Marx, os Estados Unidos e a "América"

Transcrição

Marx, os Estados Unidos e a "América"
Marx, os Estados Unidos e a "América" - Simplicíssimo
Escrito por Paulo Ghiraldelli Jr.
Seg, 12 de Março de 2007 18:09 - Última atualização Seg, 23 de Fevereiro de 2009 12:24
Os Estados Unidos estão para uma boa parte dos brasileiros assim como a Roma Antiga
estava para a maioria dos bárbaros ou como a França de Napoleão esteve para uma boa parte
dos europeus. É um império e, como todo império, a cada passo que dá em favor das Luzes,
leva de roldão muito daquilo que os seus próprios intelectuais, mais tarde, considerarão como
uma cultura que deveria ter sido preservada. Vários políticos, generais e filósofos de Roma e
de Paris entenderam isso em relação a essas duas respectivas capitais do mundo, em suas
respectivas guerras de expansão e conquista. Todavia, nenhum deles conseguiu de fato dizer
de Roma e Paris: não era necessária tanta destruição para levar as Luzes.
Os Estados
Unidos, no século XX, tornou-se de fato um império semelhante. Derrotou dois inimigos
poderosos, o nazismo e o comunismo, e incorporou ao seu
modus vivendi
os inimigos, reconstruindo seus países e, depois, lhes dando condições de se tornarem
competidores autênticos dentro do seu próprio jogo. Foi assim que Alemanha, Itália, Japão e
todo o chamado Bloco Soviético veio a se “ocidentalizar” de vez. Esse projeto irá se repetir com
o resto do mundo, no século XXI? A China, o Paquistão, a Índia e o Irã e outros irão, de fato,
encontrar o rumo não só do capitalismo, mas também da democracia de modo a crescerem
sem grandes mágoas dos Estados Unidos? Ninguém sabe. Muitos acreditam que não, e
temem o futuro. Não sabem se o aquecimento global irá consumir a todos antes que uma
guerra mais violenta ocorra ou que o terrorismo se espalhe de modo incontrolável. Poucos são
otimistas em relação ao futuro, agora nesse início de século.
A situação mundial é complexa, e está longe de ser compreendia pelos bárbaros. Para o Brasil
ou, melhor dizendo, para o tipo de brasileiro que se parece com o bárbaro, os Estados Unidos
são uma nação ininteligível. Ele, o brasileiro, como todo homem médio do mundo, adora tudo
que os Estados Unidos produz. Ele jamais viveria em um mundo sem a cultura, a tecnologia e
a forma de política divulgada pelos Estados Unidos. Todavia, ele mente para si mesmo ou não
busca informações para saber mais sobre os Estados Unidos. Ele teme que, se descobrir a
verdade, terá de se responsabilizar sozinho pelo fato do Brasil não ter se desenvolvido. Muitos
bárbaros achavam isso de Roma. Muitos dos que quiseram vencer Napoleão achavam isso de
Paris. Poucos entenderam o imperialismo francês e o romano. Poucos entendem o
imperialismo americano. De todos os pensadores que li (e não foram poucos), somente um dos
considerados clássicos entendeu de fato os Estados Unidos: Karl Marx.
Marx foi o pensador mais americanista dos que li. Nenhum pensador clássico, mesmo os que
nasceram nos Estados Unidos, foram tão fortemente influenciados pela “América” e se
tornaram decisivamente simpáticos aos Estados Unidos quanto Marx. Sua carta a Lincoln,
felicitando este pela vitória nas eleições, diz tudo que se deve saber para compreender o que
os outros não compreenderam. Ele via em Lincoln um revolucionário. E ele sentenciou: para
onde os trabalhadores da nação da bandeira listrada penderem, penderá o mundo. Dali para
diante, estava tudo dito. Essa frase somada àquela sua outra, no
Manifesto Comunista
, que diz que “tudo que é sólido se desmancha no ar” quando da entrada da modernidade e
das “forças burguesas” no cenário mundial, dizem tudo que se precisaria dizer do século que
Marx não viu, o século XX. Os trabalhadores americanos se tornaram democratas, e não
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socialistas. Todavia, captaram do socialismo ideais que foram utilizados por John Dewey em
sua renovação do liberalismo, em termos filosóficos, e por Roosevelt, no “New Deal”, em
termos políticos. Ao terminar o século XX, todos os trabalhadores do mundo acompanharam os
trabalhadores da “América”. O que Marx profetizou, ocorreu. Nenhum outro pensador
conseguiu tamanha capacidade de atirar em um alvo tão distante e acertar do modo como
Marx acertou. E não só. Em relação ao dito no
Manifesto
, ele também acertou. Cada vez as mudanças se tornaram mais rápidas e, enfim, ao terminar o
século, a Internet e outros meios de comunicação e criação deram a todos a sensação de
vertigem: ninguém mais tem a capacidade de dizer que é dono da verdade, pois todo mundo
fica sabendo de todo mundo, e a criações de entendimentos mais ricos prolifera. As novidades
duram só segundos. O que há de mais sólido vira poeira. Também nisso Marx acertou o alvo.
Caso tivesse vivido mais um pouco ele daria até o endereço e o CPF de um Bill Gates,
tamanha era sua convicção de que a “América” traria um novo rumo para o mundo em termos
de complexidade e riqueza nas diferenças de psicologias.
Quando lemos Marx e olhamos para sua mania de traçar a história a partir de revoluções, mais
então nos convencemos que ele era um gênio. Os Estados Unidos promoveram e estão
promovendo ainda uma revolução nos costumes, na moda, no imaginário, na tecnologia, na
vida política, na forma de matar e de viver, no modo de cultuar os deuses e na maneira de ser
feliz e de oprimir os outros – tudo passa por Nova Iorque. O império americano, muito mais que
Roma ou Paris no passado, traçam os destinos do mundo, em um movimento altamente
complexo, que Marx, discípulo de Hegel, talvez deixasse Engels chamar de “dialético”. Por
exemplo: Bush veio ao Brasil para uma parceria vantajosa para o nosso país, e Bush é
republicano. Quem ficou contra? Ora, justamente o candidato à Presidência dos Estados
Unidos que está mais à esquerda que Hilary Clinton, o senador Obama. Enquanto Bush
celebrava com Lula um acordo de cooperação que é um primeiro passo para o Brasil quebrar
barreiras e entrar no mercado americano vendendo “energia” – um sonho de Monteiro Lobato
–, Obama, lá nos Estados Unidos, atacou o acordo dizendo que ele irá impedir seu país de
desenvolver tecnologia própria. Assim, o aliado natural nosso, que seria o democrata, torna-se
nosso adversário, e aquele contra o qual alguns protestam, o guerreiro Bush, torna-se nosso
aliado. É claro que isso é apenas um momento da história, mas é um momento importante,
pois é um daqueles momentos que fazem parte de algo que, depois de ocorrido, o historiador
vem e diz que arrancou dali uma teoria da história. E mais fez isso. Ele profetizou: as
revoluções não são pontuais, podem não ocorrer de modo espontâneo como algumas
revoluções políticas de seu tempo. Marx não via como revoluções apenas as revoluções
políticas. A “revolução industrial” como um todo, com várias fases, era parte de algo que ele
também chamava de revolução. Pode ser que a revolução americana no mundo não esteja no
fim. Pode ser que ela esteja na metade. Pode ser que países como o Brasil façam parte dela
aliando-se ao núcleo do império, como ocorreu com várias colônias em relação a Roma e
Paris. Marx estudou como ninguém o caso romano e o caso francês. Foi deles que ele tirou
sua teoria da história. Por isso, talvez, tenha acertado tanto ao profetizar, para Lincoln, que o
mundo iria seguir a “América”.
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É claro que hoje, nos Estados Unidos, ninguém pensa assim como eu. Filósofos como Richard
Rorty preferem acreditar na Europa, na força civilizatória da Europa, para conter o belicismo
republicano dos Estados Unidos. Rorty tem tanto desprezo pelos republicanos que seja quem
for o candidato democrata, Rorty vota nele sempre. Para ele, Bush é uma desonra, um homem
que só favorece a plutocracia que Gore Vidal e Chomsky acreditam que é a América. Rorty não
segue nem Chomsky nem Vidal. Rorty sabe perfeitamente que ambos vivem do
anti-americanismo, e isto é uma forma de estupidez tão grande quanto o belicismo de Bush.
Mas Rorty não acredita que o século XXI será “americano”. Ele entende que a China poderá
dar cartas. E ele teme isso, pois ele duvida que algum chinês, hoje, saiba o que quer. Pois a
falta de democracia na China, hoje, pode se tornar um problema grave para o mundo, amanhã.
Isso nós poderíamos dizer, também, do Irã. Mas não podemos dizer isso agora. Pois dizer isso
agora é alimentar Bush em seus desejos completamente contraditórios de levar a democracia
através da guerra. Contraditórios? Ah, bem, mas não foi assim que Roma e Paris fizeram? E o
“contraditório”, aqui, não seria novamente uma forma de expressar aquilo que Marx deixaria
Engels denominar de “dialético”?
Outra característica que Marx viu nos Estados Unidos, embora somente na medida em que ela
podia ser mostrada em sua época, é claro, é o fato de a “América” não parar nunca, enquanto
a modernidade não cessar, de incorporar levas e levas de grupos étnicos, religiosos e políticos
diferentes. Marx apostava que o fim do escravismo seria o primeiro passo para isso. Caso
tivesse vivido um pouco mais, iria dizer o que John Dewey, trinta anos depois de sua morte,
disse: não há “o americano”, só há o “americano hifenado”. Em um texto dos filósofos Hilary
Putnam e sua esposa Anna Ruth Putnam, há uma forte interpretação dessa fala de Dewey
como que um modo de protagonizar claramente o que foi um momento especial dos Estados
Unidos. Foi aquele momento, logo na Primeira Guerra Mundial, em que a sociedade americana
se dividiu entre os “americanos” – um conceito que deveria incorporar índios, negros e outros
grupos – e os “americanos”, um conceito que pretendia excluir os grupos denominados de
minorias. Foi a época em que os Estados Unidos começaram a tentar restringir a imigração.
Dewey, naquela época, lembrou o presidente americano que na “América” só existia, mesmo,
como “americano autêntico”, o ítalo-americano, o afro-americano, o “sino-americano” e assim
por diante. Só existia, como americano, aquele que trazia no nome de nacionalidade um hífen.
De certo modo, quando Marx apostou no fim da escravidão como um passo na direção de algo
que, depois, veio a ser chamado de “melting polt”, ele deu mais um tiro na direção de sua
previsões que vieram a se confirmar.
Essa complexidade dos Estados Unidos trouxe, também, uma outra característica. Os Estados
Unidos são um país real e um país imaginário ao mesmo tempo. Quem o descobriu não lhe
deu o nome. Pois o nome, “América”, é um nome de propaganda. Assim, desde o início, a
nação americana nasceu como a Coca Cola: há algo lá dentro, algo que é muito gostoso de
beber gelado, no calor, algo que o mundo inteiro quer. Todavia, ninguém sabe o que é (nem a
Pepsi e nem o Michael Jackson). O que tem dentro não é Coca Cola, pois este é apenas o
“nome de fantasia”. A “América” tornou-se, então, apenas um rótulo (que nada tem a ver com
geografia); um rótulo do sonho de liberdade dos imigrantes e, enfim, de todos os refugiados do
mundo. Os Estados Unidos, diferente da “América”, tornou-se o complexo industrial militar que,
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não raro, é necessário ser contido pelo sonho chamado “América”, para que o mundo possa
sobreviver. Para que as Luzes, que o império leva, não sejam colocadas nos olhos dos outros
diretamente, pois isso provocaria mais a cegueira que a visão, é necessário colocar a
“América”, o sonho de liberdade, contra os representantes da plutocracia que, não raro,
ganham as eleições nos Estados Unidos. Mas para agir assim, temos de deixar de ser
brasileiros (pois às vezes, são os republicanos nossos melhores aliados!) e nos imaginar como
cidadãos do mundo e, principalmente, temos de nos tornar “americanistas”, quase como Marx
o foi. Caso sejamos anti-americanos, não deixaremos nunca de sermos iguais ao bárbaros que
combateram Roma, ou os soldados da Rússia atrasada que combateram Napoleão.
Paulo Ghiraldelli Jr.
“O filósofo da cidade de São Paulo”
www.ghiraldelli.pro.br
www.filosofia.pro.br
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