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Revista História & Luta de Classes Nº 12 – Setembro de 2011
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..............................................................................................................................................................5
RESUMOS / ABSTRACTS................................................................................................................................................7
DOSSIÊ REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO
DEPOIS DA REVOLUÇÃO?... REVISIONISMO HISTÓRICO E ANATEMIZAÇÃO DA REVOLUÇÃO.................11
Manuel Loff
TRINTA E CINCO ANOS DE REVOLUÇÕES INTERROMPIDAS.............................................................................17
Valerio Arcary
CENTRALIZAÇÃO X DEMOCRACIA: UMA APROXIMAÇÃO AOS DILEMAS COLOCADOS PELAS
REVOLUÇÕES FRANCESA E RUSSA..........................................................................................................................23
Fabio Luis Barbosa dos Santos
NAS TRINCHEIRAS DA DEMOCRACIA: OS COMUNISTAS E A FRENTE POPULAR ENTRE A REVOLUÇÃO E A
CONTRA-REVOLUÇÃO..........................................................................................................................................28
Carlos Zacarias de Sena Júnior
REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO NA ITÁLIA PÓS-FASCISTA...................................................................35
Paula Schaller
REVOLUÇÃO SOCIALISTA E SUJEITO REVOLUCIONÁRIO EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI.....................43
Gilberto Calil
POR UMA ALIANÇA OPERÁRIO-CAMPONESA: DILEMAS HISTÓRICOS DO SINDICALISMO ANDINO
BOLIVIANO.....................................................................................................................................................................50
Bruno Miranda
PARA ALÉM DE HUGO CHÁVEZ: AS CLASSES SOCIAIS NA “REVOLUÇÃO BOLIVARIANA”.......................56
Flávio da Silva Mendes
ATIVISMO JURÍDICO E EFETIVIDADE DOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS: A CONTRA-REVOLUÇÃO E A
MARCHA DOS REFORMADORES SOCIAIS...............................................................................................................62
Hélio de Souza Rodrigues Júnior
ARTIGOS
PRÁXIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO NO PENSAMENTO DE KARL MARX.................................68
José D’Assunção Barros
A PRIMEIRA INDEPENDÊNCIA DO PARAGUAI.......................................................................................................73
Mário Maestri
RESENHAS
CARLOS NELSON E A DEFESA DA DIALÉTICA.......................................................................................................79
Mozart Silvano Pereira
O LABORATÓRIO DE MARX........................................................................................................................................82
Maurício Vieira Martins
NORMAS PARA AUTORES............................................................................................................................................84
Organizadores gerais deste número: Carlos Zacarias de Sena Júnior (UFBA), Gilberto Calil (Unioeste)
Editor: Gilberto Calil (Unioeste)
Secretário: Luis Fernando Zen (Unioeste)
Comissão Editorial: Danilo Martuscelli (SP), Enrique Serra Padros (RS), Gelsom Rozentino de Almeida (RJ), Gilberto Calil (PR), Igor Gomes Santos (BA), Kênia Miranda (RJ),
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Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Afonso Alencastro (UFSJ), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (UFF),
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marcha bolchevique em Smolnyi (1918); 3. Adolf Hitler; 4. Cartaz da Confederação Nacional dos Trabalhadores, Espanha (1936). Revisão e Edição: Gilberto Calil.
Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45) 3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - Paraná.
Foram impressos 1.000 exemplares em Agosto de 2011.
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Versão integral: nº 1 a nº 7
Capa, Sumário e Apresentação: nº 8 a nº 12
Ficha de Assinatura
Chamada de Artigos
APRESENTAÇÃO
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 - 5
Revolução e Contra-Revolução
Q
uase 20 anos depois da publicação de O fim da historia e o último homem, de Francis Fukuyama, parece que já
é possível fazer um balanço relativamente seguro sobre as duas décadas que nos separam da euforia neoliberal que
afirmava a vitória inconteste do capitalismo sobre as utopias não realizadas dos séculos XIX e XX. Não obstante, como
não há segurança quanto ao curso da história, preferimos afirmar com Gramsci que na história só se pode prever a luta,
de maneira que a única garantia que temos é a que pode ser demonstrada pelos processos que se (re)inauguraram com
século XXI e que em diversas partes do planeta tem sacudido o solo aparentemente seguro de governos e regimes que se
defrontam com uma humanidade que permanece buscando a transformação, seja por via das reformas ou das
revoluções.
É verdade que hoje em dia a tese de Fukuyama só desperta interesse historiográfico. Por este e por outros motivos
preferimos nos perfilar com Eric Hobsbawm, que logo após a publicação do libelo do historiador liberal sentenciou no
seu Era dos extremos que ninguém que olhasse em retrospecto o breve século XX apostaria seu dinheiro no triunfo
universal da mudança pacífica e constitucional de regimes e governos. O historiador anglo-egípcio ao se perguntar se
revoluções continuariam acontecendo no planeta não titubeava em concluir que o mundo que entrava no terceiro
milênio não parecia ser exatamente um mundo de sociedades e Estados estáveis. A América Latina e o Mundo Árabe,
apenas para não citar a atual instabilidade da velha e conservadora Europa, parecem confirmar o prognóstico. Protestos,
manifestações e mobilizações com dinâmicas diferenciadas e distintos graus de contestação ao capitalismo são cada
vez mais freqüentes e intensos e não deixam dúvidas de que algo se move na dinâmica da luta das classes trabalhadoras.
Ao mesmo tempo, também a contra-revolução em seus distintos formatos, redefine seus perversos contornos, do
atentado fascista na Noruega à ascensão de governos da direita supostamente “civilizada” na Europa, muitas vezes em
aliança ou com apoio de organizações extremistas que florescem como resposta reacionária à crise.
A verdade é que a história não se presta a análises apressadas e a conclusão de Hobsbawm de que o mundo
continuaria a assistir revoluções e toda espécie de catarse tinha o lastro de um olhar penetrante por toda uma era de
convulsões, guerras, revoluções e contra-revoluções pelo globo. Nem bem o século XX chegou ao final, toda a
proclamação eufórica do fim da história deu lugar ao pessimismo dos apologétas da vitória capitalista, diante das
agressões imperialistas dos estadunidenses no Oriente Médio sob o pretexto da “guerra ao terror” e outras tantas
agressões que continuamos a assistir pelo mundo, seguidas, obviamente, por uma resistência encarniçada. Ou seja,
mudaram-se os argumentos e a tecnologia de guerra, mas o sangue derramado pelos povos oprimidos permanece
tingindo de vermelho a história recente.
O fato é que revoluções continuam a acontecer e não é necessários lembrarmos o recente exemplo da Tunísia e do
Egito para afirmar que quando as massas entram em cena podem por abaixo ditadores e também “democratas” com seu
receituário neoliberal. Que o digam argentinos, bolivianos e equatorianos, que recentemente derrubaram governantes
eleitos pelo voto universal. Em verdade, por paradoxal que pareça, a movimentação das massas em inúmeros países tem
conseguido por abaixo governos e governantes que são o produto das formas excludentes, social e politicamente
falando, da democracia burguesa.
O dossiê que o leitor tem em mãos, Revolução e Contra-Revolução, surge justamente com o propósito de passar em
revista dois dos temas mais caros da historiografia marxista contemporânea, considerando que os processos históricos
inaugurados com a Revolução Russa de 1917 só aprofundam a necessidade de reflexão diante de um presente de tanta
instabilidade. Revoluções e contra-revoluções continuam a acontecer, mesmo que personagens e formatos variem ao
longo do tempo. No plano acadêmico, a luta também prossegue com a disseminação de uma historiografia revisionista e
neo-conservadora que pretende reservar o lugar do abominável para as revoluções, sendo necessário o combate dos
marxistas. É justamente disso que trata o artigo Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da
Revolução, do historiador português Manuel Loff, que abre este número de História & Luta de Classes. Loff identifica
e critica as construções ideológicas hegemônicas que propõe, de forma a-histórica, que todas as revoluções
necessariamente desembocam no totalitarismo, promovendo assim a anatemização do conceito de Revolução e
desqualificando os processos revolucionários, responsabilizados por atacar uma ordem supostamente harmônica e
legítima. A seguir, o artigo Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas, de Valério Arcary, indaga sobre os motivos
pelos quais as revoluções sociais não acompanharam as revoluções políticas que transformaram diversos regimes
desde meados da década de 1970. A resposta que dá o historiador que viveu em Portugal quando da Revolução dos
Cravos é das mais instigantes e polêmicas, pois imputa à direção stalinista a responsabilidade histórica por diversas
derrotas, vendo na democracia uma armadilha ainda mais devastadora para as direções revolucionárias.
6 - Apresentação
Fábio Luís Barbosa dos Santos busca aproximar comparativamente as experiências revolucionárias de franceses e
russos nos séculos XVIII e XX, respectivamente. Refletindo acerca destes dois processos paradigmáticos no artigo
Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa, o
historiador reflete sobre os dilemas colocados pela necessidade de centralização política da direção revolucionária, que
no seu entender terminaram contribuindo para engendrar definições sobre os limites de sua radicalidade histórica.
Nas trincheiras da democracia, de Carlos Zacarias de Sena Júnior, chama a atenção para a linha tênue que separa a
dimensão revolucionária e contra-revolucionária das experiências de frente popular na história. Percorrendo os
caminhos que levaram o Komintern a endossar a política de Frente Popular e a definir como linha oficial do movimento
comunista internacional, o autor conclui que a definição de hierarquias superiores aos imperativos interesses da classe
trabalhadora na luta de classes empurrou as organizações comunistas para o campo da contra-revolução e da
democracia num dos momentos mais revolucionários do século XX, qual seja, o período de crise aberta com a derrota
do nazi-fascismo em 1945. Em perspectiva semelhante, o artigo da historiadora argentina Paula Schaller, Revolução e
contra-revolução na Itália pós-fascista discute o rico contexto do imediato pós-guerra, enfatizando a revolução social
em curso, constituída no contexto da resistência antifascista. A autora propõe um balanço crítico que permita a
compreensão da derrota da alternativa revolucionária e conseqüente restabelecimento da estabilidade burguesa, bem
como o apagamento da memória sobre daquela experiência.
A problemática da Revolução latinoamericana é contemplada nos três artigos seguintes. Em Revolução Socialista e
sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui, Gilberto Calil apresenta a originalidade do marxismo
mariateguiano e sua reflexão sobre revolução e sujeito revolucionário na América Latina, discute criticamente algumas
apreensões em torno de sua obra e reflete acerca de seu legado. O artigo de Bruno Miranda – Por uma aliança operário
camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano – discute os impasses e as limitações das principais
concepções e organizações sindicais bolivianas e sua incapacidade em efetivar uma aliança operário-camponesa.
Considerando tal aliança como “um pilar da estratégia revolucionária em contextos históricos dependentes como o
boliviano”, o autor busca refletir em torno dos limites das mais destacadas experiências da luta de classes naquele país.
Também está presente a reflexão em torno da experiência venezuelana recente, no artigo Para além de Hugo Chávez: as
classes sociais na “Revolução Bolivariana”, de Flávio da Silva Mendes. O artigo propõe, oportunamente, uma
reflexão em torno daquela experiência pautada na análise das forças sociais em presença e da luta de classes mais do que
na liderança chavista, considerando-as fundamentais para a configuração da crise orgânica que engendra o
bonapartismo chavista.
O artigo que encerra o dossiê –Ativismo Jurídico e efetividade dos direitos constitucionais: a contra-revolução e a
marcha dos reformadores sociais -, de Hélio Rodrigues Júnior propõe uma crítica do movimento do ativismo jurídico e
sua crença na capacidade transformadora do Direito, sustentando que tal posição configura perspectiva contrarevolucionária e em aberta oposição à emergência social e política da classe trabalhadora.
Esta edição traz ainda dois outros artigos. O primeiro deles, Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento
de Karl Marx, de José D'Assunção Barros, propõe uma reflexão sobre o conceito marxiano de práxis, em suas
diferentes dimensões e sentidos, discutindo sua construção em diferentes obras do materialismo histórico e, em menor
medida, em alguns marxistas posteriores. Por sua vez, o artigo de Mário Maestri, A primeira Independência do
Paraguai discute as posições políticas e as ações militares empreendidas pelas distintas classes e frações de classe
paraguaias frente ao processo de luta pela Independência, sustentando que constituiu-se naquele momento um bloco
político e social que permitiu a concretização de uma independência de “forte sentido democrático-popular”.
Duas resenhas complementam este número de História & Luta de Classes. Mozart Pereira saúda a republicação de
O estruturalismo e a miséria da razão, de Carlos Nelson Coutinho, dimensionando sua importância histórica, sua
contribuição teórica e sua atualidade. Maurício Vieira Martins, por sua vez registra a importância da recente tradução
brasileira dos Grundrisse, avaliando a importância desta obra no desenvolvimento da reflexão marxiana e indicando
algumas das questões presentes na obra.
História & Luta de Classes chega a sua edição de número 12, ao ingressar em seu sétimo ano, mantendo sua
perspectiva crítica e aberta ao debate, seu caráter de empreendimento coletivo, a diversidade de abordagens e
perspectivas e a ênfase na centralidade da luta de classes para a compreensão da dinâmica histórico-social. Os
resultados que vem sendo alcançados – progressivo reconhecimento e disseminação da revista, consolidação de seu
projeto editorial, crescente internacionalização das contribuições, e manutenção de rigorosa periodicidade, reforçam as
opções seguidas. Ao mesmo tempo, investimos crescentemente na veiculação eletrônica e informamos que mais três
edições foram disponibilizadas na íntegra no sítio eletrônico – as edições de número 5 (Trabalhadores e suas
organizações); 6 (Imperialismo: teoria, experiência histórica e características contemporâneas) e 7 (Estado e Poder).
Agosto 2011
Gilberto Calil
Carlos Zacarias de Sena Júnior
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 - 7
Resumos
Manuel Loff. Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução. A leitura da
Revolução, enquanto categoria conceitual do campo da História e das Ciências Sociais em geral, e da Revolução
Portuguesa de 1974-75 em particular, tem vindo a ser feita através de uma perspetiva ideológica, que enforma a maioria
das visões acadêmica e mediaticamente produzidas, que procura eliminar a viabilidade real do próprio conceito. A
equação Revolução=Totalitarismo/Utopia totalitária está presente em quase todas as leituras que pressupõem serem os
processos revolucionários geralmente ofensivos daquelas que se descrevem como sendo as mais profundas (e,
presume-se, genuínas) tradições (por outras palavras, consensos sociais e simbólicos) das sociedades, tomando-as
como produtos de projetos políticos, ideológicos e culturais cuja operacionalização na realidade social se descreve
como tendo uma natureza totalitária. Palavras-chave: Revolução; Totalitarismo; Revisionismo.
Valerio Arcary. Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas. Há trinta e cinco anos não triunfa uma
revolução social anticapitalista. Nessas décadas, contudo, não faltaram revoluções políticas. Mas foram em sua ampla
maioria revoluções democráticas que derrubaram ditaduras. A crise do estalinismo favoreceu a influência da estratégia
de democratização da democracia na direção dos partidos mais influentes da esquerda. Ao abraçar a democracia liberal
a maioria da esquerda despediu-se do projeto revolucionário, interpretado como o pecado original das ditaduras
burocráticas. Essa escolha política teve desdobramentos teóricos. O primeiro passo foi procurar apresentar o
estalinismo como o herdeiro de Lenin. Depois buscou legitimação em Marx, presumidamente gradualista, para se
afastar de Lenin, supostamente, blanquista. O que merece ser considerada uma dupla injustiça. Não fosse isso o
bastante, depois evoluiu para descobrir em ambigüidades do próprio Marx a responsabilidade pelo estalinismo.
Palavras-chave: Revoluções no século XX; marxismo; socialismo.
Fábio Luis Barbosa dos Santos. Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados
pelas Revoluções Francesa e Russa. O presente trabalho realiza uma aproximação entre a Revolução Francesa (1789)
e a Revolução Russa (1917) com o objetivo de explicitar um dilema: a centralização do poder emerge como uma
necessidade política em ambos processos, ao mesmo tempo em que contribui de maneira decisiva para gerar os
constrangimentos que, em última análise, delimitam a radicalidade histórica destas experiências. Palavras-chave:
Revolução Russa; Revolução Francesa; democracia revolucionária.
Carlos Zacarias de Sena Júnior. Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre
a revolução e a contra-revolução. O objetivo deste artigo é discutir os caminhos percorridos pela formulação da linha
de Frente Popular no VII Congresso do Komintern, passando em revista a história do movimento comunista
internacional para que se compreendam seus desdobramentos e as circunstâncias em que a atividade revolucionária da
Internacional Comunista foi substituída pela diplomacia soviética e a revolução não cessou de acumular derrotas ao
longo de quase oitenta anos, enquanto os comunistas dos PCs de vários países não deixaram de buscar alianças com as
burguesias locais no caminho da democracia, sem adjetivações. Palavras-chave: Comunismo; Frente Popular;
Internacional Comunista.
Paula Schaller. Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista. No artigo propomos uma análise que
propõe definir e conceituar as tendências estruturais que nos permitem considerar a experiência da luta armada
antifascista na Itália como um processo de revolução social. Servimo-nos de categorias propostas por Gramsci tais
como crise orgânica, correlação de forças e hegemonia, assim como a análise de Trotsky sobre a articulação entre as
situações revolucionárias, a guerra civil e o duplo poder. Tentamos sublinhar aqueles elementos de possibilidade de
superação do sistema social que estiveram presentes na experiência em estudo. Ao mesmo tempo, avançamos sobre um
balanço crítico dos fatores subjetivos que, a nosso ver, contribuíram para minar esta possibilidade histórica.
Palavras-Chave: Duplo poder, crise organica, burguesia, movimiento trabalhista, revolução.
Gilberto Calil. Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui. O peruano José
Carlos Mariátegui produziu uma importante obra dedicada à reflexão em torno da realidade latino-americana, sendo
usualmente considerado como primeiro marxista latino-americano. Sua obra, marcada por uma perspectiva socialista
revolucionária, é considerada inovadora e original. Este artigo pretende discutir o sentido desta inovação e
originalidade, problematizando algumas interpretações presentes no debate existente no Brasil em torno da obra de
8 - Resumos e Abstracts
Mariátegui, em especial as que o qualificam como “romântico” ou “voluntarista”. Para tanto analisaremos alguns de
seus textos, com destaque para as proposições acerca da relação entre base material e projeto socialista, da ausência de
perspectiva revolucionária por parte das burguesias locais; do caráter necessariamente socialista da revolução
latinoamericana e da necessidade de incorporação dos trabalhadores rurais como parte integrante do sujeito
revolucionário. Palavras-Chave: Mariátegui; Marxismo; Revolução.
Bruno Miranda. Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino
boliviano. Através de revisão bibliográfica, o presente artigo trata da formação e dos momentos cruciais do
sindicalismo operário e camponês do Altiplano Boliviano, assim como seus encontros, paralelismos e indiferenças
durante o século XX, até o processo de reabertura democrática na década de 80. O trabalho conclui apresentando os
limites do sindicalismo mineiro de um lado e do sindicalismo katarista de outro no sentido de uma efetiva articulação
operário-camponesa. Palavras-chave: sindicalismo; “Altiplano Boliviano”; “aliança operário-camponesa”.
Flávio da Silva Mendes. Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana”. As
ações do governo de Hugo Chávez na Venezuela ocupam lugar de destaque no debate sobre a política latino-americana
neste início de século XXI. Porém, em muitos espaços – entre os quais se destaca, sem dúvida, a imprensa – a discussão
acaba se atendo a aspectos superficiais daquela conjuntura e, assim, sintetizando o conflito às atitudes de Chávez e seus
opositores. Neste artigo analiso a composição das forças sociais que atuam no interior dos blocos – chavista e antichavista – aos quais aparentemente se resume a luta política venezuelana na tentativa de encontrar, ali, interesses de
classes. Neste percurso faço referência a algumas obras que dão subsídio ao estudo da luta de classes em períodos de
crise, sobretudo ao 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Palavras-chave: Venezuela – Aspectos políticos;
classes sociais; Hugo Chávez.
Hélio de Souza Rodrigues Júnior. Ativismo jurídico e efetividade dos direitos constitucionais: a contrarevolução e a marcha dos reformadores sociais. O artigo busca submeter à crítica o movimento do ativismo jurídico
que defende a capacidade do direito de revolucionar a sociedade, todavia, esse movimento não questiona que o direito
está assentado no modo de produção capitalista e busca com este harmonizar-se e torná-lo mais humano. Tal posição
representa prática contra-revolucionária que impede o protagonismo social da classe trabalhadora, uma vez que
configura uma funcionalidade e mediação com o processo de acumulação e reprodução capitalista, impedindo uma
elaboração teórica e prática que permita a classe trabalhadora mediar-se a si mesma ao invés de ser mediada por
instituições e instrumentos moldados pelo processo de acumulação e reprodução capitalista. Palavras-Chave:
Ativismo Jurídico, Revolução, Protagonismo Social.
José D'Assunção Barros. Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx. Este
artigo tem por objetivo desenvolver algumas considerações acerca da contraposição do conceito de Praxis no
Materialismo Histórico (enquanto paradigma histórico-filosófico), no pensamento de Karl Marx, e no Marxismo como
um programa político específico que se dirige a propósitos de estabelecimento de uma organização socialista. O
conceito é contraposto inicialmente aos conceitos de Theoria e Poiésis. Palavras-Chave: Práxis; Materialismo
Histórico; Marxismo.
Mário Maestri. A Primeira Independência do Paraguai. Em 1810, a Revolução de Maio emancipou o Prata,
para submetê-lo a Buenos Aires. Cabildo em Asunción manteve-se fiel à Espanha, rejeitando o governo portenho, que
enviou tropas contra a província. No Paraguai, os espanholistas lutavam por Espanha; os portenhistas, por Buenos
Aires; os proprietários criollos, pela independência/federação; os pequenos e médios proprietários/arrendatários, pela
autonomia política, tributária e comercial. Os portenhos foram batidos, sobretudo pelos crioulos e plebeus paraguaios.
O governador espanhol organizou-se para combater Buenos Aires e os patriotas, sob a proteção lusitana. Em 14 de maio
de 1811, crioulos, apoiados por chacareros, peões agrícolas, etc. promoveram mote autonomista. Vergado o poder
espanhol, as oposições entre crioulos, portenhistas e plebeus patriotas ensejariam independência de forte sentido
democrático-popular. Palavras-chave: Paraguayan Independence; May Revolution; American Independence.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 - 9
Abstracts
Manuel Loff. After the Revolution? ... anathematization historical revisionism and the Revolution.
Historical and political interpretations of modern revolutions, and of the Portuguese 1974-76 Revolution in particular,
and of Revolution as a conceptual category in History and in Social Sciences, has been produced in the last 20 years
under a dominant ideological perspective, that shapes most of the academic discourse and the one produced by liberal
and conservative political elites and the mainstream media, seeking, among othe rthings, to eliminate the sheer political
viability of the concept itself. Assuming Revolution = Totalitarianism/Totalitarian Utopia has been present in
interpretations describing revolutionary processes as being generally offensive of those who describe themselves as
being the most profound (and presumably genuine) traditions (in other words, social and symbolic consensus), turning
them into products of political, ideological or cultural projects whose operationalization in social reality is described as
having a totalitarian nature. Key-words: Revolution; Totalitarianism; Revisionism
Valerio Arcary. Thirty-five years of an interrupted revolution During the last thirty-five years not a single
anti-capitalist social revolution prevailed. However, political revolutions did not lack in these decades. But they were in
large majority democratic revolutions that overthrew dictatorships. The crisis of stalinism favored the influence of the
strategy of democratization of democracy in the direction of the most influential parties of the left. By embracing liberal
democracy most of the left said goodbye to the revolutionary project, interpreted as the original sin of the bureaucratic
dictatorships. This political choice had theoretical developments. The first step was to try to make stalinism an heir of
Lenin. Then sought legitimization in Marx, presumably gradual, to get away from Lenin supposedly Blanquist. What
deserves to be considered a double injustice. As if this was not enough, then evolved to find in Marx's ambiguities the
responsibility for stalinism. Key-words: Revolutions in twentieth century; marxism; socialism
Fábio Luis Barbosa dos Santos. Centralization X Democracy: an approach to the dilemmas placed by
the French and Russian Revolutions. This article aims to contrast the French Revoution (1789) and the Russian
Revolution (1917) from the standpoint of the dilemma placed by the need of political centralization which has occured
in both processes and, at the same time, has contributed decisively to generate the constraints which have ultimately
restrained the historical outcome of these experiences. Key-words: Russian Revolution; French Revolution;
revolutionary democracy
Carlos Zacarias de Sena Júnior. In the trenches of democracy: the Communists and the Popular Front
between revolution and counterrevolution. The aim of this paper is to discuss the paths followed by the formulation
of the Popular Front line of the VII Congress from the Komintern, by reviewing the history of the international
communist movement to understanding its consequences and the circumstances in which the revolutionary activity of
the Communist International was replaced by Soviet diplomacy and the revolution has continued to accumulate losses
over eighty years, while the Communists of PCs from several countries have left to seek alliances with the local
bourgeoisie towards democracy without objectiveness. Key-words:Popular Front, Communist International, Marxism
in the twentieth century
Paula Schaller. Revolution and counterrevolution in the post-fascist Italy. In this article we deploy an
analysis aimed to defining and conceptualizing the structural trends that allow us to consider the experience of the
armed struggle against the fascism in Italy as a process of social revolution. Using the categories that Gramsci offered
us, such as organic crisis, relation of forces and hegemony, and the analysis of Trotsky about the link between
revolutionary situations, civil war and dual power, we try to emphasize those elements of chance overcoming the social
system that were present in the experience under study. At the same time, we progress on a critical assessment of
subjective factors, we believe, helped to undermine this historic opportunity. Key-words: Dual power, organic crisis,
bourgeoisie, labor movement, revolución.
Gilberto Calil. Socialist Revolution and revolutionary subject in José Carlos Mariategui. Jose Carlos
Mariateguit, the Peruvian produced an important work devoted to reflection on the Latin American reality, and is
usually considered the first Latin-American Marxist. His work, marked by a revolutionary socialist perspective, is
considered innovative and original. This article discusses the meaning of innovation and originality, questioning some
interpretations present in the existing debate in Brazil about the work of Mariategui, in particular those that qualify as
10 - Resumos e Abstracts
"romantic" or "proactive". For this look at some of his texts, especially the propositions about the relationship between
base material and the socialist project, the absence of revolutionary perspective on the part of the local bourgeoisie, the
character necessarily Latin American socialist revolution and the need for incorporation of rural workers as part of the
revolutionary subject. Key-words: Mariátegui; Marxism; Revolution.
Bruno Miranda. For a worker-peasant alliance: historical dilemmas of unionism Bolivian Andes.
Through bibliographic review, the present article treats formation and essential moments of Bolivian Highlands´
worker and peasant´s unionization, as well as approaches, parallelisms and indifferences along twentieth century.
Democratic reopening on the 80´s is the terminal date. This work concludes with the presentation of the limits of miner
and katarist unionism towards an effective worker-peasant alliance. Key-words: unionism; “Bolivian Highlands”;
“worker-peasant alliance”.
Flávio da Silva Mendes. In addition to Hugo Chavez: social classes in the "Bolivarian Revolution" The
actions of the Hugo Chavez Government in Venezuela have a prominent place in the debate on Latin American politics
since the early twenty-first century. However, in many areas – including, without doubt, the press – the discussion ends
up sticking to the superficial aspects from that political context and thus synthesizing the conflict as a product from the
attitudes of Chavez and his opponents. In this article, I analyze the composition of social forces that act inside the blocks
– chavista and anti-chavista – which apparently resume Venezuela's political struggle trying to find, there, class
interests. Through this path I make reference to works that benefit the study of class struggle in times of crisis,
especially the 18th Brumaire of Louis Bonaparte, of Karl Marx. Key-words: Venezuela – Political aspects; social
classes; Hugo Chávez.
Hélio de Souza Rodrigues Júnior. Effectiveness of legal activism and constitutional rights: the conterrevolution and the march of social reformers. The objective os this text is subject to the cristicism the legal activism
that defends the right of the ability to revolutionize society, however, this movement does not question the right sits on
the capitalist mode of production. This movement represents the counter-revolutionary practice that prevents of a
protagonist social, with mediation and functionality of the process of capitalist accumulation and reproduction,
preventing a theoretical elaboration and practice which enables the working class to mediate itself rather than being
mediated by institutions and instruments shaped by the process of capitalist accumulation and reproduction. Key
Words: Legal Activism, Revolution, Protagonist social.
José D'Assunção Barros. Praxis: considerations about the concept at the thought of Karl Marx. This
article aims to develop some considerations about the concept of Praxis in the Historic Materialism (as a historicphilosophic paradigm), in the thought of Karl Marx, and in the Marxism as a specifically political program directed to
the purposes of establish a socialist organization. The concept is initially contrasted with the concepts of Theoria e
Poiésis. Key-Words: Praxis; Historic Materialism; Marxism
Mário Maestri. Paraguay's First Independence. Abstract: In 1810, May Revolution emancipated Rio della
Plata in order to subdue it to Buenos Aires' power. Cabildo in Asunción stood by Spain and did not recognize porteño's
government, which sent troops against that province. In Paraguay, the españolistas wrestled for Spain; the porteñistas
did the same for Buenos Aires; Creole planters fought for independence and federation; the small and middle
landowners and tenants fought for their politic, commercial and tributary autonomy. Porteños were defeated by
Paraguayan Creoles and plebeians. The Spanish governor organized an attack against Buenos Aires and patriots, under
th
Portuguese protection. On the 14 of May 1811, Creoles, supported by chacareros and farm workers, organized an
autonomist movement. As soon as Spanish power was overthrown, oppositions between Creoles, porteñistas and
patriotic plebeians allowed a strongly popular-democratic independence. Key-Words:Independência Paraguaia;
Revolução de Maio; Independência Americana
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (11-16) - 11
Revisionismo histórico e anatemização da Revolução
Manuel Loff1
O
que é uma Revolução? Que representações
temos da Revolução? Nós, os portugueses, pelo menos,
que, parafraseando Bernardo Bertollucci2, já não
sabemos bem se vivemos depois da Revolução (por
referência ao 25 de Abril) ou, crescentemente
empurrados de volta para os modelos econômicos e
mentais do desenvolvimentismo capitalista do séc. XIX,
se viveremos de novo num tempo que parece ser um ciclo
antes da Revolução (por referência à percepção que os
homens e mulheres dos séculos XIX e XX tinham da
Revolução como um confronto inevitável que resolveria
a tensão provocada por um grau muito elevado de
exasperação social e política).
A cultura contemporânea do progresso, feita de
um ânimo otimista perante o avanço da ciência,
percepcionada como uma luz emancipadora que liberta
espaços inteiros da realidade e do conhecimento ao
obscurantismo pessimista, e perante um autoconfiante
triunfo da razão, usou frequentemente o conceito para
descrever as grandes mudanças positivas na História
social, política, econômica, cultural. A Revolução
Francesa, como epítome das revoluções do Liberalismo
rompedor do pós-Iluminismo, foi interpretada como
fundadora de uma era de progresso que se definiu a
modernidade. A Revolução Industrial foi, as mais das
vezes, definida como a transformação mais radical dos
padrões de vida das comunidades humanas,
desencadeando os historicamente mais acelerados
processos de mudança social, econômica e tecnológica,
que abriram um caminho aparentemente irreversível nas
formas de interação entre comunidades humanas
geográfica e culturalmente inelutavelmente distantes até
então. O estereótipo dos manuais de História começava
quase sempre por recordar a longuíssima duração do ciclo
histórico da economia rural agro-pecuária a que ela vinha
pôr termo. No campo científico, as grandes rupturas
epistemológicas foram em toda a contemporaneidade
definidas, mesmo retrospectivamente, pelo conceito de
Revolução: de Copérnico a Einstein, a proposta de
1
Professor Associado de História Contemporânea Universidade do
Porto (Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais)
e investigador do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa. Doutor pelo Instituto Universitário
Europeu (Florença), é autor, entre outras obras recentes, de «O nosso
século é fascista!» O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945)
(Porto: Campo das Letras, 2008), e coordenador, com Teresa Siza, de
Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a ditadura
(1891-1974) (s.l.: Comissão Nacional para a Comemoração do
Centenário da República, 2010).
2
Cf. o seu filme Prima della Rivoluzione (Antes da Revolução), guião
de Gianni Amico e Bernardo Bertolucci, Itália, Iride Cin. Ca., 1964.
visualização dos avanços do conhecimento passaram
sempre - passam ainda, reconheçamo-lo - pela semântica
revolucionária.
Centrar-me-ei aqui na percepção que dos
processos revolucionários se foi construindo no último
meio século. Aqueles que, inscrevendo-se, antes de mais,
numa cronologia política, numa cesura dos ciclos
políticos, produziram uma significativa mudança na
ordem política, tiveram uma dimensão social e,
inevitavelmente, econômica e cultural. Na melhor
tradição progressista, Eric Hobsbawm definia, no seu
clássico A Era das Revoluções, que “a política e
ideologia [do mundo do século XIX] ficaram a dever-se
sobretudo aos [revolucionários] franceses”. A “política
europeia (de fato, a política mundial), entre 1789 e 1917,
[foi] em grande parte a luta contra ou a favor dos
princípios de 1789, ou dos princípios ainda mais
incendiários de 1793”, o mesmo se podendo dizer para o
século XX, entendia o historiador britânico, “da
Revolução Russa de 1917, que ocupa uma posição de
importância semelhante”.3 Esta leitura da História, que
privilegia a organização da diacronia a partir de marcos
de mudança sociopolítica muito intensa, tem sido
crescentemente posta em causa por uma perspectiva
revisionista da História que, porque ideologicamente
coerente com um ciclo de hegemonia (para usar um
conceito de Gramsci) neo-liberal e neo-conservadora que
tem já quase três décadas, tem encontrado terreno
particularmente acolhedor nas representações históricas
que a cultura mediática difunde, ou nos discursos
históricos, ou aparentemente históricos, que o Estado e as
elites sociais e culturais produtoras de discurso histórico
têm vindo a fazer.
Este movimento que habitualmente se designa
por revisionismo histórico tem como um dos seus
objetivos centrais na batalha intelectual - é certo que
intelectual, mas com fortíssimas repercussões políticas –
4
a “liquidação da tradição revolucionária”. Este ataque é
anterior àquela que considero ter sido a reconquista da
hegemonia ideológica por parte da direita intelectual neoliberal e neo-conservadora e, no séc. XX – não pretendo
convocar aqui exemplos deste mesmo processo nas
correntes conservadoras e irracionalistas do séc. XIX que
já então concentraram as suas baterias sobre a Revolução
Francesa -, centrou-se na construção de um argumentário
demolidor da Revolução Soviética de 1917. Como em
3
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções, trad. port., 4ª ed. [ed. ori.
brit: 1962], Lisboa: Estampa, pp. 65-66.
4
Cf. LOSURDO, Domenico, Il revisionismo storico. Problemi e miti,
Roma-Bari: Laterza, 1996, cap. 1.
12 - Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução
qualquer fenômeno desta natureza, este foi, é, um
processo gradual, para cuja análise é fundamental
verificar em cada momento o contexto político e
ideológico da produção de cada contributo.
Por exemplo, é ainda no contexto de um
confronto tripolar entre as chamadas democracias
ocidentais, as potências fascistas e a União Soviética
stalinista que nos aparecem os prenúncios daquela que
será a tese totalitária arendtiana – de que se falará mais
adiante – através da tese de Alfred Cobban que, no seu
Dictatorship, publicado em 1939, sustenta já que “num
certo sentido, todos os ditadores europeus dos nossos
dias são filhos do Manifesto do Partido Comunista”.5 Por
outras palavras, um dos objetos ideológicos que mais
arrebatadoramente ajudou a conceptualizar a necessidade
histórica da Revolução para conseguir rupturas criadoras
de estádios estruturalmente diferentes da vida humana,
produzido num dos ciclos mais reveladoras da violência
intrínseca da civilização capitalista, era lido como a fonte
do mal totalitário que avançara como uma mancha de
óleo pela Europa do período de entre-guerras. Primeiro
dos procedimentos deslegitimadores da Revolução: a
deriva autoritária/ditatorial/totalitária das suas propostas.
Faltava estabelecer se o processo era ou não intrínseco ao
projeto revolucionário, se a Revolução não resultará
sempre de um projecto que, no ovo, esconde a serpente
6
totalitária (para usar outra metáfora cinematográfica) ...
Antecipava-se já a leitura que hegemonicamente
se imporia ao Ocidente da Guerra Fria, dos anos 1950,
aparentemente inspirada em Hannah Arendt e no seu
Origins of Totalitarianism, no qual, curiosamente, a
autora alemã distinguia ainda Revolução bolchevique de
Stalinismo, sublinhando a perspectiva de Lenine ao
promover uma “classe camponesa emancipada”, a
modernidade da sua política das nacionalidades, a sua
“[tentativa] de fortalecimento da classe trabalhadora
encorajando os sindicatos independentes”, até mesmo a
sua “[tolerância] para com o tímido aparecimento de uma
classe média proveniente da NEP”. Arendt não
encontrava, em 1951, na Revolução bolchevique, nem
mesmo naquilo que descreve como sendo a “ditadura
revolucionária” de Lenine (por oposição à “ditadura
totalitária” de Stalin), os processos que intrinsecamente
7
explicassem a passagem para o Totalitarismo.
No início dos anos 1960, contudo, Arendt evolui
para um outro patamar da anomalização da Revolução –
ou melhor, de um certo tipo de revoluções, aquelas das
quais está presente uma dimensão de ruptura da estrutura
social pré-existente. No seu ensaio On Revolution, a
referente filosófica de um pensamento que se tornara
dominante no Ocidente lamentava o peso dos exemplos
francês e russo na construção da modernidade política do
séc. XX. A sua aposta era agora recuperar o “glorioso
5
COBBAN, Alfred, Dictatorship, [ed. ori. amer.: 1939], Nova York,
Haskell, 1971, 112.
6
Cf. Ormens Ägg (O ovo da serpente), realizado e escrito por Ingmar
Bergman, Alemanha/EUA, Rialto Films/Dino de Laurentiis Corp.,
1977. A expressão aparece originalmente na obra Júlio César de
William Shakespeare.
7
ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo, trad. port. [ed. ori.
amer.: 1951], Lisboa, Pubs. Dom Quixote, 2004, pp. 422-32.
exemplo” da Revolução norte-americana, na qual,
recorde-se, esclavagismo e supremacia de uma minoria
étnica de origem europeia coexistiam com a proclamação
formal da liberdade e da cidadania como modelos
políticos universais. Opunha-lhe Arendt a “trajetória
desastrosa” da Revolução Francesa com a emergência do
Jacobinismo. A dedução lógica era a de que “a liberdade
se conservou melhor nos países onde não se desencadeou
nenhuma revolução” segundo o modelo francês, ou, pelo
menos, onde esta tenha sido derrotada. Começa aqui,
podemos dizer – e di-lo Domenico Losurdo, por exemplo
–, um outro procedimento argumentativo que tende a
negar a viabilidade do conceito de uma “revolução
ocidental”, que teria tido na Revolução Francesa um dos
seus processos arquetípicos, procurando-se excluir da
“civilização ocidental” (a expressão é usada por Arendt) a
Revolução Francesa, de cujo legado se terá desembocado
na Revolução de Outubro ou na revolução
anticolonialista que percorria o mundo afroasiático já nos
quinze anos anteriores à obra de Arendt.8
A desocidentalização da Revolução de Outubro
– na esteira de uma velha tese do caráter não-ocidental
(isto é, não-europeu) da Rússia e da cultura russa - já a
havia tentado Robert Palmer, que no seu The Age of
Democratic Revolution (publicado em 1959-64)
distinguira já a “revolução do mundo ocidental” do séc.
XVIII, na qual, em geral, e até então, se incluía ainda a
Revolução Francesa, das revoluções de um mundo que
ocidentocentricamente se definia como “não ocidental”,
e que iam preenchendo o séc. XX. O enorme alcance de
semelhante tese percebe-se melhor se considerarmos que
desde, pelo menos, o séc. XVIII, as elites europeias
vinham definindo a modernidade, o progresso, o triunfo
da civilização e do espírito humano como um puro
produto ocidental, desse Ocidente que se espraiava pelas
duas margens do Atlântico e que rapidamente
reivindicaria, em plena era do triunfo liberal e capitalista,
um direito de conquista e ocupação civilizadora e
libertadora do resto do planeta.
O procedimento argumentativo é o da
patologização da Revolução, dos processos
revolucionários, descritos como ciclos anômalos na
História. Quando nos anos 1970 François Furet se lançou
sobre o legado da Revolução Francesa, descreveu as
“incessantes agitações revolucionárias” na França dos
sécs. XVIIII e XIX como uma “doença”, provocada por
“vírus de uma espécie nova e desconhecida” que se
“enfureceu”, ainda por cima “com violência redobrada no
séc. XX”9 através, por exemplo, das revoluções de
impulso socialista e anticolonialista. A tese era já de que
estávamos perante um “delírio ideológico” - a ideologia
como febre que devasta o organismo social - que teria
produzido o chamado Terror do período 1793-94 e, um
pouco mais de século depois, diretamente, o Gulag.
A psiquiatrização da semântica com que a
Revolução Russa é apresentada teve num dos seus mais
consagrados historiadores, Richard Pipes, um cultor. No
8
Cf. ARENDT, Hannah. On Revolution, Nova York, Penguin Books,
1962.
9
FURET, François. Penser la Révolution Française, Paris, Gallimard,
1978, pp. 16-17.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (11-16) - 13
seu The Russian Revolution, de 1990 fala-se de “psicose
revolucionária”, de um “desejo intenso, irracional, de ver
ruir todo o edifício da monarquia russa”, pressupondose, portanto, que o combate político dos partidários da
Revolução se fizera, se faz, movido por um desejo
psicótico semelhante ao do incendiário que se regozija na
destruição pura e simples... Quem eram os portadores de
semelhante patologia? Antes de mais um “grupo (…)
nutrido de fanáticos, revolucionários de profissão”, uma
vanguarda de conspiradores, portanto, capazes de
mobilizar segmentos importantes da sociedade mas cujo
enraizamento nesta, caracterizados enquanto
conspiradores profissionais, se pode perceber apenas
como sendo muito artificial. Por outras palavras, a
Revolução é, entre outras coisas, produto de um grupo de
revolucionários que, justamente enquanto tal, não são
representativos do conjunto da sociedade.
Outra das leituras correntes dos processos
revolucionários – e que bem conhecemos, por exemplo,
no caso da Revolução portuguesa de 1974-76 – é o de
produzirem uma (lamentável, percebe-se) interrupção de
ciclos reformistas legítima e honestamente
democratizantes. É a tese, de novo, de Richard Pipes para
o caso russo: o czar Nicolau II, por exemplo, já teria, em
sua opinião, acolhido “todas as reivindicações dos
revolucionários” em Novembro de 1916, em plena
guerra mundial, um ano antes do triunfo bolchevique.
Será, entre outros, a demonstrada capacidade de os
bolcheviques contaminarem os próprios socialistas
moderados liderados por Kerensky com o seu “discurso
histérico” contra as “classes dominantes” da sociedade
russa a alimentar uma, percebe-se, inútil deslegitimação
10
do sistema político.
O “objetivo principal” de todo este movimento
revisionista da História das revoluções contemporâneas
é, no dizer de Domenico Losurdo, o “conjunto do ciclo
histórico que de 1789 conduz a 1917”. Uma vez
conseguido esse objetivo, produzem-se “efeitos e
desabamentos em cadeia”: “Sem a Revolução Francesa
não pode ser compreendido o Risorgimento italiano” ou
aquela que é descrita já há anos como a “revolução
desencadeada pelo Norte” contra o Sul esclavagista que
11
teria provocado a Guerra da Secessão norteamericana,
da mesma forma que sem a Revolução de Outubro não é
inteligível a luta de libertação anticolonial ou resistência
antifascista dos anos da ascensão internacional do
Nazifascismo, “na qual um papel de primeiro plano foi
jogado pelas forças políticas e sociais que se
12
reivindicavam explicitamente do bolchevismo”. Neste
sentido, desde o fim da II Guerra Mundial que se
desenvolveu por toda a Europa toda uma literatura
revisionista que pretendia pôr em questão a legitimação
das democracias pós-1945 na luta das forças da
Resistência antinazi, frequentemente tornada a ação desta
equivalente, moral e politicamente, às práticas do
ocupante ou dos seus aliados nacionais (os vichystas
10
Cf. PIPES, Richard. The Russian Revolution, Nova York, Alfred A.
Knopf, 1990.
11
CURTIS III; G. M. & THOMPSON Jr., J. J. (eds.), The Souther
Essays. Richard M. Weaver, Indianapolis, Liberty Press, 1987.
12
LOSURDO, op. cit., pp. 6-7.
franceses, os partidários da República de Salò em Itália,
os ustashas croatas, os colaboracionistas holandeses,
13
belgas, sérvios, gregos...). Até mesmo nos EUA, a
leitura da política social de Roosevelt, nos anos do New
Deal e da II Guerra Mundial, cujo projecto de democracia
social baseado na freedom from want, foi interpretado por
um autor tão influente como Friedrich von Hayek como
tendo incorporado a influência ruinosa da “revolução
marxista russa”.14
Talvez seja necessário situar o leitor brasileiro no
campo da interpretação da Revolução portuguesa de
1974-76. O argumentário que acabo de expor tem sido
replicado na leitura, hoje creio que já majoritária em
Portugal, que desde os anos 1980 se tem vindo a fazer da
Revolução aberta pelo 25 de Abril de 1974. Em sectores
significativos da produção politológica e historiográfica,
bem como, e sobretudo, na enorme maioria do discurso
mediático e no discurso político das personagens da
direita política, tem-se persistido na tese de um 25 de
Abril como resultado de uma conspiração de um grupo
restrito de militares, rapidamente aproveitada por um
conjunto também restrito de membros de diretórios
partidários da oposição antisalazarista mais radical – por
outras palavras, um grupo pouco representativo da
sociedade que se teria arvorado em vanguarda de uma
mudança que, aparentemente, não teria sido desejada
pela maioria. Como Pipes sobre a Rússia de 1916, desde
meados dos anos 1990 (o 20º aniversário da democracia,
em 1994, em plena fase final do ciclo cavaquista no
governo português, foi um ponto significativo de
elaboração desta interpretação) que se insinua que o 25 de
Abril teria interrompido um processo de mudança
política que já estaria em curso com o marcelismo, no
qual, pelos vistos, se fundiriam modernização
socioeconômica e uma resolução (em que termos?, isso é
que não se especifica…) do problema africano. Os
militares, preocupados com problemas de natureza
corporativa e (inaceitavelmente, nesta perspectiva)
cansados da guerra, ter-se-iam precipitado numa
iniciativa irresponsável. Por fim, o processo
revolucionário, com o que se descreve ter sido o seu
estendal de excessos e erros (socialização da propriedade,
nacionalizações, movimentos reivindicativos, …), teria
propiciado iniciativas políticas que se interpretam como
sendo contrárias ao espírito e às tradições mais profundas
da sociedade portuguesa, obrigando os sectores e as
instituições que se reputam serem representativas da
sociedade portuguesa (a Igreja Católica, os sectores
políticos e militares descritos como moderados e
13
Abordo desenvolvidamente esta questão em “O nosso século é
fascista!” O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945), 2007, e
Salazarismo e Franquismo na Época de Hitler (1936-1942).
Convergência política, preconceito ideológico e oportunidade
histórica na redefinição internacional de Portugal e Espanha, 1996,
ambos Porto, Campo das Letras. Uma síntese em “Esquecimento,
revisão da História e revolta da memória”, In DELGADO, Ivã; LOFF,
Manuel; CLUNY, António; PACHECO, Carlos; MONTEIRO,
Ricardo (coords.), De Pinochet a Timor Lorosae. Impunidade e
Direito à Memória, Lisboa: Fundação Humberto Delgado/Edições
Cosmos, 2000, pp. 189-202.
14
Cf. HAYEK, Friedrich von, Law, Legislation and Liberty, 3 vols.,
The University of Chicago Press, 1973-79.
14 - Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução
responsáveis, o universo empresarial descrito como
responsável pela produção da riqueza) ao recurso a todo o
tipo de meios, sendo alguns deles (o que se vem
admitindo, reveladoramente, cada vez mais)
assumidamente ilegítimos em circunstâncias normais
mas compreensíveis dada a deriva revolucionária no
sentido totalitário (interpretação que é dada ao projeto
político da esquerda revolucionária, e, dentro desta,
15
especialmente ao PCP): o bombismo ou a aberta
interferência de serviços secretos estrangeiros, para
conseguir corrigir os erros praticados.
A leitura dos processos de mudança – como,
ainda que não queira parecer demasiado óbvio, a leitura
de toda a História em geral – envolve sempre, pelo menos
na sua dimensão social e não estritamente acadêmica, ou
intelectual, se se preferir, numa batalha pela memória
que, em minha opinião, só recentemente começou a ter
visibilidade pública.
Como já deixei entrever, creio que é central a
todo este processo uma viragem ideológica que
configurou, desde o final já dos anos 70, uma nova
hegemonia, de natureza neoliberal e neoconservadora, a
primeira de cujas batalhas foi, justamente, a de denunciar
uma visão da História centrada no otimismo teleológico
que marcava as grandes etapas da História com um
processo revolucionário incontornável, descrita agora
como um produto de uma verdadeira ditadura cultural da
esquerda, por vezes apresentada diretamente como um
totalitarismo cultural marxista, para usar a terminologia
com que os intelectuais neocon norteamericanos, ou um
François Furet e um Bernard-Henri Lévy em França, um
Ernesto Galli della Loggia e os ideólogos de bolso do
berlusconismo em Itália, ou um Pacheco Pereira em
Portugal, gostam de descrever a cultura progressista
euroamericana que se estruturou desde a Guerra Civil de
Espanha em torno de uma ampla frente de combate contra
o Fascismo, e que permaneceu articulada até ao fim da
Guerra do Vietname – de Hemingway ou dos Hollywood
Ten,16 por exemplo, até Sartre, Brecht, os movimentos
pela paz, Zeca Afonso17 ou a Escola de Frankfurt,18 para
juntar vários e díspares exemplos de uma vez.
15
Entre Maio de 1975 e Dezembro de 1976, o «anticomunismo
terrorista» de que fala Josep Sánchez Cervelló leva a cabo mais de meio
milhar de operações terroristas, das quais resultam, pelo menos, 14
vítimas mortais. A sua estruturação «baseou-se em quatro componentes:
o apoio da hierarquia eclesiástica, cujo epicentro foi o arcebispado de
Braga; a ajuda operacional, técnica e econômica de Espanha, que além
disso proporcionava uma retaguarda segura; a colaboração com os
militares contrários ao 25 de Abril que vertebraram todo o movimento,
tornando-o eficaz; e, por último, a concordância de todas as forças
políticas desde os socialistas até à direita, majoritárias nos distritos do
centro e norte do País» CERVELLÓ, J. Sánchez, A Revolução
portuguesa e a sua influência na transição espanhola (1961-1976).
Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 237.
16
Referência a dez das centenas de realizadores, guionistas ou atores
que foram perseguidos nos últimos anos '40, primeiros '50, pela
Comissão de Actividades Antiamericanas dominada pelo Senador
McCarthy, concretamente um grupo que foi convocado
simultaneamente e que se recusou a prestar declarações, o mais
destacado dos quais era o realizador Edward Dmytryk.
17
José Afonso (1929-1987) é o mais emblemático dos chamados
cantores de intervenção das décadas de '60 e '70 em Portugal, autor de
«Grândola, Vila Morena», transformado em hino da revolução do 25
de Abril de 1974.
Tomemos alguns dados eleitorais para localizar
esta viragem ideológica naquela que habitualmente
designamos por opinião pública do Ocidente: em Março
de 1979, Margaret Thatcher vencia as eleições na GrãBretanha, meses depois o PCI retrocedia eleitoralmente
pela primeira vez desde 1945 e os socialdemocratas
suecos perdiam o poder para a direita pela primeira vez
desde 1932; um ano depois, era a vez do primeiro triunfo
de Reagan nos EUA, ao qual se seguiriam doze anos de
administrações republicanas; em 1982, Helmut Kohl
ascendia a chanceler por uma mudança de coligações no
Parlamento, sendo ratificado nas urnas entre 1983 e 1997.
Em todos os casos, salvo o sueco, as direitas políticas
permaneceriam no poder até bem entrados os anos 90.
Em Portugal, 1979 foi também o ano da primeira vitória
eleitoral da direita portuguesa, através da Aliança
Democrática; o PSD não sairia do poder nos 16 anos
seguintes. Era o refluxo conservador, um pêndulo que
virava generalizadamente à direita em quase todo o
mundo ocidental.19
Pessoalmente, não creio que a produção da
componente intelectual destas direitas tenha apresentado
nesta fase histórica – os últimos 35 anos, portanto –, em
que ganhou preponderância acadêmica mas sobretudo
mediática, contributos particularmente inovadores
relativamente ao acervo teórico que produzira desde os
primeiros anos 50, sobretudo em torno da chamada teoria
do totalitarismo. Neste sentido, o triunfo desta nova visão
hegemônica da História e da realidade social parece-me
não se ter devido tanto a um impulso intelectual
especialmente criativo que, repito, não creio que se tenha
dado, mas sim ter resultado de alterações profundas na
relação de forças social e econômica que retiraram base
de apoio aos sectores culturais que até aqui – e por
simplificação – designei como progressistas. Já agora – e
ainda que me não queira envolver numa grande discussão
de metodologia de interpretação histórica -, deixem-me
adiantar que não acho, da mesma forma, que tenha sido o
grande vigor intelectual das esquerdas antifascistas dos
anos 30 e 40 e dos anos 60 e 70 o principal responsável
pelo seu predomínio ideológico no pós-II Guerra
Mundial, porque, justamente, não creio que, em geral,
possamos detectar honestamente situações de
hegemonia, ou, pelo menos, de predomínio ideológico à
escala de toda uma sociedade numa determinada
conjuntura histórica, sem que essa tenha emergido de um
conjunto de transformações sociais, e económicas, e
culturais, que em muito superam o estrito plano
intelectual.20
18
Designação pela qual se tornou conhecido o grupo de investigadores
sociais de perspectiva marxista que começou a desenvolver o seu
trabalho em 1923 no Institut für Sozialforschung. A sua teoria crítica
tornou-se um contributo central na redefinição do papel das ciências
sociais no séc. XX.
19
E até fora dele: na maior democracia parlamentar do Mundo, a Índia,
a direita nacionalista e religiosa ganhara, pela primeira vez desde a
independência em 1947, as eleições em 1977.
20
Apesar dos anos que sobrevieram à sua obra, parece-me útil recordar
aqui a interpretação de um György Lukács sobre o papel da filosofia
irracionalista na construção da hegemonia ideológica do
Nacionalsocialismo na Alemanha: “El hecho de que nos limitemos a
exponer esta parte del proceso [histórico de la emergencia del
Nazismo], la más abstracta de todas, no significa, ni mucho menos,
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (11-16) - 15
Se entendi que as direitas intelectuais não haviam
inovado de forma particularmente incisiva e criativa nos
anos do seu triunfo político (os últimos '70, os '80) é
porque sinceramente acho que o grande trunfo teórico
que conseguiram introduzir no debate intelectual, com
grande difusão social, foi claramente anterior a este
período, porque ocorreu no início da década de 1950 e a
que já me referi: a teoria do totalitarismo, base de uma
verdadeira escola de pensamento que, mais até do que se
basear na abordagem que Hannah Arendt faz, nas
Origens do Totalitarismo, de um conceito reivindicado
21
por toda a galáxia fascista dos anos 30, usou o manual
Totalitarian Dictatorship and Autocracy, de Carl
Friedrich e Zbigniew Brzezinski, publicado cinco anos
22
mais tarde (1956), como verdadeira bíblia dos discursos
dominantes na Ciência Política, na História, na
Sociologia, propondo uma espécie de vulgata facilmente
assumível pelos média e pelo discurso político mais
banal. Muito sucintamente, além das suas
potencialidades políticas imediatas (legitimar
teoricamente a divisão política efectiva do planeta, no
quadro da Guerra Fria, entre Estados/movimentos não
totalitários, configuradores do Mundo Livre, e
Estados/movimentos totalitários, necessariamente
liderados pela União Soviética; hermanar um
Comunismo a derrotar com um Nazismo já derrotado
como subprodutos do mesmo conceito totalitário de
intervenção na sociedade), a teoria do totalitarismo
propunha uma explicação da mudança social radical e da
mobilização social das massas nas sociedades
contemporâneas como fenômenos necessariamente
explicáveis pela manipulação deliberada, calculada,
arquitetada por grupos políticos que se autodescrevem
como vanguardas.
Esta creio ter sido a maior vitória intelectual dos
neoliberais dos anos 50, herdada pelos seus
23
correligionários do último quarto do século XX : ler os
processos de mudança sociopolítica impulsionados pela
participação das massas como jogos de manipulação de
verdadeiros profissionais da subversão política,
lançando, assim, a suspeita sobre a espontaneidade, a
representatividade real de toda a mobilização
sociopolítica. Lida a realidade desta forma, as únicas
formas de mudança social não artificiais, designemo-las
que tratemos de exagerar la importancia de la filosofía” - ou da
ideologia - “dentro de la agitada totalidad del proceso real”. Centrado
na realidade histórica alemã contemporânea, procurava Lukács
“señalar el camino seguido por Alemania hasta llegar a Hitler, en el
terreno de la filosofía (...), demostrar cómo esta trayectoria real se
refleja en la filosofía, y cómo las formulaciones filosóficas”
constituíam “el reflejo de la trayectoria real que ha conducido a
Alemania al hitlerismo, han ayudado a acelerar este proceso histórico”
[in LUKÁCS, Georg [sic], El asalto a la razón. La trayectoria del
irracionalismo desde Schelling hasta Hitler, trad. esp., Barcelona:
Grijalbo, 1975, p. 4].
21
E que havia sido já trabalhado uma década antes por compatriotas
seus alemães identicamente exilados, como Franz Borkenau e Franz
Neumann.
22
Nova York: Harcourt, Brace and Co.
23
Com particular relevo para Francis Fukuyama e para a sua tese do
“The End of History”, título do artigo publicado in The National
Interest, vol. 16 (Verão de 1989); cf. também o seu O Fim da História e
o Último Homem, trad. port., Lisboa: Gradiva, 1992.
assim, seriam produto de longos processos de mudança,
suficientemente longos para resultarem de complicados
processos de negociação entre sectores das elites
políticas e sociais, uns mais conservadores, outros mais
reformistas, cujos produtos finais seriam, portanto,
sempre consensuados com os grupos dominantes no
momento em que tais processos teriam o seu início.
Exemplos mais evidentes desta interpretação,
obviamente neoliberal, dos processos históricos de
mudança: “desastrosas”, “criminosas” terão sido as
revoluções francesa e russa; “naturais”, “moderadas”,
“gloriosas” até, as revoluções inglesa e americana.
Se a leitura da História é sempre uma
componente essencial da interpretação ideológica do
mundo social, o que a teoria do totalitarismo vinha trazer
para a arena intelectual era uma chave teórica de
funcionamento bastante automático que permitia rejeitar
à partida o fulcro do pensamento progressista
hegemônico nos anos 60 e 70 do século passado. Os
termos essenciais desta teoria – contraposição Mundo
Livre/Totalitarismo, Liberdade/Revolução, respeito pela
tradição contraposto a subversão social – foram, não nolo esqueçamos nunca, claramente hegemônicos em
algumas das sociedades ocidentais mais ricas (a
norteamericana, a alemã ocidental, a italiana,
provavelmente a britânica), convivendo com o
predomínio dos ideais progressistas noutros âmbitos da
interpretação do mundo, como a deslegitimação do
colonialismo formal, a relativa laicização dos costumes, a
procura da liberdade sexual ou o triunfo temporário de
um conceito do Estado como representação da sociedade,
empenhado na procura do Bem Público24. Será aquela
viragem política do fim dos anos 1970 e dos anos 1980,
num sentido politicamente conservador e ultraliberal no
estrito campo da economia, acompanhado da crise
definitiva do modelo soviético que arrastou atrás de si
grande parte do movimento comunista internacional na
viragem das décadas de '80 para '90, a esvaziar a
capacidade mobilizadora dos valores ideológicos
progressistas, abrindo espaço aos valores das direitas.
No caso português, em que é que aquelas leituras
estereotipadas da Revolução de 1974-76 me parecem
24
Relativamente a estas questões, costumo citar Richard Bosworth,
para quem «a teoria do totalitarismo foi deliberadamente desenhada
para se ajustar ao seu tempo», ou seja, os anos '50, «[a sua] década»,
podendo «a maioria dos historiadores perceber a procedimento tão
automático através do qual os pressupostos com que se interpretou o
inimigo do ciclo anterior, a Alemanha nazi, foram transferidos para o
seguinte, a URSS». A sua hegemonia terá tido até «implicações
"totalitárias"» em duas grandes vertentes: «Era a resposta certa, ou
melhor, a única resposta. Era ainda a resposta válida para sempre, ou,
pelo menos, para um futuro previsível já que enquanto o comunismo
sobrevivesse, nem a URSS, nem a China mudariam. A teoria era ainda,
potencialmente, pelo menos, agressiva. Na atmosfera de guerra
iminente que a própria teoria justificava ou promovia, aqueles que não
aceitassem a resposta correta poderiam ter de ser contidos ou
destruídos.» Nesta última acepção, Bosworth sublinha como a «ideia
do totalitarismo deu impulso às piores formas de intolerância política e
cultural que se manifestaram no McCarthismo» e configurou uma
atitude de «[empenho] na sua resposta única» semelhante à dos seus
«inimigos, os estalinistas marxistas vulgares». [BOSWORTH,
Richard J. B.. Explaining Auschwitz and Hiroshima. History Writing
and the Second World War, 1945-1990,. Londres e Nova York,
Routledge, 1994, pp. 24-25].
16 - Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução
herdeiras, partícipes, dos instrumentos essenciais de
leitura da realidade social da teoria do totalitarismo? Ao
ler a Revolução como simples produto, ou melhor,
subproduto, de uma conspiração militar, de um golpe
bem sucedido, já de si resultado de uma manipulação de
umas centenas de capitães por um par de ideólogos,
deixa-se-a pairar, digamos assim, sobre a evolução
histórica da sociedade portuguesa, tomando-a como um
fenômeno excepcional que não se inscreve numa
trajetória social, política, cultural mais ampla. Partindo
deste pressuposto, como ler, então, todas as
manifestações de criatividade política, social, cultural,
moral, que se seguiram ao fim da ditadura, e que,
visivelmente, envolviam tanta gente? Impossíveis de se
conceber como elementos lógicos num caminho que se
viria a percorrer nos anos anteriores, resta a possibilidade
de as ler como produto, uma vez mais, da manipulação
das massas por parte dos diretórios da subversão,
vanguardas que, forçosamente desligadas da vontade,
dos “sentimentos mais profundos da sociedade
portuguesa” – a expressão está absolutamente banalizada
neste tipo de discursos -, procuraram implantar soluções
inaceitáveis. Daqui até ao totalitarismo vai um passo
curtíssimo: o que é que pretenderia a esquerda
revolucionária portuguesa implantar em Portugal em
1974-75? O totalitarismo, claro está.
No ciclo de confronto de representações
ideológicas, filosóficas, simbólicas, em que desde meados
da década de '70 nos encontramos, a Revolução permanece
presente. Como conceito operativo de leitura da História, a
Revolução, por mais que se pretenda torná-la uma
excrescência histórica sem lugar no mapa das expectativas
dos povos, ocupará sempre a parte que lhe corresponde na
percepção dos processos sociais. Da forma como usamos o
conceito depende não só a (re)construção da nossa
memória pessoal e coletiva – depende, acima de tudo, a
viabilidade da sua aplicação futura.
Artigo recebido em 05/04/2011
Aprovado em 21/05/2011
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (17-22) - 17
Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas
Valerio Arcacy
1
M
as essas reivindicações não podem
satisfazer de nenhum modo ao partido do
proletariado. Enquanto os pequenos burgueses
democratas querem concluir a revolução o mais
rapidamente possível,(...) os nossos interesses e as
nossas tarefas consistem em tornar a revolução
permanente até que seja eliminada a dominação das
classes mais ou menos possuidoras, até que o
proletariado conquiste o poder do Estado até que a
associação dos proletários se desenvolva, não só em
um país, mas em todos os países predominantes do
mundo, em proporções tais que cesse a competição
entre os proletários desses países, e até que pelo
menos as forças produtivas decisivas estejam
concentradas nas mãos do proletariado.
Karl Marx e Friederich Engels2
Nas últimas três décadas e meia, revolução e
contra-revolução mediram forças, seriamente, por mais
de uma vez em diferentes continentes. Inúmeros países
foram convulsionados por situações revolucionárias que
asumiram a forma de greves gerais, marchas com milhões
nas ruas, corte de estradas, ocupação de prédios e terras
públicas, e enfrentamentos, às vezes sangrentos, com
aparelhos repressivos. Muitos destes processos
revolucionários foram derrotados, como a luta contra
ditadura militar no poder há 45 anos em Myamar em
2007, ou a luta contra o golpe em Honduras em 2010.
Revoluções políticas foram vitoriosas, entretanto em
muitas nações.
Não houve, no entanto, nesse intervalo histórico
de uma geração nenhuma revolução socialista vitoriosa.
Desde a derrota norte-americana no Vietnam em 1975,
em nenhum outro processo o capital foi expropriado. A
busca de uma explicação histórica para este desfecho
deve considerar muitos fatores de diversas naturezas:
econômicos, sociais, culturais, políticos e ideológicos.
Desde a revolução portuguesa em 1974/75, a Grécia é o
primeiro país europeu a viver uma situação
revolucionária ou pré-revolucionária. Os países centrais
continuaram poupados do vendaval da revolução. Na
segunda fase da Guerra Fria a orientação de Moscou
continuou sendo a colaboração com Washington para a
preservação da ordem mundial, com o apoio, também, de
Pequim que iniciava a restauração do capitalismo. A
1
Professor do IFSP (Instituto Federal de São Paulo), doutor em
História pela USP (Universidade de São Paulo), e autor de As
Esquinas Perigosas da História.
2
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Mensagem do Comité Central à
Liga dos comunistas” In Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega,
p.86.
decadência da economia soviética já era indisfarçável.
Uma etapa das relações internacionais se fechou e outra
se abriu em 1991 com a dissolução da URSS.
Não obstante, a hipótese deste artigo é que entre
os muitos fatores que podem explicar este processo, um
merece ser apreciado com especial atenção, porque até
hoje desvalorizado: a conversão da maioria da esquerda à
democracia-liberal. Em outras palavras, o respeito de que
o horizonte político da nossa época seria a regulação do
capitalismo através de reformas, respeitando o calendário
eleitoral. Este processo de adaptação não é uma novidade
histórica, portanto, os fatores que o determinam merecem
ser considerados como poderosos. Primeiro, a
socialdemocracia européia, após a I Guerra Mundial,
posicionou-se, claramente, contra o outubro russo.
Depois o estalinismo, posicionou-se contra um Outubro
na revolução espanhola. Na seqüência da Segunda
Guerra, Moscou foi hostil à ruptura anticapitalista tanto
na China, Vietnam e Coréia do Norte como em Cuba. Em
Portugal o PCP defendeu o respeito aos acordos
internacionais, incluindo a presença de Lisboa na OTAN.
Finalmente, até Fidel Castro aconselhou os sandinistas a
não fazer da Nicarágua uma nova Cuba. Após a
restauração capitalista, a maioria da esquerda que nos
seguintes a 1968 se fortaleceu à esquerda da
socialdemocracia e do estalinismo aderiu, também, à
estratégia da democratização da democracia.
Ditaduras foram derrubadas por revoluções
democráticas na América Latina (Argentina no início dos
anos 80; Haiti e Paraguai nos anos 90), na África (África
do Sul e Zaire nos anos 90; Tunísia e Egito em 2011) e na
Ásia (Indonésia nos anos 90), entre inúmeros outros
processos. Até governos eleitos foram deslocados pela
mobilização política de massas, como na Argentina em
2001, na Bolívia em 2003 e 2005. Um golpe de Estado foi
derrotado na Venezuela em 2002. As mudanças de
regimes político exigiram, com uma freqüência mais
intensa do que nas etapas históricas anteriores, o recurso
aos métodos revolucionários. As transições negociadas
de regime político de ditaduras para democracias, embora
permanecessem acontecendo, como no Chile de Pinochet
nos anos 90, foram mais exceções do que regra.
Em nenhum processo, mesmo naqueles
socialmente mais radicalizados, como na Nicarágua
depois do triunfo da Frente Sandinista, o capitalismo foi
ameaçado. A ditadura de Somoza foi derrubada na
Nicarágua em 1979 e o entusiasmo que ela despertou
ameaçou alastrar a dinâmica revolucionária para El
Salvador, mas a onda terminou derrotada com o impasse
da guerra civil financiada pelo governo Reagan. As
18 - Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas
revoluções políticas permaneceram somente como
revoluções democráticas ou fevereiros, por analogia com
a revolução russa de fevereiro de 1917.
Revoluções políticas são as revoluções
democráticas que culminam com a demolição de
regimes, ou seja, a destruição das instituições que
garantiam a dominação política, mas mantém intactas as
relações sociais, portanto, as relações de propriedade. Na
época do imperialismo, as revoluções políticas merecem
ser consideradas como revoluções sociais interrompidas,
porque só podem vencer quando mobilizam as classes
populares. Revoluções são qualificadas, freqüentemente,
por três critérios: (a) pelas tarefas que se colocam; (b)
pelos resultados que alcançam; (c) pelos sujeitos
políticos que as dirigem. Não obstante, revoluções só
podem ser avaliadas, historicamente, quando se
considera as classes ou bloco de classes que as fizeram.
Nas nações periféricas, mesmo aquelas mais
retardatárias na integração no mercado mundial
capitalista, as classes populares foram socialmente
subjugadas e economicamente expropriadas e já
iniciaram a proletarização há pelo menos duas gerações.
Se os sujeitos sociais das revoluções políticas são as
classes oprimidas e ou exploradas, as revoluções
democráticas continham desde o seu início, de forma
mais madura ou menos consciente, reivindicações
econômicas e sociais que, para serem satisfeitas,
ameaçariam a ordem capitalista. A presença e a
disposição de luta da classe operária naqueles países
dependentes ou semicoloniais mais industrializados e
urbanizados sinalizavam o perigo de revoluções sociais.
Mas, o que aconteceram foram revoluções sociais
interrompidas, porque bloqueadas pela intervenção do
imperialismo, como na Nicarágua, abortadas pela reação
das classes proprietárias e desviadas pela escolhas
estratégicas de direções como o CNA e o Partido
Comunista na África do Sul.
O que poderia explicar este desenlace histórico,
se não faltaram crises regulares do capitalismo, e suas
seqüelas não diminuíram os sacrifícios impostos à
maioria do povo, inclusive, depois dos anos oitenta, no
centro do sistema? Por quê tantas revoluções de
Fevereiro, e nenhuma revolução de Outubro? Processos
desta complexidade exigem que se considerem muitas
variáveis em que as consequências se transformam em
causas e vice-versa, ou seja, as determinações
econômico-sociais e políticas estão de tal maneira
entrelaçadas que redescobrir o fio da meada é um trabalho
de ourivesaria historiográfica. A restauração capitalista
na China e ex-URSS desvalorizaram o projeto socialista.
As revoluções interrompidas facilitaram a restauração
capitalista. O protagonismo do proletariado ficou
dissolvido na grande frente da luta democrática de todo o
povo, por ausência de uma auto-organização mais
independente.
Mas não se deve subestimar o papel
desempenhado pelas direções políticas (sandinistas,
tupamaros, montoneros, petistas, por exemplo) que
abraçaram, despudoradamente, ideologias nacionalistas
e democráticas para defender fórmulas obscuras de um
projeto que, mesmo quando ainda nominalmente
socialista, era apresentado como a luta pela
democratização da democracia. Esta evolução de
organizações originalmente independentes dos aparelhos
socialdemocratas e estalinistas teve uma história que
culminou em um transformismo que as deixou
irreconhecíveis. Campismo, reformismo, e gradualismo
podem assumir as mais variadas formas e culminaram na
defesa em políticas públicas de assistência social focada.
Veremos como e porquê.
A urgência do internacionalismo
Esta dinâmica não impediu a necessidade do
internacionalismo que, ao contrário, ganhou nova
urgência. Mesmo a vitória de revoluções políticas é
duvidosa quando condenadas ao isolamento nacional,
como ficou demonstrado no processo de Honduras em
2010. Uma onda torrencial de revoluções democráticas se
estendeu pelo mundo árabe no primeiro semestre de 2011
levando à queda fulminante de ditaduras militares na
Tunísia e no Egito, e à precipitação de uma guerra civil na
Líbia, que provocou uma intervenção armada da OTAN,
diante do perigo de descontrole do Oriente Médio.
Dezenas de milhares de jovens e, também, de
trabalhadores encabeçaram a mobilização de todo o
povo, igualmente, no Bahrein, no Yemen e na Síria. O
desenlace deste processo ainda é incerto.
As revoluções democráticas poderão ser
vitoriosas ou não. Assad em Damasco e Gadaffi em
Trípoli poderão ou não cair. A onda revolucionária ainda
terá forças para se estender até à Arábia Saudita, a
fortaleza protegida dos EUA, da Europa e do Japão no
mundo árabe? Não sabemos, também, em que medida os
combates contra as ditaduras irão se radicalizar,
socialmente, contra os privilégios de tipo “oriental” das
burguesias dos petrodólares. É uma nova geração de
jovens estudantes e operários que se levanta. Não
sabemos se a revolução democrática em marcha terá
forças para ameaçar o controle das grandes companhias
internacionais que exploram o petróleo.
Mas o que está em causa não é somente a
dominação imposta nos países árabes pelas suas Forças
Armadas, aparelhos que substituem a forma-partido
nestes regimes bonapartistas, em regimes monárquicos
ou de fachada republicana. O que está se encerrando é
uma etapa histórica do capitalismo na região. Uma
configuração do sistema de Estados construída para
proteger o Estado de Israel e garantir o petróleo barato. As
insurreições democráticas poderão ou não ser a ante-sala
de revoluções sociais. A revolução política, contudo,
voltou ao vocabulário da política. E quando a revolução
reaparece como a ruptura da inércia histórica, desperta a
contra-revolução. Porque são dois os planos que estão
sendo, simultaneamente, articulados. Serão estes
processos revolucionários derrotados, bruscamente, pela
repressão impiedosa, como a de Assad na Síria? Os
milhares de mortos, até agora, serão suficientes para
interromper a dinâmica aberta pela Praça Tahrir? Ou
serão desafiados pela tentativa de legitimar regimes
democráticos eleitos que consigam integrar a esquerda
através de eleições?
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (17-22) - 19
As teses pós-modernas de inspiração
foucaultianas que insistiram nas últimas duas décadas na
desqualificação da revolução deixaram de ser criticadas
somente pelos marxistas. Foram refutadas pelos
combates na Tunísia, no Egito, na Líbia, no Yemen, no
Bahrein e na Síria. Grandes acontecimentos podem ter
como faísca pequenos episódios, mas a centelha não
explica o incêndio. A história registra milhares de
fagulhas que não se alastram A auto-imolação de um
jovem no interior da Tunísia inflamou a revolta de
milhões, mas não esclarece porque ela aconteceu. Para
aqueles que se interessam por história e marxismo, a onda
de revoluções nos países árabes de 2011 reatualiza a
discussão sobre a teoria da revolução no marxismo.
O malogro da estratégia da democratização
da democracia
O marxismo interpreta os debates de estratégia
caracterizando, em última análise, cada posição em
função da intensidade das pressões de classe. Uma
caracterização de classe não é algo simples e deve
encerrar uma avaliação, não pode iniciá-la. As pressões
de classe são, todavia, um fator inescapável na análise da
política. Há mais de cem anos que a esquerda socialista
conhece as conseqüências devastadoras da força de
cooptação e, também, de coerção dos regimes
democrático-liberais. A luta do movimento operário e das
organizações socialistas foi decisiva para garantir a
expansão do direito do voto, sendo uma das forças sociais
e políticas que explicam a existência dos regimes
democráticos. Mas, se a presença da esquerda foi vital
para a conquista das liberdades democráticas e civis,
influenciando e até determinando a forma dos regimes
democráticos em inúmeros países, como a Inglaterra, a
França e a Alemanha, é incontornável considerar,
também, que a democracia-liberal exerceu uma pressão
terrível sobre os partidos socialistas.
Na verdade, deveríamos nos lembrar que o
capital só aceitou a dominação através de regimes
democráticos no final do século XIX e início do XX,
quando obteve a garantia que os líderes socialistas tinham
renunciado ao projeto revolucionário, assegurando-se
que a socialdemocracia não utilizaria as liberdades
democráticas para subverter a ordem, organizando os
trabalhadores para a luta pelo poder. Na etapa histórica
anterior à Primeira Guerra Mundial, a sugestão de uma
“via inglesa” - a perspectiva reformista da possibilidade
de uma transição pós-capitalista por dentro do regime
democrático, portanto, sem ruptura revolucionária –
esteve no centro da disputa dentro da II Internacional e
ficou conhecida como o debate Bernstein.
A querela do primeiro revisionismo marxista
teve como pano de fundo a expansão imperialista do final
do século XIX – até a Primeira Guerra Mundial - e a
consolidação de regimes democrático-eleitorais, na
Europa ocidental, que absorviam as ambições de
integração dos aparelhos sindicais e parlamentares
reformistas – uma casta burocrática sustentada em
setores privilegiados da classe trabalhadora e, também,
das novas classes médias assalariadas. O reformismo não
era, contudo, nesse período histórico, somente uma
ideologia desconectada do processo econômico-social. O
regime democrático se apoiava em reformas ou
concessões que favoreciam setores organizados entre os
trabalhadores: o salário médio subia lentamente, mas
subia; a redução da jornada evoluía lentamente, mas
evoluía; contratos coletivos eram negociados
reconhecendo direitos sociais mínimos; sistemas de
aposentadorias, reformas e pensões surgiam em alguns
setores mais organizados; muitas cidades as vilas
operárias – a conquista da casa própria - como uma
solução urbanística ao crescimento urbano; o acesso à
educação pública se ampliava, os direitos políticos foram
ampliados, etc...
O “gradualismo democrático” permaneceu
sendo a política dos aparelhos social-democratas, na
etapa histórica posterior à Segunda Guerra, associados,
dependendo do país, aos partidos comunistas alinhados
com Moscou, mas despojado de horizontes socialistas. A
reconstrução capitalista da Europa fomentava um
crescimento que garantia o pleno emprego,
potencializado pela divisão de áreas de influência no
mundo entre os EUA e a URSS, que garantia estabilidade
política aos regimes democrático-liberais nos países
imperialistas. Este programa de colaboração de classes
renunciou, finalmente, até ao vocabulário anticapitalista
depois dos anos cinquenta, em função de um projeto de
regulação social do capitalismo que buscava a
universalização de serviços públicos como saúde,
educação e previdência social. Social-democracia e
estalinismo abraçaram a democracia e, durante décadas,
relembravam o socialismo, uma quimera nostálgica, nos
dias de festa. O regime democrático posterior entre
1945/1980 tinha bases sociais ampliadas: desemprego
baixo, contínuo aumento da escolaridade média,
aumentos salariais e ampliação do acesso ao crédito,
ampliação da rede de segurança social e serviços
públicos, etc...
A armadilha democrática
Mas, nos anos oitenta, no contexto de uma crise
de estagnação econômica, o programa reformista desceu
mais um degrau em sua adaptação ao regime democrático
e aos limites do capitalismo, assimilando a pressão dos
ajustes exigidos pelo programa do neoliberalismo, o que
originou a Terceira Via dos anos noventa: depois de
Felipe González e do segundo mandato Mitterand, Blair
do Labour Party Britânico e Schroeder do SPD alemão
passaram a denunciar a perda de competitividade da
economia européia diante dos EUA e da Ásia, os gastos
insustentáveis dos serviços sociais, os excessos fiscais do
estatismo intervencionista, etc...
Diante da ofensiva neoliberal, conduzida em
vários países pelos seus próprios partidos ou com a
cumplicidade de suas organizações sindicais, aconteceu
uma evolução desfavorável para os trabalhadores das
relações de forças sociais e políticas: com as derrotas,
ocorreu uma desmoralização de amplos setores da classe.
As bases sociais da social-democracia passaram, então,
também, por grandes mudanças com o debilitamento do
movimento operário tradicional e a precarização do
trabalho da juventude.
20 - Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas
O aumento simultâneo do desemprego crônico e
de grandes movimentos migratórios do norte da África,
do Leste europeu e da América Latina, ajuda a explicar o
contexto do crescimento da abstenção operária, e o
deslocamento à direita das classes médias rurais e
urbanas. Em resumo, desde 1980, os regimes
democráticos deixaram de oferecer para a classe
trabalhadora, mesmo nos países centrais, a segurança de
que a geração futura poderia aguardar um futuro melhor
que a geração passada. Surgiu um reformismo de contrareformas. A democracia-liberal entrou em crise, e com ela
a sua ala esquerda, os partidos reformistas, que passaram
a defender um programa de administração do
neoliberalismo com descontos: ruim conosco, pior sem
nós, gerindo a destruição das gorduras acumuladas em
décadas anteriores.
A crise da economia capitalista, desde meados
dos setenta, foi atenuada, mas não foi superada pela
restauração capitalista no Leste e pela recolonização da
América Latina. No Oriente Médio, o elo mais frágil da
dominação imperialista no mundo, a resistência palestina
permanecia indomável. Uma contra-ofensiva em escala
mundial se iniciou com a eleição de Bush em 2000,
conduzindo, a pretexto da luta contra o terrorismo
islâmico, à invasão o Afeganistão e do Iraque.
O mapa da esquerda mundial começou a passar,
então, por grandes mudanças. Não só a democracia nos
países imperialistas já não garantia emprego, salário,
aposentadoria, saúde e educação, mas exigia uma política
de guerra permanente. Nasceu um movimento mundial
contra as guerras imperialistas que foi capaz de organizar
marchas com alguns milhões. À esquerda da
socialdemocracia e do curso majoritário dos ex-partidos
comunistas, entre as ideologias nostálgicas do
reformismo das etapas históricas anteriores, nenhuma foi
mais representativa do que o programa da “cidadania
participativa” que reuniu em Porto Alegre, desde 2001,
centenas de organizações e algumas dezenas de milhares
de ativistas de todos os continentes contra a globalização.
Heterogênea, política e socialmente, com posições que
oscilam desde a defesa das experiências do “orçamento
participativo” do Governo do PT do Rio Grande do Sul,
até à proposta da taxa Tobin sobre as transações
financeiras internacionais, como os colaboradores da
ATTAC, passando pelos que se iludem com o projeto de
democratização dos organismos internacionais, como a
ONU, o elemento comum que unifica uma boa parte
dessa “nova esquerda” mundial é a ilusão na democracia.
O internacionalismo revolucionário, tal como inspirou a
fundação da Primeira, Segunda e Terceira Internacional,
no limiar do novo século, seria uma utopia.
O fiasco do Governo Lula, depois do que foram
os governos Walesa e Mandela, é mais uma confirmação
dos limites de uma estratégia reformista sem reformas, ou
com reformas reacionárias. Mesmo as correntes que se
colocam à esquerda desta esquerda – a maioria das quais
com origem no trotskismo - são forças engajadas na
construção de partidos anticapitalistas sem delimitação
estratégica, ou seja, que admitem a idéia de unir em um
mesmo partido, tendências que defendem a reforma do
capitalismo e o gradualismo democrático, e tendências
comprometidas com um projeto revolucionário. Nesta
coabitação de projetos incompatíveis tendem a vingar
híbridos com dinâmicas de adaptação aos regimes
democráticos.
A versão mais nuançada do reformismo
contemporâneo admite a necessidade de preparação de
mobilizações de massas para rupturas com o regime,
porém, reduz a revolução a um “processo de rupturas”
sem a necessidade de uma insurreição contra os governos
democraticamente eleitos. A democracia seria inviolável.
A democracia estaria blindada pela legitimidade das
urnas. Há, por último, quem mantenha a convicção de que
uma revolução permanece necessária como programa
máximo, mas argumenta que aos socialistas caberia o
papel de defesa e aprofundamento da democracia contra a
burguesia como programa de ação. Não são poucos os
que afirmam que este giro político decorre de uma
redescoberta de Marx, em contraposição à versão
leninista do marxismo, um blanquismo substitucionista e
autoritário. Para outros, pressionados pelos pressupostos
liberais, residia no próprio marxismo o pecado original
que culminou nos regimes despóticos estalinistas: a
transformação da sociedade apelando ao proletariado à
revolução – uma classe explorada, oprimida e dominada
– exigiria uma ditadura sangrenta, porque o custo
histórico de uma menor desigualdade seria a destruição
da liberdade.
O recurso à “via inglesa” para justificar a
estratégia de “democratização da democracia”
A ditadura do proletariado, entendida como um
período de suspensão parcial das formas políticas
democráticas para uma parcela privilegiada e muito
minoritária da sociedade - as classes proprietárias que
foram derrotadas - ficou de tal maneira identificada com
as ditaduras burocráticas que virou um conceito tabu.
Mas no século XIX a idéia de uma ditadura
revolucionária apoiada nas classes populares se inspirava
na experiência da revolução francesa, e remetia à idéia
romana de ditadura, um regime transitório e excepcional,
em que a defesa da República exigiria medidas de
exceção.
A ditadura revolucionária era compreendida por
Marx como uma necessidade incontornável em uma
experiência de transição ao socialismo, já que em todas as
experiências históricas da revolução burguesa a força da
contra-revolução tinha sido devastadora. Se a passagem
do poder das mãos de uma classe proprietária para outra,
dentro de uma nação, como na Inglaterra em 1640 ou na
França em 1789, teve como imperativo histórico a
necessidade de ditaduras – a de Cromwell e a dos
jacobinos de Robespierre - seria previsível que a
passagem do poder dos capitalistas para uma classe de
despojados, o proletariado, ainda por cima à escala
internacional, deveria considerar, também, e seriamente,
a necessidade de uma ditadura.
A conceituação de ditadura do proletariado
sempre foi uma definição da nova natureza do Estado,
sob a qual poderiam existir, tal como sob a ditadura
burguesa, variados regimes políticos. Não se encontrará
em nenhum texto clássico do marxismo a teorização da
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (17-22) - 21
necessidade de uma ditadura de partido único. A ditadura
na Rússia dos Sovietes não começou com a proibição dos
partidos de oposição. Ao contrário, os partidos de
oposição eram aceitos até o início da guerra civil. E só
foram ilegalizados depois que atentados armados, como
os dos esseristas de esquerda contra Lenin no centro de
Moscou, colocaram em risco a própria sobrevivência do
novo Estado. Se as revoluções socialistas viessem a
triunfar em alguns dos países centrais, seria provável uma
ampliação das liberdades democráticas para além dos
estreitos limites estabelecidos pelas repúblicas
burguesas, oferecendo um novo sentido histórico à
definição de democracia. Mas, tudo isso são hoje somente
hipóteses históricas ainda não confirmadas. Entretanto, o
ceticismo reina.
Sobre a interpretação da “via inglesa”, Texier,
por exemplo, afirma que Marx previa que o sufrágio
universal conduziria, necessariamente, a classe operária
ao poder:
Pelo menos em relação ao continente porque
existem em alguns trechos dos escritos de Marx e Engels
formulações ambíguas, porém, pouco conclusivas. Elas
foram suficientes para alimentar, sob a pressão histórica
da estabilização da democracia no pós-guerra nos países
centrais, e nos últimos anos, sob a pressão da ofensiva
neoliberal na Europa ocidental e na América Latina, a
idéia de que Marx não teria descartado a possibilidade,
mesmo que excepcional, de uma passagem pacífica ao
socialismo. Um ou outro comentário indicaria, segundo
alguns autores interessados em legitimar o programa da
“democratização da democracia” – uma fórmula etapista
que remete a Bernstein e sua crítica ao suposto
catastrofismo-blanquista de Marx - uma hipótese
estratégica distinta em relação à Inglaterra e os EUA, a
chamada “via inglesa” É o que podemos encontrar no
trabalho de investigação de Texier:
As palavras de ordem de Marx e de Blanqui são os
mesmas, ditadura revolucionária do proletariado e
revolução permanente (...) Ela implica uma luta feroz
contra a democracia pequeno-burguesa que não deixará
de chegar ao poder na próxima fase da revolução. Tratase, portanto, de fazer o necessário para derrotar estes
aliados de momento, e mover-se rapidamente para a
fase do comunismo (...) Seus artigos não reivindicavam
a ditadura e o terrorismo contra as forças de reação? Na
primavera de 1850, a intransigência revolucionária de
Marx e Engels se desdobra em um contexto
completamente ilusório: tratava-se de ir para o
comunismo em um país como a Alemanha. Neste caso,
podemos dizer que a violência revolucionária tem uma
função taumatúrgica que é correlativa à perspectiva
realista. O que pode diferenciá-lo da violência das
minorias ativas de tipo blanquista? (...) Conclui-se
sobre esta questão do blanquismo de Marx, dizendo que
Marx não é, sem dúvida, Blanqui, mas é uma lenda que
nos diz Lenin quando nos fala de uma distinção radical
que sempre existiu entre o marxismo e o
blanquismo. (tradução nossa)4
No caso da Inglaterra, Marx prevê uma transição
pacífica para o socialismo antes que as instituições
democráticas existissem por lá. O princípio defendido
é que em um país onde o proletariado constitui a
maioria da população e onde ele está consciente de si
mesmo como uma classe, o sufrágio universal (e as
instituições que garantem a existência da soberania
popular) conduzem, necessariamente, a classe
operária ao poder. Neste sentido, Marx dizia, nada é
mais socialista que a reivindicação do sufrágio
universal pelos cartistas. (tradução nossa)3
A via inglesa seria, portanto, segundo Texier,
uma via não revolucionária de transição histórica apoiada
na extensão das liberdades democráticas, na ampliação
irrestrita do direito ao sufrágio universal e conquista
eleitoral do poder político, sustentada no peso social do
proletariado. Enfim, uma releitura dos termos da relação
entre democracia e revolução, na qual a segunda estaria
subsumida na primeira. A democracia sendo um fim deve
ser um meio. A revolução sendo um meio
antidemocrático deveria degenerar sempre em tirania.
A revolução permanente era uma palavra de
ordem blanquista?
A operação teórica não é nova e já vitimou há
cem anos atrás o próprio Marx. Não há, contudo, razões
para muita controvérsia sobre a concepção de revolução
que animava Marx e Engels em 1848/50. Ela tinha no seu
centro um pensamento que, pelo menos em relação ao
continente, desenhava a perspectiva de um processo de
duas revoluções políticas encadeadas, seqüenciadas,
ininterruptas - a primeira política e democrática, a
segunda social e anticapitalista - inspirada no padrão mais
influente nos círculos extremistas de meados do século
XIX que, por sua vez, derivava da experiência histórica
do modelo francês de 1789/93. Nesse sentido, Marx usou
algumas vezes a fórmula da revolução permanente - em
especial na famosa Carta à Liga dos Comunistas de 1850 sem se deter em maiores explicações.
3
TEXIER, Jacques. Révolution et démocratie chez Marx et Engels.
Paris, PUF, Actuel Marx Confrontation, 1998, p.338.
Téxier tem razão quando resume o programa
socialista às duas palavras de ordem: ditadura do
proletariado e revolução permanente. Quanto ao “conto
do vigário” que Lênin teria nos deixado, Texier confunde
a interpretação marxista da revolução quando a reduz a
um processo de “mobilização de minorias ativas”. Marx
se une ao movimento operário impressionado pelas ações
de massas do Cartismo inglês. Ora, o que justamente
separava o blanquismo do marxismo era a concepção
substitucionista do sujeito social pelo sujeito político – a
organização clandestina e determinada que faz a
revolução - isto é, a defesa que os carbonários faziam da
tática insurrecional crônica, do que inclusive resultou
uma ruptura de uma ala na Liga dos Comunistas. De
qualquer forma, o tema é importante, e vale a pena
conferir as conclusões de Draper, quase hemorrágico pela
erudição:
A história provou, com certeza, que esta perspectiva
foi prematura, em 1848, que a sociedade e o
proletariado ainda não estavam maduras para a
4
Idem, p.352-8.
22 - Trinta e cinco anos de revoluções interrompidas
revolução socialista, ou seja, para "uma revolução da
maioria", mas é claro que existe um abismo entre esta
aspiração de encontrar uma maneira de conseguir
"uma revolução da maioria" e a meta blanquista da
tomada do poder por um grupo de conspiradores. Nas
linhas de “As lutas de classes na França” Marx
estabeleceu a idéia clara de uma maioria que é
liderada por uma classe: "Os operários franceses não
podiam dar um passo em frente, não podiam tocar um
fio de cabelo da ordem burguesa, até que o curso da
revolução despertou a massa da nação, camponeses e
pequenos burgueses, de pé entre o proletariado e a
burguesia, contra esta ordem, contra a dominação do
capital, e os tinha forçado a juntar-se aos proletários
como seus protagonistas. (tradução nossa)5
A questão é central, e ainda hoje provoca
avaliações apaixonadas, como podemos conferir neste
fragmento de Texier:
Agora, o que Engels nos diz em 1895, é que Marx e ele
(...) pensavam de forma bastante ilusória, quando
imaginavam em 1848, e não só em 1848, mas mais de
vinte anos depois, em 1871, que a transformação
revolucionária da sociedade burguesa em sociedade
comunista estava na ordem do dia.(...) O que estava,
então, na ordem do dia era a revolução industrial
capitalista (...) O tipo de retrospectiva que encontramos
nesta "Introdução" de Engels implica que o tempo
mudou e que o que fala tem capacidade de reconhecer
que uma página foi virada.6 (tradução nossa)
Texier encontra, portanto, no balanço do
chamado “testamento” de Engels, um ponto de apoio para
concluir que o Engels de 1895 rompia com as
“influências blanquistas de 1848” o que de alguma forma
faria de Engels, nesta questão, um bernsteiniano “avant la
lettre”. E no entanto, segundo Draper:
Esta é a visão de que o movimento para a revolução
proletária não deve começar até que haja uma
possibilidade real de vitória, antes da qual seria
"utópico" e "irrealista "(...) Em qualquer caso, não há
nenhuma maneira de determinar quando a
possibilidade histórica da vitória chegou. Neste
sentido: nos engajamos e depois veremos. Meio
século depois qualquer um poderia ver que a
revolução proletária foi prematura, em 1848; quando
Engels escreveu esta opinião em 1895, ele não estava
sob a impressão de que era uma grande revelação. (...)
Esta foi para alguns, para Engels não, uma
condenação dos revolucionários de quarenta e oito
por não possuir uma bola de cristal.7 (tradução nossa)
É possível, evidentemente, não concordar com a
leitura ortodoxa de Draper, que nos parece irretocável.
Em poucas palavras, não é possível avaliar se uma
revolução é prematura, senão depois que a sorte foi
lançada. Um exercício histórico legítimo, mas um
procedimento político impossível. Assim como não é
menos desonesta a tentativa de dissociar a teoria da
5
DRAPER, Hal. Karl Marx's theory of revolution. New york, Monthly
review press, 1978. p.257.
6
TEXIER, op. cit.. p.27-8.
7
DRAPER, op. cit, p.272 e 287.
revolução de Engels, convertido à democracia, de um
Marx blanquista. Ou separar o marxismo revolucionário
de Lenin de um Marx democrático. Ou ainda pior, atribuir
aao marxismo a responsabilidade teórica pelo
estalinismo.
Artigo recebido em 11/04/2011
Aprovado em 23/05/2011
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (23-27) - 23
Centralização X Democracia: uma aproximação aos
dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa
Fabio Luis Barbosa dos Santos
1
I
ntrodução
O presente trabalho visa a uma aproximação
entre as revoluções francesa e russa encetando uma
reflexão acerca do dilema colocado pela necessidade de
centralização política comum a ambos processos, mas
que contribuem de maneira decisiva para gerar as
circunstâncias que definirão o próprio limite de sua
radicalidade histórica. Definimos um dilema como o
impasse apresentado por uma situação onde a decisão se
coloca difícil e irreversível, qualquer que seja o caminho
escolhido. Assim, se a conjuntura de guerra e a miséria
enfrentadas permitem o acirramento das contradições
sociais que explodem com intenção construtiva no
processo revolucionário, a resposta aos problemas
franqueados exigirá medidas que, embora essenciais para
preservar a revolução, paradoxalmente enfraquecem suas
bases social, econômica e moral.
Dilemas da revolução
As revoluções francesa e russa, processos de uma
radicalidade ímpar a seu tempo, viveram dilemas
semelhantes, de que os principais quadros bolcheviques
tiveram interessada consciência: em sua atuação
revolucionária, procuraram superar os limites de uma
experiência da qual se reconheciam, em vários sentidos,
como tributários. Em que pesem as diferenças de
contexto histórico e a singularidade das respectivas
formações sociais, incidindo no padrão de luta de classes
de cada situação, ambas revoluções viveram impasses
decisivos trazidos de um lado por uma conjuntura
internacional de guerra, e de outro, pela necessidade de
centralização inerente à própria dinâmica da destruição e
criação revolucionária. Aliás, são problemas que,
expostos na sua forma mais aguda nestas duas
experiências históricas, foram recolocados de maneira
mais ou menos dramática em todas as explosões
revolucionárias de caráter popular desde então.
Nosso objetivo é fazer uma aproximação de
como os governos revolucionários lidaram com estes
dilemas a partir das possibilidades históricas que lhe
estavam franqueadas. Na análise da Revolução Francesa,
nos baseamos em três autores consagrados: Albert
2
Mathiez, George Lefebvre e Albert Soboul . Embora
apresentem diferenças quanto ao período abordado,
1
Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo.
Albert Mathiez, História da Revolução Francesa. Atena Editora, sem
data e cidade; Georges Lefebvre. 1789 – O surgimento da Revolução
Francesa. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1989; Albert Soboul.
Précis d'histoire de la Révolution française. Paris: Éditions
Sociales, 1973.
2
recorte enfatizado e nuances interpretativas, os três
abordam a revolução como um feito social de
conseqüências transcendentais, inserido na problemática
histórica mais ampla da transição do feudalismo para o
capitalismo e o estabelecimento da sociedade burguesa. A
comparação com a experiência russa tomará como base o
trabalho de Leon Trotsky, “A História da Revolução
Russa”, relato minuncioso legado por uma liderança
3
protagonista do processo. Circunscrito aos
acontecimentos de 1917, esta obra será complementada
pela história da Revolução Russa indiretamente contada
na trilogia escrita por seu principal biógrafo, Isaac
Deutscher.4 O recorte bibliográfico explica-se pela
freqüente remissão feita nestas obras à experiência
anterior francesa, conseqüência da preocupação comum
aos autores em compreender a essência do processo
revolucionário. Ao escolhermos um problema da
semelhante natureza para este trabalho, a escolha
bibliográfica apresenta-se justificada.
Guerra e intervencionismo
a) França
Na França, a crise deflagrada inicialmente pela
aristocracia, que pressionou pela convocação dos Estados
Gerais, desencadeia um processo que se radicaliza
progressivamente, levando à auto-proclamação da
Assembléia Nacional que está determinada a limitar o
poder real. Neste contexto, o recurso à intervenção
externa emerge como estratégia da salvação monárquica.
No entanto, a guerra não será declarada pela
monarquia francesa. Ao contrário, é a sua derrota
progressiva, aterrorizando a realeza dos estados vizinhos,
que os encoraja a se aliarem em uma frente reacionária.
Deste momento até a última derrota de Napoleão, a
França enfrentará sete coalisões de países contrarevolucionários. Paradoxalmente, é a prisão do rei em
fuga em Varennes que explicitará o caráter anti-nacional
(no sentido histórico recém atribuído ao termo) e anti3
No Brasil, a obra foi publicada pela Editora Paz e Terra (Rio de
Janeiro, 3 volumes, 1977) e recentemente, pela Editora Sunderman (2
volumes, São Paulo, 2007). Na elaboração deste trabalho utilizamos a
edição francesa, traduzindo por nossa conta as citações.: León
Trotsky. Histoire de la révolution russe. Paris: Éditions du Seuil 1950,
2 volumes.
4
No Brasil, a trilogia foi recentemente republicada pela Editora
Civilização Brasileira (“O Profeta Armado”; “O Profeta Desarmado”;
“O Profeta Banido”. São Paulo: 2005/6). Neste trabalho, utilizamos a
edição inglesa, traduzindo por nossa conta as citações: Isaac
Deutscher. The Prophet Armed (1879-1921).; The Prophet Unarmed
(1921-1929); The Prophet Outcast (1929-1940). Londres: Oxford
University Press, 1980.
24 - Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa
popular da realeza. No estrangeiro, o impacto da detenção
real precipitará as hostilidades militares, enquanto
internamente pavimenta-se o caminho para a nova onda
de manifestação popular, que culminará na adoção da
república. O novo governo revolucionário realiza o
julgamento que culmina com a condenação do rei à
morte, sinal claro do radicalismo alcançado na França e
que incendiará a reação européia. Internamente, o
julgamento do rei contribui para explicitar as hesitações
da fração girondina dominante, alimentando seu
descrédito e enfim, a sua queda. O terreno é franqueado
para a ascensão da Montanha: a pressão popular leva à
organização da ditadura jacobina, que assume como
tarefa comandar a salvação pública. O esforço necessário
para salvar a revolução constrange o segmento mais
radical da burguesia, encarnado pelos jacobinos, a fazer
concessões democráticas no sentido de ganhar a adesão
voluntária dos sans-culotte e do campesinato à sua causa,
levando o conteúdo da revolução liderada pela burguesia
ao paroxismo.
O governo revolucionário tem sucesso na
organização de um exército de base nacional, uma
inovação histórica. Passa a reverter, a partir de Valmy, os
reveses militares no exterior. Com isso, ganha
legitimidade para a política de terror interno, uma
reivindicação popular para enfrentar a reação. O esforço
de guerra molda a um tempo a novidade do espírito
nacional, dotado de um marcado conteúdo democrático, e
uma “economia de guerra”, operada sobretudo no
período da Convenção da Montanha e a política de
salvação pública da ditadura jacobina. De um lado o
recrutamento de massa; de outro o controle do Estado
sobre a economia, sobretudo através do estabelecimento
dos “máximos”.
O terror emerge como produto de uma situação
revolucionária que precisa se proteger interna e
externamente da ameaça contra-revolucionária. Para
sustentar um exército forjado em bases nacionais
necessário à defesa da revolução, o governo
revolucionário é obrigado a fazer seguidas concessões
democráticas, respondendo à pressão popular. O
aguçamento da situação faz com que a posição da
ditadura jacobina, comprometida por seu inelutável selo
de classe, torne-se insustentável: a revolução deve
radicalizar-se em um sentido democrático - o que exigiria
a condução do processo por um ator histórico que não se
apresenta - ou descambar para a guerra de conquista,
selando o fim das concessões de caráter popular, mas
preservando uma justificativa nacional para o conflito.
Segundo Soboul, apoiado nas conclusões de Lefebvre, o
que viabiliza a adesão e a extensão da guerra ao período
napoleônico seria em larga medida um produto da
revolução agrária, que aparece como uma transação entre
a burguesia e a democracia rural - conservadora em seus
efeitos - que é sobretudo a aliança em torno da defesa da
propriedade. Os limites da revolução geram a base social
e de classe do que será a reação.
Segundo Soboul, apoiado nas conclusões de
Lefebvre, a adesão popular à guerra no período
napoleônico seria em larga medida uma decorrência da
revolução agrária, interpretada como uma transação entre
a burguesia e a democracia rural que teve efeitos
conservadores, uma vez que alicerçou-se sobretudo na
defesa da propriedade. Assim, os limites da revolução
geram a base social e de classe do que será a reação.
b) Rússia
a
O papel da 1 guerra mundial no acirramento das
contradições da sociedade russa foi bastante evidente
para os protagonistas da revolução. O fracasso militar
explicitou o atraso do regime tzarista em relação às outras
potências do continente, ao mesmo tempo em que a
guerra agravou de maneira dramática as condições de
vida já miseráveis do grosso da população, submetida
ainda ao recrutamento e portanto ao sacrifício
compulsório e incompreensível seja em casa, seja no
front. Nesta perspectiva, a guerra contribuiu de maneira
decisiva para acelerar o movimento de massas e o
enfrentamento do Antigo Regime. Uma vez derrocado o
tzar em fevereiro de 1917, as ambigüidades do governo
que o sucedeu em relação à uma guerra que o povo não
queria lhe foram fatais, levando à radicalização do
processo. O conflito europeu no qual a Rússia foi
envolvida mas também se envolveu, cumpriu um papel
didático subjetivo e objetivo, levando as massas à
consciência da distância entre os interesses das classes
dominantes e as necessidades da população, ao mesmo
tempo em que aguçou as condições de miséria e morte do
povo empurrando-o ao desespero, que o partido
bolchevique soube canalizar em um sentido
revolucionário.
Triunfante a revolução de Outubro, o governo
soviético perseguiu a paz. Foi obrigado a enfrentar não
apenas a intransigência e a belicosidade irrefreáveis do
governo alemão, que viria a causar considerável dano
militar apesar dos esforços de Brest-Litovsk, mas muito
mais grave: as potências estrangeiras, igualmente
assombradas diante do risco de uma vitória comunista,
deram seqüência ao conflito em território russo, invadido
por ao menos oito exércitos diferentes. A agressão
internacional colocou a revolução diante da imensa tarefa
de organizar o exército popular, ou seja, dar escala
continental ao exército vermelho que devia enfrentar não
apenas a contra-revolução branca que pululava, mas as
forças estrangeiras que lhe apoiavam.
A guerra, que acirrou as contradições da
sociedade russa desembocando na Revolução de
Outubro, causava agora uma devastação inaudita, a
despeito da atitude pacifista do novo governo. Diante
desta realidade, os primeiros passos da construção da
nova sociedade eram condicionados por uma dinâmica de
sobrevivência, reativa à situação que se colocava. A
guerra precipitará não apenas a centralização indiscutível
do partido bolchevique, em prejuízo das disposições
democráticas de suas principais lideranças, como
também obrigará a perseguições políticas em uma escala
e intensidade imprevistas. A brutalidade do confronto
militar conduz a revolução a uma senda aparentemente
inevitável, que engendra ao mesmo tempo as condições
que resultarão no seu estancamento após o esmagamento
da reação: aniquilamento dos quadros mais combativos
do partido e desfiguramento da classe operária que lhes
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (23-27) - 25
forjara; devastação do território e da base produtiva,
rebaixando dramaticamente o ponto de partida material
da revolução. A carestia justificará a continuidade de uma
economia de guerra, perpetuando uma dinâmica política
centralizada que dá ampla margem para a perseguição
política. Assim, o partido se descola da classe que lhe dera
as rédeas, abrindo espaço para a ascensão de um
personagem que maneje o controle da máquina
partidária, que por sua vez controla o governo e portanto,
o país. Os limites da revolução aparecem condicionados
pela própria dimensão dos desafios que teve de enfrentar,
ainda no berço, para a sua consolidação.
Assim, se a guerra acelerou a luta de classes e
forjou uma coesão nacional em torno à defesa da
revolução, por outro lado abreviou de maneira inelutável
o alcance da obra revolucionária desencadeada.
Contraste
Ambas revoluções tem seu radicalismo freado
pelas distorções sociais inerentes a uma economia e uma
sociedade voltados para a salvação pública, que nas
circunstâncias, significou a defesa da revolução. No caso
francês, as seguidas ondas de pressão popular causam
concessões sociais que, por um lado, radicalizam o
caráter popular do processo, mas incapaz de ir além do
selo de classe congênito à liderança burguesa, termina
por engendrar o apoio camponês e a consolidação
burguesa que levará à contra-revolução. Na Rússia, o
esgotamento das energias revolucionárias, seja do ângulo
dos quadros políticos e da classe operária, seja do ponto
de vista material, ocasionado pelo prolongamento
indesejado do conflito militar, condicionará os limites de
um processo que parecia sem limites, na medida em que a
condução revolucionária (o partido) se descola da classe
social que a produziu. Não havendo classe capaz de
produzir a reação antipopular (Trotsky desconfiava do
exército) esta foi gerada no próprio seio do novo grupo
ascendente.
Padrões do processo revolucionário
a) dualidade de poderes
Na análise de Trotsky, a questão da dualidade de
poderes é central aos dilemas vividos pela revolução.
Reflexo de uma situação social crítica onde o novo ainda
não reuniu forças para irromper destruindo o velho, mas o
velho também não encontra meios de sustentar a
dominação anterior, a natureza instável da dualidade de
poderes é transitória por natureza, clamando por uma
solução centralizadora, seja na direção da revolução ou
do seu contrário: “A necessidade da ditadura
característica tanto das revoluções como das contrarevoluções procede das contradições intoleráveis
5
advindas da dualidade de poderes.”
Analisando a situação colocada pela Revolução
Francesa, o líder russo observa que a Assembléia
Constituinte, liderada pela elite do Terceiro Estado,
concentra o poder sem suprimir totalmente as
prerrogativas do poder real. Esta dualidade persiste até a
fuga do rei e é liquidada formalmente com a proclamação
5
Trotsky, op. cit. vol. 1, p. 256. Tradução do autor do texto.
da República. Uma nova dualidade de poderes é instalada
antes da chegada da guerra e da guilhotina, quando entra
6
em cena a Comuna Insurrecional de Paris , que se apoia
nas camadas inferiores do Terceiro Estado e disputa o
poder com os representantes da nação burguesa, ao
mesmo tempo em que, no campo, ascende a insurreição
camponesa contra a legalidade burguesa que protege a
propriedade feudal.
Segundo Trotsky, a Comuna revolucionária se
opõe à Assembléia legislativa e depois à Convenção, que
retardam a realização das tarefas revolucionárias, em um
processo onde cada uma das etapas se caracterizou por
uma dualidade de poderes claramente delineada, e os
pólos da luta em curso se empenhavam em estabelecer
uma autoridade única e forte, seja defensivamente no
caso da direita, ou ofensivamente no campo da esquerda.
A partir do 9 termidor, sucessivas guerras civis marcam o
descenso do empuxe revolucionário, como havia seguido
a sua ascensão, em um contexto onde a sociedade nova
busca um novo equilíbrio de forças, sempre nos marcos
de uma dualidade de poder.
Diante da situação russa, Trotsky recupera a
experiência da Revolução Francesa, ao analisar a
dualidade de poderes colocada pela ascensão política dos
sovietes, acelerada vertiginosamente após a Revolução
de fevereiro. Identifica na extrema instabilidade
característica da situação revolucionária um magnetismo
social que tende à solução centralizadora, seja para a
direita ou para a esquerda: “Toda sociedade de classes
precisa de uma unidade de desígnio governamental. A
dualidade de poderes é, em sua essência, um regime
social de crise (...)”. 7 Percebe na experiência
revolucionária a recorrência do que chama as “jornadas
de julho”, coincidentemente ocorridas no mesmo mês na
França em 1791 e na Rússia em 1917, como prefiguração
do momento decisivo de superação da crise, que em geral
se faz em um sentido reacionário. Explica a natureza
desta jornada de lutas, que chama de uma “meiarevolução complementar,” pela própria dinâmica do
movimento revolucionário: neste estágio inconclusivo,
as massas acreditam ter força para retificar o processo em
curso enquanto a burguesia espera o momento adequado
para promover uma restauração violenta da ordem.
Não foi o caso das jornadas de julho de 1791 na
França nem em julho de 1917 na Rússia. No primeiro
caso, o massacre promovido por La Fayette sobre a
manifestação pacífica no Campo de Marte revelou-se
incapaz de deter o movimento republicano. Na Rússia, a
tentativa de investir o governo Kerensky de poderes
ilimitados, colocando-o acima da burguesia e da
democracia em um esforço de cunho bonapartista
fracassou,gerando o golpe frustrado liderado por Kornilov,
que acelerou o processo a ser consumado em outubro.
6
A partir da queda da Bastilha em 14 de julho de 1789 é estabelecido
um governo municipal dos revolucionários na capital francesa, que em
1792, na iminência da invasão estrangeira, se converte na Comuna
Insurrecional de Paris. Este organismo foi uma expressão política da
radicalização da revolução, e a derrota dos jacobinos em 1794
precipitou o seu fim. Não deve ser confundida com a famosa Comuna
de Paris de 1871.
7
Trotsky, op. cit. vol. 1, p. 91. Tradução do autor do texto.
26 - Centralização X Democracia: uma aproximação aos dilemas colocados pelas Revoluções Francesa e Russa
b) jacobinismo e bolchevismo
Triunfante a Revolução, os limites do governo
revolucionário são dados pela classe social que lhe da
sustentação e sentido. Neste ponto, Trotsky traça uma
diferenciação nítida entre a potencialidade jacobina e a
social-democracia antes mesmo da formação do partido
bolchevique, determinada pela evolução da conjuntura
histórica.8 No século XX, os social-democratas podem e
devem livrar-se de seus traços de jacobinismo, identificado
com o radicalismo burguês. Este ponto seria crucial na
determinação do caráter do governo revolucionário
bolchevique em contraste com a experiência jacobina.
Sintonizado com a classe revolucionária de seu tempo, não
haveria lugar para a guilhotina na revolução operária, cujo
materialismo encontrava-se em franca oposição com o
idealismo jacobino.9
Fundamental na concepção de Trotsky sobre o
caráter do governo revolucionário é o seu controle direto
pela classe que o forjou. Na sua visão, uma classe operária
capaz de exercer a ditadura sobre o conjunto da sociedade
não tolerará a ambição de um ditador que busque se impor
sobre si: nisto reside o limite da centralização operada pela
ditadura do proletariado. O problema adiantado por
Trotsky é se, uma vez feita a revolução, a classe operária
não é capaz de exercer sua ditadura sobre a sociedade.
Então, advém o risco do “substitutismo”: “A organização
de um pequeno comitê substitui o partido; então o Comitê
Central substitui a organização; e finalmente um ditador
substitui o Comitê Central.”10
c) centralização e terror
Ocorre precisamente este quadro na Revolução
Russa. Já em 1921 a classe operária, exaurida pela
revolução e a guerra civil, mostrava-se incapaz de exercer
sua ditadura sobre a sociedade. Esta não é uma situação
nova, uma vez que a conjunção de revolução e guerra
civil pressiona para a decomposição social da classe
revolucionária. Mas a radicalização do centralismo que
deriva desta situação extrema contem um potencial letal
demonstrado pela experiência francesa, segundo
Deutscher:
Por causa da desintegração do Terceiro Estado, a base
social da revolução estreitou-se e o poder era exercido
por cada vez menos pessoas. Eleição era substituída
por nomeação. Este processo estava avançada antes
do golpe Termidoriano; foi Robespierre quem o
aprofundou e então tornou-se sua vítima. Primeiro foi
a exasperação popular com a fome e a miséria que não
permitiu aos Jacobinos confiar ao voto popular o
destino da revolução; então a gestão arbitrária e
terrorista dos Jacobinos conduziu o povo à indiferença
política; e isto permitiu aos Termidorianos destruir
Robespierre e o partido Jacobino.11
8
Deutscher, op. cit., vl 1, p. 91.
Referindo-se ao idealismo jacobino, Deutscher escreve: “Eles não
pouparam hecatombe humana alguma para construir o pedestal para a
sua Verdade... A contrapartida da sua fé absoluta em uma idéia
metafísica era sua absoluta desconfiança das pessoas vivas.”
Deutscher, op.cit. vl 1, p. 90. Tradução do autor do texto.
10
Apud: Deutscher, op. cit., vl 1, p. 95. Tradução do autor do texto.
11
Deutscher, op. cit, vl 2 p. 436. Tradução do autor do texto.
9
Trotsky, que em coerência com a sua análise
sempre advogara a livre competição de idéias no interior
do partido, é levado pela urgência das circunstâncias a
proclamar o direito do partido estabelecer sua tutela sobre
o proletariado, assim como sobre o conjunto da
sociedade.12 Entretanto, a violência da reação interna e
estrangeira revelava uma complexidade imprevista ao
governo revolucionário, levado a recorrer a um “terror”
que acreditava possível evitar, considerada a afinidade da
revolução operária com seu tempo histórico. Esta não era
uma escolha de princípio político, mas ditada pela
circunstância objetiva, que dizimara a base operária já
estreita da Revolução. O recurso à ditadura e ao “terror”
premido pela objetividade da situação não era original e
revela-se uma característica do processo revolucionário
em geral.
A ditadura de um partido no momento em que
fragiliza-se o seu lastro com a classe operária, acentuando
a vigilância social em função da própria debilidade da
classe que o sustenta, gera uma situação imprevista,
aproximando os bolcheviques dos jacobinos. Segundo
Deutscher, reeditava-se a idéia jacobina de uma minoria
virtuosa e iluminada que substituía um povo imaturo com
a pretensão de trazer a razão e a felicidade.
O que o Jacobinismo e Bolchevismo tiveram em
comum foi o substitutismo. Cada um dos dois partidos
se colocou na cabeça da sociedade mas não podia
contar com o apoio voluntário da sociedade para a
realização do seu programa. Como os Jacobinos, os
Bolcheviques não podiam confiar que a sua Vérité
conquistasse os corações e as mentes do povo (...) Eles
também tiveram que traçar uma linha rígida dividindo
eles do resto do mundo (...) e eles também a estavam
traçando “com a ponta da guilhotina...”13
A arena política abria-se inadvertidamente para o
“substitutismo” que antevira Trotsky, trazendo implícito
o perigo de uma ditadura pessoal.
Conclusão
Segundo Trotsky, a revolução é uma resposta
bárbara para uma situação bárbara. A intransigência com
que as classes dominantes ameaçadas pela insurgência
defendem o estado de coisas, amparada pelo
conservadorismo internacional militante que não hesita
em intervir para salvaguardar o passado, coloca qualquer
projeto de governo revolucionário ante um dilema, entre
a centralização necessária e a democratização ensejada.
Longe de ser um acontecimento pontual, o
processo revolucionário deita raízes na história. Seu
motor são as contradições estruturais inerentes a uma
sociedade de classes que se acirram com o tempo,
produzindo uma alteração na qualidade destas relações
causando, que a contradição se transforme em
antagonismo, ou seja: uma incompatibilidade de
contrários. A crise manifesta-se no tecido social na forma
de uma conjuntura revolucionária, que pode resultar ou
não em uma situação revolucionária, dependendo
12
13
Deutscher, op. cit., vl. 2, p. 521
Deutscher, op. cit.,,vl. 2, p. 347. Tradução do autor do texto.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (23-27) - 27
principalmente da maturidade política dos atores sociais
envolvidos. O desenlace da crise tampouco se faz de um
golpe só: na realidade, a revolução constitui uma seqüência
mais ou menos prolongada de espasmos sociais mais ou
14
menos agudos, no sentido da mudança social.
No caso francês, de acordo com a análise
proposta por Lefebvre, observamos uma revolta
aristocrática atropelada pela ascensão burguesa. A
convocação dos Estados Gerais e a proclamação da
Assembléia Nacional abrem as comportas das energias
populares, que incidem na radicalidade do processo,
garantindo em um primeiro momento o triunfo burguês,
mas pressionando o desenrolar dos acontecimentos em
um sentido progressivamente democrático. Assim, à
Assembléia Constituinte segue-se a fuga do rei capturado
em Varennes, a precipitação da guerra e a proclamação da
república, produto do aguçamento da conjuntura. Ao
vacilar na realização do projeto revolucionário, a
Convenção Girondina é premida até ser derrubada pela
onda popular, cedendo passo à Convenção da Montanha e
à Ditadura Jacobina de salvação pública. Decisiva na
crescente radicalização do processo foi a participação
camponesa, embora o compromisso feito em torno à
garantia da propriedade privada tenha selado, segundo
Lefebvre, uma aliança conservadora que seria
fundamental para a sustentação da contra-revolução que
seguiria o golpe de Termidor.
Na Rússia, a revolução de 1905 é vista pelos
bolcheviques como o ensaio geral dos acontecimentos de
1917. A derrocada da monarquia em fevereiro,
precipitada pela miséria agravada em um contexto de
guerra, abriu espaço para um governo de compromisso. A
despeito do caráter popular do movimento que derrubou o
tzar, as forças revolucionárias não estavam preparadas
para tomar o poder, que passou às mãos de um governo
cuja ambivalência mal disfarçava seu caráter contrarevolucionário. As dificuldades da guerra e a miséria
social generalizada, enfrentadas com pusilanimidade
pelo novo governo ao mesmo tempo em que reprimia as
energias populares, foram radicalizando paulatinamente
o povo russo, sobretudo operários e camponeses, muitos
deles recrutados pelo exército. O prestígio dos sovietes,
legado da revolução de 1905, crescia e com isto o seu
poder. Estavam lançadas as bases para uma dualidade de
poderes que sobreviveria às jornadas de julho e ao golpe
militar de Kornilov, onde se revelaria a força do campo
popular em contraste com a impotência governamental.
O assalto ao palácio de Inverno realizado em fins de
outubro custaria pouco sangue. A tomada do poder fora
preparada por décadas, sobretudo através da dedicação
abnegada dos quadros bolcheviques, que se transformam
em maioria nos sovietes apenas poucos meses antes do
desenlace definitivo da primeira revolução operária.
O sucesso subseqüente da Revolução em relação
à radicalidade das demandas da qual se faz portadora é
colocado em xeque nas duas experiências pela violência
da reação contra-revolucionária. A centralização do
14
Ver: Florestan Fernandes. O que é revolução? Em: Clássicos sobre a
Revolução Brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2001. V. I.
Lênin. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1978.
poder político, a economia de guerra e a perseguição
implacável dos inimigos da revolução se impõem, à
despeito das pretensões de seus protagonistas. Porém,
como observamos na análise combinada de Trotsky e
Deutscher, a ditadura da necessidade selará, em um caso
como no outro, os limites da Revolução.
No caso francês, as crescentes concessões
democráticas do governo revolucionário objetivando
sedimentar a coesão necessária à formação de um
exército de bases nacionais, concorreram para acentuar a
contradição entre o radicalismo popular e a classe social
encarnada por seus governantes. Incapaz de superar os
limites da classe que lhes gerara, os jacobinos são
arrancados do poder pela reação, que se viabiliza em
meio à apatia social engendrada pelo terror e o pacto com
os camponeses em torno à propriedade, ambos frutos do
próprio regime revolucionário.
No caso russo, o esforço de guerra seguido por
anos de confronto civil deu a tônica da economia de
guerra e da ditadura do proletariado assumidos pelo
governo revolucionário. Engendrou-se um regime de
acentuada centralização política, em uma circunstância
onde o esgotamento da classe operária provocou o
descolamento do partido de seu lastro de classe, gerando
as condições para o “substituísmo” e a sobreposição do
partido sobre o Estado, como máquina à serviço de uma
ditadura pessoal.
O dilema consiste em calibrar entre a tensão
social gerada por uma revolução recente, e a necessidade
que esta apresenta por sua própria natureza inovadora de
arejar-se para intuir e perseguir o novo. A rigidez forçada
pela ameaça permanente de contra-revolução,
alimentada com persistência a partir do exterior, recoloca
o problema do internacionalismo revolucionário em
bases materiais e também sociais. Em última análise, o
fracasso da revolução mundial no crepúsculo da Primeira
Guerra ou da centelha republicana no outono do
absolutismo, condenaram estas experiências pioneiras
não apenas materialmente, mas também do ponto de vista
da democracia necessária à sua própria renovação
política. A agressiva hostilidade internacional, aliada ao
conservadorismo imanente a uma sociedade recémrevolucionada, concorreram para o surgimento de Stálin
e Napoleão, cristalização política dos limites encontrados
pelo mundo novo que irrompera.
Artigo recebido em 08/12/2010
Aprovado em 19/04/2011
28 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução
Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a
Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução
Carlos Zacarias de Sena Júnior1
U
m tema em quatro polêmicas
Surgida de uma inflexão tática promovida pela
Internacional Comunista (IC, Komintern, Terceira
Internacional) em seu VII Congresso, a política de Frente
Popular foi sempre um tema de recorrentes e intensos
debates no seio das organizações que reivindicam a
tradição terceirointernacionalista. Em primeiro lugar,
considerando a longevidade da tática que ainda anima
setores da esquerda em todo o mundo, em que medida se
pode dizer que a Frente Popular se converteu numa
estratégia permanente das correntes comunistas? Estaria
ela relacionada a um momento político específico, o
período do antifascismo e a conjuntura da Segunda
Guerra Mundial, ou seria uma imposição estratégica
vinculada à ascensão da diplomacia soviética e a
premência dos acordos possíveis ou firmados entre a
URSS e o Ocidente capitalista? Tratar-se-ia da reedição
atualizada da política de Frente Única dos anos 1920 ou
significaria uma aliança interclassista em muito diferente
da formulação original do III Congresso da IC de 1921?
Seria fruto de uma necessidade defensiva oriunda da
circunstância política de ascensão dos regimes nazifascistas ou protofascistas nos anos 1930 ou uma linha que
admitia a ofensiva e a participação em governos burgueses,
especialmente os de União Nacional do pós-guerra?
Obviamente, que, conforme o caso, poder-se-ão
encontrar argumentos para todos os gostos, tanto porque
nem mesmo a Frente Única é tema de menores
controvérsias entre os partidários do marxismo e mesmo
entre aqueles que reivindicam a tradição
terceirointernacionalista, mas, principalmente, pelo fato
de que foi a Frente Popular, ao menos na conjuntura da
sua formulação no início da década de 1930, que cindiu
decisivamente o movimento comunista internacional.
Dito de outra forma, não parece arriscado afirmar que
seja a Frente Popular um dos principais pontos de
divergência entre as mais importantes correntes que
reivindicam o legado de Lenin, de maneira que, dos
vários governos atualmente vigentes na América Latina,
até as recentes experiências eleitorais européias,
passando pelo governo francês de François Miterrand dos
anos 1980, a Frente Popular continua sendo um dos temas
políticos mais candentes da atualidade devido a sua
persistência no campo da esquerda marxista.
O que se pretende neste artigo é discutir os
caminhos percorridos pela formulação da linha de Frente
Popular, passando em revista a história do movimento
comunista internacional para que se compreendam seus
1
Professor do Departamento de História e do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
desdobramentos e as circunstâncias em que a IC foi
substituída pela diplomacia soviética e a revolução não
cessou de acumular derrotas ao longo de quase oitenta
anos, enquanto os comunistas dos PCs de vários países
não deixaram de buscar alianças com as burguesias locais
no caminho da democracia, sem adjetivações.
O caminho da derrocada
Em inícios dos anos 1930, enquanto na maioria
dos países do mundo o movimento comunista continuava
a defender que a social-democracia e o fascismo eram
irmãos gêmeos através da conhecida linha do Terceiro
Período, exarada em 1928 no VI Congresso da IC, na
França, um ligeiro movimento de inflexão ganhava
terreno e empurrava o Partido Comunista Francês (PCF)
para próximo das organizações social-democratas do
movimento operário.2 Após a ascensão de Hitler na
Alemanha, caminho facilitado pela política do Partido
Comunista que em 1930 havia afirmado que “o fascismo
tinha alcançado seu ponto culminante e que iria, dali por
diante, entrar em rápida decomposição, preparando o
caminho para a revolução proletária”, estava na França a
chave da situação internacional.3 No país dos gauleses,
repetia-se a situação de instabilidade encontrada na
Alemanha na virada dos anos 1920 para os anos 1930,
momento em que se prenunciava uma crise
revolucionária, de maneira que o PCF precisava deter o
avanço da direita bonapartista e, ao mesmo tempo,
apresentar respostas à ascensão galopante da luta de
classes e a proximidade de um desfecho em que
revolução e contra revolução, fatalmente, se
enfrentariam.
Embora não aparecesse para os seus dirigentes
como algo óbvio, o fracasso da política de “classe contra
classe” da IC já começava a ser pressentido em muitos
países. Tanto que em março de 1933 o Comitê Executivo
da Internacional Comunista (CEIC) lançou um chamado
à social-democracia para a formação de uma Frente
Única contra o fascismo. Tal apelo foi sucedido por um
reposicionamento do Komintern no XIII Pleno do CEIC,
realizado ainda em dezembro daquele mesmo ano. Muito
2
A linha conhecida como “terceiro período”, ou de “classe contra
classe”, foi adotada a partir de 1928, após o VI Congresso da
Internacional Comunista. Ela dizia que o capitalismo estava em vias
de entrar em colapso, o “terceiro período”, e um grande ascenso
revolucionário se anunciava após um “segundo período” de
estabilização (1923-1928), condição em que os comunistas deveriam
abdicar da formação de Frente Única com a social-democracia que era
vista como irmã-gêmea do fascismo.
3
TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução. Lisboa, Porto,
Luanda: Centro do Livro Brasileiro, s/d, p. 27.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (28-34) - 29
embora a IC não alterasse no substancial a política que
vinha desenvolvendo desde o VI Congresso, já que os
social-democratas permaneciam sendo acusados de
traidores e as teses sobre o “social-fascismo” eram
reafirmadas sem mediações, promovia-se uma ligeira
inflexão tática, de maneira que a Frente Única pela base
passava a ser proposta como alternativa para deter o
avanço do fascismo.4
Tratava-se, na verdade, de um primeiro
movimento de abandono da linha política do Terceiro
Período, momento em que a Internacional Comunista
passava gradualmente a entender que o perigo
representado pelo fascismo alcançava, indistintamente,
as organizações operárias ligadas aos comunistas e
também à social-democracia. Não obstante, ao que
parece, Stalin ainda não havia percebido as dimensões da
ameaça nazista em toda sua inteireza. Preocupado que
estava com o início das depurações no Partido Comunista
no interior da URSS e com os movimentos de sua
diplomacia no plano internacional, o dirigente soviético
aparentava ter pouca clareza quanto às diferenças entre a
democracia burguesa e o fascismo, tanto que as primeiras
ações unitárias contra os fascistas em diversos países,
ocorridas entre fins de 1933 e os primeiros meses de
1934, prescindiram da presença dos PCs que
permaneciam desconfiando dos sociais-democratas e da
“canalha trotskista”.
Foi a situação francesa que impulsionou as
mudanças que abriram caminho para o estabelecimento
de acordos com a social-democracia. Tais acordos
passavam a ser admitidos não apenas pela base, mas
também pelo alto, apesar da oposição inicial de Maurice
Thorez, dirigente máximo do PCF. A compreensão da IC,
que passava a enxergar a ameaça fascista que pairava
sobre o Arco do Triunfo, foi esclarecida em editorial do
Pravda, de 23 de maio de 1934, em que se afirmava que o
PCF deveria propor à direção da Seção Francesa da
Internacional Operária (SFIO), a formação de uma
“frente única de luta”, fórmula que deveria ser seguida
5
pelos Partidos Comunistas de outros países. Em verdade,
tal editorial, seguido de um artigo de Thorez que passava
a assumir possibilidade do retorno da política de Frente
Única, coincidia com a ascensão meteórica do búlgaro
Jorge Dimitrov aos cargos de direção no interior do
Komintern e a abertura de negociações entre a URSS e a
França, ambas tementes da ameaça representada pela
Alemanha nazista. Stalin havia não somente consentido a
ascensão fulgurante de Dimitrov à direção da IC, como
admitia a necessidade da guinada na linha política na
Internacional, tanto porque necessitava de uma
flexibilização tática ante as burguesias européias, quanto
porque prenunciava tempos difíceis para a sua política
externa e um maior isolamento da URSS.
Com o retorno da Frente Única e sua
extrapolação para uma aproximação com as burguesias e
4
DASSÚ, Marta. Frente Única e Frente Popular: o VII Congresso da
Internacional Comunista. In: HOBSBAWM (Org.), História do
marxismo. O marxismo na época da Terceira Internacional: da
Internacional Comunista de 1919 às Frentes Populares. 2 ed. Rio de
janeiro, Paz e Terra, 1985, v. 6, p. 293-294.
5
Idem, ibidem, p. 299.
seus partidos, estava aberto o caminho para a Frente
Popular. De acordo com Pierre Broué, a política de Stalin
para a IC visava não a revolução socialista, mas a guerra,
no instante em que soavam suas primeiras trombetas.
Desta forma, com a inflexão tática indicada para o
Komintern, pretendia-se desviar os trabalhadores da
Frente Única, esta entendida exclusivamente como uma
tática aplicada no âmbito dos partidos operários, para
“fazer deles um componente da política de busca por
alianças com os 'burgueses antifascistas', isto é, os
burgueses de todos os países dispostos a se opor ao
6
expansionismo alemão.” Em verdade, após os pequenos
ajustes táticos de 1933-1934, o acordo em torno da nova
linha já havia sido costurado entre algumas das mais
importantes Seções Nacionais e as principais lideranças
da IC, como Dimitri Manuilsky, Wilhem Pieck, Otto
Kuusinen, Bela Kun e Palmiro Togliatti, de maneira que
os debates do VII Congresso foram apenas um jogo de
cena sob o qual os verdadeiros e irremediáveis interesses
da URSS se moviam e se afirmavam sobre a pauta da
revolução mundial.7
Com efeito, não era mais possível dissociar os
interesses do Komintern e do Estado Soviético, haja vista
que a inflexão anunciada para a IC e que teve na França o
seu primeiro laboratório, atendia também ao propósito de
acomodação das forças políticas que se movimentavam
no interior do Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) no momento em que se proclamava o fim do
processo de transição com a vitória e a consolidação do
socialismo na URSS, sob a liderança de Stalin. O
dirigente soviético, agora elevado à categoria de
personagem onipresente do socialismo mundial, após
afastar Bukharin e a ala direita do PCUS da direção
política da IC e de toda e qualquer influência nos destinos
da “pátria do socialismo”, concluía o primeiro Plano
Qüinqüenal (1928-1933) e dava os largos passos para
transformar a URSS numa grande potência ao mesmo
tempo em que promovia a coletivização forçada da
agricultura soviética e preparava o terreno para os
famigerados “Processos de Moscou” que varreram da
cena política soviética novos e velhos “opositores” do
regime.
Da revolução mundial ao socialismo num
só país
As condições que vislumbraram a ascensão dos
regimes fascistas ou protofascistas na Europa, com
Mussolini e Hitler sendo suas “pontas de lança”, mas não
os únicos prepostos, representaram para o movimento
comunista o fim da vaga revolucionária e da expectativa
de que a Rússia dos sovietes não ficaria isolada. A bem da
verdade, o início dos anos 1930, em que o “culto à
personalidade” foi elevado ao máximo patamar na URSS,
significava, também, a afirmação de um período contrarevolucionário, com o nazi-fascismo esmagando o
movimento operário em diversos países e o stalinismo
6
BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista. Da atividade
política a atividade policial e anexos. São Paulo: Sundermann, 2007,
p. 831, v. 2.
7
Id., ibid., p. 832-833.
30 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução
fazendo retroceder inúmeras conquistas alcançadas pela
Revolução de 1917. Todavia, se no plano político o
stalinismo marca uma ruptura com o leninismo do tempo
de Lenin, ruptura anunciada entre 1923/1924 e
concretizada na década seguinte, no terreno econômico e
militar a URSS caminhou para se transformar numa
grande potência menos de 20 anos após a derrubada da
autocracia tzarista. Não obstante, a ascensão de Hitler na
Alemanha acendia o sinal vermelho para os comunistas,
já que ameaçava a existência física da União Soviética e
punha em movimento uma prática diplomática que
parecia ter desaparecido com a ascensão dos
bolcheviques.
É sabido que entre as primeiras e mais
importantes atitudes dos bolcheviques após a tomada do
poder, aparecem com destaque o acordo de paz de BrestLitovsk e a divulgação dos protocolos secretos da
diplomacia tzarista. Esta atitude tanto representava uma
reviravolta completa nas práticas diplomáticas do velho
regime autocrático, quanto inovavam em relação às
atitudes correntes da democracias burguesas. Com efeito,
desde os tenros anos da Revolução, foram nomeados
importantes militantes do Partido Bolchevique para
cargos diplomáticos em diversos países, de maneira a se
propagandear a revolução em todas as fronteiras
8
possíveis.
Com o passar dos anos, contudo, e conforme a
contra-revolução burocrática avançava, também no
terreno diplomático houve um retorno às antigas
concepções. Neste sentido, segundo Isaac Deutscher,
Stalin “requeria a gradual subordinação da política
comunista às necessidades da diplomacia soviética”, de
maneira que, de destacamento auxiliar do Komintern
enquanto Lenin esteve vivo, a diplomacia passou a
ocupar um lugar central na época de afirmação da
ditadura stalinista, tornando-se, segundo Trotsky, os
guarda-fronteiras da “pátria do socialismo”, o que
9
arrastou junto toda a política da Internacional. Todavia,
tal percurso não foi feito sem percalços, haja vista que os
princípios internacionalistas dos bolcheviques
permaneciam vivos. Da mesma forma, a autoridade de
Lenin e parte do legado de Trotsky não podiam ser
simplesmente apagados de uma hora para outra da
história, de modo que a ascensão da nova diplomacia ia se
dando em conformidade com as necessidades de cada
conjuntura.
Enquanto o “culto a Stalin” ia se solidificando, na
URSS dos bolcheviques, segundo ainda Isaac Deutscher,
“a questão principal consistia em decidir em que medida
era real o socialismo num só país e mero espectro o
comunismo internacional”, o que significava que a
decisão sobre esta questão viria a definir os rumos da IC e
da própria revolução mundial. De acordo com o
historiador polonês, “[d]o ponto de vista de Stalin, seria
rematada loucura arriscar a realidade do socialismo
num só país em benefício do espectro da revolução no
exterior”, dilema que teria dividido os líderes
bolcheviques entre as posições de Trotsky, que
“acreditou haver mais realidade no comunismo
internacional, apesar de todas as debilidades, do que no
socialismo num só país, apesar de todas as realizações”,
e a posição de Stalin, que entendia imprescindível a
afirmação do socialismo na URSS, contra toda incerteza
da revolução mundial.10
Em todo caso, ainda em 1921, Lenin, Trotsky e
outros dirigentes bolcheviques, já haviam percebido que
a revolução mundial podia não ser uma questão de meses,
ou mesmo de uns poucos anos. Admitiam que o
capitalismo poderia sobreviver à primeira vaga
revolucionária aberta com a Revolução Russa de 1917,
mas não esperavam sacrificar os esforços pela revolução
mundial em nome da construção do socialismo num só
país. Muito menos pretendiam que os Partidos
Comunistas rebaixassem seus programas para atender
aos interesses das burguesias dos seus países. Em vista
disso, recomendaram a formação da Frente Única com os
partidos operários, garantindo a total independência
frente às burguesias dos países em que o capitalismo se
mostrava mais robusto e que a contra-revolução se
encontrava na espreita, de maneira a favorecer a tática
defensiva, enquanto esta fosse necessária, sem que se
perdesse de vista a possibilidade da ofensiva, quando esta
fosse possível. Exortava-se, com isto, que um sistema de
palavras de ordem e reivindicações imediatas e
transitórias fossem postos em movimento para se
alcançar às massas e evitar o isolamento dos Partidos
Comunistas. Em breves palavras: “[a]apenas na luta
pelos interesses mais simples, mais elementares das
massas operárias, poderemos formar um front unido do
proletariado contra a burguesia. Apenas nessa luta
poderemos por fim às divisões no seio do proletariado,
divisões que constituem a base sobre a qual a burguesia
pode prolongar sua existência”.11
Obviamente que nos 14 anos que se passaram
entre a realização do terceiro e do sétimo Congresso da
Internacional Comunista, não apenas o Komintern se
transformou de instrumento da revolução mundial para
organismo de apoio à política externa soviética, como o
mundo não era mais o mesmo. No terreno da IC,
mudaram-se os quadros dirigentes, depuraram-se as
fileiras internacionais e de umas tantas seções nacionais e
foram incorporados novos partidos e dirigentes ao
espectro kominterniano. No plano mundial, dos
primeiros sinais de derrota da revolução mundial ao
avanço das forças contra-revolucionárias, especialmente
na Itália e na Alemanha, um longo caminho foi
percorrido, denotando uma grande mudança de situação.
Com efeito, em que medida se pode afirmar que as
inflexões da Terceira Internacional foram meras
adaptações às necessidades dos novos tempos da contrarevolução e do fascismo?
Responder a questão acima não é tarefa fácil.
Principalmente porque o tema guarda altas doses de
8
BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista. Ascensão e
queda. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 53-54, v. 1.
9
DEUTSCHER, Isaac. Stalin: uma biografia política. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, 417. TROTSKY, Leon. A revolução
permanente. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p. 8.
10
DEUTSCHER, Stalin..., p. 418.
III CONGRESSO da Internacional Comunista. Manifestos, teses e
resoluções do 3º Congresso. São Paulo: Brasil Debates Editora, 1989,
p. 194.
11
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (28-34) - 31
contrafactualidade. Mas um exame das políticas da IC
após o seu IV Congresso (1922), sugere uma gradual
subordinação do Komintern aos interesses soviéticos,
senão vejamos: primeiro veio a bolchevização aprovada
no V Congresso de 1924, quando Lenin já estava morto e
o bloco Stalin/Bukharin se preparava para enfrentar a
Oposição de Esquerda e seu principal líder, Leon Trotsky.
A bolchevização foi necessária para os dirigentes da IC,
porque enquadrava as seções nacionais ao promover uma
ultra-centralização do movimento comunista mundial,
abrindo um primeiro flanco internacional contra o
trotskismo, o que tornava todo o movimento a ela ligado
refém dos interesses estritos de Moscou. Em seguida, a
política de “classe contra classe”, ou do Terceiro Período,
implementada a partir do VI Congresso, em 1928,
pretendia dar respostas aos desastres da política da IC na
China e o malogro do Comitê anglo-russo na GrãBretanha, mas atendia, principalmente, à virada da
política stalinista no interior da própria URSS. Stalin,
após derrotar Trotsky e a Oposição de Esquerda, voltou
suas baterias para Bukharin e seus partidários, a ala
direita do PCUS que defendia a continuidade da NEP. Foi
a partir de 1928 que a NEP foi suprimida, sendo
substituída pelos Planos Qüinqüenais e a coletivização
forçada da agricultura soviética, sepultando de vez as
aspirações dos bukharinistas.
A política ziguezagueante de Stalin era uma clara
demonstração de que o dirigente soviético, no plano
internacional, não conseguia perceber os perigos do
fascismo nem diferenciá-lo completamente dos regimes
burgueses plenos. Em vista disso, por indicação do
próprio Stalin, promoveu-se uma guinada à esquerda nos
rumos do Komintern justo no momento em que a contrarevolução ganhava terreno e os comunistas não tinham
alternativa senão ampliar as bases de aliança com as
correntes do movimento operário para melhor se
defenderem. Stalin submeteu a totalidade da IC à sua mão
de ferro, consolidando sua liderança e afastando os
adversários que lhe faziam sombra na URSS e fora dela
no curso de implementação de sua política esquerdista do
Terceiro Período. Não foi outro motivo que, frente às
primeiras avaliações da nova derrota representada pela
ascensão de Hitler na Alemanha, uma nova inflexão fosse
preparada, a maior de todas elas, a inflexão do VII
Congresso da IC, a inflexão da Frente Popular que
rompeu de uma vez por todas com a independência de
classes das organizações comunistas.
A vitória da diplomacia
Com a virada dos anos 1920 para os anos 1930,
uma nova onda revolucionária se abriu no planeta. Desta
feita, não apenas na Europa se pressentiram irrupções
violentas e embates de vida e morte entre a revolução e a
contra-revolução, mas também na Ásia, especialmente na
China, a revolução ganhava terreno e o desfecho das
situações dependia em grande medida do papel jogado
pelas direções comunistas perante os operários e
camponeses de diversos países.
Admitindo-se a abertura de uma nova vaga
revolucionária na passagem da década de 1920 para
1930, seria possível dizer, então, que estaria correta a
política do Terceiro Período que antevia uma nova época
de colapso do capitalismo e de ruptura revolucionária no
mundo? A se considerar a assertiva como correta, ainda
soaria bastante improvável que a linha da IC se voltasse
para a revolução no momento preciso em que a teoria do
socialismo num só país ganhava seus contornos
definitivos e a política externa do Estado soviético
caminhava para postular a convivência pacífica com as
nações do ocidente capitalista. Mas concedamos à
história, mesmo com suas ironias, o benefício da dúvida
sobre as reais intenções da IC e dos stalinistas nos anos
1920. Busquemos identificar quais elementos estavam
em jogo no momento em que a Frente Popular foi
definida para o movimento comunista internacional.
Entre os marxistas não pode haver dúvidas de que
uma revolução só avança na circunstância de haver uma
crise revolucionária. Grosso modo, em seu livro sobre o
Esquerdismo, Lenin definia uma crise revolucionária
numa pequena, porém eficaz, fórmula que dizia, quando
os de cima não podem e os de baixo não querem, a ordem
vigente está próxima de se liquefazer. Some-se ao
elemento mais diretamente mensurável em que
circunstâncias objetivas são mais evidentes, como a
própria crise econômica que se abateu sobre a economia
mundial em 1929, a instabilidade momentânea nas
instituições burguesas de direção, a incapacidade da
classe dominante de se manter como dirigente frente aos
setores subalternos, a divisão das forças armadas e uma
mudança de posição dos extratos médios da sociedade
que se perfilam com o proletariado, ao elemento
subjetivo da existência de um partido revolucionário
capaz de dar conseqüência ao curso da história, e o fator
crise revolucionária está definido com fortes chances de
vitória da revolução.
Contudo, uma crise revolucionária não está
imediatamente vinculada a um colapso da economia,
ainda que a piora na situação de vida das classes
trabalhadoras possa favorecer a eclosão da crise que
antecede à catarse que é a revolução. Fosse assim, o
capitalismo permaneceria ameaçado pela revolução a
cada ciclo descendente, o que não parece ser o caso. Não
obstante, a IC teria, de fato, acertado na antevisão do
Terceiro Período no seu VI Congresso em 1928? Para
Trotsky, que repele categoricamente a terminologia
“apocalíptica” dos “períodos” para se pensar a revolução,
não existe uma tática abstrata definida a priori para cada
período. Considerando que “o número de períodos até a
vitória do proletariado é uma questão de relação das
forças e de mudanças na situação”, Trotsky entendia que
o ritmo de mobilização que se devia imprimir às massas,
depende não somente da situação objetiva, mas,
principalmente, “do estado em que a crise social do país
encontra o proletariado, das relações entre o partido e a
classe, entre o proletariado e a pequena-burguesia etc”.
Ainda assim, para ser mais claro no que dizia, o dirigente
do Exército Vermelho se pôs a pensar como a burocracia
stalinista, aplicando o próprio jargão “apocalíptico”
contra os chefes da IC:
A direção da IC impôs às seções nacionais a tática do
“terceiro período”, isto é, a tática do surto
revolucionário imediato, em um momento (1928) que
32 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução
tinha os traços visíveis do “segundo período”, isto é,
da estabilização burguesa, de um refluxo e uma
descida da Revolução. A reviravolta que disso
resultou em 1930 significa o abandono da tática do
“terceiro período” em proveito da tática do “segundo
período”. Essa reviravolta, entre outras, foi realizada
pelo aparelho burocrático num momento em que
sintomas essenciais começavam a testemunhar, de
forma eloqüente, ao menos na Alemanha, uma
verdadeira aproximação do “terceiro período”.12
Ou seja, para Trotsky, que estudou de perto a
situação revolucionária aberta na Alemanha na virada dos
anos 1920 para os 1930, a tática adotada pela IC foi
absolutamente equivocada tanto em 1928, já que se
indicava a ofensiva quando havia certa “estabilização
burguesa” e evidente refluxo da revolução, quanto em
1930, quando após o colapso econômico de 1929 e os
resultados das eleições denotavam o grande peso político
do PC, o Komintern recomendou o recuo dos comunistas
e a desmobilização das massas que permaneciam sendo
13
fustigadas contra a social-democracia. Segundo ainda o
revolucionário russo, as reviravoltas da política stalinista
na IC provocavam o enfraquecimento da posição do PC
da Alemanha que de derrota em derrota tornou-se incapaz
de apresentar as repostas adequadas a cada conjuntura.
Em todo caso, Trotsky era categórico quando permanecia
defendendo a necessidade da Frente Única com a socialdemocracia no momento em que os nazistas também
cresciam eleitoralmente. E quando se perguntava se a
tática do PC alemão, em 1930, deveria ser ofensiva ou
defensiva, não tergiversava ao dizer que devia ser
defensiva.14
Ainda assim, caso concedamos a direção da IC o
mérito da antevisão da crise de 1929 e a indicação de uma
linha correta no ano anterior, há que se concordar com
Issac Deutscher que considera a irremediável contradição
entre a linha política implementada por Stalin na URSS,
que transformou em “supremo artigo de fé” o “socialismo
num só país”, e “aquela por ele inspirada no Komintern”,
que visualizava a irrupção revolucionária no planeta.
Para Deutscher, não era difícil adivinhar qual das duas
15
políticas teve maior peso. Tanto foi assim que a tática do
Terceiro Período, conforme observado anteriormente,
teve vida curta para o movimento comunista
internacional, ainda que permanecesse inspirando a
bolchevização, a ultra-centralização e a depuração contra
os “perigos de direita” nas seções nacionais de todo o
mundo, pelo menos até 1935.
O fato é que, de pequenos ajustes à grande
tournant de 1935, a Frente Popular veio a ser a
confirmação da vitória da diplomacia e da política
externa soviética sobre todo o movimento comunista
internacional e sobre o próprio Komintern. Foi também o
momento em que os comunistas passaram a defender a
“democracia” sem adjetivações, colocando-se nas
trincheiras do inimigo de classe e de tudo aquilo que os
bolcheviques do tempo de Lenin pretenderam combater
12
TROTSKY, Revolução e contra-revolução, p. 50.
Id., ibid., p. 50.
14
Id., ibid., p. 59-60.
15
DEUTSCHER, Stalin…, p. 428.
13
como as mais vãs ilusões burguesas. Quanto à IC, esta foi
se desmoralizando gradualmente, ainda que
permanecesse sendo necessária para dar suporte à
diplomacia soviética e ser o esteio da implementação da
política de conciliação de classes inspirada por Moscou e
que teve seus primeiros laboratórios na França, na
Espanha e, em seguida, no resto do mundo. Doravante os
comunistas estavam integrados ao campo da nação e da
democracia contra o fascismo, ou seja, no campo da
burguesia e da contra-revolução, contra a luta de classes e
o próprio proletariado.16
A ilusão da convivência pacífica
Parece não haver dúvidas que a guinada política
da IC, experimentada inicialmente na França, tinha
relação com os interesses de Stalin e do PC na URSS.
Entretanto, se neste momento não vale à pena retomar o
debate sobre o peso da “mão de Moscou” no movimento
comunista internacional, cabe mencionar que a
autoridade do único partido que tinha feito a revolução no
mundo e o exemplo da “pátria do socialismo”
continuavam importando nas decisões das seções
nacionais que pretendiam aprender com a experiência
dos bolcheviques, ainda que os ensinamentos de Lenin
parecessem cada vez mais distantes. Com efeito, mesmo
considerando as dimensões nacionais da questão
francesa, situação em que os socialistas se mobilizaram
apelando à formação da Frente Única com o PC através
da Internacional Operária por medo de que na França se
repetisse o que tinha ocorrido na Alemanha, há que se
apontar que o ressurgimento da Frente Única veio a
propósito do atendimento dos interesses de Moscou.
Afinal de contas, ante as primeiras movimentações de
Hitler na vizinha Alemanha, Stalin pretendeu firmar uma
trégua com os países ocidentais abandonando a política
de Rapallo que desde 1922 vinha dando o tom das
relações com os germânicos e com as outras potências
17
européias. Por medo de que uma guerra se precipitasse
na frente ocidental, a diplomacia soviética acenou
ostensivamente para a França e para a Inglaterra com o
objetivo de barrar a sanha belicosa dos nazistas.
Esboçado entre 1933 e 1934 pelo CEIC e,
posteriormente, experimentado na França e também na
Espanha, a política de Frente Popular só foi efetivamente
consagrada quando da realização do VII Congresso da
Internacional Comunista, entre julho e agosto de 1935.
Na ocasião, Dimitrov, o herói búlgaro injustamente
acusado pelo incêndio de 1933 no Reichstag, já
devidamente empossado como dirigente máximo do
Komintern, pronunciou um discurso que entraria para a
história do movimento comunista internacional. Em seu
relatório apresentado ao VII Congresso no dia 2 de agosto
16
Cf. RODRIGUES, Francisco Martins. O anti-dimitrov. 1935-1985.
Meio século de derrotas da revolução. Lisboa: Ulmeiro, 1985, p. 30.
Para este autor, que não deixa de demonstrar simpatia pelos resultados
do VI Congresso, o VII Congresso do Komintern decretou a
capitulação face ao reformismo e a falência da Internacional
Comunista.
17
Firmado em abril de 1922 entre a URSS e a Alemanha da República
de Weimar, o Tratado de Rapallo implicava na renúncia de
reivindicações territoriais e financeiras originadas dos acordos
seguidos à Primeira Guerra Mundial.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (28-34) - 33
de 1935, Dimitrov não apenas promovia a maior inflexão
na história da Internacional ao romper totalmente com os
princípios da independência de classes consagrados nos
congressos anteriores, especialmente nos quatro
primeiros, como isentava os dirigentes da Terceira
Internacional de toda a responsabilidade pelos equívocos
da política do período anterior. Num sutil e competente
exercício de prestidigitação, o dirigente da IC tanto não
incorporava a necessária autocrítica quanto aos erros
políticos do Terceiro Período, como remetia para a socialdemocracia todo o peso da responsabilidade histórica
pela ascensão do fascismo. De acordo com Marta Dassú,
o informe de Dimitrov, que não deixa de responder a
“lógica continuísta” do Komintern, cuidava para que não
se legitimasse as críticas de Trotsky, tendo obtido a mais
ampla adesão dos delegados do Congresso. Ainda assim,
o dirigente búlgaro esperava uma maior sinceridade na
construção do consentimento, lamentando “o caráter
acrítico e ritualístico da unanimidade” consagrada no
conclave comunista.18 No final das contas, o informe de
Dimitrov sepultou o Komintern, já que definia uma
virada estratégica e não apenas tática na prática da IC,
sendo a resultante de uma luta subterrânea de tendências
19
no seio da Internacional e da própria URSS.
Todavia, pela primeira vez desde a ascensão dos
fascistas na Itália e dos nazistas na Alemanha, a
Internacional Comunista tornava pública uma apreciação
pormenorizada do fenômeno do fascismo procurando
diferenciá-lo da democracia burguesa: “O fascismo é o
próprio poder do capital financeiro; é a repressão
terrorista organizada contra a classe trabalhadora, a
parte revolucionária da classe camponesa e dos
intelectuais”.20 Mas a caracterização do fascismo como
uma outra forma de dominação burguesa trazia embutida
a premência da defesa da URSS, a “pátria do socialismo”:
“O fascismo alemão surge como a tropa de choque da
contra-revolução internacional, como o principal
fomentador da guerra imperialista, como o instigador da
cruzada contra a União Soviética, a grande pátria dos
21
trabalhadores do mundo inteiro”.
O relatório de Dimitrov, uma peça de retórica que
não deixa de ter as suas qualidades, limpou o terreno das
inúmeras ambigüidades que estavam presentes no
comportamento do CEIC e de algumas seções nacionais
da IC que abandonavam a linha do Terceiro Período, para
traçar o panorama da nova linha política da Frente
Popular que pressupunha um retorno à tática frentista sem
o cuidado de preservação das fronteiras de classe. Neste
sentido, paradoxalmente, o chamado à construção de
Frente Popular nada mais foi do que o abandono puro e
simples da política de Frente Única em função de uma
nova estratégia de conciliação com a burguesia e de
defesa da pátria e da democracia, não obstante a Frente
Única permanecesse sendo reivindicada.
Doravante, os partidos de Thorez, Togliatti,
Cunhal ou Prestes, assim como todos os outros partidos
comunistas do mundo, em que pesem as diferenças entre
as situações, as circunstâncias históricas e os regimes que
tiveram que enfrentar, só podiam aspirar a democracia e
se entrincheirar com os democratas “honestos” e
“honrados” dos seus países na luta contra os fascistas.
Deixava-se de lado o conflito capital/trabalho dentro da
hierarquia das contradições que dizia para os comunistas
que o caminho a ser pavimentado era o da democracia,
fosse no cumprimento das tarefas de libertação nacional
ou então na luta pela derrota do fascismo e pelo
restabelecimento da democracia burguesa. Assim, em
cada país, conforme a luta antifascista ganhava a
primazia diante da luta de classes, os comunistas
passaram a conclamar os setores antifascistas para a
formação da Frente Nacional, circunstância em que os
PCs apelaram para liberais, monarquistas, católicos,
latifundiários, industriais, enfim, todos aqueles que se
colocassem no campo do antifascismo deveriam ter lugar
na ampla trincheira aberta pelos partidários da IC que
visavam, acima de tudo, derrotar o fascismo, e não
promover a revolução proletária. E caso fossem acusados
de pretender se servir de aliados com a finalidade de
instauração da ditadura do proletariado, os comunistas do
planeta podiam responder com o dirigente português
Álvaro Cunhal, que não negava os fins, mas assegurava
que o objetivo fundamental dos comunistas era, ao fim e
ao cabo, a democracia:
Nós, comunistas, entendemos que a etapa actual da
revolução no nosso país é a de um movimento
nacional libertador e pomos como principal objectivo
o derrubamento do governo fascista de Salazar. Na
prossecução deste objectivo, pomos todas as nossas
energias, todas as nossas forças. Nós queremos
realmente instaurar um governo democrático de
Unidade Nacional, com a participação de todas as
forças progressistas e patrióticas. Um mesmo
objectivo nos une. Porque receais pois colaborar com
os comunistas que lutam convosco pelo vosso próprio
objectivo?22
Com efeito, conforme Hobsbawm, a
“democracia só se salvou porque, para enfrentá-lo [ao
nazi-fascismo], houve uma aliança temporária e bizarra
23
entre capitalismo liberal e comunismo”. Sendo assim,
por que os “democratas sinceros” insistiam em temer os
comunistas e seus partidos? Será que tinham razão em
desconfiar de gente como Thorez, Togliatti, Cunhal ou
Prestes? A pergunta para essa questão talvez seja a chave
para o entendimento da persistência da política de Frente
Popular e para tantos mal entendidos que ela tem
provocado no campo da esquerda. Afinal de contas, a aura
romântica da Frente Popular, banhada em sangue numa
era em que o fascismo esteve às portas de instaurar a
barbárie no planeta, segue sendo a principal fiadora de
18
DASSÚ, Frente Única e Frente Popular. In: História do Marxismo...,
p. 328.
19
Cf. RODRIGUES, O anti-dimitrov…, p. 109.
20
DIMITROV, Jorge. “A ofensiva do fascismo e as tarefas da
Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o
fascismo”. In: Obras escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1976, p. 11.
21
Id., ibid., p. 10 (grifos no original).
22
CUNHAL, Álvaro. “Unidade da nação portuguesa na luta pelo pão,
pela liberdade e pela independência”. In: Obras escolhidas. Lisboa:
Editorial Avante, 2007, p. 222.
23
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. 19141991. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 17.
34 - Nas trincheiras da democracia: os comunistas e a Frente Popular entre a revolução e a contra-revolução
parte de revolucionários honestos que enxergam nos
tempos pretéritos o espírito guerreiro que lhes falta no
presente.
Não obstante, a premissa deste texto sobre o
caráter derrotista e mesmo contra-revolucionário que a
Frente Popular imprimiu ao movimento comunista
internacional persiste, ainda que não se perca de vista que
o fantasma da revolução permaneceu no encalço da IC
como sua própria sombra, mesmo contra a vontade
daqueles que sucederam Lenin em sua direção. Neste
sentido, conforme Isaac Deutscher, “[p]or mais
moderados, constitucionais, 'puramente' democráticos e
patrióticos que fossem os slogans que articulara para as
Frentes Populares, não podia anular as potencialidades
revolucionárias daquelas 'frentes'”.24
Em todo caso, após cumprirem um curto período
de lua de mel com as democracias e de aguardada
convivência pacífica, os comunistas voltaram a amargar a
marginalidade na democracia burguesa. Afinal de contas,
como herdeiros de Lenin que pretendiam ser, não podiam
prescindir das massas trabalhadoras. E conforme a luta
antifascista avançava e o nazi-fascismo foi, finalmente,
derrotado; conforme os trabalhadores vieram cobrar a
conta dos anos de escassez e penúria junto às suas
burguesias; conforme os de baixo percebiam e
acreditavam nas suas próprias forças; tendiam a atropelar
suas direções conciliadoras, para o bem da revolução
mundial e para a desgraça dos Partidos Comunistas que
pretendiam se integrar à democracia e não conseguiam se
livrar do espectro de 1917.
Artigo recebido em 02/04/2011
Aprovado em 09/06/2011
24
DEUTSCHER, Stalin…, p. 444.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 35
Revolução e contra-revolução
na Itália pós-fascista
1
Paula Schaller2
M
uito se escreveu sobre a grande
experiência de luta armada antifascista que sacudiu a
Itália nos anos 1940. Aqui pretendemos analisar e
conceituar as tendências que nos permitem considera-la
como o início de um processo revolucionário, com o
propósito de superar os relatos que fazem da Itália o
paradigma histórico da disputa binômica totalitarismo
versus democracia liberal, onde o horizonte da revolução
social parece não ter estado nem discussão. Pretendemos
não apenas recuperar a magnitude histórica deste
processo de revolução social como ao mesmo tempo
avançar em um balanço dos limites político-subjetivos
que contribuíram para sua debilitação como tal.
Considerando que nos encontramos diante de um caso em
que a dialética revolução-contrarevolução operou de
maneira particular, sendo o elemento determinante não a
contra-revolução fascista mas o próprio curso político
adotado pelas tendências hegemônicas no interior do
“campo antifascista”.
Nos basearemos nas categorias brindadas por
Trotsky para a análise da articulação entre as situações
revolucionárias, a guerra civil e o duplo poder, assim
como as noções formuladas por Gramsci em torno dos
conceitos de relação de forças, crise orgânica e
hegemonia, que consideramos de grande utilidade no
momento de analisar o estado da relação entre as classes e
frações sociais em disputa, suas forças e disposições
relativas à luta, etc.
Ascenso da luta de classes e dissolução do
poder estatal
A participação italiana na Segunda Guerra
Mundial [1939-45] atuou como um potente acelerador
das contradições sociais no país. Ao regime político
opressivo se somaram as penúrias e padecimentos
próprios da guerra que levaram o país a uma situação de
crise econômico-social aguda, tal como havia sucedido
na saída da Primeira Guerra Mundial [1914-1918] com o
processo que desembocou na formação dos conselhos de
fábrica em Turim.3 Assim, a partir de 1942 se reativou a
luta antifascista nas cidades industriais no Norte, que
durante anos havia estado reduzida a pequenas células
clandestinas com pouca capacidade de ação. Assim
descreve o historiador inglês Arnold Toynbee:
O racionamento e os ataques aéreos [...] serviam para
demonstrar a incompetência e corrupção do regime.
Desde princípios de 1942, ou seja, muito antes do
inverno decisivo de 1942-43, enquanto o público
ordinário lamentava a guerra de maneira passiva,
começaram a organizar-se grupos ativos de oposição.
[...] Em Turim e Milão haviam sobrevivido, em todo o
período fascista, as células comunistas. Os fracassos
italianos e a resistência russa permitiram o
florescimento destas células e se restabeleceram os
antigos laços com os socialistas, especialmente em
Milão e Gênova. O centro da resistência comunista
seguiu sendo a fábrica de automóveis FIAT de Turim.4
Esta resistência teve um salto logo depois da
batalha de Stalingrado [07/1942-02/1943], que não
apenas impulsionou uma nova relação de forças no plano
militar, produto da primeira grande derrota alemã por
parte do Exército Vermelho, mas também uma mudança
na correlação de forças entre as classes, abrindo um
período de luta de massas em grande parte da Europa
ocupada. Na Itália isto significou em março de 1943 o
estouro de um importante movimento grevista que
implicou em mais de cem mil trabalhadores das cidades
de Turim, Milão e Gênova.5 Este começou na fábrica
Mirafiori, das oficinas FIAT de Turim, onde os
trabalhadores exigiam que se cumprissem as promessas
de indenização aos trabalhadores lesados pelos
bombardeios ou que por causa deles estivessem sem
trabalho:
[…] foram distribuídos panfletos nos quais se pediam
pão, paz e liberdade. [...] No dia 19 de março
começaram a propagar-se as greves pelas oficinas das
fábricas Caproni, de Milão e Breda, assim como as
fábricas Pirelli. Quando Mussolini e Batianini
(Dirigente do Partido nacional Fascista, exerceu o
cargo de subsecretário da Chancelaria desde o ano de
1932 e foi nomeado embaixador em Londres em
1939) foram a Salzburgo no mês de abril, Bastianini
falou a Ribbentrop (Ministro de Assuntos Exteriores
da Alemanha Nazista desde o ano de 1938 até 1945)
das greves de Turim e Milão como uma das razões
pelas quais a Itália não podia continuar em guerra. Foi
a primeira vez que a Europa do Eixo presenciou uma
1
Tradução do espanhol por Carla Luciana Souza da Silva, professora
do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
2
Licenciada en Historia, Facultad de Filosofía y Humanidades,
Universidad Nacional de Córdoba. Becaria de CONICET, Centro de
Estudios Avanzados, UNC.
3
Ver: GRAMSCI, Antonio, “El movimiento turinés de los consejos de
fábrica. Julio 1920”, en Antología, ed. Siglo XXI, Buenos Aires, 2004
y VIOLA, Eduardo, “Italia 1918/1922: Socialismo o fascismo”, en
Historia del Movimiento obrero, Centro Editor de América Latina,
Buenos Aires, 1985.
4
TOYNBEE, Arnold, J., La Europa de Hitler, Sarpe, Madrid, 1985, pg. 243
CLAUDÍN, Fernando, La crisis del movimiento comunista. De la
Komintern al Kominform. Ediciones Ruedo Ibérico, Madrid, 1975, pg. 315
5
36 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista
formidável demonstração operária dirigida contra
seus governantes.6
Foi neste marco de derrota alemã em Stalingrado,
ascenso da luta de classes e desembarque das tropas
inglesas e norte-americanas na Sicília em julho de 1943,
que a burguesia italiana resolveu “desfazer-se” de
Mussolini e apostar na mudança do pessoal político
dirigente, destituindo-o nesse mesmo mês para substituilo por Badoglio, seu antigo marechal, em uma tentativa
de “manter o fascismo sem Mussolini”. Discordamos da
visão liberal que apresenta a queda de Mussolini como o
produto de uma crise “nas alturas”, sintetizada nas
palavras de Henri Bernard, militar inglês e estudioso das
resistências européias: “[....] a revolução de julho veio de
cima e não do povo. Foi a conseqüência direta da derrota
militar. No desastre caiu Mussolini, abandonado
inclusive pela maioria de seus colaboradores”.7 Pelo
contrário, tal como explica Fernando Claudín (dirigente
do Partido Comunista Espanhol até sua expulsão deste
em 1965), esta política tinha o objetivo claramente
preventivo de conter a emergência de uma saída
revolucionária à crise aberta do regime. De fato, a
extensão da luta operária não apenas impressionou à
hierarquia fascista, mas também ao conjunto da
burguesia italiana: “[...] todos eles viam renascer nas
greves o espectro proletário, um inimigo muito mais
perigoso que os adversários do outro campo de batalha.
A burguesia compreende com essas greves que o regime
fascista é incapaz de conter a cólera operária e prepara
sua substituição e a reorganização das forças
8
'democráticas'.” Este caráter preventivo do governo
ficou demonstrado na política repressiva que levou a
diante desde que foi formado: “[...] todo movimento deve
ser esmagado inexoravelmente desde sua origem [...] as
tropas atuarão em formação de combate, abrindo fogo à
distância, inclusive com morteiros e artilharia, sem aviso
prévio, como se procedessem contra o inimigo”, se
orientava em um comunicado.9
Mas não obstante a repressão do regime, que em
pouco mais de um mês tirou a vida de cem operários
enquanto que mais de dois mil foram presos,10 começou a
emergir um estado pré-insurrecional no norte do país,
com greves que já para este momento não apenas
colocavam reivindicações econômicas diante da
catastrófico deterioração das condições de vida mas que
exigiam a liberdade dos presos políticos e o cessar da
guerra. A situação se agudizou logo depois do armistício
com os aliados anunciado por Badoglio em setembro, o
que motivou a invasão alemã no Centro e Norte da
península. Seguindo ao historiador italiano Enzo
Traverso, poderíamos dizer que neste momento o Estado
italiano se “desmoronou”, deixando de existir uma
autoridade política e um Exército centralizados,
perdendo a burguesia italiana o controle militar do país.
Neste contexto, e diante da crise de dominação burguesa
existente, o governo de Badoglio foi incapaz de opor
resistência alguma diante do avanço da invasão alemã,
refugiando-se junto com o rei no Sul com o amparo das
tropas aliadas e deixando nas mãos do exército alemão o
combate contra o movimento antifascista.
[...] em 9 de setembro, depois de anunciar o
armistício concluído secretamente com os
aliados, o rei e a família real, o marechal e um
distinto cortejo de generais e funcionários,
fogem de Roma, sem haver tomado a mínima
medida de defesa contra os invasores. E passará
um mês mais sem que Badoglio declare guerra à
Alemanha. Ao fim o fará em 13 de outubro sob a
11
pressão do Alto Comando aliado.
Mesmo que algumas divisões aliadas tenham
lutado contra a invasão alemã que avançou sob Roma em
9 de setembro, a frustrada defesa desta esteve a cargo do
povo romano que resistiu praticamente sozinho na Porta
de São Paulo, e isto porque o conjunto dos chefes do
Exército e a oficialidade assumiram, da mesma forma que
o novo governo, uma posição absolutamente derrotista.12
Crise orgânica e situação revolucionária
Esta atitude derrotista da burguesia italiana, que
nos permite medir a enorme dimensão de classe de sua
noção de patriotismo -, preferindo deixar-se invadir sem
resistência do que mobilizar suas tropas (nem falemos de
fazer um chamado a operários e camponeses para lutar) é
em si mesmo uma significativa mostra do grande estado
de crise de dominação existente. Neste sentido,
consideramos que o conceito gramsciano de crise
orgânica é útil para traduzir esta experiência, já que nos
permite ler as características de uma crise não apenas
econômico-social, mas hegemônica, onde é o estado, em
seu conjunto que se vê questionado:
Em certo momento de sua vida histórica, os grupos
sociais se separam de seus partidos tradicionais. Isto
significa que os partidos tradicionais, com a forma de
organização que apresentam, com aqueles
determinados homens que os constituem, representam
e dirigem, já não são reconhecidos como expressão
própria de sua classe ou de uma fração dela. Quando
estas crises se manifestam, a situação imediata se
torna delicada e perigosa, porque o terreno é propício
para soluções de força, para a atividade de potências
obscuras, representadas por homens providenciais ou
carismáticos. [...] [produzindo-se uma] crise de
hegemonia da classe dirigente, produzida ou bem
porque a classe dirigente falhou em alguma grande
empreitada política sua em que pediu ou impôs por
força o consenso das grandes massas [como no caso
de uma guerra] ou bem porque vastas massas [...]
passaram subitamente da passividade política a uma
6
TOYNBEE, Arnold, J., Op. Cit. pg. 240
BERNARD, Henri, Historia de la resistencia europea, Ediciones
Martínez Roca, Barcelona, 1970, pg. 48.
8
“A luta de classes contra a guerra imperialista.
As lutas operárias na Itália em 1943”, disponível em:
http://es.internationalism.org/rint75lucha
9
CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 315.
10
“La guerra partisana en Italia”,
en: http://www.luchadeclases.org.ve/historia-leftmenu-171/5365-laguerra-partisana-en-italia
7
11
CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 316
TOYNBEE, Arnold, J., Op. Cit., pg. 241.
12
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 37
certa atividade e colocam reivindicações que em seu
inorgânico conjunto constituem uma revolução. Se
fala de 'crise de autoridade' e nisto consiste
precisamente a crise de hegemonia, ou a crise do
Estado em seu conjunto. 13
A crise que desembocou na queda do governo de
Mussolini e sua substituição pelo marechal Badoglio
demonstrou que longe de ser de conjuntura, uma “crise
parlamentar” ligada ao questionamento de setores
específicos do pessoal dirigente, era orgânica, uma
profunda crise de dominação, produto da derrota italiana
na grande empreitada da guerra, que havia exacerbado as
penúrias das massas, se desatou uma crescente
intervenção da luta operária que, combinada com a ação
militar de amplas camadas sociais, pôs em xeque o
ordenamento político-social vigente. Nenhum setor da
burguesia italiana foi desde julho de 1943 capaz de impor
diante das massas sua própria vontade, capaz de
assegurar um governo que suscitasse consenso social.
Pelo contrário, a burguesia recorreu a soluções de última
hora, tal como a substituição de Mussolini e a mudança de
lado na guerra, que não conseguiram suavizar o estado da
luta de classes ascendente. Bernard destaca que no
contexto da invasão aliada a Sicília – e na crescente onda
de greves operárias no Norte, agregamos aqui – a
burguesia italiana se dividiu em três alas, que por seus
programas resumiremos em dois: por um lado, uma ala
liberal representada pelos setores antifascistas militantes,
dirigidos pelos ex - primeiro ministro Ivanoe Bnonomi,
que lutavam por substituir o Dulce por Bodoglio, roper
relações com a Alemanha e iniciar negociações com os
aliados; e outro setor representado por importantes
membros do Partido Fascista, tais como o Ministro de
Relações Exteriores Galeazzo Ciano, que lutavam por
regenerar o partido mantendo o essencial do regime
político.14 Embora numa primeira vista possamos julgar
que o primeiro grupo conseguiu impor sua própria saída,
isto de maneira alguma bastou para encerrar a situação de
crise de hegemonia aberta, com um Estado desmembrado
crescentemente incapaz de projetar sua autoridade sobre
o conjunto da sociedade. Tal como coloca Traverso, logo
depois da dupla invasão anglo-americana e alemã,
- seguida esta última da fuga da monarquia e o governo de
Badoglio ao Sul dominado pelas forças militares
aliadas -, a continuidade deste Estado foi preservada
simbolicamente pela Monarquia, enquanto que
Mussonini por sua vez estabeleceu a República Social
Italiana, - chamada de República de Saló pelo nome de
sua capital -, sustentada pelas forças alemãs. Assim “a
Monarquia e o regime de Saló não [podiam] existir em
virtude da ocupação aliada e alemã, sem uma
15
legitimidade verdadeira”.
Agora vejamos, tal como coloca Gramsci, nem
toda crise orgânica desemboca em uma revolução. Em
13
GRAMSCI, Antonio, Notas sobre Maquiavelo, sobre política y sobre
el Estado Moderno, Nueva Visión, Buenos Aires, 1997, pg. 124
14
BERNARD, Henri, Op. Cit, pg. 45.
15
TRAVERSO, Enzo, A sangre y fuego. De la guerra civil europea
(1914-1945), Publicacions de la Universitat de Valencia, Valencia,
2009, pg. 56.
seu artigo “análise de situações. Relações de força”,
diferenciando entre os movimentos orgânicos,
relativamente permanentes, e os movimentos
conjunturais, de caráter ocasional e imediato,
precisamente colocava que “o erro em que se cai
frequentemente na análise histórico-política consiste em
não saber encontrar a relação correta entre o orgânico e
o ocasional”.16 Assim, para que se produza uma crise
orgânica é necessário que a ruptura englobe às classes
fundamentais, ou seja, à classe dominante, por uma parte,
e à classe que aspira à direção do novo sistema
hegemônico, por outra; e para que esta crise desemboque
em uma revolução é necessário que esteja desenvolvida
uma força que expresse a mudança subjetiva da classe
revolucionária:
O elemento decisivo de toda situação é a força
permanentemente organizada e predisposta
desde muito tempo, que se pode fazer avançar
quando de julga que uma situação é favorável (e é
favorável somente na medida em que uma força
tal exista e esteja impregnada de ardor
combativo). É por isso uma tarefa essencial velar
sistemática e pacientemente para formar,
desenvolver e tornar cada vez mais homogênea,
17
compacta e consciente de si mesma essa força.
Esta análise pondera o elemento subjetivo,
político, de direção das classes em luta, entretanto
determinante para o estabelecimento de uma revolução.
Voltaremos mais adiante sobre esta questão, mas nos
interessa apontar que, tal como demonstraremos neste
caso, o peso deste fator visto como desenlace não dá por
acabadas as tendências prévias que configuraram a
situação revolucionária, incluído o curso de ruptura com
o sistema social adotado espontaneamente por setores das
massas. Neste sentido, tomamos Trotsky quando,
analisando a derrota da revolução espanhola, - centrandose na relação entre a vanguarda proletária e sua direção
política -, coloca que “o caminho da luta seguido pelos
operários cortava em todos os momentos sob um
determinado ângulo o das direções e, em momentos mais
críticos, este ângulo era de 180º.” Ou seja, que em
determinadas circunstâncias, as ações empreendidas por
setores das massas tendem a adquirir uma orientação
revolucionária a pesar e contra sua própria direção,
aprofundando uma situação revolucionária que não se
resolve como revolução social triunfante. Para explicar
esta contradição. Trotsky apresenta uma análise dialética,
colocando que assim como os governos não são
expressão direta dos povos que dirigem, mas produto da
“luta entre as diferentes classes e as diferentes camadas
no interior de uma só e mesma classe e, além disso, da
ação de forças exteriores, alianças, conflitos, guerras”; a
direção de uma classe não é reflexo mecânico desta, e em
alguns momentos pode entrar em contradições com os
18
setores mais avançados da mesma.
16
GRAMSCI, Antonio, Op. Cit., p.68
GRAMSCI, Antonio, Op..cit., pg.75.
18
Ver: TROTSKY, León, Bolchevismo y estalinismo. Clase, partido y
dirección. A propósito del frente único, el Yunque, Buenos Aires, 1975.
17
38 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista
No cenário italiano, a crise que se desencadeou
com a derrota dos exércitos ítalo-alemães da frente
africana em Tunis, em maio de 1943, seguida do
desembarque aliado na Sicília, em julho do mesmo ano, e
a posterior invasão alemã, desmembrará a unidade
burguesa entre o bando anti-fascista, apoiado nos aliados,
e o pró-fascista, apoiado nas forças militares alemãs,
gerando as fissuras que possibilitaram a emergência da
auto-atividade das massas, tanto a nível econômicopolítico como militar. Se combinaram, para tanto, uma
profunda crise nacional assinalada pela derrota militar, a
catástrofe econômica e a dupla invasão; uma profunda
crise social e política da burguesia e seu sistema de
dominação e a ação crescentemente independente da
classe operária das cidades do Norte e o Centro, o
campesinato e setores da pequena-burguesia que se
alistavam na resistência armada; dando como resultado a
abertura de uma situação revolucionária.
Luta pela libertação nacional, duplo poder e
guerra civil
Desde novembro de 1943 a luta contra a invasão
alemã levou a que o movimento de massas e a resistência
armada adquirissem um caráter generalizado no Norte.
Em numerosas cidades se repetiu o mesmo cenário:
Turim, Milão, Roma, Gênova, Bolonha, Florença. Os
operários começavam a armar-se, com a tácita
cumplicidade dos estratos inferiores do exército,
prontos a arriscar tudo não só contra a invasão alemã
mas também pela conquista imediata da paz.19
O PCI lançou o chamado a integrar a Guarda
Nacional para combater a invasão alemã, a que acudiram
aos milhares os operários das grandes cidades. Tal como
relata o historiador italiano e dirigente do PCI Paolo
Spriano em sua Historia do Partido Comunista Italiano,
nesses momentos, dirigindo-se ao prefeito da cidade para
pedir armas, um operário da Breda de Milão disse: “os
alemães tiveram uma derrota decisiva em Stalingrado;
nós, operários, queremos fazer de Milão a Stalingrado da
20
Itália”. Casos como esse se multiplicavam. Diante da
inação do governo de Badioglo, as massas tomaram a
iniciativa na luta contra a invasão alemã, adquirindo a
ação armada uma envergadura cada vez mais importante,
convertendo-se, nas palavras de Arnold Toynbee, no
“movimento mais notável de sua classe na Segunda
21
Guerra Mundial”.
À margem do governo de Badoglio se criaram o
Comitê de Libertação Nacional (CLN), com sede em
Roma, e o Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália
(CLNAI), com sede em Milão, com o objetivo de
coordenar e centralizar as ações armadas. Estes comitês,
que tinham conteúdo policlassista por estarem formados
por partidos burgueses e operários – o Partido da Ação
(liberal), o Partido Comunista, o Partido Socialista, a
Democracia Cristã, entre outros -, centralizaram as ações
de resistência armada e terminaram sendo reconhecidos
tanto pelo governo de Badoglio como pelos aliados, uma
vez que estes últimos obtiveram, às custas do Partido
Comunista Italiano, a garantia de que logo após a
liberação lhes seria dada toa autoridade. Aqui nos
interessa assinalar mais além de seu conteúdo
policlassista e da política de suas direções, pelo grande
nível de desarticulação do aparato militar do Estado
italiano estes comitês se viram chamados a converter-se
em canais de organização de uma resistência operária e
camponesa que crescia espontaneamente, centralmente
nos povoados e cidades do norte do país. Neste sentido,
ao passo que por sua política estes atuaram
estrategicamente como um freio ao desenvolvimento da
revolução, foram ao mesmo tempo uma expressão do
enorme nível de auto-organização alcançado pelas
massas no terreno político-militar, e em muitos casos esta
contradição os levou a adquirir uma orientação muito
mais radical que a pretendida por suas próprias direções.
O Partido Comunista, o Partido Socialista e o
Comitê de Liberação Nacional da Alta Itália (CLNAI),
fizeram para meados de 1944 um chamado à greve geral
na zona ocupada pelos alemães em que participaram mais
de um milhão de operários – sendo a maior greve em toda
Europa ocupada pelos nazis e alcançando em Turim uma
22
extensão de 8 dias -. Assim, “a tradição combativa do
operariado turinês ressurgia com o máximo vigor depois
de duas décadas adormecidas”, tal como descreve o
23
historiador Eduardo Viola. Enquanto isso, o movimento
guerrilheiro seguia se desenvolvendo e alcançou para
esse momento uns cem mil combatentes. Assim o
descrevia Luigi Longo, dirigente do PCI:
Devido à grande envergadura do movimento de
massas, em muitas regiões havia de fato dualidade de
poder: os órgãos das autoridades fascistas, que se
desacreditavam cada vez mais, e os órgãos de poder
antifascista, que existiam de maneira ilegal mas
gozavam de grande popularidade entre a população. E
além dessas regiões onde existia a dualidade de poder,
durante todo o período da ocupação nazi houve outras
zonas no norte da Itália completamente liberadas das
autoridades fascistas, alemãs ou italianas. Eram
dirigidas por organismos democráticos de poder,
eleitos livremente sob a proteção das forças
guerrilheiras.24
Efetivamente, os comitês de liberação
acentuavam seu poder em escala local e provincial
tomando iniciativas independentes do governo de
Badoglio que foram criando uma situação embrionária de
duplo poder.
Se para o marxismo a característica fundamental
do Estado é o monopólio da violência por parte da classe
dominante dentro de um território delimitado, isto era
precisamente o que se colocava em questão com o
22
Ver CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit.
VIOLA, Eduardo, “Del fascismo a la revolución frustrada”, AAVV,
Historia del movimiento obrero, Centro editor de América Latina,
Buenos Aires, pg. 568.
24
AAVV, Guerra y revolución. Una interpretación alternativa de la
Segunda Guerra Mundial, Tomo I, Centro de Investigaciones y
Publicaciones León Trotsky, Buenos Aires, 2004, pg. 27.
23
19
“La guerra partisana en Italia”, Op. Cit.
SPRIANO, Paolo, Storia del Partito Comunista Italiano. La fine del
fascismo. Dalla riscossa operaia alla lotta armata, tomo IV, Eunadi,
Torino, 1973, pg. 87.
21
TOYNBEE, Arnold, J., Op. Cit, pg. 241
20
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 39
desenvolvimento desta dinâmica em curso, pondo na
ordem do dia a questão de que classe detém o poder.
Isto havia sido analisado em profundidade por
Trotsky na revolução de fevereiro de 1917, que havia
inaugurado um período transicional de duplo poder ao
coexistir o Governo Provisório burguês com os soviets de
operários, camponeses e soldados, deixando colocada a
questão de qual classe detinha o poder efetivamente.
Segundo Pierre Broué, historiador e militante trotskista
francês, uma das principais conclusões extraídas por
Trotsky para a análise das duas grandes revoluções da
história, a francesa e a russa, precisamente consistia em
A constatação de que as contradições sociais, no
desenvolvimento da revolução, se estabilizam e se
desestabilizam sob a forma de situações de 'duplo
poder' em uma curva ascendente, primeiro,
descendente, logo. Em cada caso, a questão da
hegemonia entre os dois poderes em conflito está
dirigida pela força ou, se se prefere, por uma 'guerra
civil', por breve que ela seja.25
Será a partir da experiência da revolução russa
que Trotsky aprofundará em um esquema de análise
teórico do duplo poder como episódio transitório da
dialética de classes nos momentos revolucionários:
A mecânica política da revolução consiste no passo do
poder de uma a outra classe. [...] Mas não há nenhuma
classe histórica que passe da situação de subordinada
à de dominadora subitamente, da noite para o dia,
ainda que esta noite seja a da revolução. É necessário
que já na véspera ocupe uma situação de
extraordinária independência com respeito à classe
oficialmente dominante; mais ainda, é preciso que
nela se concentrem as esperanças das classes e das
camadas intermediárias, descontentes com o
existente, mas incapazes de desempenhar um papel
próprio. A preparação histórica da revolução conduz,
no período pré-revolucionário, a uma situação na qual
a classe chamada a implantar o novo sistema social, se
bem que não seja ainda dona do país, reúne de fato em
suas mãos uma parte considerável do poder de Estado,
enquanto que o aparato oficial deste último segue
ainda em mãos de seus antigos detentores. Daqui parte
a dualidade de poderes de toda revolução. 'a dualidade
de poderes surge ali onde as classes adversas se
apóiam já em organizações estáveis substancialmente
incompatíveis entre si e que a cada posso se eliminam
mutuamente na direção do país. A parte do poder
correspondente a cada uma das duas classes
combatentes corresponde à proporção de forças
sociais e ao curso da luta.26
Retomando a Trotsky consideramos que o
desenvolvimento do duplo poder é precisamente a
expressão da maturação do estado de guerra civil
existente na itália, onde a classe operária e o campesinato
não apenas enfrentaram militarmente ao minoritário setor
da burguesia italiano nucleado ao redor do projeto
neofascista da “República de Saló” mas também,
25
BROUE, Pierre, “Trotsky y la revolución francesa”, 5 de agosto de
2009, en http://gramscimania.blogspot.com/2009/08/trotsky-y-larevolucion-francesa.html
26
Ibíd., pg. 287
consolidando seu próprio poder, de fato se opunham
abertamente aos interesses do conjunto da burguesia
italiana que buscava por todos o meios, tanto políticos
como militares, conter a emergência da revolução.
O Partido Comunista italiano: rumo à
unidade nacional
Enquanto o duplo poder avançava como
resultado da crescente iniciativa político-militar das
massas, um enorme dique de contenção começava a
delinear-se, produto da orientação política que ia
adotando o PCI.
Este, desde o final de 1943, longe de decolar uma
estratégia tendente a empoderar ao incipiente poder
operário-camponês fixou uma orientação cujo objetivo
era o fortalecimento do cambaleante poder burguês,
promovendo um governo de unidade nacional junto com
Badoglio. Passou assim de propor que “[...] seria um erro
[...] grave, em sentido oportunista, subestimar a
importância do problema da direção política no
complexo de forças dentro do qual atua a classe
operária, e por uma mal entendida unidade ceder às
exigências das forças reacionárias, cujos representantes
são Badoglio e a monarquia, nas quais se pode
reconhecer uma função auxiliar mas não diretiva na luta
27
conta o fascismo e pela libertação nacional” ; integrar o
governo dirigido por essas mesmas forças, pondo o foco
na necessidade da unidade nacional entre as classes.
Questão que é fundamental para compreender o rumo
político adotado por setores das massas, já que como
assinalam todos os historiadores do período, entre eles o
italiano Aurélio Lepre:
Já antes de que a guerra tivesse terminado, o PCI, não
tanto pela quantidade de afiliados, mas pela
capacidade de influenciar diretamente de modo
capilar e profundo sobre vastos estratos da população,
havia se convertido em um grande movimento de
massas, e havia contribuído para criar a realidade
política na qual deveria ter-se movido no pós-guerra.28
Graças à campanha empreendida pelo PCI, em
abril de 1944 todos os partidos antifascistas entraram no
governo presidido pelo ex marechal fascista, - da mesma
forma que o farão depois da libertação de Roma com o
governo de Bonomi. Esta política do PCI, conhecida
como “a volta de Salerno”, foi promovida por Togliatti, máximo dirigente do PCI, recém chegado a Itália vindo
de Moscou –em direta obediência das diretrizes fixadas
na “Declaração sobre Itália” emitida no final de 1943
depois da Conferência de Moscou dos “três grandes” – a
URSS, Estados Unidos e Grã Bretanha -, onde se
recomendava que fossem incluídos no governo
“representantes daqueles setores do povo que se
29
opuseram sempre ao fascismo”. Esta política tendia a
dotar de legitimidade a um governo debilitado como uma
pré-condição necessária para conter o processo
revolucionário em curso. Assim o expressou claramente
27
CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 318.
TOGLIATTI, Palmiro, La política di Salerno. Aprile-dicembre 1944,
Editore Riuniti, Roma, 1969, pp 10-11.
29
CLAUDÍN, Fernando, Op.Cit., pg. 317.
28
40 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista
Togliati em seu primeiro discurso público ao chegar à
Itália: “hoje não se coloca diante dos trabalhadores
italianos o problema de se fazer o que foi feito na Rússia
[...] nós devemos garantir a ordem e a disciplina na
30
retaguarda dos exércitos aliados”.
A política do PCI se enfrentou diante ao crescente
avanço do duplo poder, tendeu a dirigir-lo e subordiná-lo
à linha governamental e começou a advogar para que “os
comitês de libertação nacional, em vez de serem
mantidos à margem (sejam) reconhecidos, evitando
claramente um desdobramento de poderes, […]
assegurando a participação ativa de todas as forças
democráticas e antifascistas no esforço organizado que o
país deve realizar”.31
Para terminar de atar as mãos da iniciativa dos
comitês de libertação e evitar seus desenvolvimento
como embriões dos futuros instrumentos do poder do
pós-guerra, o PCI impulsionou a assinatura do Protocolo
de Roma entre o CLNI e o Comando Superior Aliado no
Mediterrâneo e, posteriormente, com os representantes
do governo de Bonomi, em que se estabelecia que o
CLNAI exerceria todas as funções governamentais na
parte ocupada do país até a libertação enquanto que por
sua vez se comprometia a acatar as instruções dos angloamericanos no curso da guerra, a nomear como chefe
militar do exército guerrilheiro um “oficial secreto” dos
aliados e a seguir suas diretivas até a liberação do
32
território.
Foi estritamente em função da política de conter
o avanço do duplo poder e o aprofundamento do processo
revolucionário em curso que os aliados decidiram, - com
o acordo do governo italiano integrado pelo PCI -, em
novembro de 1944 quando já havia sido libertada Roma
dos alemães, paralisar seu avanço e deixar liberados a sua
sorte ao partisanos que combatiam no Norte, permitindo
às tropas de Hilter e de Mussolini consagrar-se durante
todo o inverno à luta contra a Resistência,33 tal como
coloca Claudín:
O general Alexander, comandante em chefe das forças
aliadas, ordenou aos guerrilheiros cessar toda
operação até a primavera, entregar as armas e dedicarse a escutar as emissões de rádio do quartel general
aliado. O CNLAI e o Estado Maior do exército
guerrilheiro não acataram as ordens de Alexander, e
decidiram prosseguir a luta.34
A política dos aliados, tendente a conter o
desenvolvimento do movimento partisano, precisamente
teve o efeito contrário, já que nestes momentos adquiriu
um caráter massivo, contando com cerca de trezentos mil
combatentes,35 tomando um impulso notável suas ações
independentes. E isto porque diante das múltiplas
ofensivas desembocadas pelas tropas alemãs e os
fascistas combatentes da “República de Saló”, diante das
quais os exércitos aliados não tiveram iniciativa militar
alguma, o governo de Bonomi, - que sucedeu ao de
Badoglio logo após a liberação de Roma pelos aliados-,
nem os partidos antifascistas do centro e sul do país, toda
a defesa ficou em mãos do exército guerrilheiro e da
combativa classe operária do Norte, “demonstrando que
não apenas eram o ´poder legal' mas também o 'poder
36
real' da Itália industrial”. Uma ordem emitida por
Kesselring, comandante alemão em chefe da frente de
Italia, nos dá uma mostra desta situação:
A atividade dos guerrilheiros segue aumentando.
Agora atuam em regiões até aqui livres de sua
presença. Os atos de sabotagem são cada dia mais
freqüentes e nossos transportes tropeçam com mais e
mais obstáculos. Esta peste deve desaparecer
totalmente. Alem disso, os grupos guerrilheiros têm
um serviço excelente de informação e o apoio da
população que lhes informa dos movimentos e
preparativos de nossas tropas. Como primeira medida,
ordeno a realização de uma semana anti-guerrilha [...]
[que] demonstrará aos grupos qual é nossa potência e
a repressão será implacável.37
Assim, a guerra civil em curso na Italia foi se
aprofundando ao calor tanto da agudização da ofensiva
alemã, como da tática de paralisação aplicada pelos aliados
e o governo italiano, acentuando as ações independentes
das massas que consolidaram o duplo poder.
As massas conquistam sua liberdade no Norte
Traversa coloca que a guerra civil surge
precisamente da ruptura do monopólio da violência
dentro de um Estado, que habilita a emergência de uma
situação na qual não são Estados os que combatem mas
grupos no interior de um mesmo Estado. No caso italiano
os “grupos”, longe do que pretendeu impor-se, eram
forças sociais, de classe, que expressavam interesses
antagônicos, e este caráter se manteve em que pese a
política de unidade nacional impulsionada pelos partidos
antifascistas.
De fato, quando em meados de abril de1945, uma
vez que a Alemanha ja etava praticamente derrotada
militarmente, os aliados iniciaram a ofensiva na chamada
linha gótica – linha defensiva dos alemães nos Apeninos
para impedir o avanço aliado -, produto da grande
envergadura que já haviam adquirido as ações das massas
a esta ofensiva se acelera uma insurreição generalizada
que, combinando a luta armada com greves
insurrecionais, liberou todas as grandes cidades e a maior
parte do território do Norte diante da chegada das tropas
aliadas. Assim o descrevia Luigi Longo:
Mais de 300 mil guerrilheiros iniciaram em princípios
de abril de 1945 os combates ativos no norte da Itália e
uma depois outra libertação Bolonha, Módena,
Parma, Piacenca, Gênova, Turim, Milão, Verona,
Pádua, e toda a região de Veneza, antes de chegarem as
tropas aliadas, os guerilheiros salvaram as empresas
industriais e as comunicações que os alemães se
preparavam para destruir, fizeram dezenas de
milhares de prisioneiros e se apoderaram de
30
Ibídem., pg. 323.
VIOLA, Eduardo, Op. Cit
32
BERNARD, Henri, Op. Cit. Pg. 50.
33
CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 327.
34
Ibidem.
35
BERNARD, Henri, Op. Cit., pg. 50.
31
36
37
Ibídem, pg. 228.
BERNARD, Henri, Op. Cit., pg. 50.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (35-42) - 41
considerável armamento, os guerrilheiros
estabeleceram em todos os lugares o poder dos
Comitês de Libertação nacional e executaram aos
principais cabeças do fascismo italiano [...] durante
dez dias, até a chegada das tropas e as autoridades
aliadas, os comitês de libertação nacional dirigiram no
norte da Itália toda a vida política, social e econômica.
O serviço de polícia correu a cargo das unidades
guerrilheiras não ocupadas nas operações militares de
persecução e desarmamento das unidades alemãs.38
Da mesma forma, o historiador italiano Guido
Quazza escreve: “antes do 25 de abril, por dez dias, as
massas populares exercitaram o poder real no norte da
Itália, as tropas aliadas estavam ainda longe, e por
algum tempo dispunham do apoio entusiasta da maioria
da população, do controle das fábricas, de uma grande
39
revolta camponesa em numerosas zonas”.
Como vemos, durante os dias transcorridos entre
a libertação das cidades do Norte e a chegada das tropas
aliadas, o poder esteve em mãos dos comitês de
libertação, que de fato estava em mãos da classe operária
e os setores populares, que contavam com um exército
próprio nada menos que de trezentos mil combatentes. É
por isto que falamos da existência do duplo poder, onde
significativos setores da classe operária, do campesinato
e os setores populares das cidades e povoados do Norte
experimentaram “uma situação de extraordinária
independência com respeito à classe oficialmente
dominante”, onde embora estes “não [eram] ainda
donos do país, [reuniam] de fato em suas mãos uma parte
considerável do poder do Estado, enquanto o aparato
oficial deste último [seguia] ainda em mãos de seus
antigos detentores”.
Neste ponto, tendo em conta o desenvolvimento
do processo social, nos parece interessante tomar o
pensamento de Gramsci em torno da “análise de
situações, relações de forças” a noção de momento
político-militar da luta de classes como estágio avançado
e decisivo da mesma, onde as classes exploradas
superaram sua consciência econômico-corporativa e se
elevam ao terreno mais aberto da luta social. O paradigma
histórico que apresenta Gramsci para este caso é o da
opressão militar de um Estado sobre outro, questão que
põe na ordem do dia o problema de qual classe
hegemonizará a luta pela libertação nacional. Trostsky
em muitas de suas análises sobre a guerra de libertação
nacional reiterou que esta era o “bolchevismo em
potência máxima”, no sentido de que permite ao
proletariado conduzir ao resto das classes exploradas e
elevar-se como sujeito hegemônico dando realizando as
grandes tarefas históricas colocadas. Consideramos que
na Itália se criou desde o primeiro momento um laço
orgânico entre esta luta e a luta de classes, pelo papel
hegemônico do proletariado tanto nas cidades como nas
milícias partisanas. E este foi precisamente o caráter que
as direções dos Comitês de Libertação Nacional
tenderam a diluir, dando à luta um caráter patriótico de
unidade nacional. Por isso o próprio Togliatti teve que
insistir em várias oportunidades sobre o caráter que a luta
armada deveria assumir para o partido.
Assim, em sua diretiva sobre a guerra partisana
de 6 de julho, assinalou a respeito que: “deve recordar-se
sempre que a insurreição que nos queremos não tem o
objetivo de impor transformações sociais e políticas no
sentido socialista e comunista, mas tem como objetivo a
libertação nacional e a destruição do fascismo”.40 Não
obstante este enorme freio estratégico à revolução, na
medida em que a direção do proletariado não se propunha
tomar o poder senão reconstituir a democracia burguesa,
a ação espontânea das massas demonstrou até o último
momento o caráter de classes de sua luta. Tal como coloca
Paolo Secchia em torno à insurreição que precedeu à
libertação das cidades do Norte: “os projetos
insurrecionais dos quais o PCI dispunha desde tempos
atrás viram aplicação em abril de 1945, mas na maioria
do casos, o movimento de massas foi muitíssimo mais
rápido que estes planos. Na prática, os partisanos
41
apareceram por todos os lugares antes da hora fixada”.
Segundo se colocava no artigo “A guerra partisana na
Itália”, isto demonstrava a grande autonomia de que
gozavam as formações a pesar das tentativas para
submeter-las.
Ao mesmo tempo também as massas operárias
entraram em ação. Em 18 de abril iniciou a greve em
Turim; entre 21 e 23 se insurrecionaram Módena,
Bolonha, Ferrara, Régio Emilia, La Spezia. Entre 23 e
27 se liberou Gênova e em 25 Milão. Em Piemonte o
chamado à insurreição havia sido projetado até o dia
26 de abril, mas foi liberada pelos operários desde
antes da chegada dos partisanos. É importante fazer
perceber que em Piemonte, centro industrial mais
importante da Itália, a espera, ou melhor dito, a
passividade do PCI para dar vazão à ação
insurrecional não foi casual. Os “titubeios” foram
correspondentes às tentativas de conter e desvia um
levantamento em linhas de classe que
espontaneamente estava se desenvolvendo.42
De fato, tal como coloca Paolo Secchia, a
insurreição geral foi uma política imposta ao PCI pelo
próprio estado de ânimo e resolução das massas, que
obrigou o PCI a por-se à frente a fim de conter a luta nos
limites para eles admissíveis. A dimensão em que os
dirigentes do PCI advertiram o perigo de que as massas
poderiam sair de seu controle pode ser sintetizada nas
seguintes palavras do discurso de Togliatti de fevereiro de
1945:
No momento da libertação do norte, nós nos
encontraremos de frente à situação mais difícil destes
últimos anos. Nas massas surgirá a grande expectativa
criada [...] de nossa propaganda. Mas se criará
também a psicologia que haverá de dizer às massas: é
a paz, o esforço da guerra terminou, os sacrifícios
também. Então todos os problemas imediatos
econômicos e políticos ficaram expostos de maneira
mais crítica do que já está hoje”.43
40
SECCHIA, Paolo, Storia della resistencia, Eunadi, Turín, 1973, pg. 509.
Ibíd., pg. 564
42
“La guerra partisana en Italia”, Op. Cit.
43
SECCHIA, Paolo, Op. Cit, pg. 601.
41
38
CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pp. 328-329.
QUAZZA, Guido, Resistencia e storia d'Italia, Riuniti, Roma, pg. 292.
39
42 - Revolução e contra-revolução na Itália pós-fascista
Talvez a melhor prova do estado de
independência alcançado pelas massas esteja dado pela
política que iniciaram os aliados ao chegar às zonas
liberadas:
A administração militar anglo-americana declarou o
estado de guerra no norte da Itália. Aboliu todas as
disposições democráticas dos comitês de libertação
nacional e destituiu do aparato dirigente aos que
contavam com a confiança do povo, substituindo-os
por funcionários reacionários. Devolveu aos
monopolistas e terratenentes a propriedade que havia
sido confiscada deles. Os ocupantes desarmaram os
destacamentos guerrilheiros e dissolveram o comitê
de libertação nacional do norte da Itália.44
Que o nível de auto-organização alcançado pelas
massas do norte italiano deveria ser sufocado mediante a
ação político-militar dos exércitos aliados é uma mostra
de seu enorme desenvolvimento, da mesma forma que o é
o fato de que tenham sido os partisanos e operários quem
com suas próprias forças libertaram as cidades do norte
dias antes de sua chegada.
Artigo recebido em 09/03/2011
Aprovado em 23/04/2011
44
Citado en CLAUDÍN, Fernando, Op. Cit., pg. 329
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 43
Revolução Socialista e sujeito revolucionário
em José Carlos Mariátegui
1
Gilberto Calil
2
O
peruano José Carlos Mariátegui
(14/6/1894-16/4/1930) foi o primeiro marxista a
desenvolver uma reflexão original sobre a realidade latinoamericana. Definindo-se como revolucionário, construiu
referências de análise com o objetivo de sustentar e
impulsionar a revolução latino-americana. Nosso objetivo
é indicar os elementos estruturantes desta reflexão, que
permitam compreender historicamente sua contribuição,
destacando-se os elementos de originalidade e inovação
de sua perspectiva de Revolução, na qual ocupavam
espaço privilegiado os camponeses e trabalhadores
rurais, e muito especialmente as comunidades indígenas
subordinadas ao latifúndio na América Andina, sem, no
entanto, desprezar o papel a ser desempenhado pela
classe operária urbana no processo revolucionário. A
estes elementos articulam-se sua concepção de
democracia e sua crítica à estratégia política voltada à
construção de um bloco interclassista dirigido pela
pequena-burguesia, propugnada por Haya de la Torre.
Nos últimos anos é perceptível um renovado
interesse pela obra de Mariátegui no Brasil,3 o que se
caracteriza pela publicação ou republicação no país de
diversos textos seus,4 bem como a produção de novos
estudos e interpretações.5Ainda assim, permanece
1
Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Fórum
Universitário do Mercosul: Frontera, Universidad y Crisis
Internacional, com o título “Revolução socialista e sujeito
revolucionário no pensamento de José Carlos Mariátegui”
2
Professor Adjunto do Curso de História e do Programa de PósGraduação em História, Poder e Práticas Sociais da Unioeste; líder do
Grupo de Pesquisa História e Poder. [email protected]
3
Luiz Bernardo Pericás faz um vasto painel do impacto de Mariátegui
no Brasil da década de 1920 à atualidade, ressaltando sua reduzida
repercussão no país, concluindo que o marxista peruano passou
desapercebido da maioria dos escritores e políticos do Brasil e que
teve influência reduzida no meio acadêmico e partidário. PERICÁS,
Luiz Bernardo. José Carlos Mariátegui e o Brasil. Estudos Avançados,
São Paulo, v. 24, n. 68, 2010.
4
Pode-se destacar, dentre elas, MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um
socialismo indo-americano. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. Org.
Michel Löwy; MARIÁTEGUI, José Carlos. Do sonho às coisas:
retratos subversivos. São Paulo: Boitempo, 2005. Org. Luiz Bernardo
Pericás. MARIÁTEGUI, José Carlos. Sobre educação. São Paulo:
Xamã, 2007. Org. Luiz Bernardo Pericás, MARIÁTEGUI, Sete
ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão
Popular / Clacso, 2008. Coleção Pensamento Social LatinoAmericano; MARIÁTEGUI, José Carlos. As origens do fascismo.
Org. Luiz Bernardo Pericás. São Paulo: Alameda, 2010.
5
Destacamos, dentre eles, a investigação de doutoramento de Leila
Escorsim: O Amauta Revolucionário: uma introdução ao pensamento
de J.C. Mariátegui. Tese de Doutorado em Serviço Social. Rio de
Janeiro: UFRJ. 2004. A parte principal da tese está publicada em
ESCORSIM, Leila. Mariátegui: vida e obra. São Paulo: Expressão
Popular, 2006. A autora identifica os principais momentos da trajetória
de Mariátegui, articulando a reflexão teórica com os desafios e tarefas
bastante presente a perspectiva que considera Mariátegui
como um autor “heterodoxo”, “romântico” e até
“idealista”, visão que acreditamos ser insustentável em
face de sua obra teórica e de sua breve trajetória política.
Em vista disto, interessa-nos também indicar a
centralidade da análise da estrutura social e das
determinações materiais na reflexão mariateguiana.
Para a análise do pensamento de Mariátegui,
utilizaremos como opção metodológica a análise de
alguns de seus principais textos, com ênfase em sua
reflexão sobre as características da revolução latinoamericana e a constituição do sujeito revolucionário,
confrontando, quando for o caso, com as interpretações e
juízos presentes em obras publicadas no Brasil. Nesta
abordagem, justifica-se relativo destaque aos Sete
Ensaios, tendo em vista que nesta obra a dialética
marxista se expressa em sua forma mais completa, com a
perspectiva totalizante articulando os diversos textos e
conferindo à obra em seu conjunto um significado que
6
supera a soma das partes. Complementarmente, serão
utilizados também outros escritos de Mariátegui, não
discriminando-se entre textos incluídos em coletâneas
publicadas no Brasil e outros sem tradução disponível.
A trajetória intelectual e política de José
Carlos Mariátegui
Mariátegui viveu apenas 35 anos. Seus textos
mais importantes foram escritos nos últimos sete anos de
sua vida, após seu retorno de um período de três anos e
quatro meses em que viveu em uma espécie de exílio na
Europa. Sua produção juvenil, marcadamente romântica,
foi considerada por ele próprio como “a idade da pedra
7
de meu pensamento”. Em sua formação, foi
especialmente importante o período em que permaneceu
na Itália, entre fevereiro de 1919 e maio de 1922, quando
práticas para refletir sobre o amadurecimento e as peculiaridades de
sua concepção marxista.
6
A obra é considerada por Pericás como “obra prima” de Mariátegui e
apontada como “o mais influente, original e inovador estudo do
processo histórico de uma nação realizado por um intelectual na
América do Sul”. PERICÁS, José Carlos Mariátegui e o Brasil, op. cit.
Em termos semelhantes, Escorsim considera-o como “a primeira
expressão crítico-analítica sólida do marxismo na América Latina,
isto é, a primeira análise histórico-concreta de uma formação
econômico-social latino-americana processada criadoramente com
os recursos heurísticos do marxismo”. ESCORSIM, op. cit., p. 213. A
autora acrescenta que “só a articulação do conjunto dos 7 textos
permite a interpretação da totalidade social complexa que é o Peru de
Mariátegui”.Idem, p. 231.
7
Ao retornar da Itália, Mariátegui teria queimado seus escritos de
juventude Cf. ALIMONDA, Héctor. José Carlos Mariátegui. São
Paulo: Brasiliense 1983, p. 27.
44 - Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui
Mariátegui tomou contato com as ocupações de fábrica e
assistiu a ascensão do fascismo, aprofundou suas leituras
marxistas e refinou seu instrumental para a interpretação
da realidade social.8 Sua estadia na Europa foi
fundamental para seu amadurecimento intelectual,
possibilitando que em seu retorno tenha produzido sua
original interpretação sobre a realidade peruana.
É fundamental levar em conta as condições
encontradas por Mariátegui em seu retorno. Para além do
atraso econômico e da dependência externa, a perspectiva
de constituição do marxismo peruano enfrentava
inúmeros obstáculos, como a fragilidade do movimento
operário, a pouca disseminação das ideias marxistas e a
quase total ausência de espaços de debate e discussão
crítica sobre a realidade peruana. Além disso,
“Mariátegui está só quando retorna ao Peru – não dispõe
de nenhum suporte, de nenhuma tradição, de nenhum
companheiro com o qual pudesse dividir o peso da sua
tarefa americana; estava tudo por fazer”.9 Portanto,
tinha que se dedicar simultaneamente a inúmeras tarefas:
“A ele coube aquele tudo por se fazer: o estabelecimento
de uma casa editora, a direção de Amauta, a criação de
Labor, a animação do movimento operário-sindical, a
fundação do partido e da central sindical – e os estudos,
10
as investigações, as matérias para revistas e jornais...”
Se por um lado, tal engajamento favorecia a articulação
entre a reflexão teórica e a atividade prática –
fundamental para Mariátegui -, por outro determinava
condições materiais e práticas bastante adversas à
sistematização de suas reflexões.
O marxismo de Mariátegui
Mariátegui foi o primeiro marxista a desenvolver
uma reflexão original sobre a realidade da América
Latina e é considerado por diversos autores como o mais
original e criativo marxista latino-americano e o
fundador de um marxismo autenticamente latino11
americano, ainda que em termos estritamente
cronológicos não seja o primeiro latino-americano a
reivindicar o marxismo. Em sua recepção no Brasil, o
reconhecimento da originalidade de seu pensamento tem
levado diversos autores a considerar seu marxismo como
“heterodoxo” e até idealista, atribuindo particular
importância à valorização da ação do sujeito
revolucionário. Além disso, a reflexão de Mariátegui
sobre temáticas que contrariam o esquematismo stalinista
12
(erroneamente tratadas como “heterodoxas” ), como a
cultura, a literatura, a questão indígena e a identidade
nacional, muitas vezes tem levado seus analistas a
considerá-lo como “antideterminista” e pouco propenso a
levar em consideração a estrutura econômica. Tal
apreciação nos parece incorreta e injustificável.
A qualificação de Mariátegui como romântico e
heterodoxo é particularmente presente na obra de Michel
Löwy. De acordo com ele:
No se puede dar cuenta del pensamiento de
Mariátegui sobre la religión – así como sobre la
filosofia, la ética, la política, la cultura o la cuestión
indígena – sin tomar en cuenta el espírito
romântico/revolucionário que inspira su obra, e
imprime a su concepción marxista del mundo su
calidad única y su fuerza cultural visionaria. Acerca de
la religión, como acerca de otros tantos temas,
Mariátegui es un heterodoxo. En el corazón de su
heterodoxia marxista, de la singularidad de su
discurso filosófico y político, se encuentra un
momento irreductiblemente romântico.13
Em contraposição a esta apreciação,
concordamos com Escorsim quando refuta a posição de
Löwy, lembrando que “embora Mariátegui tenha dado os
seus primeiros passos intelectuais na trilha do
anticapitalismo romântico, sua adesão ao marxismo
compeliu-o a superá-lo”,14 e que “a crítica matiateguiana
ao capitalismo não é conduzida em nome de qualquer
passado (real ou imaginário); sua visão, ao contrário, é
15
nitidamente histórico-concreta”. Tanto a análise de
Mariátegui sobre a estrutura econômico-social do Peru,
registrada nos Sete Ensaios, como as indicações
concretas de sua perspectiva socialista corroboram
claramente esta apreciação, desautorizando, a nosso ver,
a qualificação de Mariátegui como “romântico”, como
bem exemplifica seu alerta ao tratar a questão da questão
indígena:
Nosso primeiro esforço tende a estabelecer seu caráter
de problema fundamentalmente econômico. (...) Com
certeza, a mais absurda das refutações que se podem
nos dirigir é a de lirismo ou literaturismo. Colocando
8
Parte dos textos produzidos por Mariátegui na Itália estão disponíveis
em português em MARIÁTEGUI, As origens do fascismo, op. cit. Para
uma avaliação da importância dos textos de análise do fascismo para o
amadurecimento do marxismo de Mariátegui, ver CALIL, Gilberto.
A experiência italiana e o desenvolvimento do marxismo de José
Carlos Mariátegui (1920-1922), disponível em: http://
www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/anais_ivsimp/gt8/15_gilbertocalil.pdf
9
ESCORSIM, op. cit., p. 120.
10
Idem, p. 121.
11
Esta qualificação está presente, dentre outros, em ALIMONDA, op.
cit., LÖWY, Michael. Notas sobre a recepção do marxismo na
América Latina. In: BARSOTTI, Paulo & PERICÁS, Luiz Bernardo.
América Latina: história, idéias e revolução. São Paulo: Xamã, 1998,
p. 11-16; PERICÁS, José Carlos Mariátegui e o Brasil, op. cit.;
SANCHEZ VÁZQUES, Adolfo. Mariátegui: grandeza e
originalidade de um marxista latinoamericano. In: BARSOTTI, Paulo
& PERICÁS, Luiz Bernardo. América Latina: história, idéias e
revolução. São Paulo: Xamã, 1998, p. 45-54; ARICÓ, José.
Mariátegui e o surgimento do marxismo latino-americano. In:
HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988, p. 447-459 e FORNET-BETANCOURT, Raúl. O
marxismo na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 1995.
12
Não nos parece correto tratar os procedimentos teóricos stalinistas
como “ortodoxos”, sendo mais adequado denominá-los como
mecanicistas, o que coloca em evidência sua ruptura com o método
marxiano.
13
LÖWY, Michel. Mística revolucionaria: José Carlos Mariátegui y la
revolución. Utopia y práxis latinoamericana. Maracaibo, n. 28, eneromarço 2005, p. 49-59. P. 50. Grifos do autor.
14
ESCORSIM, op. cit., p. 50.
15
Idem, 51. A crítica de Escorsin à interpretação de Löwy é a mais
direta que encontramos no debate em torno de Mariátegui no Brasil.
Pericás ressalta a importância da contribuição Löwy na disseminação
do pensamento de Mariátegui no Brasil, sustentando que ele
“conseguiu ver Mariátegui de maneira totalizante, mais ampla” e que
“sua abordagem teve uma sofisticação maior”, registrando, ao
mesmo tempo que “mesmo que se possa discordar de algumas de suas
interpretações”, sem precisar ao que se refere. PERICÁS, José Carlos
Mariátegui e o Brasil, op. cit.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 45
em primeiro plano o problema econômico-social,
assumimos a atitude menos lírica e menos literária
possível. Não nos contentamos com reivindicar o
direito do índio à educação, à cultura, ao progresso, ao
amor e ao céu. Começamos por reivindicar,
categoricamente, seu direito à terra. Esta
reivindicação perfeitamente materialista deveria
bastar para que não fôssemos confundidos com os
herdeiros ou repetidores do verbo evangélico do
grande frei espanhol [Las Casas], a quem, de outra
parte, tanto materialismo não nos impede de admirar e
estimar fervorosamente.
É recorrente também a proposição de que
Mariátegui “é defensor de um marxismo
antideterminista”.17 Apreciação correta se entendida
enquanto expressão da veemente oposição de Mariátegui
às simplificações deterministas e economicistas impostas
pelo stalinismo em detrimento à dialética marxista. Ainda
assim, é necessário alertar que tal oposição jamais levou
Mariátegui a minimizar a determinação da estrutura
econômica, nem implicou em qualquer forma de
18
idealismo, voluntarismo ou romantismo, como defende,
por exemplo, Fornet-Betancourt:
Trata-se de um marxismo decidido
“ideologicamente” pela “idéia” da revolução
socialista. (...) O voluntarismo, em Mariátegui, é um
termo que, antes de tudo, quer ressaltar a função
religiosa metafísica, que, num mundo que se precipita
na falta de orientação o marxismo deve assumir e
cumprir. (...) [Mariátegui] afirma no marxismo a
novidade imprevisível, que o ímpeto criativo daquele
fator subjetivo cujo nome é liberdade humana, pode
provocar em qualquer situação histórica.19
Em contraposição, é importante lembrar que
Mariátegui inicia seus Sete ensaios propondo nada menos
do que um “Esquema da evolução econômica”,
realizando para isto uma análise da formação histórica
peruana, o que expressa seu esforço de compreensão da
economia do país como base para a compreensão da
realidade social. O ponto de partida de Mariátegui é a
evolução econômica, sob perspectiva histórica,
avaliando as estruturas pré-coloniais, o processo de
colonização e sua base econômica, a constituição de uma
economia oligárquica no período pós-independência,
inicialmente constituída em torno do salitre e do guano e
após o colapso da economia constituída em torno destes
produtos, a configuração de uma economia agroexportadora baseada no latifúndio e na exploração do
trabalho semi-servil. Como destaca Leila Escorsim “são
essas bases econômicas, concretas e historicamente
situadas, particulares, da formação econômico-social do
seu país que propiciam a compreensão das expressões
socioculturais, que permitem interpretar unitária e
totalizadoramente o que à análise superficial, ou
metodologicamente mal-direcionada, aparece como
20
casual, folclórico ou episódico”. O objetivo de
compreender a realidade sob uma perspectiva totalizante
levava Mariátegui a reivindicar enfaticamente a dialética
marxista:
O marxismo, do qual todos falam mas muito poucos
conhecem e, sobretudo, compreendem, é um método
fundamentalmente dialético. Ou seja, é um método
que se apóia inteiramente na realidade, nos fatos. Não
é, como alguns erroneamente supõem, um corpo de
princípios de conseqüência rígidas, iguais para todos
os climas históricos e todas as latitudes sociais. Marx
extraiu seu método das próprias entranhas da história.
O marxismo, em cada país, em cada povo, opera e atua
sobre o ambiente, sobre o meio, sem descuidar de
nenhuma de suas modalidades.21
Em artigo intitulado “O determinismo marxista”,
Mariátegui repudiava a crítica idealista ao marxismo
articulando de forma clara a ação do sujeito
revolucionário às determinações materiais: “Marx só
podia conceber e propor uma política realista e, por isto,
esmerou-se na demonstração de que o próprio processo
da economia capitalista, quanto mais plena e
vigorosamente se cumpre, conduz ao socialismo; mas
sempre considerou como condição prévia de uma nova
ordem a capacitação espiritual e intelectual do
proletariado para realizá-la, através da luta de
classes”.22 Embora sempre reivindicasse enfaticamente a
ação do sujeito nos processos históricos, em diversas
oportunidades, Mariátegui demarcou sua divergência
com as interpretações idealistas e voluntaristas, como
podemos exemplificar na passagem abaixo do texto “A
imaginação e o progresso”, publicado em 1924:
A imaginação, geralmente, é menos livre e arbitrária
do que se supõe. (...) Como todas as coisas humanas, a
imaginação também tem seus limites. Em todos os
homens, tanto nos mais geniais quanto nos mais
estúpidos, encontra-se condicionada por
circunstâncias de tempo e de espaço. O espírito
humano reage contra a realidade contingente. No
entanto, precisamente ao reagir contra a realidade, é
quando talvez mais dela dependa. Esforça-se para
modificar o que vê e o que sente, não o que ignora.
Logo, só são válidas aquelas utopias que se poderiam
chamar de realistas. Aquelas utopias que nascem das
próprias entranhas da realidade.23
A mesma preocupação com as determinações
concretas está presente em sua análise da questão
indígena:
Todas as teses sobre o problema indígena, que
ignoram ou aludem a este como problema econômico
social, são outros tantos exercícios teóricos – e às
16
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana, op. cit., p. 67-8. Grifo meu.
17
FORNET-BETANCOURT, op. cit., p. 154.
18
Excetuando-se, certamente, o período de juventude, caracterizado
pelo próprio Mariátegui como “romântico”. Tratamos aqui, portanto,
estritamente de sua produção teórica do período de maturidade,
compreendido entre 1923 e 1930.
19
FORNET-BETANCOURT, op. cit., p. 142, 153 e 154.
20
ESCORSIM, op. cit., p. 232.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Mensagem ao Congresso Operário. In:
MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano, op.
cit., p. 103-104
22
MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit., p. 211.
23
Idem, p. 48.
21
46 - Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui
vezes apenas verbais – condenados a um descrédito
absoluto. (...). A crítica socialista o descobre e
esclarece, porque busca suas causas na economia do
país e não no seu mecanismo administrativo, jurídico
ou eclesiástico, nem em sua dualidade ou pluralidade
de raças, nem em suas condições culturais ou morais.
A questão indígena nasce de nossa economia. Tem
suas raízes no regime de propriedade da terra”.24
Comentando esta passagem, Tiago Coelho
Fernandes conclui que “é a análise do regime de
propriedade agrária e das relações sociais daí
decorrentes que possibilita compreender a situação dos
povos indígenas e elaborar um programa de sua
25
emancipação”. Ainda referindo-se à questão indígena,
Mariátegui é bastante preciso em sua definição dos
limites da “vontade revolucionária”, enfatizando a
necessidade de que esteja articulada a um programa
econômico concreto:
A reivindicação indígena carece de concreção
histórica enquanto se mantiver em um plano filosófico
ou cultural. Para adquiri-la – isto é, para adquirir
realidade, corporeidade – precisa se converter em
reivindicação econômica e política. O socialismo nos
ensinou a colocar o problema indígena em novos
termos. Deixamos de considerá-lo abstratamente
como problema étnico ou moral para reconhecê-lo
concretamente como problema social, econômico e
político. E assim o sentimos, pela primeira vez,
esclarecido e demarcado.26
Mais do que apenas propor uma mera
“contextualização” econômica de sua problemática,
Mariátegui buscava dialeticamente construir uma
interpretação capaz de apreender a totalidade social, em
oposição às “diversas teses que consideram a questão
como um ou outro dos seguintes critérios unilaterais e
exclusivos: administrativo, jurídico, étnico, moral,
27
educacional, eclesiástico”. De forma ainda mais
explícita, Mariátegui considerava que “o regime de
propriedade da terra determina o regime político e
administrativo de toda nação. O problema agrário – que
até agora a república não pôde resolver – domina todos
os problemas de nossa nação. Sobre uma economia
semifeudal não podem prosperar nem funcionar
instituições democráticas e liberais”.28
Sua análise do estágio de desenvolvimento do
capitalismo e do lugar nele ocupado pela América Latina
fundamenta sua análise da Revolução latino-americana,
tendo como referências centrais o Imperialismo e a
Divisão Internacional do Trabalho: “A época da livre
concorrência, na economia capitalista, terminou em
todos os campos e em todos os aspectos. Estamos na
época dos monopólios, isto é, dos impérios. Os países
24
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana, op. cit., p. 53.
25
FERNANDES, Tiago Coelho. Mariátegui e as raízes da rebelião
indígena. História & Luta de Classes, Marechal Cândido Rondon,
n. 4, julho 2007, p. 22.
26
Idem, p. 54.
27
Idem, p. 56.
28
Idem, p. 70.
latino-americanos chegam atrasados à concorrência
capitalista. Os primeiros lugares já foram
definitivamente atribuídos. O destino desses países, na
ordem capitalista, é o de simples colônias”.29 É com base
nessa referência geral que o autor fundamenta sua
proposição de que “o pensamento revolucionário, e
mesmo o reformista, já não pode ser liberal, mas sim
socialista. O socialismo aparece em nossa história não
por força do acaso, de imitação ou de moda, como
supõem espíritos superficiais, mas sim como uma
30
fatalidade histórica”. Neste ponto, coloca-se a
problemática da revolução latino-americana, sua
necessidade e urgência, e seu caráter.
A Revolução latino-americana
Entre 1923 e 1930, a produção teórica de
Mariátegui – articulada a sua intervenção concreta na luta
de classes no Peru – concentra-se em torno problemática
da Revolução Latino-Americana. Seu argumento central
era que não existiam condições materiais para a
concretização de uma “revolução burguesa” na América
Latina, tendo em vista a ausência de autonomia da
burguesia do subcontinente e sua vinculação estrutural ao
imperialismo e ao latifúndio. Assim, para ele era
necessário ter claro que a luta anti-imperialista não
poderia contar com o apoio da burguesia local, como
expressou em seu conhecido “Ponto de vista antiimperialista”: “As burguesias nacionais, que vêem na
cooperação com o imperialismo a melhor fonte de
ganhos, sentem-se suficientemente donas do poder
político para não se preocuparem seriamente com a
31
soberania nacional”. Seria, portanto, anacrônico e
despropositado esperar por uma “revolução burguesa” na
América Latina. A consequência lógica é que a revolução
latino-americana só se concretizaria sob a direção dos
trabalhadores, tendo, desde o princípio, um caráter
socialista, ainda que assumisse concomitantemente
tarefas historicamente são atribuídas à burguesia:
Mentes pouco críticas e profundas podem supor que o
fim do feudalismo é um empreendimento típica e
especificamente liberal e burguês e que pretender
transformá-lo em função socialista é mudar de forma
romântica as leis históricas. Esse critério simplista de
teóricos de pouca profundidade contrapõe-se ao
socialismo sem outro argumento que o de que o
capitalismo não esgotou sua missão no Peru. A surpresa
de seus partidários será extraordinária quando ficarem
sabendo que a função do socialismo no governo da
nação, conforme a hora e o compasso histórico ao qual
tiver que se ajustar, será em grande parte a de realizar o
capitalismo – isto é, as possibilidades ainda
historicamente vitais do capitalismo – no sentido que
convenha aos interesses do progresso social.32
29
MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit., p. 119.
Esta passagem encontra-se no texto Aniversário e Balanço, publicado
em setembro de 1928, marcando os dois anos da revista Amauta.
30
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana, op. cit., p. 55.
31
MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit, p. 130.
32
MARIÁTEGUI, José Carlos. Prólogo a Tempestade nos Andes. In:
LÖWY, Michael (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia
de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Perseu Abramo, 1999, p. 106.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 47
Neste sentido, Mariátegui registrou no editorial
do segundo aniversário da revista Amauta que “a
revolução latino-americana será uma etapa, uma fase da
revolução mundial, nada mais, nada menos. Será, pura e
simplesmente, a revolução socialista. A esta palavra
acrescentem, segundo os casos, todos os adjetivos que
quiserem: 'antiimperialista', 'agrarista', 'nacionalistarevolucionária'. O socialismo os supõe, os antecede,
33
abrange a todos”. Mariátegui não dava margem a
dúvidas quanto ao caráter imediatamente socialista da
revolução proposta: “Na luta entre dois sistemas, entre
duas ideias, não passa pela nossa cabeça sentirmo-nos
espectadores nem inventar um terceiro termo. A
originalidade acima de tudo é uma preocupação literária e
anárquica. Em nossa bandeira inscrevemos apenas uma
grande e simples palavra: socialismo”.34 Ainda no mesmo
sentido, em uma conferência proferida em 1923, avaliava
a divisão do movimento operário e socialista europeu,
assumindo claramente a posição dos revolucionários:
Las fuerzas proletarias europeas se hallan divididas en
dos grandes bandos: reformistas y revolucionarios.
(...) En uno y otro bando hay diversos matices, pero los
bandos son neta y inconfundiblemente sólo dos. El
bando de los que quieren realizar el socialismo
colaborando políticamente con la burguesía; y el
bando de los que quieren realizar el socialismo
conquistando integralmente para el proletariado el
poder político. (...) Una parte del proletariado cree que
el momento no es revolucionario; que la burguesía no
ha agotado aún su función histórica; que, por el
contrario, la burguesía es todavía bastante fuerte para
conservar el poder político, que no ha llegado, en
suma, la hora de la revolución social. La otra parte del
proletariado cree que el actual momento histórico es
revolucionario; que la burguesía es incapaz de
reconstruir la riqueza social destruida por la guerra e
incapaz, por tanto, de solucionar los problemas de la
paz; que la guerra ha originado una crisis cuya
solución no puede ser sino una solución proletaria,
una solución socialista, y que con la Revolución Rusa
ha comenzado la revolución social. (...) Yo participo
de la opinión de los que creen que la humanidad vive
un período revolucionario. Y estoy convencido del
próximo ocaso das teses social-democráticas, de todas
as teses reformistas, de todas las tesis evolucionistas.35
Para Mariátegui, era imprescindível que a classe
trabalhadora tivesse clareza das limitações da
democracia burguesa, 3 6 inclusive observando o
progressivo descomprometimento da própria burguesia
com as instituições por ela criadas, característico do
estágio imperialista: “La democracia burguesa ha cesado
de corresponder a la organización de las fuerzas
económicas formidablemente transformadas y
37
acrescentadas. Por esto, la democracia está en crisis”.
33
MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit, p. 119.
Idem, p. 118.
35
MARIÁTEGUI, José Carlos. Historia de la crisis mundial:
conferencias pronunciadas en 1923. Lima: Amauta, 1964, p. 19-20 e 22.
36
É importante registrar que usualmente Mariátegui utilizava o termo
“democracia” como sinônimo de “democracia burguesa”, designando
a democracia da classe trabalhadora como “ditadura do proletariado”
ou “regime soviético”.
Escrevendo em 1923, Mariátegui avaliava o impacto da
Revolução Russa e da ascensão do fascismo, concluindo
que “la intensificación de la lucha de clases, el
acrecentamiento de la guerra social, ha acentuado esta
38
crisis de la democracia”. Para a classe trabalhadora,
reivindicava o regime soviético, nos termos em que se
estruturou nos primeiros anos da experiência soviética:
No existe el dualismo democrático en el regímen
sovietal. Los soviets son al mismo tiempo órganos
ejecutivos y legislativos. El consejo de comisarios del
pueblo no es sino un comité directivo, un estado
mayor de la asamblea de los soviets. El parlamento
suele no corresponder, por envejecimiento, a las
corrientes del instante. El soviet está en constante
renovación, en constante cambio. Todas las
oscilaciones de la opinión se reflejan en el soviet. El
soviet es el órgano típico del régimen proletario, así
como el parlamento es el órgano típico del régimen
democrático. Es un régimen de representación
profesional y de representación de clase. La dictadura
del proletariado, por ende, no es una dictadura de
partido sino una dictadura de clase, una dictadura de la
clase trabajadora.39
Assim, ao mesmo tempo em que recusava às
burguesias latino-americanas qualquer papel
revolucionário às burguesias latinoamericanas,
articulava esta recusa à crítica ao caráter supostamente
universal das instituições burguesas, tratadas como
correspondentes aos interesses de classe que as sustentam
material e historicamente. A inviabilidade de uma
“revolução burguesa” recolocava a Mariátegui a reflexão
em torno da constituição do sujeito revolucionário,
impulsionando um dos mais férteis eixos de sua produção
teórica.
A constituição do sujeito revolucionário
A reflexão em torno da Revolução Socialista em
um país dependente, atrasado, pouco industrializado e
com uma estrutura econômica centrada no latifúndio
agro-exportador conduziu Mariátegui a refletir acerca da
necessidade de incorporação dos camponeses no
processo revolucionário, tendo em vista que a classe
operária peruana era demasiadamente reduzida. O dado
evidente de que a grande maioria dos trabalhadores rurais
peruanos era constituído de indígenas indicava a
Mariátegui a necessidade de estudar sua cultura e sua
história, buscando nas tradições incaicas elementos que
permitissem uma aproximação e articulação concreta
entre as reivindicações indígenas – em especial a
reconquista e apropriação comunitária da terra
expropriada pelo latifúndio – e a perspectiva socialista
revolucionária. Assim a questão indígena era pensada nos
marcos do projeto revolucionário socialista, o qual, por
sua vez, deveria ser capaz de abarcar os anseios das
comunidades indígenas.
34
37
MARIÁTEGUI, José Carlos. Historia de la crisis mundial, op. cit.,
p. 135.
38
Idem, p. 136.
39
Idem, p. 149.
48 - Revolução Socialista e sujeito revolucionário em José Carlos Mariátegui
Desta forma, rejeitando a plataforma política
reformista, a proposição mariateguiana para a construção
da revolução socialista conduzia à constituição de um
bloco classista, no qual tivessem lugar tanto a vanguarda
operária como os trabalhadores rurais, em sua maioria de
procedência indígena. A incorporação dos indígenas
como parte do sujeito social revolucionário não era
pensada de forma passiva. Ao contrário, apenas sua
participação ativa possibilitaria tanto a resolução de suas
questões específicas – fundamentalmente a reconquista
da terra -, como o avanço da revolução socialista: “A
solução do problema do índio tem de ser uma solução
social. Seus realizadores devem ser os próprios índios.
Essa concepção faz ver a reunião dos congressos
indígenas como um fato histórico. Os congressos
indígenas ainda não representam um programa, mas já
representam um movimento”.40
A proposição de articulação entre operários e
campesinos indígenas articulava-se diretamente à
reivindicação de autonomia de classe, em oposição à
aliança com a burguesia, como explicita um de seus
últimos escritos publicados em vida, um editorial de
Amauta denominado “Sobre uma questão superada”: “A
vanguarda do proletariado e os trabalhadores
conscientes, fieis a sua ação no terreno da luta de classes,
repudiam toda tendência que signifique fusão com forças
ou organismos políticos de outras classes. Condenamos
como oportunista toda a política que proponha a
renúncia momentânea do proletariado a sua
independência de programa e ação, independência que
deve ser mantida integralmente em todos os
momentos”.41
Além de recusar colaboração com a burguesia,
Mariátegui manifestava suas reservas em relação às
ambigüidades e contradições da “classe média”: “La
clase media, dominada por el recuerdo de su pasado
bienestar, tiende ao restablecimiento del antiguo
régimen. Le falta una mentalidad de clase, una
consciencia de clase. Un gobierno de la clase media no
puede desenvolver sino una política capitalista. La clase
media necesita incorporarse en la clase capitalista o en
la clase asalariada. No cabe para ella una posición
media ni independiente.42 Já em 1923, analisava o
comportamento político da classe média, sob impacto de
sua participação na ascensão do fascismo:
Como la batalla actual se libra entre el capitalismo y el
proletariado, toda intervención de un tercer elemento
tiene que operarse en beneficio de la clase
conservadora. El capitalismo y el proletariado son dos
grandes y únicos campos de gravitación que atraen las
fuerzas dispersas. Quien reacciona contra el
proletariado sirve al capitalismo. Esto le acontece a la
clase media, en cuyas filas ha reclutado su
proselitismo el movimiento fascista.43
40
MARIÁTEGUI, Por um socialismo indo-americano, op. cit, p. 88.
A citação encontra-se no texto “O problema elementar do Peru”,
publicado em 1924.
41
Idem, p. 190.
42
MARIÁTEGUI, José Carlos. Historia de la crisis mundial, p. 102.
43
Idem, p. 136-7. Ressalve-se, como o próprio Mariátegui adverte em
diversos momentos, que não se deve confundir a base social do
fascismo, fundamentalmente constituída por setores médios, com o
A conclusão política desta proposição é clara, e
vincula-se à conhecida polêmica travada com Haya de la
Torre: a tarefa política do proletariado não seria jamais a
de apoiar uma “revolução pequeno burguesa”. Além
disso, mesmo a incorporação de parcelas da classe média
no bloco classista revolucionário teria que se dar
necessariamente sob direção e controle da classe
trabalhadora (urbana e rural), e jamais ao custo da
amenização do projeto socialista ou em troca de oferecer
aos setores médios a direção do processo.
O legado de Mariátegui
Mariátegui é reiteradamente considerado como
primeiro grande teórico do marxismo na América Latina,
lembrado pelo seu pensamento original e criativo e pela
sua militância comunista. Ainda assim, o conteúdo de sua
reflexão permaneceu relegado ao esquecimento nas duas
décadas que se seguiram a sua morte. Para a III
Internacional Comunista, integralmente subordinada à
direção stalinista na década de 1930, Mariátegui era uma
lembrança incômoda. A ênfase no protagonismo indígena
e a reivindicação do papel dos trabalhadores rurais como
parte do sujeito histórico da revolução socialista
contrariavam frontalmente as teses da Internacional
Comunista e foram violentamente combatida pelos
Partidos Comunistas latino-americanos. Como indica
Pericás, “a partir de 1929, começou um forte processo de
intervenção da IC no continente, explicitado na famosa
'Carta aberta aos partidos comunistas da América Latina
44
sobre os perigos da direita”. Com a posterior “guinada à
direita” e defesa do etapismo, acentuou-se o incômodo
provocado por Mariátegui, uma vez que explicitava a
ausência de qualquer perspectiva revolucionária das
45
burguesias latino-americanas.
seu caráter de classe, que corresponde aos interesses do grande capital
financeiro.
44
PERICÁS, José Carlos Mariátegui e o Brasil, op. cit.
45
É bastante controverso o grau de tensionamento na relação entre
Mariátegui e a Internacional Comunista. Por um lado, autores como
Hector Alimonda sustentam que o próprio Mariátegui enfrentou
diretamente o processo de stalinização da Internacional Comunista, o
que se expressa nos textos elaborados por Mariátegui e apresentados
pela delegação peruana na Conferência Sindical realizada em
Montevidéu e no Congresso sul-Americano do Comintern, realizado
em Buenos Aires, ambos em 1929. Cf. ALIMONDA, op. cit., p. 6775). De outra parte, Leila Escorsim sustenta que “as tensões
localizáveis nessa relação estiveram longe de configurar uma rota de
colisão entre Mariátegui e a Internacional Comunista durante a vida
de Mariátegui”. ESCORSIM, op. cit., p. 226. Para além desta
polêmica historiográfica, interessa-nos destacar que após a morte de
Mariátegui , o conteúdo de seu pensamento foi omitido, deturpado ou
reinterpretado, de acordo com as oscilações táticas e estratégicas da
Internacional Comunista, seja no Peru e em outros países da América
Latina, seja no Brasil. Nesse sentido, concordamos com Rodrigo
Montoya Rojas, quando corrobora a acusação à Internacional
Comunista e a seus dirigentes peruanos de enterrar o pensamento de
Mariátegui: “Acusaram Mariátegui de populista e deram às palavras
'mariateguismo' e 'amautismo' o significado de desvio pequenoburguês por prestar atenção aos índios, à sua liberdade, e por ver o
Peru para muito além dos antolhos do partido comunista soviético. A
partir dos anos 1960, estes mesmos adversários de Mariátegui se
transformaram em 'mariateguistas' para usar seu nome como guarda
chuva e aval de suas teses, sem levar em consideração nenhuma de
suas teses centrais sobre o Peru e o socialismo”. MONTOYA ROJAS.
Prólogo à edição brasileira. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete
ensaios de interpretação da realidade peruana, op. cit, p. 15.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (43-49) - 49
Em dezembro de 1933, o Partido Comunista do
Peru lançou o Manifesto Bajo la Bandera de Lênin, no
qual ao mesmo tempo elogiava “o abnegado e tenaz
lutador José Carlos, por sua honradez e sinceridade”, e
atacava o “mariateguismo”, que seria “uma confusão de
ideias procedentes das mais diversas fontes”, definindo
duramente sua posição: “Nossa posição diante do
mariateguismo é e tem que ser a de um combate
implacável e irreconciliável, já que ele obstaculiza a
bolchevização organizativa e ideológica de nossas
fileiras. Impede que o proletariado se arme com o
marxismo-leninismo; obstaculiza o crescimento do PCP
e dos seus quadros”.46 Por sua vez, os reformistas
peruanos, integrantes da Aliança Popular Revolucionária
Americana (APRA) se opunham à tese mariateguiana
relativa ao caráter socialista da revolução peruana e
47
latino-americana. Ainda assim, nos anos seguintes a sua
morte, Mariátegui foi reinterpretado e reivindicado pela
Internacional Comunista e até mesmo pelos reformistas
da APRA. Em ambos os casos, no entanto, a
reivindicação da independência organizativa da classe
trabalhadora e o caráter imediatamente socialista da
revolução latino-americana eram omitidos,
secundarizados ou reinterpretados. A rigor, apenas com a
revolução cubana e a retomada de seu legado teórico por
Ernesto Guevara, quase três décadas depois, o núcleo
fundamental do pensamento mariateguiano retornou ao
centro do debate e reflexão do marxismo latinoamericano – em especial sua reflexão quanto ao caráter
socialista da revolução e a reivindicação da necessidade
de incorporação dos trabalhadores rurais como parte
integrante do sujeito revolucionário. E desde então, a
realidade latino-americana inúmeras vezes trouxe a tona
processos e movimentos que evidenciam a atualidade da
reflexão do revolucionário peruano, com destaque para a
cada vez mais clara interdependência entre as malchamadas “burguesias nacionais” e o capital financeiro
internacional,48 e para o destacado reaparecimento das
lutas indígenas em diversos países latino-americanos.
Compreendemos, portanto, que a obra de
Mariátegui apresenta-se contribuição atual e relevante
para a reflexão marxista em torno da revolução latinoamericana, em especial no que se refere a sua proposição
acerca da impossibilidade de que a burguesia dos países
latino-americanos desempenhasse (e desempenhe)
qualquer papel revolucionário, e a conseqüente
impossibilidade da concretização de uma revolução
burguesa nos moldes clássicos (e, portanto, o
anacronismo de sua proposição como plataforma
política). Sua abordagem tem evidentes e incontornáveis
46
Apud ALIMONDA, op. cit., p. 76-77.
De acordo com Corrêa e Belloto, após a ruptura de Mariátegui com a
Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), Haya de la Torre
“acusou Mariátegui de excesso de europeísmo e de ter caído no
tropicalismo, isto é, de ter uma visão europeia da América”.
BELLOTTO, Manuel & CORREA, Anna Maria M (org). Mariátegui.
Gênese de um pensamento Latino-americano. São Paulo: Ática,
1982, p. 20.
48
A respeito da articulação orgânica entre os capitais nacionalmente
sediados e o capital transnacional, uma abordagem relevante e original
encontra-se em FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo:
teoria e história. Rio de Janeiro: ESPJV, 2010.
47
desdobramentos políticos. Além disso, o protagonismo
dos movimentos indígenas – visível hoje em diversos
países latinoamericanos - era antevisto e considerado por
Mariátegui como imprescindível para uma ofensiva
socialista na América Latina, o que salienta e reforça a
atualidade de seu pensamento. Desta forma é justo
concluir enfatizando que a reflexão mariateguiana
permanece extremamente atual e constitui-se como
instrumental de grande relevância para a investigação dos
processos sociais recentes da América Latina.
Artigo recebido em 25/03/2011
Aprovado em 19/06/2011
50 - Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano
Por uma aliança operário-camponesa:
dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano
Bruno Miranda1
I
ntrodução
Concomitante às intensas mobilizações pelos
recursos naturais e à ascensão de um ex-sindicalista
camponês e indígena à presidência da Bolívia, alguns
estudiosos têm publicado no Brasil importante material
acerca da história deste país vizinho. É nesse mesmo
sentido que este trabalho pretende aportar.
O artigo a seguir salienta os momentos nos quais
se vislumbrou uma articulação operário-camponesa na
região altiplânica durante o século XX, através da
recuperação das primeiras organizações de trabalhadores
bolivianos, paralelas à industrialização do país, até a
consolidação das centrais e federações sindicais nas
décadas de 30 e 40, período em que o proletariado
mineiro hegemonizou o movimento operário e o
campesinato começou a mobilizar-se contundentemente
em termos regionais e nacionais. Recuperamos aqui não
só momentos da Revolução Nacional de 1952, mas
também da experiência assembleísta popular do começo
da década de 70.
Historicamente combativo, o operariado mineiro
tratou de concretizar co-governos em determinados
momentos e a autogestão operária em outros. De outro
lado, subordinado no interior da recém-formada Central
Operária Boliviana e posteriormente cooptado pelos
governos ditatoriais, o campesinato independente
somente se consolidaria contra o mandato de Hugo
Bánzer, ao fim do qual a fração katarista-sindical se
afiliaria à COB e selaria, ao menos formalmente, uma
aliança operário-camponesa na luta pelo retorno
democrático. Sugerimos que a “cegueira sindical” de
ambos os lados prevalecentes até então é decorrente,
entre outros elementos, de uma leitura equivocada do
papel que tanto classe quanto etnia cumprem no contexto
histórico boliviano.
Primeiras experiências organizativas e
sexênio 1946-52
Antes e depois da industrialização das minas, a
condição do mineiro boliviano se manteve distinta da
condição do trabalhador urbano. Isto porque o mineiro
que habitava os distritos ou vilas, distantes muitas vezes
de qualquer centro urbano, era um indivíduo (recém)
egresso do campo e não tinha acabado de romper os laços
com o mundo rural.
Rodríguez2 nos revela que a indústria mineira
enfrentou dificuldades durante todo o século XIX por
1
Membro do Laboratório de Sociologia do Trabalho
(LASTRO/UFSC), Graduado em Ciências Sociais (UFSC) e
Mestrando em Estudos Latino-americanos (UNAM/México).
questões relacionadas com o próprio comportamento do
trabalhador. Tinha periodicidade própria, pois a mina era
uma atividade complementar e ainda não possuía o
ascetismo relacionado ao trabalho, tão necessário para a
produção industrial capitalista.
3
O sistema de kajcheo, que fomentava o roubo de
minerais pelos próprios mineiros, foi praticado por
décadas. Tratava-se, durante esse período, de
4
“modalidades pré-industriais de resistência”. Na
metade do século, um novo grupo de capitalistas
modernizadores e menos tolerantes implantou multas e
passou a perseguir os “ladrões” com o intuito de ordenar o
tempo de trabalho e o mercado laboral em moldes
propriamente capitalistas. A maquinaria erodiu a divisão
de trabalho tradicional das minas5 durante a colônia e
ocasionou maior controle sobre o processo produtivo.
O início do século XX marca a hegemonia da
extração do estanho, que alimentará grande parte das
lutas mineiras até a década de 50. A luta contra a
precariedade das condições de trabalho dos mineiros era
acompanhada por demandas de outros setores através de
organizações de ajuda mútua, ligas e federações de
artesãos, ferroviários e gráficos, que giravam ao redor dos
salários, salubridade e construção de pulperías.6
Durante o mês de maio de 1912, grupos de
artesãos descontentes com o liberalismo que permeava
algumas organizações fundaram a Federação Operária
Internacional (FOI), logo convertida na Federação
Operária do Trabalho (FOT) em 1918, organização que
por primeira vez divulgou os postulados marxistas entre
seus membros e fomentou o distanciamento de
7
trabalhadores ácratas mais próximos do anarquismo.
O anarco-sindicalismo boliviano, por sua vez, foi
promovido basicamente pela Federação Operária Local
(FOL), de 1927, que abriu as primeiras portas para a
organização sindical na Bolívia através de um
2
RODRÍGUEZ OSTRIA, Gustavo. El socavón y el sindicato. Ensayos
históricos sobre los trabajadores mineros SIGLOS XIX-XX. La Paz:
ILDIS, 1991. p. 21.
3
Sistema pelo qual os trabalhadores arrendavam as terras junto a seus
proprietários e faziam uso de suas próprias ferramentas de trabalho
dentro da mina. O fruto do trabalho era então dividido com o
proprietário sem a intermediação do salário.
4
RODRÍGUEZ OSTRIA, op. cit., p. 51.
5
A divisão do trabalho nas minas consistia nos transportadores
manuais de minério (apiris/cumiris), selecionadores de minérios
(mortiris/palliris) e refinadores (repasiris).
6
Pequenos armazéns para a venda de alimentos e bebidas alcoólicas.
7
RODRÍGUEZ GARCÍA, Huáscar. La choledad antiestatal: el
anarcosindicalismo en el movimiento obrero boliviano: 1912-1965.
Buenos Aires: Libros de Anarres, 2010. p. 29-31.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (50-55) - 51
movimento operário-artesanal organizado em grêmios.
Embora a doutrina libertária na Bolívia tenha tido eco
entre o período que vai do final da década de 1910 até a
Guerra do Chaco (1932-1935), seu auge se deu durante o
sexênio 1926-1932, concomitante à luta pela jornada de
oito horas, depois da qual seus militantes haviam morrido
no Chaco, incorporado o sindicalismo para-estatal ou
então perseguidos pelo próprio Estado.8 Em todo o caso, a
FOT e a FOL foram as principais centrais operárias da
Bolívia até 1936.
Neste ano é conformada a Confederação Sindical
de Trabalhadores da Bolívia (CSTB), de caráter fabril,
vinculada ao stalinismo do Partido da Esquerda
Revolucionária (PIR) e subordinada à lógica do aparato
estatal, já que os governos desse período (1936-1946),
conhecido com o nome de “socialismo militar”,
perseguiam sistematicamente o objetivo de tutelar o
flamejante movimento operário da década. Aproveitando
a mobilização grevista iniciada na década, muitos grupos
de esquerda que haviam participado da Guerra do Chaco
voltaram à Bolívia e em pouco tempo reorganizaram os
sindicatos em regiões combativas de La Paz e Oruro,
assim como em Potosí, desatando um novo clima laboral
de protestos e greves.
No universo das minas, a Liga Operária do
Trabalho de Amparo e Proteção Mútua de Catavi e as
Federações Mineiras de Llallagua e La Salvadora durante
a década de 20 foram as experiências mais claras do que
seriam os futuros sindicatos conformados
exclusivamente por mineiros. Em 1942, fruto de uma
mobilização do Sindicato de Ofícios Vários de Catavi
pelo aumento de 100% dos salários – devido à alta do
preço internacional do estanho -, o governo de Peñaranda
executou dezenas de mineiros e mulheres, numa luta que
teve o apoio das minas de Llallagua e Siglo XX. O evento,
conhecido como o Massacre de Catavi, transformou-se
num hiato histórico, evidenciando aos mineiros o real
9
funcionamento do poder oligárquico boliviano.
Dois anos mais tarde foi criada a Federação
Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTMB)
durante o Congresso de Huanuni. A fundação da FSTMB
foi fruto do acúmulo histórico da organização e
combatividade das Federações e Ligas Operárias anarcosindicalistas da década de 20 e dos sindicatos mineiros da
década de 30, além de consolidar a organização sindical
por centro de trabalho. A Federação deu finalmente uma
dimensão nacional ao classismo mineiro boliviano.
No fim da década de 40, a Federação de Mineiros
já se encontrava distante da tutela governamental do
MNR,10 em parte pelo trabalho militante do Partido
Operário Revolucionário (POR) pela independência de
classe. Foi assim que em 1946, diante das ameaças de
8
LEHM, Zulema; RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Los artesanos
libertarios y la ética del trabajo. La Paz: Taller de Historia Oral
Andina (THOA), 1988. p. 59-61.
9
Posteriormente, a FSTMB seria mantida sob influência do POR e de Juan
Lechín, enquanto a CSTB seria controlada pelo PIR e em menor grau pelo
Partido Socialista Operário da Bolívia (PSOB), de Tristán Marof.
10
O Movimento Nacionalista Revolucionário foi um partido criado
pela pequena burguesia urbana, primos pobres da oligarquia em crise e
por ex-combatentes da Guerra do Chaco. Próximo, portanto, aos
oficiais nacionalistas.
fechamento das minas, a FSTMB torna pública a Tese de
11
Pulacayo, documento que rompe com a idéia da
existência do feudalismo na Bolívia através de uma
leitura que incorporava este país ao desenvolvimento
desigual e combinado da economia mundial, sob tutela
imperialista.
O documento indica, entre outros elementos, que
a revolução proletária deve ter como método a ação
direta, expressa na ocupação das minas e no controle
12
operário coletivo. Num contexto em que a III
Internacional priorizava as alianças com frações das
burguesias nacionais, além da união nacional contra o
fascismo, o PIR manteve-se distante da agitação mineira
da década, deixando espaço tanto para o POR quanto
para o MNR.13
Quanto à mobilização camponesa, que atuava
paralelamente ao movimento operário - mas sem deixar
de ser influenciado por ele -, sabemos que os primeiros
sindicatos camponeses formaram-se nos vales de
Cochabamba nos anos 30 através de novos líderes
aymara e quéchua em Ucureña, Cliza e Quillacollo.
14
Devido à continuidade do pongueaje, os protestos e
sublevações no campo prosseguiram durante os anos 40
em diversas regiões até 1952.
Se até a década de 40, a classe operária boliviana se
baseava em organizações de matriz artesanal, daí em diante
o sindicalismo daria lugar ao eixo mineiro verticalista. É
importante sintonizar a ascensão sindical operária e
camponesa durante o sexênio 1946-52 com a decadência da
oligarquia do estanho, conhecida como a rosca, que
começa no período de pós-guerra do Chaco e se acentua até
a revolução democrático-burguesa de 1952.
Jornadas revolucionárias na cidade e no campo
Chegamos a 1952. A partir do mês de abril desse
ano, a Bolívia não só veria derrocada uma antiga classe
oligárquica substituída pelo MNR, mas também a criação
de uma nova matriz histórica, entendida como o
“conjunto de relações sociais básicas, funções e
percepções que se conformaram como resultantes da
insurreição operária e popular vitoriosa e que
determinaram as orientações da sociedade das décadas
15
seguintes”.
Os três dias de jornadas mineiro-populares nas
ruas de La Paz e Oruro tiveram como protagonistas
artesãos, desocupados, pequenos comerciantes urbanos e
estudantes, ao redor do movimento constituído por
11
Redigida pelo dirigente porista Guillermo Lora e criticada por
stalinistas por incluir a construção de milícias armadas para o controle
operário das minas, o documento está baseado no Programa de
Transição da IV Internacional escrito por Trotsky em 1938, segundo o
qual as tarefas nacionalistas e democráticas seriam somente um passo
para a consolidação da revolução socialista.
12
LORA, Guillermo. La clase obrera después de 1952. In: ZAVALETA
MERCADO, René (org.). Bolivia, hoy. México, DF: Siglo XXI, 1987.
2ª ed. p. 171, 174.
13
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução Boliviana. São
Paulo: Ed. UNESP, 2007. p. 49.
14
Parte da estrutura da grande fazenda boliviana baseada no trabalho
indígena forçado e gratuito ao fazendeiro latifundiário.
15
LAZARTE, Jorge. Movimiento obrero y procesos políticos en
Bolivia (Historia de la C.O.B. 1952-1987). La Paz: Offset Boliviana
Edobol, 1989. p. 261.
52 - Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano
trabalhadores mineiros e fabris. Passados os
enfrentamentos de rua, as principais reivindicações
convergiam na nacionalização das minas e ferrovias,
reforma agrária e formação de milícias populares
armadas em substituição ao Exército.
São os próprios sindicatos operários e
camponeses e suas milícias armadas quem sustentam
materialmente o MNR no co-governo constituído
posteriormente. Embora tenha tido a capacidade de impor
suas decisões sobre o Poder Executivo, a recém-formada
Central Operária Boliviana (COB)16 teve sua fase de
maior expressão de poder até outubro de 1952, quando se
deu a nacionalização das minas e então se iniciou o
período de acomodação e burocratização da central. O
governo movimentista, com o importante apoio do
lechinismo,17 foi ocupando os postos-chave da COB e de
suas organizações afiliadas regionais ao longo dos anos
seguintes.
Mesmo assim, distante do tradicionalismo
sindical, a COB agrupou em seu seio desde assalariados a
camponeses e funcionários públicos, desde universitários
a pequenos comerciantes e inquilinos, desde artesãos a
contrabandistas e “ocupou desde seu nascimento em
1952 um lugar mais amplo que o de uma central sindical,
agindo como centro político de sindicatos, organizações
operárias e populares”.18
Simultaneamente, no campo, as primeiras
ocupações e assaltos a fazendas ocorreram no Vale de
Cochabamba e se espalharam por todo o país. Crescia o
pânico dos proprietários de terra diante das ocupações e
dos esforços de construção de sindicatos, já que o
Exército continuava dissolvido e as milícias camponesas
ainda detinham suas próprias armas.
Além do sindicalismo cochabambino, também
mostrou combatividade o de Achacachi, nas margens do
Lago Titicaca, dotado de uma imbricação complexa entre
o sindicato tradicional verticalizado e a forte presença da
organização comunitária andina. Mescla da tradição
autogestionária rural nos Andes e do sindicalismo
ocidental, esses sindicatos conformam ainda hoje órgãos
de poder local que regulam todos os aspectos da vida
19
cotidiana.
A participação massiva do campesinato indígena
na etapa revolucionária inicial deu lugar ao clientelismo
político gerado entre o MNR e os dirigentes sindicais
através das terras devolvidas como parte da reforma
agrária e dos alimentos subvencionados. Rivera (1984) e
Ticona (2000) classificam o período de 1952-58 como de
subordinação ativa, conduzida pelo sindicalismo
cochabambino e outro de 1959-68, caracterizado pela
naturalização da nova estrutura sindical para-estatal. Os
vínculos dependentes entre o MNR e os sindicatos
camponeses funcionariam por doze anos, até o golpe de
Estado do general René Barrientos em 1964.20
16
Com a fundação da COB em 1952, ocorre a dissolução das correntes
anarquistas aglutinadas na FOL e stalinistas ao redor da CSTB.
17
Juan Lechín foi uma figura política que transitava não sem certa
ambigüidade entre organizações operárias, alas do MNR e do próprio
governo movimentista. Chegou a ser vice-presidente em 1960.
18
ANDRADE, op. cit., p. 144.
19
HURTADO, Javier. El Katarismo. La Paz: HISBOL, 1986. p. 23
O primeiro encontro entre operários e
camponeses indígenas ocorreu em 1953 motivado pela
Reforma Agrária, mas sob a tutela do MNR. No I
Congresso da COB, realizado somente em 1954, a
participação camponesa foi ínfima. Afirmava-se que o
campesinato não podia cumprir um papel político
autônomo e contundente pelo atraso no campo boliviano
e por sua condição de proprietário de pequenas porções
de terra. Portanto, necessariamente deveria se subordinar
à direção proletária. Dois anos depois, quando os
mineiros rompem com o MNR, os camponeses,
cooptados pelo Estado, aceitam a “proteção” do Pacto
Militar-Camponês.
Emergência operária e camponesa: a
Assembleia Popular e o katarismo
Com o golpe de 1964, quando inicia o ciclo de
governos ditatoriais na Bolívia (1964-1982), o governo
de Barrientos trata de selar a ruptura com o operariado e
ao mesmo tempo subordinar o sindicalismo camponês. A
assinatura do Pacto Militar-Camponês é seguida pelo
desarme das milícias camponesas e transforma os
quartéis regionais e locais em coordenadores dos
próprios sindicatos rurais. O Pacto é utilizado pelos
militares para conseguir uma base de apoio político em
troca de um programa de ajuda infra-estrutural às regiões
rurais, denominado “Ação Cívica”. Tratou-se, antes de
mais nada, de uma ampla base social que tiveram os
militares para servir de arma contra o potencial mineiro.
No entanto, o Pacto foi deteriorando-se com
ações dos próprios governos ditatoriais, permitindo
novos horizontes de autonomia sindical camponesa.
Primeiramente, com a tentativa do governo de Barrientos
de implementar o Projeto de Imposto Único, fomentado
pela USAID em 1968, pelo qual os camponeses indígenas
passariam a pagar pela propriedade da terra,
incorporando-se ao sistema tributário como
contribuintes.
Em resposta, conformou-se o Bloco Camponês
Independente (BIC) no departamento de La Paz,
vinculado à COB e a partidos marxistas, além da União de
Camponeses Pobres (UCAPO), de orientação maoísta.
Posteriormente, o Pacto se debilitou em 1974 sob o
governo de Hugo Bánzer, diante do massacre de
camponeses em Cochabamba, conhecido como o
Massacre do Vale, motivado pela subida dos preços dos
bens manufaturados.
A partir desse período, a COB passaria a
enfrentar um duro período de desarticulação. Seus
dirigentes seriam perseguidos e exilados, assim como os
distritos mineiros passariam a ser declarados zonas
militares. A reação mineira veio na forma de
organizações clandestinas e na decisão de armar-se para
enfrentar a ditadura.
Durante os anos de 1970-71, quando os governos
militares de Alfredo Ovando e Juan José Torres
20
O Estado MNRista passou a exercer controle sobre o campesinato
indígena através da Comissão de Reforma Agrária e do Ministério de
Assuntos Camponeses (MACA), processo culminado com a criação
da Confederação Nacional de Trabalhadores Camponeses da Bolivia
(CNTCB).
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (50-55) - 53
permitiram um espaço maior para as organizações de
esquerda, o XIV Congresso da FSTMB e o IV Congresso
da COB foram marcados pelo abandono da perspectiva
do co-governo, em prol de uma reaproximação à Tese de
Pulacayo e de maior autonomia de classe, numa aberta
luta antiimperialista pelo socialismo. O general Rogelio
Miranda tenta então um novo golpe sobre o governo de
Ovando, mas a greve geral decretada pela COB debilita a
tentativa.
Estabelece-se o Comando Político da COB e do
Povo para debater o apoio ao possível governo do general
Juan José Torres. Diante das incertezas postas sobre a
mesa, o POR, até então influente dentro da COB, redige
as bases de constituição do que ficaria conhecido como
Assembleia Popular (AP), convocada pela central
sindical como máximo organismo de poder da classe
operária e das massas bolivianas. Contrária ao
parlamentarismo burguês e buscando independência do
governo de Torres para evitar os erros táticos de 52, suas
principais medidas em 1970 relacionaram-se ao controle
operário com direito a veto e à conformação de
ministérios e milícias operárias.
Todo o período da AP foi marcado por
mobilizações e ações diretas de sindicalistas e estudantes
nas principais cidades do país, incluindo a ocupação e
apropriação do Palácio Legislativo, onde foi estabelecida
a sede da maior experiência operário-popular desde as
21
jornadas de abril de 1952. Andrade nos indica que a
eleição dos delegados da AP foi marcada pela hegemonia
mineira e fabril, restringindo espaços ao movimento
22
camponês.
Embora relegado a segundo plano, parte do
campesinato aymara vinculou-se ao katarismo, um
movimento fomentado pelos setores médios do campo.
Esse setor então inicia um trabalho de divulgação e
reinterpretação da história colonial em centros culturais
de La Paz, reivindicando a figura do líder anticolonial
Tupak Katari do século XVIII. A partir daí, respaldados
pelo trabalho de base comunitário, ocupariam a sede da
Federação Departamental dos Trabalhadores
Camponeses de La Paz (FDTCLP), elegeriam como novo
Secretário Executivo Jenaro Flores, agregariam o nome
Tupak Katari à entidade (FDTCLP-TK) e passariam a ter
abrangência sindical nacional em contraposição à
oficialista CNTCB, então hegemonizada pelo
barrientismo. O documento conhecido como Manifesto
de Tiwanacu de 1973 é uma prova da busca por
autonomia organizativa. Divulgado clandestinamente,
serviu para a formação de quadros sindicais kataristas
durante a ditadura de Hugo Bánzer.
21
O debate sobre os alcances e limites da AP merece uma análise à
parte. No interior do trotskismo, o POR é acusado de claudicar diante
da direção contraditória que compunha tanto o Comando Político
quanto a AP, representada pelo PC boliviano (que pensava em compor
a esquerda do gabinete de Torres) e pelo Partido Revolucionário de
Esquerda Nacionalista (PRIN), de Juan Lechín, eleito presidente da
Assembleia (que aludia à transformação da AP numa Constituinte). A
análise crítica de Aldo Duran Gil também pode ser muito esclarecedora:
Gil, Aldo D. O caráter das crises políticas durante o governo Torres e a
Assembléia Popular na Bolívia (1970-1971). Apresentado no V
Colóquio Internacional Marx Engels, Campinas, 2007.
22
ANDRADE, op. cit., p. 154-157.
Durante o Pacto, empurradas por uma
propaganda anticomunista realizada pela Igreja e pelo
próprio MNR, milícias camponesas invadiam as minas
enfrentando-se aos mineiros e servindo de carne de
canhão aos projetos dos governos de turno. No auge de
seu anticomunismo, a fração indianista23 no interior do
katarismo chega mesmo a declarar a iminência de uma
guerra contra o proletariado. Denunciavam o “racismo
operário” e o “internacionalismo branco da COB”. Por
outro lado, o sindicalismo mineiro alertava que a postura
indianista não se importava com a luta classista e acabava
se tornando aliada da direita burguesa.
Mesmo com a emergência do katarismo, a
aliança operário-camponesa ganharia novas tonalidades
somente anos mais tarde. Prova deste desencontro é que
no início dos anos 70, enquanto os sindicalistas kataristas
lutavam no interior da oficialista CNTCB contra o Pacto e
24
por melhores preços agrícolas, os mineiros aglutinados
na AP concentravam suas forças na gestão operária da
Corporação Mineira da Bolívia (COMIBOL).
Processo de “abertura democrática”
Mesmo diante da pujança do movimento
operário e camponês aymara e quéchua vivida no país, o
golpe de Bánzer em 1971 representou um duro golpe
contra o sindicalismo em geral e o mineiro em particular.
Houve resistência armada por parte do Comando Político
da COB, mas esta não estava suficientemente organizada
para enfrentar o Exército nas ruas.
Como parte da crescente mobilização e do início
de uma nova época de alianças, a greve de fome de 1977,
que uniu operários e camponeses, conseguiu do governo
ditatorial a anistia irrestrita e o livre funcionamento dos
sindicatos. Hurtado destaca que esta “greve de fome
constituiu para os kataristas o início de um importante
processo de aprendizagem político junto ao proletariado
25
mineiro e outros setores explorados”.
Por sua vez, os kataristas mobilizados
publicaram o II Manifesto de Tiwanacu, documento no
qual se assentam as bases para a abertura democrática do
período 1978-80 e para o protagonismo katarista que
26
precedeu o fim da ditadura de Bánzer. No mesmo
documento, assim como no V Congresso da
Confederação Camponesa Tupak Katari de 1978, a COB
é reconhecida pela primeira vez como a forma mais
representativa da aliança dos trabalhadores do campo, da
cidade e das minas.27 É assim que o conteúdo étnicocultural começa a ser permeado pelo classista e vice-versa.
23
O indianismo, juntamente com o sindicalismo, são as duas principais
vertentes do katarismo. Internamente ao indianismo existem
expressões partidárias sem alcances eleitorais. Há também penetração
do indianismo em associações e movimentos sociais por toda a
Bolívia, especialmente no Altiplano. Para mais informação, consultar:
MIRANDA, Bruno. Comunitarismo, autonomia indígena e
movimento autônomo: as lutas sociais de El Alto e Chiapas. Trabalho
de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Sociologia
Política da UFSC, 2007.
24
No VI Congresso da CNTCB de 1971 realizado em Potosí, os
kataristas conseguem a expulsão dos barrientistas da CNTCB.
25
HURTADO, op. cit. p. 79.
26
Idem, p. 71.
27
Idem, p. 83.
54 - Por uma aliança operário-camponesa: dilemas históricos do sindicalismo andino boliviano
No ano seguinte ocorre o Congresso de Unidade
Camponesa, convocado pela própria COB, do qual
nasceu a Confederação Sindical Única dos Trabalhadores
Camponeses da Bolívia (CSUTCB), organismo que viria
a ser a cabeça de um forte movimento social no início do
presente século. Na Tese Política do VI Congresso da
CNTCB-TK, celebrado em março de 1978, os kataristas
afirmavam:
deixar de ser pobres sim, mas sem perder nossa
identidade cultural, sem envergonhar-nos do que
somos. Não acreditamos na luta de raças. Se o racismo
foi o primeiro passo de nossa ideologia, devemos
agora superá-lo porque somos explorados, não porque
somos aymaras, quéchuas, cambas, etc., mas
fundamentalmente porque há poucos ricos que nos
exploram a aymaras e não aymaras, a quéchuas e não
quéchuas, a cambas e não cambas. Temos que mudar
esta sociedade de exploração para que nossos valores
aymaras, quéchuas, cambas, etc., possam exercitar-se
e desenvolver-se livremente.28
Depois da unidade camponesa, o período
posterior (1980-86) foi caracterizado pela crescente
unidade operário-camponesa em protestos contra a
ditadura militar e contra ajustes econômicos estruturais.
Em outras palavras, quando a dimensão étnica começou a
prevalecer em suas demandas e prática política, os
camponeses aproximaram-se da COB, ainda que
questionando o varguardismo operário.
Logo após sua integração à COB, os membros da
CSUTCB enfrentaram dificuldades para que fosse
reconhecido o fato de que a base social camponesa
necessitava maior representação. Enquanto o setor
camponês-indígena dentro da COB sustentava que era
necessária uma mudança na estrutura da central sindical,
mais adequada ao contexto atual, o setor mineiro e fabril
afirmava que a diminuição da classe operária fruto da
reestruturação produtiva seria conjuntural.
Quando em 1979 foi decretada outra greve geral
contra o golpe do coronel Natusch Busch, que não
reconheceu as eleições anteriores, o campesinato aderiu
massivamente, utilizando-se de seus próprios métodos:
bloqueio de caminhos, cerco de povoados e ocupação de
29
territórios não urbanos, selando a aliança operáriocamponesa e de uma vez por todas o cancelamento do
Pacto Militar-Camponês. No entanto, optaram pela saída
democrática que, nesse contexto, concentrava-se na
30
União Democrático-Popular. Posteriormente, a COB
convocaria o Comitê Antifascista como contraparte de
um golpe que provocou 200 mortos, no enfrentamento
popular mais sangrento desde 1952. O processo
terminaria com a negação da COB diante da proposta de
um governo triangular com as Forças Armadas.
28
Idem, p. 98.
ZAVALETA MERCADO, René. Forma clase y forma multitud en el
proletariado minero en Bolivia. In: ZAVALETA MERCADO, René
(org.). Bolivia, hoy. México, DF: Siglo XXI, 1987. 2ª ed. p. 237.
30
Enfraquecido diante da massiva propaganda do oficialismo no
campo, o katarismo viu-se obrigado a aliar-se com a UDP de Siles
Suazo. A UDP, frente democrático-burguesa, foi composta pelo PC
boliviano, partidos social-democratas e populistas.
A participação da CSUTCB na paralisação
contra o golpe de Busch constituiu a primeira
mobilização de dimensão nacional exitosamente
convocada pela confederação camponesa. Os reflexos do
poder de convocatória da CSUTCB continuariam em
1980 e 81 em resistência aos golpes seguintes e pelo fim
da ditadura, até que no último trimestre de 1982, o
Parlamento boliviano em La Paz seria reaberto para que
assumisse Hernán Siles Suazo.
Considerações finais
Embora tenha assediado diretamente o poder
estatal, o movimento operário-popular boliviano não
chegou a consolidar uma ruptura com o capital nas
jornadas de abril de 1952 nem durante a AP em 1971. No
entanto, o fato de “que os operários não souberam explorar
seu poder não subtrai em absoluto importância ao fato
irreversível que atuassem como classe de poder”.31
Nesses momentos, embora a consigna de um
“governo operário-camponês” fosse brandida pelos
quatro cantos, ora o sectarismo operário menosprezava o
camponês aymara ou quéchua, ora o próprio camponês
era aliado dos governos ditatoriais e apoiava o
anticomunismo. Quando a aliança por fim ia se
consolidando como horizonte emancipatório, a luta já
não era revolucionária, mas democrática, além do que o
katarismo não possuía um projeto político autônomo e de
classe nesse momento.
Entre outros motivos, a barreira existente entre o
trabalhador mineiro/fabril e o rural é fruto de uma leitura
segundo a qual o camponês-indígena tem sido visto
simplesmente como pequeno-burguês, justamente por
possuir seu pedaço de terra comunitária. Esta leitura tem
sido fomentada em grande parte pela absorção das teses
da III e IV Internacional propagadas por partidos
operários bolivianos. Juan de la Cruz Villca, dirigente
camponês e Segundo Secretário da COB em 1992, adverte:
na prática boliviana, se compararmos um camponês
com um operário assalariado, qual está melhor
economicamente? Um operário pode ter seu rádio, sua
TV, serve-se um chá, veste-se bem, etc. e um
camponês do Norte de Potosí está em farrapos e
apenas se autoabastece.32
Às considerações de Villca poderíamos agregar
outro elemento que nos ajuda a desmitificar o indígena e a
entender a precariedade contemporânea no campo
boliviano: o êxodo rural. Os fluxos migratórios campocidade na Bolívia têm sido crescentes depois da segunda
metade do século passado, em parte devido ao
esgotamento da terra e aos grandes períodos de seca, mas
também devido ao sistema de parcelamento das terras que
foi adotado na Reforma Agrária de 1953, que com o
tempo permitiu o avanço do minifúndio rural no
Altiplano.
29
31
ZAVALETA MERCADO, René. 50 años de historia. La Paz;
Cochabamba: Los Amigos del Libro, 1998. p. 79.
32
TICONA ALEJO, Esteban. Organización y liderazgo aymara. La
experiencia indígena en la política boliviana 1979-1996. La Paz:
AGRUCO; Universidad de la Cordillera, 2000. p. 180.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (50-55) - 55
Consequentemente, a condição do camponês
aymara que permanece no campo já não só obedece à
33
geografia de ayllus de épocas anteriores, mas está
parcialmente submetida às condições do mercado. Em se
tratando da região cochabambina, zona quéchua, a
mercantilização da terra foi anterior e ainda mais
contundente.
Em todo caso, para além de uma leitura marxista
mecânica que vincula automaticamente cada classe
social ao seu lugar no processo produtivo, é igualmente
necessário levar em conta a prática histórica de
determinadas coletividades e seu modo de ser.34 No caso
em questão, trata-se de agrupações altiplânicas
em resistência histórica contra o colonialismo,
externo e interno.
Por outro lado, é urgente reconhecer o retrocesso
político representado pelo indianismo radical surgido no
final dos anos 60, que nega a lógica totalizante do sistema
em prol de uma “luta de raças” e serve de insumo aos
governos liberais-burgueses. O capital tolera lutas de
caráter exclusivamente étnico porque é capaz de absorvêlas e finalmente utilizá-las a seu favor. Por isso, as lutas de
conteúdo étnico e anticolonial devem vincular-se com as
lutas antiimperialistas e socialistas porque sem a
destruição das bases sistêmicas materiais, a visão de
mundo andina se reproduz subsumida e carcomida pela
lógica do capital.
A aliança operário-camponesa é um pilar da
estratégia revolucionária em contextos históricos
dependentes como o boliviano, no qual o socialismo
obrigatoriamente precisa levar em conta a sociabilidade
andina, queiramos ou não. É necessário então converter o
elemento étnico em elemento revolucionário.
Artigo recebido em 18/03/2011
Aprovado em 07/05/2011
33
O ayllu pode ser entendido como a organização-matriz dos povos
andinos, de famílias ampliadas assentadas em terras comunitárias que
em alguns casos podiam não ser contíguas.
34
ZAVALETA MERCADO, René. 50 años de historia, op. cit. p. 11.
56 - Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana”
Para além de Hugo Chávez:
as classes sociais na “Revolução Bolivariana”
1
Flávio da Silva Mendes2
A
o descrever e analisar as características da
crise política e econômica que antecedeu a ascensão ao
poder de Luís Bonaparte na França, em 1851,3 Marx
inaugurava uma longa tradição de reflexões da esquerda
sobre processos contra-revolucionários. Entre as
principais novidades desta obra destaca-se o cuidadoso
estudo sobre a dinâmica da luta de classes, método que
levou seu autor a um resultado bastante diverso daqueles
encontrados em textos que enfatizavam as virtudes e
defeitos de Luís Bonaparte e subvalorizavam ou mesmo
ignoravam os conflitos e as relações de força –
consideradas tanto entre as classes quanto entre suas
frações internas – que levaram ao golpe de Estado.4
À primeira vista, esta referência ao 18 Brumário
pode causar estranhamento. Afinal, qual é a relação entre
aquela obra, escrita há mais de 150 anos, e a atual
conjuntura política venezuelana, tomada como objeto de
estudo neste artigo? Creio que tal referência se torna
irresistível a partir do momento em que nos aproximamos
do debate sobre o governo de Hugo Chávez na Venezuela.
Um observador que realiza este movimento rapidamente
se impressiona com a centralidade que o atual presidente
tem nas diversas esferas de discussão sobre a política no
país: seu nome é presença certa nas conversas cotidianas,
nos jornais e nos trabalhos acadêmicos. Mais além: na
imprensa internacional as aparições da Venezuela quase
sempre ocorrem como se aquele fosse o país de Chávez,
ou seja, como se a história nacional se submetesse às
vontades de seu governante.
Esta primeira impressão já justifica, em parte, a
citação da obra de Marx: alguém que pretende analisar a
política venezuelana neste início de século deve se
perguntar, assim como fez o autor do 18 Brumário, sob
quais circunstâncias os homens fazem sua história, ou
seja, até que ponto as lideranças políticas são capazes de
guiar os rumos de uma sociedade à revelia de sua história
passada e das lutas do presente. O problema, portanto, é
semelhante, mas não idêntico: as diferenças se revelam
quando nos debruçamos sobre a história venezuelana,
1
Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa de mestrado
realizada junto ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da
UNICAMP, entre 2008 e 2010, com financiamento do CNPq. O
resultado completo encontra-se em MENDES, Flávio. Hugo Chávez
em seu labirinto: o Movimento Bolivariano e a política na Venezuela.
São Paulo: Alameda Editorial (no prelo).
2
Doutorando em Sociologia (IFCH/UNICAMP).
3
MARX, Karl. “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”. In: O 18
Brumário e Cartas a Kugelmann. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
4
Segundo Marx, as análises do golpe de Estado realizadas por Victor
Hugo e Proudhon, em especial, apresentavam tais características. Ver
MARX, Karl, op. cit., pp. 13-14.
suas tradições e símbolos nacionais. O mesmo ocorre
quando olhamos mais de perto os grandes atores do
conflito político mais recente e notamos que a
polarização entre chavistas e anti-chavistas é, embora
verdadeira, apenas uma parte daquela realidade. Neste
artigo pretendo realizar brevemente estes dois
movimentos: em primeiro lugar, resgatar algumas
características da recente história venezuelana que nos
ajudam a compreender a atual conjuntura do país. Em
seguida, tentarei descrever algumas das frações que
atuam no interior dos polos que compõem governo e
oposição.
História: petróleo, Estado e sociedade
Entre diversos fatores que determinam a
especificidade da história venezuelana, um se sobressai:
o petróleo. Ao longo do século XX, a consolidação do
Estado nacional, as mudanças nas relações sociais e a
diversificação das atividades econômicas sempre
estiveram em alguma medida relacionadas ao destino do
chamado “ouro negro”. Portanto, tomá-lo como
referência deve nos ajudar a compreender algumas
características da Venezuela atual.
Na década de 1920, quando os primeiros poços
de petróleo foram explorados no país, uma série de
mudanças econômicas, políticas e sociais tiveram início.
Não é exagero afirmar, por exemplo, que o processo de
ampliação e centralização do poder em torno do Estado
nacional só foi possível, àquela altura, graças aos lucros
obtidos pela nascente indústria petroleira. A Venezuela
era então governada pelo general Juan Vicente Gómez,
mas nem sua ditadura foi capaz de conter a agitação
política ligada ao surgimento do Partido Comunista de
Venezuela (PCV) e do social-democrata Acción
Democratica, além de centrais sindicais e entidades
patronais. Este fenômeno estava colado à crescente
urbanização e à diversificação das atividades econômicas
do país, concentradas, sobretudo, nos setores de serviços
e financeiro, também vinculados à renda petroleira.
A partir da morte de Gómez, em 1935, o processo
5
de “modernização” da sociedade venezuelana sempre
teve o petróleo – e mais precisamente o seu valor de
mercado – como uma referência fundamental. Cada
governo, democrático ou não, teve que estar atento às
5
Como em outros países latino-americanos, o paradigma da
modernização fez parte do processo de transformações pelas quais
passou a nação venezuelana desde o final do século XIX. Essa
centralidade das noções de “atrasado” e “moderno” foi muito bem
explorada em CORONIL, Fernando. The Magical State. Nature,
money and modernity in Venezuela. Chicago: University of Chicago
Press, 1997.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (56-61) - 57
variações da renda petroleira para decidir se expandia ou
reduzia programas sociais, se aumentava ou cortava
verbas para suas instituições e, por fim, para definir sua
estratégia cambial. Logo, se o nível da tensão política na
Venezuela pudesse ser medido num gráfico, acredito que
sua linha coincidiria em vários pontos com a trajetória do
preço da commodity no mercado internacional. Entre
esses altos e baixos, dois períodos são determinantes.
Nos anos 1970, com a crise mundial de escassez
do petróleo e a grande elevação de seu preço, a sociedade
venezuelana parecia ter chegado ao apogeu.6 Os
chamados petrodólares invadiram o país e com eles
vieram a ampliação do poder de consumo de parcelas da
população, por um lado, e o crescimento do peso do
Estado na sociedade, por outro. O consumo estava
ancorado na importação de inúmeras mercadorias, das
básicas às de luxo, o que contribuiu para enfraquecer a já
débil indústria nacional. O Estado, por sua vez, estava nas
mãos de políticos identificados com a social-democracia
– sobretudo vinculados ao partido Acción Democractica
– os quais executavam seu programa de bem-estar social
sem a necessidade de impor à população uma carga
tributária elevada. Para o antropólogo Fernando Coronil,
o Estado venezuelano assumia diante da sociedade
características mágicas.7
Esta ilusão se desfez nos anos 1980, quando a
crise da dívida e a queda das divisas petroleiras tornaram
insustentável o arranjo político-econômico elaborado
pela social-democracia. Naquela década, os cortes de
gastos e a redução do poder de consumo da sociedade
seguiram uma linha ascendente, enquanto a desigualdade
social, pouco alterada ao longo dos anos anteriores,
revelava-se profunda e ameaçadora. O auge da crise
chegou no final de fevereiro de 1989, quando o anúncio
de um conjunto de medidas recessivas por parte do então
presidente, Carlos Andrés Pérez, causou protestos
populares duramente reprimidos pelo Estado. Além de
deixar centenas de vítimas, este episódio, conhecido
como Caracazo, revelou o avançado grau de deterioração
da confiança popular nas capacidades mágicas do Estado.
Sem esse breve relato histórico, a rápida
ascensão de Chávez na política venezuelana ao longo dos
anos 1990 poderia parecer um acaso. No entanto, no
caminho percorrido para passar de líder de um golpe
militar fracassado, em 1992, a presidente eleito, em 1998,
Chávez logrou articular um poderoso discurso crítico
àquela que batizou como “IV República” e, assim, entrar
em sintonia com os anseios populares. Seu partido, o
8
MVR, reivindicava a refundação do Estado através da
6
Em meio à alta da renda petroleira ocorreu, em 1976, a nacionalização
da exploração do petróleo. Na década seguinte, quando os lucros dessa
indústria decaíram, o Estado venezuelano recorreu a um artigo da lei
de nacionalização que previa a possibilidade de se associar a indústrias
estrangeiras como uma forma de captar capital e tentar reanimar a
produção. Esse processo, conhecido como Apertura Petrolera, está
descrito em RIBEIRO, Vicente, Petróleo e processo bolivariano: uma
análise da disputa pelo controle do petróleo na Venezuela entre 2001 e
2003. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas – UFRGS, 2009.
7
CORONIL, Fernando, op. cit.
8
A sigla é uma abreviação de Movimiento V República. O partido
surgiu em 1997 como o braço eleitoral do Movimiento Bolivariano
realização de uma constituinte que colocasse a soberania
9
nas mãos do povo. No plano econômico, a organização
criticava os sucessivos pacotes neoliberais e defendia que
a “causa social” deveria ser prioridade. Para financiar
esse projeto, a Agenda Alternativa Bolivariana10
propunha grandes mudanças nas regras de exploração do
petróleo, então reguladas pela PDVSA, uma empresa
estatal na prática controlada por representantes das
grandes multinacionais do ramo.
Ao tocar na questão do controle sobre o petróleo,
o MVR de certa forma restabelecia a normalidade do
debate político venezuelano. Esquecida durante o bemestar econômico, quando pouca gente se interessava em
buscar as origens do milagre, essa pauta voltou com a
crise e ganhou espaço até se tornar o centro da luta
política no país. Ali, o embate entre ideias liberais e
estatizantes passava necessariamente pelo petróleo. Não
por acaso, o principal adversário de Chávez nas eleições
de 1998, Henrique Salas Römer, estava mais alinhado
com as teses neoliberais que emergiram na crítica à
social-democracia. Na batalha das urnas, porém,
prevaleceria o que o sociólogo Edgardo Lander chamou
de “cultura de direitos”:
Quando chega a crise, se produz uma ruptura deste
consenso [social-democrata] e os meios de
comunicação, empresários e parte importante dos
intelectuais começam a ver o Estado como o
problema. O consenso da sociedade se rompeu neste
momento. Criou-se uma espécie de consenso liberal
anti-política, anti-Estado, que acusava tudo de
populismo, e os setores populares ficaram sem lugar,
porque os sindicatos eram populistas, tudo era
populista. Mas a expectativa dos setores populares era
de que o Estado tinha responsabilidade. Isso criou
Acción Democratica: na Venezuela havia uma cultura
de direitos.11
A vitória de Chávez aparece agora como a
combinação de diversos fatores, entre os quais se
destacam – além de seu carisma – a capacidade de criticar
os resultados da social-democracia no país sem, com isso,
ignorar a expectativa popular diante das obrigações do
Estado, erro cometido pelos defensores de um programa
de conteúdo neoliberal. A “Revolução Bolivariana”
iniciada em 1999 é, portanto, herdeira de muitos dos
valores construídos a partir da complicada relação entre
Revolucionário 200 (MBR-200), organização de origem militar na
qual Chávez atuava clandestinamente desde os anos 1980. O número
200 é uma referência ao bicentenário do nascimento de Simón Bolívar.
9
Ao investigar a origem dessa proposta encontrei um trecho do
Contrato Social, de Rousseau, citado num dos documentos do MBR200. Ver CHÁVEZ, Hugo. Pueblo, Sufragio y Democracia. Caracas:
Ediciones MBR-200, 1993, p. 6. Essa e outras características do
MBR-200 foram analisadas por mim em MENDES, Flávio. “As raízes
do Movimento Bolivariano na Venezuela”. In: IV Simpósio Lutas
Sociais na América Latina (Anais de Congresso), Londrina, 2010.
Disponível em
<http:// w w w. u e l . b r / g r u p o pesquisa/gepal/anais_ivsimp/gt4/1_FlavioMendes.pdf>.
Acessado em 28 de março de 2011.
10
CHÁVEZ, Hugo et alli. Agenda Alternativa Bolivariana.
Caracas: MinCI. Disponível em:
<http://www.minci.gob.ve/doc/folleto_agendabolivarina.pdf>.
Acessado em: 28 de março de 2011.
11
Entrevista realizada em Caracas, em 06/03/2009.
58 - Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana”
Estado, petróleo e sociedade na Venezuela. Esse passado,
como demonstrado a partir da obra de Marx, estabelece
limites às escolhas dos atores políticos e deixa marcas nas
relações das classes sociais em conflito.
Além das aparências: as frações na luta política
A análise das relações de classe na Venezuela
atual é tarefa complicada, mas creio que também neste
ponto a leitura de O 18 Brumário pode dar pistas valiosas
para a interpretação daquele cenário. A França descrita
por Marx atravessava nos anos anteriores a 1851 uma
crise aguda que atingia a totalidade das classes sociais e,
neste processo, as relações entre elas e seus
representantes políticos na Assembleia Nacional se viu
tomada por conflitos intensos. Tal conjuntura abria a
possibilidade para que Marx realizasse uma distinção
fundamental: a ação política dos representantes das
classes não pode ser reduzida automaticamente ao lugar
que estas ocupam na produção. Há, em geral, uma visão
compartilhada que contribui para que as ações dos
representantes reflitam os interesses das classes, mas essa
convergência se torna sem dúvida mais difícil em
12
momentos de crise.
A sociedade venezuelana mergulhou a partir dos
anos 1980 num cenário de profunda crise econômica,
política e social que, respeitadas as evidentes diferenças
históricas, é passível de comparação com aquela que
Marx encontrou na França. O declínio da socialdemocracia no país afetou negativamente o conjunto das
classes sociais: os trabalhadores, em especial, e os setores
médios da sociedade enfrentaram um retrocesso material
imposto pela estagnação econômica, enquanto a falência
do frágil Estado de bem-estar impulsionava a descrença
nos partidos políticos tradicionais que se alternavam no
poder desde o final dos anos 1950. Essa ruptura revelou
também a crise de hegemonia da classe dirigente do país,
a qual perdia, em meio à falência de seus representantes,
as condições políticas que lhe permitiram acumular as
riquezas petroleiras durante a segunda metade do século
XX. Neste cenário, as relações entre as classes sociais se
obscureceram: carentes de seus representantes
tradicionais, suas frações vão se realinhar durante os anos
1990 de acordo com suas posições diante das propostas
de Chávez, uma liderança carismática que emergiu num
cenário de intensos conflitos sociais e marcado pela
desorganização dos setores em disputa. Não por acaso, a
partir de sua eleição a luta política aparecerá como o
embate entre dois grupos homogêneos e distintos: os
chavistas e os antichavistas. Creio que o grande desafio
para a análise da luta de classes na Venezuela atual é
encontrar, no interior desses blocos, os interesses que
justificam o alinhamento das diferentes frações.
Nesse conflituoso e complexo cenário de disputa
política na Venezuela, ao menos uma relação é fácil de
identificar: o bloco conhecido como chavista conta com o
apoio da maioria dos trabalhadores mais pauperizados do
país, tanto do campo quanto da cidade. Este setor popular
12
Esse diagnóstico perpassa todo o texto de O 18 Brumário e é mais
explícito na análise das forças presentes na Assembleia Nacional
francesa, realizada na Parte III. Ver MARX, Karl, op. cit., págs. 46-64.
não é produto da “Revolução Bolivariana” e corresponde
a uma parcela majoritária da sociedade que esteve
historicamente afastada dos centros de decisão política e
da divisão da riqueza nacional. A partir dos anos 1980,
com a crise que afetou a sociedade venezuelana, esta
parcela dos trabalhadores voltou às ruas na forma de
protestos populares, entre os quais o Caracazo é o evento
mais destacado.13 Os principais motivos que levaram à
aproximação entre esse movimento e a alternativa
bolivariana parecem baseados na combinação entre uma
proposta antineoliberal na economia – que, mais tarde,
resultaria em amplos programas sociais – e a defesa
radical da inclusão política contra os partidos
tradicionais, ingredientes articulados nos discursos do
carismático Chávez.
A aproximação entre os trabalhadores mais
pauperizados do país e o governo bolivariano obrigou as
organizações de esquerda – afetadas por uma profunda
crise14 – a reavaliarem suas táticas. As lideranças dos
inúmeros grupos que compõem este setor fragmentado
são, em sua maioria, quadros oriundos da classe média –
funcionários públicos, estudantes universitários e
lideranças sindicais – também assolados pela crise
econômica do final dos anos 1980. Com o objetivo
comum de criar laços com as bases populares, estes
grupos foram gradativamente se aproximando do MBR200 ao longo dos anos 1990 embora sempre
apresentassem críticas de variadas intensidades a certas
características daquela organização. Como partes
minoritárias do bloco no poder, muitas dessas forças
vieram a romper com o governo. A maioria, porém, se
mantém ligada a Chávez. Nessa opção pesam tanto o
cenário de isolamento que enxergam no caso de uma
ruptura com o atual presidente – e, assim, com os setores
populares que o apoiam – quanto a ambiguidade do
discurso oficial que, ao dialogar com personagens e
autores caros à tradição da esquerda em meio aos
constantes apelos a Bolívar, gera expectativas de
radicalização de sua estratégia e valoriza um vocabulário
propício ao estreitamento dos laços entre a esquerda
tradicional e a população. Além do discurso, o
alinhamento à “Revolução Bolivariana” é justificado
pela percepção de que há avanços políticos e sociais
consideráveis em meio às contradições do governo
de Chávez.
Mas ao lado do bloco chavista também são
encontrados grupos que não são anteriores à “Revolução
Bolivariana”, mas se produziram em seu interior, a partir
13
O crescimento e a mudança do conteúdo dos protestos populares
entre os anos 1980 e 90 foram analisados em LÓPEZ MAYA,
Margarita. “Novedades y continuidades de la protesta popular en
Venezuela”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales,
Janeiro-Abril de 2006, vol. 12, nº 1. Caracas: UCV.
14
Nos anos 1960 uma parte expressiva da esquerda venezuelana se
dedicou à luta armada contra a social-democracia, sobretudo após a
suspensão do Partido Comunista de Venezuela (PCV). A derrota
sofrida afetou duramente essa organização e dela se originaram diversas
dissidências, entre as quais se destacam o Movimento al Socialismo
(MAS), de inspiração euro-comunista, e La Causa Radical, de perfil
leninista. Essas organizações foram as mais expressivas da esquerda
venezuelana nas décadas de 1970 e 80, mas eram ainda marginais no
cenário político nacional quando a crise chegou.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (56-61) - 59
de interesses econômicos e políticos aos quais só
puderam ter acesso através do Estado. Para a oposição,
que os cita mais abertamente, eles conformam a chamada
“boliburguesia”, composta em sua maioria por exmilitares e empresários favorecidos por relações com o
governo. Seu surgimento não é surpreendente, afinal a
burguesia venezuelana tem historicamente um perfil
parasitário em relação ao Estado e à renda petroleira que
este administra. As organizações de esquerda que atuam
ao lado de Chávez também criticam esse setor, mas de
modo mais velado e menos consensual. Ele é geralmente
vinculado a uma burocracia reformista que ameaça a
continuidade da Revolução, embora o teor do julgamento
varie conforme as estratégias de cada grupo e seu grau de
comprometimento em relação ao presidente.
O fato de Chávez fazer parte da simbologia
popular exige que as organizações de esquerda,
preocupadas em ampliar suas bases de apoio, tomem
cuidado em relação às críticas que dirigem ao presidente.
Do ponto de vista da nova burocracia, por outro lado, a
necessidade de articular um discurso recheado pelo
vocabulário da esquerda também a leva a
constrangimentos e concessões. Por último, as condições
para o avanço da experiência popular autônoma estão
dadas pelo afastamento das forças mais conservadoras da
política nacional, garantido pelo governo bolivariano.
Essa complexa rede de dependências mútuas parece dar
origem a um equilíbrio instável que sustenta o bloco
chavista.
A fragmentação também é característica do bloco
anti-chavista. Pela composição dos atos públicos contra o
atual presidente, percebe-se que a base de sustentação
deste grupo está na maior parte da classe média e numa
parcela minoritária das camadas populares, que
compartilham entre si um sentimento que batizam de
cívico-democrático, oposto aos traços autoritários que
15
enxergam em Chávez. Este sentimento remete à
experiência da social-democracia no país, anterior à crise
dos anos 1980, rememorada pelos líderes da oposição e
pela imprensa. Não deixa de ser, portanto, outra vertente
herdeira daquilo que Lander chamou de “cultura de
direitos”. Além do autoritarismo, este setor enfatiza a
ineficiência da administração pública e critica uma
ideologia oficialista considerada ultrapassada, que se
apoia no exemplo da experiência cubana, no vocabulário
da esquerda tradicional e no militarismo. O estímulo ao
conflito contra a oligarquia e o imperialismo, táticas
utilizadas cotidianamente por Chávez, é interpretado
como uma forma de ofuscar problemas no seio da
“Revolução Bolivariana”.
Esses sentimentos parecem anteriores à eleição
de Chávez, embora tenham se tornado mais intensos após
15
Neste ponto, a contribuição de Marx retirada de O 18 Brumário
parece ser mais uma vez relevante: ao invés de um lugar na produção,
o que se destaca entre esses setores são os “valores democráticos”
herdados da social-democracia. Diante da atual crise de hegemonia da
burguesia venezuelana, é natural que esta posição intermediária típica
das classes médias ocupe o lugar de destaque na oposição à Chávez e
ecoe nos discursos de seus representantes políticos e da imprensa.
Sobre a posição vacilante e conciliatória dos setores médios nos
períodos de crise, ver análise da pequena-burguesia em MARX, Karl,
op. cit., págs. 54-56.
os primeiros anos de governo. Acredito que a maioria dos
argumentos encontrados no discurso da oposição já era
perceptível ao longo da campanha eleitoral de 1998,
quando ficou bem desenhada a polarização entre a agenda
nacionalista do MBR-200 e a proposta liberal
reformadora, concentrada na candidatura de Salas
Römer. Os setores que hoje apoiam os líderes da oposição
reafirmam a identificação desse bloco como uma força
moderna, em sintonia com os valores democráticos,
capazes do ponto de vista administrativo e defensores de
estratégias econômicas competitivas. Por trás dessas
características parece haver uma continuidade da aversão
à política tradicional, que ecoa na pretensão de não se
identificar com a esquerda ou com a direita nem valorizar
estruturas de representatividade vinculadas ao Estado,
como os partidos políticos. Esses rótulos e modelos são
considerados ultrapassados.
A existência de valores fundamentais
compartilhados por sua base de apoio não torna essa
oposição homogênea, pelo menos no que diz respeito às
suas direções. Oriundos de diversos partidos tradicionais
afetados pela crise, esses quadros ainda competem com
forças políticas emergentes que souberam ocupar o
espaço deixado pelo declínio das principais agremiações
da Venezuela. Esse descompasso gerou conflitos entre
lideranças pautadas pelo ideal nacionaldesenvolvimentista, que reinou durante um longo
período da democracia venezuelana, e personagens,
como Carlos Andrés Pérez, que se alinharam à agenda de
reformas econômicas dos anos 1980 e 90. Com o tempo, a
primeira proposta se converteu num programa de
reformas em parceria com o mercado, em que o aparelho
estatal desempenharia um papel menor. Os defensores
dessa agenda buscaram se diferenciar dos setores
golpistas, que se concentravam no chamado Bloque
Democrático, e que tinham o ex-presidente Pérez como
um dos principais porta-vozes. De acordo com Edgardo
Lander, após as sucessivas derrotas sofridas por essa
estratégia o setor mais moderado se impôs:
Eu penso que durante os anos 2002, 2003, 2005, a
oposição venezuelana estava dirigida, ou mesmo
chantageada, por setores mais golpistas, mais de
direita radical, que achavam que podiam derrubar
Chávez na semana seguinte, estavam
permanentemente nessa busca. Bastava dar um
empurrão e tudo caía. Nisso tiveram muito apoio
político e econômico do governo de Bush. [...] Isso
começou a mudar com a reeleição presidencial e o
referendo da reforma constitucional, quando os
setores que acreditavam que era possível avançar
politicamente pela via eleitoral se impuseram e
efetivamente conquistaram avanços importantes, e,
pela primeira vez nesse período, derrotaram o
governo no referendo da reforma constitucional. Isso
significa uma recomposição muito profunda. A
oposição na Venezuela é muito heterogênea.16
Para Lander, a heterogeneidade pesa mais para a
oposição, que não possui uma liderança unânime como a
desempenhada por Chávez no bloco do governo. Além de
16
Entrevista realizada em Caracas, em 06/03/2009.
60 - Para além de Hugo Chávez: as classes sociais na “Revolução Bolivariana”
diferenças ideológicas, essas divisões traduzem a
existência de interesses antagônicos de frações ligadas a
atividades econômicas diversas, algumas mais
dependentes do controle do Estado – como aquelas
vinculadas à produção petroleira – e outras relativamente
independentes, mas que veem com bons olhos a
possibilidade de um governo que estimule o
desenvolvimento do capital nacional sem ameaças ao
regime de propriedade. Os meios de comunicação,
controlados majoritariamente por esses grupos
econômicos, têm uma função importante nas críticas
a Chávez.
Marginalizadas, mas também deste lado, estão
algumas das organizações de esquerda que – como seus
pares no bloco chavista – apresentam hoje pouca
expressão. Para Teodoro Petkoff, ex-membro do partido
Movimiento al Socialismo e um personagem destacado
da oposição a Chávez, a situação desses pequenos
partidos se explica pela força do carisma do presidente:
Chávez ocupou, em grande medida, o espaço da
esquerda. Ampliou seus limites. Portanto, os grupos
de esquerda mais antigos, por enquanto, digamos,
perderam seu âmbito social natural, porque este está
sob a influência de Chávez [...] Mas esse cenário está
mudando. Os regimes dessa natureza – autoritários,
autocráticos, militaristas – costumam suscitar
oposição de setores que vão da extrema direita,
passando pelo centro e chegando à extrema
esquerda.17
Embora não traduza todas as divisões que
existem na sociedade venezuelana, esse esboço nos ajuda
a compreender melhor as estratégias adotadas tanto pelo
governo quanto pela oposição. Após os intensos conflitos
que duraram entre 1999 e 2004, os dois lados mudaram de
postura. Em meio ao crescimento da renda petroleira,
Chávez passou a privilegiar os programas sociais que já
eram desenvolvidos antes do referendo revogatório de
2004, quando garantiu nas urnas sua permanência no
poder. Essas medidas contribuíram para aumentar sua
base de apoio, fato que estimulou o sentimento de que um
período menos agitado estava por vir. Com o boicote
realizado pelos principais partidos de oposição às
18
eleições legislativas de 2005, o poder e a confiança só
aumentaram para o lado dos chavistas. No ano seguinte,
Chávez ainda foi reeleito com uma votação expressiva
(62,84%), embora a oposição tenha dado sinais de
recuperação e unidade em torno da candidatura de
Manuel Rosales, impulsionada por partidos emergentes.
Mas o cenário como um todo parecia propício ao avanço
da “Revolução Bolivariana”.
Revolução ou restauração?
A vitória de Chávez nas eleições presidenciais de
1998 representou uma mudança significativa na política
venezuelana. Com seu programa nacionalista, o
movimento bolivariano se impôs diante das propostas
17
Entrevista realizada em Caracas, em 26/03/2009.
Os partidos de oposição alegaram “falta de garantias” e se retiraram
da disputa. O resultado, porém, foi referendado por observadores
internacionais.
18
liberais dos partidos tradicionais do país, cujo modelo de
administração da crise econômica conduzia a sociedade
em direção ao caos. O caráter destrutivo da direita
afastada do poder foi sentido nos primeiros anos do
governo bolivariano, sobretudo na paralisação da
indústria petroleira nos anos 2002 e 2003, que ficou
conhecida como Paro Petrolero, e na tentativa fracassada
de golpe realizada também em 2002. Essas ações de
boicote e violência foram voltadas contra um governo
que não apresentava até então grandes sinais de
radicalização política e econômica.
Hoje, mais de uma década após ter início, a
“Revolução Bolivariana” apresenta estratégias muito
diferentes das originais. A começar pela economia: a
proposta inicial do primeiro governo Chávez – contida
tanto na Agenda Alternativa Bolivariana quanto no Plan
Económico y Social 2001-2007 – pode ser considerada
próxima ao neoestruturalismo econômico, que defendia a
atuação do Estado em setores básicos da economia em
parceria com a iniciativa privada nacional.19 Uma
primeira tentativa de aprofundar alguns pontos dessa
estratégia, no sentido da ampliação da intervenção
estatal, estava contida na “segunda Lei Habilitante”, de
2001, contra a qual a oposição desenvolvera uma
campanha “anticomunista”. A partir de 2005, inspirado
pela convicção de que era hora de avançar, o governo
buscou retomar e aprofundar aquelas propostas. Numa
entrevista concedida naquele ano, Chávez afirmou que o
período de confrontação o levou a repensar os rumos do
governo:
Golpe de 2002, greve petroleira, sabotagem
petroleira, contragolpe, discussões e leituras. Cheguei
à conclusão – assumo a responsabilidade porque não
discuti com ninguém antes de tornar público no
Fórum Social Mundial de Porto Alegre – que o único
caminho para sair da pobreza é o socialismo. Em uma
época cheguei a pensar na terceira via. Andava com
problemas para interpretar o mundo. Estava confuso,
fazia leituras equivocadas, tinha uns assessores que
me confundiam ainda mais. Cheguei a propor um
fórum na Venezuela sobre a terceira via de Tony Blair.
Falei e escrevi muito sobre um “capitalismo humano”.
Hoje estou convencido de que é impossível.20
A ideia de superar o capitalismo e construir o
“Socialismo do Século XXI” passou a orientar a nova
estratégia do governo, contida em documentos como o
Proyecto Nacional Simón Bolívar: Primer Plan
Socialista 2007-2013 (PPS)21 e a proposta de reforma
constitucional levada a referendo em 2007. Neles aparece
uma ruptura em relação ao neoestruturalismo e o avanço
em direção a medidas centralizadoras e estatizantes,
inspiradas no exemplo da experiência cubana. As
19
CAMEJO, Yrayma. “Estado y mercado en el proyecto nacionalpopular bolivariano”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias
Sociales, vol.8, nº 3, p. 27.
20
Depoimento retirado de CABIESES, Manuel, “¿Hacia donde va
usted, presidente Chávez?”. Disponível em <
http://www.voltairenet.org/article132654.html>. Acessado em
28/03/2011.
21
Disponível em: <www.mpd.gob.ve/Nuevo-plan/plan.html>.
Acessado em 28/03/2011.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (56-61) - 61
mudanças simbólicas também são importantes: embora
se mantenha a menção a Simón Bolívar e outras
referências da cultura nacional, ganham espaço
personagens vinculados à esquerda latino-americana,
como Fidel Castro, Che Guevara, Salvador Allende, e
autores e militantes da tradição marxista, como Lênin,
Trotski, Rosa Luxemburgo e Gramsci. O adjetivo
“socialista” é outro elemento que se torna comum nessa
“nova narrativa ideológica de emancipação”, agora
compreendida como uma “democracia revolucionária”, e
não mais como uma “revolução democrática”.22
Para analistas da oposição e alguns apoiadores de
Chávez, essa nova narrativa coincide com o crescimento
do desequilíbrio entres os poderes no Estado
venezuelano, reforçado tanto pela maioria governista
conquistada no legislativo quanto pelo apelo constante do
executivo a dispositivos que lhe permitem legislar. Para
23
Biardeau, esse período se define pela emergência do
“momento do líder”, com a consolidação de Chávez
como um elemento indissociável do processo
revolucionário, agora passível de ser chamado de
“revolução chavista”. O consenso quanto ao papel de
destaque assumido por Chávez se estende a amplos
setores, da direita à esquerda, da oposição a seus
apoiadores.
Tanto o aparecimento quanto a atual centralidade
de Chávez na política venezuelana são, a meu ver,
24
desdobramentos da crise orgânica que atinge aquela
sociedade desde os anos 1980. Foi diante da fragilidade
política e econômica em que se encontravam a burguesia
e os trabalhadores venezuelanos no final do século XX
que seu movimento bolivariano ganhou espaço e chegou
ao poder, àquela época ainda ocupado pelos
representantes das classes dominantes em descenso. A
partir de então, o governo e o conjunto do aparelho estatal
refletem as contradições encontradas na sociedade,
contidas nas mudanças de direção que o governo assumiu
diante das sucessivas crises que enfrentou.
Dado o caráter econômico destacado que ainda
desempenha como controlador e distribuidor da renda
petroleira o Estado permanece como um espaço
importante de disputa, como os intensos conflitos da
primeira década da “Revolução Bolivariana”
comprovam. Neste período, à sombra do embate entre
chavistas e anti-chavistas, as classes sociais buscaram se
reorganizar e as relações de forças entre elas se
modificaram, mas ainda não o suficiente para definir se o
país seguirá o caminho da revolução ou da restauração. A
definição desse futuro passa sem dúvida pelo Estado e por
Chávez, fatores que, portanto, não devem ser
negligenciados na análise da complexa política
22
BIARDEAU, Javier. “Del árbol de las tres raíces al 'socialismo
bolivariano del siglo XXI' ¿una nueva narrativa ideológica de
emancipación?”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias
Sociales, abr. 2009, vol.15, nº.1, pp. 57-113.
23
Op. cit., p. 79.
24
Inspiro-me na noção apresentada por Gramsci. Para o autor italiano,
uma profunda crise econômica, política e social inibe a aparecimento
de soluções orgânicas, ou seja, originadas entre as forças políticas
tradicionais de uma sociedade, e abre espaço para a emergência de um
líder carismático. Ver do autor Cadernos do Cárcere. Volume 3. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pág. 60 e ss.
venezuelana. Mas a história ensina que a luta de classes
não cabe nos governos: os extrapola e, no limite, torna
explícitas e insustentáveis suas contradições. A
“Revolução Bolivariana” convive com a obrigação
cotidiana de se renovar e avançar para além das fronteiras
do Estado, condição para que sobreviva e que possa
ostentar o nome de Revolução.
Artigo recebido em 28/03/2011
Aprovado em 14/05/2011
62 - Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais: A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais
Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais:
A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais
Hélio de Souza Rodrigues Júnior
1
I
ntrodução: Problematizando o Direito e
Desmistificando o Ativismo Jurídico.
Há certo ufanismo entorno do direito brasileiro,
capitaneado por uma corrente, dentre outras, chamada de
ativismo jurídico. Prega essa corrente – e trata-se mesmo
de uma concepção mística – que o direito é capaz de
mudar a estrutura da sociedade brasileira, tornando-a
mais democrática e indo ao encontro, e até para além, do
que foi o pactuado na Constituição Federal de 1988; basta
se distanciar do formalismo jurídico e aproximar-se do
2
social. A partir dessa crença, são citados alguns
exemplos postos na lei ou na prática, produzidos pelos
aplicadores do direito, como comprovação empírica
3
desse ativismo jurídico.
Igualmente, vários cientistas sociais e atores
políticos ligados aos múltiplos movimentos que
reivindicam ser de esquerda, no que há de essencial,
andam de mãos dadas com a concepção de que o direito
materializa não só o consenso possível, mas a priori, já dá
a diretriz da busca desse consenso, pois tal foi formulado
no Texto Constitucional brasileiro de 1988. O conflito
entre classes teria como perímetro a arena de efetivação,
ou não, dos direitos postos na Constituição, ou até mesmo
a qualidade e a quantidade de efetivação desses direitos,
inclusive, até aonde se poderia avançar.
Vê-se, como por exemplo, que a defesa da
reforma agrária, da preservação do meio ambiente e do
controle político do Estado contam com a impressionante
primazia da Constituição de 1988 diante dos argumentos
da função social da propriedade, da responsabilidade
social e do processo eleitoral, respectivamente. Constatase que parece ser secundária a necessidade de que o modo
de produção deva ser dos produtores associados. E como
aqui se entende por modo de produção a maneira como
uma sociedade se organiza para produzir a vida social,4
aquela corrente tem como pressuposto lógico que o
direito só poderia estar para além do modo de produção
da vida social, de tal maneira separado dos conflitos
sociais, que ele dirige e constrói o consenso.
Em síntese, essas correntes indicam que o direito
deixou de ser produzido no bojo da dominação e da
exploração do modo de produção capitalista no qual ele
está assentado, pois ao se viver em uma sociedade liberal
democrática, ele materializa as bases para o consenso e dá
concretude a esse consenso. A corrente dos reformadores
está triunfante pela crença de que o direito tem uma
substância, uma concretude, um cimento firme chamado
consenso, no qual seria possível estruturar toda a
sociedade brasileira.
Todavia, não se questiona a abstração do que seja
essa chamada sociedade brasileira – como se houvesse de
fato uma comunhão de interesses entre as classes sociais
– ou sequer a formulação da Constituição de 1988 como
um mito de criação de onde provém o contrato social
iluminista-liberal brasileiro; idealiza-se que 1987 e 1988
foram os anos em que somente as forças progressistas
venceram a batalha na constituinte, descontextualizando,
dentre outras, a transição lenta e gradual plasmada na
Nova República, no plano cruzado prolongado até após
as eleições, bem como que a subscrição das então
emendas populares por expressivo número de eleitores e
encaminhadas para a constituinte foi frustrante, pois de
fato tais emendas não foram aproveitadas como
5
desejavam os seus subscritores.
Em uma linguagem mais próxima dos juristas:
Em julho de 1985, Goffredo Telles Jr, em nome do
plenário Pós-Participação Popular na Constituinte, de
São Paulo, divulga a 'Carta dos Brasileiros ao
Presidente da República e ao Congresso Nacional', na
qual propõe a criação de mecanismos de participação
'em todos os municípios do país' e denuncia, por
'espúria', a convocação de uma Constituinte composta
de órgão já constituído – ou seja, Câmara e Senado
(...). Em São Paulo, Fábio Konder Comparato propõe
a convocação, pela Justiça Eleitoral, de conselhos
consultivos municipais que produziram propostas a
partir das reivindicações da população. Tal proposta
(...) não foi aceita pelos poderes constituídos.6
1
Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB (Centro
Universitário de Brasília); especialista em Filosofia Política pela UFC
(Universidade Federal do Ceará) e especialista em Direito
Constitucional pela UNIFOR (Universidade de Fortaleza). Assessor
Técnico do Senado Federal. Professor de Direito da Universidade
Católica de Brasília (UCB), Instituto Brasiliense de Ensino Superior
(IESB) e Centro Universitário do Distrito Federal (UDF).
2
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo /
direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. SARLET, Ingo
Wolfgang. Reforma constitucional e proibição de retrocesso. In: ___
(Org.).Direitos fundamentais sociais: estudos de direito
constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2003, cap. 4, p. 301-394
3
C f . h ttp ://w w w. co n ju r. co m. b r /2 0 0 6 - mar15/juizes_papel_ativo_interpretacao_lei. Acessado em 10 de abril
de 2009.
4
MILIBAND, Ralph Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979.
5
GEORGAKILAS, Ritinha Alzira S. A constituição e sua supremacia.
In.: Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia e
supremacia. São Paulo: Editora Atlas, 1989, p. 97
6
MASCARO. Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito
brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 165.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (62-67) - 63
Compreender a extensão e os limites do direito,
especialmente do direito constitucional, a partir da fonte
marxista significa examinar criticamente a relação entre
o direito e as marcas atuais do modo de produção –
enquanto reflexo modelado na Constituição Federal
brasileira –, caracterizando-se como revolucionário ou
contra-revolucionário. Trata-se de um corte
metodológico que corresponderia a uma microesfera da
totalidade das relações sociais, que possibilita cotejar
esse direito no bojo de uma das facetas da representação
do modo de produção onde ele está assentado. E, nenhum
jurista, cientista social ou cientista político discordaria de
um estudo crítico do direito pensado como produção da
vida social.
Mas compreender a extensão e os limites do
direito é levar às últimas conseqüências o fato de ele ser
parte da sociedade. E ao proceder tal investida, saber se é
tática ou estratégia de enfrentamento revolucionário
proclamar um direito que não visa ruptura ou
questionamento ao modo de produção capitalista; afinal,
neste trabalho, o direito não é aplicação doutrinária, mas
pensado em sua execução prática, em sua realização a
partir do pensamento revolucionário marxista; daí que
dialeticamente, ele é encarado como lugar de reprodução
da organização social e também como espaço de luta.
Porém, essa luta só faz sentido se os trabalhadores
souberem pelo que estão lutando, isto é, compreenderem
os limites e a extensão das conquistas sociais
consubstanciadas no direito, formulando, executando e
controlando esse direito.
Desenvolvimento: Limites e Extensão do
Direito
Localização e Compreensão do Direito
Três trechos, de três diferentes obras de Marx e
Engels, indicam claramente como a concepção
revolucionária da sociedade e da história estavam longe
de desconhecer a importância das esferas
superestruturais – aqui com ênfase no direito –, como se
fosse possível desprezar a autonomia e a eficácia relativa
desse último, ainda que eles considerem a economia
como a base de todas as demais esferas. No livro A
Ideologia Alemã:
Enquanto no livro A Miséria da Filosofia diz:
As relações sociais acham-se intimamente unidas
às forças produtivas. Ao adquirir novas forças
produtivas, os homens mudam seu modo de produção,
e ao mudar o modo de produção, a maneira de ganhar
sua vida, mudam todas suas relações sociais (...). Os
mesmos homens que estabeleceram as relações
sociais de acordo com sua produtividade material,
produzem também os princípios, as idéias, as
categorias, de acordo com suas relações sociais.
Assim, essas idéias, essas categorias são tão pouco
eternas como as relações que expressam. São
produtos históricos e transitórios.8
No Prefácio à Contribuição à Crítica da
Economia Política diz assim:
Na produção social de sua existência, os homens
entram em relações determinadas, necessárias,
independentes de sua vontade; essas relações de
produção correspondem a um grau determinado de
desenvolvimento das suas forças produtivas
materiais. O conjunto dessas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base
real, sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica
e política e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de produção da
vida material condiciona o processo de vida social,
política e intelectual em geral. Não é a consciência dos
homens o que determina a realidade; pelo contrário, a
realidade social é que determina sua consciência.
Durante o curso do seu desenvolvimento, as forças
produtoras da sociedade entram em contradição com
as relações de produção existentes (...). Então se abre
uma era de revolução social. A mudança que se
produziu na base econômica desordena mais ou
menos lenta ou rapidamente toda a colossal
superestrutura.9
Esta concepção da história consiste, pois, em expor o
processo real de produção, partindo para isso da
produção material da vida imediata, e em conceber a
forma de intercâmbio correspondente a este modo de
produção e engendrada por ele, quer dizer, a sociedade
civil nas suas diferentes fases, como o fundamento de
toda a história, apresentando-a em sua ação enquanto
Estado e explicando com base nela todos os diversos
produtos teóricos e formas da consciência, a religião,
a filosofia, a moral etc., assim como estudando a partir
dessas premissas seu processo de nascimento, o que,
naturalmente, permitirá expor as coisas na sua
totalidade (e também, por isso mesmo, a ação
recíproca entre seus diversos aspectos).7
Portanto, não se vê a economia como o motor
único da vida social. Ao contrário, as manifestações da
vida social devem ser compreendidas em conjunto como
uma totalidade dentro da qual as forças produtivas e as
relações econômicas desempenham papel importante. As
esferas jurídicas, políticas e ideológicas gozam de certa
autonomia que lhes permite, por sua vez, influir sobre a
base econômica, mas esta mesma autonomia, sua origem,
forma, grau de poder e capacidade de influência, deve ser
compreendida em função das suas relações de produção e,
em todo caso, fica dentro dos limites marcados por estas.
No caso, a superestrutura do direito é a que
mostra mais cruamente em que medida é reflexo das
relações econômicas, sobretudo se pensarmos em
campos como o direito civil, mercantil e eleitoral. À título
meramente exemplificativo, pode-se citar as alterações
nas seguintes legislações: lei do inquilinato (Lei 12.112,
de 2009, alterou a Lei 8.245, de 1991) que assegurou
maiores prerrogativas ao locador (proprietário); lei do
processo de execução de dívidas (Lei 11.232, de 2005 e
7
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São
Paulo:Boitempo Editorail, 2007, p. 40.
8
MARX, Karl. A miséria da filosofia. São Paulo: Editora Escala. 2008,
p. 161 (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal).
9
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1996, p.37. (Coleção Os Pensadores).
64 - Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais: A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais
11.382, de 2006), extinguindo esse processo como forma
de garantir maior rapidez ao processo judicial de
recuperação de dívida ou do patrimônio; lei de
recuperação das empresas (Lei 11.101, de 2005), que
facilitou a recuperação do crédito por meio da
transferência do exercício da atividade econômica para
os credores em detrimento dos créditos trabalhistas, que
não são mais protegidos no topo da lista a quem se deve
pagar; decisão judicial que reduziu o número de
vereadores (Resolução 21.704, de 2004 do TSE), mas
deixou intocável o orçamento das câmaras municipais;
decisão judicial da verticalização das eleições
(Resolução 20.993 do TSE e Emenda Constitucional 52),
que atribui ainda maiores poderes a cúpula partidária e
reduz a democracia interna e local dos partidos.
Acrescente-se a reforma tributária brasileira:
redução da alíquota do Imposto de Renda das Pessoas
Jurídicas – IRPJ, das instituições financeiras, de 25%
para 15%; redução do adicional do IRPJ de 12% e 18%
para 10%; redução da Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido – CSLL de 30% para 8%, posteriormente elevada
para 9%; redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL,
ao permitir a dedução dos juros sobre o capital próprio (a
inovação criada possibilita às empresas distribuírem
juros aos seus sócios e acionistas, reduzindo com isso os
tributos a serem pagos); isenção do imposto de renda da
remessa de lucros e dividendos ao exterior, dentre outros
(Lei 9.430, de 1996, Lei 10.684, de 2004). Além disso, a
liberalização financeira internacional abriu novas
oportunidades para a fuga de capitais e para a evasão
fiscal por parte das elites, acentuando a desigualdade.
Em todos os casos acima exemplificados, o ponto
central da argumentação favorável as alterações era a
necessidade de criar mecanismos para o livre trânsito do
mercado e suas relações de troca, falava-se até na redução
dos spreads e juros bancários, sendo que, no que toca a
legislação eleitoral, a prática era mascarar a inexistência
de democracia e transmitir a falsa concepção de que o
cidadão elege, livremente, seus representantes.
Seria possível citar inúmeras outras legislações e
fazer uma análise mais acurada, inclusive, no que toca as
legislações de programas que supostamente ampliaram a
seguridade social e garantem a redução da pobreza, tal
10
como se fez em outra oportunidade. Mas não é esse o
objeto de análise desta parte do texto, senão o de localizar
e compreender o direito a partir do pensamento
revolucionário marxista: a vida social não é reduzida a
uma das partes, mas compreendida como totalidade
dialética que não é simples soma das esferas ou níveis
diferentes entre os quais se dê uma interação
indiscriminada, mas uma totalidade em que a primazia do
econômico não nega o reconhecimento da beligerância
das demais esferas, nem se perde como conseqüência do
mesmo.
10
RODRIGUES JR., Hélio de Souza. O combate à pobreza: hipertrofia
da assistência social, precarização dos direitos sociais e desmanche
das atividades estatais de bem-estar social. In: COGGIOLA, Osvaldo
(Org.). A estatística da miséria e a miséria da estatística. Rio de
Janeiro: Achiamé, 2009, p.57-103; RODRIGUES JR, Hélio de Souza.
O direito social à assistência social é o todo único dos direitos sociais:
um exame crítico das normas constitucionais. Revista Contra a
Corrente, ano I, n,1, 2009, p. 51.
A Totalidade Social e a Construção do Direito.
A base em que repousa o conjunto social é, ela
própria, social. A localização das forças produtivas na
base do edifício social não significa que a história social
seja uma prolongação da história natural, ou que as leis da
sociedade humana não sejam mais que epifenômenos das
leis naturais. Para Marx a natureza é, fundamentalmente,
a natureza social ou humana, a natureza como objeto da
ação do homem e da sociedade. Como nos diz Miliband:
“quando Marx e Engels falam de 'lei naturais' que se
impõem aos homens (...) fazem-no, simplesmente, para
assinalar que as leis sociais se impõem aos homens à
margem de sua consciência e com ou contra sua vontade,
11
e só neste sentido são 'leis naturais'.”
Vê-se, portanto, que considerar o direito como
dotado de elementos que dirigem e potencializam o
consenso é considerá-lo unilateralmente como oriundo
de uma lei natural que projeta uma idéia de essência, a
margem da história social, descontextualizado e
idealizado. Por sua vez, ao argumento de que existe o
reconhecimento de que esse direito que dirige e
potencializa o consenso, tal como a Constituição Federal
de 1988, foi fruto da história social brasileira, daí que
aquela primeira objeção não passa de indisfarçável
sofisma, ao contrário, ratifica a concepção de um direito
natural positivado – com toda a ambigüidade dos termos e
contradição em termo –, pois congela a suposta história
social do consenso ao ano de 1988, daí ter se falado
alhures em mito de criação na figura do Texto
constitucional. Apenas para ilustrar: desprezam-se as
mudanças constitucionais advindas da corrente
neoliberal em voga no Brasil desde a década de 90 do
século passado.
Todavia, é preciso recusar tanto a acusação de
que a concepção marxista do direito nega as idéias ou o
pensamento dos seres humanos, como a errônea
identificação de uma cadeia causal funcionando entre a
superestrutura jurídica e a sua base econômica. Em
primeiro lugar, é necessário considerar que as relações
sociais, evidentemente que aqui incluídas as jurídicas, tal
como as relações políticas, têm uma clara realidade
social: materializam-se em instituições como a família
determinada, o Estado posto ou a magistratura em
funcionamento. Em segundo lugar, o direito é uma
parcela da vida social dos seres humanos, isto é, ele é
parte da maneira como a sociedade se organiza para
produzir a vida social (modo de produção) em e através
de todos os níveis, econômico, social, político etc.
No caso, o que realmente determina o direito não é
uma lei natural que projeta a essência do homem –
atualmente tão em voga o chamado princípio da dignidade
da pessoa humana –, nem tampouco as relações
econômicas por si só, mas o conjunto das formas da vida
social ou, dito em termos negativos, tudo aquilo que não
tem uma existência meramente pensada.12 Por conseguinte,
o direito não é constituído apenas pelas relações
econômicas, mas pela totalidade das relações sociais, e as
11
MILIBAND, Ralph Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979, p. 45.
12
Idem, p. 50.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (62-67) - 65
idéias do e sobre o direito, seus princípios e regras que
supostamente possibilitariam o consenso, enquanto parte
da vida social é também, por sua vez, parte da realidade.
Parafraseando Marx e Engels do livro A Sagrada
Família: o direito com a sua busca de consenso, por meio
de princípios (essência) ou regras (existência), não são
um demiurgo da história social em substituição ao
Espírito ou à Idéia hegelianos, tão ao gosto dos juristas.
Não existem princípios jurídicos (dignidade da pessoa
humana, democracia, republicanismo) para os quais a
sociedade seria mero instrumento. O direito, com seus
princípios e regras, não faz nada, não possui uma riqueza
imensa, não trava combates. É, antes, os seres humanos,
os homens e mulheres reais e vivos que fazem tudo isso e
travam combates; estejamos seguros de que não é o
direito que se serve da sociedade como de um meio para
realizar – como se fosse um personagem particular – seus
próprios fins; não é mais do que a atividade dos seres
13
humanos que persegue seus objetivos.
Logo, aviso aos navegantes juristas, cientistas
sociais e atores políticos com suas místicas correntes
filosóficas: não existe um direito que atue
independentemente da sociedade, não há astúcia da
razão, à maneira de Hegel, nem uma natureza que sabe o
que quer, à maneira de Kant, nem uma mão invisível, à
maneira de Smith, ou sequer um diálogo que busca o
consenso, à maneira de Habermas, que tenham seus
próprios fins e se sirvam para isso dos homens e mulheres
como de bonecos – bonecos que teriam o consolo de se
saberem bonecos.
Portanto, como a sociedade não cria o direito e nem
formula um Texto Constitucional inspirada por nenhum
princípio atemporal, eterno, ou obedecendo a uma meta
chamada consenso por fora da história social ou presa a um
momento estanque, mais sim ao perseguir seus fins
individuais e coletivos, com maior ou menor consciência
do significado histórico dos seus atos, pode-se novamente
parafrasear Marx e Engels, agora no livro O 18 de Brumário
de Luís Bonaparte: o direito não é feito arbitrariamente
como quem escreve ou desenha sobre uma folha de papel,
sequer o estilo de constituição de Ferdinand Lassalle, mas
partindo das possibilidades e necessidades da sociedade e
do seu tempo, porque, ele não é outra coisa que direito
social e histórico, quer dizer, direito produzido pela
sociedade histórica ou pela história social, uma vez que “os
homens fazem sua própria história, mas não a fazem
arbitrariamente, sob circunstâncias escolhidas por eles
mesmos, mas sob circunstâncias diretamente dadas e
herdadas do passado”.14
Assim, a corrente do ativismo jurídico e do seu
consenso esculpido na Constituição, que se auto-intitula
revolucionária,15 se olvida de que dentro da concepção
revolucionária marxista não há espaço para a dicotomia
13
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2003.
14
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O 18 de brumário de Luís
Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 33.
15
SANTOS, Boaventura Sousa. Brasil: a contra-revolução jurídica.
Disponível em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna
_id=4493. Acesso em 27. dez. 2009.
tradicional direito e sociedade, tal como Estado e
sociedade civil já contido na Crítica da Filosofia do
Estado de Hegel. Aliás, pode-se dizer que quando se
reduz o direito à busca do consenso, a rigor, os valores, as
normas e as ações de combate ao modo de produção
capitalista não estão, em última análise, sendo
questionados, havendo uma descontextualização e
despolitização da matéria, indagando-se como é possível
se falar em direito revolucionário.
Ora, não existe tensão, enfrentamento ou conflito
entre as complexas relações sociais que engendram o
modo de produção capitalista e as propostas de combate a
esse modo de produção, que são naturalizadas no âmbito
social, cujo foco para enfrentar essa matéria aponta que se
trata de um problema técnico-jurídico e pela técnica
jurídica esse problema será resolvido. A corrente do
ativismo jurídico aparta o direito do conjunto de
fenômenos sociais, que com ele está presente e forma a
história social. E, acrescente-se, legitíma-o perante a
sociedade como um remédio que cura doenças sociais
chamadas de pobreza, desigualdade, corrupção,
degradação ambiental etc.
Ou seja, significa que as propostas de efetivar os
direitos constitucionais aparecem como um contraponto
ao modo de produção capitalista, surgindo dois aspectos:
primeiro, as propostas são de caráter eminentemente
técnico, seja de técnica econômica, jurídica,
administrativa, especialmente hermenêutica etc.,
inclusive, todas aplicadas, ou não, ao mesmo tempo; e,
segundo, essas propostas configuram um contraponto
que é concebido como naturalmente posto, pois
racionalmente buscado e gerido para a manutenção do
consenso consubstanciado na Constituição. Não se
indaga, minimamente, que tipo de sociedade se quer
manter coesa, com quais estruturas, culturas, normas,
valores e divisão social do trabalho.
A noção de contraponto como algo que aprimora
o consenso ou corrigi-lhe as falhas produz a idéia de que a
estrutura, a cultura, a norma e o valor presente em dada
sociedade são naturais – foi o que acima se chamou de
naturalização. Assim, as relações sociais estariam sempre
se aprimorando. E o direito, enquanto mediador das
relações entre os indivíduos para a ordem social, se
enquadra perfeitamente nesse tipo de concepção, daí que
o ativismo jurídico é descontextualizado e despolitizado,
isto é, ele é isolado da sociedade e idealizado,
apresentando-se como um mecanismo que supostamente
busca a efetivação dos direitos constitucionais e se diz
neutro e eqüidistante das disputas e dos conflitos travados
nas relações concretas da sociedade.
Em síntese, o ativismo jurídico não passa de um
conjunto de receitas, ou melhor, de instrumentos ou
mecanismos que, ao serem aplicados corretamente,
cumprirão o mandamento constitucional de erradicação
da pobreza.16 Não se está contra a efetivação dos direitos
constitucionais, apenas essa corrente não é
revolucionária, sendo imperioso compreender seus
limites e extensão para saber utilizá-la conjunturalmente
e definir seu papel na estratégica revolucionária.
16
BRASIL, 1988, Constituição federal art. 3º, III.
66 - Ativismo Jurídico e Efetividade dos Direitos Constitucionais: A contra-revolução e a marcha dos reformadores sociais
(reduzindo novamente o alcance do que estava previsto
na Constituição por causa da escassez de recursos
públicos), são desdobramentos de conflitos sociais que
não foram reconciliados pela Constituição, muito embora
sejam expressão do suposto consenso firmado.
Outro exemplo, mais concreto para o caso da
Constituição brasileira, é ofertado por Florestan
Fernandes:
Conclusão: A Marcha Contra-Revolucionária
do Ativismo Jurídico e a Mediação do Direito pela
Classe Trabalhadora
Somente buscando ir além da aparência e da
narrativa politicamente correta da corrente do ativismo
jurídico é que se vê o seu caráter reformador. Mas apesar
disso, como dito anteriormente, tal corrente tem atraído
majoritária parcela de juristas e outros tantos cientistas
sociais e atores políticos, contribuindo para a formulação
de discursos e práticas que, na defesa de um direito menos
formal e mais próximo do social, busca efetivar o
consenso fixado na Constituição brasileira. Ou seja,
apenas quando se submete à crítica a correlação de
nuances entre o direito e o modo de produção capitalista é
que o ativismo revolucionário é visto como instrumental
para aquela forma de mudança que não perturba a ordem
do modo de produção capitalista, assegurando à
acumulação capitalista todas as condições seguras de
reprodução.
Portanto, não se trata de maniqueísmo: ativismo
é revolucionário ou contra-revolucionário, mas de retirar
o véu ideológico do ativismo jurídico que despolitiza o
debate voluntarista do direito, e que é repetido à exaustão:
que os direitos da Constituição de 1988 constituem nova
dimensão da organização política e de cidadania
brasileira, e que sem alteração no modo de agir e de
pensar, via o compromisso social plasmado na
Constituição entre as forças políticas, esses direitos não
serão efetivos. Por outras palavras, esse debate
ideológico apresenta o direito como se fosse fruto do
acordo social, sendo que sem aquele necessário consenso
entre as forças políticas não existe viabilidade e
segurança para a Constituição cidadã, tal como é
conhecida a Constituição Federal brasileira.
Ocorre que o mito do consenso modelado no
Texto Constitucional – enquanto organização políticosocial das modernas sociedades e que elabora condições
históricas para um novo ponto de partida e prepara o
17
caminho da reforma –, simplesmente despreza a história
social e omite a existência de poder consolidado,
fortemente arraigado nas estruturas e infra-estruturas
sociais. No dizer de Florestan Fernandes “A conciliação
é, em si e por si mesma, contra-reforma, o expediente
para banir e excluir a reforma social da história viva”.18
Ora, os direitos humanos e sociais positivados
nos textos constitucionais não representam a linear
caracterização de serem solução de apaziguamento dos
conflitos sociais – como defendido pelos juristas –, mas
eles possibilitam o deslocamento, a ampliação ou a
redução desses conflitos e que não existe antagonismo de
classe, de modo que, como por exemplo, algumas vezes a
regra de que determinado direito deve ser regulamentado
(em um futuro distante e nunca alcançado), ou os
conflitos que advêm quando da elaboração dessa
regulamentação (reduzindo o alcance do que estava
estipulado na Constituição por causa da arte do que foi
possível obter) e até da implantação da regulamentação
O exemplo dado pelo autor é a “própria
formação da chamada nova república, constituída por
barões que sustentaram a ditadura militar brasileira”.20
Não obstante, equivocada seria a afirmativa de
que se sustenta que politizar o direito é desconsiderar os
impactos dos direitos constitucionais para a igualdade
social, notadamente os direitos humanos ou os direitos
sociais. Ledo engano pensar que este texto foca somente
uma descrição perversa que pressupõe que o embate das
forças políticas que alcança um consenso – que no caso
estaria representado pelo Texto constitucional – é
instrumento de exploração e de dominação; pois, muito
embora isso esteja sustentado, o texto complexificou um
pouco mais a questão e trabalhou por um processo
dialético, agregando uma riqueza de fatores e
considerando as várias facetas que compõe o fato, de
maneira que sem desmerecer, ou defender a extinção dos
direitos humanos e direitos sociais previstos na
Constituição, ele não oculta e obscurece essa dimensão
de exploração e de dominação do direito, em especial do
direito no modo de produção capitalista (brasileiro).
Dito de outro jeito: sustenta-se que o direito é
elemento da exploração e da dominação do modo de
produção capitalista e o ativismo jurídico desconsidera
tal relevante marca, sendo conveniente e oportuno ao
modo de produção capitalista. A questão está que, sob
aquela perspectiva de tática ou de estratégia, o direito
propugnado como revolucionário só faz sentido se a sua
extensão ou os seus limites forem conhecidos pelos
trabalhadores, daí que os direitos não são apenas lugar de
reprodução, mas espaço de luta. E a luta somente é
coerente quando se sabe pelo que se está lutando e qual o
seu alcance.
De fato, a ausência de centralidade no trabalho e,
conseqüentemente, do amparo da classe trabalhadora na
defesa e reivindicação do direito enseja o risco de um
processo de cooptação e refuncionalidades desses
direitos a favor do processo de acumulação e reprodução
capitalista. A argumentação já é bastante conhecida: a
perspectiva de uma guerra de posições é coerente quando
17
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed.
Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
18
FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1986, p. 65
19
FERNANDES, Florestan. A constituição inacabada. São Paulo:
Estação Liberdade, 1989, p.49.
20
FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1986, p. 65.
A derrota da força política do capital, impossibilitada
de impedir as reformas, leva ao seu deslocamento no
seu campo de luta, passando do conservantismo ao
liberalismo, do reacionarismo ao democratismo,
construindo suas bases no terreno adversário. E daí
trabalha contra as reformas, solapando-as,
desfibrando-as e esterilizando-as – ou seja, a reforma
perde qualquer sentido radical ou revolucionário.19
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (62-67) - 67
amparada numa forte e ampla aliança entre os
trabalhadores. O desafio é a organização e a mobilização
da classe trabalhadora. No caso concreto do direito,
inverter o quadro da elaboração e aplicação do direito,
isto é, que o direito posto sofra novo processo de
transformação por meio de movimento político, sob os
termos mais amplos da proteção social e dos direitos
sociais e sob a formulação, execução e controle dos
trabalhadores, mesmo porque não é o direito que resolve
o problema da exploração e da dominação, mas a classe
trabalhadora que, organizada e mobilizada, usa o Estado e
o direito para enfrentar o modo de produção capitalista.
Com efeito, a destruição do modo de produção
capitalista e até mesmo a eliminação das restrições
jurídicas impostas por ele, ainda deixaria parte das tarefas
de enfrentamento da exploração e da dominação. Então,
não é a extirpação dos direitos que supostamente
resolveria o problema.21 Resignificando Mészáros:22
como um elo intermediário necessário, o papel de um
direito expresso em uma constituição consciente de sua
extensão e limites, bem como de suas funções
estratégicas na totalidade da prática social, é decisivo
para o êxito de uma transformação da sociedade.
É evidente que com isso há questões que devem
ser enfrentadas: quais instrumentos necessários e
mediações devem ser utilizados? Esta e outras questões
subjacentes merecem ser analisadas e debatidas com a
ampliação do objeto e continuidade dos estudos, mas não
cabem neste texto.
Portanto, a questão em jogo é a do caráter do
direito, especialmente do direito constitucional, de um
lado, confluindo-se com a exploração e a dominação
presentes no modo de produção capitalista, e, do outro
lado, enquanto instrumento e processo de mediação que
se relaciona com a desigualdade social.
Como já se ressaltou, não é o instrumental e a
mediação realizada pelo direito em si que são mazelas ou
estão errados, mas a funcionalidade e a articulação desse
instrumental e a mediação com o processo de acumulação
e reprodução capitalista e seus desdobramentos para a
moldagem do conjunto de relações sociais; afinal de
contas o direito está assentado no modo de produção
capitalista. Ele não é puro nexo causal das relações
econômicas, mas reflexo da maneira como a sociedade se
organiza para produzir a vida social. O problema a ser
enfrentado para além deste texto é a elaboração teórica e
prática de uma compreensão dos intermediários
adequados, que no caso do direito, permitam a classe
trabalhadora mediar-se a si mesma, ao invés de ser
mediada por instituições e instrumentos moldados pelo
processo de acumulação e reprodução capitalista. A
necessidade do protagonismo social é essencial.
De qualquer modo, o que realmente aqui está
sustentado não é o desaparecimento de toda
21
MÉSZÁROS, István. A taxa de utilização decrescente no Estado
Capitalista. In:___. Para além do capital: rumo a uma teoria da
transição. São Paulo: Editora da Unicamp e Boitempo editorial, 2002,
cap. 15, p. 634-674.
22
MÉSZÁROS, István. Aspectos da Alienação. Aspectos Políticos.
In:___. A Teoria da Alienação em Marx. 1. ed. São Paulo:Boitempo
editorial, 2006, cap.V, p. 139-148.
instrumentalidade e mediação do direito, notadamente, o
do direito constitucional que colacione direitos humanos
e direitos sociais, mas a politização dos seus limites e a
extensão para o combate ao modo de produção
capitalista, questão ausente no ativismo jurídico. E,
somente para além do que foi delimitado como objeto,
estaria a investigação sobre o estabelecimento de formas
de mediação, conscientemente controlados pelos
trabalhadores, em lugar das relações sociais de produção
reificadas sob o capitalismo. É nessa hipótese que se
poderia falar em direito revolucionário.
Artigo recebido em 24/03/2011
Aprovado em 05/05/2011
68 - ARTIGO - Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx
Práxis: considerações sobre o conceito
no pensamento de Karl Marx
José D'Assunção Barros1
P
ráxis, uma antiga noção que já aparece entre
os filósofos gregos, tornou-se, na segunda modernidade,
também um conceito importante para algumas correntes
2
filosóficas, sociológicas e historiográficas. O conceito
ocupa uma posição excepcionalmente importante no
âmbito do Materialismo Histórico, aqui considerado
como um paradigma histórico-filosófico – e ainda mais
no pensamento marxista propriamente dito, já
considerado como um programa de ação política mais
3
específico. É no âmbito do materialismo histórico, e
particularmente no pensamento de Karl Marx, que o
abordaremos neste artigo.
Antes de mais nada, ressaltaremos que a “Práxis”
deve ser entendida, neste sentido mais específico, como
um conceito que une “Consciência” e “Ação”, e logo
veremos a importância de compreender isto para não
confundir a práxis com a simples “prática”. Por outro
lado, em Marx o conceito parece partilhar pelo menos três
1
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, onde leciona
disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História,
História da Arte. Doutor em História Social pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Entre suas publicações mais recentes, destacamse os livros O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2004), O Projeto
de Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005), Cidade e História
(Petrópolis: Vozes, 2007), A Construção Social da Cor (Petrópolis:
Vozes, 2009) e Teoria da História (Petrópolis: Vozes, 2011).
2
A noção de “práxis” aparece já na antiga filosofia grega. Aristóteles
procurou associar esta noção às ações intransitivas ou morais que
estariam dotadas, em si mesmas, de um sentido completo ou pleno, tal
como a ação de “julgar”, em contraste com outro tipo de ações que
visariam, em sua conclusão, à produção de objetos exteriores ou de
resultados concretos, tais como as ações de fabricar, pintar ou preparar
alimentos (mais adiante, veremos que estas ações se direcionam a uma
outra instância que já aparece na filosofia grega, e que é referida como
poiésis). Nos capítulos IV e V da Ética a Nicômaco, por exemplo,
Aristóteles, utiliza esta distinção para contrastar a “prudência” e a
“arte”, sendo que esta última, por visar uma produção – um fim outro
que não ela mesma – já poderia ser, no limite, associada à poiésis. O
conceito de práxis apresentou diversos desenvolvimentos posteriores.
Nos tempos modernos, o conceito de práxis já se mostrará vinculado
pela primeira vez à moderna Dialética com o hegeliano de esquerda
Cieskówski. Sobre isto, ver o capítulo V de AVINERI, Shlomo. O
Pensamento Social e Político de Karl Marx. Coimbra: Editora
Coimbra, 1978. Para uma boa edição da Ética a Nicômaco, ver
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In. Os Pensadores, IV. S. Paulo:
Abril Cultural, 1973.
3
Vamos nos referir neste artigo a duas situações. A expressão
Materialismo Histórico será empregada para nos referirmos a este
paradigma historiográfico e sociológico inaugurado por Marx e
Engels e continuado por inúmeros outros autores, admitindo um
grande número de variações. A expressão “Marxismo” será empregada
no sentido de um programa de ação política que visa o estabelecimento
do socialismo, e que também apresenta inúmeras variações. Quando
utilizarmos a expressão “pensamento marxiano”, estaremos nos
referindo a posições e pensamentos específicos de Marx.
diferentes significados. Tem-se a “práxis” como “ação
revolucionária” (“mudar o mundo, além de interpretálo”, como diz a Tese sobre Feuerbach n°11).4 Tem-se a
“práxis” como o caráter ativo e consciente que se
estabelece sobre o perceber, o pensar e o fazer humanos
(uma relação com a realidade que se coloca como
“atividade prático-sensível”, tal como propõe a Tese
sobre Feuerbach n°1). E, por fim, tem-se a “práxis” como
a própria atividade que permitiu ao homem, como espécie
animal, mudar o mundo e a si mesmo através do
“trabalho”.5 Estes três sentidos para práxis aparecem em
textos de Marx, e de alguma maneira os três convergem
para a noção de que a práxis é um agir consciente que
integra a teoria e a prática.6 De todo modo, há uma
trajetória conceitual que pode ser recuperada para
favorecer uma melhor compreensão desta importante
noção que foi incorporada pelo Materialismo Histórico.7
A história da palavra remete aos ambientes
filosóficos da Grécia Antiga, nos quais a praxis
habitualmente se opunha tanto à theoria (uma atividade
contemplativa) como à poiesis (uma atividade que
convergia para a produção de objetos, para a produção
material, para os fazeres dela decorrentes). Entre estas
duas instâncias humanas do pensar e do fazer, que eram a
Theoria e a Poiesis, a Praxis remontava a uma terceira
instância que correspondia ao “agir” 8 , e mais
4
MARX, Karl. Thèse sur Feuerbach. Paris: Gallimard, 1982.
Cf. KONDER, Leandro. O Futuro da Filosofia da Praxis. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2006, p.97. Frequentemente Marx pensará aqui,
tal como ocorre nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), na
capacidade industrial (a dimensão “faber” do homem) que o conduziu
até uma sociedade industrial capaz de “humanizar a natureza” (isto é,
de dotar as coisas exteriores e o mundo de uma forma humana). O
próprio homem vê-se em seguida “naturalizado”, porque inscrito de
corpo e alma nesta natureza que ele mesmo humanizou.
6
O trabalho alienado, por exemplo, não corresponde a uma práxis, mas
apenas a uma prática.
7
Em Marx, um dos textos indicados para apreender os sentidos
possíveis de práxis é o pequeno conjunto de comentários escrito em
1845 e que recebeu o título de Teses sobre Feuerbach. Esta pequena
obra de duas páginas de grande intensidade filosóficas não foi
publicada durante a vida de Marx. Encontradas por Engels nos
Cadernos do amigo já falecido, o antigo aliado intelectual de Marx
resolveu publicá-las em 1888 como apêndice de seu próprio livro
Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (ENGELS,
Friedrich. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã.
São Paulo: Edições Sociais, 1977). Chamou atenção para o
extraordinário valor desta pequena obra, que revelava de forma
concentrada uma faceta mais filosófica de Marx que não era muito
conhecida do público (lembremos que a Ideologia Alemã também não
tinha sido ainda publicada, pelo menos em sua forma completa, e
tampouco os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, o que só
ocorreria no século XX).
8
O verbo “Agir”, relacionado à produção da “atividade”, deriva de
5
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (68-72) - 69
especificamente à “ação que se realizava no âmbito das
relações entre as pessoas, a ação intersubjetiva, a ação
moral, a ação dos cidadãos”, sendo por isso que
Aristóteles costumava associar a Práxis às atividades
9
“ética” e “política”.
Para os gregos antigos, o homem está longe de
ser concebido apenas homo sapiens – um conceito que só
coloca em relevo o aspecto da Theoria ou da capacidade
de abstração. Para além da sua propalada capacidade de
pensar, ou de teorizar, o homem também se distingue dos
animais por ser um homo faber (um “homem que
fabrica”, isto é, que se desenvolve em uma dimensão
ligada à Poiésis), e um homo prákticus (um “homem que
age”, isto é, cujo existir associa-se inevitavelmente à
Práxis). Os desdobramentos da dimensão de Práxis que
se integra ao homem são muitos. É a Práxis que o
mergulha na história e na necessidade de escrever a
História – pois, ao contrário dos objetos fabricados que
são produzidos pela Poiésis, as ações realizadas através
da Práxis desapareceriam sem deixar vestígios, se os
poetas e historiadores não as registrassem.10
É também a Práxis, ainda acompanhando o
pensamento de Aristóteles, que permite afirmar que “o
homem é por natureza um animal político (zoon
politikon)”, um homem que, através da práxis, realiza-se
na comunidade política (a pólis). 1 1 Mas os
desdobramentos mais importantes da percepção da
instância da Práxis são aqueles que dizem respeito a seus
modos de interação com as outras duas instâncias (a
Theoria e a Poiésis), uma vez que o homem não pode se
realizar integralmente – tornar-se um ser completo – sem
uma interação adequada entre estas dimensões que o
constituem e o singularizam. Isolar uma das três
instâncias é produzir “alienação” – este estado ou aspecto
que corresponde a outro conceito importante do
12
Materialismo Histórico. De qualquer maneira, as
formas de oposição e de interação entre a Teoria e a Práxis
dois outros: agere (por em movimento) e gerere (gerar, criar).
Distingue-se, todavia, do verbo facere – relacionado à poiésis – que se
refere à atividade executada em um determinado instante, com vistas a
determinados fim e à produção de um produto concreto, pontual, bem
definido. “Agir”, ao contrário, pressupõe a “atividade” no seu sentido
contínuo.
9
Em Aristóteles, uma distinção entre práxis e poiesis pode ser
encontrada nos capítulos IV e V da Ética a Nicômaco. Sobre isto, ver
BESNIER, Bernard. A Distinção entre Práxis e Poiêsis em Aristóteles.
Analytica. Vol.1, n°3, 1996, p.126.
10
Aristóteles vai discorrer sobre isso na Poética (1448b25 e 1450a1622). Sobre o assunto, ver ARENDT, Hannah. “O Conceito de História
– antigo e moderno” in: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo:
Perspectiva, 2009, p.73-78. Para uma edição da Poética, cf.
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1993.
11
Marx retoma esta definição de Aristóteles (“o homem é um animal
político”) nos Grundrisse. O fundador do Materialismo Histórico dirá:
"O homem é, no sentido mais literal, um zoon politikon, não apenas um
animal social-gregário (geselliges Tier), mas também um animal que
pode se individualizar (sich vereinzeln) na sociedade" (MARX, Karl.
Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. Berlim: Dietz, 1953,
p.45). Naturalmente que ele explora desta definição implicações
totalmente diversas daquelas que foram conduzidas por Aristóteles na
Política (Livro I – capítulo I), na qual o filósofo grego procura
justificar a escravização como uma situação natural. Para uma edição
da Política de Aristóteles, cf. ARISTÓTELES. Política. Brasília:
UNB, 1997.
(a “Contemplação” e a “Ação”) tornaram-se desde os
gregos um objeto de intensa inquietação filosófica,
atravessando a Idade Média e o Renascimento, até atingir
a segunda Modernidade (século XIX em diante).13
Marx irá desde logo perceber a riqueza do
conceito de “praxis”, um agir que pode se estabelecer
entre o “pensar” e o “fazer” (ou também se impor como
resultado dialético do confronto entre estas duas
instâncias) e incorporar algo de ambos. Ao mesmo tempo,
tal como dá a perceber Leandro Konder em um dos seus
mais importantes estudos sobre Marx, “a práxis é a
atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se
afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e,
para poderem alterá-la, transformando-se a si
14
mesmos”. Todavia, existem variações para os usos desta
expressão nos escritos deste “filósofo da praxis” que foi
Karl Marx. Melhor dizendo, Marx em momentos
diversos, esmera-se em chamar atenção para aspectos
diversificados da Práxis. Procuraremos refletir sobre
alguns destes aspectos. Investiremos, por ora, em uma
representação visual para o círculo dialético que envolve
as três instâncias constitutivas da relação que se
estabelece entre o Homem e a Realidade que ele mesmo
transforma. Não importa aqui considerar quem – entre a
Poiésis e a Theoria – desempenha o papel de “Tese” e de
“Antítese” (e desde já salientemos que este esquema
12
O conceito de “alienação”, com sentidos diversos, já aparece em
filósofos como Fichte e Schelling, e irá adquirir uma especial
importância em Hegel, que o utiliza para indicar a separação do
Espírito (em sua manifestação material) em relação a si mesmo,
considerando que a história seria o próprio processo através do qual o
Espírito toma consciência de si mesmo. Para o jovem Marx dos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o estudo da alienação irá
adquirir especial interesse, e o conceito aparecerá com o duplo sentido
de “estranhamento” e de perda de consciência. Marx examina várias
formas de alienação, em obras diversas. A alienação religiosa
implicaria na separação do indivíduo humano em relação ao mundo
real (daí Marx declarar que “a religião é o ópio do povo”). O processo
de desnaturalização do homem (no sentido de espécie humana) teria
produzido a alienação do homem em relação à Natureza. A alienação
política produz no indivíduo humano a perda de consciência em
relação aos seus interesses de classe. Sobretudo, a partir de 1845, Marx
estará particularmente preocupado com a alienação produzida pela
reificação do trabalhador no sistema capitalista – esta que o reduz a
mero objeto ou instrumento no sistema de produção capitalista e que é
produzida pela conversão de sua força de trabalho em simples
mercadoria. A alienação do trabalhador produzida pela fragmentação
do trabalho na unidade produtiva, isolando-o em uma poiésis separada
da práxis e apartando-o de uma consciência em relação ao que ele
mesmo produz, é um destes aspectos.
13
Giordano Bruno (1548-1600), por exemplo, concebe o homem como
um ser que combina necessariamente a teoria e a prática, isto é, como
um ser atravessado pela praxis: “A Providência determinou que ele [o
homem] seja ocupado na ação pelas mãos e na contemplação pelo
intelecto, de maneira que não contemple sem agir e não aja sem
contemplar” (apud KONDER, Leandro. O Futuro da Filosofia da
Praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p.100).
14
KONDER, Leandro, O Futuro da Filosofia da Praxis, p.115. Konder
prossegue: “É a ação que, para se aprofundar de maneira mais
consequente, precisa de reflexão, de autoquestionamento, da teoria; e
é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus
acertos e desacertos, cotejando-os com a prática” Neste sentido, a
interligação entre práxis e teoria – uma interligação necessária – é
“uma característica que distingue a práxis das atividades meramente
repetitivas, cegas, mecânicas, 'abstratas'” (KONDER, op.cit, p.115). A
mera poiésis sem vir acompanhada de consciência e de liberdade não
consegue interagir com a práxis.
70 - ARTIGO - Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx
constitui apenas uma primeira aproximação), mas o que
interessa mesmo, neste momento, é dar a compreender a
Praxis como a “Síntese” que permite superar a Theoria e
Poésis nos momentos em que estão isoladas uma
15
da outra:
ANTÍTESE
TESE
POIÉSIS
THEORIA
SÍNTESE
Figura
Três instâncias do
encontro entre o
Homem e o Mundo
PRÁXIS
Nas primeiras obras de Marx, a práxis é
preferencialmente descrita como uma atividade humana
“prático-crítica”, que nasce desde cedo das relações entre
o homem e a natureza, esta extensiva ao meio social.16
Neste sentido, a práxis expressa o poder que o homem
tem de transformar o ambiente externo, isto é, tanto a
natureza como o meio social em que está inserido. Nas
Teses sobre Feuerbach de Marx (1845), obra que Engels
aponta como a primeira na qual o Materialismo Histórico
começa a se apresentar como um sistema coerente, a
proposta de uma práxis revolucionária também adentra o
cenário teórico elaborado por Marx, terminando por se
celebrizar na frase terminal na qual Marx diz: “os
filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo;
cabe a nós transformá-lo” (tese n°11).
É também nas Teses sobre Feuerbach,
particularmente na Tese n°5, que Marx expõe as bases de
uma teoria do conhecimento centrada no conceito de
“práxis”. A argumentação de Marx parte da crítica de que
Feuerbach não considerava o conhecimento do mundo
sensível como atividade prática, isto é, como atividade
que transforma a realidade apreendida. Para Marx, o
conhecimento não deve ser visto como processo
contemplativo ou passivo no qual o objeto é apreendido
pelo 'sujeito de conhecimento'. Tampouco o
conhecimento será visto como processo no qual o sujeito
produz o objeto a partir de suas idealizações. O
conhecimento, postulará Marx, é uma “atividade”, e
particularmente uma atividade concreta, uma “prática”.17
Deste modo, está inscrita na concepção original do
Materialismo Histórico a possibilidade, e na verdade a
15
Para Marx, são alienados o homem que se isola na Theoria – um
filósofo meramente contemplativo, por exemplo – e também o homem
que é aprisionado nos limites da Poiésis sem que lhe seja permitido
interagir com a Theoria e a Práxis, tal como pode ocorrer com a
alienação do trabalho no mundo capitalista. A Práxis, contudo – em um
dos sentidos específicos que Marx lhe dá – liberta o homem da
possibilidade da alienação.
16
Já vimos que entre os antigos gregos, a “práxis” correspondia ao
processo no qual uma teoria ou habilidade era executada ou praticada,
convertendo-se em experiência vivida e transformadora – um sentido
que também estará presente em alguns textos de Marx, notadamente
naqueles que se referem ao problema da “alienação”.
17
Sobre isto, ver o primeiro capítulo de SHAFF, Adam. Verdade e
História. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
necessidade, de que a teoria se altere dialeticamente no
seu confronto com a realidade, o que autorizaria, segundo
o que está implícito nas teses de Marx, reformulações
várias, tantas quantas necessárias, no sistema conceitual
do Materialismo Histórico, o que seria levado adiante por
alguns de seus sucessores mais criativos. Ao contrário,
não estaria autorizado por esta concepção o dogmatismo,
a imobilização conceitual, ou a transformação do sistema
teórico-metodológico do materialismo histórico em mera
“doutrina” ou simples “programa de ação política” – o
que teria precisamente acontecido em certos
desenvolvimentos posteriores do chamado “marxismoleninismo”.
A interação entre teoria e ação através da práxis
constitui um aspecto primordial para a compreensão do
Materialismo Histórico, tal como o concebia Marx, e
desde já podemos chamar atenção para o primeiro
equívoco que pode surgir no entendimento deste
conceito, que é o de confundir “práxis” com “prática”. Tal
como têm observado alguns dos maiores analistas de
Marx – e podemos citar os nomes de Leandro Konder e
Arrigo Bortolotti18 – esta confusão indevida e inaceitável
tem permitido interpretações deturpadas em torno da tese
n°11 sobre Feuerbach (atrás mencionada). Não se trata de
deixar de interpretar o mundo para, a partir de Marx,
apenas nos ocuparmos da transformá-lo. Na verdade, é
impossível transformar o mundo sem interpretá-lo, e a
interpretação que não corresponde a uma transformação é
desde já uma abstração inútil. O fundador do
Materialismo Histórico insurge-se, aliás, precisamente
contra estas interpretações desprovidas de uma
“terrenalidade” (para utilizar uma expressão de Marx nas
Teses sobre Feuerbach). Mas estará longe de sancionar a
confusão entre “prática” e “praxis”, de modo que para ele
não teria qualquer sentido dizer que a teoria não seria
mais necessária pois o importante seria o “mergulho
pragmático na ação política revolucionária”.19 Mesmo na
esfera do ativismo político, o componente da
interpretação é fundamental por proporcionar a
autocrítica e a revisão dos objetivos. Interpretar o mundo
ao mesmo tempo em que o transformamos; e transformar
o mundo com plena consciência (isto é, interpretando
concomitantemente a ação de transformar o mundo). Este
seria o sentido da última Tese sobre Feuerbach (1845).
Quando examinamos as reflexões de Marx em
torno do conceito de Práxis, desde as primeiras obras,
como é o caso dos Manuscritos Econômico-Filosóficos
20
(1844) , chegando até as obras de maturidade, entre as
18
KONDER, Leandro. Marxismo e Alienação. São Paulo: Expressão
Popular, 2009; e BORTOLOTTI, A. Marx e il Materialismo. Palermo:
Palumbo, 1976.
19
KONDER, O Futuro da Filosofia da Praxis, p.124.
20
Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) só viriam a ser
publicados em 1932, causando uma grande sensação na
intelectualidade marxista por ocasião de sua tardia concretização
editorial. Na verdade, estes escritos haviam sido elaborados por Marx
para seu “auto-esclarecimento”, conforme as palavras do próprio
autor, e não visavam publicação. Além disto, muitas páginas se
perderam, o que reforça o caráter fragmentário deste fascinante
conjunto de textos que traz à tona a dimensão filosófica do
pensamento de Marx. Ente as maiores lacunas do texto, está a ausência
da maior parte do 2° Manuscrito, que era uma parte particularmente
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (68-72) - 71
quais O Capital (1867)21, também nos deparamos com a
sua posição valorativa em relação à Poiésis. Conforme
dizíamos atrás, além da Theoria e da Práxis, outra
categoria importante para a filosofia grega era a Poiésis,
que correspondia ao fazer mais concreto, aquele que
22
conflui para a produção material. Ao mesmo tempo em
que Marx traz a práxis para uma centralidade que se
relaciona à possibilidade de transformar conscientemente
o mundo, seja através da recuperação de uma consciência
que deve ser aplicada à vida, seja através da ação
revolucionária, não devemos esquecer que Marx também
trouxe para o centro de sua análise histórica a poiésis, esta
esfera que se relaciona ao Trabalho.23
O Trabalho torna-se uma categoria tão
primordial para os fundadores do Materialismo
Histórico, que Engels chegará a dizer que “o Trabalho
criou o Homem” – afrontando a tradicional frase de que
“Deus criou o Homem”.24 Com isto, o que distinguirá o
homem dos demais animais não é mais o fato de que ele
pensa (homo sapiens), e tampouco ele será definido
aristotelicamente como um “animal político” e um
“animal discursivo”. O homem será agora um animal
25
laborans, um “animal que trabalha”. Além disto, a
história passará a ser vista por Marx sob a perspectiva dos
importante. De todo modo, os Manuscritos causaram sensação quando
foram publicados, póstuma e tardiamente. Revelam-se aqui as
preocupações profundamente humanistas de um Marx atento à
dilaceração da humanidade através da divisão social do trabalho, aos
modos como o homem se relaciona com a natureza e o mundo social
transformando-os e transformando a si mesmo em um único gesto, e às
possibilidades de superar a alienação através de uma postura
revolucionária. Para uma edição da obra em português, ver MARX,
Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros textos escolhidos.
São Paulo: Nova Cultural, 1991.
21
MARX, Karl. Le Capital. Paris: Garnier Flammarion, 1969.
22
Na Mitologia Greco-Latina, o “deus da poiésis” era Vulcano (o
Hefesto dos gregos), que possuía uma habilidade inexcedível para
fabricar objetos e utensílios. Também era o “deus do fogo”, através do
qual podia trabalhar artesanalmente com todos os materiais, dotandolhes de uma forma e, em muitos casos, imprimindo a cada objeto
forjado uma funcionalidade.
23
O “trabalho”, uma categoria central para o Materialismo Histórico de
Marx, também abre algumas possibilidades para nos avizinharmos do
conceito de práxis. Vamos lembrar, a propósito, que o Trabalho, que
corresponde ao modo como o homem transforma o mundo à sua volta,
é apresentado nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) como o
ponto de partida original da Praxis – esta que, no entanto, o supera
posteriormente, à medida que o “estar” no mundo se sofistica. É neste
sentido que o filósofo tcheco Karel Kosik (1926-2003), em seu livro
Dialética do Concreto, irá chamar atenção para o fato de que a praxis
manifesta-se não apenas na “atividade objetiva do homem, que
transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais
naturais”, mas também na “formação da própria subjetividade
humana” (KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1969, p.204). Nesta perspectiva, a práxis pode ser
compreendida como a mediadora entre o indivíduo, a natureza e a
sociedade, atentando para o fato de que é através dela que os seres
humanos conferem sentido e transformam a realidade, o que implica
tanto na possibilidade de transformá-la objetivamente como também
de transformá-la fazendo-a passar através da subjetividade, dotando-a
de novos sentidos. A própria realidade, para Karel Kosic, não é mais do
que uma “práxis humana objetivada”.
24
A frase aparece em um texto de Engels intitulado: “The Part played
by the Labor in the Transition from Ape to Man” (ENGELS, Friedrich.
“The Part of the Labor in the Transition from Ape to Man” in MARX,
Karl e ENGELS, Friedrich. Selected Works. London: The MacMillan
Press, 1950. vol.II, p.74).
verdadeiros sujeitos da poiésis: os trabalhadores. Embora
o Trabalho, que corresponde à produção da vida material,
possa ser examinado da perspectiva daqueles que os
gerenciam e controlam – estes que, no mundo moderno,
são os capitalistas – não é esta perspectiva, tão típica da
história burguesa, aquela que Marx toma para si.
O Trabalho – que para Marx é a atividade de
autocriação do homem – é abordado aqui da perspectiva
de que aqueles que efetivamente o realizam podem se
tornar os verdadeiros sujeitos da história. Assim como
através do Trabalho o ser humano modifica o mundo e
modifica a si mesmo, também os trabalhadores, através
do seu “fazer” – da sua poiésis – terminam por se
modificar as próprias 'forças produtivas' das quais
participam como os principais 'agentes de produção'. Das
condições de trabalho que são impostas aos
t r a b a l h a d o r e s , e s t e s t e r m i n a m p o r t i r a r,
contraditoriamente, a sua força. Assim, se a Fábrica
aglomera os homens para atingir a maior eficácia de uma
produção em série, isto também favorece a formação de
vínculos de solidariedade e proximidade que se tornarão
fundamentais para a sua organização social com vistas a
assumir uma posição consciente na 'luta de classes'. As
condições para uma coesão que favoreça a emergência de
uma “consciência de classe” podem não se dar em
determinado grupo social, tal como demonstra a análise
desenvolvida por Marx em Dezoito Brumário (1852)26, na
qual o fundador do Materialismo Histórico procura
mostrar que o campesinato francês, nos episódios que
conduziram à entronização de Luís Bonaparte, não
chegara a se constituir em “classe-para-si” em função do
seu isolamento.
Marx, filósofo engajado através de uma práxis
que pretende modificar o mundo na direção de uma
sociedade sem a dominação de classes, pretende
contribuir também para a organização classista dos
sujeitos históricos da poiésis, que em sua época
apresentam como vanguarda o proletariado. Este é o
sentido de seu forte engajamento na organização da
27
Internacional dos Trabalhadores. Em Marx, a práxis é
concebida em interação com a theoria e com a poiésis. O
“agir” da práxis deve dissolver a mera “contemplação”
25
ARENDT, Hannah. “A Tradição e a Época Moderna” in: Entre o
Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p.48.
26
MARX, Karl. “O 18 Brumário” in A Revolução antes da Revolução –
o 18 Brumário, as lutas de Classe na França, e a Guerra Civil na
França. São Paulo: Expressão Popular, 2008,p.199-338.
27
Marx participa da organização da Associação Internacional dos
Trabalhadores, em 1864, em Londres, a princípio mais discretamente,
mas já ocupando um cargo de “Secretário pela Alemanha”. Depois que
a Internacional se estabelece, ele acabará se tornando o principal
articulador desta organização. Depois de sete anos, em 1872, após o
contexto da violenta repressão da Comuna de Paris, a Primeira
Internacional iria se dissolver. O último Congresso, em 1872, será
marcado pela oposição entre Marx e Bakunin. O movimento
internacional dos trabalhadores iria se reativar mais tarde, mas em
1889 ocorreria uma cisão no movimento, e a facção marxista
terminará por fundar uma nova organização, que ficaria também
conhecida como 2ª Internacional. Em desenvolvimento posterior, a 2ª
Internacional assumiu uma orientação social-democrata, de modo que
Lênin, discordando dos caminhos não-revolucionários propostos pela
nova orientação, terminou por fundar uma 3ª Internacional (a
Internacional Comunista). Mais tarde (1938), seria criada uma 4ª
Internacional pela dissidência inaugurada por Trotsky.
72 - ARTIGO - Práxis: considerações sobre o conceito no pensamento de Karl Marx
para a qual pode deslizar a teoria, e ao mesmo tempo tem
por tarefa despertar a poiésis da “alienação” que lhe pode
ser imposta.
Para finalizar, vejamos de maneira mais rápida
como se desenvolve o conceito de Práxis em momentos
subseqüentes da História do Materialismo Histórico.
Antônio Gramsci irá retomar o conceito marxiano
imprimindo-lhe uma nova direção, e a práxis passa a ser
compreendida como o fazer-se da própria História, o que
se dá através da interferência do gênero humano nas
condições ambientais (aqui sempre incluindo não apenas
o ambiente natural, como também o ambiente social).
Quando esteve preso durante o regime fascista italiano,
Gramsci estava submetido a uma atenta censura
relativamente aos seus escritos. Por isso, criou um termo
substituto a partir do qual podia se referir ao Marxismo
em seus escritos sem despertar suspeitas e repressões.
Sintomaticamente, a expressão escolhida foi “Filosofia
da Práxis”.
Os fundadores do Materialismo Histórico, Marx
e Engels, e também a primeira geração de marxistas que
segue até Lênin e Trotsky, estavam fundamentalmente
envolvidos com a idéia da práxis neste sentido mais
especificado por Gramsci – isto é, a concepção de que não
deveria bastar ao historiador, sociólogo ou filósofo
pensar a História. Era preciso viver a História (fazer a
História) e isto implicava em engajamento político direto,
o que se manifesta na atuação de Marx e Engels junto à
organização da Primeira Internacional. Da mesma forma,
não bastaria ao revolucionário fazer a revolução, sendo
necessário também pensar a Revolução – o que se
expressa nas obras teóricas de Lênin e Trotsky. Mas Perry
Anderson, em suas Considerações sobre o Marxismo
Ocidental (1974)28, sustenta que depois teria ocorrido um
singular processo no qual foram se dissociando novamente
a teoria e a prática, que na concepção marxista original
deveriam ser inseparáveis através da noção de práxis.
Conforme Perry Anderson, a partir do final da
terceira década do século XX teria ocorrido um duplo
processo que afeta o desenvolvimento posterior do
pensamento marxista: a bolchevização dos PCs e as
pressões e repressões oriundas de governos fascistas.
Com isto, um pensamento marxista que precisava recriarse a si mesmo perde apoio no seio do próprio partido com
as imposições unilaterais decididas nos comitês do
Partido Único, e ao mesmo tempo um meio externo
repressivo dificulta o trabalho dos intelectuais de
esquerda. Com isto, vai se formando um singular
“Marxismo Ocidental” – um pensamento criativo,
diversificado, crítico e dialético, porém em muitos casos
desvinculado de uma prática revolucionária – e de outro
lado, nos países sob a égide da liderança soviética, um
Marxismo Bolchevista, político, prático e pobre de
desenvolvimentos teóricos, chegando às
esquematizações impostas por Stalin a golpes de martelo
e à custa do silenciamento de todos aqueles que
pensassem diferente do que havia sido decidido nos
28
ANDERSON, Perry. “Considerações sobre o Marxismo Ocidental”
(1974) e “Nas Trilhas do Materialismo Histórico” (1983). São Paulo:
Boitempo, 2004.
fóruns autorizados dos Congressos Socialistas
organizados pelos bolcheviques. Estabelecia-se, assim,
uma cisão. A Práxis parece cair aqui para segundo plano.
De um lado temos uma vigorosa e criativa teoria
desvinculada da prática, de outro lado uma prática por
vezes opressiva e silenciadora das criatividades teóricas.
O nosso objetivo neste artigo foi apenas o de
pontuar algumas considerações sobre este complexo
conceito que é o da Práxis no âmbito do Materialismo
Histórico, do pensamento de Karl Marx, e do Marxismo
propriamente dito. Obviamente que a complexidade de
tal conceito, e a sua utilização por inúmeros autores que
ajudaram a construir o Materialismo Histórico como um
paradigma que admite diversas variações, requereria um
estudo mais alentado para irmos além destas
considerações introdutórias.
Artigo recebido em 05/04/2011
Aprovado em 04/06/2011
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (73-78) - 73
A Primeira Independência do Paraguai
Mário Maestri1
A
pós 1810, a Revolução de Maio, em
Buenos Aires, buscou dois grandes objetivos: emancipar
as regiões da bacia do Prata do poder político e do tacão
comercial espanhol e submetê-las a Buenos Aires. Logo
após o mote autonômico, os revolucionários enviam às
demais províncias do vice-reinado mensageiros
propondo a adesão à Junta portenha. Para Santa Fé,
Corrientes e Asunción, foi enviado o coronel do
Regimento Voluntário de Milícias de Costa a Baixo, o
paraguaio José Espínola y Peña, com ordem de organizar
a deposição do governador-intendente do Paraguai e das
Missões, Bernardo de Velasco y Huidobro [c. 1765-c.
1822], e com a credencial secreta, segundo ele, de
Comandante Geral das Armas do Paraguai. O profeta
irredentista não teve boa acolhida em sua terra, pelo
conteúdo de sua proposta, mais do que por seu conhecido
caráter autoritário e truculento. De volta a Buenos Aires,
após fugir da província para não ser preso, Espínola
declarou que eram muito fortes as forças autonomistas
pró-Junta de Maio em sua pátria pequena, bastando
uma força de uns duzentos soldados para por fim ao
governo realista.2
Em 24 de julho de 1810, reuniu-se assembléia
[Junta General de Vecinos, no Colégio Seminário de
Asunción, com duzentos representantes do Cabildo, de
forte orientação realista; do exército; do clero; da
administração; das profissões liberais; das corporações;
dos comerciantes; dos grandes proprietários de terra da
capital e do interior, sob a presidência do governador.
Devido ao caráter censitário da convocação, não
participaram da assembléia representantes dos
chacareros, dos pueblos nativos, dos pequenos
comerciantes – ou seja, delegados do povo médio e miúdo
do Paraguai. A reunião dava-se para decidir como se
comportaria a província, devido à prisão-renúncia do
soberano espanhol Fernando 7º e à designação do irmão
de Napoleão Bonaparte como novo soberano espanhol.
Sob a proposta do governador Bernardo de
Velasco e das autoridades instituídas, favoráveis à
Espanha, apoiadas pelo cabildo, a assembléia decidiu o
reconhecimento-fidelidade ao Supremo Conselho da
Regência, que substituía o poder real espanhol, enquanto
de seu impedimento; a manutenção de “armoniosa
correspondência y fraternal amistad”, no mesmo pé de
igualdade, com a Junta Provisional de Buenos Aires,
desconhecendo assim a primazia da ex-capital do vice1
Programa de Pós-Graduação em História, UPF, RS.
[email protected].
2
CHAVES, Julio César. El Supremo Dictador: biografia de José
Gaspar de Francia. 5 ed. Asunción: Carlos Schauman, 1985. p. 93.
reinado. Naquele momento, o partido real propunha que
Buenos Aires formara uma junta por que, na época de sua
constituição, não sabia da formação do Conselho de
Cadiz. No caso do povo da província paraguaia, no
conhecimento daquele órgão supremo, restava apenas
jurar obediência ao governo metropolitano instituído.
A reunião vicinal constituiu igualmente uma
Junta de Guerra, sob a direção do coronel espanhol Pedro
Garcia, para fazer frente à ameaça luso-brasileira – mais
tarde, o coronel fugiria para os quartéis portugueses no
Mato Grosso, para pedir ajudada contra os patriotas
paraguaios.3 Com o vazio de poder em Espanha, a esposa
de dom João, a princesa espanhola Carlota Joaquina de
Bourbón, irmã mais velha do soberano espanhol na
prisão, pensava governar como regente o vice-reinado do
Prata. Nos fatos, o governador do Paraguai preparava a
guerra contra a Junta de Buenos Aires – e não contra os
lusitanos, possíveis aliados contra os autonomistas
portenhos. Nesse momento, não houve intervenção
política autônoma significativa dos criollos paraguaios,
que se associaram ao partido espanholista e realista para
barrar o avanço colonizador portenho.
O Doutor Francia
A única voz dissonante que se escutou na Junta
General de Vecinos, de 24 de julho de 1810, duramente
rejeitada pela assembléia realista, foi a do doutor José
Gaspar de Francia [1776-1840], que despontou como
representante do partido patriota intransigente:
Esta Asamblea no perderá su tiempo debatiendo si el
cobarde padre o el apocado hijo es rey de España. Los
dos han demostrado su débil espíritu y su desleal
corazón. Ni el uno ni el otro puede ser ya rey en
ninguna parte. Más sea o no rey de España el uno o el
otro, ¿qué nos importa a nosotros? Ninguno de ellos es
ya rey del Paraguay. El Paraguay no es el patrimonio
de España, ni provincia de Buenos Aires. El Paraguay
es Independiente y es República, la única cuestión que
debe discutirse en esta asamblea y decidirse por
mayoría de votos es: cómo debemos defender y
mantener nuestra independencia contra España,
contra Lima, contra Buenos Aires y contra Brasil;
cómo debemos fomentar la pública prosperidad y el
bienestar de todos los habitantes del Paraguay; en
suma, qué forma de gobierno debemos adoptar para el
Paraguay.4
3
Id.ib. p. 279.
VILABOY, Sergio Guerra. “El Paraguay del doctor Francia”.
bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/critica/nro5/VILABOY.pdf. p. 3.
4
74 - ARTIGO - A Primeira Independência do Paraguai
A junta de Buenos Aires respondeu
imediatamente à decisão de Asunción – enviou o
paraguaio Juan Francisco Arias à província, para
convencer seus patrícios da vantagem da adesão ao
movimento autonomista e retaliou o comércio da
província. Em setembro de 1810, uma flotilha paraguaia
foi obrigada a descer o rio Paraná para libertar oito
embarcações provinciais detidas em Corrientes. Ela
serviu também para reconquistar a posse de Curupayty,
questionada por Corrientes, e restabelecer o domínio
sobre alguns tributários do rio Paraná. Então, como a exprovíncia do Paraguai não se submetia pelas buenas, a
oligarquia liberal-mercantil portenha em ascensão optou
pelas malas. Informado sobre as decisões do governo
paraguaio, a junta portenha bloqueou o acesso fluvial à
província rebelde; decretou o fim da jurisdição paraguaia
sobre as Missões; enviou conspiradores para
organizarem as forças pró-portenhas, que promoveram
diversas pequenas conspirações em Asunción,
Concepción, Itae Yaguarón.5
Finalmente, a junta portenha enviou contra a
província rebelde expedição militar comandada por
Manuel Belgrano [1770-1820], secretário perpétuo da
Junta de Comércio de Buenos Aires, responsável pela
abertura do porto daquela cidade ao comércio
internacional, secundado por dois paraguaios. As
instruções dadas a ele por Mariano Moreno eram claras e
duras. Manuel Belgrano deveria “poner al Paraguay 'en
completo arreglo', remover el Cabildo y a las
autoridades, colocar en su reemplazo hombres de entera
confianza, y expulsar del país a los vecinos sospechosos.
Si hubiese resistencia de armas 'morirán el Obispo, el
Gobernador y su sobrino con los principales causantes
6
de la resistencia.'”
Manuel Belgrano era fino político, sem
experiência militar. Contando com os fortes apoios entre
as classes crioulas paraguaias prometidos por José
Espínola y Peña, esforçou-se inutilmente para apresentar
a intervenção como destinada a libertar a província dos
espanhóis. Entretanto, o ressentimento paraguaio era
maior com os comerciantes portenhos do que com os
administradores espanhóis. A Junta enviou também ao
Paraguai Juan Francisco Aguero, natural daquela
província, para convencer seus patrícios dos benefícios
da submissão, lembrando-lhes as “ventajas de nuestra
unión y los males a que el Paraguay quedará expuesto, si
continua dividido, pues aislado, y sin su comercio [...].”7
Grandes facções
Em 1811, defrontavam-se na província do
Paraguai quatro grandes facções político-sociais. A
primeira, a espanholista opunha-se à Junta de Buenos
Aires e era favorável ao Conselho da Regência e à
dependência à Espanha. Ela constituía-se sobretudo com
funcionários, comerciantes e grandes proprietários
5
WHITE, Richard Alan. La primera revolución popular en America:
Paraguay (1810-1840). 2 ed. Asunción: Carlos Schauman, 1989. p. 41.
6
CHAVES. El Supremo Dictador. Ob.cit. p. 97.
7
GARAY, Blas. El comunismo de las Misiones; La revolución de la
Independencia del Paraguay. Asunción: Instituto Colorado de
Cultura, 1975. p. 145 et seq.
espanhóis, que dependiam do poder metropolitano para
manter seus privilégios. A segunda, portenhista era
favorável à Junta de Buenos Aires e, portanto, à
manutenção do Paraguai como província de uma
federação, com capital no grande porto. Ela era
constituída principalmente por comerciantes locais
ligados ao comércio portenho.
A terceira grande facção era o partido criollo,
formado pelos patriotas autonomistas, capitaneado por
membros das famílias de colonizadores, grandes
proprietários de terra, dedicadas à agricultura e sobretudo
ao pastoreio. Ele opunha-se ao domínio espanhol e
portenho e era favorável à independência ou a uma
confederação, na qual as ex-províncias mantivessem real
autonomia. Os criollos mobilizavam-se para emanciparse dos pesados tributos portenhos, mas temiam
rompimento pleno com Buenos Aires, pois almejavam
acrescer as exportações através daquele porto de ervamate, tabaco, açúcar, aguardente, madeira, mercadorias,
que escoavam parcialmente.8
Os proprietários criollos defendiam a
manutenção e o aprofundamento das relações
comerciais, nas melhores condições possíveis, com
Buenos Aires. “Este grupo, en lo referente a la ideología,
desechaba lógicamente toda concepción de un Estado
igualitario, condicionado como estaba por su posición
privilegiada, en un país con numerosos pequeños y
medianos agricultores.”9 Mesmo se encontrando mais
próximos do que os espanholistas, os proprietários
criollos possuíam claros antagonismos com os pequenos
proprietários – chacareros –, no relativo ao controle das
terras e da mão de obra. Divergiam, igualmente, no que se
refere às relações desejadas com a oligarquia comercial
de Buenos Aires.
A quarta grande facção era formada pelos
medianos e pequenos agricultores e criadores
proprietários e arrendatários. Igualmente adictos aos
direitos de propriedade, tinham suas explorações
orientadas essencialmente ao auto-consumo e ao
comércio local. O import-export e as relações com
Buenos Aires eram-lhes questões estranhas, que podiam
dificultar suas existências. Envolvimento nas disputas da
bacia do Prata significaria igualmente arrolamento nos
exércitos da força de trabalho familiar, com seqüelas
terríveis para as pequenas e médias explorações e
propriedades. O abatimento das barreiras alfandegárias e
as importações desenfreadas assentariam fortes golpes à
10
produção doméstica, artesanal e pequeno mercantil.
Os pequenos e médios proprietários sofriam
comumente a pressão dos estancieiros criollos sobre suas
terras, seus gados, seus direitos de pastagem. Essa
sociedade camponesa necessitava igualmente de terras
que sustentassem sua expansão demográfica. Os
pequenos e médios arrendatários sonhavam
independizar-se das rendas pagas aos grandes
proprietários e dos impostos devidos ao Estado. Esses
6
HEINZ, Peters. El sistema educativo paraguayo desde 1811 hasta
1865. Asunción: Instituto Cultural Paraguayo-Alemán, 1996. p. 29.
9
Loc.cit..
10
Loc.cit.
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (73-78) - 75
segmentos tinham relações de sangue, familiares e
territoriais com os peões desprovidos de terra, que
trabalhavam eventualmente em suas propriedades, sem
confundir-se com os mesmos. Eram importantes as
comunidades que viviam da exploração de suas terras
comunitárias.11
Unidade diante do Portenho
Manuel Belgrano e o seu pequeno Exército
Libertador de uns mil e cem homens cruzaram as
fronteiras da província do Paraguai sem conhecer as
adesões prometidas pelo coronel paraguaio José
Espínola, enquanto seus soldados desertavam. O que
obrigou o comandante geral portenho a reconhecer que,
recebido como conquistador, apenas à “fuerza de balas”
se imporia sobre os “selvagens paraguayos”. Na
eventualidade de resistência paraguaia à libertação
portenha, as ordens determinadas a Manuel Belgrano e
Echeverría pela Junta de Buenos Aires eram claras: “[...]
que la provincia del Paraguay debe quedar sujeta al
Gobierno de Buenos Aires como lo están las Provincias
Unidas”. Acompanhavam a expedição portenha alguns
poucos paraguaios natos.
Após vencer frágil resistência realista, em 19 de
dezembro de 1810, na batalha de Campichuelo, na
travessia do rio Paraná, o destacamento portenho
enfrentou o governador Bernardo de Velasco e o coronel
Garcia, no comando das forças da província do Paraguai,
em 19 de janeiro de 1811, na batalha de Paraguarí,
próxima da aldeia do mesmo nome, que se formara em
torno de antigo colégio jesuítico, a pouco mais de cem
quilômetros da capital. As forças mostravam-se
desequilibradas em favor dos paraguaios, que contavam
com seis mil soldados, enquanto os portenhos, sem
adesões na província rebelde, não alinhavam, nesse
momento, mais do que dois mil homens. Porém, os
paraguaios eram em geral milicianos, ou seja,
camponeses arrolados como combatentes, sem
experiência militar e não raro apenas armados com “lazos
e bolas”, armas e instrumentos de trabalho tradicionais
dos guaranis, enquanto os portenhos, soldados
fogueados, com bom armamento, enquadrados por
12
oficiais competentes.
Inicialmente, a sorte sorriu novamente ao
enviado de Buenos Aires e às suas tropas, devido à
facilidade com que dispersaram as forças realistas e a
rapidez com que o governador Velasco, o coronel Garcia
e os oficiais espanhóis fugiram em direção de Asunción.
Na capital, apenas correm boatos sobre a possível derrota,
espanhóis e espanholistas embarcam-se com seus
familiares e bens em dezessete navios, prontos para
partirem para Montevidéu, coração do partido realista.13
Porém, a batalha foi salva pelo esforço dos oficiais e
combatentes crioulos. O confronto, que durou quatro
horas, não teria sido muito violento, pois não morreram
mais do que trinta combatentes, no total. Como visto,
11
Id.ib. p. p. 31.
DEMERSAY, Alfred. “El doctor Francia, Dictador del Paraguay.”
RENGGER; CARLYLE; DEMERSAY. El doctor Francia. Asunción:
El Lector, 1987. p. 277
13
CHAVES. El Supremo Dictador. Ob.cit. p.98
12
Manuel Belgrano contara com a adesão dos patriotas e
liberais provinciais e, possivelmente, subestimara a
belicosidade paraguaia. Os heróis do confronto foram os
crioulos Fulgencio Yegros, Manuel Atanasio Cabañas e
Juan Manuel Gamarra.
Após o fracasso, Manuel Belgrano recuou para o
rio Tacuarí, onde, em 9 de março de 1911, após um
combate derradeiro, capitulou diante das tropas
paraguaias. A batalha foi mais cruenta, com quatorze
mortos paraguaios e um número certamente superior de
argentinos. Antes de abandonar a província, Belgrano
proclamou as vantagens de união com Buenos Aires, em
um regime de livre-comércio. Nos meses que
antecederam o abandono do Paraguai, ele trocara estreita
correspondência com os oficiais patriotas paraguaios e,
após o combate de Tacuarí, quando literalmente se
rendera às tropas paraguaias, recebeu o oferecimento de
armistício honroso, por parte de Manuel Atanasio
Cabañas, um grande plantador de tabaco da província,
interessado no fim do estanco colonial do produto.
Inimigos amigos
Depois do combate de Tacuarí, paraguaios e
portenhos fraternizaram, para horror do governador e dos
espanholistas, que criticaram, ferozmente, as concessões
a Manuel Belgrano, no momento em que depunha as
armas. O doutor Francia, por seu lado, também criticou
duramente o armistício, temendo já a deriva
portenhista.14 Segundo o historiador estadunidense
Richard Alan White, foi quando dessas discussões que
teria maturado a disposição entre os oficiais paraguaios,
oriundos das mais ricas famílias paraguaias, de
independizarem a província de Espanha. A revolta teria
sido marcada para 25 de maio, aniversário do mote de
Buenos Aires.15
Ainda que a campanha resultasse plenamente
satisfatória à província do Paraguai, com destaque para os
militares crioulos, ela teria pesado fortemente sobre a
população camponesa. A mobilização de mais de dez mil
paraguaios se dera “a costa de ellos mismos y con total
abandono de sus particulares ocupaciones y atenciones”,
pois “nunca se les efectuó a paga”, já que, após os
combates, eles foram despachados pelo governador
Velasco sem qualquer retribuição pelos oito meses de
serviço militar. Durante a mobilização, “ganados,
caballadas y carrajes, todo se tomaba y se quitaba por
fuerza o de grado, y todo se consumí o se perdía sin paga,
sin compensación y sin arbitrio”, como reconheceu a
Junta governativa paraguaia, em oficio de 26 de setembro
de 1811. Realidade que certamente contribuiria para
conformar a visão política difusa da população plebéia
sobre a guerra e a independência nacional.16
Os combates desprestigiaram fortemente as
forças espanholistas, cobrindo ao contrário de prestígio
os militares criollos. O governador Bernardo de Velasco
dissolveu o exército vitorioso, requisitou as armas nas
14
Id.ib. p.99
WHITE. La primera revolución popular en America. Ob.cit. p. 43
16
GARAY, Blas. El comunismo de las Misiones; La revolución de la
Independencia del Paraguay. Ob.cit.; WHITE. La primera revolución
popular en America. Ob.cit. p.42.
15
76 - ARTIGO - A Primeira Independência do Paraguai
mãos dos cidadãos, concentrou suas forças em Asunción,
temeroso da reação de portenhistas e autonomistas, os
últimos sob a direção do capitão Pedro Juan Caballero, de
ilustre família crioula; do capitão espanhol Juan
Valeriano Zeballos, patriota; e do doutor José Gaspar de
Francia, advogado de grande prestígio. Conta a tradição
que o doutor Francia, filho de mãe de velha cepa
paraguaia e pai de origem luso-brasileira desconhecida,
ao discutir a orientação a ser tomada diante da ofensiva
portenha, colocara sobre a mesa duas pistolas, declarando
que uma estava armada para combater a Espanha e a outra
17
para lutar contra Buenos Aires.
Uma segunda expedição foi enviada por
Bernardo de Velasco, governador espanhol do Paraguai,
para ocupar Corrientes, para facilitar a coordenação da
resistência com os realistas entrincheirados em
Montevidéu. Porém, vergada a ofensiva portenha,
dissolvia-se a aliança entre os realistas e o partido
patriota autonomista paraguaio, então capitaneado pelos
grandes proprietários crioulos. Enquanto pipoqueavam
pequenas conspirações pró-portenhas, em Asunción e no
interior, favoráveis ao fim da “eslavitud a los
americanos”, expressão do espírito autonomista na
região entre os patriotas, os principais militares crioulos,
ponta-de-lanças dos grandes proprietários nativos,
marcaram, como visto, sublevação geral.
Todos contra Espanha
O doutor José Gaspar de Francia participou, com
destaque, desde o primeiro momento, dos preparativos do
mote autonomista. Para fortalecerem-se diante dos
realistas, os revolucionários envolveram na conspiração
chacareros, tenderos e, até mesmo, peões agrícolas. O
movimento iniciaria na antiga missão de Itapua [vila de la
Encarnación], com a sublevação de Fulgencio Yegros,
nomeado governador das Missões, apoiado por Manuel
Atanasio Cabañas, que reuniria forças nas Cordilleras. A
revolta ocorreria no dia 25 de maio, primeiro aniversário
do movimento de Buenos Aires, como assinalado.18
Porém, um importante sucesso anteciparia o
pronunciamento.
Em 9 de maio, chegava a Asunción o tenente de
dragões José de Abreu Mena Barreto [1770-1827],
enviado por Diogo de Souza [1755-1829], capitão-geral
do Rio Grande do Sul. Ele foi recebido por três mil
manifestantes, adictos ao espanholismo, que o
acompanham até a casa do governador. A princesa
imperial Carlota Joaquina de Bourbón, esposa de dom
João 6º, irmã de Fernando 7º, conspirava para reinar sobre
o Prata, aproveitando a acefalia do trono espanhol. Em 11
de maio, José de Abreu apresentara a exigência, aceita
dois dias mais tarde pelo cabildo de Asunción, todo ele
adicto ao realismo, de que Carlota Joaquina fosse
reconhecida como senhora do Prata, enquanto seu irmão
estivesse interditado.
Em sinal de submissão à Carlota Joaquina, o
governador e o cabildo acordaram colocar as Missões sob
a guarda portuguesa, o que diziam faria “cambiar a los
Insurgentes y a sus infames Satélites”. Um grandioso
baile de despedida foi oferecido no Palácio para José de
Abreu, que se prepara para partir para o Rio Grande do
Sul, levando as cartas de anuência do governador, do
bispo e do cabildo. Diante desses sucessos, o movimento
independista eclodiu em Asunción, em 14 de maio, sob o
comando do capitão Pedro Juan Caballero e do tenente
Vicente Ignacio Iturbe, que conquistam a adesão de
algumas tropas e, com ela, o controle dos quartéis e fortes
militares, sem praticamente resistência. O doutor Francia
19
participou com destaque do movimento.
Possivelmente por inspiração do doutor Francia,
o movimento apresentou-se sobretudo como mobilização
para impedir a anexação das Missões ao Brasil e
estabelecer relações menos tensas com Buenos Aires, que
permitissem a retomada plena do comércio. Sequer
exigiram o abandono de Bernardo de Velasco do governo
da província, que, sem poder antepor-se militarmente às
forças crioulas, queimou a correspondência
comprometedora e acomodou-se à nova situação. Desde
então, ele permaneceu secundado pelo capitão espanhol
Juan Valeriano Zeballos, simpático à causa paraguaia, e
pelo doutor José Gaspar de Francia, o principal
intelectual paraguaio e dirigente da ala intransigente dos
patriotas, desde sua atuação na Junta General de Vecinos
de julho de 1810.
Fim do consenso
Entretanto, após a vitória das forças criollas,
apoiadas pelos patriotas intransigentes e pelos segmentos
plebeus, o movimento começou a explicitar suas
contradições internas. Os portenhistas, que haviam
conspirado durante um ano para derrotar o governador
realista propuseram, na noite do dia 15, através do doutor
Somellera, que se enviasse imediatamente comunicação
do ocorrido a Buenos Aires. A pronta ação do doutor José
Gaspar de Francia registrou o sentido de sua participação
na junta revolucionária: vetou, no ato, a proposta,
lembrando que não se libertavam de Espana para se
20
submeterem a Buenos Aires.
Em 17 de maio, o novo governo lançou
proclamação reafirmando a defesa da autonomia e da
felicidade do Paraguai; reivindicando o “desgraciado
soberano” Fernando 7°; convocando congresso geral;
declarando a vontade de federar-se, em pé de direitos e de
igualdade, com Buenos Aires e as outras províncias do
Prata, baixo “un sistema de mutua unión, amistad y
conformidad”; exigindo a entrega das armas e da pólvora
existente em mãos de particulares, que seriam devolvida
e pagas oportunamente. Um documento que o historiador
paraguaio Blas Garay (1873-1899) computa possuir já
“el influjo preponderante de Francia em el Gobierno”.
Em sinal de boa vontade, a junta determinou o
abandono da ocupação de Corrientes. Quanto a José de
Abreu, representantes do novo governo foram visitá-lo,
19
Id.ib. p.105
ANDRADA E SILVA. Ensaio sobre a Ditadura do Paraguai. Ob.cit.
p. 120; VILABOY, Sergio Guerra. “El Paraguay del doctor Francia”.
Ob.cit. p. 4; WHITE. La primera revolución popular en America.
p.46; CHAVES, Julio César. El Supremo Dictador. p. 109.
20
17
ANDRADA E SILVA, Raul. Ensaio sobre a ditadura do Paraguai:
1814-1840. São Paulo: Coleção Museu Paulista, 1978. p. 115.
18
CHAVES. El Supremo Dictador. Ob.cit. p.102
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (73-78) - 77
entregando-lhes nota diplomática na qual se enfatizava a
independência e a igualdade em relação ao governo da
província de Buenos Aires e a vontade de manter as
melhores relações com o governo português. Além disso,
aquela nota elogiava fortemente a missão do tenente José
de Abreu de apoio à província e pedia auxílio de armas
devido aos ataques dos indígenas e à intranqüilidade geral
da região!21
O governador Velasco pedira apoio ao capitãomor da capitania do Rio Grande, quando da invasão de
Manuel Belgrano. Em fevereiro de 1811, Diego de Sousa
postara mil e quinhentos homens às ordens do governador
Velasco, na então fronteira sulina com o Paraguai. Tropas
lusitanas foram também reunidas no forte Novo de
Coimbra, na margem esquerda do rio Paraguai, no Mato
Grosso, para uma eventual invasão daquela província
pelo sul e pelo norte. A descoberta de correspondência de
Velascos com Montevidéu, propondo aliança com os
portugueses contra os patriotas, ensejou sua prisão, em 9
de junho de 1811, e de outros espanholistas e portenhistas
conspiradores. O mesmo ocorreu a seguir com os
portenhistas, envolvidos em conspirações contra a
autonomia paraguaia. A correspondência declarava a
intenção de apoiar os direitos de Fernando 7º contra os
revolucionários e, no impedimento daquele soberano, de
aceitar a suzerania de Carlota Joaquina sobre o Prata. Na
ocasião, foram igualmente destituídos os oficiais
espanhóis e o cabildo espanholista.
A vitória dos Senhores da Terra
Devido às prisões de espanholistas e
portenhistas, motivadas por conspirações contra a
independência paraguaia, no Congresso Geral, de 17 de
junho de 1811, entre os 251 deputados, à exceção de
quatro espanhóis natos, todos eram paraguaios patriotas,
em geral grandes proprietários de terra dedicados à
criação animal. O discurso de abertura foi proferido pelo
doutor José Gaspar de Francia, em elocução de forte
sentido russeauniano, na qual defendeu o direito da
província de “disponer de si misma” e lembrou que todo
homem nascia livre e que os direitos à liberdade podiam
ser sufocados pela forças das armas, mas jamais
extinguidos, pois “los derechos natureles” não eram
“prescribibles”. Porém, ainda sem forças para defender a
independência total do Paraguai de Espanha, Francia e
Zeballos pronunciaram juras de fidelidade ao rei
prisioneiro. “No por eso hemos pensado ni pensamos
dejar de reconocer al señor don Fernando VII [...] y
ahora protestamos nuevamente una firme adhesión a sus
22
augustos derechos”.
O congresso aprovou uma “Constituição
provisória da Província do Paraguai” e a destituição de
Velasco. Sobretudo, designou uma junta superior
governativa, por cinco anos, sob o presidência do tenentecoronel Fulgencio Yegros, também comandante geral das
armas, com quatro vogais: capitão Pedro Juan Caballero,
frei Francisco Javier de Bogarín, Fernando de la Mora e o
21
GARAY. El comunismo de las Misiones; La revolución de la
Independencia del Paraguay. Ob.cit. p. 200; CHAVES. El Supremo
Dictador. Ob.cit. pp. 113.
22
WHITE. La primera revolución popular en America. Ob.cit. p. 49
doutor José Gaspar de Francia. O médico suíço J.R.
Rengger, que viveu no Paraguai de 1819 a 1825, apesar de
severo crítico do doutor Francia, não creditava grande
valor ao caudilho das classes crioulas paraguaias: “[...]
Don Fulgencio Yegros, rico labrador que solo sabia
montar un caballo y manejar el lazo con mucha destreza,
en vez de ocuparse de los negocios públicos”, com os
outros distintos membros do governo, “pasaban su
23
tiempo jugando, haciendo paradas, fiestas y regocijos”.
Como Yegros, o capitão Pedro Juan Caballero
distinguira-se na luta pela independência e pertencia ao
escol das classes proprietárias criolas. Por sua vez, o frei
Francisco Javier de Bogarín representava o alto clero, que
dominava importantes bens e propriedades na província.
Fernando de la Mora era igualmente distinguido cidadão
paraguaio. O doutor Francia era o único membro da junta
sem ligação aos proprietários crioulos. Certamente
devido a ação resoluta de Francia, os espanholistas
crioulos não estavam representados na junta.24
A voz dos pequenos
No congresso, definiu-se a federação igualitária
do Paraguai com as demais províncias do Prata; aboliu-se
o monopólio estatal da venda do tabaco; declarou-se livre
o comércio de todos os produtos do país; pôs-se fim ao
serviço militar gratuito e universal, substituído por tropa
permanente e remunerada. Os espanhóis natos e os
inimigos do novo regime não podiam ascender a cargos
públicos. Em 20 de julho de 1811, foram enviadas a
Buenos Aires as decisões tomadas e uma nota definindo
as condições para uma eventual federação com as demais
províncias do vice-reinado: até o congresso das
províncias, o Paraguai governaria-se em forma
independente; o fim dos direitos sobre a erva-mate,
cobrados em Buenos Aires, e do estanco do fumo; que
toda a decisão tomada pelo futuro congresso de Buenos
25
Aires deveria ser ratificada pela população paraguaia.
Com o novo governo, o poder parecia encontrarse solidamente nas mãos da aristocracia crioula
paraguaia, da qual pertencia seu presidente e os demais
membros da Junta, à exceção do doutor José Gaspar de
Francia. Portanto, os novos senhores do Paraguai
poderiam finalmente dedicar-se a impor seu programa.
Ou seja, estender seu domínio através do país, ampliando
suas propriedades e exportações e negociar com a
burguesia mercantil portenha o nível de submissão a
Buenos Aires. Porém, desde logo, estabeleceu-se clara
oposição entre os membros da Junta Governativa, por um
lado, e o doutor José Gaspar de Francia, por outro. Este
último, representante dos defensores da independência
sem conciliação, desgostoso com a situação, afastou-se
do governo, quarenta dias após sua constituição, por
primeira vez, em 1º agosto de 1811, protestando contra o
domínio dos altos oficiais militares nas decisões
governamentais. Ou seja, da ação prepotente no governo
23
RENGGER, J.R. “Ensayo histórico sobre la revolución del
Paraguay”. RENGGER; CARLYLE; DEMERSAY. El doctor
Francia. Ob.cit. p. 20
24
CHAVES. El Supremo Dictador. P. 119.
25
RIVERA, Enrique. Jose Hernandez y la Guerra del Paraguay.
Buenos Aires: Colihue, 2007. p. 27.
78 - ARTIGO - A Primeira Independência do Paraguai
dos representantes da aristocracia proprietária crioula
paraguaia.
Nos meses seguintes, mais e mais, José Gaspar de
Francia passaria a acaudilhar os defensores
intransigentes da independência, com destaque para as
classes plebéias das cidades e sobretudo do campo. Uma
convergência que ensejaria o único movimento pela
independência nas Américas em que, sob a ordem
francista, os grandes proprietários nativos seriam
mantidos, por décadas, afastados do poder político.
Artigo recebido em 24/03/2011
Aprovado em 22/04/2011
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (79-81) - 79
Carlos Nelson e a defesa da dialética
Resenha do Livro
COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
Mozart Silvano Pereira1
O
livro O estruturalismo e a miséria da
razão, escrito pelo conhecido pensador baiano Carlos
Nelson Coutinho e lançado em 1972, é, há décadas, uma
obra renomada e clássica da filosofia marxista brasileira.
Contudo, após o esgotamento da sua primeira edição, este
ensaio referencial para estudantes e pesquisadores das
áreas das ciências humanas ficou cada vez mais difícil de
ser encontrado. Talvez fosse possível se deparar com
alguns exemplares em sebos ou em bibliotecas
universitárias, mas estas raras cópias não davam conta de
suprir a demanda que se tinha pelo livro, o que fez com
que as reflexões críticas de Carlos Nelson acerca do
estruturalismo fossem escassamente divulgadas.
Vem em ótima hora, portanto, a iniciativa da
editora Expressão Popular de, quase quarenta anos depois
da primeira versão, lançar a 2ª edição d'O estruturalismo
e a miséria da razão. O livro vem publicado na coleção
Debates & Perspectivas, marcando presença ao lado de
nomes como Celso Frederico e Leandro Konder,
que também tiveram escritos seus republicados pela
referida editora.
É verdade que a nova edição desta obra de
Coutinho demorou um pouco para sair. Tal situação se
explica pelo fato de o autor ter, por muitos anos, titubeado
sobre a reedição do livro em razão das dúvidas quanto à
atualidade de suas críticas ao estruturalismo francês. No
entanto, agora seu ensaio está novamente acessível ao
público e conta, inclusive, com o acréscimo de uma Nota
à 2ª edição redigida pelo próprio autor e de um primoroso
Posfácio escrito por José Paulo Netto que traz um
interessante debate sobre as principais teses do livro e que
conta com generosas indicações bibliográficas.
O estruturalismo e a miséria da razão é um livro
que simboliza uma investida radical do pensamento
crítico dialético ao estruturalismo, corrente que reinou na
intelectualidade francesa ao longo dos anos 60 e cuja
influência foi sentida, à época, também entre os teóricos
brasileiros. Trata-se de uma crítica marxista, mas,
também, mais que isso: é uma crítica lukacsiana a um
modelo de pensamento que se rendeu ao não
questionamento do status quo.
Geralmente nos lembramos de Carlos Nelson
Coutinho como um dos maiores conhecedores e
escavadores mundiais da obra de Antonio Gramsci. Mas
devemos lembrar também que Leandro Konder já lhe
chamou de “o primeiro lukacsiano brasileiro”. E tal título
tem uma razão visível n' O estruturalismo e a miséria da
razão, uma vez que a principal fonte teórica da qual
Carlos Nelson bebe não é Gramsci (as referências ao seu
mestre italiano são apenas episódicas), mas sim o
pensamento de Georg Lukács. Interessantemente, mesmo
tendo as argutas considerações de Carlos Nelson sido feitas
antes da publicação da Ontologia do ser social de Lukács, o
autor baiano demonstra pleno domínio das principais
categorias da ontologia lukacsiana, através da exploração
de textos isolados e entrevistas do filósofo húngaro.
Antes de empreender a análise sistemática das
teses estruturalistas, Carlos Nelson inicia o livro com
uma instigante avaliação da gênese histórica do
estruturalismo. Para isso faz uma análise mais abrangente
da trajetória da filosofia burguesa, na qual posteriormente
a vertente estruturalista é situada.
O primeiro passo dado pelo autor é, com Marx,
lembrar que uma filosofia pode ser colocada como
representante de uma classe social quando aquela não
ultrapassa no pensamento os limites que esta não
ultrapassa na vida.2
A partir disso, resgatando e expandido teses
lukacsianas acerca da visão de mundo da burguesia,
Coutinho coloca a questão nos seguintes termos: há duas
etapas fundamentais na história da filosofia burguesa. A
3
primeira delas, “que vai dos renascentistas a Hegel” , é
marcada fortemente pelo fato de o pensamento burguês
estar direcionado a um conhecimento progressista,
radical, contestador, que, naturalmente, está vinculado à
ascensão da burguesia como classe e à sua contestação
revolucionária do ancien régime. No entanto, com os
conflitos acontecidos entre 1830-1848, e a entrada em
cena do proletariado, a burguesia foi compelida a assumir
feições conservadoras para não perder seus privilégios
materiais garantidos pela ordem instaurada.
O custo desta transição foi, logicamente, o
abandono de seus ideais revolucionários e o contínuo
empobrecimento de um saber que antes era questionador,
dialético e orientado para a apreensão da totalidade social
por uma filosofia que se rende à reificação do mundo
capitalista. E disso surgiu a segunda fase histórica do
pensamento burguês – a etapa da decadência ideológica.
Ou seja, transitando de classe revolucionária para classe
conservadora, a burguesia estreita sua margem de
conhecimento da realidade objetiva, pois, como Lukács
já anotara em História e consciência de classe, a
consciência burguesa necessita se obscurecer sempre que
a solução dos problemas remete para além do
capitalismo.4
2
1
Mestrando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR). [email protected].
COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão.
2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p.31.
3
Idem, p.21.
80 - RESENHA - Carlos Nelson e a defesa da dialética
Diante disso, Coutinho afirma que o pensamento
fetichizado burguês divide-se em duas correntes que se
alternam na sua hegemonia de acordo com o contexto
sócio-histórico, quais sejam o irracionalismo e o
agnosticismo. Estas duas vertentes se colocam como
filosofias opostas, formas antagônicas de enxergar o
mundo, mas, ao mesmo tempo guardam algo em comum:
a aceitação do pensamento imediatista e a rejeição das
5
categorias do humanismo, do historicismo e da dialética.
Embora de formas bastante diferentes, as duas seccionam
a totalidade como objeto da reflexão e, no fim, acabam,
cada uma ao seu modo, decretando a inevitabilidade do
capitalismo.
O irracionalismo6 tende a aparecer como
momento soberano da filosofia burguesa quando a
conjuntura histórica se encontra em períodos explosivos
de mudanças estruturais, em meio a crises e mutações que
fazem suas contradições ficarem abertamente evidentes.
Nesses contextos é favorecido um “sentimento do
mundo” de “angústia”7 que vê no real apenas o irracional,
a perda de valores e a negatividade do presente,
proporcionando uma visão de mundo conservadora que,
negando a possibilidade de se superar os problemas que
se colocam à humanidade, conforma-se à ordem
instituída. A racionalidade dialética da realidade é
negada, e a objetividade passa a ser compreendida como
um amontoado de contradições absolutas, diante das
quais o intelectual só pode cultivar um fechado
pessimismo.
Do outro lado da moeda, encontra-se o
agnosticismo, cuja “característica essencial consiste em
afastar da realidade [...] os problemas conteudísticos, os
8
problemas da contradição” . O agnosticismo, ao invés de
negar niilisticamente a razão, confia a ela apenas os
aspectos formalizáveis e homogeneizáveis do real, de
modo que só é tornado objeto da reflexão filosófica
aquilo que for depurado por filtros formais que excluem
todo elemento ideológico, toda contradição. A sua
perspectiva confia em uma racionalidade puramente
formal que supostamente garantiria a cientificidade do
raciocínio, mas que na verdade acaba gerando um
empobrecimento do pensamento por desconsiderar a
contraditoriedade da realidade – causando o que Carlos
Nelson batizou de “miséria da razão”.
A filosofia agnóstica é característica de épocas
em que o capitalismo está relativamente estabilizado, e
suas contradições atuam de forma não tão explícita.
Nessa atmosfera - em que não há crises e os
irracionalismos da ordem social estão apaziguados 9
reforça-se o sentimento de “segurança” e valoriza-se a
idéia de “ordem e progresso”, presente na racionalidade
burocrática que opera no Estado e no mercado.
4
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a
dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.147.
5
COUTINHO, C. N., op. cit., p.44.
6
Podemos citar como exemplos para esta tendência pensadores como
Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, o jovem Sartre, entre outros.
7
Idem, p.62.
8
Idem, p.50.
9
Idem, p.64.
É nessa idéia de criação de uma
pseudorracionalidade, de “miséria da razão”,
proporcionada por um contexto de “solidez” social, que
Coutinho vai situar o positivismo, o neopositivismo e - o
que lhe interessa particularmente - o estruturalismo. Ora,
a conjuntura em que nasce o estruturalismo é exatamente
aquela na qual o Welfare State se firma de vez,
simbolizando a era de ouro do capitalismo. Ali, os
diversos teóricos estruturalistas adquirem a hegemonia
do pensamento burguês representando “o reflexo
ideológico do mundo manipulado”.10
Passando à crítica imanente das teses
estruturalistas, cuja característica essencial é a crença de
que a realidade social é inteligível apenas pelo método da
lingüística moderna, Coutinho faz uma análise rigorosa
dos fundamentos desta escola e das colocações de seus
principais mestres. A investigação começa com a
semiótica formal de Saussure, caminha pela antropologia
estrutural de Lévi-Strauss, passa pela teoria literária de
Roland Barthes, atravessa a “morte do sujeito”
foucaultiana e, por fim, desbrava o marxismo
estruturalista de Louis Althusser (ao qual é dedicado um
capítulo inteiro).11
Cada um destes autores é explorado em suas
particularidades, sendo levadas em conta as
peculiaridades de como cada um fez do método estrutural
seu modo de pensamento. Contudo, as idiossincrasias dos
escritores não impedem que Coutinho capte a unidade da
“miséria da razão” estruturalista: em todos eles está
presente a marca de um objetivismo que nega
constantemente as categorias marxistas do historicismo,
do humanismo e da dialética.
Com a exclusão destes conceitos do campo do
saber e com uma visão profundamente anti-ontológica, o
estruturalismo simplesmente corta, desde seus
pressupostos, os problemas colocados pela sociedade
capitalista (estes não seriam problemas científicos, mas
pseudoproblemas metafísicos e, portanto, devem ficar
fora da reflexão teórica). Desse modo impede-se que seja
criada uma práxis humana autônoma e desalienante e
conforma-se à imediaticidade da experiência
manipulada, tal como proporcionada pela cotidianidade
da sociedade burguesa. Diante desta submissão dos
teóricos estruturalistas à realidade capitalista, Carlos
Nelson assevera: “Os limites da 'razão' estruturalista são
12
os limites da consciência fetichizada de nosso tempo.”
10
Idem, p.75.
É certo que a leitura destes pensadores feita por Carlos Nelson
Coutinho em O estruturalismo e a miséria da razão é marcada pela
situação histórica em que o autor baiano se encontrava e, em razão
disso, ela esbarra em algumas limitações de época. Por exemplo, em
1971, enquanto escrevia sobre Althusser, Coutinho não tinha como
prever que o teórico francês, anos depois, submeter-se-ia a uma
autocrítica, invalidando algumas posições de Coutinho sobre sua
teoria. Por esta razão, o livro pode ser considerado “datado” em certas
afirmações, revelando algumas insuficiências. Logicamente, tais
insuficiências não podem, em absoluto, ser creditadas a um equívoco
ou a uma falta de rigor intelectual do autor: elas são resultados da
simples impossibilidade de se considerar na análise eventos que ainda
não haviam ocorrido.
12
Idem, p.107.
11
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (79-81) - 81
Essa citação é interessante, pois Coutinho fala de
“nosso tempo”. Só que este “nosso tempo” é o tempo do
início dos anos 70, no qual ele estava imerso enquanto
escrevia. Ora, isso nos leva diretamente à seguinte
questão: quais são as manifestações da filosofia burguesa
no nosso tempo, ou seja, agora, no século XXI? E mais:
como o ensaio de Coutinho, passadas décadas de sua
escrita, pode contribuir com o debate intelectual
hodierno?
Em 1968, Lukács escreveu, em carta endereçada
a Coutinho, que o estruturalismo era então “o maior
13
obstáculo para o desenvolvimento do marxismo” . Mas,
como o próprio Coutinho observa, na sua introdução de
2010, o estruturalismo desapareceu da batalha de idéias
pouco depois do lançamento de seu livro. De fato, em
meio às reviravoltas sócio-econômicas de meados dos
anos 70, ele foi substituído pelo pós-estruturalismo da
intelectualidade francesa, que, por sua vez, condensou-se
naquilo que hoje se chama de pós-modernismo.
É possível dizer, sem receio, que hoje é o pósmodernismo - com o seu repúdio a qualquer tipo de razão,
sua oposição à dialética e sua negação das
“metanarrativas” – a vertente dominante da filosofia
burguesa. Ora, a agenda pós-moderna, característica da
passagem de um mundo “ordenado” de Welfare State
para a “desordem” da reestruturação neoliberal, fecha-se
em uma negação de toda racionalidade emancipatória e
redunda em uma compreensão do presente capitalista
como situação eterna da humanidade. Desse modo, ela se
encaixa perfeitamente no mapa da decadência ideológica
traçado por Coutinho, despontando como a mais nova
forma de “destruição da razão” que, movida pelo
irracionalismo conformista, evita a denúncia crítica de
um mundo alienado.
O conteúdo d'O estruturalismo e a miséria da
razão é de uma impressionante atualidade. É certo que o
seu objeto específico (o estruturalismo) já não comparece
tanto aos debates teóricos, mas o seu objeto geral (a
f i l o s o f i a b u rg u e s a ) a i n d a s o b r e v i v e ( h o j e ,
particularmente, nos escritos da teoria pós-moderna), o
que faz com que o ensaio de Coutinho seja uma preciosa
arma analítica para a compreensão e crítica das formas do
pensamento burguês. A recuperação do humanismo, da
dialética e da ontologia é praticada com competência por
Coutinho e, se o seu objetivo com o livro era de “ressaltar
a universalidade e a atualidade das posições de
14
Lukács” , deve-se dizer que ele, com certeza, o atingiu.
Resenha recebida em 22/03/2011
Aprovado em 30/04/2011
13
KONDER, Leandro; COUTINHO, Carlos Nelson. Correspondência
com Georg Lukács. In: PINASSI, Maria Orlanda; LESSA, Sergio
(orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo,
2002, p.153.
14
COUTINHO, C. N., op. cit., p.20.
82 - RESENHA - O laboratório de Marx
O laboratório de Marx
Resenha do Livro
Marx, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011
Maurício Vieira Martins1
F
oi lançada este mês pela Editora Boitempo,
em coedição com a Editora UFRJ, a tradução brasileira
dos Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie,
manuscritos preparatórios de Marx para O Capital.
Aqueles que não conhecem o trajeto marxiano, podem
talvez se perguntar qual seria o sentido do investimento
na leitura destes manuscritos, uma vez que a versão
posterior do texto (o próprio O capital) já foi publicada.
Contudo, é imprescindível frisar que existem elaborações
e desenvolvimentos conceituais de Marx que só podem
ser encontrados nos Grundrisse. Redigido entre 1857 e
1858, o texto tem valor próprio; trata-se de uma espécie
de laboratório conceitual do próprio Marx, que ali pode
ser surpreendido na gestação mesma de seu pensamento.
Dentre a riqueza de questões nele presentes –
virtualmente impossível de ser resumida -, destacamos
apenas algumas delas.
Inicialmente, recordemos que os Grundrisse
oferecem abundante material sobre a interlocução de
Marx com Hegel (uma relação de “amor-ódio” aflitiva,
nas palavras de H. G. Flickinger2), sua matriz filosófica
mais duradoura. Sabe-se hoje que houve uma absorção,
sem dúvida crítica, de várias elaborações hegelianas por
parte de Marx, principalmente no que diz respeito à
construção lógica do argumento (que por fim se revela
intimamente ligada ao seu próprio conteúdo). Assim é
que é o leitor de A ciência da lógica - obra magna do
mestre de Jena - ficará surpreso ao deparar-se com alguns
motivos desta obra modificados e reconstruídos no texto
do próprio Marx. Foi o que ocorreu com as famosas
determinações reflexionantes (como forma/conteúdo,
aparência/essência, imediaticidade/mediação, etc), pares
de conceitos nos quais, muito brevemente falando, um
dos termos é definido mediante sua referência ao outro,
pois “a verdade deles, dizia Hegel, é a sua relação”. Tal
entendimento reescreve de modo profundo a tradição
filosófica anterior que afirmava uma dada essência como
realidade auto-contida. E, no que toca ao debate
propriamente econômico, explica também a recusa de
Marx em, por exemplo, isolar a esfera da produção da do
consumo, preferindo evidenciar sua intrínseca
interdependência (mesmo que o chamado momento
predominante caiba à primeira).
Ainda em sua interlocução crítica com Hegel, são
particularmente impactantes nos Grundrisse aquelas
passagens que discutem a lógica peculiar e contraditória
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito/Universidade Federal Fluminense.
2
Flickinger, Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia
social. Porto Alegre: L&PM/CNPq, 1986, p.32
do processo histórico. Vejamos como o texto formula, a
este respeito, a diferença entre o capital formado através
da poupança por parte do próprio capitalista daquele
outro, posterior, que já é o resultado do processo de
acumulação efetivado: "Para devir, o capital não parte
mais de pressupostos, mas ele próprio é pressuposto, e,
partindo de si mesmo, cria os pressupostos de sua própria
conservação e crescimento. Por isso, as condições que
precediam à criação do capital excedente I,..., não
pertencem à esfera do modo de produção ao qual o capital
serve de pressuposto; situam-se por detrás dele como
etapas históricas preparatórias de seu devir, da mesma
maneira que os processos pelos quais passou a Terra, de
um mar líquido de fogo e vapor à sua forma atual, situamse além de sua vida como Terra já acabada.” (p.378).
Seguindo esta via, eis que nos deparamos com a
espessura de uma ontologia encravada no interior mesmo
do debate com a economia política. É uma concepção do
ser como processualidade que se manifesta com força no
texto marxiano, só que agora, de modo distinto do que
ocorria com Hegel, em bases decididamente
materialistas. Até porque em Marx é o trabalho humano –
e não o Espírito - o responsável pela constituição do
mundo objetivo tal como o conhecemos hoje (“mas o
trabalho é e continua sendo o pressuposto” p. 323).
Muito já se escreveu sobre as aquisições
metodológicas presentes nos Grundrisse. Sobre isso, é
valiosa a indicação existente na carta de Marx a
Ferdinand Lassalle (de 22/02/1858). Nela, referindo-se
precisamente ao texto em questão, podemos ler: “o
trabalho que me ocupa no momento é uma crítica das
categorias econômicas ou, if you like, uma exposição
crítica do sistema da economia burguesa. É ao mesmo
tempo uma exposição e, do mesmo modo, uma crítica do
sistema.” Tal passagem reitera o antigo desejo de Marx nem sempre alcançado - em reunir num só movimento a
exposição e a crítica das categorias econômicas.
Conforme é sabido, em seus textos anteriores, a crítica à
sociedade burguesa era muitas vezes feita a partir de seu
confronto com uma futura sociedade de sujeitos
emancipados, que tornará possível que eu “cace de manhã,
pesque de tarde, crie gado à tardinha...“, na conhecida
formulação deste belo texto que é A ideologia alemã.
Ocorre que tal procedimento tornava o jovem
Marx vulnerável à reprovação de que estaria veiculando
apenas e tão-somente uma utopia, de concretização
inviável. Em contrapartida, o esforço de imersão na
lógica das categorias da economia política, com o intuito
de criticá-las de modo imanente, representa o acesso a um
patamar explicativo de outra ordem, que fortalece
inclusive o projeto político marxiano. E não resta dúvida
História & Luta de Classes, Nº 12 - Setembro de 2011 (82-83) - 83
que este é um dos motivos de fundo que atravessa os
Grundrisse, onde encontramos este intento anunciado de
forma quase programática em várias passagens:
“Analisemos primeiro as determinações simples contidas
na relação entre capital e trabalho, de modo a descobrir a
conexão interna – tanto dessas determinações como de
seus desenvolvimentos ulteriores – com o antecedente.”
(p. 206, grifos nossos). Ora, o que tal análise imanente vai
3
demonstrar é a progressiva captura do trabalho humano
num circuito de categorias (mercadoria, dinheiro, capital)
que o distancia e aliena dos sujeitos responsáveis por sua
objetivação; estranhamento que vem a ser, talvez, o tema
mais recorrente dos Grundrisse como um todo.
Um outro conjunto de questões originais destes
densos manuscritos pode ser encontrado na sua vertente
propriamente econômica - lembrando que ela não deve
ser isolada da já mencionada dimensão filosófica.
Referimo-nos por exemplo às seções em que Marx
analisa as mudanças trazidas pelo desenvolvimento da
indústria moderna, impulsionada pelas contribuições da
ciência, que potencialmente permitem uma liberação de
tempo disponível para os agentes da produção. Roman
Rosdolsky dizia que estas passagens dos Grundrisse são
4
de tirar “o fôlego ao serem lidas hoje", pois nelas se
demonstra de modo preciso a profunda contraditoriedade
do processo: o mesmo desenvolvimento tecnológico que
potencialmente traria a conquista de tempo livre para os
homens, finda por se transformar, sob a égide do capital,
numa forma mais sofisticada de dominação. Nas palavras
de Marx: "O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o
qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento
miserável em comparação com esse novo fundamento
desenvolvido, criado por meio da própria grande
indústria." (p. 588). Só mesmo uma mudança de forma
social - no sentido mais profundo do termo - pode
ultrapassar esta situação, fazendo-nos chegar a uma
sociedade onde a medida da riqueza seja não mais o
tempo de trabalho, mas o disposable time, para usarmos a
expressão inglesa da qual Marx se vale neste debate. Em
nosso século 21, após as insistentes promessas midiáticas
de uma liberdade que adviria do desenvolvimento
tecnológico, sabemos que o que se efetivou foi uma
expansão brutal da jornada de trabalho (que invade
nossos fins de semana, feriados, etc), trazendo de chofre a
atualidade da reflexão e do combate de Marx para os dias
de hoje. Motivo adicional para a leitura do texto, a ponto
de Martin Nicolaus afirmar que, se O capital se encontra
5
"penosamente inconcluso", já os seus manuscritos
preparatórios permitem em alguns momentos vislumbrar
melhor a íntegra do projeto marxiano.
Por fim, cumpre destacar a seriedade com que a
tradução brasileira dos Grundrisse foi realizada. O
Professor Mario Duayer, da Universidade Federal
3
Ou, para sermos mais precisos, da capacidade de trabalho, embora o
texto apresente uma oscilação terminológica que, pelo menos neste
caso, pode ser fecunda.
4
Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx.
Rio de Janeiro: Ed. Uerj/Contraponto, 2001, p. 354.
5
Nicolaus, Martin. “El Marx desconocido”. In: Marx, Karl. Elementos
fundamentales para la crítica de la economia política. México: Siglo
Veintiuno Editores, 1984, p. xxxi.
Fluminense, responsável pela supervisão editorial,
explicitou de forma segura suas decisões conceituais, que
sem dúvida contribuem para um melhor entendimento do
texto. Apenas como exemplo, o Mehrwert marxiano foi
coerentemente traduzido como mais-valor, ao invés da
tradução usual por mais-valia, que opacifica o conceito e
o converte em “algo enigmático, quase uma coisa” (p.
23). Além disso, Duayer redigiu uma Apresentação
extremamente esclarecedora, que comenta algumas
passagens seminais dos Grundrisse, bem como
contextualiza a gênese do texto e sua importância no
interior do pensamento de Marx. Razões de sobra, aliás,
para não permitirmos que prospere a conspiração do
silêncio que tantos desejam, ainda hoje, fazer em torno de
sua vasta obra.
Normas para os autores
1. A revista História & Luta de Classes [[email protected]] nasce em tempos de domínio
social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da
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conhecimento que se recusam a aderir e se opõem ativamente a essa dominação.
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número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração
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branco. Os originais deverão conter título, nome do autor filiação institucional (universidade, escola, sindicato, etc.),
resumo e abstract de 5 a 10 linha e 3 palavras-chave/key-works.
6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.
7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do texto),
obedecendo à seguinte formatação:
7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex.:
CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.
7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em
itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção
da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo:
Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.
7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n.
(número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo;
SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.
8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência
bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé.
Próximos Dossiês:
Número 13 – Educação e Ensino de História. Prazo para encaminhamento de contribuições até 30/09/2011.
Número 14 – Sociedades Pré-Capitalistas. Prazo para encaminhamento de contribuições até 30/03/2012.
Número 15 – História e Memória. Prazo para encaminhamento de contribuições até 30/09/2012.
Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da temática estabelecida
para cada dossiê, os quais serão avaliados e publicados de acordo com o planejamento editorial da Revista.

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