemonia da burguesia venezuelana, é natural que esta posição intermediária típica das classes médias ocupe o lugar de destaque na oposição à Chávez e ecoe nos discursos de seus representantes políticos e da imprensa. Sobre a posição vacilante e conciliatória dos setores médios nos períodos de crise, ver análise da pequena-burguesia em MARX, Karl, op. cit., págs. 54-56. os primeiros anos de governo. Acredito que a maioria dos argumentos encontrados no discurso da oposição já era perceptível ao longo da campanha eleitoral de 1998, quando ficou bem desenhada a polarização entre a agenda nacionalista do MBR-200 e a proposta liberal reformadora, concentrada na candidatura de Salas Römer. Os setores que hoje apoiam os líderes da oposição reafirmam a identificação desse bloco como uma força moderna, em sintonia com os valores democráticos, capazes do ponto de vista administrativo e defensores de estratégias econômicas competitivas. Por trás dessas características parece haver uma continuidade da aversão à política tradicional, que ecoa na pretensão de não se identificar com a esquerda ou com a direita nem valorizar estruturas de representatividade vinculadas ao Estado, como os partidos políticos. Esses rótulos e modelos são considerados ultrapassados. A existência de valores fundamentais compartilhados por sua base de apoio não torna essa oposição homogênea, pelo menos no que diz respeito às suas direções. Oriundos de diversos partidos tradicionais afetados pela crise, esses quadros ainda competem com forças políticas emergentes que souberam ocupar o espaço deixado pelo declínio das principais agremiações da Venezuela. Esse descompasso gerou conflitos entre lideranças pautadas pelo ideal nacionaldesenvolvimentista, que reinou durante um longo período da democracia venezuelana, e personagens, como Carlos Andrés Pérez, que se alinharam à agenda de reformas econômicas dos anos 1980 e 90. Com o tempo, a primeira proposta se converteu num programa de reformas em parceria com o mercado, em que o aparelho estatal desempenharia um papel menor. Os defensores dessa agenda buscaram se diferenciar dos setores golpistas, que se concentravam no chamado Bloque Democrático, e que tinham o ex-presidente Pérez como um dos principais porta-vozes. De acordo com Edgardo Lander, após as sucessivas derrotas sofridas por essa estratégia o setor mais moderado se impôs: Eu penso que durante os anos 2002, 2003, 2005, a oposição venezuelana estava dirigida, ou mesmo chantageada, por setores mais golpistas, mais de direita radical, que achavam que podiam derrubar Chávez na semana seguinte, estavam permanentemente nessa busca. Bastava dar um empurrão e tudo caía. Nisso tiveram muito apoio político e econômico do governo de Bush. [...] Isso começou a mudar com a reeleição presidencial e o referendo da reforma constitucional, quando os setores que acreditavam que era possível avançar politicamente pela via eleitoral se impuseram e efetivamente conquistaram avanços importantes, e, pela primeira vez nesse período, derrotaram o governo no referendo da reforma constitucional. Isso significa uma recomposição muito profunda. A oposição na Venezuela é muito heterogênea.16 Para Lander, a heterogeneidade pesa mais para a oposição, que não possui uma liderança unânime como a desempenhada por Chávez no bloco do governo. Além de 16 Entrevista realizada em Caracas, em 06/03/2009. 60 - Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana” diferenças ideológicas, essas divisões traduzem a existência de interesses antagônicos de frações ligadas a atividades econômicas diversas, algumas mais dependentes do controle do Estado – como aquelas vinculadas à produção petroleira – e outras relativamente independentes, mas que veem com bons olhos a possibilidade de um governo que estimule o desenvolvimento do capital nacional sem ameaças ao regime de propriedade. Os meios de comunicação, controlados majoritariamente por esses grupos econômicos, têm uma função importante nas críticas a Chávez. Marginalizadas, mas também deste lado, estão algumas das organizações de esquerda que – como seus pares no bloco chavista – apresentam hoje pouca expressão. Para Teodoro Petkoff, ex-membro do partido Movimiento al Socialismo e um personagem destacado da oposição a Chávez, a situação desses pequenos partidos se explica pela força do carisma do presidente: Chávez ocupou, em grande medida, o espaço da esquerda. Ampliou seus limites. Portanto, os grupos de esquerda mais antigos, por enquanto, digamos, perderam seu âmbito social natural, porque este está sob a influência de Chávez [...] Mas esse cenário está mudando. Os regimes dessa natureza – autoritários, autocráticos, militaristas – costumam suscitar oposição de setores que vão da extrema direita, passando pelo centro e chegando à extrema esquerda.17 Embora não traduza todas as divisões que existem na sociedade venezuelana, esse esboço nos ajuda a compreender melhor as estratégias adotadas tanto pelo governo quanto pela oposição. Após os intensos conflitos que duraram entre 1999 e 2004, os dois lados mudaram de postura. Em meio ao crescimento da renda petroleira, Chávez passou a privilegiar os programas sociais que já eram desenvolvidos antes do referendo revogatório de 2004, quando garantiu nas urnas sua permanência no poder. Essas medidas contribuíram para aumentar sua base de apoio, fato que estimulou o sentimento de que um período menos agitado estava por vir. Com o boicote realizado pelos principais partidos de oposição às 18 eleições legislativas de 2005, o poder e a confiança só aumentaram para o lado dos chavistas. No ano seguinte, Chávez ainda foi reeleito com uma votação expressiva (62,84%), embora a oposição tenha dado sinais de recuperação e unidade em torno da candidatura de Manuel Rosales, impulsionada por partidos emergentes. Mas o cenário como um todo parecia propício ao avanço da “Revolução Bolivariana”. Revolução ou restauração? A vitória de Chávez nas eleições presidenciais de 1998 representou uma mudança significativa na política venezuelana. Com seu programa nacionalista, o movimento bolivariano se impôs diante das propostas 17 Entrevista realizada em Caracas, em 26/03/2009. Os partidos de oposição alegaram “falta de garantias” e se retiraram da disputa. O resultado, porém, foi referendado por observadores internacionais. 18 liberais dos partidos tradicionais do país, cujo modelo de administração da crise econômica conduzia a sociedade em direção ao caos. O caráter destrutivo da direita afastada do poder foi sentido nos primeiros anos do governo bolivariano, sobretudo na paralisação da indústria petroleira nos anos 2002 e 2003, que ficou conhecida como Paro Petrolero, e na tentativa fracassada de golpe realizada também em 2002. Essas ações de boicote e violência foram voltadas contra um governo que não apresentava até então grandes sinais de radicalização política e econômica. Hoje, mais de uma década após ter início, a “Revolução Bolivariana” apresenta estratégias muito diferentes das originais. A começar pela economia: a proposta inicial do primeiro governo Chávez – contida tanto na Agenda Alternativa Bolivariana quanto no Plan Económico y Social 2001-2007 – pode ser considerada próxima ao neoestruturalismo econômico, que defendia a atuação do Estado em setores básicos da economia em parceria com a iniciativa privada nacional.19 Uma primeira tentativa de aprofundar alguns pontos dessa estratégia, no sentido da ampliação da intervenção estatal, estava contida na “segunda Lei Habilitante”, de 2001, contra a qual a oposição desenvolvera uma campanha “anticomunista”. A partir de 2005, inspirado pela convicção de que era hora de avançar, o governo buscou retomar e aprofundar aquelas propostas. Numa entrevista concedida naquele ano, Chávez afirmou que o período de confrontação o levou a repensar os rumos do governo: Golpe de 2002, greve petroleira, sabotagem petroleira, contragolpe, discussões e leituras. Cheguei à conclusão – assumo a responsabilidade porque não discuti com ninguém antes de tornar público no Fórum Social Mundial de Porto Alegre – que o único caminho para sair da pobreza é o socialismo. Em uma época cheguei a pensar na terceira via. Andava com problemas para interpretar o mundo. Estava confuso, fazia leituras equivocadas, tinha uns assessores que me confundiam ainda mais. Cheguei a propor um fórum na Venezuela sobre a terceira via de Tony Blair. Falei e escrevi muito sobre um “capitalismo humano”. Hoje estou convencido de que é impossível.20 A ideia de superar o capitalismo e construir o “Socialismo do Século XXI” passou a orientar a nova estratégia do governo, contida em documentos como o Proyecto Nacional Simón Bolívar: Primer Plan Socialista 2007-2013 (PPS)21 e a proposta de reforma constitucional levada a referendo em 2007. Neles aparece uma ruptura em relação ao neoestruturalismo e o avanço em direção a medidas centralizadoras e estatizantes, inspiradas no exemplo da experiência cubana. As 19 CAMEJO, Yrayma. “Estado y mercado en el proyecto nacionalpopular bolivariano”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, vol.8, nº 3, p. 27. 20 Depoimento retirado de CABIESES, Manuel, “¿Hacia donde va usted, presidente Chávez?”. Disponível em < http://www.voltairenet.org/article132654.html>. Acessado em 28/03/2011. 21 Disponível em: <www.mpd.gob.ve/Nuevo-plan/plan.html>. Acessado em 28/03/2011. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (56-61) - 61 mudanças simbólicas também são importantes: embora se mantenha a menção a Simón Bolívar e outras referências da cultura nacional, ganham espaço personagens vinculados à esquerda latino-americana, como Fidel Castro, Che Guevara, Salvador Allende, e autores e militantes da tradição marxista, como Lênin, Trotski, Rosa Luxemburgo e Gramsci. O adjetivo “socialista” é outro elemento que se torna comum nessa “nova narrativa ideológica de emancipação”, agora compreendida como uma “democracia revolucionária”, e não mais como uma “revolução democrática”.22 Para analistas da oposição e alguns apoiadores de Chávez, essa nova narrativa coincide com o crescimento do desequilíbrio entres os poderes no Estado venezuelano, reforçado tanto pela maioria governista conquistada no legislativo quanto pelo apelo constante do executivo a dispositivos que lhe permitem legislar. Para 23 Biardeau, esse período se define pela emergência do “momento do líder”, com a consolidação de Chávez como um elemento indissociável do processo revolucionário, agora passível de ser chamado de “revolução chavista”. O consenso quanto ao papel de destaque assumido por Chávez se estende a amplos setores, da direita à esquerda, da oposição a seus apoiadores. Tanto o aparecimento quanto a atual centralidade de Chávez na política venezuelana são, a meu ver, 24 desdobramentos da crise orgânica que atinge aquela sociedade desde os anos 1980. Foi diante da fragilidade política e econômica em que se encontravam a burguesia e os trabalhadores venezuelanos no final do século XX que seu movimento bolivariano ganhou espaço e chegou ao poder, àquela época ainda ocupado pelos representantes das classes dominantes em descenso. A partir de então, o governo e o conjunto do aparelho estatal refletem as contradições encontradas na sociedade, contidas nas mudanças de direção que o governo assumiu diante das sucessivas crises que enfrentou. Dado o caráter econômico destacado que ainda desempenha como controlador e distribuidor da renda petroleira o Estado permanece como um espaço importante de disputa, como os intensos conflitos da primeira década da “Revolução Bolivariana” comprovam. Neste período, à sombra do embate entre chavistas e anti-chavistas, as classes sociais buscaram se reorganizar e as relações de forças entre elas se modificaram, mas ainda não o suficiente para definir se o país seguirá o caminho da revolução ou da restauração. A definição desse futuro passa sem dúvida pelo Estado e por Chávez, fatores que, portanto, não devem ser negligenciados na análise da complexa política 22 BIARDEAU, Javier. “Del árbol de las tres raíces al 'socialismo bolivariano del siglo XXI' ¿una nueva narrativa ideológica de emancipación?”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, abr. 2009, vol.15, nº.1, pp. 57-113. 23 Op. cit., p. 79. 24 Inspiro-me na noção apresentada por Gramsci. Para o autor italiano, uma profunda crise econômica, política e social inibe a aparecimento de soluções orgânicas, ou seja, originadas entre as forças políticas tradicionais de uma sociedade, e abre espaço para a emergência de um líder carismático. Ver do autor Cadernos do Cárcere. Volume 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pág. 60 e ss. venezuelana. Mas a história ensina que a luta de classes não cabe nos governos: os extrapola e, no limite, torna explícitas e insustentáveis suas contradições. A “Revolução Bolivariana” convive com a obrigação cotidiana de se renovar e avançar para além das fronteiras do Estado, condição para que sobreviva e que possa ostentar o nome de Revolução. Artigo recebido em 28/03/2011 Aprovado em 14/05/2011 62 - Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais: A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais: A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais Hélio de Souza Rodrigues Júnior 1 I ntrodução: Problematizando o Direito e Desmistificando o Ativismo Jurídico. Há certo ufanismo entorno do direito brasileiro, capitaneado por uma corrente, dentre outras, chamada de ativismo jurídico. Prega essa corrente – e trata-se mesmo de uma concepção mística – que o direito é capaz de mudar a estrutura da sociedade brasileira, tornando-a mais democrática e indo ao encontro, e até para além, do que foi o pactuado na Constituição Federal de 1988; basta se distanciar do formalismo jurídico e aproximar-se do 2 social. A partir dessa crença, são citados alguns exemplos postos na lei ou na prática, produzidos pelos aplicadores do direito, como comprovação empírica 3 desse ativismo jurídico. Igualmente, vários cientistas sociais e atores políticos ligados aos múltiplos movimentos que reivindicam ser de esquerda, no que há de essencial, andam de mãos dadas com a concepção de que o direito materializa não só o consenso possível, mas a priori, já dá a diretriz da busca desse consenso, pois tal foi formulado no Texto Constitucional brasileiro de 1988. O conflito entre classes teria como perímetro a arena de efetivação, ou não, dos direitos postos na Constituição, ou até mesmo a qualidade e a quantidade de efetivação desses direitos, inclusive, até aonde se poderia avançar. Vê-se, como por exemplo, que a defesa da reforma agrária, da preservação do meio ambiente e do controle político do Estado contam com a impressionante primazia da Constituição de 1988 diante dos argumentos da função social da propriedade, da responsabilidade social e do processo eleitoral, respectivamente. Constatase que parece ser secundária a necessidade de que o modo de produção deva ser dos produtores associados. E como aqui se entende por modo de produção a maneira como uma sociedade se organiza para produzir a vida social,4 aquela corrente tem como pressuposto lógico que o direito só poderia estar para além do modo de produção da vida social, de tal maneira separado dos conflitos sociais, que ele dirige e constrói o consenso. Em síntese, essas correntes indicam que o direito deixou de ser produzido no bojo da dominação e da exploração do modo de produção capitalista no qual ele está assentado, pois ao se viver em uma sociedade liberal democrática, ele materializa as bases para o consenso e dá concretude a esse consenso. A corrente dos reformadores está triunfante pela crença de que o direito tem uma substância, uma concretude, um cimento firme chamado consenso, no qual seria possível estruturar toda a sociedade brasileira. Todavia, não se questiona a abstração do que seja essa chamada sociedade brasileira – como se houvesse de fato uma comunhão de interesses entre as classes sociais – ou sequer a formulação da Constituição de 1988 como um mito de criação de onde provém o contrato social iluminista-liberal brasileiro; idealiza-se que 1987 e 1988 foram os anos em que somente as forças progressistas venceram a batalha na constituinte, descontextualizando, dentre outras, a transição lenta e gradual plasmada na Nova República, no plano cruzado prolongado até após as eleições, bem como que a subscrição das então emendas populares por expressivo número de eleitores e encaminhadas para a constituinte foi frustrante, pois de fato tais emendas não foram aproveitadas como 5 desejavam os seus subscritores. Em uma linguagem mais próxima dos juristas: Em julho de 1985, Goffredo Telles Jr, em nome do plenário Pós-Participação Popular na Constituinte, de São Paulo, divulga a 'Carta dos Brasileiros ao Presidente da República e ao Congresso Nacional', na qual propõe a criação de mecanismos de participação 'em todos os municípios do país' e denuncia, por 'espúria', a convocação de uma Constituinte composta de órgão já constituído – ou seja, Câmara e Senado (...). Em São Paulo, Fábio Konder Comparato propõe a convocação, pela Justiça Eleitoral, de conselhos consultivos municipais que produziram propostas a partir das reivindicações da população. Tal proposta (...) não foi aceita pelos poderes constituídos.6 1 Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB (Centro Universitário de Brasília); especialista em Filosofia Política pela UFC (Universidade Federal do Ceará) e especialista em Direito Constitucional pela UNIFOR (Universidade de Fortaleza). Assessor Técnico do Senado Federal. Professor de Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB), Instituto Brasiliense de Ensino Superior (IESB) e Centro Universitário do Distrito Federal (UDF). 2 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo / direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. SARLET, Ingo Wolfgang. Reforma constitucional e proibição de retrocesso. In: ___ (Org.).Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003, cap. 4, p. 301-394 3 C f . h ttp ://w w w. co n ju r. co m. b r /2 0 0 6 - mar15/juizes_papel_ativo_interpretacao_lei. Acessado em 10 de abril de 2009. 4 MILIBAND, Ralph Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 5 GEORGAKILAS, Ritinha Alzira S. A constituição e sua supremacia. In.: Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia e supremacia. São Paulo: Editora Atlas, 1989, p. 97 6 MASCARO. Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 165. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (62-67) - 63 Compreender a extensão e os limites do direito, especialmente do direito constitucional, a partir da fonte marxista significa examinar criticamente a relação entre o direito e as marcas atuais do modo de produção – enquanto reflexo modelado na Constituição Federal brasileira –, caracterizando-se como revolucionário ou contra-revolucionário. Trata-se de um corte metodológico que corresponderia a uma microesfera da totalidade das relações sociais, que possibilita cotejar esse direito no bojo de uma das facetas da representação do modo de produção onde ele está assentado. E, nenhum jurista, cientista social ou cientista político discordaria de um estudo crítico do direito pensado como produção da vida social. Mas compreender a extensão e os limites do direito é levar às últimas conseqüências o fato de ele ser parte da sociedade. E ao proceder tal investida, saber se é tática ou estratégia de enfrentamento revolucionário proclamar um direito que não visa ruptura ou questionamento ao modo de produção capitalista; afinal, neste trabalho, o direito não é aplicação doutrinária, mas pensado em sua execução prática, em sua realização a partir do pensamento revolucionário marxista; daí que dialeticamente, ele é encarado como lugar de reprodução da organização social e também como espaço de luta. Porém, essa luta só faz sentido se os trabalhadores souberem pelo que estão lutando, isto é, compreenderem os limites e a extensão das conquistas sociais consubstanciadas no direito, formulando, executando e controlando esse direito. Desenvolvimento: Limites e Extensão do Direito Localização e Compreensão do Direito Três trechos, de três diferentes obras de Marx e Engels, indicam claramente como a concepção revolucionária da sociedade e da história estavam longe de desconhecer a importância das esferas superestruturais – aqui com ênfase no direito –, como se fosse possível desprezar a autonomia e a eficácia relativa desse último, ainda que eles considerem a economia como a base de todas as demais esferas. No livro A Ideologia Alemã: Enquanto no livro A Miséria da Filosofia diz: As relações sociais acham-se intimamente unidas às forças produtivas. Ao adquirir novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção, e ao mudar o modo de produção, a maneira de ganhar sua vida, mudam todas suas relações sociais (...). Os mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com sua produtividade material, produzem também os princípios, as idéias, as categorias, de acordo com suas relações sociais. Assim, essas idéias, essas categorias são tão pouco eternas como as relações que expressam. São produtos históricos e transitórios.8 No Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política diz assim: Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens o que determina a realidade; pelo contrário, a realidade social é que determina sua consciência. Durante o curso do seu desenvolvimento, as forças produtoras da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (...). Então se abre uma era de revolução social. A mudança que se produziu na base econômica desordena mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura.9 Esta concepção da história consiste, pois, em expor o processo real de produção, partindo para isso da produção material da vida imediata, e em conceber a forma de intercâmbio correspondente a este modo de produção e engendrada por ele, quer dizer, a sociedade civil nas suas diferentes fases, como o fundamento de toda a história, apresentando-a em sua ação enquanto Estado e explicando com base nela todos os diversos produtos teóricos e formas da consciência, a religião, a filosofia, a moral etc., assim como estudando a partir dessas premissas seu processo de nascimento, o que, naturalmente, permitirá expor as coisas na sua totalidade (e também, por isso mesmo, a ação recíproca entre seus diversos aspectos).7 Portanto, não se vê a economia como o motor único da vida social. Ao contrário, as manifestações da vida social devem ser compreendidas em conjunto como uma totalidade dentro da qual as forças produtivas e as relações econômicas desempenham papel importante. As esferas jurídicas, políticas e ideológicas gozam de certa autonomia que lhes permite, por sua vez, influir sobre a base econômica, mas esta mesma autonomia, sua origem, forma, grau de poder e capacidade de influência, deve ser compreendida em função das suas relações de produção e, em todo caso, fica dentro dos limites marcados por estas. No caso, a superestrutura do direito é a que mostra mais cruamente em que medida é reflexo das relações econômicas, sobretudo se pensarmos em campos como o direito civil, mercantil e eleitoral. À título meramente exemplificativo, pode-se citar as alterações nas seguintes legislações: lei do inquilinato (Lei 12.112, de 2009, alterou a Lei 8.245, de 1991) que assegurou maiores prerrogativas ao locador (proprietário); lei do processo de execução de dívidas (Lei 11.232, de 2005 e 7 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo:Boitempo Editorail, 2007, p. 40. 8 MARX, Karl. A miséria da filosofia. São Paulo: Editora Escala. 2008, p. 161 (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal). 9 MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p.37. (Coleção Os Pensadores). 64 - Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais: A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais 11.382, de 2006), extinguindo esse processo como forma de garantir maior rapidez ao processo judicial de recuperação de dívida ou do patrimônio; lei de recuperação das empresas (Lei 11.101, de 2005), que facilitou a recuperação do crédito por meio da transferência do exercício da atividade econômica para os credores em detrimento dos créditos trabalhistas, que não são mais protegidos no topo da lista a quem se deve pagar; decisão judicial que reduziu o número de vereadores (Resolução 21.704, de 2004 do TSE), mas deixou intocável o orçamento das câmaras municipais; decisão judicial da verticalização das eleições (Resolução 20.993 do TSE e Emenda Constitucional 52), que atribui ainda maiores poderes a cúpula partidária e reduz a democracia interna e local dos partidos. Acrescente-se a reforma tributária brasileira: redução da alíquota do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, das instituições financeiras, de 25% para 15%; redução do adicional do IRPJ de 12% e 18% para 10%; redução da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL de 30% para 8%, posteriormente elevada para 9%; redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, ao permitir a dedução dos juros sobre o capital próprio (a inovação criada possibilita às empresas distribuírem juros aos seus sócios e acionistas, reduzindo com isso os tributos a serem pagos); isenção do imposto de renda da remessa de lucros e dividendos ao exterior, dentre outros (Lei 9.430, de 1996, Lei 10.684, de 2004). Além disso, a liberalização financeira internacional abriu novas oportunidades para a fuga de capitais e para a evasão fiscal por parte das elites, acentuando a desigualdade. Em todos os casos acima exemplificados, o ponto central da argumentação favorável as alterações era a necessidade de criar mecanismos para o livre trânsito do mercado e suas relações de troca, falava-se até na redução dos spreads e juros bancários, sendo que, no que toca a legislação eleitoral, a prática era mascarar a inexistência de democracia e transmitir a falsa concepção de que o cidadão elege, livremente, seus representantes. Seria possível citar inúmeras outras legislações e fazer uma análise mais acurada, inclusive, no que toca as legislações de programas que supostamente ampliaram a seguridade social e garantem a redução da pobreza, tal 10 como se fez em outra oportunidade. Mas não é esse o objeto de análise desta parte do texto, senão o de localizar e compreender o direito a partir do pensamento revolucionário marxista: a vida social não é reduzida a uma das partes, mas compreendida como totalidade dialética que não é simples soma das esferas ou níveis diferentes entre os quais se dê uma interação indiscriminada, mas uma totalidade em que a primazia do econômico não nega o reconhecimento da beligerância das demais esferas, nem se perde como conseqüência do mesmo. 10 RODRIGUES JR., Hélio de Souza. O combate à pobreza: hipertrofia da assistência social, precarização dos direitos sociais e desmanche das atividades estatais de bem-estar social. In: COGGIOLA, Osvaldo (Org.). A estatística da miséria e a miséria da estatística. Rio de Janeiro: Achiamé, 2009, p.57-103; RODRIGUES JR, Hélio de Souza. O direito social à assistência social é o todo único dos direitos sociais: um exame crítico das normas constitucionais. Revista Contra a Corrente, ano I, n,1, 2009, p. 51. A Totalidade Social e a Construção do Direito. A base em que repousa o conjunto social é, ela própria, social. A localização das forças produtivas na base do edifício social não significa que a história social seja uma prolongação da história natural, ou que as leis da sociedade humana não sejam mais que epifenômenos das leis naturais. Para Marx a natureza é, fundamentalmente, a natureza social ou humana, a natureza como objeto da ação do homem e da sociedade. Como nos diz Miliband: “quando Marx e Engels falam de 'lei naturais' que se impõem aos homens (...) fazem-no, simplesmente, para assinalar que as leis sociais se impõem aos homens à margem de sua consciência e com ou contra sua vontade, 11 e só neste sentido são 'leis naturais'.” Vê-se, portanto, que considerar o direito como dotado de elementos que dirigem e potencializam o consenso é considerá-lo unilateralmente como oriundo de uma lei natural que projeta uma idéia de essência, a margem da história social, descontextualizado e idealizado. Por sua vez, ao argumento de que existe o reconhecimento de que esse direito que dirige e potencializa o consenso, tal como a Constituição Federal de 1988, foi fruto da história social brasileira, daí que aquela primeira objeção não passa de indisfarçável sofisma, ao contrário, ratifica a concepção de um direito natural positivado – com toda a ambigüidade dos termos e contradição em termo –, pois congela a suposta história social do consenso ao ano de 1988, daí ter se falado alhures em mito de criação na figura do Texto constitucional. Apenas para ilustrar: desprezam-se as mudanças constitucionais advindas da corrente neoliberal em voga no Brasil desde a década de 90 do século passado. Todavia, é preciso recusar tanto a acusação de que a concepção marxista do direito nega as idéias ou o pensamento dos seres humanos, como a errônea identificação de uma cadeia causal funcionando entre a superestrutura jurídica e a sua base econômica. Em primeiro lugar, é necessário considerar que as relações sociais, evidentemente que aqui incluídas as jurídicas, tal como as relações políticas, têm uma clara realidade social: materializam-se em instituições como a família determinada, o Estado posto ou a magistratura em funcionamento. Em segundo lugar, o direito é uma parcela da vida social dos seres humanos, isto é, ele é parte da maneira como a sociedade se organiza para produzir a vida social (modo de produção) em e através de todos os níveis, econômico, social, político etc. No caso, o que realmente determina o direito não é uma lei natural que projeta a essência do homem – atualmente tão em voga o chamado princípio da dignidade da pessoa humana –, nem tampouco as relações econômicas por si só, mas o conjunto das formas da vida social ou, dito em termos negativos, tudo aquilo que não tem uma existência meramente pensada.12 Por conseguinte, o direito não é constituído apenas pelas relações econômicas, mas pela totalidade das relações sociais, e as 11 MILIBAND, Ralph Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 45. 12 Idem, p. 50. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (62-67) - 65 idéias do e sobre o direito, seus princípios e regras que supostamente possibilitariam o consenso, enquanto parte da vida social é também, por sua vez, parte da realidade. Parafraseando Marx e Engels do livro A Sagrada Família: o direito com a sua busca de consenso, por meio de princípios (essência) ou regras (existência), não são um demiurgo da história social em substituição ao Espírito ou à Idéia hegelianos, tão ao gosto dos juristas. Não existem princípios jurídicos (dignidade da pessoa humana, democracia, republicanismo) para os quais a sociedade seria mero instrumento. O direito, com seus princípios e regras, não faz nada, não possui uma riqueza imensa, não trava combates. É, antes, os seres humanos, os homens e mulheres reais e vivos que fazem tudo isso e travam combates; estejamos seguros de que não é o direito que se serve da sociedade como de um meio para realizar – como se fosse um personagem particular – seus próprios fins; não é mais do que a atividade dos seres 13 humanos que persegue seus objetivos. Logo, aviso aos navegantes juristas, cientistas sociais e atores políticos com suas místicas correntes filosóficas: não existe um direito que atue independentemente da sociedade, não há astúcia da razão, à maneira de Hegel, nem uma natureza que sabe o que quer, à maneira de Kant, nem uma mão invisível, à maneira de Smith, ou sequer um diálogo que busca o consenso, à maneira de Habermas, que tenham seus próprios fins e se sirvam para isso dos homens e mulheres como de bonecos – bonecos que teriam o consolo de se saberem bonecos. Portanto, como a sociedade não cria o direito e nem formula um Texto Constitucional inspirada por nenhum princípio atemporal, eterno, ou obedecendo a uma meta chamada consenso por fora da história social ou presa a um momento estanque, mais sim ao perseguir seus fins individuais e coletivos, com maior ou menor consciência do significado histórico dos seus atos, pode-se novamente parafrasear Marx e Engels, agora no livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: o direito não é feito arbitrariamente como quem escreve ou desenha sobre uma folha de papel, sequer o estilo de constituição de Ferdinand Lassalle, mas partindo das possibilidades e necessidades da sociedade e do seu tempo, porque, ele não é outra coisa que direito social e histórico, quer dizer, direito produzido pela sociedade histórica ou pela história social, uma vez que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, sob circunstâncias escolhidas por eles mesmos, mas sob circunstâncias diretamente dadas e herdadas do passado”.14 Assim, a corrente do ativismo jurídico e do seu consenso esculpido na Constituição, que se auto-intitula revolucionária,15 se olvida de que dentro da concepção revolucionária marxista não há espaço para a dicotomia 13 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. 14 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 33. 15 SANTOS, Boaventura Sousa. Brasil: a contra-revolução jurídica. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna _id=4493. Acesso em 27. dez. 2009. tradicional direito e sociedade, tal como Estado e sociedade civil já contido na Crítica da Filosofia do Estado de Hegel. Aliás, pode-se dizer que quando se reduz o direito à busca do consenso, a rigor, os valores, as normas e as ações de combate ao modo de produção capitalista não estão, em última análise, sendo questionados, havendo uma descontextualização e despolitização da matéria, indagando-se como é possível se falar em direito revolucionário. Ora, não existe tensão, enfrentamento ou conflito entre as complexas relações sociais que engendram o modo de produção capitalista e as propostas de combate a esse modo de produção, que são naturalizadas no âmbito social, cujo foco para enfrentar essa matéria aponta que se trata de um problema técnico-jurídico e pela técnica jurídica esse problema será resolvido. A corrente do ativismo jurídico aparta o direito do conjunto de fenômenos sociais, que com ele está presente e forma a história social. E, acrescente-se, legitíma-o perante a sociedade como um remédio que cura doenças sociais chamadas de pobreza, desigualdade, corrupção, degradação ambiental etc. Ou seja, significa que as propostas de efetivar os direitos constitucionais aparecem como um contraponto ao modo de produção capitalista, surgindo dois aspectos: primeiro, as propostas são de caráter eminentemente técnico, seja de técnica econômica, jurídica, administrativa, especialmente hermenêutica etc., inclusive, todas aplicadas, ou não, ao mesmo tempo; e, segundo, essas propostas configuram um contraponto que é concebido como naturalmente posto, pois racionalmente buscado e gerido para a manutenção do consenso consubstanciado na Constituição. Não se indaga, minimamente, que tipo de sociedade se quer manter coesa, com quais estruturas, culturas, normas, valores e divisão social do trabalho. A noção de contraponto como algo que aprimora o consenso ou corrigi-lhe as falhas produz a idéia de que a estrutura, a cultura, a norma e o valor presente em dada sociedade são naturais – foi o que acima se chamou de naturalização. Assim, as relações sociais estariam sempre se aprimorando. E o direito, enquanto mediador das relações entre os indivíduos para a ordem social, se enquadra perfeitamente nesse tipo de concepção, daí que o ativismo jurídico é descontextualizado e despolitizado, isto é, ele é isolado da sociedade e idealizado, apresentando-se como um mecanismo que supostamente busca a efetivação dos direitos constitucionais e se diz neutro e eqüidistante das disputas e dos conflitos travados nas relações concretas da sociedade. Em síntese, o ativismo jurídico não passa de um conjunto de receitas, ou melhor, de instrumentos ou mecanismos que, ao serem aplicados corretamente, cumprirão o mandamento constitucional de erradicação da pobreza.16 Não se está contra a efetivação dos direitos constitucionais, apenas essa corrente não é revolucionária, sendo imperioso compreender seus limites e extensão para saber utilizá-la conjunturalmente e definir seu papel na estratégica revolucionária. 16 BRASIL, 1988, Constituição federal art. 3º, III. 66 - Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais: A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais (reduzindo novamente o alcance do que estava previsto na Constituição por causa da escassez de recursos públicos), são desdobramentos de conflitos sociais que não foram reconciliados pela Constituição, muito embora sejam expressão do suposto consenso firmado. Outro exemplo, mais concreto para o caso da Constituição brasileira, é ofertado por Florestan Fernandes: Conclusão: A Marcha Contra-Revolucionária do Ativismo Jurídico e a Mediação do Direito pela Classe Trabalhadora Somente buscando ir além da aparência e da narrativa politicamente correta da corrente do ativismo jurídico é que se vê o seu caráter reformador. Mas apesar disso, como dito anteriormente, tal corrente tem atraído majoritária parcela de juristas e outros tantos cientistas sociais e atores políticos, contribuindo para a formulação de discursos e práticas que, na defesa de um direito menos formal e mais próximo do social, busca efetivar o consenso fixado na Constituição brasileira. Ou seja, apenas quando se submete à crítica a correlação de nuances entre o direito e o modo de produção capitalista é que o ativismo revolucionário é visto como instrumental para aquela forma de mudança que não perturba a ordem do modo de produção capitalista, assegurando à acumulação capitalista todas as condições seguras de reprodução. Portanto, não se trata de maniqueísmo: ativismo é revolucionário ou contra-revolucionário, mas de retirar o véu ideológico do ativismo jurídico que despolitiza o debate voluntarista do direito, e que é repetido à exaustão: que os direitos da Constituição de 1988 constituem nova dimensão da organização política e de cidadania brasileira, e que sem alteração no modo de agir e de pensar, via o compromisso social plasmado na Constituição entre as forças políticas, esses direitos não serão efetivos. Por outras palavras, esse debate ideológico apresenta o direito como se fosse fruto do acordo social, sendo que sem aquele necessário consenso entre as forças políticas não existe viabilidade e segurança para a Constituição cidadã, tal como é conhecida a Constituição Federal brasileira. Ocorre que o mito do consenso modelado no Texto Constitucional – enquanto organização políticosocial das modernas sociedades e que elabora condições históricas para um novo ponto de partida e prepara o 17 caminho da reforma –, simplesmente despreza a história social e omite a existência de poder consolidado, fortemente arraigado nas estruturas e infra-estruturas sociais. No dizer de Florestan Fernandes “A conciliação é, em si e por si mesma, contra-reforma, o expediente para banir e excluir a reforma social da história viva”.18 Ora, os direitos humanos e sociais positivados nos textos constitucionais não representam a linear caracterização de serem solução de apaziguamento dos conflitos sociais – como defendido pelos juristas –, mas eles possibilitam o deslocamento, a ampliação ou a redução desses conflitos e que não existe antagonismo de classe, de modo que, como por exemplo, algumas vezes a regra de que determinado direito deve ser regulamentado (em um futuro distante e nunca alcançado), ou os conflitos que advêm quando da elaboração dessa regulamentação (reduzindo o alcance do que estava estipulado na Constituição por causa da arte do que foi possível obter) e até da implantação da regulamentação O exemplo dado pelo autor é a “própria formação da chamada nova república, constituída por barões que sustentaram a ditadura militar brasileira”.20 Não obstante, equivocada seria a afirmativa de que se sustenta que politizar o direito é desconsiderar os impactos dos direitos constitucionais para a igualdade social, notadamente os direitos humanos ou os direitos sociais. Ledo engano pensar que este texto foca somente uma descrição perversa que pressupõe que o embate das forças políticas que alcança um consenso – que no caso estaria representado pelo Texto constitucional – é instrumento de exploração e de dominação; pois, muito embora isso esteja sustentado, o texto complexificou um pouco mais a questão e trabalhou por um processo dialético, agregando uma riqueza de fatores e considerando as várias facetas que compõe o fato, de maneira que sem desmerecer, ou defender a extinção dos direitos humanos e direitos sociais previstos na Constituição, ele não oculta e obscurece essa dimensão de exploração e de dominação do direito, em especial do direito no modo de produção capitalista (brasileiro). Dito de outro jeito: sustenta-se que o direito é elemento da exploração e da dominação do modo de produção capitalista e o ativismo jurídico desconsidera tal relevante marca, sendo conveniente e oportuno ao modo de produção capitalista. A questão está que, sob aquela perspectiva de tática ou de estratégia, o direito propugnado como revolucionário só faz sentido se a sua extensão ou os seus limites forem conhecidos pelos trabalhadores, daí que os direitos não são apenas lugar de reprodução, mas espaço de luta. E a luta somente é coerente quando se sabe pelo que se está lutando e qual o seu alcance. De fato, a ausência de centralidade no trabalho e, conseqüentemente, do amparo da classe trabalhadora na defesa e reivindicação do direito enseja o risco de um processo de cooptação e refuncionalidades desses direitos a favor do processo de acumulação e reprodução capitalista. A argumentação já é bastante conhecida: a perspectiva de uma guerra de posições é coerente quando 17 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. 18 FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1986, p. 65 19 FERNANDES, Florestan. A constituição inacabada. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p.49. 20 FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1986, p. 65. A derrota da força política do capital, impossibilitada de impedir as reformas, leva ao seu deslocamento no seu campo de luta, passando do conservantismo ao liberalismo, do reacionarismo ao democratismo, construindo suas bases no terreno adversário. E daí trabalha contra as reformas, solapando-as, desfibrando-as e esterilizando-as – ou seja, a reforma perde qualquer sentido radical ou revolucionário.19 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (62-67) - 67 amparada numa forte e ampla aliança entre os trabalhadores. O desafio é a organização e a mobilização da classe trabalhadora. No caso concreto do direito, inverter o quadro da elaboração e aplicação do direito, isto é, que o direito posto sofra novo processo de transformação por meio de movimento político, sob os termos mais amplos da proteção social e dos direitos sociais e sob a formulação, execução e controle dos trabalhadores, mesmo porque não é o direito que resolve o problema da exploração e da dominação, mas a classe trabalhadora que, organizada e mobilizada, usa o Estado e o direito para enfrentar o modo de produção capitalista. Com efeito, a destruição do modo de produção capitalista e até mesmo a eliminação das restrições jurídicas impostas por ele, ainda deixaria parte das tarefas de enfrentamento da exploração e da dominação. Então, não é a extirpação dos direitos que supostamente resolveria o problema.21 Resignificando Mészáros:22 como um elo intermediário necessário, o papel de um direito expresso em uma constituição consciente de sua extensão e limites, bem como de suas funções estratégicas na totalidade da prática social, é decisivo para o êxito de uma transformação da sociedade. É evidente que com isso há questões que devem ser enfrentadas: quais instrumentos necessários e mediações devem ser utilizados? Esta e outras questões subjacentes merecem ser analisadas e debatidas com a ampliação do objeto e continuidade dos estudos, mas não cabem neste texto. Portanto, a questão em jogo é a do caráter do direito, especialmente do direito constitucional, de um lado, confluindo-se com a exploração e a dominação presentes no modo de produção capitalista, e, do outro lado, enquanto instrumento e processo de mediação que se relaciona com a desigualdade social. Como já se ressaltou, não é o instrumental e a mediação realizada pelo direito em si que são mazelas ou estão errados, mas a funcionalidade e a articulação desse instrumental e a mediação com o processo de acumulação e reprodução capitalista e seus desdobramentos para a moldagem do conjunto de relações sociais; afinal de contas o direito está assentado no modo de produção capitalista. Ele não é puro nexo causal das relações econômicas, mas reflexo da maneira como a sociedade se organiza para produzir a vida social. O problema a ser enfrentado para além deste texto é a elaboração teórica e prática de uma compreensão dos intermediários adequados, que no caso do direito, permitam a classe trabalhadora mediar-se a si mesma, ao invés de ser mediada por instituições e instrumentos moldados pelo processo de acumulação e reprodução capitalista. A necessidade do protagonismo social é essencial. De qualquer modo, o que realmente aqui está sustentado não é o desaparecimento de toda 21 MÉSZÁROS, István. A taxa de utilização decrescente no Estado Capitalista. In:___. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Editora da Unicamp e Boitempo editorial, 2002, cap. 15, p. 634-674. 22 MÉSZÁROS, István. Aspectos da Alienação. Aspectos Políticos. In:___. A Teoria da Alienação em Marx. 1. ed. São Paulo:Boitempo editorial, 2006, cap.V, p. 139-148. instrumentalidade e mediação do direito, notadamente, o do direito constitucional que colacione direitos humanos e direitos sociais, mas a politização dos seus limites e a extensão para o combate ao modo de produção capitalista, questão ausente no ativismo jurídico. E, somente para além do que foi delimitado como objeto, estaria a investigação sobre o estabelecimento de formas de mediação, conscientemente controlados pelos trabalhadores, em lugar das relações sociais de produção reificadas sob o capitalismo. É nessa hipótese que se poderia falar em direito revolucionário. Artigo recebido em 24/03/2011 Aprovado em 05/05/2011 68 - ARTIGO - Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx José D'Assunção Barros1 P ráxis, uma antiga noção que já aparece entre os filósofos gregos, tornou-se, na segunda modernidade, também um conceito importante para algumas correntes 2 filosóficas, sociológicas e historiográficas. O conceito ocupa uma posição excepcionalmente importante no âmbito do Materialismo Histórico, aqui considerado como um paradigma histórico-filosófico – e ainda mais no pensamento marxista propriamente dito, já considerado como um programa de ação política mais 3 específico. É no âmbito do materialismo histórico, e particularmente no pensamento de Karl Marx, que o abordaremos neste artigo. Antes de mais nada, ressaltaremos que a “Práxis” deve ser entendida, neste sentido mais específico, como um conceito que une “Consciência” e “Ação”, e logo veremos a importância de compreender isto para não confundir a práxis com a simples “prática”. Por outro lado, em Marx o conceito parece partilhar pelo menos três 1 Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, onde leciona disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História, História da Arte. Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Entre suas publicações mais recentes, destacamse os livros O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2004), O Projeto de Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005), Cidade e História (Petrópolis: Vozes, 2007), A Construção Social da Cor (Petrópolis: Vozes, 2009) e Teoria da História (Petrópolis: Vozes, 2011). 2 A noção de “práxis” aparece já na antiga filosofia grega. Aristóteles procurou associar esta noção às ações intransitivas ou morais que estariam dotadas, em si mesmas, de um sentido completo ou pleno, tal como a ação de “julgar”, em contraste com outro tipo de ações que visariam, em sua conclusão, à produção de objetos exteriores ou de resultados concretos, tais como as ações de fabricar, pintar ou preparar alimentos (mais adiante, veremos que estas ações se direcionam a uma outra instância que já aparece na filosofia grega, e que é referida como poiésis). Nos capítulos IV e V da Ética a Nicômaco, por exemplo, Aristóteles, utiliza esta distinção para contrastar a “prudência” e a “arte”, sendo que esta última, por visar uma produção – um fim outro que não ela mesma – já poderia ser, no limite, associada à poiésis. O conceito de práxis apresentou diversos desenvolvimentos posteriores. Nos tempos modernos, o conceito de práxis já se mostrará vinculado pela primeira vez à moderna Dialética com o hegeliano de esquerda Cieskówski. Sobre isto, ver o capítulo V de AVINERI, Shlomo. O Pensamento Social e Político de Karl Marx. Coimbra: Editora Coimbra, 1978. Para uma boa edição da Ética a Nicômaco, ver ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In. Os Pensadores, IV. S. Paulo: Abril Cultural, 1973. 3 Vamos nos referir neste artigo a duas situações. A expressão Materialismo Histórico será empregada para nos referirmos a este paradigma historiográfico e sociológico inaugurado por Marx e Engels e continuado por inúmeros outros autores, admitindo um grande número de variações. A expressão “Marxismo” será empregada no sentido de um programa de ação política que visa o estabelecimento do socialismo, e que também apresenta inúmeras variações. Quando utilizarmos a expressão “pensamento marxiano”, estaremos nos referindo a posições e pensamentos específicos de Marx. diferentes significados. Tem-se a “práxis” como “ação revolucionária” (“mudar o mundo, além de interpretálo”, como diz a Tese sobre Feuerbach n°11).4 Tem-se a “práxis” como o caráter ativo e consciente que se estabelece sobre o perceber, o pensar e o fazer humanos (uma relação com a realidade que se coloca como “atividade prático-sensível”, tal como propõe a Tese sobre Feuerbach n°1). E, por fim, tem-se a “práxis” como a própria atividade que permitiu ao homem, como espécie animal, mudar o mundo e a si mesmo através do “trabalho”.5 Estes três sentidos para práxis aparecem em textos de Marx, e de alguma maneira os três convergem para a noção de que a práxis é um agir consciente que integra a teoria e a prática.6 De todo modo, há uma trajetória conceitual que pode ser recuperada para favorecer uma melhor compreensão desta importante noção que foi incorporada pelo Materialismo Histórico.7 A história da palavra remete aos ambientes filosóficos da Grécia Antiga, nos quais a praxis habitualmente se opunha tanto à theoria (uma atividade contemplativa) como à poiesis (uma atividade que convergia para a produção de objetos, para a produção material, para os fazeres dela decorrentes). Entre estas duas instâncias humanas do pensar e do fazer, que eram a Theoria e a Poiesis, a Praxis remontava a uma terceira instância que correspondia ao “agir” 8 , e mais 4 MARX, Karl. Thèse sur Feuerbach. Paris: Gallimard, 1982. Cf. KONDER, Leandro. O Futuro da Filosofia da Praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p.97. Frequentemente Marx pensará aqui, tal como ocorre nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), na capacidade industrial (a dimensão “faber” do homem) que o conduziu até uma sociedade industrial capaz de “humanizar a natureza” (isto é, de dotar as coisas exteriores e o mundo de uma forma humana). O próprio homem vê-se em seguida “naturalizado”, porque inscrito de corpo e alma nesta natureza que ele mesmo humanizou. 6 O trabalho alienado, por exemplo, não corresponde a uma práxis, mas apenas a uma prática. 7 Em Marx, um dos textos indicados para apreender os sentidos possíveis de práxis é o pequeno conjunto de comentários escrito em 1845 e que recebeu o título de Teses sobre Feuerbach. Esta pequena obra de duas páginas de grande intensidade filosóficas não foi publicada durante a vida de Marx. Encontradas por Engels nos Cadernos do amigo já falecido, o antigo aliado intelectual de Marx resolveu publicá-las em 1888 como apêndice de seu próprio livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. São Paulo: Edições Sociais, 1977). Chamou atenção para o extraordinário valor desta pequena obra, que revelava de forma concentrada uma faceta mais filosófica de Marx que não era muito conhecida do público (lembremos que a Ideologia Alemã também não tinha sido ainda publicada, pelo menos em sua forma completa, e tampouco os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, o que só ocorreria no século XX). 8 O verbo “Agir”, relacionado à produção da “atividade”, deriva de 5 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (68-72) - 69 especificamente à “ação que se realizava no âmbito das relações entre as pessoas, a ação intersubjetiva, a ação moral, a ação dos cidadãos”, sendo por isso que Aristóteles costumava associar a Práxis às atividades 9 “ética” e “política”. Para os gregos antigos, o homem está longe de ser concebido apenas homo sapiens – um conceito que só coloca em relevo o aspecto da Theoria ou da capacidade de abstração. Para além da sua propalada capacidade de pensar, ou de teorizar, o homem também se distingue dos animais por ser um homo faber (um “homem que fabrica”, isto é, que se desenvolve em uma dimensão ligada à Poiésis), e um homo prákticus (um “homem que age”, isto é, cujo existir associa-se inevitavelmente à Práxis). Os desdobramentos da dimensão de Práxis que se integra ao homem são muitos. É a Práxis que o mergulha na história e na necessidade de escrever a História – pois, ao contrário dos objetos fabricados que são produzidos pela Poiésis, as ações realizadas através da Práxis desapareceriam sem deixar vestígios, se os poetas e historiadores não as registrassem.10 É também a Práxis, ainda acompanhando o pensamento de Aristóteles, que permite afirmar que “o homem é por natureza um animal político (zoon politikon)”, um homem que, através da práxis, realiza-se na comunidade política (a pólis). 1 1 Mas os desdobramentos mais importantes da percepção da instância da Práxis são aqueles que dizem respeito a seus modos de interação com as outras duas instâncias (a Theoria e a Poiésis), uma vez que o homem não pode se realizar integralmente – tornar-se um ser completo – sem uma interação adequada entre estas dimensões que o constituem e o singularizam. Isolar uma das três instâncias é produzir “alienação” – este estado ou aspecto que corresponde a outro conceito importante do 12 Materialismo Histórico. De qualquer maneira, as formas de oposição e de interação entre a Teoria e a Práxis dois outros: agere (por em movimento) e gerere (gerar, criar). Distingue-se, todavia, do verbo facere – relacionado à poiésis – que se refere à atividade executada em um determinado instante, com vistas a determinados fim e à produção de um produto concreto, pontual, bem definido. “Agir”, ao contrário, pressupõe a “atividade” no seu sentido contínuo. 9 Em Aristóteles, uma distinção entre práxis e poiesis pode ser encontrada nos capítulos IV e V da Ética a Nicômaco. Sobre isto, ver BESNIER, Bernard. A Distinção entre Práxis e Poiêsis em Aristóteles. Analytica. Vol.1, n°3, 1996, p.126. 10 Aristóteles vai discorrer sobre isso na Poética (1448b25 e 1450a1622). Sobre o assunto, ver ARENDT, Hannah. “O Conceito de História – antigo e moderno” in: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.73-78. Para uma edição da Poética, cf. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1993. 11 Marx retoma esta definição de Aristóteles (“o homem é um animal político”) nos Grundrisse. O fundador do Materialismo Histórico dirá: "O homem é, no sentido mais literal, um zoon politikon, não apenas um animal social-gregário (geselliges Tier), mas também um animal que pode se individualizar (sich vereinzeln) na sociedade" (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. Berlim: Dietz, 1953, p.45). Naturalmente que ele explora desta definição implicações totalmente diversas daquelas que foram conduzidas por Aristóteles na Política (Livro I – capítulo I), na qual o filósofo grego procura justificar a escravização como uma situação natural. Para uma edição da Política de Aristóteles, cf. ARISTÓTELES. Política. Brasília: UNB, 1997. (a “Contemplação” e a “Ação”) tornaram-se desde os gregos um objeto de intensa inquietação filosófica, atravessando a Idade Média e o Renascimento, até atingir a segunda Modernidade (século XIX em diante).13 Marx irá desde logo perceber a riqueza do conceito de “praxis”, um agir que pode se estabelecer entre o “pensar” e o “fazer” (ou também se impor como resultado dialético do confronto entre estas duas instâncias) e incorporar algo de ambos. Ao mesmo tempo, tal como dá a perceber Leandro Konder em um dos seus mais importantes estudos sobre Marx, “a práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si 14 mesmos”. Todavia, existem variações para os usos desta expressão nos escritos deste “filósofo da praxis” que foi Karl Marx. Melhor dizendo, Marx em momentos diversos, esmera-se em chamar atenção para aspectos diversificados da Práxis. Procuraremos refletir sobre alguns destes aspectos. Investiremos, por ora, em uma representação visual para o círculo dialético que envolve as três instâncias constitutivas da relação que se estabelece entre o Homem e a Realidade que ele mesmo transforma. Não importa aqui considerar quem – entre a Poiésis e a Theoria – desempenha o papel de “Tese” e de “Antítese” (e desde já salientemos que este esquema 12 O conceito de “alienação”, com sentidos diversos, já aparece em filósofos como Fichte e Schelling, e irá adquirir uma especial importância em Hegel, que o utiliza para indicar a separação do Espírito (em sua manifestação material) em relação a si mesmo, considerando que a história seria o próprio processo através do qual o Espírito toma consciência de si mesmo. Para o jovem Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o estudo da alienação irá adquirir especial interesse, e o conceito aparecerá com o duplo sentido de “estranhamento” e de perda de consciência. Marx examina várias formas de alienação, em obras diversas. A alienação religiosa implicaria na separação do indivíduo humano em relação ao mundo real (daí Marx declarar que “a religião é o ópio do povo”). O processo de desnaturalização do homem (no sentido de espécie humana) teria produzido a alienação do homem em relação à Natureza. A alienação política produz no indivíduo humano a perda de consciência em relação aos seus interesses de classe. Sobretudo, a partir de 1845, Marx estará particularmente preocupado com a alienação produzida pela reificação do trabalhador no sistema capitalista – esta que o reduz a mero objeto ou instrumento no sistema de produção capitalista e que é produzida pela conversão de sua força de trabalho em simples mercadoria. A alienação do trabalhador produzida pela fragmentação do trabalho na unidade produtiva, isolando-o em uma poiésis separada da práxis e apartando-o de uma consciência em relação ao que ele mesmo produz, é um destes aspectos. 13 Giordano Bruno (1548-1600), por exemplo, concebe o homem como um ser que combina necessariamente a teoria e a prática, isto é, como um ser atravessado pela praxis: “A Providência determinou que ele [o homem] seja ocupado na ação pelas mãos e na contemplação pelo intelecto, de maneira que não contemple sem agir e não aja sem contemplar” (apud KONDER, Leandro. O Futuro da Filosofia da Praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p.100). 14 KONDER, Leandro, O Futuro da Filosofia da Praxis, p.115. Konder prossegue: “É a ação que, para se aprofundar de maneira mais consequente, precisa de reflexão, de autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática” Neste sentido, a interligação entre práxis e teoria – uma interligação necessária – é “uma característica que distingue a práxis das atividades meramente repetitivas, cegas, mecânicas, 'abstratas'” (KONDER, op.cit, p.115). A mera poiésis sem vir acompanhada de consciência e de liberdade não consegue interagir com a práxis. 70 - ARTIGO - Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx constitui apenas uma primeira aproximação), mas o que interessa mesmo, neste momento, é dar a compreender a Praxis como a “Síntese” que permite superar a Theoria e Poésis nos momentos em que estão isoladas uma 15 da outra: ANTÍTESE TESE POIÉSIS THEORIA SÍNTESE Figura Três instâncias do encontro entre o Homem e o Mundo PRÁXIS Nas primeiras obras de Marx, a práxis é preferencialmente descrita como uma atividade humana “prático-crítica”, que nasce desde cedo das relações entre o homem e a natureza, esta extensiva ao meio social.16 Neste sentido, a práxis expressa o poder que o homem tem de transformar o ambiente externo, isto é, tanto a natureza como o meio social em que está inserido. Nas Teses sobre Feuerbach de Marx (1845), obra que Engels aponta como a primeira na qual o Materialismo Histórico começa a se apresentar como um sistema coerente, a proposta de uma práxis revolucionária também adentra o cenário teórico elaborado por Marx, terminando por se celebrizar na frase terminal na qual Marx diz: “os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo; cabe a nós transformá-lo” (tese n°11). É também nas Teses sobre Feuerbach, particularmente na Tese n°5, que Marx expõe as bases de uma teoria do conhecimento centrada no conceito de “práxis”. A argumentação de Marx parte da crítica de que Feuerbach não considerava o conhecimento do mundo sensível como atividade prática, isto é, como atividade que transforma a realidade apreendida. Para Marx, o conhecimento não deve ser visto como processo contemplativo ou passivo no qual o objeto é apreendido pelo 'sujeito de conhecimento'. Tampouco o conhecimento será visto como processo no qual o sujeito produz o objeto a partir de suas idealizações. O conhecimento, postulará Marx, é uma “atividade”, e particularmente uma atividade concreta, uma “prática”.17 Deste modo, está inscrita na concepção original do Materialismo Histórico a possibilidade, e na verdade a 15 Para Marx, são alienados o homem que se isola na Theoria – um filósofo meramente contemplativo, por exemplo – e também o homem que é aprisionado nos limites da Poiésis sem que lhe seja permitido interagir com a Theoria e a Práxis, tal como pode ocorrer com a alienação do trabalho no mundo capitalista. A Práxis, contudo – em um dos sentidos específicos que Marx lhe dá – liberta o homem da possibilidade da alienação. 16 Já vimos que entre os antigos gregos, a “práxis” correspondia ao processo no qual uma teoria ou habilidade era executada ou praticada, convertendo-se em experiência vivida e transformadora – um sentido que também estará presente em alguns textos de Marx, notadamente naqueles que se referem ao problema da “alienação”. 17 Sobre isto, ver o primeiro capítulo de SHAFF, Adam. Verdade e História. São Paulo: Martins Fontes, 1978. necessidade, de que a teoria se altere dialeticamente no seu confronto com a realidade, o que autorizaria, segundo o que está implícito nas teses de Marx, reformulações várias, tantas quantas necessárias, no sistema conceitual do Materialismo Histórico, o que seria levado adiante por alguns de seus sucessores mais criativos. Ao contrário, não estaria autorizado por esta concepção o dogmatismo, a imobilização conceitual, ou a transformação do sistema teórico-metodológico do materialismo histórico em mera “doutrina” ou simples “programa de ação política” – o que teria precisamente acontecido em certos desenvolvimentos posteriores do chamado “marxismoleninismo”. A interação entre teoria e ação através da práxis constitui um aspecto primordial para a compreensão do Materialismo Histórico, tal como o concebia Marx, e desde já podemos chamar atenção para o primeiro equívoco que pode surgir no entendimento deste conceito, que é o de confundir “práxis” com “prática”. Tal como têm observado alguns dos maiores analistas de Marx – e podemos citar os nomes de Leandro Konder e Arrigo Bortolotti18 – esta confusão indevida e inaceitável tem permitido interpretações deturpadas em torno da tese n°11 sobre Feuerbach (atrás mencionada). Não se trata de deixar de interpretar o mundo para, a partir de Marx, apenas nos ocuparmos da transformá-lo. Na verdade, é impossível transformar o mundo sem interpretá-lo, e a interpretação que não corresponde a uma transformação é desde já uma abstração inútil. O fundador do Materialismo Histórico insurge-se, aliás, precisamente contra estas interpretações desprovidas de uma “terrenalidade” (para utilizar uma expressão de Marx nas Teses sobre Feuerbach). Mas estará longe de sancionar a confusão entre “prática” e “praxis”, de modo que para ele não teria qualquer sentido dizer que a teoria não seria mais necessária pois o importante seria o “mergulho pragmático na ação política revolucionária”.19 Mesmo na esfera do ativismo político, o componente da interpretação é fundamental por proporcionar a autocrítica e a revisão dos objetivos. Interpretar o mundo ao mesmo tempo em que o transformamos; e transformar o mundo com plena consciência (isto é, interpretando concomitantemente a ação de transformar o mundo). Este seria o sentido da última Tese sobre Feuerbach (1845). Quando examinamos as reflexões de Marx em torno do conceito de Práxis, desde as primeiras obras, como é o caso dos Manuscritos Econômico-Filosóficos 20 (1844) , chegando até as obras de maturidade, entre as 18 KONDER, Leandro. Marxismo e Alienação. São Paulo: Expressão Popular, 2009; e BORTOLOTTI, A. Marx e il Materialismo. Palermo: Palumbo, 1976. 19 KONDER, O Futuro da Filosofia da Praxis, p.124. 20 Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) só viriam a ser publicados em 1932, causando uma grande sensação na intelectualidade marxista por ocasião de sua tardia concretização editorial. Na verdade, estes escritos haviam sido elaborados por Marx para seu “auto-esclarecimento”, conforme as palavras do próprio autor, e não visavam publicação. Além disto, muitas páginas se perderam, o que reforça o caráter fragmentário deste fascinante conjunto de textos que traz à tona a dimensão filosófica do pensamento de Marx. Ente as maiores lacunas do texto, está a ausência da maior parte do 2° Manuscrito, que era uma parte particularmente História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (68-72) - 71 quais O Capital (1867)21, também nos deparamos com a sua posição valorativa em relação à Poiésis. Conforme dizíamos atrás, além da Theoria e da Práxis, outra categoria importante para a filosofia grega era a Poiésis, que correspondia ao fazer mais concreto, aquele que 22 conflui para a produção material. Ao mesmo tempo em que Marx traz a práxis para uma centralidade que se relaciona à possibilidade de transformar conscientemente o mundo, seja através da recuperação de uma consciência que deve ser aplicada à vida, seja através da ação revolucionária, não devemos esquecer que Marx também trouxe para o centro de sua análise histórica a poiésis, esta esfera que se relaciona ao Trabalho.23 O Trabalho torna-se uma categoria tão primordial para os fundadores do Materialismo Histórico, que Engels chegará a dizer que “o Trabalho criou o Homem” – afrontando a tradicional frase de que “Deus criou o Homem”.24 Com isto, o que distinguirá o homem dos demais animais não é mais o fato de que ele pensa (homo sapiens), e tampouco ele será definido aristotelicamente como um “animal político” e um “animal discursivo”. O homem será agora um animal 25 laborans, um “animal que trabalha”. Além disto, a história passará a ser vista por Marx sob a perspectiva dos importante. De todo modo, os Manuscritos causaram sensação quando foram publicados, póstuma e tardiamente. Revelam-se aqui as preocupações profundamente humanistas de um Marx atento à dilaceração da humanidade através da divisão social do trabalho, aos modos como o homem se relaciona com a natureza e o mundo social transformando-os e transformando a si mesmo em um único gesto, e às possibilidades de superar a alienação através de uma postura revolucionária. Para uma edição da obra em português, ver MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 21 MARX, Karl. Le Capital. Paris: Garnier Flammarion, 1969. 22 Na Mitologia Greco-Latina, o “deus da poiésis” era Vulcano (o Hefesto dos gregos), que possuía uma habilidade inexcedível para fabricar objetos e utensílios. Também era o “deus do fogo”, através do qual podia trabalhar artesanalmente com todos os materiais, dotandolhes de uma forma e, em muitos casos, imprimindo a cada objeto forjado uma funcionalidade. 23 O “trabalho”, uma categoria central para o Materialismo Histórico de Marx, também abre algumas possibilidades para nos avizinharmos do conceito de práxis. Vamos lembrar, a propósito, que o Trabalho, que corresponde ao modo como o homem transforma o mundo à sua volta, é apresentado nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) como o ponto de partida original da Praxis – esta que, no entanto, o supera posteriormente, à medida que o “estar” no mundo se sofistica. É neste sentido que o filósofo tcheco Karel Kosik (1926-2003), em seu livro Dialética do Concreto, irá chamar atenção para o fato de que a praxis manifesta-se não apenas na “atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais”, mas também na “formação da própria subjetividade humana” (KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p.204). Nesta perspectiva, a práxis pode ser compreendida como a mediadora entre o indivíduo, a natureza e a sociedade, atentando para o fato de que é através dela que os seres humanos conferem sentido e transformam a realidade, o que implica tanto na possibilidade de transformá-la objetivamente como também de transformá-la fazendo-a passar através da subjetividade, dotando-a de novos sentidos. A própria realidade, para Karel Kosic, não é mais do que uma “práxis humana objetivada”. 24 A frase aparece em um texto de Engels intitulado: “The Part played by the Labor in the Transition from Ape to Man” (ENGELS, Friedrich. “The Part of the Labor in the Transition from Ape to Man” in MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Selected Works. London: The MacMillan Press, 1950. vol.II, p.74). verdadeiros sujeitos da poiésis: os trabalhadores. Embora o Trabalho, que corresponde à produção da vida material, possa ser examinado da perspectiva daqueles que os gerenciam e controlam – estes que, no mundo moderno, são os capitalistas – não é esta perspectiva, tão típica da história burguesa, aquela que Marx toma para si. O Trabalho – que para Marx é a atividade de autocriação do homem – é abordado aqui da perspectiva de que aqueles que efetivamente o realizam podem se tornar os verdadeiros sujeitos da história. Assim como através do Trabalho o ser humano modifica o mundo e modifica a si mesmo, também os trabalhadores, através do seu “fazer” – da sua poiésis – terminam por se modificar as próprias 'forças produtivas' das quais participam como os principais 'agentes de produção'. Das condições de trabalho que são impostas aos t r a b a l h a d o r e s , e s t e s t e r m i n a m p o r t i r a r, contraditoriamente, a sua força. Assim, se a Fábrica aglomera os homens para atingir a maior eficácia de uma produção em série, isto também favorece a formação de vínculos de solidariedade e proximidade que se tornarão fundamentais para a sua organização social com vistas a assumir uma posição consciente na 'luta de classes'. As condições para uma coesão que favoreça a emergência de uma “consciência de classe” podem não se dar em determinado grupo social, tal como demonstra a análise desenvolvida por Marx em Dezoito Brumário (1852)26, na qual o fundador do Materialismo Histórico procura mostrar que o campesinato francês, nos episódios que conduziram à entronização de Luís Bonaparte, não chegara a se constituir em “classe-para-si” em função do seu isolamento. Marx, filósofo engajado através de uma práxis que pretende modificar o mundo na direção de uma sociedade sem a dominação de classes, pretende contribuir também para a organização classista dos sujeitos históricos da poiésis, que em sua época apresentam como vanguarda o proletariado. Este é o sentido de seu forte engajamento na organização da 27 Internacional dos Trabalhadores. Em Marx, a práxis é concebida em interação com a theoria e com a poiésis. O “agir” da práxis deve dissolver a mera “contemplação” 25 ARENDT, Hannah. “A Tradição e a Época Moderna” in: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p.48. 26 MARX, Karl. “O 18 Brumário” in A Revolução antes da Revolução – o 18 Brumário, as lutas de Classe na França, e a Guerra Civil na França. São Paulo: Expressão Popular, 2008,p.199-338. 27 Marx participa da organização da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864, em Londres, a princípio mais discretamente, mas já ocupando um cargo de “Secretário pela Alemanha”. Depois que a Internacional se estabelece, ele acabará se tornando o principal articulador desta organização. Depois de sete anos, em 1872, após o contexto da violenta repressão da Comuna de Paris, a Primeira Internacional iria se dissolver. O último Congresso, em 1872, será marcado pela oposição entre Marx e Bakunin. O movimento internacional dos trabalhadores iria se reativar mais tarde, mas em 1889 ocorreria uma cisão no movimento, e a facção marxista terminará por fundar uma nova organização, que ficaria também conhecida como 2ª Internacional. Em desenvolvimento posterior, a 2ª Internacional assumiu uma orientação social-democrata, de modo que Lênin, discordando dos caminhos não-revolucionários propostos pela nova orientação, terminou por fundar uma 3ª Internacional (a Internacional Comunista). Mais tarde (1938), seria criada uma 4ª Internacional pela dissidência inaugurada por Trotsky. 72 - ARTIGO - Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx para a qual pode deslizar a teoria, e ao mesmo tempo tem por tarefa despertar a poiésis da “alienação” que lhe pode ser imposta. Para finalizar, vejamos de maneira mais rápida como se desenvolve o conceito de Práxis em momentos subseqüentes da História do Materialismo Histórico. Antônio Gramsci irá retomar o conceito marxiano imprimindo-lhe uma nova direção, e a práxis passa a ser compreendida como o fazer-se da própria História, o que se dá através da interferência do gênero humano nas condições ambientais (aqui sempre incluindo não apenas o ambiente natural, como também o ambiente social). Quando esteve preso durante o regime fascista italiano, Gramsci estava submetido a uma atenta censura relativamente aos seus escritos. Por isso, criou um termo substituto a partir do qual podia se referir ao Marxismo em seus escritos sem despertar suspeitas e repressões. Sintomaticamente, a expressão escolhida foi “Filosofia da Práxis”. Os fundadores do Materialismo Histórico, Marx e Engels, e também a primeira geração de marxistas que segue até Lênin e Trotsky, estavam fundamentalmente envolvidos com a idéia da práxis neste sentido mais especificado por Gramsci – isto é, a concepção de que não deveria bastar ao historiador, sociólogo ou filósofo pensar a História. Era preciso viver a História (fazer a História) e isto implicava em engajamento político direto, o que se manifesta na atuação de Marx e Engels junto à organização da Primeira Internacional. Da mesma forma, não bastaria ao revolucionário fazer a revolução, sendo necessário também pensar a Revolução – o que se expressa nas obras teóricas de Lênin e Trotsky. Mas Perry Anderson, em suas Considerações sobre o Marxismo Ocidental (1974)28, sustenta que depois teria ocorrido um singular processo no qual foram se dissociando novamente a teoria e a prática, que na concepção marxista original deveriam ser inseparáveis através da noção de práxis. Conforme Perry Anderson, a partir do final da terceira década do século XX teria ocorrido um duplo processo que afeta o desenvolvimento posterior do pensamento marxista: a bolchevização dos PCs e as pressões e repressões oriundas de governos fascistas. Com isto, um pensamento marxista que precisava recriarse a si mesmo perde apoio no seio do próprio partido com as imposições unilaterais decididas nos comitês do Partido Único, e ao mesmo tempo um meio externo repressivo dificulta o trabalho dos intelectuais de esquerda. Com isto, vai se formando um singular “Marxismo Ocidental” – um pensamento criativo, diversificado, crítico e dialético, porém em muitos casos desvinculado de uma prática revolucionária – e de outro lado, nos países sob a égide da liderança soviética, um Marxismo Bolchevista, político, prático e pobre de desenvolvimentos teóricos, chegando às esquematizações impostas por Stalin a golpes de martelo e à custa do silenciamento de todos aqueles que pensassem diferente do que havia sido decidido nos 28 ANDERSON, Perry. “Considerações sobre o Marxismo Ocidental” (1974) e “Nas Trilhas do Materialismo Histórico” (1983). São Paulo: Boitempo, 2004. fóruns autorizados dos Congressos Socialistas organizados pelos bolcheviques. Estabelecia-se, assim, uma cisão. A Práxis parece cair aqui para segundo plano. De um lado temos uma vigorosa e criativa teoria desvinculada da prática, de outro lado uma prática por vezes opressiva e silenciadora das criatividades teóricas. O nosso objetivo neste artigo foi apenas o de pontuar algumas considerações sobre este complexo conceito que é o da Práxis no âmbito do Materialismo Histórico, do pensamento de Karl Marx, e do Marxismo propriamente dito. Obviamente que a complexidade de tal conceito, e a sua utilização por inúmeros autores que ajudaram a construir o Materialismo Histórico como um paradigma que admite diversas variações, requereria um estudo mais alentado para irmos além destas considerações introdutórias. Artigo recebido em 05/04/2011 Aprovado em 04/06/2011 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (73-78) - 73 A Primeira Independência do Paraguai Mário Maestri1 A pós 1810, a Revolução de Maio, em Buenos Aires, buscou dois grandes objetivos: emancipar as regiões da bacia do Prata do poder político e do tacão comercial espanhol e submetê-las a Buenos Aires. Logo após o mote autonômico, os revolucionários enviam às demais províncias do vice-reinado mensageiros propondo a adesão à Junta portenha. Para Santa Fé, Corrientes e Asunción, foi enviado o coronel do Regimento Voluntário de Milícias de Costa a Baixo, o paraguaio José Espínola y Peña, com ordem de organizar a deposição do governador-intendente do Paraguai e das Missões, Bernardo de Velasco y Huidobro [c. 1765-c. 1822], e com a credencial secreta, segundo ele, de Comandante Geral das Armas do Paraguai. O profeta irredentista não teve boa acolhida em sua terra, pelo conteúdo de sua proposta, mais do que por seu conhecido caráter autoritário e truculento. De volta a Buenos Aires, após fugir da província para não ser preso, Espínola declarou que eram muito fortes as forças autonomistas pró-Junta de Maio em sua pátria pequena, bastando uma força de uns duzentos soldados para por fim ao governo realista.2 Em 24 de julho de 1810, reuniu-se assembléia [Junta General de Vecinos, no Colégio Seminário de Asunción, com duzentos representantes do Cabildo, de forte orientação realista; do exército; do clero; da administração; das profissões liberais; das corporações; dos comerciantes; dos grandes proprietários de terra da capital e do interior, sob a presidência do governador. Devido ao caráter censitário da convocação, não participaram da assembléia representantes dos chacareros, dos pueblos nativos, dos pequenos comerciantes – ou seja, delegados do povo médio e miúdo do Paraguai. A reunião dava-se para decidir como se comportaria a província, devido à prisão-renúncia do soberano espanhol Fernando 7º e à designação do irmão de Napoleão Bonaparte como novo soberano espanhol. Sob a proposta do governador Bernardo de Velasco e das autoridades instituídas, favoráveis à Espanha, apoiadas pelo cabildo, a assembléia decidiu o reconhecimento-fidelidade ao Supremo Conselho da Regência, que substituía o poder real espanhol, enquanto de seu impedimento; a manutenção de “armoniosa correspondência y fraternal amistad”, no mesmo pé de igualdade, com a Junta Provisional de Buenos Aires, desconhecendo assim a primazia da ex-capital do vice1 Programa de Pós-Graduação em História, UPF, RS. [email protected]. 2 CHAVES, Julio César. El Supremo Dictador: biografia de José Gaspar de Francia. 5 ed. Asunción: Carlos Schauman, 1985. p. 93. reinado. Naquele momento, o partido real propunha que Buenos Aires formara uma junta por que, na época de sua constituição, não sabia da formação do Conselho de Cadiz. No caso do povo da província paraguaia, no conhecimento daquele órgão supremo, restava apenas jurar obediência ao governo metropolitano instituído. A reunião vicinal constituiu igualmente uma Junta de Guerra, sob a direção do coronel espanhol Pedro Garcia, para fazer frente à ameaça luso-brasileira – mais tarde, o coronel fugiria para os quartéis portugueses no Mato Grosso, para pedir ajudada contra os patriotas paraguaios.3 Com o vazio de poder em Espanha, a esposa de dom João, a princesa espanhola Carlota Joaquina de Bourbón, irmã mais velha do soberano espanhol na prisão, pensava governar como regente o vice-reinado do Prata. Nos fatos, o governador do Paraguai preparava a guerra contra a Junta de Buenos Aires – e não contra os lusitanos, possíveis aliados contra os autonomistas portenhos. Nesse momento, não houve intervenção política autônoma significativa dos criollos paraguaios, que se associaram ao partido espanholista e realista para barrar o avanço colonizador portenho. O Doutor Francia A única voz dissonante que se escutou na Junta General de Vecinos, de 24 de julho de 1810, duramente rejeitada pela assembléia realista, foi a do doutor José Gaspar de Francia [1776-1840], que despontou como representante do partido patriota intransigente: Esta Asamblea no perderá su tiempo debatiendo si el cobarde padre o el apocado hijo es rey de España. Los dos han demostrado su débil espíritu y su desleal corazón. Ni el uno ni el otro puede ser ya rey en ninguna parte. Más sea o no rey de España el uno o el otro, ¿qué nos importa a nosotros? Ninguno de ellos es ya rey del Paraguay. El Paraguay no es el patrimonio de España, ni provincia de Buenos Aires. El Paraguay es Independiente y es República, la única cuestión que debe discutirse en esta asamblea y decidirse por mayoría de votos es: cómo debemos defender y mantener nuestra independencia contra España, contra Lima, contra Buenos Aires y contra Brasil; cómo debemos fomentar la pública prosperidad y el bienestar de todos los habitantes del Paraguay; en suma, qué forma de gobierno debemos adoptar para el Paraguay.4 3 Id.ib. p. 279. VILABOY, Sergio Guerra. “El Paraguay del doctor Francia”. bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/critica/nro5/VILABOY.pdf. p. 3. 4 74 - ARTIGO - A Primeira Independência do Paraguai A junta de Buenos Aires respondeu imediatamente à decisão de Asunción – enviou o paraguaio Juan Francisco Arias à província, para convencer seus patrícios da vantagem da adesão ao movimento autonomista e retaliou o comércio da província. Em setembro de 1810, uma flotilha paraguaia foi obrigada a descer o rio Paraná para libertar oito embarcações provinciais detidas em Corrientes. Ela serviu também para reconquistar a posse de Curupayty, questionada por Corrientes, e restabelecer o domínio sobre alguns tributários do rio Paraná. Então, como a exprovíncia do Paraguai não se submetia pelas buenas, a oligarquia liberal-mercantil portenha em ascensão optou pelas malas. Informado sobre as decisões do governo paraguaio, a junta portenha bloqueou o acesso fluvial à província rebelde; decretou o fim da jurisdição paraguaia sobre as Missões; enviou conspiradores para organizarem as forças pró-portenhas, que promoveram diversas pequenas conspirações em Asunción, Concepción, Itae Yaguarón.5 Finalmente, a junta portenha enviou contra a província rebelde expedição militar comandada por Manuel Belgrano [1770-1820], secretário perpétuo da Junta de Comércio de Buenos Aires, responsável pela abertura do porto daquela cidade ao comércio internacional, secundado por dois paraguaios. As instruções dadas a ele por Mariano Moreno eram claras e duras. Manuel Belgrano deveria “poner al Paraguay 'en completo arreglo', remover el Cabildo y a las autoridades, colocar en su reemplazo hombres de entera confianza, y expulsar del país a los vecinos sospechosos. Si hubiese resistencia de armas 'morirán el Obispo, el Gobernador y su sobrino con los principales causantes 6 de la resistencia.'” Manuel Belgrano era fino político, sem experiência militar. Contando com os fortes apoios entre as classes crioulas paraguaias prometidos por José Espínola y Peña, esforçou-se inutilmente para apresentar a intervenção como destinada a libertar a província dos espanhóis. Entretanto, o ressentimento paraguaio era maior com os comerciantes portenhos do que com os administradores espanhóis. A Junta enviou também ao Paraguai Juan Francisco Aguero, natural daquela província, para convencer seus patrícios dos benefícios da submissão, lembrando-lhes as “ventajas de nuestra unión y los males a que el Paraguay quedará expuesto, si continua dividido, pues aislado, y sin su comercio [...].”7 Grandes facções Em 1811, defrontavam-se na província do Paraguai quatro grandes facções político-sociais. A primeira, a espanholista opunha-se à Junta de Buenos Aires e era favorável ao Conselho da Regência e à dependência à Espanha. Ela constituía-se sobretudo com funcionários, comerciantes e grandes proprietários 5 WHITE, Richard Alan. La primera revolución popular en America: Paraguay (1810-1840). 2 ed. Asunción: Carlos Schauman, 1989. p. 41. 6 CHAVES. El Supremo Dictador. Ob.cit. p. 97. 7 GARAY, Blas. El comunismo de las Misiones; La revolución de la Independencia del Paraguay. Asunción: Instituto Colorado de Cultura, 1975. p. 145 et seq. espanhóis, que dependiam do poder metropolitano para manter seus privilégios. A segunda, portenhista era favorável à Junta de Buenos Aires e, portanto, à manutenção do Paraguai como província de uma federação, com capital no grande porto. Ela era constituída principalmente por comerciantes locais ligados ao comércio portenho. A terceira grande facção era o partido criollo, formado pelos patriotas autonomistas, capitaneado por membros das famílias de colonizadores, grandes proprietários de terra, dedicadas à agricultura e sobretudo ao pastoreio. Ele opunha-se ao domínio espanhol e portenho e era favorável à independência ou a uma confederação, na qual as ex-províncias mantivessem real autonomia. Os criollos mobilizavam-se para emanciparse dos pesados tributos portenhos, mas temiam rompimento pleno com Buenos Aires, pois almejavam acrescer as exportações através daquele porto de ervamate, tabaco, açúcar, aguardente, madeira, mercadorias, que escoavam parcialmente.8 Os proprietários criollos defendiam a manutenção e o aprofundamento das relações comerciais, nas melhores condições possíveis, com Buenos Aires. “Este grupo, en lo referente a la ideología, desechaba lógicamente toda concepción de un Estado igualitario, condicionado como estaba por su posición privilegiada, en un país con numerosos pequeños y medianos agricultores.”9 Mesmo se encontrando mais próximos do que os espanholistas, os proprietários criollos possuíam claros antagonismos com os pequenos proprietários – chacareros –, no relativo ao controle das terras e da mão de obra. Divergiam, igualmente, no que se refere às relações desejadas com a oligarquia comercial de Buenos Aires. A quarta grande facção era formada pelos medianos e pequenos agricultores e criadores proprietários e arrendatários. Igualmente adictos aos direitos de propriedade, tinham suas explorações orientadas essencialmente ao auto-consumo e ao comércio local. O import-export e as relações com Buenos Aires eram-lhes questões estranhas, que podiam dificultar suas existências. Envolvimento nas disputas da bacia do Prata significaria igualmente arrolamento nos exércitos da força de trabalho familiar, com seqüelas terríveis para as pequenas e médias explorações e propriedades. O abatimento das barreiras alfandegárias e as importações desenfreadas assentariam fortes golpes à 10 produção doméstica, artesanal e pequeno mercantil. Os pequenos e médios proprietários sofriam comumente a pressão dos estancieiros criollos sobre suas terras, seus gados, seus direitos de pastagem. Essa sociedade camponesa necessitava igualmente de terras que sustentassem sua expansão demográfica. Os pequenos e médios arrendatários sonhavam independizar-se das rendas pagas aos grandes proprietários e dos impostos devidos ao Estado. Esses 6 HEINZ, Peters. El sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta 1865. Asunción: Instituto Cultural Paraguayo-Alemán, 1996. p. 29. 9 Loc.cit.. 10 Loc.cit. História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (73-78) - 75 segmentos tinham relações de sangue, familiares e territoriais com os peões desprovidos de terra, que trabalhavam eventualmente em suas propriedades, sem confundir-se com os mesmos. Eram importantes as comunidades que viviam da exploração de suas terras comunitárias.11 Unidade diante do Portenho Manuel Belgrano e o seu pequeno Exército Libertador de uns mil e cem homens cruzaram as fronteiras da província do Paraguai sem conhecer as adesões prometidas pelo coronel paraguaio José Espínola, enquanto seus soldados desertavam. O que obrigou o comandante geral portenho a reconhecer que, recebido como conquistador, apenas à “fuerza de balas” se imporia sobre os “selvagens paraguayos”. Na eventualidade de resistência paraguaia à libertação portenha, as ordens determinadas a Manuel Belgrano e Echeverría pela Junta de Buenos Aires eram claras: “[...] que la provincia del Paraguay debe quedar sujeta al Gobierno de Buenos Aires como lo están las Provincias Unidas”. Acompanhavam a expedição portenha alguns poucos paraguaios natos. Após vencer frágil resistência realista, em 19 de dezembro de 1810, na batalha de Campichuelo, na travessia do rio Paraná, o destacamento portenho enfrentou o governador Bernardo de Velasco e o coronel Garcia, no comando das forças da província do Paraguai, em 19 de janeiro de 1811, na batalha de Paraguarí, próxima da aldeia do mesmo nome, que se formara em torno de antigo colégio jesuítico, a pouco mais de cem quilômetros da capital. As forças mostravam-se desequilibradas em favor dos paraguaios, que contavam com seis mil soldados, enquanto os portenhos, sem adesões na província rebelde, não alinhavam, nesse momento, mais do que dois mil homens. Porém, os paraguaios eram em geral milicianos, ou seja, camponeses arrolados como combatentes, sem experiência militar e não raro apenas armados com “lazos e bolas”, armas e instrumentos de trabalho tradicionais dos guaranis, enquanto os portenhos, soldados fogueados, com bom armamento, enquadrados por 12 oficiais competentes. Inicialmente, a sorte sorriu novamente ao enviado de Buenos Aires e às suas tropas, devido à facilidade com que dispersaram as forças realistas e a rapidez com que o governador Velasco, o coronel Garcia e os oficiais espanhóis fugiram em direção de Asunción. Na capital, apenas correm boatos sobre a possível derrota, espanhóis e espanholistas embarcam-se com seus familiares e bens em dezessete navios, prontos para partirem para Montevidéu, coração do partido realista.13 Porém, a batalha foi salva pelo esforço dos oficiais e combatentes crioulos. O confronto, que durou quatro horas, não teria sido muito violento, pois não morreram mais do que trinta combatentes, no total. Como visto, 11 Id.ib. p. p. 31. DEMERSAY, Alfred. “El doctor Francia, Dictador del Paraguay.” RENGGER; CARLYLE; DEMERSAY. El doctor Francia. Asunción: El Lector, 1987. p. 277 13 CHAVES. El Supremo Dictador. Ob.cit. p.98 12 Manuel Belgrano contara com a adesão dos patriotas e liberais provinciais e, possivelmente, subestimara a belicosidade paraguaia. Os heróis do confronto foram os crioulos Fulgencio Yegros, Manuel Atanasio Cabañas e Juan Manuel Gamarra. Após o fracasso, Manuel Belgrano recuou para o rio Tacuarí, onde, em 9 de março de 1911, após um combate derradeiro, capitulou diante das tropas paraguaias. A batalha foi mais cruenta, com quatorze mortos paraguaios e um número certamente superior de argentinos. Antes de abandonar a província, Belgrano proclamou as vantagens de união com Buenos Aires, em um regime de livre-comércio. Nos meses que antecederam o abandono do Paraguai, ele trocara estreita correspondência com os oficiais patriotas paraguaios e, após o combate de Tacuarí, quando literalmente se rendera às tropas paraguaias, recebeu o oferecimento de armistício honroso, por parte de Manuel Atanasio Cabañas, um grande plantador de tabaco da província, interessado no fim do estanco colonial do produto. Inimigos amigos Depois do combate de Tacuarí, paraguaios e portenhos fraternizaram, para horror do governador e dos espanholistas, que criticaram, ferozmente, as concessões a Manuel Belgrano, no momento em que depunha as armas. O doutor Francia, por seu lado, também criticou duramente o armistício, temendo já a deriva portenhista.14 Segundo o historiador estadunidense Richard Alan White, foi quando dessas discussões que teria maturado a disposição entre os oficiais paraguaios, oriundos das mais ricas famílias paraguaias, de independizarem a província de Espanha. A revolta teria sido marcada para 25 de maio, aniversário do mote de Buenos Aires.15 Ainda que a campanha resultasse plenamente satisfatória à província do Paraguai, com destaque para os militares crioulos, ela teria pesado fortemente sobre a população camponesa. A mobilização de mais de dez mil paraguaios se dera “a costa de ellos mismos y con total abandono de sus particulares ocupaciones y atenciones”, pois “nunca se les efectuó a paga”, já que, após os combates, eles foram despachados pelo governador Velasco sem qualquer retribuição pelos oito meses de serviço militar. Durante a mobilização, “ganados, caballadas y carrajes, todo se tomaba y se quitaba por fuerza o de grado, y todo se consumí o se perdía sin paga, sin compensación y sin arbitrio”, como reconheceu a Junta governativa paraguaia, em oficio de 26 de setembro de 1811. Realidade que certamente contribuiria para conformar a visão política difusa da população plebéia sobre a guerra e a independência nacional.16 Os combates desprestigiaram fortemente as forças espanholistas, cobrindo ao contrário de prestígio os militares criollos. O governador Bernardo de Velasco dissolveu o exército vitorioso, requisitou as armas nas 14 Id.ib. p.99 WHITE. La primera revolución popular en America. Ob.cit. p. 43 16 GARAY, Blas. El comunismo de las Misiones; La revolución de la Independencia del Paraguay. Ob.cit.; WHITE. La primera revolución popular en America. Ob.cit. p.42. 15 76 - ARTIGO - A Primeira Independência do Paraguai mãos dos cidadãos, concentrou suas forças em Asunción, temeroso da reação de portenhistas e autonomistas, os últimos sob a direção do capitão Pedro Juan Caballero, de ilustre família crioula; do capitão espanhol Juan Valeriano Zeballos, patriota; e do doutor José Gaspar de Francia, advogado de grande prestígio. Conta a tradição que o doutor Francia, filho de mãe de velha cepa paraguaia e pai de origem luso-brasileira desconhecida, ao discutir a orientação a ser tomada diante da ofensiva portenha, colocara sobre a mesa duas pistolas, declarando que uma estava armada para combater a Espanha e a outra 17 para lutar contra Buenos Aires. Uma segunda expedição foi enviada por Bernardo de Velasco, governador espanhol do Paraguai, para ocupar Corrientes, para facilitar a coordenação da resistência com os realistas entrincheirados em Montevidéu. Porém, vergada a ofensiva portenha, dissolvia-se a aliança entre os realistas e o partido patriota autonomista paraguaio, então capitaneado pelos grandes proprietários crioulos. Enquanto pipoqueavam pequenas conspirações pró-portenhas, em Asunción e no interior, favoráveis ao fim da “eslavitud a los americanos”, expressão do espírito autonomista na região entre os patriotas, os principais militares crioulos, ponta-de-lanças dos grandes proprietários nativos, marcaram, como visto, sublevação geral. Todos contra Espanha O doutor José Gaspar de Francia participou, com destaque, desde o primeiro momento, dos preparativos do mote autonomista. Para fortalecerem-se diante dos realistas, os revolucionários envolveram na conspiração chacareros, tenderos e, até mesmo, peões agrícolas. O movimento iniciaria na antiga missão de Itapua [vila de la Encarnación], com a sublevação de Fulgencio Yegros, nomeado governador das Missões, apoiado por Manuel Atanasio Cabañas, que reuniria forças nas Cordilleras. A revolta ocorreria no dia 25 de maio, primeiro aniversário do movimento de Buenos Aires, como assinalado.18 Porém, um importante sucesso anteciparia o pronunciamento. Em 9 de maio, chegava a Asunción o tenente de dragões José de Abreu Mena Barreto [1770-1827], enviado por Diogo de Souza [1755-1829], capitão-geral do Rio Grande do Sul. Ele foi recebido por três mil manifestantes, adictos ao espanholismo, que o acompanham até a casa do governador. A princesa imperial Carlota Joaquina de Bourbón, esposa de dom João 6º, irmã de Fernando 7º, conspirava para reinar sobre o Prata, aproveitando a acefalia do trono espanhol. Em 11 de maio, José de Abreu apresentara a exigência, aceita dois dias mais tarde pelo cabildo de Asunción, todo ele adicto ao realismo, de que Carlota Joaquina fosse reconhecida como senhora do Prata, enquanto seu irmão estivesse interditado. Em sinal de submissão à Carlota Joaquina, o governador e o cabildo acordaram colocar as Missões sob a guarda portuguesa, o que diziam faria “cambiar a los Insurgentes y a sus infames Satélites”. Um grandioso baile de despedida foi oferecido no Palácio para José de Abreu, que se prepara para partir para o Rio Grande do Sul, levando as cartas de anuência do governador, do bispo e do cabildo. Diante desses sucessos, o movimento independista eclodiu em Asunción, em 14 de maio, sob o comando do capitão Pedro Juan Caballero e do tenente Vicente Ignacio Iturbe, que conquistam a adesão de algumas tropas e, com ela, o controle dos quartéis e fortes militares, sem praticamente resistência. O doutor Francia 19 participou com destaque do movimento. Possivelmente por inspiração do doutor Francia, o movimento apresentou-se sobretudo como mobilização para impedir a anexação das Missões ao Brasil e estabelecer relações menos tensas com Buenos Aires, que permitissem a retomada plena do comércio. Sequer exigiram o abandono de Bernardo de Velasco do governo da província, que, sem poder antepor-se militarmente às forças crioulas, queimou a correspondência comprometedora e acomodou-se à nova situação. Desde então, ele permaneceu secundado pelo capitão espanhol Juan Valeriano Zeballos, simpático à causa paraguaia, e pelo doutor José Gaspar de Francia, o principal intelectual paraguaio e dirigente da ala intransigente dos patriotas, desde sua atuação na Junta General de Vecinos de julho de 1810. Fim do consenso Entretanto, após a vitória das forças criollas, apoiadas pelos patriotas intransigentes e pelos segmentos plebeus, o movimento começou a explicitar suas contradições internas. Os portenhistas, que haviam conspirado durante um ano para derrotar o governador realista propuseram, na noite do dia 15, através do doutor Somellera, que se enviasse imediatamente comunicação do ocorrido a Buenos Aires. A pronta ação do doutor José Gaspar de Francia registrou o sentido de sua participação na junta revolucionária: vetou, no ato, a proposta, lembrando que não se libertavam de Espana para se 20 submeterem a Buenos Aires. Em 17 de maio, o novo governo lançou proclamação reafirmando a defesa da autonomia e da felicidade do Paraguai; reivindicando o “desgraciado soberano” Fernando 7°; convocando congresso geral; declarando a vontade de federar-se, em pé de direitos e de igualdade, com Buenos Aires e as outras províncias do Prata, baixo “un sistema de mutua unión, amistad y conformidad”; exigindo a entrega das armas e da pólvora existente em mãos de particulares, que seriam devolvida e pagas oportunamente. Um documento que o historiador paraguaio Blas Garay (1873-1899) computa possuir já “el influjo preponderante de Francia em el Gobierno”. Em sinal de boa vontade, a junta determinou o abandono da ocupação de Corrientes. Quanto a José de Abreu, representantes do novo governo foram visitá-lo, 19 Id.ib. p.105 ANDRADA E SILVA. Ensaio sobre a Ditadura do Paraguai. Ob.cit. p. 120; VILABOY, Sergio Guerra. “El Paraguay del doctor Francia”. Ob.cit. p. 4; WHITE. La primera revolución popular en America. p.46; CHAVES, Julio César. El Supremo Dictador. p. 109. 20 17 ANDRADA E SILVA, Raul. Ensaio sobre a ditadura do Paraguai: 1814-1840. São Paulo: Coleção Museu Paulista, 1978. p. 115. 18 CHAVES. El Supremo Dictador. Ob.cit. p.102 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (73-78) - 77 entregando-lhes nota diplomática na qual se enfatizava a independência e a igualdade em relação ao governo da província de Buenos Aires e a vontade de manter as melhores relações com o governo português. Além disso, aquela nota elogiava fortemente a missão do tenente José de Abreu de apoio à província e pedia auxílio de armas devido aos ataques dos indígenas e à intranqüilidade geral da região!21 O governador Velasco pedira apoio ao capitãomor da capitania do Rio Grande, quando da invasão de Manuel Belgrano. Em fevereiro de 1811, Diego de Sousa postara mil e quinhentos homens às ordens do governador Velasco, na então fronteira sulina com o Paraguai. Tropas lusitanas foram também reunidas no forte Novo de Coimbra, na margem esquerda do rio Paraguai, no Mato Grosso, para uma eventual invasão daquela província pelo sul e pelo norte. A descoberta de correspondência de Velascos com Montevidéu, propondo aliança com os portugueses contra os patriotas, ensejou sua prisão, em 9 de junho de 1811, e de outros espanholistas e portenhistas conspiradores. O mesmo ocorreu a seguir com os portenhistas, envolvidos em conspirações contra a autonomia paraguaia. A correspondência declarava a intenção de apoiar os direitos de Fernando 7º contra os revolucionários e, no impedimento daquele soberano, de aceitar a suzerania de Carlota Joaquina sobre o Prata. Na ocasião, foram igualmente destituídos os oficiais espanhóis e o cabildo espanholista. A vitória dos Senhores da Terra Devido às prisões de espanholistas e portenhistas, motivadas por conspirações contra a independência paraguaia, no Congresso Geral, de 17 de junho de 1811, entre os 251 deputados, à exceção de quatro espanhóis natos, todos eram paraguaios patriotas, em geral grandes proprietários de terra dedicados à criação animal. O discurso de abertura foi proferido pelo doutor José Gaspar de Francia, em elocução de forte sentido russeauniano, na qual defendeu o direito da província de “disponer de si misma” e lembrou que todo homem nascia livre e que os direitos à liberdade podiam ser sufocados pela forças das armas, mas jamais extinguidos, pois “los derechos natureles” não eram “prescribibles”. Porém, ainda sem forças para defender a independência total do Paraguai de Espanha, Francia e Zeballos pronunciaram juras de fidelidade ao rei prisioneiro. “No por eso hemos pensado ni pensamos dejar de reconocer al señor don Fernando VII [...] y ahora protestamos nuevamente una firme adhesión a sus 22 augustos derechos”. O congresso aprovou uma “Constituição provisória da Província do Paraguai” e a destituição de Velasco. Sobretudo, designou uma junta superior governativa, por cinco anos, sob o presidência do tenentecoronel Fulgencio Yegros, também comandante geral das armas, com quatro vogais: capitão Pedro Juan Caballero, frei Francisco Javier de Bogarín, Fernando de la Mora e o 21 GARAY. El comunismo de las Misiones; La revolución de la Independencia del Paraguay. Ob.cit. p. 200; CHAVES. El Supremo Dictador. Ob.cit. pp. 113. 22 WHITE. La primera revolución popular en America. Ob.cit. p. 49 doutor José Gaspar de Francia. O médico suíço J.R. Rengger, que viveu no Paraguai de 1819 a 1825, apesar de severo crítico do doutor Francia, não creditava grande valor ao caudilho das classes crioulas paraguaias: “[...] Don Fulgencio Yegros, rico labrador que solo sabia montar un caballo y manejar el lazo con mucha destreza, en vez de ocuparse de los negocios públicos”, com os outros distintos membros do governo, “pasaban su 23 tiempo jugando, haciendo paradas, fiestas y regocijos”. Como Yegros, o capitão Pedro Juan Caballero distinguira-se na luta pela independência e pertencia ao escol das classes proprietárias criolas. Por sua vez, o frei Francisco Javier de Bogarín representava o alto clero, que dominava importantes bens e propriedades na província. Fernando de la Mora era igualmente distinguido cidadão paraguaio. O doutor Francia era o único membro da junta sem ligação aos proprietários crioulos. Certamente devido a ação resoluta de Francia, os espanholistas crioulos não estavam representados na junta.24 A voz dos pequenos No congresso, definiu-se a federação igualitária do Paraguai com as demais províncias do Prata; aboliu-se o monopólio estatal da venda do tabaco; declarou-se livre o comércio de todos os produtos do país; pôs-se fim ao serviço militar gratuito e universal, substituído por tropa permanente e remunerada. Os espanhóis natos e os inimigos do novo regime não podiam ascender a cargos públicos. Em 20 de julho de 1811, foram enviadas a Buenos Aires as decisões tomadas e uma nota definindo as condições para uma eventual federação com as demais províncias do vice-reinado: até o congresso das províncias, o Paraguai governaria-se em forma independente; o fim dos direitos sobre a erva-mate, cobrados em Buenos Aires, e do estanco do fumo; que toda a decisão tomada pelo futuro congresso de Buenos 25 Aires deveria ser ratificada pela população paraguaia. Com o novo governo, o poder parecia encontrarse solidamente nas mãos da aristocracia crioula paraguaia, da qual pertencia seu presidente e os demais membros da Junta, à exceção do doutor José Gaspar de Francia. Portanto, os novos senhores do Paraguai poderiam finalmente dedicar-se a impor seu programa. Ou seja, estender seu domínio através do país, ampliando suas propriedades e exportações e negociar com a burguesia mercantil portenha o nível de submissão a Buenos Aires. Porém, desde logo, estabeleceu-se clara oposição entre os membros da Junta Governativa, por um lado, e o doutor José Gaspar de Francia, por outro. Este último, representante dos defensores da independência sem conciliação, desgostoso com a situação, afastou-se do governo, quarenta dias após sua constituição, por primeira vez, em 1º agosto de 1811, protestando contra o domínio dos altos oficiais militares nas decisões governamentais. Ou seja, da ação prepotente no governo 23 RENGGER, J.R. “Ensayo histórico sobre la revolución del Paraguay”. RENGGER; CARLYLE; DEMERSAY. El doctor Francia. Ob.cit. p. 20 24 CHAVES. El Supremo Dictador. P. 119. 25 RIVERA, Enrique. Jose Hernandez y la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Colihue, 2007. p. 27. 78 - ARTIGO - A Primeira Independência do Paraguai dos representantes da aristocracia proprietária crioula paraguaia. Nos meses seguintes, mais e mais, José Gaspar de Francia passaria a acaudilhar os defensores intransigentes da independência, com destaque para as classes plebéias das cidades e sobretudo do campo. Uma convergência que ensejaria o único movimento pela independência nas Américas em que, sob a ordem francista, os grandes proprietários nativos seriam mantidos, por décadas, afastados do poder político. Artigo recebido em 24/03/2011 Aprovado em 22/04/2011 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (79-81) - 79 Carlos Nelson e a defesa da dialética Resenha do Livro COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. Mozart Silvano Pereira1 O livro O estruturalismo e a miséria da razão, escrito pelo conhecido pensador baiano Carlos Nelson Coutinho e lançado em 1972, é, há décadas, uma obra renomada e clássica da filosofia marxista brasileira. Contudo, após o esgotamento da sua primeira edição, este ensaio referencial para estudantes e pesquisadores das áreas das ciências humanas ficou cada vez mais difícil de ser encontrado. Talvez fosse possível se deparar com alguns exemplares em sebos ou em bibliotecas universitárias, mas estas raras cópias não davam conta de suprir a demanda que se tinha pelo livro, o que fez com que as reflexões críticas de Carlos Nelson acerca do estruturalismo fossem escassamente divulgadas. Vem em ótima hora, portanto, a iniciativa da editora Expressão Popular de, quase quarenta anos depois da primeira versão, lançar a 2ª edição d'O estruturalismo e a miséria da razão. O livro vem publicado na coleção Debates & Perspectivas, marcando presença ao lado de nomes como Celso Frederico e Leandro Konder, que também tiveram escritos seus republicados pela referida editora. É verdade que a nova edição desta obra de Coutinho demorou um pouco para sair. Tal situação se explica pelo fato de o autor ter, por muitos anos, titubeado sobre a reedição do livro em razão das dúvidas quanto à atualidade de suas críticas ao estruturalismo francês. No entanto, agora seu ensaio está novamente acessível ao público e conta, inclusive, com o acréscimo de uma Nota à 2ª edição redigida pelo próprio autor e de um primoroso Posfácio escrito por José Paulo Netto que traz um interessante debate sobre as principais teses do livro e que conta com generosas indicações bibliográficas. O estruturalismo e a miséria da razão é um livro que simboliza uma investida radical do pensamento crítico dialético ao estruturalismo, corrente que reinou na intelectualidade francesa ao longo dos anos 60 e cuja influência foi sentida, à época, também entre os teóricos brasileiros. Trata-se de uma crítica marxista, mas, também, mais que isso: é uma crítica lukacsiana a um modelo de pensamento que se rendeu ao não questionamento do status quo. Geralmente nos lembramos de Carlos Nelson Coutinho como um dos maiores conhecedores e escavadores mundiais da obra de Antonio Gramsci. Mas devemos lembrar também que Leandro Konder já lhe chamou de “o primeiro lukacsiano brasileiro”. E tal título tem uma razão visível n' O estruturalismo e a miséria da razão, uma vez que a principal fonte teórica da qual Carlos Nelson bebe não é Gramsci (as referências ao seu mestre italiano são apenas episódicas), mas sim o pensamento de Georg Lukács. Interessantemente, mesmo tendo as argutas considerações de Carlos Nelson sido feitas antes da publicação da Ontologia do ser social de Lukács, o autor baiano demonstra pleno domínio das principais categorias da ontologia lukacsiana, através da exploração de textos isolados e entrevistas do filósofo húngaro. Antes de empreender a análise sistemática das teses estruturalistas, Carlos Nelson inicia o livro com uma instigante avaliação da gênese histórica do estruturalismo. Para isso faz uma análise mais abrangente da trajetória da filosofia burguesa, na qual posteriormente a vertente estruturalista é situada. O primeiro passo dado pelo autor é, com Marx, lembrar que uma filosofia pode ser colocada como representante de uma classe social quando aquela não ultrapassa no pensamento os limites que esta não ultrapassa na vida.2 A partir disso, resgatando e expandido teses lukacsianas acerca da visão de mundo da burguesia, Coutinho coloca a questão nos seguintes termos: há duas etapas fundamentais na história da filosofia burguesa. A 3 primeira delas, “que vai dos renascentistas a Hegel” , é marcada fortemente pelo fato de o pensamento burguês estar direcionado a um conhecimento progressista, radical, contestador, que, naturalmente, está vinculado à ascensão da burguesia como classe e à sua contestação revolucionária do ancien régime. No entanto, com os conflitos acontecidos entre 1830-1848, e a entrada em cena do proletariado, a burguesia foi compelida a assumir feições conservadoras para não perder seus privilégios materiais garantidos pela ordem instaurada. O custo desta transição foi, logicamente, o abandono de seus ideais revolucionários e o contínuo empobrecimento de um saber que antes era questionador, dialético e orientado para a apreensão da totalidade social por uma filosofia que se rende à reificação do mundo capitalista. E disso surgiu a segunda fase histórica do pensamento burguês – a etapa da decadência ideológica. Ou seja, transitando de classe revolucionária para classe conservadora, a burguesia estreita sua margem de conhecimento da realidade objetiva, pois, como Lukács já anotara em História e consciência de classe, a consciência burguesa necessita se obscurecer sempre que a solução dos problemas remete para além do capitalismo.4 2 1 Mestrando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). [email protected]. COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p.31. 3 Idem, p.21. 80 - RESENHA - Carlos Nelson e a defesa da dialética Diante disso, Coutinho afirma que o pensamento fetichizado burguês divide-se em duas correntes que se alternam na sua hegemonia de acordo com o contexto sócio-histórico, quais sejam o irracionalismo e o agnosticismo. Estas duas vertentes se colocam como filosofias opostas, formas antagônicas de enxergar o mundo, mas, ao mesmo tempo guardam algo em comum: a aceitação do pensamento imediatista e a rejeição das 5 categorias do humanismo, do historicismo e da dialética. Embora de formas bastante diferentes, as duas seccionam a totalidade como objeto da reflexão e, no fim, acabam, cada uma ao seu modo, decretando a inevitabilidade do capitalismo. O irracionalismo6 tende a aparecer como momento soberano da filosofia burguesa quando a conjuntura histórica se encontra em períodos explosivos de mudanças estruturais, em meio a crises e mutações que fazem suas contradições ficarem abertamente evidentes. Nesses contextos é favorecido um “sentimento do mundo” de “angústia”7 que vê no real apenas o irracional, a perda de valores e a negatividade do presente, proporcionando uma visão de mundo conservadora que, negando a possibilidade de se superar os problemas que se colocam à humanidade, conforma-se à ordem instituída. A racionalidade dialética da realidade é negada, e a objetividade passa a ser compreendida como um amontoado de contradições absolutas, diante das quais o intelectual só pode cultivar um fechado pessimismo. Do outro lado da moeda, encontra-se o agnosticismo, cuja “característica essencial consiste em afastar da realidade [...] os problemas conteudísticos, os 8 problemas da contradição” . O agnosticismo, ao invés de negar niilisticamente a razão, confia a ela apenas os aspectos formalizáveis e homogeneizáveis do real, de modo que só é tornado objeto da reflexão filosófica aquilo que for depurado por filtros formais que excluem todo elemento ideológico, toda contradição. A sua perspectiva confia em uma racionalidade puramente formal que supostamente garantiria a cientificidade do raciocínio, mas que na verdade acaba gerando um empobrecimento do pensamento por desconsiderar a contraditoriedade da realidade – causando o que Carlos Nelson batizou de “miséria da razão”. A filosofia agnóstica é característica de épocas em que o capitalismo está relativamente estabilizado, e suas contradições atuam de forma não tão explícita. Nessa atmosfera - em que não há crises e os irracionalismos da ordem social estão apaziguados 9 reforça-se o sentimento de “segurança” e valoriza-se a idéia de “ordem e progresso”, presente na racionalidade burocrática que opera no Estado e no mercado. 4 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.147. 5 COUTINHO, C. N., op. cit., p.44. 6 Podemos citar como exemplos para esta tendência pensadores como Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, o jovem Sartre, entre outros. 7 Idem, p.62. 8 Idem, p.50. 9 Idem, p.64. É nessa idéia de criação de uma pseudorracionalidade, de “miséria da razão”, proporcionada por um contexto de “solidez” social, que Coutinho vai situar o positivismo, o neopositivismo e - o que lhe interessa particularmente - o estruturalismo. Ora, a conjuntura em que nasce o estruturalismo é exatamente aquela na qual o Welfare State se firma de vez, simbolizando a era de ouro do capitalismo. Ali, os diversos teóricos estruturalistas adquirem a hegemonia do pensamento burguês representando “o reflexo ideológico do mundo manipulado”.10 Passando à crítica imanente das teses estruturalistas, cuja característica essencial é a crença de que a realidade social é inteligível apenas pelo método da lingüística moderna, Coutinho faz uma análise rigorosa dos fundamentos desta escola e das colocações de seus principais mestres. A investigação começa com a semiótica formal de Saussure, caminha pela antropologia estrutural de Lévi-Strauss, passa pela teoria literária de Roland Barthes, atravessa a “morte do sujeito” foucaultiana e, por fim, desbrava o marxismo estruturalista de Louis Althusser (ao qual é dedicado um capítulo inteiro).11 Cada um destes autores é explorado em suas particularidades, sendo levadas em conta as peculiaridades de como cada um fez do método estrutural seu modo de pensamento. Contudo, as idiossincrasias dos escritores não impedem que Coutinho capte a unidade da “miséria da razão” estruturalista: em todos eles está presente a marca de um objetivismo que nega constantemente as categorias marxistas do historicismo, do humanismo e da dialética. Com a exclusão destes conceitos do campo do saber e com uma visão profundamente anti-ontológica, o estruturalismo simplesmente corta, desde seus pressupostos, os problemas colocados pela sociedade capitalista (estes não seriam problemas científicos, mas pseudoproblemas metafísicos e, portanto, devem ficar fora da reflexão teórica). Desse modo impede-se que seja criada uma práxis humana autônoma e desalienante e conforma-se à imediaticidade da experiência manipulada, tal como proporcionada pela cotidianidade da sociedade burguesa. Diante desta submissão dos teóricos estruturalistas à realidade capitalista, Carlos Nelson assevera: “Os limites da 'razão' estruturalista são 12 os limites da consciência fetichizada de nosso tempo.” 10 Idem, p.75. É certo que a leitura destes pensadores feita por Carlos Nelson Coutinho em O estruturalismo e a miséria da razão é marcada pela situação histórica em que o autor baiano se encontrava e, em razão disso, ela esbarra em algumas limitações de época. Por exemplo, em 1971, enquanto escrevia sobre Althusser, Coutinho não tinha como prever que o teórico francês, anos depois, submeter-se-ia a uma autocrítica, invalidando algumas posições de Coutinho sobre sua teoria. Por esta razão, o livro pode ser considerado “datado” em certas afirmações, revelando algumas insuficiências. Logicamente, tais insuficiências não podem, em absoluto, ser creditadas a um equívoco ou a uma falta de rigor intelectual do autor: elas são resultados da simples impossibilidade de se considerar na análise eventos que ainda não haviam ocorrido. 12 Idem, p.107. 11 História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (79-81) - 81 Essa citação é interessante, pois Coutinho fala de “nosso tempo”. Só que este “nosso tempo” é o tempo do início dos anos 70, no qual ele estava imerso enquanto escrevia. Ora, isso nos leva diretamente à seguinte questão: quais são as manifestações da filosofia burguesa no nosso tempo, ou seja, agora, no século XXI? E mais: como o ensaio de Coutinho, passadas décadas de sua escrita, pode contribuir com o debate intelectual hodierno? Em 1968, Lukács escreveu, em carta endereçada a Coutinho, que o estruturalismo era então “o maior 13 obstáculo para o desenvolvimento do marxismo” . Mas, como o próprio Coutinho observa, na sua introdução de 2010, o estruturalismo desapareceu da batalha de idéias pouco depois do lançamento de seu livro. De fato, em meio às reviravoltas sócio-econômicas de meados dos anos 70, ele foi substituído pelo pós-estruturalismo da intelectualidade francesa, que, por sua vez, condensou-se naquilo que hoje se chama de pós-modernismo. É possível dizer, sem receio, que hoje é o pósmodernismo - com o seu repúdio a qualquer tipo de razão, sua oposição à dialética e sua negação das “metanarrativas” – a vertente dominante da filosofia burguesa. Ora, a agenda pós-moderna, característica da passagem de um mundo “ordenado” de Welfare State para a “desordem” da reestruturação neoliberal, fecha-se em uma negação de toda racionalidade emancipatória e redunda em uma compreensão do presente capitalista como situação eterna da humanidade. Desse modo, ela se encaixa perfeitamente no mapa da decadência ideológica traçado por Coutinho, despontando como a mais nova forma de “destruição da razão” que, movida pelo irracionalismo conformista, evita a denúncia crítica de um mundo alienado. O conteúdo d'O estruturalismo e a miséria da razão é de uma impressionante atualidade. É certo que o seu objeto específico (o estruturalismo) já não comparece tanto aos debates teóricos, mas o seu objeto geral (a f i l o s o f i a b u rg u e s a ) a i n d a s o b r e v i v e ( h o j e , particularmente, nos escritos da teoria pós-moderna), o que faz com que o ensaio de Coutinho seja uma preciosa arma analítica para a compreensão e crítica das formas do pensamento burguês. A recuperação do humanismo, da dialética e da ontologia é praticada com competência por Coutinho e, se o seu objetivo com o livro era de “ressaltar a universalidade e a atualidade das posições de 14 Lukács” , deve-se dizer que ele, com certeza, o atingiu. Resenha recebida em 22/03/2011 Aprovado em 30/04/2011 13 KONDER, Leandro; COUTINHO, Carlos Nelson. Correspondência com Georg Lukács. In: PINASSI, Maria Orlanda; LESSA, Sergio (orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002, p.153. 14 COUTINHO, C. N., op. cit., p.20. 82 - RESENHA - O laboratório de Marx O laboratório de Marx Resenha do Livro Marx, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 Maurício Vieira Martins1 F oi lançada este mês pela Editora Boitempo, em coedição com a Editora UFRJ, a tradução brasileira dos Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, manuscritos preparatórios de Marx para O Capital. Aqueles que não conhecem o trajeto marxiano, podem talvez se perguntar qual seria o sentido do investimento na leitura destes manuscritos, uma vez que a versão posterior do texto (o próprio O capital) já foi publicada. Contudo, é imprescindível frisar que existem elaborações e desenvolvimentos conceituais de Marx que só podem ser encontrados nos Grundrisse. Redigido entre 1857 e 1858, o texto tem valor próprio; trata-se de uma espécie de laboratório conceitual do próprio Marx, que ali pode ser surpreendido na gestação mesma de seu pensamento. Dentre a riqueza de questões nele presentes – virtualmente impossível de ser resumida -, destacamos apenas algumas delas. Inicialmente, recordemos que os Grundrisse oferecem abundante material sobre a interlocução de Marx com Hegel (uma relação de “amor-ódio” aflitiva, nas palavras de H. G. Flickinger2), sua matriz filosófica mais duradoura. Sabe-se hoje que houve uma absorção, sem dúvida crítica, de várias elaborações hegelianas por parte de Marx, principalmente no que diz respeito à construção lógica do argumento (que por fim se revela intimamente ligada ao seu próprio conteúdo). Assim é que é o leitor de A ciência da lógica - obra magna do mestre de Jena - ficará surpreso ao deparar-se com alguns motivos desta obra modificados e reconstruídos no texto do próprio Marx. Foi o que ocorreu com as famosas determinações reflexionantes (como forma/conteúdo, aparência/essência, imediaticidade/mediação, etc), pares de conceitos nos quais, muito brevemente falando, um dos termos é definido mediante sua referência ao outro, pois “a verdade deles, dizia Hegel, é a sua relação”. Tal entendimento reescreve de modo profundo a tradição filosófica anterior que afirmava uma dada essência como realidade auto-contida. E, no que toca ao debate propriamente econômico, explica também a recusa de Marx em, por exemplo, isolar a esfera da produção da do consumo, preferindo evidenciar sua intrínseca interdependência (mesmo que o chamado momento predominante caiba à primeira). Ainda em sua interlocução crítica com Hegel, são particularmente impactantes nos Grundrisse aquelas passagens que discutem a lógica peculiar e contraditória 1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito/Universidade Federal Fluminense. 2 Flickinger, Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM/CNPq, 1986, p.32 do processo histórico. Vejamos como o texto formula, a este respeito, a diferença entre o capital formado através da poupança por parte do próprio capitalista daquele outro, posterior, que já é o resultado do processo de acumulação efetivado: "Para devir, o capital não parte mais de pressupostos, mas ele próprio é pressuposto, e, partindo de si mesmo, cria os pressupostos de sua própria conservação e crescimento. Por isso, as condições que precediam à criação do capital excedente I,..., não pertencem à esfera do modo de produção ao qual o capital serve de pressuposto; situam-se por detrás dele como etapas históricas preparatórias de seu devir, da mesma maneira que os processos pelos quais passou a Terra, de um mar líquido de fogo e vapor à sua forma atual, situamse além de sua vida como Terra já acabada.” (p.378). Seguindo esta via, eis que nos deparamos com a espessura de uma ontologia encravada no interior mesmo do debate com a economia política. É uma concepção do ser como processualidade que se manifesta com força no texto marxiano, só que agora, de modo distinto do que ocorria com Hegel, em bases decididamente materialistas. Até porque em Marx é o trabalho humano – e não o Espírito - o responsável pela constituição do mundo objetivo tal como o conhecemos hoje (“mas o trabalho é e continua sendo o pressuposto” p. 323). Muito já se escreveu sobre as aquisições metodológicas presentes nos Grundrisse. Sobre isso, é valiosa a indicação existente na carta de Marx a Ferdinand Lassalle (de 22/02/1858). Nela, referindo-se precisamente ao texto em questão, podemos ler: “o trabalho que me ocupa no momento é uma crítica das categorias econômicas ou, if you like, uma exposição crítica do sistema da economia burguesa. É ao mesmo tempo uma exposição e, do mesmo modo, uma crítica do sistema.” Tal passagem reitera o antigo desejo de Marx nem sempre alcançado - em reunir num só movimento a exposição e a crítica das categorias econômicas. Conforme é sabido, em seus textos anteriores, a crítica à sociedade burguesa era muitas vezes feita a partir de seu confronto com uma futura sociedade de sujeitos emancipados, que tornará possível que eu “cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha...“, na conhecida formulação deste belo texto que é A ideologia alemã. Ocorre que tal procedimento tornava o jovem Marx vulnerável à reprovação de que estaria veiculando apenas e tão-somente uma utopia, de concretização inviável. Em contrapartida, o esforço de imersão na lógica das categorias da economia política, com o intuito de criticá-las de modo imanente, representa o acesso a um patamar explicativo de outra ordem, que fortalece inclusive o projeto político marxiano. E não resta dúvida História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (82-83) - 83 que este é um dos motivos de fundo que atravessa os Grundrisse, onde encontramos este intento anunciado de forma quase programática em várias passagens: “Analisemos primeiro as determinações simples contidas na relação entre capital e trabalho, de modo a descobrir a conexão interna – tanto dessas determinações como de seus desenvolvimentos ulteriores – com o antecedente.” (p. 206, grifos nossos). Ora, o que tal análise imanente vai 3 demonstrar é a progressiva captura do trabalho humano num circuito de categorias (mercadoria, dinheiro, capital) que o distancia e aliena dos sujeitos responsáveis por sua objetivação; estranhamento que vem a ser, talvez, o tema mais recorrente dos Grundrisse como um todo. Um outro conjunto de questões originais destes densos manuscritos pode ser encontrado na sua vertente propriamente econômica - lembrando que ela não deve ser isolada da já mencionada dimensão filosófica. Referimo-nos por exemplo às seções em que Marx analisa as mudanças trazidas pelo desenvolvimento da indústria moderna, impulsionada pelas contribuições da ciência, que potencialmente permitem uma liberação de tempo disponível para os agentes da produção. Roman Rosdolsky dizia que estas passagens dos Grundrisse são 4 de tirar “o fôlego ao serem lidas hoje", pois nelas se demonstra de modo preciso a profunda contraditoriedade do processo: o mesmo desenvolvimento tecnológico que potencialmente traria a conquista de tempo livre para os homens, finda por se transformar, sob a égide do capital, numa forma mais sofisticada de dominação. Nas palavras de Marx: "O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria." (p. 588). Só mesmo uma mudança de forma social - no sentido mais profundo do termo - pode ultrapassar esta situação, fazendo-nos chegar a uma sociedade onde a medida da riqueza seja não mais o tempo de trabalho, mas o disposable time, para usarmos a expressão inglesa da qual Marx se vale neste debate. Em nosso século 21, após as insistentes promessas midiáticas de uma liberdade que adviria do desenvolvimento tecnológico, sabemos que o que se efetivou foi uma expansão brutal da jornada de trabalho (que invade nossos fins de semana, feriados, etc), trazendo de chofre a atualidade da reflexão e do combate de Marx para os dias de hoje. Motivo adicional para a leitura do texto, a ponto de Martin Nicolaus afirmar que, se O capital se encontra 5 "penosamente inconcluso", já os seus manuscritos preparatórios permitem em alguns momentos vislumbrar melhor a íntegra do projeto marxiano. Por fim, cumpre destacar a seriedade com que a tradução brasileira dos Grundrisse foi realizada. O Professor Mario Duayer, da Universidade Federal 3 Ou, para sermos mais precisos, da capacidade de trabalho, embora o texto apresente uma oscilação terminológica que, pelo menos neste caso, pode ser fecunda. 4 Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Ed. Uerj/Contraponto, 2001, p. 354. 5 Nicolaus, Martin. “El Marx desconocido”. In: Marx, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política. México: Siglo Veintiuno Editores, 1984, p. xxxi. Fluminense, responsável pela supervisão editorial, explicitou de forma segura suas decisões conceituais, que sem dúvida contribuem para um melhor entendimento do texto. Apenas como exemplo, o Mehrwert marxiano foi coerentemente traduzido como mais-valor, ao invés da tradução usual por mais-valia, que opacifica o conceito e o converte em “algo enigmático, quase uma coisa” (p. 23). Além disso, Duayer redigiu uma Apresentação extremamente esclarecedora, que comenta algumas passagens seminais dos Grundrisse, bem como contextualiza a gênese do texto e sua importância no interior do pensamento de Marx. Razões de sobra, aliás, para não permitirmos que prospere a conspiração do silêncio que tantos desejam, ainda hoje, fazer em torno de sua vasta obra. Normas para os autores 1. A revista História & Luta de Classes [[email protected]] nasce em tempos de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências Sociais. Ela procura servir como ferramenta de intervenção de historiadores e produtores de conhecimento que se recusam a aderir e se opõem ativamente a essa dominação. 2. Os objetivos da revista História & Luta de Classes estão expressos na "Apresentação" do seu primeiro número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração ao coletivo da revista. 3. A revista está aberta a propostas de colaborações, reservando-se o direito de exame dos textos enviados espontaneamente à redação. Sem exceção, todos os artigos serão submetidos a parecer. 4. A revista História & Luta de Classes dirige-se aos estudantes e professores de história e ciências sociais, em especial, e ao grande público interessado, em geral. Sem concessões de conteúdo, na forma e na linguagem, os autores procurarão que seus artigos alcancem o mais vasto público leitor. 5. Os artigos poderão ser enviados através de e-mail em arquivo anexado em formato Word para o endereço [email protected] ou para os organizadores de cada número. Os textos enviados deverão ser inéditos, no relativo à publicação impressa, e não excedendo os 35.000 caracteres, contando notas de rodapé e os espaços em branco. Os originais deverão conter título, nome do autor filiação institucional (universidade, escola, sindicato, etc.), resumo e abstract de 5 a 10 linha e 3 palavras-chave/key-works. 6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras. 7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do texto), obedecendo à seguinte formatação: 7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex.: CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123. 7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22. 7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n. (número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo; SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149. 8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé. Próximos Dossiês: Número 13 – Educação e Ensino de História. Prazo para encaminhamento de contribuições até 30/09/2011. Número 14 – Sociedades Pré-Capitalistas. Prazo para encaminhamento de contribuições até 30/03/2012. Número 15 – História e Memória. Prazo para encaminhamento de contribuições até 30/09/2012. Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da temática estabelecida para cada dossiê, os quais serão avaliados e publicados de acordo com o planejamento editorial da Revista.